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anais do vi seminário internacional

sobre direitos humanos fundamentais

volume ii
VI SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS
HUMANOS FUNDAMENTAIS

ANAIS (VOLUME II)


ISSN 2525-2682

LOCAL:

Plataformas Zoom e Google Meet.

ORGANIZAÇÃO:

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos, Instituições e Negócios (PPGDIN/UFF)

APOIADORES:

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Econômico e Desenvolvimento da Universidade


Cândido Mendes (UCAM)
COMISSÃO EXECUTIVA

A Comissão Executiva será presidida pelos Professores Dra. Célia Barbosa Abreu, Fábio Carvalho

Leite e Manoel Messias Peixinho, sendo composta pelos seguintes membros:

Alex Assis de Mendonça; Alexander Seixas da Costa; Eduardo Langoni de Oliveira Filho; Fabíola

Vianna Morais; Fernanda Franklin Seixas Arakaki; Iara Duque Soares; João Pedro Schuab Stangari

Silva; Joyce Abreu de Lira; Karina Abreu Freire; Laércio Melo Martins; Leonardo Martins Costa;

Natália Costa Polastri Lima; Natália Silveira Alves; Pedro Paulo Carneiro Gasparri, Rafael Bitencourt

Carvalhaes; Rebeca Cordeiro da Rocha Mota; Rinara Coimbra de Morais; Renata Meda; Rosana

Maria de Moraes e Silva Antunes; Tatiana Fernandes; Tauã Lima Verdan Rangel, Thiago Villar

Figueiredo.

EDITORAÇÃO, PADRONIZAÇÃO e FORMATAÇÃO DE TEXTO

Célia Barbosa Abreu (PPGDC/UFF)


Tauã Lima Verdan Rangel (PPGSP/UENF)

CONTEÚDO, CITAÇÕES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

É de inteira responsabilidade dos autores o conteúdo apresentado.


Reprodução dos textos autorizada mediante citação da fonte.
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

SUMÁRIO

Apresentação .............................................................................................................. 10
Célia Barbosa Abreu, Manoel Messias Peixinho & Fábio Carvalho Leite

A pandemia pelo novo coronavírus e o Sistema Único de Saúde .................... 11


Wladimir Tadeu Baptista Soares, Valdilene Simões Cardoso & Mariana
Sanguedo Baptista

A vulnerabilidade dos Estados Latino Americanos: a garantia do direito


internacional dos direitos humanos fundamentais frente ao novo
coronavírus .................................................................................................................. 38
Rinara Coimbra de Morais & Lays Serpa S. O. Silva

Renda básica temporária e auxílio emergencial: panorama sobre a garantia


dos direitos econômicos em tempos de pandemia .............................................. 59
Diogo Paiva Pessanha, Thiago José Aguiar da Silva & Vanusia Drumond

Saneamento básico no contexto da pandemia COVID-19 no Brasil: a


desigualdade regional e o novo marco do saneamento básico ......................... 82
Pedro Germano dos Anjos, Joyce Kelly Batista Xavier & Caêssa Ferreira
Santos dos Santos

Direito de imagem e direitos autorais: reflexões sobre o ensino à distância


em tempos de pandemia ........................................................................................... 108
Marlene de Paula Pereira, Mateus Rodrigues Coutinho & Sara Elizabeth da
Silveira

Cárcere e pandemia: ações e omissões dos Estados e do Governo Federal .... 124
Crislaine Matos Santos, Letícia Rocha Santos & Renata Santos da Cruz

O direito da gestante em trabalho de parto (e no pós-parto) a acompanhante


e as restrições do COVID-19 .................................................................................... 151
Karine Domingos de Souza, Paulo Sérgio Gomes Soares & Gustavo Paschoal
Teixeira de Castro Oliveira

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A garantia constitucional da assistência à saúde e os desdobramentos na


pandemia do novo coronavírus ............................................................................... 180
Fabrízia da Fonseca Passos Bittencourt Ordacgy

Os desafios do teletrabalho na pandemia do novo coronavírus


(COVID-19) .................................................................................................................. 203
Cicília Araújo Nunes, Cláudia Costa Paniago Pereira & Taciana Cecília Ramos

Dignidade humana em questão: falta de densidade normativa ou recusa dos


pactos sociais? ............................................................................................................. 218
Karen Artur & Ligia Barros de Freitas

Constitucionalização simbólica em tempos de pandemia: em busca da


efetividade dos direitos trabalhistas ...................................................................... 236
Débora de Jesus Rezende Barcelos, Carolina de Souza Novaes Gomes Teixeira
& Caroline Fernanda Silva

Fronteiras e portas fechadas: mulheres traficadas nos tempos do


coronavírus .................................................................................................................. 270
Bianca Pereira Bittencourt & Nayara Tavares Cardoso

O direito fundamental à privacidade: uma análise do compartilhamento de


dados pessoais em tempos de pandemia ............................................................... 274
Mariana Boechat da CostaA

A luta coletiva dos entregadores latino-americanos contra a pandemia do


capitalismo: movimentos grevistas em tempos de COVID-19 ......................... 297
Ana Beatriz Bueno de Jesus, Bruna da Penha de Mendonça Coelho & Maria
Eugênia Pinheiro Sena da Silva

(In)visibilidade do mundo rural: fragilização de direitos à população


campesina em tempos de pandemia versus a rede de solidariedade do MST
contra o coronavírus – um olhar sobre gênero ..................................................... 321
Andreza Aparecida Franco Câmara & Larissa César Zavatário

A suspensão dos prazos para aquisição de propriedade durante a pandemia


do coronavírus: a ratio legis e as consequências para a efetivação do direito
à moradia ...................................................................................................................... 340
Alexandre Hiromitsu Hamasaki & Patrícia Silva Cardoso

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Mães trabalhadoras na pandemia da COVID-19 ................................................. 364


Flaiza Sampaio Silva, Isabela Miguel de Carvalho & Izabelle Maria Patitucci
de Azevedo

Desconstruindo o mito da Mulher-Maravilha: diálogos sobre a divisão


sexual do trabalho e os impactos da pandemia da COVID-19 sobre as
mulheres ....................................................................................................................... 382
Carla Appollinario de Castro, Márcia Cristina Souza de Oliveira & Simone
Cortes Belfort

Crise pandêmica x federalismo cooperativo: o dever constitucional do


Estado conforme o art. 23, II/CF e os impasses ao direito à saúde ................... 403
Leonardo Picolo Cauzim & Danilo Henrique Nunes

A problemática do ensino público brasileiro diante da pandemia da


COVID-19 e a necessidade de inclusão digital: a (in)aplicabilidade do
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) relativo ao ano de 2020 ............... 426
Camilla Martins Cavalcanti, Nikaelly Lopes de Freitas & Arnelle Rolim
Peixoto

A (in) eficácia do ensino à distância em tempo de coronavírus e o aumento


da exclusão e desigualdades sociais no Brasil ...................................................... 447
Celio de Mendonça Clemente, Darlan Alves Moulin & Maria Débora
Mendonça Cosmo

A flexibilização de direitos sociais do trabalho em tempos de pandemia


frente ao princípio da proteção do trabalhador ................................................... 474
Camila Savaris Cornelius & Carla Vieira Carmozine

O direito fundamental de acesso à saúde versus a COVID-19.......................... 490


David Augusto Fernandes

A pandemia como fator de risco para a implementação da economia circular


no Brasil: desafio político-jurídico ......................................................................... 515
Newton Augusto Cardoso de Oliveira & Wilson Tadeu de Carvalho Eccard

A flexibilização dos direitos sociais dos trabalhadores diante da pandemia


da COVID-19 ............................................................................................................... 538
Alex Faverzani da Luz, Ariane Faverzani da Luz & Luis Ângelo Dallacort

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Heroísmo do profissional da saúde como forma de precarização do


trabalho ......................................................................................................................... 557
Maria Carolina Rodrigues Freitas & Elaine Mary Rossi de Oliveira

Direito Humano à Água Potável: um exame à luz do Comentário Geral da


ONU nº 15 .................................................................................................................... 574
Douglas Souza Guedes & Tauã Lima Verdan Rangel

A explicitação da necropolítica sobre corpos encarcerados em tempos de


pandemia frente ao direito fundamental à saúde ................................................ 591
Nikaelly Lopes de Freitas & Bruna Souza Paula

A efetivação do direito à saúde e o enfrentamento da COVID-19 em âmbito


local ............................................................................................................................... 621
Mirelle Gallas

A saúde como direito fundamental global: perspectiva a partir da pandemia


do COVID-19 ............................................................................................................... 647
Fabio Luiz Gomes & Fabiola Vianna Morais

Acessibilidades das pessoas com deficiência nas cidades & o papel do


Estado ............................................................................................................................ 658
Alexander Seixas da Costa & Célia Barbosa Abreu

Direito à saúde, mínimo existencial e dignidade humana: a (in) eficácia do


Sistema Único de Saúde no combate à pandemia do novo coronavírus
(COVID-19) no Brasil ................................................................................................ 678
Rosane Augusto Iellomo, Alexsandro Oliveira de Souza & Darlan Alves
Moulin

Impactos da pandemia na Política Educacional Brasileira ................................ 696


Celia Barbosa Abreu, Alexander Seixas da Costa & João Pedro Schuab
Stangari Silva

O tratamento dispensado às familias de detentos na pandemia do COVID-


19: um estudo pela ótica da economia política da pena...................................... 715
Jéssica Domiciano Jeremias

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O acesso à internet em tempos de COVID-19: garantia da igualdade


material no direito à educação básica..................................................................... 745
Janice Scheila Kieling, Diego Luiz Trindade & Lisiane Beatriz Wickert

Saúde de curto prazo: as ações e os gastos do governo federal na área de


saúde pública durante a pandemia – COVID-19 ................................................. 772
Leonardo Oliveira Tognoc & Paulo Roberto dos Santos Corval

Teletrabalho na pandemia da COVID-19: reflexos da Medida Provisória


927/2020 nas condições laborais ............................................................................... 799
José Sarto Fulgêncio de Lima Filho, Ana Larissa da Silva Brasil & José Nilton
de Menezes Marinho Filho

A proteção do trabalhador através da negociação coletiva e as medidas


provisórias da pandemia de COVID-19 ................................................................ 825
Maria Laura Bolonha Moscardini & Daniel Damásio Borges

A renda básica universal como instrumento de concretização de direitos


fundamentais na contemporaneidade: justificativas político-jurídicas,
limites e possibilidades ............................................................................................ 845
Fabrício Manoel Oliveira & Thaís Costa Teixeira Viana

Direito à saúde na Guatemala: (des)configuração histórica e o contexto da


COVID-19 .................................................................................................................... 866
Cristian David Osorio Figueroa

Os impactos da pandemia e a precarização do trabalho de transexuais e


travestis ......................................................................................................................... 884
Renan Pereira da Silva de Souza & Thiago Rodrigues dos Santos Pacheco

Sistema penitenciário e pandemia: efetividade da Recomendação nº 62 do


Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Sistema Carcerário Norte
Riograndense ............................................................................................................... 899
Bruno Felipe Barboza de Paiva & Francisco Pablo Fernandes de Oliveira

O rol das disciplinas propedêuticas e suas aproximações transdisciplinares


no contexto da pandemia do corona vírus ............................................................. 919
Camila Ires Figueredo Barros & Francisco Ercílio Moura

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A uberização enquanto reestruturação produtiva ............................................... 946


Victor Araújo Presa Rios, Fernando Gabriel Lopes Cavalcante & Victor Bastos
dos Reis Pereira

Elementos para uma crítica dialética do direito do trabalho brasileiro .......... 972
Victor Araújo Presa Rios, Fernando Gabriel Lopes Cavalcante & Victor Bastos
dos Reis Pereira

OMS e OIT no combate ao coronavírus: ações conjuntas e diálogo


normativo como instrumentos de proteção à saúde e segurança dos
profissionais da saúde em tempos de pandemia ................................................. 999
Catharina Lopes Scodro & Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto

Aporofobia e pandemia: o Estado, os ultra ricos e a dignidade dos pobres .. 1.018


Daisy Rafaela da Silva & Davi Dias Ribeiro Arantes

Os direitos fundamentais da gestante e as restrições da COVID-19 ............... 1.034


Karine Domingos de Souza, Gustavo Paschoal Teixeira de Castro Oliveira &
Paulo Sérgio Gomes Soares

Crise, reforma e sindicato: de 1920 ao Brasil contemporâneo ........................... 1.059


Mariana de Freitas Barros Souza & Renan Pereira da Silva de Souza

O ensino jurídico em tempos de coronavírus: considerações afetas à nova


prática laboral brasileira ........................................................................................... 1.086
André Luiz Staack, Eduardo Correia Gouveia Filho & Gabriela Rangel da
Silva

Tecnologia e COVID-19: o direito à desconexão em tempos pandêmicos ..... 1.109


Gabriela Rangel da Silva & Camila Savaris Cornelius

Uma reflexão sobre os efeitos da pandemia nas relações contratuais de


locação ........................................................................................................................... 1.131
Celia Barbosa Abreu, Alexander Seixas da Costa & João Pedro Schuab
Stangari Silva

Insanidade mental e sua relação com os direitos humanos: reflexos no


ordenamento jurídico brasileiro ............................................................................. 1.157
Sarah Borges Vasconcelos, Karla de Souza Oliveira & Mariane Morato
Fonseca Stival

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

APRESENTAÇÃO

Com imensa satisfação, disponibilizamos os Anais do VI Seminário

Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais, acompanhados do respectivo

ISSN, reunindo pesquisas de docentes e discentes de diversas Universidades.

Estes Anais são metódica e cientificamente organizados, versando sobre

os temas dos grupos de trabalho operantes nos eventos acima destacados, quais

sejam: direitos civis e políticos; direitos sociais, econômicos e culturais; direitos

solidários; democracia, informação e pluralismo; direito à paz.

Desejamos a todos uma boa leitura.

Niterói, 30 de setembro de 2020.

Coordenação Geral
Célia Barbosa Abreu
Manoel Messias Peixinho
Fábio Carvalho Leite

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A PANDEMIA PELO NOVO CORONAVÍRUS E O SISTEMA

ÚNICO DE SAÚDE

Wladimir Tadeu Baptista Soares1


Valdilene Simões Cardoso2
Mariana Sanguedo Baptista3

RESUMO
A pandemia pelo novo coronavírus, iniciada na China, em novembro de 2019, está fazendo o mundo
todo se curvar a um poderoso inimigo invisível, capaz de colocar toda a humanidade em risco de
não continuar mais existindo, gerando uma grave crise humanitária, com reflexos nos direitos
sociais, culturais e em toda a atividade econômica, o que, por si só, já revela a relevância jurídica e
social do tema. A nossa hipótese é a de que o SUS, sendo fortalecido, respeitado e concretizado
conforme as diretrizes constitucionais estabelecidas, é um sistema suficiente e apto para enfrentar
esse problema e outros que no futuro possam vir a acontecer. No Brasil, o direito fundamental à
saúde está fundamentado na cidadania, na democracia e na dignidade da pessoa humana, o que faz
desse direito subjetivo do cidadão um dever fundamental do Estado, conforme explicitamente
previsto no texto da nossa Constituição Cidadã. Este artigo visa discutir o SUS diante de todo esse
quadro de saúde pública atual, apontando suas fragilidades estruturais e a responsabilidade do
Estado no seu fortalecimento, de modo a assegurar a todos o direito universal e integral à saúde e,
consequentemente, à vida – e vida com dignidade. Ao mesmo tempo em que procura apontar a
importância do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) para esse fim. A pesquisa vai se
desenvolver utilizando, especialmente, os métodos exegético, interpretativo e jurídico-doutrinal,
além de uma vasta pesquisa bibliográfica sobre o tema, tendo como marco legal a Constituição
Federal de 1988. A pesquisa tem por objetivo revelar o SUS como um sistema público de saúde
apropriado para o enfrentamento de uma crise humanitária de saúde pública, como a que agora
estamos vivendo, apesar de todas as suas deficiências - todas elas absolutamente possíveis de serem
sanadas a partir de decisões acertadas de políticas públicas de saúde; ou seja, todas elas dependentes
de uma vontade política de fazer acontecer aquilo que é necessário e urgente neste momento crítico
e também após vencermos essa pandemia pelo novo coronavírus.

Palavras-chave: Pandemia pelo novo coronavírus; Sistema Único de Saúde; Cidadania; Dignidade
da Pessoa Humana; Direito à Saúde.

ABSTRACT
The pandemic for the new coronavirus, which started in China in November 2019, is making the
whole world bow to a powerful invisible enemy, capable of putting all of humanity at risk of not

1
Advogado, Médico, Professor da Faculdade de Medicina da UFF, Especialização em Medicina do Trabalho
(UFF) e em Direito Processual Civil (UFF), Mestre em Justiça Administrativa (UFF), Doutor em Direitos,
Instituições e Negócios (UFF), E-mail: wladuff.huap@gmail.com; http://lattes.cnpq.br/6529572400662383
2
Médica, Instituto Nacional do Câncer (INCA – HC1), Hospital Federal do Andaraí, Hospital São Vicente de
Paulo (RJ), E-mail: valdilenecardoso@gmail.com; http://lattes,cnpq.br/2280683499165153
3
Advogada, E-mail: marisanguedo@gmail.com; http://lattes.cnpq.br/4514418222978476

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

continuing to exist, generating a serious humanitarian crisis, with reflexes in social, cultural rights
and in all economic activity, which, in itself, already reveals the legal and social relevance of the
theme. Our hypothesis is that the SUS, being strengthened, respected and implemented according
to the established constitutional guidelines, is a sufficient and apt system to face this problem and
others that may happen in the future. In Brazil, the fundamental right to health is based on
citizenship, democracy and the dignity of the human person, which makes this subjective right of
the citizen a fundamental duty of the State, as explicitly provided for in the text of our Citizen
Constitution. This article aims to discuss SUS in the face of this current public health situation,
pointing out its structural weaknesses and the State's responsibility in strengthening it, in order to
ensure the universal and integral right to health and, consequently, to life - and life with dignity. At
the same time it seeks to point out the importance of the Economic-Industrial Health Complex (CEIS)
for this purpose. The research will be developed using, especially, exegetical, interpretative and
legal-doctrinal methods, in addition to extensive bibliographic research on the subject, having the
1988 Federal Constitution as a legal framework. The research aims to reveal SUS as an appropriate
public health system to face a humanitarian public health crisis, such as the one we are now
experiencing, despite all its deficiencies - all of which are absolutely possible to be remedied from.
correct decisions of public health policies; that is, all of them dependent on a political will to make
what is necessary and urgent happen at this critical moment and also after we overcome this
pandemic by the new coronavirus.

Key-Words: Pandemic by the new coronavirus; Health Unic System; Citizenship; Dignity of human
person; Right to health.

INTRODUÇÃO

Em novembro de 2019, na cidade de Wuhan (China), foi observado um surto

de doença respiratória causada pelo novo coronavírus, tendo como hospedeiro uma

espécie de morcego conhecido como “morcego ferradura” (GORMAN, 2020). No

dia 31/12/2019, a China comunicou à Organização Mundial da Saúde (OMS) ter

identificado uma nova doença provocada por um novo vírus (Covid-19). No dia

11/01/2020, a China anunciou ao mundo a ocorrência do primeiro óbito causado por

esse vírus.

No dia 11/03/2020, a OMS declarou que estava em curso uma pandemia (uma

situação em que uma epidemia se estende a níveis mundiais, ou seja, se espalha,

simultaneamente, por diversas regiões do planeta) provocada pelo novo

coronavírus, definindo, assim, a existência de uma emergência humanitária global,

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

dada a alta contagiosidade e velocidade de disseminação desse vírus, bem como a

ocorrência de um número muito alto de síndrome respiratória aguda grave (SRAG)

e óbitos (taxa de mortalidade de 3,4%) provocados por essa doença infecciosa viral.

No Brasil, o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso de Covid-19 no

dia 26/02/2020, sendo a primeira morte confirmada em 17/03/2020 (BRASIL, 2020).

A partir daí, os números passaram a ser crescentes, tanto de contaminados quanto

de internações e óbitos.

Para o enfrentamento dessa pandemia, o Brasil conta com o seu Sistema Único

de Saúde (SUS), em todos os seus níveis de assistência, bem como, em muito menor

conta, com a rede privada de saúde; tendo sempre em mente que cerca 25% dos

brasileiros possuem planos privados de saúde, o que revela que cerca de 75% dos

brasileiros só têm o SUS para se socorrer. Todavia, considerando que muitos dos

pacientes não conseguirão atendimento/internação nas unidades privadas de saúde

a que têm direito, estes também chegarão ao SUS.

Sendo assim, importante compreender o estado da arte atual do SUS, os erros

e acertos do Ministério da Saúde na condução dessa pandemia, bem como uma

comparação com outros países no que se refere aos investimentos públicos (e não

gastos públicos) no setor.

O SUS é um patrimônio e a maior conquista social do povo brasileiro na

Constituição Federal de 1988, fruto de Movimentos Sociais ocorridos nas décadas

de 1970 e 1980, tendo uma natureza jurídica plural. Desse modo, ele é muito mais

que somente um sistema público de saúde. Ele é também um direito fundamental

de natureza social, um direito em construção; uma garantia constitucional do

cidadão e um dever constitucional do Estado; uma política pública obrigatória.

Sendo assim, ele se revela no rol das cláusulas pétreas constitucionais (SOARES,

2019). Além disso, o SUS é o maior programa de inclusão social do planeta.

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Por outro lado, desde a criação do SUS, o Banco Mundial vem,

periodicamente, elaborando relatórios sempre no sentido de estimular os governos

brasileiros a promover o seu desmonte progressivo por meio da adoção de políticas

públicas neoliberais que visam a privatização de todo o sistema (PEREIRA;

PRONKO, 2015).

Importante salientar que o SUS – um sistema público universal e integral de

saúde - está contido entre as finalidades da Ordem Econômica prevista no artigo

170 da nossa Carta Magna, já que ele se constitui em uma política pública (social e

econômica) posta a serviço do cidadão para contribuir para uma existência digna e

justiça social (CANOTILHO; MENDES; SARLET; STRECK, 2013). Nesse sentido, O

Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) não pode ser negligenciado ou

esquecido (GADELHA; TEMPORÃO, 2018).

1 ENTRE O SUS LEGAL E O SUS REAL

Desde a criação do Sistema Único de Saúde – SUS, em 1988, a sua construção

não tem sido fácil. E isto por inúmeras razões: algumas bem-identificadas, outras

percebidas intuitivamente, outras ainda não claramente conhecidas.

A Constituição Federal de 1988 – a nossa “Constituição Cidadã”, ao tratar do

direito à saúde no Brasil, positivou áreas de tensão, tanto do ponto de vista

ideológico quanto da sua efetividade. Isto porque, ao mesmo tempo em que

afirmava a saúde como um direito social universal, igual e integral para todos,

afirmava também que as ações e serviços de saúde deveriam ser executadas

diretamente ou através de terceiros e por pessoa física ou jurídica de direito privado

(artigos. 196 e 197 da CRFB/88). Mais do que isto, a Constituição afirmava que a

assistência à saúde seria livre à iniciativa privada (art. 199 da CRFB/88).

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Assim sendo, diante deste cenário repleto de ambiguidades, interesses

públicos e interesses privados começaram a se chocar, surgindo diversos atores

neste conflito, alguns internos e outros externos, de modo que o embate político se

tornou uma regra: um grupo pequeno defendendo os interesses privados e um

grupo grande defendendo os interesses públicos. Todavia, o grupo pequeno

numericamente sempre foi o grupo mais forte economicamente considerado. Além

disso, este grupo economicamente mais forte sempre se manteve mais presente no

Congresso Nacional, sempre mais próximo dos parlamentares, sugerindo propostas

legislativas que, em geral, como contrapartida, os beneficiariam, ao mesmo tempo

em que dificultariam a realização plena do SUS.

Neste contexto de luta desigual, a soberania popular, quase sempre, foi

desastrosamente negligenciada.

Com isso, o SUS sempre precisou sobreviver em meio a tempestades. Ele

sempre precisou sobreviver sob crises, sempre procurando vencer obstáculos,

sempre “respirando” com muita dificuldade.

A partir da Reforma Administrativa ocorrida em 1995 – reforma essa

inspirada no pensamento neoliberal defendido pelo Banco Mundial -, em que foi

ampliado o chamado “Terceiro Setor”, a crise da saúde pública brasileira começou

a se aprofundar cada vez mais, haja vista que o modelo neoliberal de saúde não se

encaixa no modelo social do SUS. Em verdade, são concepções antagônicas. O

Estado Social e Democrático de Direito não se ajusta a um Estado Neoliberal.

A saúde pública começou, então, a ser, paulatinamente, desmontada:

concursos públicos foram suspensos; iniciou-se uma verdadeira febre de contratos

temporários para o setor; leitos privados contratados pelo SUS foram sendo

suspensos; leitos públicos foram sendo progressivamente reduzidos; serviços de

emergência, antes abertos e de livre acesso à população, começaram a ser

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

reconceituados, passando a funcionar de forma referenciada, ou seja, de portas

semiabertas à população; deliberações dos Conselhos e Conferências de Saúde

deixaram de ser respeitados; as matrículas de pacientes nos hospitais públicos

passaram a sofrer restrições burocráticas; realização de exames complementares

começaram a ser restringidos; o orçamento público previsto para a saúde deixou de

ser efetivamente cumprido em muitos Estados e Municípios; o número de

profissionais necessários para as ações e serviços de saúde deixou de ser

considerado. Soma-se a isso o fato de que o orçamento público referente à saúde no

Brasil jamais chegou a alcançar a média do valor aplicado pelos países membros da

ONU (Organização das Nações Unidas), sendo inferior até mesmo com relação a

alguns países da América do Sul, como a Argentina, Uruguai, Chile e Equador.

A gestão pública do SUS passou a ser terceirizada para ONGs (Organizações

não Governamentais), OS (Organizações Sociais) e OSCIPs (Organizações da

Sociedade Civil de Interesse Público), afastando a responsabilidade da autoridade

pública sanitária quanto à gestão e execução das ações e serviços públicos de saúde,

gerando uma fragmentação da sua gestão e da sua execução, que passaram a ser

conduzidas sob uma lógica privada de gastos, e não mais sob uma lógica pública de

investimentos, dificultando, inclusive, o controle social do SUS.

Em 2011, foi criada a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) -

cuja lei federal que autorizou a sua criação pelo Poder Executivo encontra-se, hoje,

aguardando julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) quanto à sua

inconstitucionalidade, em razão de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI

4895) proposta pela Procuradoria Geral da República. Com isso, por contrato, houve

a transferência dos Hospitais Públicos Federais Universitários das Universidades

Públicas Federais para essa empresa (EBSERH), promovendo a perda do seu caráter

público de Hospitais-escola e assumindo um caráter de Hospitais assistenciais sob

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

um regime jurídico de direito privado. Assim, os hospitais universitários deixaram

de ser instituições sociais e passaram a ser organizações empresariais, negando os

princípios constitucionais do SUS, particularmente o da universalidade de acesso.

Em 2013, foi criado o Programa Mais Médicos, que trouxe para o país milhares

de médicos formados no exterior – na maioria médicos cubanos -, sem que a eles

fosse aplicada a prova do REVALIDA (Exame Nacional de Revalidação de

Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeiras),

de modo a avaliar a qualificação e capacitação técnica de todos eles, sendo lotados

não somente nos lugares mais distantes do país, mas também nas grandes cidades

e grandes centros urbanos, por critérios muitas vezes políticos, remunerados muito

acima do valor de remuneração pago pelo Ministério da Saúde e Secretarias

Estaduais e Municipais de Saúde para os seus profissionais médicos, sendo-lhes

concedido, ainda, um certificado de Pós-Graduação após três anos de atividade

aqui. Assim, por decisão do Governo Federal, sem a certeza da qualificação e

capacitação técnica desses médicos estrangeiros, o certificado de Pós-Graduação

estaria garantido.

Contudo, esse Programa não foi acompanhado de uma política pública efetiva

de transformação da realidade social daqueles lugares aonde esses médicos foram

atuar, de modo que toda uma infraestrutura de saúde necessária à boa prática da

medicina deixou de ser criada, ficando esses médicos de mãos atadas para resolver

muitos casos clínicos ou cirúrgicos que ali se deparavam. Naturalmente, em muitos

lugares aonde não existiam médicos, o Programa Mais Médicos trouxe alguns

avanços, pelo menos com relação às consultas médicas, que antes não existiam,

melhorando nesses locais alguns dos indicadores de saúde. Todavia, o nível de

assistência médica oferecida não passa do nível primário, negando a integralidade

do sistema.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Tudo isso, ao longo do tempo, foi provocando sérias distorções no Sistema

Público de Saúde, a tal ponto que hoje é possível reconhecer uma grave crise no

setor, cuja principal causa é de foro político, já que o caos atualmente estabelecido é

muito mais um projeto político para a privatização da saúde pública brasileira do

que a tão propagada crise de gestão. E isso se dá por meio de um crônico e

progressivo subfinanciamento do SUS e de mudanças legislativas (algumas, ao

nosso ver, inconstitucionais) no sentido do favorecimento ao seu desmonte.

Esse financiamento inadequado do SUS gera falta de medicamentos e de

insumos nos ambulatórios e hospitais públicos do país; gera desativação de leitos

hospitalares; fechamento de serviços – até serviços de oncologia; sucateamento do

seu parque tecnológico; dificuldades na realização de pesquisas; deterioração do

ensino nas áreas da saúde (medicina, enfermagem, odontologia, nutrição, farmácia,

fisioterapia, fonoaudiologia, biomedicina etc), já que o SUS é a sala de aulas práticas

dos seus estudantes; redução do quadro de pessoal; falta de kits de laboratório para

a realização de exames complementares; dificuldades com relação à compra e

manutenção de equipamentos hospitalares, aquisição e manutenção de

ambulâncias etc.

Enquanto isso, o Governo Federal gasta milhões de reais na compra de

máquinas para o controle biométrico da frequência dos seus servidores públicos da

saúde, como se este fosse o seu maior problema. Pois nem de longe é. Bom para

aqueles empresários que vendem essas máquinas para o governo, e bom para

aqueles empresários que cobram do governo pela manutenção dessas máquinas.

Péssimo para os cofres públicos.

Esta situação fez com que, entre 2010 e 2018, houvesse uma redução de 34.200

leitos de internação na rede pública de saúde, o que equivale a cerca de 12 leitos a

menos por dia – dados esses levantados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

em 2018. Como justificar isso se a população cresce dia após dia? No Distrito

Federal, por exemplo, foram desativados, nesse período, 20% dos leitos hospitalares

existentes na rede pública (CANCIAN, 2016).

Evidentemente, isso acaba por gerar Serviços de Emergência com corredores

superlotados de pacientes, nem sempre deitados sobre uma maca de hospital, mas

muitas vezes sentados em cadeiras (às vezes, cadeiras de praia) trazidas por

familiares, quando não estão, em alguns momentos, deitados no chão sobre um fino

colchonete ou um fino cobertor.

Assim, pacientes graves, necessitando de leitos de UTI (Unidade de Terapia

Intensiva), morrem sem ter a chance de receber uma assistência médica adequada

(entendendo-se essa assistência médica como uma assistência em saúde),

diagnósticos não são feitos precocemente, cirurgias são proteladas, a dor e o

sofrimento humano são prolongadas.

Em 2017, estudo feito pelo Conselho Federal de Medicina concluiu que havia

900.000 (novecentos mil) pacientes na fila do SUS, em todo o Brasil, à espera de uma

cirurgia, muitas delas para o tratamento cirúrgico de um câncer, quando o fator

tempo, nesse caso, é possibilidade de cura ou de morte. Agora, em razão dessa

pandemia pelo novo coronavírus, cirurgias eletivas foram suspensas, de modo que,

após essa pandemia, a fila de pacientes à espera de um tratamento cirúrgico estará

ainda maior.

Não há Sistema de Regulação de Leitos Hospitalares que resolva esse quadro,

porque não há como regular aquilo que não se tem: número suficiente de leitos

hospitalares para atendimento das demandas provocadas pelas doenças em curso.

Enquanto houver vida haverá doenças. Enquanto não houver leitos hospitalares

suficientes haverá sofrimento e mortes precoces e desnecessárias – um verdadeiro

crime de Estado contra o Povo brasileiro – um crime por desassistência em saúde.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nesse cenário de guerra, aumenta cada dia mais o número de ações judiciais

contra o SUS, lutando o cidadão pelo exercício do seu direito fundamental à saúde,

o que gera um gasto público, cada ano mais elevado, com esse fenômeno da

judicialização (FÁBIO, 2016).

Curiosamente, a maioria das demandas judiciais na área da saúde dizem

respeito não a pedidos de fornecimento de medicamentos de altíssimo custo ou fora

da lista de medicamentos do SUS, ou a pedidos de procedimentos/tratamentos para

serem realizados no exterior, mas sim com relação àquilo que o SUS tem o dever

constitucional de prestar, como pedido de medicamentos/insumos para tratamento

e controle da hipertensão arterial sistêmica, diabete melito, doença pulmonar

obstrutiva crônica, cirrose hepática, alergia alimentar, doenças autoimunes, cáncer,

insuficiência renal crônica etc.; além de leitos hospitalares de enfermaria, UTI de

adulto, pediátrico ou neonatal; próteses e órteses; exames complementares de alta

complexidade como, por exemplo, cineangiocoronariografia (cateterismo cardíaco)

etc.

Com certeza, a judicialização da saúde não seria um problema tão grande se

as políticas públicas e o orçamento público para o setor fossem melhor elaborados,

equacionados, fiscalizados e executados. Com certeza, uma fiscalização mais firme

evitaria muitos desvios de verbas públicas causados pela corrupção: uma corrupção

sempre público-privada.

Tudo isso tende a se agravar ainda mais em razão da aprovação pelo

Congresso Nacional da PEC 241 (Proposta de Emenda Constitucional 241), depois

transformada na Emenda Constitucional n. 95/2016, que congelou os gastos

públicos por um período de 20 anos. Com isso, os investimentos públicos, de um

ano para outro, não terão aumento real, passando tão-somente a incorporar a

inflação do ano anterior (PADILHA, 2016).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Isso está trazendo grave repercussão negativa para a saúde pública brasileira,

já que vem impactando negativamente o financiamento e a garantia constitucional

do direito à saúde, gerando prejuízos irreparáveis às ações e serviços públicos de

saúde, como vem acontecendo, inclusive com relação ao Programa de Farmácia

Popular, repercutindo em sofrimento e morte por desassistência, particularmente

da população mais pobre deste nosso país. Isso porque a população brasileira não

para de crescer ano após ano.

Ao longo do tempo, vêm sendo criados, particularmente por meio de

Instruções Normativas ou por decisão pessoal do diretor de alguma unidade de

saúde do SUS, seja ambulatorial ou hospitalar, inúmeros obstáculos para o livre

acesso da população ao Sistema, fazendo com que o SUS perca a sua identidade de

um Sistema Público de Saúde de caráter universal, passando a funcionar como um

sistema burocrático indiferente aos princípios constitucionais do SUS.

Assim, os pacientes encontram dificuldades para marcar consultas, realizar

exames, internar, obter remédios para a sua doença, conseguir informações,

conseguir realizar uma cirurgia, conseguir vaga em uma UTI etc.

Mesmo aqueles pacientes que já estão internados não estão salvos dessa

precariedade. Isso porque tornou-se comum a falta de medicamentos, materiais e

insumos básicos nos hospitais públicos, tais como gazes, esparadrapo, equipo de

soro, fios de sutura, compressas cirúrgicas, antibióticos, analgésicos,

imunossupressores, quimioterápicos, anticoagulantes, anestésicos, anti-

hipertensivos, hipoglicemiantes orais, luvas, trombolíticos, sedativos, vitaminas etc.

Pacientes diagnosticados com câncer não conseguem leito para internação;

quando conseguem o leito, a cirurgia é postergada por falta até mesmo de roupas

no centro cirúrgico; quando consegue ser operado, há um atraso no início da

quimioterapia por falta do medicamento, ou do início da radioterapia por falta de

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

um lugar aonde possa fazer; quando começa a quimioterapia, muitas vezes o

protocolo tem que ser interrompido porque o quimioterápico está em falta; quando

se encontra em estágio terminal da sua doença, não consegue uma assistência de

cuidados paliativos. E assim vai sendo cumprida uma triste e dolorosa sina por

esses pacientes, como se houvesse na nossa Carta Magna um dispositivo

estabelecendo o dever constitucional ao sofrimento humano.

Em reportagem veiculada no canal de televisão BANDNEWS, no dia 29 de

dezembro de 2017, às 19h, foi mostrado que no Distrito Federal – ou seja, na capital

do país – os pacientes diagnosticados com câncer chegam a ficar até um ano à espera

do início da quimioterapia e/ou da radioterapia, levando a que esses pacientes

comecem os seus tratamentos já numa fase avançada da doença, já com metástases

à distância, sem mais qualquer possibilidade de sucesso terapêutico no que diz

respeito à cura de sua doença.

Assim, muitos pacientes vêm a falecer por não encontrarem no SUS a

responsabilidade pública necessária a um Sistema que, por reconhecimento

constitucional, é de relevância pública. Não por um problema relacionado ao

sistema em si, mas sim pela forma como o sistema vem sendo negligenciado e

distorcido pelo próprio Poder Público.

O mesmo acontece com relação aos pacientes que precisam de uma cirurgia

ortopédica para colocação de prótese. Chegam a ficar anos na fila de espera. Muitos

morrem sem conseguir realizar a cirurgia. Mas também com relação a outros

milhares de pacientes portadores das mais diversas patologias, clínicas ou

cirúrgicas, de todas as especialidades, que encontram o SUS com suas “portas

fechadas” ou, quando abertas, sem a infraestrutura adequada e/ou sem os

medicamentos, insumos e equipamentos disponíveis para atender às suas

necessidades naquele momento.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

E falta também recursos humanos. Os serviços de emergência, por exemplo,

estão funcionando abarrotados de pacientes, porém com equipes de saúde

(médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, técnicos de

radiologia etc) em número extremamente reduzido, muitas vezes sem equipes

completas, por fata de médicos neurocirurgiões, ortopedistas, cirurgiões vasculares,

pediatras, clínicos gerais etc. Não é raro que em certas unidades de saúde –

unidades de pronto atendimento – esteja de plantão somente um único profissional

médico para atender toda a demanda que chega e rever aqueles pacientes que ali já

se encontravam desde o plantão anterior – um trabalho exaustivo, estressante e não

valorizado.

No dia 18 de janeiro de 2018, o jornal O GLOBO trouxe uma reportagem na

sua primeira página, com o seguinte título: “País reduziu em 33% verba para

prevenir epidemias”. Naturalmente, que isso tem reflexos negativos na Saúde

Pública, particularmente em um momento em que o país vem sofrendo, já há muitos

anos, com surtos epidêmicos de inúmeras doenças transmitidas por insetos, tais

como febre amarela, dengue e outras arboviroses. Mais do que isso, vacinas, as mais

diversas, começaram a faltar nas Unidades Básicas de Saúde. Por isso, em março de

2019, a Organização Mundial de Saúde declarou que o Brasil perdeu o status de país

livre do sarampo, já que houve a notificação de um caso novo na Amazônia. É

sempre a população mais pobre quem mais sofre com essas políticas inconsequentes

e irresponsáveis impostas ao SUS. E isso acaba por refletir, também, na atual

pandemia pelo novo coronavírus.

Nesse ambiente de tensão surgem ameaças, gritos, agressões físicas. Os

profissionais de saúde são a face para levar o tapa, enquanto os gestores públicos e

privados dormem tranquilamente e transferem suas culpas (ou seriam dolos) para

aqueles servidores públicos que estão no front dos acontecimentos e que são tão

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

vítimas quanto os pacientes. E essas agressões, algumas vezes, são instigadas pelo

próprio Poder Público através de um dos seus agentes com posto de autoridade. E

isso ocorre em todas as esferas administrativas: federal, distrital, estaduais e

municipais; e em todos os níveis de assistência em saúde.

Pacientes atendidos nas Unidades Básicas de Saúde, cuja pesquisa de sangue

oculto nas fezes é positiva e que, portanto, precisam realizar um exame de

colonoscopia para esclarecimento diagnóstico, podem levar vários mais meses para

que o exame seja realizado. Se a causa for um tumor maligno (um câncer), a doença

já será diagnosticada em fase bastante avançada, tendo-se perdido a chance de

diagnóstico precoce e cura.

Segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde, no dia 1º de dezembro

de 2017 – Dia Mundial da Luta contra a AIDS -, a quantidade de pessoas infectadas

pelo HIV (vírus da imunodeficiência adquirida, causador da Síndrome de

Imunodeficiência Adquirida – SIDA/AIDS) voltou a crescer no Brasil, em todas as

faixas etárias, tanto em homens quanto em mulheres. (CREMERJ, 2017, p. 8). O

mesmo é possível afirmar com relação a outras doenças infecciosas, tais como, por

exemplo, tuberculose e sífilis.

Muitas vezes, pacientes dão entrada no serviço de emergência apresentando

quadro de hemorragia digestiva alta, necessitando realizar uma endoscopia

digestiva alta de emergência, tanto para diagnóstico quanto para terapêutica, mas o

exame não é realizado porque o aparelho de endoscopia encontra-se “com defeito”

(“quebrado”) já há vários dias ou semanas, ou, simplesmente, não há esse aparelho

naquela unidade de saúde.

Do mesmo modo, pacientes vítimas de acidente vascular cerebral, que

necessitam, urgentemente, de uma tomografia computadorizada de crânio, não

fazem o exame porque não existe esse aparelho na unidade de saúde aonde eles

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

estão sendo atendidos ou o aparelho encontra-se com defeito – às vezes, há vários

meses -, aguardando conserto.

Ou seja, o cenário à nossa frente é de precarização da assistência em saúde em

todos os níveis do SUS, inclusive nos antigos Hospitais Universitários – que hoje

foram transformados em filiais da EBSERH, excluídos do controle social do SUS.

Nesse sentido, estudo realizado pela própria Câmara Federal concluiu que o

SUS perderá, nos próximos 20 anos, R$ 654.000.000.000,00 (seiscentos e cinquenta e

quatro bilhões de reais). Soma-se a isso o fato de o Governo ter aprovado o aumento

da Desvinculação das Receitas da União (DRU) de 20 para 30%, estendendo essa

medida até 2023, e permitindo que Estados e Municípios façam o mesmo

(ANANIAS, 2016).

O que se observou nos últimos anos, como regra geral, foi que a DRU se deu

com maior peso no orçamento da Seguridade Social, aí incluída a saúde, de modo

que até 80% dos 20% autorizados para desvinculação foi retirado deste setor

(BATISTA; SILVA, 2018).

É possível reconhecer os sinais objetivos de desmonte do SUS, por exemplo,

através da observação de políticas públicas que deixam de contemplar o SUS com a

realização de concursos públicos regulares, de modo a garantir uma política de

recursos humanos dentro dos parâmetros prescritos pela Constituição Federal de

1988. Esta política equivocada de recursos humanos costuma ser justificada pelos

governos por duas razões principais: quantitativo excessivo de servidores públicos

e o não reconhecimento da carreira dos servidores públicos da saúde (do SUS) como

carreira típica de Estado.

Com relação à alegação de que o Brasil conta com um número excessivo de

funcionários públicos, isto não é verdade. Segundo dados da Organização para a

Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 2015, de cada 100

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

trabalhadores brasileiros, 11,4% são funcionários públicos, sendo essa a média

aproximada observada nos demais países da América Latina. Por outro lado, nos

países desenvolvidos este percentual costuma ser quase o dobro, com média de

19,3% de funcionários públicos a cada 100 trabalhadores. A média observada entre

os países da OCDE está em 21%. Em países que adotam o tipo universal de sistema

de saúde, tais como a Dinamarca, Suécia, França e Reino Unido, esses índices

correspondem, respectivamente, a 32,2%, 25,8%, 17,9% e 21,5% (OCDE, 2015).

Com relação ao não reconhecimento de uma carreira pública de Estado para

todos os profissionais da saúde, este reconhecimento tem fundamento

constitucional, quando a Constituição Federal estabelece que as ações e serviços

públicos de saúde são considerados de relevância pública; logo, necessários,

obrigatórios, irrenunciáveis pelo Poder Público e regidos pelo regime jurídico

administrativo de direito público. Desse modo, não cabe manter um sistema

composto por profissionais da saúde do Município, Estado, Distrito Federal e da

União. Cabe corrigir isso, tornando todos profissionais da saúde do SUS.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), através da Resolução CFM nº

2.271/2020, estabelece uma relação médico:paciente em relação a leitos de terapia

intensiva de 1:10, o que, ao nosso ver, parece mais uma relação baseada mais em

critérios econômicos do que em critérios técnicos da realidade de um plantão

médico em uma unidade de terapia intensiva (UTI), mais criticamente verificável

em momentos como este, em que uma quantidade muito grande de pacientes

gravemente enfermos, necessitando de assistência ventilatória por respirador

mecânico, ocupam os leitos de UTI.

Segundo o CFM, em 2018, o Brasil contava com 21,8 médicos para cada 10.000

habitantes, espalhados pelo Brasil de forma muito desigual. Enquanto a região

sudeste conta com 26 médicos para cada 10.000 habitantes, a região nordeste conta

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

com uma relação de 10:10.000 habitantes. Com relação ao Estado do Amazonas,

93,1% dos médicos estão localizados na capital Manaus. Com relação ao Estado de

Sergipe, 91,8% dos médicos trabalham na capital Aracaju. Isso fere o Princípio

Constitucional da Equidade no SUS. A média dos países europeus é de 33,3:10.000

habitantes (DEMOGRAFIA MÉDICA NO BRASIL, 2018).

O financiamento público insuficiente para atender todas as demandas do

Sistema Único de Saúde pode ser reconhecido quando observamos o histórico do

orçamento público brasileiro no que diz respeito aos gastos públicos com saúde,

bem como quando comparamos esses gastos com outros países que também adotam

o sistema público universal de saúde. Enquanto entre todos os países que compõem

a ONU a média de gastos públicos com saúde é de 11,7% do PIB (Produto Interno

Bruto), em 2018, o Brasil, que dispõe de uma saúde pública de caráter universal,

destinou apenas 4,09% do orçamento do governo federal para a saúde. Nas

Américas, a média é de 13,6%; na Europa, esse índice está em 13,2%. Na Suíça, essa

proporção é de 22%. Comparativamente, o Canadá gasta 10,4% do seu PIB e o Reino

Unido gasta 9,9%, mesmo índice da média de gastos dos países africanos no

financiamento da saúde. Segundo dados da OMS (Organização Mundial de Saúde)

publicados pelo Conselho Federal de Medicina, em 2015, apenas 42,8% do gasto

total em saúde no Brasil teve a participação direta do Estado (União, Estados,

Distrito Federal e Municípios), enquanto que no Reino Unido e Canadá – países com

sistema universal de saúde – as despesas públicas representam, respectivamente,

80,4% e 73,5% do orçamento total destinado à saúde (CFM, jul. 2018).

Apesar de diferenças metodológicas, segundo os cálculos mais recentes da

OMS (Organização Mundial de Saúde), com base no orçamento de 2015, o gasto

público em saúde no Brasil alcançava US$ 334 (trezentos e trinta e quatro dólares)

por pessoa. No Reino Unido, comumente citado pelos gestores brasileiros como

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

exemplo de sistema universal a ser seguido, o investimento público per capta em

saúde foi dez vezes o valor aplicado por aqui: US$ 3.500 (três mil e quinhentos

dólares). Em outros países de sistema universal de saúde, a regra é a mesma: França

(US$ 3.178); Canadá (US$ 3.315); Espanha (US$ 1.672); e até Argentina (US$ 713)

aplicam mais que o Brasil. Desse modo, é possível reconhecer que esse valor gasto

pelo Brasil, por pessoa, no SUS, tem sido insuficiente para responder às demandas

crescentes da população, impulsionadas por mudanças nos seus perfis

socioeconômico e epidemiológico (CFM, 2018, p. 6).

Enquanto a média mundial de leitos hospitalares é de 32 leitos/10.000

habitantes, o Brasil conta com 19,5 leitos/10.000 habitantes (CNS, FBH, 2019). Cuba

tem 35 leitos/10.000 habitantes; Argentina tem 47 leitos/10.000 habitantes. França

tem 64 leitos/10.000 habitantes.

Em pesquisa realizada no CNES (Cadastro Nacional de Estabelecimentos de

Saúde), do portal Datasus, dos 5.570 municípios brasileiros, somente 521 destes

municípios contam com leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Desse modo,

5.049 municípios têm que transferir para aqueles 521 municípios todos os seus

pacientes que venham a precisar de um leito de UTI, revelando a ausência de

equidade no sistema público de saúde brasileiro.

O Brasil possui 122 municípios fronteiriços. Destes, 25% deles não dispõem de

nenhum leito hospitalar público.

Enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza uma relação de

4 leitos de UTI/10.000 habitantes, o Brasil conta com 2 leitos de UTI/10.000

habitantes, sendo que o SUS possui 44% desses leitos de UTI, apesar de 75% da

população brasileira contar somente com o SUS para a sua assistência em saúde

(AMIB, 2016).

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Segundo o Ministério da Saúde, com relação ao número total de respiradores

mecânicos existentes no país (65.411 aparelhos públicos e privados) – equipamentos

essenciais para garantir a sobrevivência de pacientes com quadros graves de covid-

19 -, 47% deles estão localizados nas capitais brasileiras.

Para o estabelecimento de uma boa política pública de saúde visando o

enfrentamento de uma pandemia de tamanha magnitude, dados estatísticos,

atualizados dia após dia, são fundamentais para uma correta análise

epidemiológica da doença. Todavia, o Brasil continua a ser um dos países que

menos realiza testes para covid-19, inclusive no ambiente hospitalar, além de

demorar em divulgar os resultados dos exames, o que gera um número

absurdamente elevado de subnotificações, dificultando os estudos que possam

embasar a flexibilização social segura e o retorno seguro às atividades econômicas.

Isso faz com que o país caminhe no desconhecido, colocando a população em risco

de uma interminável primeira onda do coronavírus.

Desde o início da doença aqui no Brasil, já tivemos três Ministros da Saúde,

sendo que o atual é um general do exército, paraquedista, sem conhecimento do

SUS, atuando no comando da pasta como interino, o que faz do Brasil um dos

poucos países do planeta sem um programa claro de governo para o enfrentamento

de tão grave problema de saúde pública global. Além disso, não há nem mesmo a

produção de uma diretriz atualizada de diagnóstico e tratamento da infecção pelo

covid-19, com base cientificamente comprovada. Não há nenhuma proposta

ministerial e governamental para o fortalecimento do SUS no pós-pandemia.

Simplesmente, o governo federal se afastou de suas responsabilidades com a saúde

pública, negando a gravidade da situação em que todo o mundo está vivendo,

estimulando, de forma habitual, a que a população não cumpra o distanciamento

social e nem use máscara de proteção, necessários ao achatamento das curvas de

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

infectados e óbitos pela doença, já que não dispomos, ainda, de uma vacina contra

essa doença. Há, desse modo, uma irresponsabilidade pública deste atual governo

com a preservação das vidas do povo brasileiro.

Pesquisa realizada recentemente pelo Núcleo de Estudos da Burocracia, da

Fundação Getúlio Vargas, revelou que 54% dos médicos, 58% dos enfermeiros e

89% dos agentes de saúde e combate às endemias não receberam qualquer

treinamento para lidar com essa pandemia. Esse mesmo estudo também revelou

que 37% dos médicos, 47% dos enfermeiros e 80% dos agentes de saúde e combate

às endemias não receberam EPI (equipamento de proteção individual), o que, com

certeza, é um dos fatores que contribui para que, hoje, o Brasil seja o país com o

maior número de profissionais da saúde do mundo já infectados pelo novo

coronavírus, e também de óbitos desses profissionais.

Atualmente, existem 770 leitos vazios nos hospitais federais do Rio de Janeiro,

por carência de profissionais da saúde, exatamente pela falta de realização de

concursos públicos pelo Ministério da Saúde – uma clara violação dos Princípios

Constitucionais Administrativos da Eficiência, Legalidade e Continuidade dos

Serviços Públicos -, conforme revelou um censo hospitalar acompanhado pelo

Ministério Público Federal.

Levando-se em conta que cerca de 20% de todos os pacientes infectados pelo

covid-19 irão evoluir com formas graves da doença e que até 8% dos pacientes

precisarão de assistência ventilatória em leitos de UTI, diante dessa pandemia, o

SUS se apresenta como um sistema sempre próximo ao colapso.

Em razão disso, os Conselhos Regionais de Medicina do Rio de Janeiro,

Pernambuco e Distrito Federal, bem como a Secretaria Municipal de Saúde de São

Paulo, elaboraram critérios para priorizar leitos de UTI, levando em conta a

presença de comorbidades, a capacidade funcional antes da doença e a disfunção

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orgânica atual, estabelecendo-se, assim, portanto, uma espécie de hierarquização da

vida, o que, ao nosso ver, contraria a essência humanista da nossa Constituição

Cidadã, além de contrariar, também, a Declaração Universal Sobre Bioética e

Direitos Humanos, o Princípio da Integralidade do SUS e o Princípio Constitucional

da Dignidade da Pessoa Humana.

Portanto, temos um SUS legal: aquele previsto na Constituição Federal de

1988, na Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90) e na Lei nº 8.142/90). E temos o SUS

real: aquele concretizado no mundo da vida, muitas vezes ferindo a sua própria

legalidade.

Não é difícil compreender as razões de termos chegado a essa situação de

verdadeiro caos na saúde pública brasileira.

Não se trata de incompetências governamentais, mas sim de um projeto

neoliberal em curso, que, ao longo dos anos, desde a promulgação da Constituição

Federal de 1988, vem, através de inúmeras emendas constitucionais e de

interpretações, mais políticas do que jurídicas, das normas constitucionais feitas

pelos Ministros do STF, que, muitas vezes, parece ter mais compromissos com o

governo – qualquer governo – do que com o Texto Constitucional, modificando o

núcleo denso ideológico da nossa Constituição, transformando o Brasil, antes um

Estado Democrático e Social de Direito, em um Estado Neoliberal. Desse modo, o

STF está escrevendo uma nova Constituição, sem ter legitimidade para isto. E isso

não tem contribuído para a saúde do povo brasileiro.

Soma-se a tudo isso condições sociais precárias em que se encontram,

atualmente, milhões de brasileiros. Segundo dados da Pesquisa Nacional por

Amostras de Domicílios Contínua 2019 (PNAD CONTÍNUA, 2019), a renda

domiciliar per capta nominal mensal é de R$ 1.439, 00. No final de 2016, o Brasil

voltou a ocupar lugar no Mapa da Fome da ONU, sendo que a proporção de pessoas

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pobres no Brasil aumentou de 25,7% da população em 2016 para 26,5% da

população em 2017, significando que mais de 50 milhões de brasileiros vivem com

menos de R$ 406,00/mês. Além disso, em 2019, o rendimento mensal real do

trabalho do 1% da população com os rendimentos mais elevados era 33,7 vezes o

rendimento dos 50% da população com os menores rendimentos. Em 2017, 35,9%

da população tinha restrição de acesso ao serviço de esgotamento sanitário por rede

coletora ou pluvial. (SÍNTESE DE INDICADORES SOCIAIS, 2018).

2 O COMPLEXO ECONÔMICO-INDUSTRIAL DA SAÚDE

A saúde pode ser compreendida sob três dimensões: 1- a saúde como um

direito; 2- a saúde como um bem econômico; 3 – a saúde como um espaço de

acumulação de capital.

Como um direito, a saúde faz parte de um sistema de proteção social, em um

ambiente de desmercantilização do acesso. Com um bem econômico, há a

mercantilização da oferta, formação de empresas médicas e intermediação

financeira (planos), além do assalariamento dos profissionais. Como espaço de

acumulação de capital, a saúde se insere no fenômeno da globalização e

financeirização da riqueza, ambiente em que surge a ideia da necessidade de

formação do chamado complexo industrial da saúde (VIANA; ELIAS, 2007, p.1766).

Desse modo, a saúde é um dos elementos a ser considerado nas propostas de

desenvolvimento nacional, não só porque o SUS é capaz de ajudar na promoção da

diminuição das desigualdades sociais, mas também porque ele se revela como um

motor de transformação social na direção da construção de um Estado do Bem-estar

Social (GADELHA; TEMPORÃO, 2018).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A saúde pode ter um importante papel estratégico na geração de inovação e,

por consequência, fortalecer o país no que diz respeito à sociedade do

conhecimento, ao capacitá-lo para a competitividade em um ambiente globalizado,

além de possibilitar a minimização da vulnerabilidade da política de saúde

brasileira (GADELHA; COSTA; MALDONADO, 2012).

Além disso, para a ampliação e sustentação econômica do SUS, é fundamental

a formação, em nível nacional, de uma base produtiva que atenda às demandas

sociais da população na área da saúde. Nesse sentido, a balança comercial da

indústria brasileira, mostrando-se frágil e dependente, sem competitividade

internacional expressiva, contribui para a vulnerabilidade da política social, com

alto grau de impacto sanitário e orçamentário para o SUS.

É sob essa percepção socioeconômica e sociopolítica que nasceu a proposta de

criação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), uma política pública

que pode, certamente, contribuir para uma melhora do Produto Interno Bruto (PIB)

nacional.

O CEIS, morfologicamente, é constituído por três grupos: 1- Indústrias de Base

Química e Biotecnológica; 2- Indústrias de Base Mecânica, Eletrônica e de Materiais;

3- Setores Prestadores de Serviços.

Assim, o CEIS “é constituído por um conjunto interligado de produção de

bens e serviços em saúde, um conjunto selecionado de atividades produtivas que

mantêm relações intersetoriais de compra e venda de bens e serviços e que se move

no contexto da dinâmica capitalista” (GADELHA; QUENTAL; FIALHO, 2003. p.

48).

O setor industrial referente a indústrias de base química e de biotecnologia é

responsável pela produção de fármacos e medicamentos, vacinas, hemoderivados

e reagentes para diagnóstico. O setor industrial referente às indústrias de base

33
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mecânica, eletrônica e de materiais é responsável pela produção de equipamentos

mecânicos, equipamentos eletroeletrônicos, próteses e órteses, e materiais de

consumo. Quanto aos setores prestadores de serviços, estes abrangem hospitais,

ambulatórios e serviços de diagnóstico e tratamento.

Desse modo, “a perspectiva política do CEIS requer um padrão sistêmico de

intervenção do Estado. Além disso, o seu marco teórico destaca o uso do poder de

compra do Estado como fator estruturante para superar as condições de

dependência e de atraso na produção e na inovação em saúde” (GADELHA;

TEMPORÃO, p. 1896).

O instrumento, em 2008, concebido para esse fim foi o das “Parcerias para o

Desenvolvimento Produtivo (PDP).

Infelizmente, o CEIS não vem sendo compreendido e valorizado o suficiente

pelos últimos governos, o que implica em poucos incentivos e investimentos nessa

área, o que mantém a nossa dependência externa para muitos insumos, materiais e

equipamentos para o setor de saúde, sendo isso comprovado agora durante a

pandemia pelo novo coronavírus, particularmente no que diz respeito ao acesso a

respiradores mecânicos e equipamentos de proteção individual (EPI).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia pelo Covid-19 vem revelando as imensas desigualdades sociais

existentes no nosso país, particularmente no que se refere à assistência em saúde,

mostrando um SUS muito aquém de garantir a universalidade, a integralidade e a

equidade à toda a população brasileira, muito em razão do seu crônico

subfinanciamento e dos ataques frequentes que vem sofrendo desde a sua criação,

muitos deles provenientes dos próprios governos, mas também de órgãos da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

imprensa e do Banco Mundial. Tudo isso acaba por fragilizar todo o sistema, a tal

ponto de colocar em risco até mesmo os profissionais da saúde que estão no front

dessa guerra contra o coronavírus.

A Pesquisa aponta caminhos para o fortalecimento do SUS, chamando a

atenção para a necessidade urgente de fortalecimento também do Complexo

Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) e da adoção de uma política pública de

recursos humanos exclusiva do SUS, envolvendo todos os profissionais da saúde

que atuam no sistema, inclusive aqueles das Universidades Públicas com atuação

na área da saúde.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A VULNERABILIDADE DOS ESTADOS LATINO AMERICANOS:

A GARANTIA DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS

HUMANOS FUNDAMENTAIS FRENTE AO NOVO

CORONAVÍRUS

Rinara Coimbra de Morais4


Lays Serpa S. O. Silva5

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo abordar a crescente vulnerabilidade dos países
latino-americanos frente à crise global de saúde pública, causada pelo novo coronavírus,
haja vista que nesse contexto, abre-se espaço para graves violações aos direitos
fundamentais, sendo que a pesquisa coloca em foco a discussão das lesões aos direitos de
segunda dimensão. Em razão disso, pretende-se realizar uma análise do cenário enfrentado
pela América Latina, com a intenção de apontar possíveis soluções dentro do ordenamento
jurídico internacional para população mais afetada, apontando medidas, como o empenho
da cooperação internacional, que visem assegurar os direitos fundamentais dos indivíduos
vulneráveis. Para tanto, o presente estudo será desenvolvido a partir da metodologia
indutiva, por meio de uma abordagem qualitativa de bibliografias e revisões documentais,
tendo como premissa que os direitos fundamentais como normas obrigatórias difundidas
em âmbito internacional são resultado de uma evolução histórica, tratando-se do núcleo
duro da proteção da dignidade da pessoa humana, que deve ser assegurada por meio de
direitos sociais e individuais.

Palavras Chave: Vulnerabilidade; Direitos Humanos; Direito Internacional; Desigualdade;


Coronavírus.

ABSTRACT
The present paper aims to analyze the growing vulnerability of Latin American countries
in the face of the global public health crisis, caused by the new coronavirus, given that in
this context, there is room for serious violations of fundamental rights, and the research

4
Mestranda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), integrante do Grupo de Pesquisa de Direito
Internacional da UFRJ. E-mail: rinaracoimbra@ufrj.br. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2506831914115923
5
Graduanda pela Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), integrante do Grupo de Pesquisa de Direito
Internacional da UFRJ, integrante do Laboratório de Estudos e Pesquisas Avançadas em Direito Internacional
e Ambiental e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail:
laysserpa97@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7742598562229628

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

places focus on the discussion of the rules on second dimension rights. As a result, it is
intended to conduct an analysis of the scenario faced by Latin America, with the intention
of pointing out possible solutions within the international legal system for the most affected
population, measures, such as the intended commitment of international cooperation,
aimed at protecting fundamental rights of the vulnerable individuals. To this end, the
present study will be developed from the inductive methodology, through a qualitative
approach of bibliographies and documentary reviews, based on the assumption that
fundamental rights as mandatory norms disseminated at the international level are the
result of a historical evolution, dealing with the axis of protection of the dignity of the
human person, which must be ensured through social and individual rights.

Key words: vulnerability; Human Rights; international law; inequality; Coronavirus.

1 INTRODUÇÃO

Para alguns grupos – sobretudo norte americanos e europeus – pensar na

América Latina pode significar uma rápida associação às praias esplendidas,

futebol, floresta amazônica e quiçá economias em desenvolvimento. Não obstante a

veracidade existente nas ditas correlações, a América Latina também significa

favela, pobreza, desigualdade. Em outras palavras, o território latino americano

pode ser traduzido em aspectos de vulnerabilidade. A precária situação, entretanto,

é usualmente incompreendida:

(...) como de costume, sempre que se trata das repúblicas


latinoamericanas, os doutores e publicistas da política mundial se
limitam a lavrar sentenças – invariáveis e condenatórias. A ouvi-los,
não há salvação possível para tais nacionalidades. É, esta, uma
opinião profundamente, absolutamente arraigada no ânimo dos
governos, sociólogos e economistas europeus. (BONFIM, 2008, p. 4).

A partir dessa perspectiva, o povo latino americano, cercado pela extrema

pobreza e por situações deploráveis, torna-se cada vez mais marginalizado, o que,

por óbvio, agrava a supradita vulnerabilidade.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Explicar esta condição não é tarefa fácil, posto que não há definição unívoca

para tanto, conforme observa Vignolli (2006, p. 99-100):

Além destas definições ou usos disciplinares, a noção de


vulnerabilidade foi utilizada extensamente para referir-se a grupos
vulneráveis, o que tem uma longa trajetória na análise e nas
políticas sociais e é usado em vários sentidos: a) grupos que se
encontram em “risco social”, isto é, compostos por indivíduos que,
devido a fatores do seu ambiente doméstico ou comunitário, são
mais propensos a experimentar danos ou problemas sociais; b)
segmentos da população que, por atuarem segundo um padrão de
conduta comum, têm maior probabilidade de experimentar algum
evento prejudicial; c) coletivos que compartilham de algum atributo
básico em comum (idade, sexo, condição étnica ou localização
territorial), suposto gerador de problemas similares. (VIGNOLLI,
2006, p. 99-100).

Para este estudo, será considera a definição de Abramovay et al. (2002), que

compreendem a vulnerabilidade a partir de sua relação com o contexto

socioeconômico, tratando-se da probabilidade de acesso a bens, serviços e

atividades que tangem o bem-estar, já que permitem o uso de recursos “para a

mobilidade e integração social através dos canais existentes” (KAZTMAN, 2000, p.

299). Ainda neste sentido, Carmo e Guizardi (2018, p. 2) complementam que a

vulnerabilidade “denota a multideterminação de sua gênese não estritamente

condicionada à ausência ou precariedade no acesso à renda, mas atrelada também

às fragilidades de vínculos afetivo-relacionais e desigualdade de acesso a bens e

serviços públicos.”.

À vista disso, a América Latina, região própria de países subdesenvolvidos,

detêm condições de vulnerabilidade há muito conhecidas. Exemplo da

fragmentação social latino americana pode ser observada na a qualidade de

sistemas de saúde, no acesso à água potável e segura, no abandono das áreas rurais,

40
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

nas condições de trabalho, na superlotação de favelas e nos níveis educacionais,

fatores que contribuem para a exposição populacional às situações de

vulnerabilidade.

Dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL)

indicam que ao desde 2015 mais de 30% da população latino-americana encontram-

se em situação de pobreza, enquanto 10,7% dos indivíduos presenciam a extrema

pobreza, o que aponta nítidas desigualdades econômicas entre indivíduos de uma

mesma nação, à vista da relação de poder que se imprime no dado liame. Nessa

esteira, a pobreza pode ser caracterizada em razão de “salários mais baixos, piores

condições de trabalho e menor acesso à proteção”, o que por conseguinte gera

“restrições de setores importantes para a população se integrar em redes de

segurança” (CEPAL, 2012).

Sobre essa matéria:

Desigualdades sociais e territoriais são faces da mesma moeda e se


mesclam no espaço, se sintetizam e se expressam como
desigualdades sócio-espaciais, retroalimentando-se. E na medida
em que as condições de infraestrutura e de vida são melhoradas
nesses lugares, a valorização expulsa os mais pobres para locais
ainda com piores condições. É a lógica da produção injusta do
espaço (FERREIRA, VASCONCELOS E PENNA, 2008)

Nesse sentido, a vulnerabilidade se torna um ciclo vicioso, posto que o acesso

negado aos recursos básicos – educação, saneamento básico, tratamento de saúde

adequado, etc – causa um atraso não apenas na capacidade de formação e

desenvolvimento do indivíduo, ao passo em que contribuem para a precária e

eventual integração destes em oportunidades na sociedade, como também

fomentam a segregação espacial.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A experiência de viver tais processos de exclusão projeta-se nas


representações dos sujeitos, de forma que as concepções de respeito
e desrespeito são condicionadas pela maneira como elas os afetam.
Para quem vive imerso em situações de vulnerabilidade ou
precarização, a imagem da cidade emerge a uma ‘distância
próxima’ – proximidade geográfica e distância social – e suas
relações com o conjunto de mecanismos institucionais da vida
urbana têm sempre um fundo de desconfiança, descrédito e
desapego. (LOPES, 2008).

Acerca da vulnerabilidade na América Latina, no tocante ao contingente

populacional à margem, todos os países da região sofrem com esse fator. Podendo

este ser identificado em diferentes intensidade e contextos conforme cada

particularidade regional ou local.

Assim, a ininterrupta vulnerabilidade enfrentada por uma parcela considerável

da população latino-americana preceitua violações às garantias fundamentais,

direitos sociais intrínsecos aos indivíduos, chamados positivos, dentre eles o acesso

à educação e saúde de qualidade, à alimentação, ao saneamento básico, dentre

outros. À vista disso, é necessário abandonar o paradigma nocivo à população,

rumo à uma sociedade justa e igualitária, em que os direitos fundamentais sejam

efetivamente assegurados.

2 A GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

O tema dos Direitos Humanos Fundamentais atravessou inúmeras fases, cada

uma com sua peculiaridade. Dessa maneira, a evolução histórica dos direitos

intrínsecos à pessoa humana passou por graduais modificações e gerou como

produto a fusão de diversas tradições e pensamento filosófico-jurídicos. Nesse

sentido, Noberto Bobbio (1992, p. 9) asseverou que:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são


direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas.

Não obstante os diferentes valores e hábitos das sociedades, todos os ideais

humanísticos se alicercearam em um ponto em comum: a necessidade prior de

limitar o poder estatal, afastando assim eventuais abusos de poder, por meio da

governança através do povo:

a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla


perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objetivo, normas de
competência negativa para os poderes públicos, proibindo
fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica
individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de
exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e
de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar
agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa)
(CANOTILHO, 1993, p. 541)

À vista disso, é possível inferir que a concepção dos Direitos Humanos

Fundamentais se associa com valores de liberdade, posto o contexto de

reivindicações decorrentes de grandes revoluções – sobretudo da burguesia. A

garantia desses direitos, quais sejam os direitos sociais e individuais, são

considerados enquanto regimes indisponíveis e sui generis aos quais advém da

influência de Declarações de Direitos, sobretudo o Bill of Rights de Virgínia (1776)6,

diploma responsável por proclamar os direitos naturais inerentes ao homem.

Embora o contexto à época pregasse reivindicações políticas, tal como a luta por

6
Também conhecido como Declaração de Direitos de Virgínia, trata-se de carta estadunidense que se insere
na luta pela independência norte-americana. Versa sobre direitos que devem ser considerados enquanto
fundamento e base do governo.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

libertação de um governo injusto, sua redação constitui preceitos perpetuados até

hoje, tal como “o gozo da vida e da liberdade com os meios (...) de buscar e obter

felicidade e segurança”. Este documento trouxe a reboque a Declaração de

Independência dos Estados Unidos, de 04/07/1776, carta cuja tônica majoritária foi

a limitação do poder estatal, bem como o enaltecimento da liberdade individual.

Outrossim, a Constituição Francesa de 03/09/1791 trouxe os direitos

individuais e suas garantias enumerados, apesar de tratar simultaneamente do

progresso econômico com a proteção social, considerando ambos fatores inerentes

à pessoa humana. Aguinsky e Prates (2011, p.1) sintetizam a visão à época da

seguinte forma:

Reconhecendo o lastro estrito da concepção de direitos oriundos da


Constituição Francesa e a Americana, Marx realizou a crítica a uma
concepção de direitos humanos que enraizou a perspectiva liberal
de Estado, tendo por base os direitos humanos civis, tipicamente
relacionados aos direitos de propriedade e à sustentação política e
ideológica da sociedade capitalista. São marcos em que o próprio
direito à liberdade, então tido como fundamental, cinge-se ao
direito a ser proprietário, denotando a clara orientação da afirmação
de direitos voltados restritamente à burguesia. Tal concepção de
Direitos Humanos, historicamente contida na base do liberalismo,
articulou a tese duradoura de que alguns direitos seriam mais
importantes ou prioritários em relação a outros, sustentando a cisão
e hierarquização entre direitos civis e políticos em relação aos
direitos sociais, culturais e econômicos, o que se antagoniza a uma
concepção tida como contemporânea de direitos humanos, onde
integralidade, universalidade e indivisibilidade de direitos são
valores essenciais (AGUINSKY E PRATES, 2011, p. 1)

Os aludidos entendimentos convergem aos ideais de Hannah Arendt (2012),

que se referiu aos Direitos Humanos, assim como qualquer outra garantia

fundamental, como resultado da organização humana, orientada pelos princípios

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de justiça, em busca da igualdade. Nesse sentido, vislumbra-se como fundamental

a institucionalização jurídica de tais garantias, ou seja, o reconhecimento de direitos

no ordenamento jurídico de um dado poder político, conforme versou Canotilho

(1998, p. 393):

As expressões direitos do homem e direitos fundamentais são


frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem
e significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos
do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os
tempos; direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-
institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente.
Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e
daí o seu caráter inviolável, intertemporal e universal; os direitos
fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa
ordem jurídica concreta. (CANOTILHO, 1998, p. 393).

Nessa esteira, com o intuito de positivar os direitos fundamentais inerentes

ao ser humano, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi promulgada,

construindo de forma axiológica o simbolismo da luta e ação social (PIOVESAN,

2014, p. 32). A Carta traz consigo a garantia universal e indissolúvel de direitos

outrora ignorados por meio da junção de um discurso liberal e social, ao elencar em

seu texto direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. O caráter universal

diz respeito à grandeza das garantias fundamentais, “sob a crença de que a condição

de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser

humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e

dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana” (PIOVESAN, 2014, p.

35). Por sua vez, a indissolubilidade é associada ao ideal de interdependência entre

as esferas das garantias salvaguardadas.

À vista disso, pode-se perceber a unidade entre os direitos, bem como seu

reconhecimento enquanto norma correta e necessária. Sobre esta matéria,

45
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Habermas, em suas proposições trazidas no livro a inclusão do outro, alerta que no

momento em que os indivíduos se convencem de que uma determinada norma é

correta ou que um determinado modo de agir é bom para todos, eles devem tornar

essa prática obrigatória para todos. Ao fazerem isso, estará concretizada a

fundamentação de uma norma que “merece reconhecimento intersubjetivo nas

condições “quase-ideais” de um discurso, podendo, portanto, ser tida como apta

para regular sua prática” (HABERMAS, 1999, p. 297).

1.1 Direitos de Segunda Dimensão

Ao considerar que os direitos fundamentais tenham surgido em

consonância com as demandas específicas das diferentes fases da evolução histórica

e social, os estudiosos deste ramo do direito costumeiramente dividem as garantias

conquistadas em grupos denominados dimensões.

Não obstante exista a “concepção das três (ou quatro, se assim preferirmos)

dimensões dos direitos fundamentais” (SARLET, 2007, p. 53), o presente estudo

debruçar-se-á nas violações de direitos da segunda dimensão.

Diante desta ótica, é indispensável compreender que os direitos da referida

dimensão buscam assegurar condições adequadas para a existência humana,

preservando assim a dignidade da pessoa humana. Por esta razão, Souza (2010, p.

105) define a segunda dimensão enquanto “basilar dever do Estado fornecer

prestações sociais mínimas e necessárias, capazes de promover a melhoria da

qualidade de vida das pessoas”, não obstante compreenda “os direitos sociais,

econômicos e culturais, os quais visam assegurar o bem-estar e a igualdade,

impondo ao Estado uma prestação positiva, no sentido de fazer algo de natureza

social em favor do homem.” (BULOS, 2014, p. 403).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nas palavras de Brega Filho (2002, p. 23), com os direitos de segunda

dimensão

foram definidos e assegurados os direitos sociais, econômicos e


culturais buscando garantir condições sociais razoáveis a todos os
homens para o exercício das liberdades individuais. Haveria uma
complementação entre as Liberdades Públicas e os direitos sociais,
“pois estes últimos buscam assegurar as condições para o pleno
exercício dos primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos
ao pleno uso das capacidades humanas. (BRAGA FILHO, 2002, p.
23).

Ou seja, a atuação do Estado não é negada, mas pelo contrário, “exige-se dele

que preste políticas públicas, tratando-se, portanto, de direitos positivos, impondo

ao Estado uma obrigação de fazer, correspondendo aos direitos à saúde, educação,

trabalho, habitação, previdência social, assistência social, entre outros.” (JÚNIOR E

NOGUEIRA, 2012, p. 4).

Assim, cabe aos Estados buscar instrumentos a fim de cessar a desigualdade, e

para isso, inexiste, “(...) outro caminho senão reconhecer o estado atual de

dependência do indivíduo em relação às prestações do Estado e fazer com que este

último cumpra a tarefa igualitária e distributiva, sem a qual não haverá democracia

nem liberdade.” (BONAVIDES, 2013, p. 378-379).

Assim, a inobservância às supramencionadas garantias abre-se espaço para

reivindicações, justas e necessárias, vista a violação de preceitos considerados

fundamentais. Entretanto, a intrínseca dependência da atuação estatal para o

cumprimento de direitos fundamentais escancara as desigualdades, ao passo em

que comprova a desarmonia entre o poder estatal e o poder popular.

47
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

2 AS DISPOSIÇÕES DO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNACIONAL

FRENTE AOS DESAFIOS ENFRENTADOS PELOS DIREITOS HUMANOS

Ante a crise do novo coronavírus, de certo, todo o planeta enfrenta uma

situação de emergência sanitária sem precedentes. Entretanto, é razoável inferir que

seus efeitos produzem maiores impactos no curto, médio e longo prazo em

sociedades que apresentam conjunturas vulneráveis antecedentes à pandemia. À

vista disso, especial olhar deve ser destinado à população latino-americana: a região

que engloba vinte países é uma das mais desiguais do planeta, sendo amplamente

conhecida pelas degradantes situações em que uma parcela dos indivíduos locais se

encontra inserida.

Pobreza e pobreza extrema, precariedade do acesso à água e ao saneamento

básico, ausência de moradia adequada e o alto índice de trabalho informal são

apenas alguns exemplos de fatores que comprovam a vulnerabilidade social.

Por essa razão, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos declarou que:

“A pandemia de COVID-19 pode afetar gravemente a plena vigência dos direitos

humanos em virtude dos sérios riscos à vida, à saúde e à integridade pessoal

representados pela COVID-19.”, o que contribui para a perpetuação da

vulnerabilidade e de violações de Direitos Humanos Fundamentais.

Nessa esteira, um estudo desenvolvido pelo New York Times (2020) buscou

analisar o quantitativo de mortes causados pelo coronavírus e pela sobrecarga

imposta aos sistemas de saúde latino-americanos:

No Equador, a mortalidade no período de março a maio deste ano


foi 57% mais alta do que nos anos anteriores, sendo que 7.000 destes
casos excedentes de mortes têm causa ainda desconhecida. No Peru
a mortalidade do referido período alcançou a média de 81%

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

superior ao período antecedentes, sendo 11.500 das mortes de


causas desconhecidas. No Chile, o excesso de mortes teria chegado
a 1.100, segundo o estudo (8%). Finalmente, no Brasil feita realizado
o mesmo estudo em cinco importantes cidades (São Paulo, Rio de
Janeiro, Fortaleza, Manaus e Recife), sendo observado um aumento
de mortes em 47%. (MOLLER, S., 2020, p. 13)

Apesar dos gritantes dados, não era de se esperar resultados diferentes. Em

sociedades cujas raízes se fincam em precários sistemas de saúde, má distribuição

de água potável e segura, deficientes sistemas de esgoto, abandono das áreas rurais

e superlotações de favelas, a luta pelo combate à propagação do coronavírus torna-

se ainda mais árdua. No que tange à tais cenários, a Comissão Interamericana de

Direitos Humanos asseverou em sua Resolução 1/2020 (CIDH, 2020, p. 5) que a

pandemia de COVID-19 gera como consequência impactos causados:

(...) em todos os direitos humanos diante dos diversos contextos


causados pela pandemia, especialmente em relação ao direito à
vida, à saúde e à integridade pessoal, são seriamente afetados o
direito ao trabalho, à seguridade social, à educação, à alimentação,
à água e à moradia, entre outros. (CIDH, 2020, p. 5)

Assim, é de se esperar que os ditos impactos ameacem toda a população

regional latino-americana. Contudo, os indivíduos que ocupam estratos sociais

conhecidamente vulneráveis, posição essa prévia à pandemia, estão suscetíveis a

seres particularmente mais expostos aos impactos multidimensionais do COVID-

19. São eles: a população de “baixa e média renda, idosos, povos indígenas,

migrantes, mulheres, crianças e adolescentes, deficientes, moradores de rua,

afrodescendentes, trabalhadores informais, a população rural e àqueles que

possuem HIV ou outras doenças crônicas” (CEPAL, 2020, b).

Entretanto, em meio ao reconhecimento da delicada situação, apontou-se que:

49
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a saúde é um bem público que deve ser protegido por todos os


Estados e que o direito humano à saúde é um direito inclusivo, que
corresponde ao gozo de outros direitos, o que inclui seus
determinantes básicos e sociais como conjunto de fatores que
condicionam seu efetivo exercício e gozo. (CIDH, 2020, p. 5)

Nesse sentido, o supramencionado órgão reconhece a complexidade advinda

da enfermidade epidêmica amplamente disseminada e os desafios ensejados por

ela. Não obstante, foi possível constatar o compromisso firmado pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos no que concerne à tentativa de mitigar

violações aos Direitos Humanos e vulnerabilidades sociais, haja vista o

reconhecimento expresso de que “no contexto da pandemia, os Estados têm a

obrigação reforçada de respeitar e garantir os direitos humanos” (CIDH, 2020, p. 5).

Para bem cumprir com tais obrigações, a Corte externou ser um dever dos

Estados a disposição de meios científicos e tecnológicos imediatos e diligentes que

visem combater a pandemia, evitando assim impactos sobre o direito à saúde, à

integridade pessoal e à vida.

Os Estados têm o dever de incentivar a pesquisa aplicada, a


inovação e a disseminação de novas tecnologias científicas
diretamente aplicáveis à luta contra a disseminação do patógeno e,
em particular, à descoberta de novas alternativas para o tratamento
do mesmo (CIDH, 2020, p. 5)

A referida pesquisa tem como objetivo guiar os procedimentos a serem

seguidos na detecção, tratamento, controle e monitoramento da pandemia. Além

disso, ressalta-se que compreendidos os procedimentos, o acesso às unidades de

saúde e aos bens e serviços deve ser feito de forma igualitária, com o intuito de

coibir qualquer desigualdade.

50
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Sobre o referido objetivo, é importante tecer algumas observações: de certo, o

novo cornavírus não reconhece barreiras, tais como limites fronteiriços, soberanias

ou nacionalidades. Assim, a perda significativa de vidas humanas é imposta às mais

diferentes nações e indivíduos, independente de sua etnia, classe social ou religião,

o que gerou mudanças abruptas no cenário geopolítico do mundo. Por essa razão,

pensar no combate ao patógeno de forma conjunta pode significar resultados mais

concretos, a julgar pelo quantitativo de recursos reunido para alcançar um único

objetivo.

Nessa esteira, o conceito de cooperação internacional, ou seja, o compromisso

global em exercer uma ajuda mútua, pode ser um forte aliado na mitigação de

vulnerabilidades e violações dos Direitos Humanos fundamentais, tal como

preceitua a Declaração Universal de Direitos Humanos:

Artigo XXII
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à
segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela
cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos
de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua
personalidade. (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948) [grifo
nosso]

O princípio da solidariedade internacional também se consagra enquanto

instrumento fundamental no enfrentamento à crise de saúde do coronavírus, ao

passo em que se pauta no “respeito aos direitos humanos e estabelece as bases para

a construção de uma cidadania mundial, onde já não há relações de dominação,

individual ou coletiva” (COMPARATO, 2008).

Os princípios supramencionados, corolários que são do princípio da não-

indiferença, são consagrados no Direito Internacional dentro de uma cultura

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

securitária e encontram-se intrinsicamente relacionados à responsabilidade de

proteção mundial, alicerçados na resignação do sofrimento alheio, cuja atuação,

apesar de se assemelhar com uma dimensão utópica, não deixa de ser pragmática.

Deste modo, a aplicabilidade de tais princípios ocupa-se enquanto forma de

orientar as ações dos sujeitos internacionais, visto que se relaciona com promoção

de “mudanças nos comportamentos e ações adotados pelos Estados no intuito de

reduzir os múltiplos problemas existentes no mundo” (GUERRA, 2017).

Sobre tais matérias, asseverou a CIDH ao longo da Resolução 1/2020 (CIDH,

2020, p. 7):

(...) qualquer política pública com abordagem de direitos humanos


para a prevenção, cuidado e contenção da pandemia requer uma
abordagem abrangente e multidisciplinar baseada no
fortalecimento dos mecanismos de cooperação internacional entre
os Estados.
É urgente avançar na coordenação regional e global para enfrentar
a crise pandêmica de COVID-19, a fim de alcançar a eficácia
regional, global e sustentável nas políticas públicas e em medidas
de distintas naturezas que sejam adotadas. (CIDH, 2020, p. 7)

Para bem cumprir com o objetivo de cooperação proposto, faz-se necessário

assegurar o compromisso de medidas, sejam estas no âmbito interno ou

internacionais, que garantam o direito à saúde, e aos direitos econômicos, sociais,

culturais e ambientais (DESCA). Para tanto, a Corte Interamericana declarou ser

imprescindível:

Incentivar e promover o desenvolvimento de amplos e eficazes


espaços de diálogo internacional, a fim de estabelecer e consolidar
canais de troca de boas práticas no campo de estratégias e políticas
públicas bem-sucedidas com abordagem de direitos humanos,
informações oportunas, bem como desafios e meios para enfrentar

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a crise global causada pelo surgimento da pandemia COVID-19.


Esses espaços devem incentivar particularmente a participação
plena dos grupos e setores mais afetados pela pandemia, sociedade
civil, Instituições Nacionais de Direitos Humanos, academia e
especialistas ou entidades especializadas no DESCA, saúde pública
e global, ou direito ao desenvolvimento, entre outros. (CIDH, 2020,
p. 21)

Assim, é possível inferir que as medidas de adoção recomendadas pela Corte devem

destinar em sua abordagem especial foco aos Direitos Humanos, seja no âmbito das

estratégias, políticas ou medidas de Estado. Nesse sentido, o enfrentamento deve

incorporar em seu conteúdo o direito à saúde e seus determinantes básicos e sociais,

“tal como o acesso a água potável, acesso a alimentação nutritiva, acesso a meios de

limpeza, moradia adequada, cooperação comunitária, apoio à saúde mental e

integração dos serviços públicos de saúde.” (CIDH, 2020, p. 9). Não obstante, é

necessário garantir uma proteção social eficaz, “incluindo, mas não se limitando, à

concessão de subsídios, renda básica ou outras medidas de apoio econômico.”

(CIDH, 2020, p. 9).

Um acesso forma díspar aos tratamentos e recursos viabilizados pelos Estados

nada mais seria do que um mecanismo de manutenção de desigualdades,

acentuando, dentre outros índices, a pobreza, fator que ao longo de 2020 deve

alcançar o equivalente a 37,3% da população latino-americana, segundo dados do

CEPAL (2020, p. 11).

3 CONCLUSÃO

Pensar na COVID-19 e seus impactos enquanto uma crise de saúde sem

precedentes significa produzir vulnerabilidade, ou, em casos, intensificar

conjunturas vulneráveis antecedentes à pandemia. Nesse sentido, é razoável inferir

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que os efeitos da crise produzem maiores impactos no curto, médio e longo prazo

em sociedades que apresentam suas instituições de saúde, educação, alimentação,

saneamento básico, dentre outras, mais fragilizadas, e por conseguinte, passíveis de

danos.

A América Latina, região própria de países subdesenvolvidos, detêm condições

de vulnerabilidade há muito conhecidas, as quais podem ser observadas na a

qualidade de sistemas de saúde, no acesso à água potável e segura, no abandono

das áreas rurais, nas condições de trabalho, na superlotação de favelas e nos níveis

educacionais, fatores que contribuem para a exposição populacional às situações de

vulnerabilidade. Exemplo disso é a projeção do índice da pobreza, que ao longo de

2020 deve alcançar o equivalente a 37,3% da população latino-americana, segundo

dados do CEPAL (2020, p. 11).

Assim, a ininterrupta vulnerabilidade enfrentada por uma parcela considerável

da população latino-americana preceitua violações às garantias fundamentais,

direitos sociais intrínsecos aos indivíduos, chamados positivos, dentre eles o acesso

à educação e saúde de qualidade, à alimentação, ao saneamento básico, dentre

outros.

Nesse sentido, torna-se possível auferir a inobservância dos Direitos Humanos

Fundamentais, sobretudo os direitos de segunda geração – os direitos sociais,

econômicos e culturais –, preceitos basilares que visam assegurar condições

adequadas para a existência humana, como o bem-estar e a igualdade, de modo a

preservar a dignidade da pessoa humana e impor ao Estado uma prestação positiva,

no sentido de fazer algo de natureza social em favor do homem.

Ao configurar graves violações aos Direitos Humanos Fundamentais, a

degradante situação de vulnerabilidade intensificada pela pandemia do novo

coronavírus, cujos efeitos e desdobramentos são danosos aos sistemas regionais –

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

bem como ao sistema global –, enseja ações coletivas, com o propósito de enfrentar

e superar este paradigma.

A necessidade de ações coletivas se demonstra enquanto fundamental

ferramenta no combate à erradicação do patógeno e estão pautadas em providencias

a serem coordenadas a partir da observância dos ideais consagrados no

ordenamento jurídico internacional. São eles: a cooperação internacional, ou seja, o

compromisso global em exercer uma ajuda mútua; a solidariedade internacional, a

qual não se limita

à assistência internacional e à cooperação, à ajuda, à caridade ou à assistência

humanitária, mas que também alcança sustentabilidade das relações internacionais

através da coexistência pacífica de todas as nações a partir do compartilhamento

equitativo de benefícios e encargos; e a não indiferença, que pode ser interpretada

como a cooptação dos dois primeiros ideais, ao passo em que motiva uma postura

não indiferente das nações diante das copiosas e adversas situações que se

anunciam no campo das relações internacionais.

Assim, o alinhamento de medidas e união de recursos das nações latino-

americanas é de bom alvitre, tal como recomendado pela Corte Interamericana de

Direitos Humanos e pelo Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe.

Nessa lógica, a convergência de ideais, recursos e providencias voltados à tutela da

parcela populacional à margem há de ser artifício garantidor dos direitos

econômicos, sociais, culturais, tais quais o direito à saúde, à educação, à

alimentação, à moradia e ao saneamento básico, dentre outros.

Há de se construir um verdadeiro comprometimento da sociedade

internacional, sobretudo da latino-americana, na busca da cooperação entre nações,

firmando assim princípios como a solidariedade e não indiferença. A partir destes

alicerces, será possível caminhar rumo à uma sociedade global mais igualitária,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mitigando as vulnerabilidades e violações aos Direitos Humanos Fundamentais.

Em outras palavras, pode-se pensar em uma ressignificação do ser humano.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

RENDA BÁSICA TEMPORÁRIA E AUXÍLIO EMERGENCIAL:

PANORAMA SOBRE A GARANTIA DOS DIREITOS

ECONÔMICOS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Diogo Paiva Pessanha7


Thiago José Aguiar da Silva8
Vanusia Drumond9

RESUMO
A pesquisa possui o objetivo de analisar os institutos jurídicos da renda básica temporária
e do auxílio emergencial, além da sua relação com os trabalhadores ambulantes da cidade
de Niterói. Nessa conjuntura, são levantadas questões acerca da vinculação dos
trabalhadores ambulantes da cidade à Secretaria de Ordem Pública, além do caráter
desigual de tratamento ao microempreendedor individual como comerciante. Os métodos
utilizados são o de pesquisa documental, análise bibliográfica e estudo de caso. As
conclusões apontam que a falta de acesso à informação, burocracia e falhas nos mecanismos
de seleção dos beneficiários se constituíram como verdadeiras barreiras de acesso aos
auxílios municipal e federal.

Palavras Chave: auxílio emergencial, renda básica temporária, trabalhadores ambulantes,


Niterói, pandemia.

ABSTRACT
The research aims to analyze the legal institutes of “renda básica temporária” and “auxílio
emergencial”, plus its relationship with street workers in the city of Niterói. At this juncture,
issues are raised about the linkage between street workers in the city and the “Secretaria de
Ordem Pública”, in addition to the unequal nature of treatment of individual micro-
entrepreneurs as merchants. The methods used are documentary research, bibliographic
analysis and case study. The conclusions points that the lack of access to information,
bureaucracy and failures in the mechanisms of selection of beneficiaries constituted real
barriers to access municipal and federal aid.

7
Graduando em Direito na UFF. Email para contato: diogopaiva@id.uff.br – Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6741593007501950
8
Mestrando em Sociologia e Direito no PPGSD (Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito) - UFF.
Email para contato: thiagojosesilva@id.uff.br – Lattes: http://lattes.cnpq.br/8321739271668553
9
Bacharel em Segurança Pública na UFF e graduanda em Relações Internacionais na UFF. E-mail para contato:
dudadrumond2013@gmail.com – Lattes: http://lattes.cnpq.br/8321739271668553

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Key-words: auxílio emergencial, renda básica temporária, street workers, Niterói,


pandemics.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo realizar um panorama jurídico e social

sobre o auxílio emergencial, concedido pelo governo federal através da Lei

13.982/20, e sobre a renda básica temporária, auxílio concedido pela prefeitura do

Município de Niterói através da Lei Ordinária 3.480/20. Ambos os benefícios estão

sendo concedidos pelos respectivos governos como medidas de garantia dos

direitos econômicos dos estratos mais vulnerabilizados da sociedade, em um

contexto de pandemia mundial do novo coronavírus. Desta forma, será utilizada a

ótica dos trabalhadores ambulantes da cidade de Niterói para expor suas

experiências e opiniões sobre os citados auxílios.

A decretação do estado de emergência em saúde pública de importância

nacional (ESPIN) pelo Governo Federal através da Portaria 188, no dia 03 de

Fevereiro de 2020, em conjunto com a Lei 13.979, sancionada no dia 06 de Fevereiro

de 2020, iniciou um processo de medidas de prevenção ao contágio do vírus Covid-

19 em todo o país. Desta forma, alguns Estados e Municípios adotaram medidas de

restrição de locomoção e do comércio, sendo este restrito somente à atividades

consideradas essenciais, além da obrigatoriedade do uso de máscaras, incentivo ao

uso de álcool em gel, entre outras medidas. O Município de Niterói está entre eles,

tendo inclusive decretado o lockdown (modelo mais rígido de distanciamento social)

do dia 11 ao 20 de Maio.

Neste contexto, centenas de trabalhadores ambulantes do Município ficaram

sem a possibilidade de trabalhar, dada a restrição de comércio apenas para

atividades essenciais. Além disso, houve uma significativa diminuição de trânsito

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de pessoas nas ruas, seu local de trabalho. Visando garantir a possibilidade de

sustento de famílias em situação de vulnerabilidade, como esses trabalhadores, a

prefeitura sanciona no dia 31 de Março a concessão de uma renda básica temporária

no valor de R$500,00 (quinhentos reais). Nesta mesma esteira, o governo federal

sanciona lei no dia 02 de Abril concedendo o auxílio emergencial no valor de

R$600,00 (seiscentos reais) às famílias que se enquadrem nos requisitos da lei, entre

eles, renda familiar mensal de até 3 salários mínimos.

A investigação será dada, inicialmente, pelo recente histórico dos institutos.

Serão explicitados, após, os empecilhos encontrados pelos trabalhadores

ambulantes da cidade de Niterói, desde a inscrição até a aprovação e recebimento

do benefício federal, com a existência de trabalhadores que se enquadram nos

requisitos tendo os seus auxílios negados sem a possibilidade de recurso. Os autores

do presente artigo notaram tais problemas através da ação extensionista no projeto

de extensão “UFF nas Ruas”, no GT de trabalhadores ambulantes.

O método a ser utilizado é de pesquisa documental, estudo de caso e de

análise bibliográfica. Pretende-se, por meio da investigação realizada, exaltar os

auxílios como medidas necessárias ao bem-estar social da população vulnerável em

tempos da crise causada pela pandemia da Covid-19.

UFF NAS RUAS

O projeto de extensão “UFF nas ruas: Assessoria Popular em conflitos

urbanos” é vinculado ao InEAC (Instituto de Estudos Comparados em

Administração de Conflitos) da Faculdade de Segurança Pública da Universidade

Federal Fluminense (UFF) do campus de Niterói. Criado em 2019, o projeto de

extensão tem como intuito a prestação de assessoria interdisciplinar na esfera da

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mediação e da administração dos conflitos urbanos que envolvam grupos sociais

vulnerabilizados na cidade, entre eles os trabalhadores ambulantes, a população

LGBTI, os povos de terreiros e as pessoas em privação de liberdade. O projeto conta

com a presença de estudantes da graduação e da pós-graduação de diversas áreas,

como direito, relações internacionais, antropologia, segurança pública e

comunicação social, e solidifica o previsto no art.207 da Constituição Federal ao

colocar em prática a extensão acadêmica, um dos pilares da universidade pública

brasileira.

Os autores do presente artigo são integrantes do grupo de trabalho (GT) dos

trabalhadores ambulantes, sendo os questionamentos trazidos aqui fruto da ação

extensionista. O GT dos trabalhadores ambulantes, inicialmente, começou

trabalhando com a organização de dois grupos focais: um com os camelôs

licenciados (chamados de “barraqueiros”) e outro grupo focal com os trabalhadores

não licenciados (chamados de “perde e ganha”), a fim de realizar uma pesquisa

qualitativa sobre a percepção deles acerca de sua formalização ou de sua

informalidade e sobre as diferentes demandas que daí decorrem. Os barraqueiros

são assim chamados pois a licença concedida pela da prefeitura prevê que seu local

de trabalho é em uma barraca fixa, em local previamente demarcado.

Por outro lado, os “perde e ganha” são assim chamados pois não possuem

licença da prefeitura e, portanto, se arriscam a perder a mercadoria em caso de

apreensão desta por parte da Guarda Municipal em operações de repressão a esse

tipo de atividade. Esta licença, concedida pela Prefeitura de Niterói por meio da

Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP), é feita por editais publicados no

site da instituição, sendo que os últimos datam de 2015. Tendo em conta a limitação

de vagas e o longo tempo desde o último edital disponibilizado, alguns

trabalhadores não conseguem a licença necessária para o comércio ambulante,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

restando como alternativa trabalhar à margem da lei e da regulação dos órgãos

públicos, que aparentemente não possuem interesse em regularizar a situação

destes trabalhadores. Por conta disso, a rotina de trabalho dos trabalhadores

informais é incerta, com a possibilidade de, a qualquer momento, ter sua

mercadoria apreendida, e com isso, perder a renda esperada com as vendas do dia.

A diferença entre a realidade dos trabalhadores ambulantes formais e informais

reflete-se nas principais demandas dos grupos. Por um lado, os “barraqueiros”

pleiteiam mudanças quanto à forma das barracas, a regularização de editais para

eventos da cidade e falam sobre a hostilidade dos lojistas. Por outro lado, os “perde

e ganha” possuem como principal pleito uma relação mais pacífica com o poder

público, visto que são alvos constantes de apreensões de mercadorias, em que

muitas vezes é utilizada força desproporcional e não é seguido o protocolo de

apreensão, que permite a posterior recuperação de mercadorias.

Apesar das diferentes demandas, existem também grandes convergências entre

os trabalhadores licenciados e os não licenciados. Principalmente, no contexto da

pandemia, em que as taxas de isolamento social alcançaram mais de 50% da

população da cidade, e também, enquanto vigorou a proibição de abertura do

comércio ambulante: os ambulantes trabalham ao ar livre e dependem da circulação

de pessoas, e, com o isolamento social, se viram sem alternativas para exercer o seu

ofício. Com isso, a principal demanda dos dois grupos foi unificada em uma só voz:

a necessidade da garantia dos direitos econômicos enquanto não se pode trabalhar.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

RENDA BÁSICA: GARANTIA DOS DIREITOS ECONÔMICOS EM TEMPOS

DE PANDEMIA

Direitos fundamentais são direitos, positivados na Constituição de um país, que

visam assegurar garantias e liberdades básicas para todos os cidadãos. Estes direitos

são revestidos de características únicas, de forma a resguardar indistintamente os

indivíduos. Entre estas características, estão os princípios da universalidade,

irrenunciabilidade e inalienabilidade, que garantem a aplicação universal das

normas, vedando a renúncia e a transferência destes. Dessa forma, direitos

fundamentais são considerados como

O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano


que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio
de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o
estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento
da personalidade humana” (MORAES, 2000, p.39)

A doutrina jurídica estabelece a divisão destes direitos em gerações, ou

dimensões, conforme a progressão histórica do surgimento destes direitos. Esta

progressão é chamada de historicidade dos direitos fundamentais, como preceitua

o jusfilósofo Norberto Bobbio

os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são


direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias,
caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra
velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas.(...) a liberdade religiosa é um efeito
das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos
contra os soberanos absolutos; a liberdade política e as liberdades
sociais, do nascimento, crescimento e amadurecimento do
movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com
pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das


liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o
desemprego (BOBBIO, 2004, p.9)

Neste sentido, a primeira dimensão de direitos fundamentais é a de direitos

civis e políticos, a segunda geração é a de direitos sociais, econômicos e culturais e

a terceira é a de direitos solidários. Sem embargo, é importante ressaltar também a

consideração de alguns doutrinadores que vão além, como Paulo Bonavides, que

considera a existência de uma quarta geração de direitos fundamentais.

Os direitos econômicos, sociais e culturais, pertencentes à segunda geração, são

o foco do presente estudo. Em um contexto de pandemia, em que milhões de

pessoas estão tendo direitos fundamentais como o direito à saúde e o direito à vida

ameaçados diretamente pelo novo coronavírus, de forma indireta a sociedade

brasileira sofre também as consequências econômicas e sociais que resultam das

medidas necessárias para a contenção da doença.

A pandemia do Covid-19 gerou diversas mudanças na rotina de milhões de

brasileiros. O decreto do estado de emergência em saúde pública de importância

nacional (ESPIN) pelo Governo Federal através da Portaria 188, no dia 03 de

Fevereiro de 2020, iniciou um processo de medidas de prevenção ao contágio do

novo coronavírus em todo o país. Desta forma, acima de qualquer problema de

conflito de competência, que acabou sendo resolvido pelo STF na ADI 6343 10 ,

diversos Estados e Municípios adotaram medidas de restrição de locomoção e do

comércio, instituindo a obrigatoriedade do uso de máscaras, o incentivo ao uso de

10
Esta ação direta de inconstitucionalidade suspendeu parcialmente as medidas provisórias 926/2020 e
927/2020, decidindo que Estados e Municípios, dentro da sua competência e território, podem adotar medidas
de restrição à locomoção durante o estado de emergência causado pela pandemia. Para mais informações:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442816

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

álcool em gel, entre outras medidas. O Estado do Rio de Janeiro e o Município de

Niterói estão entre as entidades federativas que decretaram estas medidas.

Neste quadro, no país inteiro milhões de pessoas se viram com restrições ao

trabalho, com a impossibilidade quase completa de exercer determinadas

atividades econômicas. O desemprego cresceu, com queda na receita de diversos

setores. O declínio de renda dos cidadãos proporcionado por esses fatores coloca

em risco a sua capacidade de subsistência, afetando a alimentação e a compra de

insumos necessários, como remédios, além do pagamento de contas, como luz e

água.

Como forma de solucionar essa questão surgiram propostas de renda básica,

ou renda de cidadania, baseadas em ideias defendidas há bastante tempo por alguns

economistas e políticos. A renda mínima possui experiências consideradas bem

sucedidas no Brasil, como o já extinto Bolsa Escola, instituído em 1995 no Distrito

Federal, o Bolsa Família, instituído em 2004 pelo governo federal e o Programa

Moeda Social Mumbuca, instituído no Município de Maricá/RJ em 2013.

Estas experiências na implementação de renda básica são consideradas mais

restritas do que as propostas de economistas como Eduardo Suplicy e Philippe Van

Parijs. Estes defendem a aplicação universal da renda mínima, definindo-a como

“uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus membros

individualmente, independentemente de sua situação financeira ou exigência de

trabalho” (VAN PARIJS, 2001). A restrição se deve ao estabelecimento de condições

para o recebimento da renda básica, como o enquadramento em uma faixa de renda

ou participação escolar, enquanto a proposta de renda básica universal prevê como

beneficiários todos os cidadãos de uma entidade federativa, sem o estabelecimento

de pressupostos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Como já explicitado anteriormente, com o objetivo de evitar o contágio da

covid-19, algumas entidades federativas impuseram diversas restrições sanitárias.

Uma delas, no âmbito municipal, foi o fechamento do comércio, afetando

especialmente o comércio ambulante. Inspirado nas citadas experiências passadas

e formuladas como uma política de compensação pela paralisação da atividade

econômica (e também pelo inevitável impacto econômico da pandemia), o

Município de Niterói/RJ e o Governo Federal instituem, respectivamente, a renda

básica temporária e o auxílio emergencial como forma de garantia dos direitos

sociais e econômicos da população vulnerabilizada durante a pandemia.

A renda básica municipal de Niterói atingiu 35 mil famílias, enquanto que o

auxílio emergencial do governo federal alcançou 65 milhões de brasileiros, segundo

dados oficiais. Ressalta-se que tal número é mais do que a metade da população

economicamente ativa brasileira.

A seguir, serão pormenorizadas as características dos citados institutos, de

forma a apontar o seu recente histórico de aprovação, bem como os requisitos para

a obtenção do benefício.

RENDA BÁSICA TEMPORÁRIA

O Município de Niterói foi considerado o primeiro da região metropolitana do

Rio a adotar medidas sociais e econômicas para mitigar os efeitos da pandemia. A

renda básica temporária foi instituída pela Lei 3.480, de 31 de março de 2020,

prevendo o pagamento do valor de R$500,00 (quinhentos reais). O auxílio é

definido, no artigo 1º desta lei, como “instrumento de garantia de renda aos

cidadãos de Niterói, como promoção da dignidade humana no contexto de crise

econômica e social decorrente do Coronavírus (COVID-19)”.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O Projeto de Lei nº 00044/2020, que regula o auxílio, foi submetido pelo prefeito

Rodrigo Neves (PDT-RJ) no dia 30 de março de 2020, e, em regime de urgência, foi

aprovado no dia seguinte pela Câmara Municipal da cidade, sem emendas, se

tornando na Lei 3480/2020. A renda básica também é regulada pela Lei 3488/2020 e

o Decreto 13541/2020.

Os requisitos para receber o benefício estão em seu artigo 2º

Serão beneficiárias da Renda Básica Temporária as famílias


cadastradas no CadÚnico da Assistência Social, até 30 de março de
2020, consideradas em vulnerabilidade social.
Parágrafo único. Também serão beneficiárias da renda básica
temporária as famílias que tenham ao menos um filho matriculado
nas escolas da rede pública de ensino do Município de Niterói,
ainda que não estejam inscritas no CadÚnico da Assistência Social.
(Redação acrescida pela Lei nº 3488/2020)

Com o prolongamento do período inicialmente esperado para o fim da

pandemia, prolonga-se também a situação de vulnerabilidade da parcela da

população que teve seu sustento diretamente afetado. A renda básica temporária,

inicialmente prevista por 3 (três) meses, será prorrogada até o mês de dezembro,

segundo manifestação do prefeito.

Para receber o auxílio não é necessário nenhum tipo de cadastramento. O

benefício é único por família, e para recebê-lo, o cidadão tem que fazer parte do

Cadastro Único dos Programas Sociais ou ter ao menos um filho matriculado nas

escolas da rede pública de ensino municipal. O auxílio é dado por meios de cartões

pré-pagos, que podem ser utilizados em estabelecimentos comerciais previamente

conveniados, como supermercados, farmácias e postos de combustíveis. Os cartões

são distribuídos em diversos pontos da cidade, de acordo com critérios como inicial

do nome do beneficiário e escola municipal em que o filho do beneficiário é

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

matriculado. Foi disponibilizado portal em que é possível o cidadão consultar se faz

jus ao benefício, além da obtenção de mais informações sobre como receber.

AUXÍLIO EMERGENCIAL

O auxílio emergencial do governo federal, no seu site, é conceituado como

um benefício financeiro concedido pelo Governo Federal destinado


aos trabalhadores informais, microempreendedores individuais
(MEI), autônomos e desempregados, e tem por objetivo fornecer
proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada
pela pandemia do Coronavírus - COVID 19.

O auxílio foi instituído pela Lei 13.982/2020, por meio da aprovação do PL

9236/2017, projeto de lei que inicialmente visava regular condições do Benefício de

Prestação Continuada (BPC). Com diversas modificações no projeto de lei, foi

adaptado para se adequar às necessidades trazidas pela emergência da pandemia.

O processo de aprovação do auxílio emergencial foi repleto de reviravoltas. Em

18 de Março, uma semana após a declaração de pandemia pela Organização

Mundial de Saúde (OMS), o Ministro da Economia Paulo Guedes anunciou uma

primeira versão do auxílio, no valor de R$200,00 (duzentos reais) e com a previsão

de beneficiar de 15 a 20 milhões de pessoas. No dia 25 de Março, o governo admitiu

a possibilidade de aumentar o benefício para R$300,00 (trezentos reais). À revelia

dos interesses do governo, no dia 26 de Março, durante sessão da Câmara, os

parlamentares da Câmara dos Deputados articularam por um valor maior, na faixa

de R$500,00 (quinhentos reais), anunciado pelo relator do projeto, Marcelo Aro (PP-

MG) e pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Após este anúncio, o

governo federal no mesmo dia afirma que aceitaria pagar o valor de R$600,00

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(seiscentos reais) por vale, tentando evitar uma derrota. Com isso o texto foi

aprovado na Câmara, e no dia 30 de março, foi aprovado no Senado, seguindo para

a sanção presidencial, assinada no dia 1º de abril.

O texto aprovado prevê as condições de recebimento do auxílio no seu artigo


2º:

Art. 2º Durante o período de 3 (três) meses, a contar da publicação


desta Lei, será concedido auxílio emergencial no valor de R$ 600,00
(seiscentos reais) mensais ao trabalhador que cumpra
cumulativamente os seguintes requisitos:
I - seja maior de 18 (dezoito) anos de idade, salvo no caso de mães
adolescentes; (Redação dada pela Lei nº 13.998, de 2020)
II - não tenha emprego formal ativo;
III - não seja titular de benefício previdenciário ou assistencial ou
beneficiário do seguro-desemprego ou de programa de
transferência de renda federal, ressalvado, nos termos dos §§ 1º e 2º,
o Bolsa Família;
IV - cuja renda familiar mensal per capita seja de até 1/2 (meio)
salário-mínimo ou a renda familiar mensal total seja de até 3 (três)
salários mínimos;
V - que, no ano de 2018, não tenha recebido rendimentos tributáveis
acima de R$ 28.559,70 (vinte e oito mil, quinhentos e cinquenta e
nove reais e setenta centavos); e
VI - que exerça atividade na condição de:
a) microempreendedor individual (MEI);
b) contribuinte individual do Regime Geral de Previdência Social
que contribua na forma do caput ou do inciso I do § 2º do art. 21 da
Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991; ou
c) trabalhador informal, seja empregado, autônomo ou
desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente
inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do
Governo Federal (CadÚnico) até 20 de março de 2020, ou que, nos
termos de autodeclaração, cumpra o requisito do inciso IV.
§ 1º O recebimento do auxílio emergencial está limitado a 2 (dois)
membros da mesma família.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Além disso, é importante destacar a previsão do texto com a possibilidade da

mulher provedora de família monoparental receber o valor de 2 (duas) cotas do

auxílio, no valor de R$1200,00 (mil e duzentos reais).

Esta lei é regulamentada pelo Decreto 10.316, de 07/04/2020, que dispõe, entre

outras coisas, da competência do Ministério da Cidadania de gerir as despesas

relacionados ao auxílio. Outros diplomas legais relacionados são a medida

provisória (MP) 982/2020, que regulamenta a poupança social digital, a Lei

13.998/2020, que trouxe algumas alterações na lei, além do Decreto 10.412/2020, que

prorrogou o auxílio por mais dois meses, cobrindo os meses de Julho e Agosto.

Para obter o auxílio emergencial, deve ser feita uma solicitação via aplicativo

ou site, ficando a Caixa Econômica Federal responsável por analisar os pedidos e

dar os resultados. No momento da solicitação, o cidadão que pleiteia o auxílio deve

indicar uma conta pessoal para depósito, e caso não indique, terá uma conta

poupança social criada em seu nome caso tenha o auxílio aprovado. Caso tenha o

auxílio negado por erro no cadastro, existe a possibilidade de refazer a solicitação.

Em determinados casos, em que o sistema acusa que o cidadão não pode receber o

benefício, não há possibilidade de recurso.

A EXPERIÊNCIA DOS TRABALHADORES AMBULANTES DE NITERÓI

Inicialmente, para receber o auxílio municipal, foi estabelecida a necessidade

de ser cadastrado como MEI (Microempreendedor Individual) e ser cadastrado na

Secretaria de Fazenda do município até vinte de março de 2020. Posteriormente, foi

criado um programa chamado “Busca Ativa”, para que os ambulantes também

fossem contemplados pelo benefício, vez que estes são vinculadas à SEOP

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(Secretaria de Ordem Pública), com atribuições de fiscalização pela guarda

municipal, apesar de ser uma atividade econômica.

A categoria ambulante traz consigo o estigma da discriminação e da

precariedade, sendo desta forma relegada a um lugar marginalizado nas relações

organizacionais dentro do município, que adota critérios sociais excludentes e que

tendem a atrelar a condição de pobreza extrema à pratica do comércio ambulante.

Em Mello(2010), são demonstrados quais critérios eram considerados na pesquisa

social para recenseamento dos camelôs de Niterói no ano de 2005. Um exemplo

disso é a tutela da atividade ambulante no controle da SEOP, o que acarreta uma

série de conflitos entre esses atores e os agentes de Segurança Pública do município,

que resultam em ações desproporcionais de força para se coibir uma atividade

comercial, podendo inclusive trazer riscos a transeuntes nas calçadas da cidade.

Mello (2004) questiona “onde estaria, afinal, o bom senso no meio de tamanha

situação de imprevisibilidade”. Essa falta de bom senso pode ser observada em

Drumond (2019)

Com os guardas era caso de correria, de esconde- esconde e muitas


vezes, de enfrentamentos que podiam levar ao caos as calçadas de
Icaraí. Calçadas essas ocupadas por muitos idosos e que num
momento de correria poderia deixar muita gente machucada. O
prejuízo causado por um enfrentamento entre camelôs e guardas
municipais poderiam ser maiores para a população ou para o
comércio local do que de valor monetário para o camelô, visto que
um tripé com arcos de cabelo, um paraquedas com lenços indianos
ou uma caixa com papel de presente não pagariam o tratamento de
uma bacia trincada em uma idosa ou a vidraça de um banco por
exemplo. (Drumond, 2019, p. 15)

Essa controversa alocação dos ambulantes na competência da SEOP pôs em

evidencia a fragilidade social desses comerciantes diante do problema ocasionado

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pela pandemia. A categoria foi uma das primeiras a terem as atividades

interrompidas e por essa razão teve a promessa da prefeitura que receberia o auxílio

de R$500 reais, no entanto, ao serem verificados seus CNPJs e CPFs no portal

disponibilizado pela prefeitura para obtenção do cartão- benefício, se mostraram

inaptos por não terem cadastro na Secretaria Municipal de Fazenda da cidade de

Niterói. Este problema foi identificado pela ação extensionista do UFF nas Ruas, que

imediatamente buscou meios para dar visibilidade ao problema, bem como auxiliar

a categoria no acesso aos seus direitos, cerceados por um mal entendido ocasionado

justamente pelo fato de não estarem vinculados ao órgão público adequado à

fiscalização de uma atividade comercial. O esforço demandado resultou numa

readequação dos mecanismos de concessão do auxílio municipal pela prefeitura,

que posteriormente beneficiou outras categorias que também haviam ficado de fora,

como o caso dos taxistas e outros profissionais, através do programa “Busca Ativa”.

A relação dos trabalhadores ambulantes do município com o auxílio do

governo federal também se mostrou um caminho repleto de obstáculos. O auxílio

emergencial do governo federal foi marcado, em todo o país, por polêmicas. Seja

pelos indícios de fraude, em que pessoas que não faziam jus ao benefício estariam

recebendo, seja também pela quantidade de pessoas que estariam tendo seu

benefício negado indevidamente. Dentre os trabalhadores ambulantes, esta última

realidade infelizmente se mostrou presente. Tendo em conta a grande quantidade

de trabalhadores que estavam tendo problemas com o seu pedido de auxílio

emergencial, a ação extensionista do UFF nas Ruas, em parceria com a Associação

Assistencial dos Comerciantes Ambulantes do Município de Niterói (ACANIT),

procurou ajudá-los, criando grupos de apoio no aplicativo Whatsapp. Dentre os

problemas, estava a grande demora na análise dos pedidos, a recusa indevida e até

a dificuldade em utilizar o aplicativo.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A maior parte dos problemas pôde ser resolvida com o aconselhamento ou pela

via administrativa, presencialmente nas agências da Caixa Econômica Federal,

banco encarregado de gerir o auxílio. Apesar disso, alguns casos se constituíram

como um grande problema, e quando esgotadas as vias administrativas, foi

procurada a via judicial para a solução do celeuma. Ao todo, até o momento de

redação do presente estudo, 4 (quatro) trabalhadores ambulantes tinham sido

encaminhados para a Defensoria Pública da União (DPU) para a judicialização dos

casos em que existia a recusa indevida e os meios oferecidos pelo Ministério da

Cidadania não ofertavam mais a possibilidade de recurso. Felizmente, do total de

casos, 3 (três) ambulantes tiveram decisão favorável pela concessão do auxílio, por

meio de sentença ou tutela antecipada, confirmando que o direito de receber o

auxílio estava sendo negado arbitrariamente. Apesar disso, o acesso ao dinheiro

depositado nas contas por decisão judicial vem sendo dificultado, tendo em conta

as dificuldades de movimentação e saque. Até o momento de submissão do

presente estudo (14/09/2020), nenhum dos trabalhadores que obtiveram o auxílio

por decisão judicial conseguiram ter acesso ao dinheiro.

Em todo esse processo, ficam em evidência as dificuldades encontradas por

uma classe de trabalhadores que é vulnerabilizada e estigmatizada socialmente. A

análise da questão deve perpassar pela recente tendência de promoção e incentivo

ao empreendedorismo, que aliados a uma percepção individualista, alegam que a

pessoa é a única responsável pelo próprio sucesso ou fracasso, independente de

outras variantes que possam ter impacto na performance individual. Esse discurso

deriva, segundo Castro (2013), da nova realidade neoliberal que é “caracterizada

pela universalização da lógica de mercado que invade todas as esferas da vida

social” (CASTRO, 2013, p.163).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Paralelo a esse processo, o ordenamento jurídico brasileiro inaugurou em 2008

um novo modelo de formalização jurídica, a partir da figura do

Microempreendedor Individual, destinada principalmente a retirar as pessoas da

informalidade ao recolher impostos e proporcionar um status jurídico.

Ao se formalizarem em MEI, os camelôs, a partir dos dados coletados do grupo

focal, se veem na condição de empresários, pois a marca da informalidade que

carregavam anteriormente, por não pagarem impostos, teria supostamente sido

suprimida pela condição do CNPJ e pelo pagamento dos devidos tributos. Desse

modo, o MEI age como um forte aspecto ideológico nessas pessoas, pois a partir

dessa formalização elas assimilam as razões dos empresários em contraste com a

sua realidade precária.

No curso do desenvolvimento da pesquisa, percebem-se contradições inerentes

ao processo de formalização jurídica através do MEI pelos camelôs de Niterói. Ao

se verem como ‘empresas’, encontram a todo instante a realidade de serem

‘camelôs’. Essa evidência se coloca principalmente durante o processo de elaboração

da renda básica temporária cidade de Niterói, pois mesmo esse recurso sendo

destinado ao MEI, ele não alcançava incialmente os comerciantes ambulantes. Isso

porque, segundo a justificativa da prefeitura, era que a legislação municipal previa

o auxílio àqueles que estavam vinculados à Secretaria de fazenda, enquanto os

camelôs estão cadastrados na Secretaria de ordem pública. Nesse aspecto, o que se

considera é que os camelôs, embora exerçam atividade econômica similar com

outros MEI’s e com os próprios artesãos, são vistos como um problema de ordem

urbana e de segurança pública, diferentemente de outros segmentos citados, o que

dificulta o acesso deles à benefícios e direitos básicos.

Essa dificuldade de acesso à direitos e informações expõe a fragilidade das

camadas menos favorecidas da sociedade, deixando-as assim, reféns de barganhas

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

internas e autoritárias do Estado, que, aliado ao interesse de uma elite econômica,

se sobrepõe aos direitos de quem não dispõe de meios econômicos ou conhecimento

teórico para argumentar em favor de si. Uma prática histórica e enraizada, conforme

apontado em Pires (2014)

Ora, na perspectiva sociológica clássica, a desigualdade social típica


das sociedades de mercado deve ser mitigada através do exercício
de direitos civis, políticos e sociais, conquistados arduamente pela
população. No Brasil, entretanto, desde nossa Independência, em
1822, vários obstáculos se colocam diante dessa sequência clássica:
a Independência não nos tornou um regime republicano, mas
Imperial e semidinástico, introduzindo a desigualdade jurídica
entre os brasileiros (...) essa desigualdade jurídica, de que são
exemplos indiscutíveis os muitos privilégios processuais penais e
administrativos que estão enraizados na legislação ordinária do
país e que contemplam certos segmentos sociais e membros do
governo com direitos processuais desiguais, o que implica
desigualá-los também civilmente. (KANT DE LIMA, PIRES, 2014,
p.36,37)

Diante dos fatos narrados, evidencia-se a questão ideológica realizada pelo

MEI, uma vez que antes da paralisação das atividades muitos ambulantes

licenciados e com barracas acreditavam estar equiparados aos demais MEI’s e

outras atividades econômicas formais. Assim, foi possível que os camelôs não

fossem contemplados pela renda básica municipal destinada aos

microempreendedores, e fez com que houvesse o rompimento das três operações

fundamentais da ideologia estipulada por Castro (2013): a naturalização,

universalização e abstração. Essa preterimento, portanto, retirou o véu ideológico

empreendedor e impôs a sua condição habitual, colocando-os numa “ausência total

de acesso a serviços públicos” que são “fatores que continuam caracterizando a

existência desses indivíduos” (CASTRO, 2013, p.167).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da atuação dos autores na ação extensionista, foi possível traçar um

comparativo acerca da concessão dos auxílios e o impacto ocasionado pela

burocracia nas ações dos Governos Municipal e Federal na vida dos ambulantes do

município. A resposta no âmbito Municipal, apesar de alguns reveses, mostrou-se

mais assertiva alcançando a finalidade de manter o básico na mesa dos ambulantes

e outras categorias do município. Já no âmbito Federal, os trâmites burocráticos

pareceram ter a finalidade de inviabilizar o acesso dos cidadãos ao benefício

econômico, adotando-se práticas que dificultavam o acesso aos recursos do auxílio,

considerando os acontecimentos narrados e os de conhecimento público, que foram

amplamente noticiados.

A grande dificuldade dos ambulantes se dava no acesso à informação acerca do

aplicativo disponibilizado pelo governo federal, a longa espera da análise, os

calendários confusos de pagamento e de como se dariam esses saques. O governo

disponibilizou o recurso em conta digital, mas impôs condições, favorecendo assim

“instituições parceiras”, uma vez que entre a data do débito em conta até a data do

saque o cidadão se vê obrigado a utilizar o recurso para pagar fornecedores de

serviços ou alimentos através de administradoras de cartão de crédito e financeiras

conveniadas ao aplicativo da Caixa Econômica Federal.

A questão ideológica do empreendedorismo foi escancarada ao ser contrastada

com a realidade em que, mesmo os ambulantes licenciados atendendo aos requisitos

legais para terem acesso ao benefício não foram contemplados, pois não estavam

credenciados na secretaria competente. Por mais que se trate de uma questão

burocrática, a alocação dessas pessoas na Secretaria de Ordem Pública (SEOP)

estipula não apenas uma concepção política em tratar o comércio ambulante, não

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

como uma atividade econômica, mas sim como um problema de ordem pública e

urbana.

Por fim, é importante trazer o questionamento da necessidade de avaliação da

permanência dos referidos benefícios. Os impactos da pandemia, que não possui

nenhum tipo de prazo para acabar, vão se estender além da doença causada. É

mister que a União, os Estados e os Municípios estejam atentos à realidade dos

estratos mais vulnerabilizados da sociedade, que estão tendo sua capacidade de

subsistência fortemente afetada. Além disso, no que pese à capacidade econômica

dos entes federativos, devem ser debatidas alternativas que permitam a garantia

dos direitos sociais e econômicos de forma integrada, de modo que não seja

aprofundada a marcante desigualdade regional de nosso país.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

SANEAMENTO BÁSICO NO CONTEXTO DA PANDEMIA

COVID-19 NO BRASIL: A DESIGUALDADE REGIONAL E O

NOVO MARCO DO SANEAMENTO BÁSICO

Pedro Germano dos Anjos11


Joyce Kelly Batista Xavier12
Caêssa Ferreira Santos dos Santos13

RESUMO:
O presente artigo reflete sobre a efetivação do fim constitucional de diminuição da
desigualdade regional (art. 3º, III, Constituição Federal de 1988) no tocante ao direito
fundamental à saúde, com ênfase no acesso a água tratada e ao saneamento básico nas
diferentes regiões do país e nos reflexos da omissão ou insuficiência de tais serviços no
alastramento da pandemia de Coronavírus no Brasil. Visto que um sistema bem
estruturado de saneamento possui relevância de caráter preventivo, tanto econômica
quanto socialmente, a questão sob investigação possui ainda mais significância no atual
contexto de pandemia do COVID-19, porquanto algumas das medidas de prevenção são as
de higiene oriundas do acesso a água tratada e saneamento. Para a presente pesquisa
bibliográfica, com análise quanti-qualitativa, utiliza-se o método documental a fim de
levantar dados secundários pertinentes a todas as regiões do Brasil. Verificou-se que o grau
de acesso e a qualidade dos sistemas de saneamento nas diferentes regiões brasileiras
demonstra de logo uma acachapante desigualdade regional em relação à existência e
qualidade dos serviços, tão essenciais como medida de saúde pública. Ainda, a análise
sobre o Novo Marco do Saneamento, sancionado em junho de 2020, revelou novas
ferramentas a fim de renovar as esperanças a nível nacional para a resolução do déficit
causado pela ineficiência de políticas federais e estaduais anteriores. A conclusão alcançada
é no sentido de que o déficit do saneamento básico e a grande desigualdade regional de
acesso e qualidade impactam negativamente os efeitos da pandemia de COVID-19 no Brasil
e os investimentos e ferramentas do novo Sistema encontram um grande desafio para
prevenir epidemias e pandemias.

11
Mestre em Direito Público pela UFBA. Professor Assistente de Direito na Universidade Estadual de Santa
Cruz – UESC. pganjos@uesc.br. http://lattes.cnpq.br/2632734443526649
12
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz. joy05kly@gmail.com.
http://lattes.cnpq.br/3431441834221914
13
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz. caessaferreira@gmail.com.
http://lattes.cnpq.br/4767869351331043

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Palavras Chave: Direito à Saúde; Pandemia de COVID-19; Saneamento básico; Direitos


fundamentais.

ABSTRACT:
This article reflects on the effectiveness of reducing regional inequality constitutional
objective (art. 3, III, Federal Constitution of 1988) with regard to the healthcare fundamental
right, with an emphasis on access to treated water and basic sanitation in the different Brazil
regions and the reflexes of such services omission (or insufficiency) in the spread of the
Coronavirus pandemic in Brazil. Since a well-structured sanitation system has preventive
relevance, both economically and socially, the issue under investigation is even more
significant in the current pandemic context of COVID-19, as some of the preventive
measures are those of hygiene arising from access treated water and sanitation. For a
bibliographic research, with quantitative and qualitative analysis, the documental method
is used in order to collect secondary data relevant to all regions of Brazil. It was found that
the access’ degree and the quality of the sanitation systems at different Brazilian regions
immediately demonstrates an overwhelming regional inequality in relation to the existence
and quality of services, as essential as a public healthcare measure. Still, the analysis of the
New Sanitation Framework, sanctioned in June 2020, revealed new tools in order to renew
national hopes for the resolution of the deficit caused by the inefficiency of previous federal
and state policies. The conclusion reached is that the deficit in basic sanitation and the great
regional inequality in access and quality negatively impact the effects of the pandemic of
COVID-19 in Brazil and the investments and tools of the new System face a great challenge
to prevent epidemics and pandemics.

Key-words: Right to healthcare; COVID-19 pandemic; Sanitation; Fundamental Rights.

INTRODUÇÃO

A existência da pandemia causada pelo Coronavírus trouxe à baila diversos

questionamentos acerca dos deveres estatais para com a prevenção dessa doença.

Da mesma forma, também evidenciou diferentes e expressivas formas de

desigualdades regionais e municipais causadas pela existência de políticas públicas

(in)eficazes para implementação e universalização do acesso ao saneamento básico.

Objetiva-se, assim, indagar como um estágio mais avançado de saneamento

poderia beneficiar os brasileiros de maneira preventiva em relação a endemias, e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

como o investimento em referida estrutura concretiza o direito social à saúde

perseguido pela Constituição Federal.

A reflexão se mostra necessária, quanto mais em tempos de pandemia, nos

quais a saúde mental dos cidadãos está a risco, com tantas restrições à liberdade de

ir e vir, imposições de quarentena e de home office.

Sabe-se, com HAN (2017, pp. 85-6), que o atual momento em uma sociedade

do cansaço (na qual a produtividade é imposta pelo próprio indivíduo como

mecanismo de autoexploração para se atingir uma suposta felicidade), pode gerar

profundos efeitos negativos sobre a concretização da dignidade da pessoa humana.

Basta somar ao quadro próprio da Sociedade do cansaço exposto por HAN

(2017, pp. 44-50) – frustação, depressão, e síndromes de burnout e do pânico – o

isolamento, o distanciamento social, o medo e perplexidade diante das mortes

decorrentes da atual pandemia. Assim é que a imposição de quarentena e home

office, circunstâncias de um informal (e inconstitucional) estado de sítio, em que a

produtividade domiciliar (com todos os seus limites) é eleita como medida para a

própria sobrevivência (não somente para o sucesso individual), podem ser fatores

a agravarem o estado de saúde de mentes já (auto)debilitadas.

Para os fins do estudo, portanto, faz-se necessário perscrutar os dados e

estatísticas relacionados à cobertura e acesso ao sistema de saneamento básico nas

esferas regionais e municipais do país, constituindo-se, portanto, de pesquisa

bibliográfica e documental, consonante a proposta inicial, sendo utilizado o método

qualitativo de investigação científica, a partir da coleta de dados secundários.

A discussão mostra-se também razoável diante da implementação do Novo

Marco Legal do Saneamento Básico, vez que, com a promulgação da Lei

14.026/2020, o governo brasileiro se vê compelido a viabilizar a universalização dos

serviços de saneamento até 31/12/2033, objetivando atendimento de 99% da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de

esgoto. Fato que oportuniza, portanto, a efetivação de direitos fundamentais, como

é o caso da saúde.

1. A PANDEMIA DE COVID-19 E AS MEDIDAS JUDICIAIS RELACIONADAS

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a COVID 19 (COrona

VIrus Disease) trata-se de uma doença infecciosa causada pelo novo coronavírus,

cujos sintomas desdobram-se em febre, cansaço, dificuldade para respirar e tosse

seca. Em que pese se assemelhar a uma simples gripe, referida doença, até o

momento (13 de setembro de 2020), já infectou mais de 28 milhões de pessoas,

infelizmente vitimando mais de 920 mil pessoas em todo o mundo.

No Brasil, inobstante o primeiro caso de infecção tenha sido identificado em

26 de fevereiro de 2020, o governo federal já havia editado quatro medidas

normativas que tratavam sobre alternativas de enfretamento. Oportunamente, vale

destacar a Lei n. 13.979/20 que delineou as primeiras medidas sanitárias de combate

de propagação da doença no país, sendo responsável pela derivação de políticas

públicas a nível estadual e municipal de enfrentamento (e em 20 de março de 2020,

foi editada a Portaria nº. 454/2020).

Conforme se extrai do art. 3º da Lei nº. 13.979/20, três medidas são as

principais para a redução do contágio da COVID 19: o isolamento, que trata da

separação de pessoas doentes ou contaminadas, a fim de evitar a contaminação; a

quarentena, destinada à restrição ou separação de pessoas suspeitas de

contaminação das pessoas que não estão doentes; e a restrição excepcional e

temporária por rodovias, portos e aeroportos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Na ADI nº. 6341 (julgada em abril de 2020) deu-se interpretação conforme à

Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a

atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da

Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os

serviços públicos e atividades essenciais

Uma das normas impugnadas prevê que as autoridades poderão adotar

"restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e

fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária" de entrada e saída do

país e locomoção internacional e intermunicipal — por rodovias, portos ou

aeroportos. Isto é, em tese, a restrição só poderia ser adotada pelas administrações

após uma recomendação da agência reguladora.

Já outra decisão do Supremo Tribunal Federal se deu na ADPF 672, em que

se reconheceu a competência dos chefes de Executivo estaduais para adotar medidas

como a imposição de distanciamento social e restrição de circulação de pessoas,

exercida pelo Governo baiano, como se verá adiante.

Outras estratégias também têm sido tomadas pelas autoridades federais e

locais, tais quais o distanciamento social, a ampliação da capacidade de

atendimento dos serviços de saúde, fomento econômico a cidadãos, famílias e

empresas e, mais recentemente, o lockdown (BBC Brasil, 2020). De todo modo,

malgrado a atuação federal no combate ao vírus, na verdade Estados e Municípios

atuaram predominantemente em relação ao governo federal (KOGA, 2020).

Atualmente, no estado da Bahia, já foram registrados quase 283 mil casos

confirmados do COVID-19, com cerca de 6000 óbitos, segundo dados extraídos pela

Secretaria de Saúde do Estado. Normativamente, o primeiro ato relevante foi

publicado em 17 de março de 2020 no Decreto nº. 19.529/20, o qual reuniu uma série

de medidas temporárias a serem adotadas, reiterando-se medidas de isolamento,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

quarentena e restrição de viagens, já previstas na legislação federal. Além disto,

também suspendeu eventos e atividades com a presença de público superior a

cinquenta pessoas, bem como de atividades letivas e o funcionamento de

zoológicos, museus, teatros e afins.

Como forma de prevenção, a circulação dos transportes foi fortemente

modificada. Alguns aeroportos baianos estão atuando com a capacidade de frota

reduzida, além daqueles cujos voos foram totalmente cancelados. No que se refere

aos cruzeiros, estão suspensas a atracação de cruzeiros e outras embarcações de

passageiros desde o dia 17 de março.

Considerando até então a atuação do Estado da Bahia durante o período da

pandemia, verifica-se a inércia do governo no que tange à implementação de

políticas públicas voltas a medidas sanitárias de saneamento básico às populações

em situação de vulnerabilidade econômica e social. Conforme vem se analisando, o

acesso adequado e eficaz ao saneamento garante não somente qualidade de vida,

mas, sobretudo, é medida sanitária de combate e prevenção de doenças, como a

Covid-19.

Se as políticas públicas referentes ao direito ao saneamento básico não

encontram um mínimo de satisfação como medida de prevenção a epidemias, por

outro lado, as demandas judicias e, logo, as imposições oriundas do Poder Judiciário

não auxiliam na solução do problema. A judicialização da saúde no brasil tende a

ser superficial nos planos horizontal e vertical (ANJOS; CRUZ, 2020). No plano

horizontal, as demandas de saúde pertencem à microlitigação (concentração em

ações individuais). No plano vertical, versam sobre “uma dimensão bastante parcial

de todas as ações e serviços de saúde que devem ser prestadas pelo poder público”

(ASENSI; PINHEIRO, 2015:16).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Para gerar consequências positivas, as demandas judiciais deveriam abarcar

o máximo de sujeitos beneficiários e concentrar os pedidos em demandas que

abarcassem os serviços de saúde como um todo, incluindo as medidas preventivas.

E certamente, dentre as medidas sanitárias urgentes e preventivas, está o conjunto

de ações do saneamento básico.

2. ANÁLISE DE DADOS DE SANEAMENTO: A DESIGUALDADE REGIONAL

BRASILEIRA

A história do Brasil comprova que no decorrer dos anos, principalmente com

a implantação e desenvolvimento da industrialização, a inconteste desigualdade,

tornou-se ainda mais expressiva. Ressai ainda que as diferenças econômica,

educacional, social e política se desdobraram pelas demais regiões brasileiras, pelo

que a própria Constituição Federal erigiu como um dos fins da República a

diminuição da desigualdade regional (art. 3º, III), já aplicado pelo STF (2007). E, dando-

lhe maior ênfase, cabe ressaltar a desigualdade percebida quando se analisa o mal

ou quase inexistente acesso ao saneamento básico no país.

Tratando-se de saneamento básico, deve ser ponderada sua verdadeira

relevância para a manutenção da qualidade de vida e a prevenção a problemas

relacionados à saúde. Não é à toa que, segundo dados divulgados em 2014 pela

OMS, para cada dólar investido em serviços de água e saneamento, há um retorno

global de cerca de U$$ 4,32 em relação a custos com saúde na sociedade.

Logo, não se pode negar o caráter preventivo de um sistema de saneamento

estruturado e eficiente. Contudo, dados colhidos pelo Sistema Nacional de

Informações sobre Saneamento (SNIS), organizado pelo Ministério do

Desenvolvimento Regional, relatam que aproximadamente 100 milhões de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

brasileiros (53,15%) não possuem acesso à coleta de esgoto e 35 milhões estão sem

abastecimento de água tratada (BRASIL, 2019, p. 57-8).

Em 2018, de acordo com dados do DataSUS, foram registradas 233 mil

internações no país por doenças de veiculação hídrica, como diarreia, verminoses,

hepatites, esquistossomose, leptospirose, dengue, entre outras (BRASIL, 2019b).

Esse cenário amplia a vulnerabilidade diante de novas doenças, como a trazida pela

Covid-19, até porque já há fundada suspeita de contaminação por gotículas de

esgoto não tratado (MCKINNEY et al., 2006).

Em estudo comparativo a respeito da associação entre saneamento e saúde

nos estados brasileiros entre 2001 e 2006, TEIXEIRA et al (2011) observou haver uma

correlação inversamente proporcional entre a mortalidade por doenças infecciosas

e parasitárias para todas as idades e a cobertura por redes de abastecimento de água.

Tal resultado é corroborado por outras pesquisas de campo, em que se

concluiu que os estados brasileiros com melhores indicadores de saúde – menores

taxas de mortalidade e morbidade por doenças associadas à poluição hídrica –

situam-se entre aqueles que apresentam os maiores índices de cobertura por rede

de abastecimento de água, ou seja, abastecimento de água superior a 60% da

população residente no estado (TEIXEIRA et al, 2011, p. 203; LIBÂNIO,

CHERNICHARO E NASCIMENTO (2005).

Obviamente há outros fatores para esse resultado. Porém, o déficit de

saneamento básico demonstra-se de todo modo um fator relevante na prevenção e

combate a epidemias e, no extremo, fator de saúde mental para os brasileiros. A

ausência de acesso potencializa as consequências, dada a circunstância de

isolamento e distanciamento social, já que tais serviços não podem ser consumidos

fora do ambiente domiciliar. E os dados empíricos não mentem.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Em 2015, residências atendidas pela rede geral de abastecimento de água

correspondiam a 58.125.562 (cinquenta e oito milhões, cento e vinte cinco mil e

quinhentas e sessenta e duas), ou seja, cerca de 10 milhões de residências não

possuíam fornecimento de água. Considerando ainda o ranking regional, a região

Sudeste, contando com cerca dos 27 milhões de domicílios atendidos, possuía como

percentual de cobertura cerca de 92,2%, à medida que as regiões Norte e Nordeste,

cuja quantidade de domicílios cobertos era, respectivamente, cerca de 3 e 14

milhões, detinham os percentuais de 60,2% e 79,7% (ABES, 2017).

Por sua vez, ao ser examinado o nível de esgotamento sanitário –

considerando fossa séptica ligada à rede e rede coletora de esgoto – , obteve-se o

resultado de que enquanto as regiões Sul e Sudeste eram cobertas com 65,1% e

88,6%, respectivamente, as regiões Centro-oeste, Nordeste e Norte do país

mantinham o percentual de 53,2%, 42,9% e 22,6% – nesta ordem –, estando essas

últimas, pois, bem abaixo da média nacional que correspondia a 65,3% de cobertura

(ABES, 2017).

Sobremaneira, constatou-se que as regiões Norte e Nordeste lideram o

ranking nacional no que tange aos domicílios que não possuem nenhuma forma de

esgotamento sanitário. Conforme dados coletados, somando-se as duas regiões,

1.169.696 (um milhão, cento e sessenta e nove, seiscentos e noventa e seis) de

domicílios não detinham acesso ao esgotamento, ao passo que, somando-se os

domicílios das demais regiões, essa quantidade não ultrapassava a marca de 145.635

(cento e quarenta e cinco mil, seiscentos e trinta e cinco) residências. (ABES, 2017).

A diferença de acesso, pois, considerando a distribuição da população no território

nacional, é brutal.

Inclusive, o Perfil 2017 dos Municípios Brasileiros permite verificar as grandes

diferenças na existência dessa infraestrutura nos Municípios para além das regiões,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pois se percebe uma maior existência da rede nos Municípios de maior população.

Em apenas 44% (543) dos Municípios com menos de 5.000 habitantes foi verificada

a existência de uma rede coletora de esgotos, enquanto alcançava 97,6% (41) nos

Municípios com mais de 500.000 habitantes (IBGE, 2020, p. 32):

Tabela 1: Municípios, total e com serviço de esgotamento sanitário por rede coletora de esgoto,
segundo as Grandes Regiões e as classes de tamanho da população dos Municípios - 2017

Por tudo que foi analisado, é possível traçar um paralelo entre os dados

acima apresentados e as doenças relacionadas ao saneamento inadequado (COSTA;

PONTES, 2010). As regiões Norte e Nordeste imperaram as menores e piores taxas

de acesso ao saneamento básico no país. De outro lado, o número de internações

causado pelo conjunto de doenças relacionadas ao saneamento era de 548,83 por

cada 100.000 habitantes na região Nordeste, e na região Norte este número atingia

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

773,87, ou seja, em patamar bem superior à média nacional, que em 2000

correspondia a 333,49 (COSTA; PONTES, 2010).

Em contrapartida, a região Sudeste apresentou os melhores dados de

cobertura e acesso à rede de saneamento, fato que reflete sobremaneira nas taxas de

internações por doenças oriundas pela falta de saneamento básico. A região tem o

menor índice de internações do país, alcançando a proporção de 145,55 internações

por 100.000 habitantes (FUNASA 2010).

O mapeamento da Pesquisa do IBGE acima, pois, em relação ao esgotamento

sanitário é bem elucidativo da diferença regional na prestação do serviço.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

2.1. Análise da desigualdade no saneamento: municípios brasileiros

O Ranking do Saneamento de 2018, publicado pelo Instituto Trata Brasil,

corrobora com as observações realizadas no presente estudo. Os dados que

compõem o Ranking são retirados do Sistema Nacional de Informações sobre

Saneamento (SNIS), cujas informações são fornecidas pelas operadoras de

saneamento presentes nos Municípios brasileiros e considera os 100 maiores

municípios brasileiros em termos de população.

As informações compiladas pelo Ministério das Cidades possuem dois anos

de defasagem, de maneira que os dados utilizados no Ranking de 2018 são

referentes ao ano de 2016. Entre as variáveis estudadas estão população,

fornecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, investimentos e perdas de

água. Os dados do SNIS 2016 foram consultados para os cem maiores municípios

brasileiros em termos de habitantes no ano de 2017.

Da análise das cem maiores cidades brasileiras, tomaremos os dados das dez

cidades que tiveram as melhores avaliações no Ranking e das dez com as piores

avaliações, conforme a tabela a seguir.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

T ABELA 2: RANKING DO SANEAMENTO BÁSICO 2018, DEZ MUNICÍPIOS COM OS MELHORES E PIORES ÍNDICES .

Dentre os dez municípios com melhores índices de saneamento básico, sete

são da região Sudeste (Franca, Uberlândia, Limeira, São José dos Campos, Taubaté,

São José do Rio Preto e Uberaba), dois da região Sul (Cascavel e Maringá) e apenas

um da região Nordeste (Vitória da Conquista-BA). De outro lado, dentre os

municípios mais populosos que figuram com as piores pontuações no Ranking, seis

são da região Norte (Macapá, Manaus, Santarém, Belém, Ananindeua e Porto

Velho), três da região Sudeste, com destaque para o fato de que todos se localizam

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

no Rio de Janeiro (Duque de Caxias, Nova Iguaçú e São Gonçalo) e apenas um é da

região Sul (OLIVEIRA; SCAZUFCA; PIRES, 2018).

Tais dados confirmam a situação de maior vulnerabilidade dos municípios

da região Norte em termos de saneamento básico.

Em pesquisa mais recente do IBGE, Informações Básicas Municipais (Munic)

2017, houve relato de 34,7% dos 5.570 municípios brasileiros relataram casos de

endemia ou de epidemia de doenças relacionadas a condições deficientes

de saneamento básico (IBGE, 2018).

Diarreia e verminoses são duas das doenças citadas com maior frequência

pelos municípios. “Suas causas são diversas e, normalmente, associadas à ingestão

de ou contato com água e alimentos contaminados. Elas estão, portanto, fortemente

vinculadas às condições de saneamento básico” (IBGE, 2018, p. 27). A doença mais

citada pelos Municípios foi a dengue. Mais de mil e quinhentos reportaram a

ocorrência de endemias ou epidemias de dengue que, a par da zika e da chikungunya,

cujos primeiros casos surgiram no Brasil em 2015 e 2014, respectivamente, são

transmitidas pelo Aedes aegypti, cuja reprodução se dá em água parada. Tais doenças

estão, portanto, fortemente associadas aos serviços de saneamento.

A oferta irregular de água, por exemplo, resulta em que as pessoas


tenham que estocá-la em reservatórios, os quais, muitas vezes,
servem de local de reprodução dos mosquitos. O acúmulo de lixo
nos domicílios e nas ruas, decorrente da coleta irregular, favorece,
por sua vez, o acúmulo das águas das chuvas, sendo outro fator de
risco (IBGE, 2018, p. 27).

Nesse aspecto, interessante notar que o IBGE também mediu a constância do

serviço de água, dividindo por regiões. Um grupo de 2.319 Municípios (41,8% dos

Municípios com serviço de abastecimento de água) registrou intermitência ou

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

racionamento no abastecimento nos últimos 12 meses que antecederam a pesquisa.

Essa quantidade de Municípios equivale a 49,2% da população brasileira estimada

em 2017 (IBGE, 2020).

A ocorrência de intermitência ou racionamento demonstrou grande variação

regional também em 2017, alcançando extremos de 65,7% na Região Nordeste e

21,9% na Região Sul (IBGE, 2020). A maior discrepância é a da região Nordeste, em

que dos 1.794 Municípios, incríveis 1.169 relataram ineficiência no abastecimento de

água. Nos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas

e Sergipe, mais de 60% dos seus Municípios informaram intermitência ou

racionamento no abastecimento de água. Nesse grupo, com exceção da Paraíba, na

maioria dos Municípios a intermitência ou racionamento era de forma irregular. Na

Paraíba, a ineficiência do serviço é constante, independente da época do ano (IBGE,

2020, p. 26).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Deste modo, não restam dúvidas do papel preponderante que o acesso ao

saneamento causa na distribuição de igualdade perseguida pela Constituição

Federal. Regiões que historicamente foram esquecidas pelas gestões políticas do

país continuam a sofrer os impactos da ineficiência ou mesmo inexistência de

políticas públicas relacionadas a um saneamento básico de qualidade. Assim, a

população desses locais é atingida diretamente por doenças e infecções advindas da

falta de tratamento de água e esgoto, sem que lhes seja dada a garantia de

prevenção, violando diversas previsões constitucionais, a exemplo do art. 196 que

dispõe ser a saúde direito de todos, sendo dever do Estado gerir políticas sociais e

econômicas que visem à redução do risco de doenças.

Ocorre ainda que a saúde pública do país, já afligida há muitos anos por

doenças como hepatite, leptospirose, esquistossomose, diarreia e outras infecções

(COSTA; PONTES, 2010), em 2020, encontra mais um novo vilão: o coronavírus. A

questão que se discute é o fato desse vírus ser ainda extremamente desconhecido e

“democraticamente” distribuído em todo país. Enquanto as demais doenças e

infecções são mais incidentes em diferentes épocas e regiões, a COVID-19 tem

atingido a toda população brasileira no mesmo “espaço e tempo”. Assim,

considerando a ausência de uma vacina que seja capaz de erradicá-la, a única

solução encontrada até o momento é prevenção do contágio.

Essa prevenção se encontra diretamente associada a medidas básicas de

higienização, (OMS, 2020). Assim, é necessário se discutir como é possível grupos

sociais historicamente vulneráveis tenham acesso a medidas de proteção sem que

haja uma estrutura sanitária eficaz.

A resposta para tal advém de diversos fatores e é bastante complexa, mas a

existência do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, sancionado em junho

de 2020, talvez seja o inicio para a resolução do problema, como se verá em seguida.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

3. O NOVO MARCO DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL

O processo legislativo do Novo Marco do Saneamento Básico se encerrou no

meio da pandemia de Coronavírus. Ironicamente, os avanços no setor poderiam

prevenir o avanço do surto, se viessem a tempo. Resta-nos colaborar pela

concretização dos objetivos de minorar a catástrofe, que certamente modificará a

própria visão da importância das medidas sanitárias na cultura e política brasileiras.

O conhecimento do novo Marco, para isso, é fundamental.

Embora o déficit alinhavado acima, certamente causado pela ineficiência de

políticas federais e estaduais anteriores, há a finalidade do atual governo brasileiro

de cumprir a universalização do acesso a água e saneamento, diante do Objetivo de

Desenvolvimento Sustentável 6 da Agenda 2030, plano de ação organizado pelas

Nações Unidas.

No plano federal, pesquisas apontam que os investimentos das últimas

décadas não dialogaram com o perfil dos déficits dos serviços, muito pela

“persistência do patrimonialismo, de ações pautadas em uma abordagem tecno-

burocrática, as fragilidades do aparato estatal e a sua permeabilidade à corrupção”

(BORJA, 2014).

A competência na matéria é controversa, haja vista a presença de marcos

estaduais em apenas cinco Estados da Federação e o ajuizamento das ADINs nº

2.077 e nº 1.842 contra leis estaduais que tentaram regular o tema (GALVÃO

JÚNIOR, 2009). Os marcos estaduais são antigos: São Paulo foi o primeiro a criar

uma política estadual, em 1992; seguido por Minas Gerais (1994), Rio Grande do Sul

(2003), Rio Grande do Norte e Goiás (2004).

A Lei n. 11.445/2007 acabou com um longo período de indefinição do marco

legal, inaugurando uma nova fase, porém, se de um lado há controvérsia

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

constitucional sobre o exercício de tal competência, por outro, como já ficou

demonstrado alhures, decididamente os marcos não surtiram os efeitos desejados.

Em 2017 o país teve prejuízo de R$ 11 bilhões na seara do abastecimento de

água. Por isso, o Novo Marco Legal do Saneamento Básico, recentemente aprovado

pela Lei nº 14.026/2020, apostou na universalização de vários serviços correlatos ao

tratamento de esgoto. É necessário lembrar que a universalização do acesso não se

limita à instituição de regras sobre verbas, técnicas e políticas públicas, mas envolve

alteração na própria fundamentação da atividade estatal: são questões que passam

pela redefinição do papel do Estado, por políticas de redistribuição de renda, e

inclusive por mudança na forma de se compreender e fazer saúde pública

(GALVÃO JÚNIOR, 2009).

Verifica-se que o Novo Marco tentou acompanhar esse raciocínio, o que se

espera demonstrar com a seguida exposição de suas principais medidas. A tarefa é

hercúlea: viabilizar a universalização dos serviços até 31/12/2033, objetivando

atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com

coleta e tratamento de esgoto (artigos 10-B e 11-B, Lei nº 11.445/2007).

Para tanto, lança mão da uniformização da atividade regulatória e da

formulação de políticas públicas em diversas áreas (saneamento, fornecimento de

água tratada, destinação adequada de resíduos sólidos), de forma a aumentar a

competição, obrigando-se os entes federados em abrir licitação (artigo 3º, I, Lei nº

11.445/2007).

Para a busca da universalização, devem ser buscadas alternativas (por

exemplo, prestação direta, licitação complementar ou aditamento dos contratos já

licitados). Mas a regra é a celebração de contratos de concessão a serem firmados

após licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, “vedada a sua

disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

instrumentos de natureza precária.” (art. 10 da Lei nº 11.445/2007, com nova redação

da Lei nº 14.026/2020).

Seguindo a observação da pesquisa de Arretche (2004), de que diante do

expressivo volume de recursos necessários, o número de estados e municípios

capazes de implementar políticas efetivas de saneamento, sem aportes federais é

bastante reduzido, outra mudança prevista na Lei se refere ao atendimento a

pequenos municípios.

Pelo regime anterior, dependiam da expansão dos serviços prestados a

cidades maiores já atendidas. Agora, devem compor “blocos de municípios” (“bloco

de referência: agrupamento de Municípios não necessariamente limítrofes,

estabelecido pela União nos termos do § 3º do art. 52 e formalmente criado por meio

de gestão associada voluntária dos titulares”). Sobre o tema, a União se atentará ao

problema, conforme o art. 50, pelo qual serão priorizados os investimentos de

capital que viabilizem a prestação de serviços regionalizada, por meio de blocos

regionais, quando não houver sustentabilidade econômico-financeira.

A Nova Lei assentou que tala atividade regulatória será exercida pela

Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), com novo nome, para

realçar a sua nova atribuição regulatória: editar normas de referência, com

diretrizes, para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico no Brasil.

O Novo Marco alterou substancialmente a Lei de instituição da ANA, nº

9.984/2000 exigindo que a regulação promova: a prestação adequada dos serviços,

com atendimento pleno aos usuários, observados os princípios da regularidade, da

continuidade, da eficiência, da segurança, da atualidade, da generalidade, da

cortesia, da modicidade tarifária, da utilização racional dos recursos hídricos e da

universalização dos serviços; a livre concorrência e a sustentabilidade econômica na

prestação dos serviços; a cooperação dos entes federados; a adoção de métodos e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

técnicas atentos às peculiaridades locais; a regionalização dos serviços; a eficiência

nos custos administrativos; e a garantia da prestação concomitante dos serviços de

abastecimento de água e de esgotamento sanitário (4º-A, § 3º, da Lei nº 9.984/2000).

O Novo Marco também criou um novo órgão colegiado responsável pela

concretização das políticas federais de saneamento (art. 53-A), o Comitê

Interministerial de Saneamento Básico (CISB) e um novo plano Nacional do setor

(art. 52), com perspectiva de 20 anos, devendo avaliar anualmente e revisar a cada

quatro anos.

Interessante mencionar, de outro lado, que Marco Legal igualmente

assegurou o controle social direcionado a acompanhar as políticas públicas e a

prestação de serviços de saneamento, a regulamentação da ANA, a participação em

órgãos colegiados nacionais de caráter consultivo e o acesso às informações do

Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa) (arts. 47 e 53, § 1º,

ambos da Lei nº 11.445/2007).

Como o Novo Marco, o governo federal espera realizar a universalização dos

serviços até 2033, a qual pode reduzir em até R$ 1,45 bilhão os custos anuais com

saúde, segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (NOVO MARCO...,

online) e, talvez, impactar positivamente na prevenção e repressão a pandemias,

como a de Coronavírus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não restam dúvidas de que o direito ao saneamento básico está

intrinsicamente ligado à promoção da dignidade humana. Este direito, cuja

implementação e desenvolvimento demorou décadas para ser estabelecido, ainda

demonstra estrutura bastante deficitária. Ocorre que o Estado, não bastasse sua

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

atuação paulatina enquanto elaborador de políticas públicas para concretização de

direitos sociais – como é o caso da saúde – encontra mais um desafio frente à

pandemia causada pelo Covid-19, evidenciando, decerto, que o seu combate e

enfrentamento poderia ser facilitado, caso existisse um sistema de saneamento

básico efetivo no Brasil.

Restou demonstrado que aspectos do saneamento básico, como o acesso a

abastecimento de água e esgotamento sanitário, encontram-se diretamente

relacionados à prevenção de doenças endêmicas, o que evidencia a sua natureza de

política de saúde pública que vem sendo infelizmente negligenciada pelo governo

baiano e de outros Estados, mesmo no momento atual de pandemia. E o Judiciário,

instado, não consegue efetivar qualquer alteração.

A pandemia causada pelo novo Coronavírus (COVID-19) trouxe ao Brasil a

oportunidade de reflexões sobre os efeitos danosos da ausência ou ineficiência na

prestação de serviços públicos essenciais à população, notadamente os referentes à

Saúde Pública, de modo preventivo e repressivo. Dois desses serviços preventivos

são o acesso a água tratada e ao saneamento básico. Da mesma forma, a pandemia

evidenciou diferentes e expressivas formas de desigualdades regionais e municipais

causadas pela existência de políticas públicas ineficazes para implementação e

universalização do acesso ao saneamento básico.

Evidenciou-se que o déficit de saneamento básico é um problema nacional

diante do parco investimento desde o século passado; que o déficit revela uma forte

desigualdade regional e que, atualmente, tal déficit impacta sobremaneira a tomada

de medidas de prevenção contra o Coronavírus, recomendadas pela Organização

Mundial de Saúde (OMS), já que são quase impassíveis de adoção por boa parte da

população do Brasil.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Verificou-se que o grau de acesso e a qualidade dos sistemas de saneamento

nas diferentes regiões brasileiras demonstra de logo uma acachapante desigualdade

regional em relação à existência e qualidade dos serviços, tão essenciais como

medida de saúde pública. De outro lado, os estados brasileiros com melhores

indicadores de saúde – menores taxas de mortalidade e morbidade por doenças

associadas à poluição hídrica – situam-se entre aqueles que apresentam os maiores

índices de cobertura por rede de abastecimento de água, ou seja, abastecimento de

água superior a 60% da população residente no estado (TEIXEIRA et al, 2011, p. 203;

LIBÂNIO, CHERNICHARO E NASCIMENTO (2005).

Enquanto as regiões Sul e Sudeste são cobertas com 65,1% e 88,6%,

respectivamente, as regiões Centro-oeste, Nordeste e Norte do país mantinham o

percentual de 53,2%, 42,9% e 22,6% – nesta ordem –, estando essas últimas, pois,

bem abaixo da média nacional que correspondia a 65,3% de cobertura (ABES, 2017).

Sobremaneira, constatou-se que as regiões Norte e Nordeste lideram o ranking

nacional no que tange aos domicílios que não possuem nenhuma forma de

esgotamento sanitário.

Ao indagar se um estágio mais avançado de saneamento poderia beneficiar os

brasileiros de maneira preventiva em relação a epidemias, e como o investimento

em referida estrutura concretiza o direito social à saúde perseguido pela

Constituição Federal, a análise dos dados e estatísticas relacionados à cobertura e

acesso ao sistema de saneamento básico nas esferas regionais e municipais do país,

evidenciou, pois, uma possível resposta afirmativa.

Diante da implementação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico

(promulgação da Lei 14.026/2020), envida-se por viabilizar a universalização dos

serviços de saneamento até 31/12/2033, objetivando atendimento de 99% da

população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

esgoto. Fato que oportuniza, portanto, a efetivação de direitos fundamentais, como

é o caso da saúde.

Ao analisar as novas ferramentas a fim de renovar as esperanças a nível

nacional para a resolução do déficit causado pela ineficiência de políticas federais e

estaduais anteriores, conclui-se que o déficit do saneamento básico e a grande

desigualdade regional de acesso e qualidade impactam negativamente os efeitos da

pandemia de COVID-19 no Brasil e os investimentos e ferramentas do novo Sistema

encontram um grande desafio para prevenir epidemias e garantir mais efetividade

no direito à Saúde.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

DIREITO DE IMAGEM E DIREITOS AUTORAIS: REFLEXÕES

SOBRE O ENSINO À DISTÂNCIA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Marlene de Paula Pereira14


Mateus Rodrigues Coutinho15
Sara Elizabeth da Silveira 16

Palavras chave: Direitos Autorais; Ensino à Distância; Pandemia.

Com frequência tratada com preconceito, a modalidade de ensino à distância

ganhou destaque na atualidade, em que parte do mundo vivencia a pandemia do

COVID 19. Nesse período de isolamento social, o ensino à distância apresenta-se

como a alternativa possível para dar continuidade dos estudos.

Uma das características mais criticadas da educação à distância (EAD), é o fato

de não haver contato direto entre professor e aluno, o que poderia comprometer o

resultado pela falta de vínculo. Entretanto, nesse período de pandemia, em que o

país quase inteiro está em quarentena o distanciamento torna-se elemento essencial.

Tendo sido esta, de fato, a opção de muitas instituições de ensino, públicas e

privadas em diversos níveis, surgiu, então, um novo desafio para professores e

alunos acostumados com o dia a dia da sala de aula. A nova dinâmica propõe que

os professores gravem vídeos destinados aos alunos, postem materiais na

plataforma, postem links para outros vídeos, etc. Por outro lado, o aluno mesmo

estando em casa, vale-se de tais ferramentas para poder acompanhar os conteúdos.

14
Professora de Direito do IF Sudeste MG. Bacharela e mestre em Direito, doutora em Extensão Rural,
Marlene.pereira@ifsudestemg.edu.br; http://lattes.cnpq.br/4377280817505517
15
Estudante de Direito do IFSudesteMG, coutinho.ifrp@gmail.com; http://lattes.cnpq.br/0642090291878341.
16
Estudante de Direito do IFSudesteMG, sarasilveirasss4@gmail.com;
http://lattes.cnpq.br/4210246030249641.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os diálogos entre professor e aluno são virtuais, e, nesse contexto, várias

ferramentas de comunicação apareceram. Se antes, pais e professores reclamavam

que a internet servia para promover o distanciamento entre os próximos, nesse

momento de pandemia, ela tem servido para aproximar os distantes. Cada um em

sua casa tentando dar seguimento ao processo de ensino-aprendizagem.

É inegável que a sociedade não estava preparada para tamanho desafio.

Constatou-se o despreparo tanto dos profissionais, quanto dos estudantes, em

relação aos conhecimentos técnicos para o desenvolvimento da atividade, bem

como ao acesso aos recursos, sejam estes equipamentos ou outros como internet de

qualidade. Muitas dúvidas e questionamentos surgiram nesse período, relativas ao

dilema que se impôs de ter que continuar o ensino, sem agravar a situação de

exclusão.

Outra questão que emerge, nesse cenário, é relativa ao Direito envolvido nesses

processos de gravações e acessos de materiais on line. Há Direito em meio a isto

tudo, ou não existe direito achado na web? Este artigo pretende refletir a respeito

dos impasses jurídicos visualizados nesse contexto, referentes, principalmente, aos

direitos autorais e direito à voz e imagem das pessoas envolvidas nestas ações,

sejam professores, que estejam elaborando os materiais, mas também outras pessoas

citadas, mencionadas, mostradas nas gravações.

A metodologia adotada para este estudo foi a revisão bibliográfica realizada por

meio de bancos de artigos científicos disponíveis na internet. Outrossim, foram

utilizados bancos de dados secundários a respeito das estatísticas relacionadas à

EAD no Brasil.

O artigo está dividido em três partes. Na primeira, será feita uma abordagem a

respeito da Educação à Distância (EAD) no Brasil, enfatizando-se o panorama dessa

modalidade de ensino no contexto da pandemia. Logo após, será feita uma

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

abordagem legislativa sobre o tema, apresentando as principais regulamentações

sobre o assunto. E, por fim, será proposta uma discussão a respeito da efetividade

da legislação existente em face do atual contexto, considerando inclusive a função

social envolvida em todo esse processo.

1 DO DISTANCIAMENTO À APROXIMAÇÃO: O ENSINO À DISTÂNCIA

COMO ALTERNATIVA VIÁVEL DE CONTINUIDADE

Para se compreender como o Ensino a Distância (EAD) chegou e foi incorporado

no Brasil, é necessário estruturar um panorama histórico que vai da sua origem até

seu desenvolvimento.

Segundo Barros (2003), as primeiras análises sobre o EAD remontam ao século

XVIII, onde se iniciou um curso por correspondência pela instituição de Boston

(EUA). Dada essa ocasião, iniciasse seu processo de evolução. Cabe ressaltar que,

há alguns autores os quais indicam o surgimento do EAD em outros cenários,

dentre eles, Alves (1994) que demarca o surgimento na Alemanha, no século XV,

com o advento da imprensa de Gutenberg, e, ainda, Moore (2008), segundo o qual

a EAD evoluiu através do tempo em diferentes etapas.

Os primeiros contatos com o EAD ainda no século XIX, concentram-se em maior

parte, na Europa. Seguindo a ideia de cursos via correspondência, em países como

Suécia, Reino Unido e Espanha. No início do século XX, essa concepção se difunde

a mais lugares, entretanto, o EAD só se consolida na segunda metade do século XX,

onde se torna uma importante e viável modalidade de ensino.

Um marco de grande importância para a estruturação do EAD, ocorreu em 1969,

na Inglaterra com a abertura da British Open University. Sendo a pioneira nesse

assunto, ela influenciou vários outros lugares por todo o mundo.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

No Brasil, essa modalidade foi implementada a partir do início do século XX.

Período marcado por um processo de industrialização que geravam demandas

políticas educacionais as quais capacitassem o trabalhador fabril. Nesse cenário, a

Educação a Distância se torna uma alternativa para suprir essa demanda.

Até os anos 50, a EAD era feita via experiências radiofônicas, porém, com o

surgimento da televisão essa prática passou de rádio para televisões. Prática

denominada “televisões educativas”.

Na década de 70, ela foi utilizada para capacitação de professores e nos anos

seguintes ela foi se consolidando aos poucos, por meio de vários contextos

diferentes. O período de maior crescimento dessa modalidade se dá entre 2008 a

2018, em cursos tecnológicos e de licenciatura. O quadro abaixo mostra esta

evolução.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Segundo Barros (2003), inúmeras foram as revoluções as quais o mundo passou.

Como a Revolução Francesa e a Industrial, hodiernamente vive-se a revolução das

tecnologias, com ênfase na tecnologia de informação. Esse cenário reflete

exponencialmente na educação.

Mesmo enfrentando um estigma de ensino de baixa qualidade, ineficiente e

inadequado, a EAD atualmente se tornou uma grande aliada da humanidade na

luta contra o COVID-19. Para tanto, é importante entender como se deu essa

passagem do preconceito ao protagonismo.

No atual cenário vivenciado, a EAD tem se apresentado como um meio

alternativo para dar continuidade ao ensino, ou mesmo para melhorar o currículo,

na perspectiva dos muitos cursos livres que foram disponibilizados por instituições

diversas. Esse modelo educacional tem por características dois importantes

elementos, os quais neste momento, a tem colocado em condição de protagonista.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Esses precursores são a flexibilidade de horários e possibilidade de unir várias

pessoas distantes de si, em só lugar.

Por causa disso e da necessidade de cumprir o cronograma escolar, muitas

instituições vêm adotando essa medida como forma de manter o ciclo de ensino dos

alunos e continuar o planejamento educacional. Nesse viés, cada vez mais, o EAD

tem ganhado espaço no ambiente de ensino-aprendizagem, cabendo alguns

questionamentos como aqueles relacionados os direitos envolvidos no processo de

produção e disponibilização de conteúdos didáticos.

O DIREITO E A EAD: O QUE DIZ A LEI SOBRE O ASSUNTO?

Não há mais dúvida de que a internet definitivamente não é uma terra sem lei.

Nos últimos tempos, muitas normas foram criadas com a finalidade de proteger os

dados, garantir a segurança da informação, responsabilizar os usuários por

postagens preconceituosas, entre outros. Na contemporaneidade, a internet é uma

terra de muitas leis.

Sendo a EAD uma modalidade de ensino que se desenvolve quase

exclusivamente pela internet, quais são as leis que a regulamentam? Em relação aos

direitos autorais envolvidos, existem regulamentações próprias ou aplicam-se leis

gerais? Esta é a discussão que se apresenta nesta sessão.

A oferta de cursos a distância já estava prevista no Art. 80 da Lei de Diretrizes e

Bases da Educação (LDB), nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, pelo Decreto nº

5.622, de 19 de dezembro de 2005, e, passou pela última atualização pelo Decreto Nº

9.057/2017. Este último favoreceu a ampliação da oferta de curso permitindo a

criação de polos de EAD pelas próprias instituições e o credenciamento de

instituições na modalidade EAD, sem exigir o credenciamento prévio para a oferta

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

presencial. O objetivo do Ministério da Educação (MEC) com este último decreto foi

ampliar a oferta de ensino superior no país para atingir a Meta 12 do Plano Nacional

de Educação (PNE), a qual exige elevar a taxa bruta de matrícula na educação

superior para 50% e a taxa líquida em 33% da população de 18 e 24 anos (PORTAL

DO MEC, 2017).

A partir de então, a modalidade EAD tem crescido fortemente no país,

acompanhando o progresso dos meios tecnológicos e de comunicação. De acordo

com o Censo da Educação Superior realizado em 2015 pelo Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), há no país 1.473 mil cursos

superiores a distância ofertados cujo crescimento é de 10% ao ano, desde 2010.

Atualmente, são mais de 1,3 milhão de estudantes matriculados, com crescimento

de 50% entre os anos de 2010 e 2015 ( PORTAL DO MEC, 2017).

Embora exista regulamentação própria para esta modalidade de ensino, não

existe regulamentação específica referente aos direitos autorais pertinentes a este

modelo de educação. Isso se dá pela aplicabilidade as normas gerais de direito à

imagem e direitos do autor.

O Direito à imagem está previsto no Art. 5º da CF, incisos X e XXVIII. Ele

assegura à pessoa a faculdade de usar a própria imagem, dispor e reproduzir. Trata-

se de um direito da personalidade por se encontrar ligado ao indivíduo na condição

de ser, refletindo a expressão de sua existência.

Inicialmente, o conceito de imagem era analisado com base em aspectos

meramente visuais. A imagem era entendida como toda representação gráfica,

fotográfica, esculpida ou cinematográfica de uma pessoa. Posteriormente, em razão

do grande avanço tecnológico, o qual impactou diretamente o tratamento, a

captação e a divulgação da imagem, houve uma gradual ampliação dos bens por ele

protegidos. Compreendeu-se que a pessoa humana também construiria sua

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

imagem por meio de características pessoais, comportamentos e atitudes, elementos

também capazes de individualizá-la (TEFFÉ, 2016).

Assim, as disposições constitucionais a respeito do direito de imagem e voz das

pessoas aplicam-se normalmente à educação à distância. Dessa forma, quaisquer

tipos de utilização de tais conteúdos dependem de autorização, ou, que os

conteúdos utilizados tenham sido gravados com licenças que admitam o uso de

forma livre, como a “creative commons”.

Aplica-se ainda a regra geral a respeito dos direitos autorais, que possui previsão

na Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, garantindo ao autor os direitos morais e

patrimoniais sobre a obra. O direito moral é o direito vinculado à personalidade do

autor, é perpétuo, inalienável e irrenunciável, ou seja, não pode ser cedido,

transferido ou renunciado. É o direito que o autor tem de reivindicar, a qualquer

tempo, a autoria da obra e de ter seu nome vinculado à obra sempre que utilizada.

O direito patrimonial é o que se refere ao uso econômico da obra. Pode ser objeto

de transferência, cessão, venda, distribuição, diferentemente do direito moral

(ABRAMUS, 2020).

É importante diferenciar o direito à imagem do direito autoral. O direito à

imagem é uma extensão da personalidade física da pessoa, incluindo os traços

fisionômicos, atitudes, gestos. O direito autoral é o direito do autor de controlar o

uso o qual se faz de sua obra. A lei de direitos autorais dispõe que o autor poderá:

reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; conservá-la inédita; modificá-la

antes ou depois de utilizada; retirá-la de circulação ou suspender qualquer forma

de utilização já autorizada quando a circulação ou a utilização implicarem afronta

à sua reputação e imagem (Art. 24, Lei 9610/1998).

De acordo com esta lei, depende de autorização prévia e expressa do autor a

utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: I – a reprodução parcial

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ou integral; II – a edição; III – a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras

transformações; IV – a tradução para qualquer idioma; V – a inclusão em fonograma

ou produção audiovisual; V – a inclusão em obra audiovisual; VI – a distribuição,

quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou

exploração da obra. (Art. 29, Lei 9610/1998).

Assim tem-se que: todo conteúdo original produzido pertence ao autor. Autor é

uma pessoa física capaz de manifestar a ideia de alguma forma. Pessoas jurídicas

não podem ser autoras de materiais, mas podem ser detentoras dos direitos

autorais, se o autor lhe ceder os direitos patrimoniais (PREDEVELLO, ROSSI e

COSTA, 2015).

Desse modo, antes de utilizar qualquer conteúdo pré-existente, é importante

saber se estes estão em domínio público, possuem licença “creative commons” ou

outra, ou se há permissão para reprodução. Ainda que o conteúdo possua licença

que permita a reprodução, é indispensável mencionar o nome do autor original,

pois os direitos morais da obra são indisponíveis e irrenunciáveis.

No Brasil, a obra cai em domínio público quando completa 70 anos, contados a

partir do primeiro dia do ano seguinte ao da morte do autor (Art. 41, Lei 9610/1998)

O domínio público implica a extinção dos direitos patrimoniais do autor,

permitindo que a obra possa ser reproduzida, distribuída, traduzida, publicada ou

adaptada, sem a necessidade de autorização.

Mas o autor pode, a qualquer tempo, abrir mão dos direitos patrimoniais da

obra, gravando o material com uma licença “creative commons”, conforme a qual o

material pode ser acessado sem a necessidade de autorização. Existem vários tipos

de licenças “creative commons” e em cada uma delas variam as possibilidades

franqueadas pelo autor do material. Segundo Predevello, Rossi e Costa (2015) trata-

se de uma nova postura em relação ao domínio público e que está diretamente

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

conectada com o espírito da era da informação: utilizar o domínio público para

aumentar cada vez mais o acesso e o compartilhamento de informações de maneira

clara e legal.

A legislação permite ainda a citação de pequenos trechos, sem o intuito de lucro.

Não existe definição legal do que seja um pequeno trecho, mas de acordo com o

bom senso, considera-se que seja o mínimo possível. Paródias e dramatizações em

contexto familiar ou para fins didáticos, também são admitidas, desde que não

gerem descrédito à obra original.

A EAD é um modelo de ensino que utiliza a tecnologia multimídia. Vaughan

(1994) conceitua multimídia como o conjunto de textos, imagens, sons, animações,

interações e vídeos. Para ele, a finalidade da multimídia é transmitir uma mensagem

a um determinado público. Compreende-se que a necessidade multimídia da EAD

reflete uma defasagem nas previsões da lei de direitos autorais brasileira. Segundo

Vieira, Rodrigues e Barcia (2003, p.4) “um dos grandes desafios das mudanças

tecnológicas é compatibilizar os direitos morais e patrimoniais do autor e as novas

ferramentas e alternativas.”

Segundo Campello (2013), conhecer a Lei 9.610/98, Lei dos Direitos Autorais

(LDA) e aplicá-la passivamente não basta para a ampla utilização do conhecimento

disponível em prol da educação, é importante a reflexão a qual abre caminho para

a percepção de que a lei precisa ser revista. Campello (2013) destaca que deve-se

lutar por uma abertura dos direitos autorais, especificamente quando o uso das

informações for comprovadamente para objetivos educacionais, pois, estão

diretamente ligadas com a formação da sociedade e se afastam da simples e pura

obtenção do lucro. Para Gandelman (1997, p.152), “só a experiência e o tempo é que

indicarão os caminhos a seguir e fornecerão as molduras jurídicas atualizadas pela

nova cultura, no que se refere à proteção justa dos direitos autorais”.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Apesar disso, não se pode pressupor que, por haver defasagens ou inadequações

da lei de direitos autorais às necessidades da EAD, pode-se desconsiderar a

preocupação com o direito autoral. Blattmann (2001. p.91) afirma que, ao contrário

disso, “o uso educacional de determinada obra intelectual não significa dar respaldo

ao uso pirateado” (BLATTMANN; RADOS, 2001, p. 91).

Nessa instância, da mesma forma que a EAD amplia as oportunidades, amplia

também os riscos, pois, as chances de plágio e reproduções indevidas são maiores.

Como lidar com isto? Os professores de todo país, que estão ministrando aulas via

EAD neste momento de pandemia estão preparados para este desafio, ou deve

haver algum tipo de “abono” em razão da especialidade do momento?

3 REFLEXÕES SOBRE OS LIMITES E POSSIBILIDADES DA LEGISLAÇÃO EM

VIGOR

O momento enfatiza a necessidade de uma adaptação da legislação autoral à

nova realidade educacional e evidencia o despreparo e a desinformação que

permeia a sociedade. Nesse sentido, há uma relação à utilização de materiais

preexistentes, reproduções e disseminação de conteúdos próprios e alheios.

Nessa situação de pandemia muitos professores têm se deparado com dúvidas

quanto à possibilidade de utilização de um texto, uma música, um vídeo. Não

sabem se podem usar e o quanto podem usar de tais conteúdos. As mesmas dúvidas

possuem em relação aos conteúdos que tem produzido: se é dele ou da escola, se

precisa ser registrado, se poderá ser disseminado livremente.

Percebe-se, então, que existe pouco conhecimento sobre a Lei de Direitos

Autorais e este fator é responsável por grande parte do uso indevido, presente em

diversos contextos, mas de forma muito representativa no meio acadêmico.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Acredita-se que as necessidades as quais se impõem nesse momento de pandemia,

de produção de aulas e materiais didáticos, rapidamente e quase sem treinamento,

fará com que as reproduções indevidas aumentem ainda mais.

Obviamente, a preocupação aqui não é com a lesão aos direitos patrimoniais.

Embora este seja um ponto de grande relevância dentro dessa temática, pois em

razão das reproduções indevidas os verdadeiros autores deixam de ganhar valores

significativos, no momento específico, compreende-se que tais processos de

construção de videoaulas é uma necessidade para a manutenção do ensino, o que

se justifica por valores relevantes como do direito à educação e o direito à cultura.

A preocupação, portanto, é refletir a situação para além desta conjectura. Com

isso, trazer elementos os quais necessitam ser pensados no contexto da sociedade

enquanto receptora das leis, que passam a reger suas vidas, mas que nem sempre

são conhecidas e, na maioria das vezes, foram criadas sem nenhum tipo de

participação social.

SOARES (2007, p. 8) observa que se a pessoa humana é prioridade na ordem de

fundamento do Estado Brasileiro, esta necessita de condições para se desenvolver

de forma plena e um requisito essencial é conhecer e compreender minimamente os

seus direitos e deveres, o que neste caso pode se revelar uma verdadeira odisséia.

SOARES (2007, p. 8) defende que a aproximação entre legislador e cidadão pode

propiciar processos de produção do Direito em que haja mais persuasão e menos

coerção. Segundo ela, se o processo for participativo, a negociação do conteúdo

pode gerar uma co responsabilidade pela efetivação desse conteúdo porque os

participantes colaboraram com suas representações de mundo.

Os direitos autorais são elementos essenciais dentro do processo educacional,

embora ainda pouco trabalhados de forma efetiva para a sociedade como um todo.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Basicamente é trabalho em uma disciplina em cursos de graduação. Então

compreende-se porque tal lei é tão violada.

O momento alerta para a necessidade de atualizar a legislação para atender a

um novo padrão de ensino, cada vez mais crescente na sociedade, e, nesse contexto,

ouvir os principais grupos envolvidos e fazer com que seus anseios estejam

representados no texto da lei é fundamental para legitimá-la. Após isto, é necessário

torná-la acessível, informando aos diversos grupos interessados os principais

aspectos para assegurar o direito dos cidadãos de utilizarem as mídias como aliadas

no processo educacional, ampliando a cultura e favorecendo o desenvolvimento

humano.

4 CONCLUSÕES

A pandemia COVID 19 trouxe em seu bojo diversos desafios. Além de cuidados

para evitar a contaminação, foi necessário adaptar a rotina familiar, de trabalho,

escolar. O Direito, enquanto ciência dinâmica em constante processo de

transformação, também vai precisar adaptar-se às necessidades do momento.

No que se refere à proteção do direito de imagem e direitos autorais, discutidos

neste trabalho, a atual circunstância evidenciou a necessidade de atualização e

adaptação da lei de direitos autorais. Assim, para que possa atender a necessidade

e dinâmica do estudo à distância, que cresce a cada dia.

A legislação em vigor encontra limitações quando considerado que o ensino na

modalidade à distância depende não apenas de citações de textos, mas do uso de

diversas mídias interativas. Logo, requer uma maior flexibilidade das normas

autorais relativas aos conteúdos utilizados.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Não se defende aqui a utilização livre e desrespeitosa ao direito do autor, ao

contrário, acredita-se que o ambiente educacional deve pautar-se pela valorização

do trabalho intelectual desenvolvido, respeitando sempre as normas de citações e

protocolos de utilização e reprodução de conteúdos pré-existentes. Apenas, coloca-

se em pauta uma necessidade de adaptação das normas às necessidades

contemporâneas.

Tão importante quanto esta adaptação, é importante também haver uma

democratização desta lei, no sentido de torná-la acessível e compreensível nos

diversos âmbitos em que ela se faz importante, especialmente o acadêmico. Não se

desconsidera que parte das reproduções indevidas deve-se à má-fé, preguiça de

procurar ou de fazer certo, dentre outros fatores. Entretanto, acredita-se, que quanto

mais a lei sair da redoma jurídica e chegar aos seus destinatários, mais chances de

sucesso e de alcance de suas finalidades haverá.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CÁRCERE E PANDEMIA: AÇÕES E OMISSÕES DOS ESTADOS E

DO GOVERNO FEDERAL

Crislaine Matos Santos17


Letícia Rocha Santos18
Renata Santos da Cruz19

RESUMO
A presente pesquisa tem o objetivo de analisar as ações adotadas pelo Governo Federal e
pelos estados como forma de conter a disseminação da COVID-19. Justifica-se pela
necessidade de observar a forma como o poder público lida com o sistema prisional neste
período de pandemia, considerando que a atenção à saúde das pessoas encarceradas já era
falha antes disto, o que as torna mais suscetíveis a doenças. Para tanto, foi realizada
pesquisa bibliográfica e documental, com análise de relatórios recentes acerca do tema,
disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional e pela Pastoral Carcerária
Nacional. O desenvolvimento foi dividido em três tópicos. No primeiro, foi tratada a
situação do sistema prisional brasileiro, a partir de discussões teóricas sobre necropolítica
e encarceramento em massa e também através de dados recentes sobre o assunto. No
segundo tópico, foram identificadas as medidas propostas por cada estado em relação à
pandemia do coronavírus no sistema prisional, incluindo as que não foram efetivadas. Por
fim, no terceiro tópico do desenvolvimento foram identificadas as medidas que foram
efetivadas, observando a situação de cada estado. A partir dos dados analisados e das
reflexões realizadas, concluiu-se que as medidas da OMS são incompatíveis, e impossíveis
de serem aplicadas dentro do cárcere brasileiro.

Palavras-chave: Pandemia; Cárcere; Medidas preventivas; Desencarceramento.

ABSTRACT
This research aims to analyze the actions taken by the Federal Government and by the states
as a way to contain the spread of COVID-19. It is justified by the need to observe the way
in which the public authorities deal with the prison system in this pandemic period,
considering that the health care of incarcerated people was already flawed before this,
which makes them more susceptible to diseases. To this end, bibliographic and
documentary research was carried out, with analysis of recent reports on the topic, made
available by the National Penitentiary Department and by the National Prison Ministry.

17
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe.
18
Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes. Graduada em Direito pela Universidade
Tiradentes.
19
Graduanda em Direito pela Faculdade Estácio Fase.

124
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

The development was divided into three topics. In the first, the situation of the Brazilian
prison system was dealt with, based on theoretical discussions about necropolitics and
mass incarceration and also through recent data on the subject. In the second topic, the
measures proposed by each state in relation to the coronavirus pandemic in the prison
system were identified, including those that were not implemented. Finally, in the third
development topic, the measures that were implemented were identified, observing the
situation of each state. From the data analyzed and the reflections made, it was concluded
that the measures are incompatible, and impossible to be applied within the Brazilian
prison.

Key-Words: Pandemic; Prison; Preventive measures; Release.

INTRODUÇÃO

O sistema carcerário é falho e desumano, desde sua criação, com a ineficiente

política de encarceramento, até a própria estruturação dos presídios. Colocadas à

margem da sociedade, as vidas dos detentos não são alvo de preocupação social.

Isso é comprovado pela superpopulação carcerária, escassez de materiais de

limpeza e racionamento de água. No entanto, foi com a chegada do novo

coronavírus que a estrutura precária do sistema penitenciário brasileiro ficou ainda

mais exposta.

A Organização Mundial de Saúde, diante dessa pandemia, apresentou uma

série de medidas para evitar a propagação do vírus em todo o mundo como, por

exemplo, manter um distanciamento social de no mínimo dois metros, fazer

higienização adequada e procurar manter a imunidade alta para que doenças

oportunistas não se instalem.

Considerando as dificuldades enfrentadas para o cumprimento dessas

medidas no contexto do sistema prisional, é importante pensar quais são as

alternativas mais viáveis para o enfrentamento da proliferação desse vírus. Além

dos obstáculos físicos, outro fator agrava a situação: as precárias condições dos

125
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

presídios que influenciam na diminuição da imunidade dos internos, elevando os

riscos de contaminação - tanto dentro como fora das prisões, levando em conta o

contingente de profissionais que trabalham lá e, também, os familiares.

Assim, o presente estudo busca responder a seguinte pergunta de pesquisa:

quais as medidas adotadas pelo Governo Federal e pelos estados brasileiros para

combater a COVID-19 nos presídios? Para responder a essa pergunta de pesquisa,

inicialmente foi realizada revisão bibliográfica, utilizando teóricos que tratam sobre

políticas de encarceramento e as prisões em si. Ademais, foram realizadas análises

quantitativas de dados disponibilizados por órgãos oficiais e outras entidades

reconhecidas no âmbito da sociedade civil, com destaque para o Departamento

Penitenciário Nacional e a Pastoral Carcerária Nacional.

O objetivo geral deste trabalho é analisar as ações adotadas pelo Governo

Federal e pelos estados como forma de conter a disseminação da COVID-19. De

forma específica, a presente pesquisa se propõe a examinar a estrutura do sistema

prisional brasileiro, além de identificar as medidas que têm sido propostas e

efetivadas pelo Estado e, por fim, analisar a possibilidade de aplicação das medidas

sugeridas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no contexto do sistema

carcerário brasileiro.

1 UM PONTO DE VISTA SITUADO: A SITUAÇÃO DO SISTEMA PRISIONAL

BRASILEIRO

Para que seja possível compreender as reflexões oriundas desta pesquisa, é

necessário delimitar quais foram os referenciais teóricos utilizados. Tem-se como

ponto de partida o conceito proposto por Foucault em Vigiar e Punir, que define

prisão na esfera social como “[...] o local onde o poder de punir, que não ousa mais

126
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

se exercer com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de

objetividade em que castigo poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a

sentença se inscrever entre os discursos do saber.” (FOUCAULT, 2002, p. 214).

Para explicar como as prisões são, além de depósito de problemas sociais

que o Estado não quer lidar, sistemas que têm como objetivo o lucro, frente às vidas

negras e pobres, utiliza-se o conceito de “Complexo industrial-prisional” da filósofa

Angela Davis, segundo a qual

O complexo industrial prisional é alimentado por padrões de


privatização que, vale lembrar, também transformaram
drasticamente os serviços de saúde, a educação e outras áreas de
nossas vidas. Além disso, as tendências de privatização da prisão -
tanto a crescente presença de corporações na economia prisional
quanto a abertura de prisões privadas - lembram os esforços
históricos para criar uma indústria de punição lucrativa baseada no
novo suprimento de trabalhadores negros “livres”. (DAVIS, 2018,
p. 101).

O Brasil possui uma população carcerária de 773.151 presos, sendo 61,7%

composta por pretos e pardos, ocupando assim a terceira colocação no ranking dos

países que mais encarceram no mundo, de acordo com o INFOPEN (2020). Esse fato

revela o que a pesquisadora Juliana Borges chama de “Encarceramento em massa”,

conceituação que trata sobre o encarceramento massivo dos negros, sobretudo em

comparação aos brancos (BORGES, 2018).

Além do encarceramento excessivo, observa-se ainda, um descaso com os

direitos das vidas privadas de liberdade, já que apenas 0,2% dos detentos foram

testados para COVID-19, segundo a Pastoral Carcerária (2020). Tal fato, somado às

subnotificações das Secretarias Estaduais já mencionado pelo jornal Ponte (SILVIA,

2020, pt. 1) e também pela Intercept Brasil (AUDI et al. 2020 p.1), demonstra que as

127
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

vidas que deveriam ser responsabilidade do Estado não são, necessariamente,

protegidas por ele.

Diante do exposto, fica evidente quais são os corpos que compõem a malha

carcerária do Brasil. Essa situação pode também ser observada a partir do conceito

de “Necropolítica”, cunhado pelo filósofo Achille Mbembe (2018), a partir do qual

ele explica como os governos escolhem quem vive e quem morre, de acordo com as

políticas adotadas.

Para ele, “A expressão máxima da soberania reside em grande medida, no

poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, razão pela

qual “matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos

fundamentais.” (MBEMBE, 2018, p. 05). O conceito de Mbembe ajuda a explicar as

escolhas estatais em relação ao cárcere em meio a pandemia do COVID-19,

mostrando como o Estado age com a política de morte, escolhendo quais medidas

adotar, deixando claro quais são as vidas que são passíveis de morte.

Um exemplo da necropolítica aplicada pelo Estado brasileiro é o fato de que

os gestores insistem em não seguir os artigos da Lei de Execução Penal (LEP), a

exemplo do artigo 70, que deixa clara a obrigação de informar ao Conselho Nacional

de Política Criminal e Penitenciária, em todo início de trimestre anual, sobre a saúde

dos internos, além de fornecer a assistência médica adequada – o que não ocorre

segundo o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP, 2020). Um exemplo

disso é que, segundo o mesmo órgão, no Nordeste, 42,7% das prisões não oferecem

assistência médica internamente. De acordo, também, com o CNMP (2020), 31% dos

cárceres brasileiros não possuem essas instalações médicas necessárias exigidas pela

Lei de Execução Penal.

Assim, os olhares lançados sobre os dados obtidos nesta pesquisa são

situados a partir desta perspectiva: questionadora do complexo industrial-prisional,

128
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

com um compromisso antirracista e orientada pela justiça social. As referências aqui

apontadas corroboram essa perspectiva, à medida que fornecem substrato teórico

para as elaborações e análises formuladas a seguir.

2 MEDIDAS PROPOSTAS PARA O ENFRENTAMENTO AO CORONAVÍRUS

Em março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a

Recomendação 62/2020, que dispõe sobre a adoção de medidas preventivas à

propagação da infecção pelo novo coronavírus nos sistemas de justiça penal e

socioeducativo (BRASIL, 2020). Além das medidas de desencarceramento, é

necessário lembrar que o recomendado mundialmente para combater a Covid-19 é

manter uma higienização adequada e o distanciamento social. As recomendações

também apontam para a necessidade de limitação das prisões cautelares, redução

de penas e opção pela prisão domiciliar para crimes não violentos.

A recomendação do (CNJ) estabelece uma série de medidas com objetivo de

combater o coronavírus nos presídios e aponta a necessidade de reavaliação das

prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal. E o estado

tem-se mostrado resistente em seguir essas recomendações, notadamente as que

dizem respeito a medidas de desencarceramento, como o artigo 4 da Recomendação

62 do (CNJ) (BRASIL, 2020). Essa afirmação está estreitamente conectada com a

lógica punitivista brasileira – que, ao invés de focar seus esforços para a resolução

de problemas sociais, prioriza o encarceramento de mais pessoas e pelo maior

período de tempo possível. Fato citado pelo sociólogo e professor universitário

Felipe Mattos Monteiro em seu artigo A Seletividade do Sistema Prisional brasileiro

e o perfil da população carcerária (2013).

129
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O referido artigo prevê a priorização da revisão das prisões preventivas que

estejam relacionadas a crimes praticados sem violência e também em que as pessoas

acusadas sejam mulheres gestantes, lactantes, pessoas com deficiência, mães ou

pessoas responsáveis por criança de até doze anos (BRASIL, 2020).

Ademais, no documento, recomenda-se também a revisão das prisões

provisórias daqueles que se enquadram no grupo de risco, além dos presos em

unidades penais que não disponham de unidades médicas ou que estejam com

ocupação superior à capacidade e, por último, as dos que tenham excedido o prazo

de noventa dias. Como já citado neste trabalho, baseando-se em livros como

Encarceramento em massa (BORGES, 2018) e Estarão as prisões obsoletas (DAVIS,

2018) pode-se afirmar que o cenário das prisões brasileiras é um cenário de

precariedade e de superlotações e só a partir desses critérios estabelecidos pelo

(CNJ) é inimaginável a quantidade de presos que deveriam ser soltos devido à

pandemia.

É importante ressaltar que 40% de toda a população carcerária é formada

por presos provisórios de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública

(2017), o que corrobora a existência de uma política de encarceramento em massa,

que causa a superlotação dos presídios. Contudo, o que se observa é a reafirmação

de tal política, mesmo em época de calamidade da Saúde Pública, confirmando que

o Estado mata, não por negligência, mas sim por ações intencionadas e com objetivo

definido, já que escolhe diariamente não mudar suas ações.

Tais propostas de desencarceramento feitas pelo Conselho Nacional da

Justiça, que ajudariam a reduzir a probabilidade de contágio, continuam sendo

ignoradas porque o judiciário brasileiro insiste em dificultar a execução dessas

medidas. Com isso, não é de se surpreender que, mesmo com as subnotificações, até

130
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

o dia 2 de julho, já haviam sido detectados 535 casos confirmados de detentos com

coronavírus, segundo o DEPEN (2020), como será detalhado a seguir.

Com o objetivo de responder às perguntas propostas por este artigo é

imprescindível destacar a medida proposta pelo DEPEN (Departamento

Penitenciário Nacional) de utilizar Contêineres para prevenir que a COVID-19 se

espalhasse nos cárceres. Na proposta, os presos a permanecerem na estrutura,

utilizada originalmente no setor de construção civil, seriam os detentos que

apresentassem sintomas do novo coronavírus e necessitassem de atenção médica -

que nos presídios é extremamente precária, como já foi esclarecido enfaticamente

nesse trabalho.

No entanto, como já alertado pela Defensoria Pública da União, pelo IBCCRIM

(Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e outras entidades, a proposta fere

diversos acordos internacionais de Direitos Humanos. Por fim, o Conselho do

DEPEN não aprovou tal proposta e, com isso, a mesma não foi aprovada.

3 MEDIDAS EFETIVADAS NO COMBATE AO CORONAVÍRUS

Para identificar quais medidas foram tomadas pelos estados e pelo governo

federal, realizou-se um levantamento através do sistema de informações estatísticas

do sistema penitenciário brasileiro (INFOPEN), disponibilizado no sítio eletrônico

da organização. A coleta desses dados foi realizada no dia 2 de julho de 2020 e

compreendeu a quantidade de presos no Brasil e, a partir disso, foi-se quantificado

infectados, suspeitos, mortos e testados para Covid-19.

O primeiro gráfico tem como objetivo fornecer a visão da totalidade

brasileira no tópico prisão e Covid-19. A escolha fora feita para explicitar uma visão

mais abrangente do sistema prisional do Brasil, já que para ser uma pessoa que não

131
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

goza de plena liberdade do ir e vir, o indivíduo não tem que – necessariamente,

estar na prisão, em regime fechado, podendo estar sob vários tipos de regime como,

por exemplo, de liberdade condicional. Tal destaque foi feito com a finalidade de

correlacionar o gráfico a seguir com os dados já citados, anteriormente, em relação

a porcentagem da quantidade de presos que foram testados.

A quantidade de detentos que foi testada é demasiadamente menor do que

a quantidade total de presos, mesmo levando em conta os diversos tipos de regime.

É necessário lembrar que existe o fenômeno da subnotificação nos dados oficiais.

Ao pensar, por exemplo, no massacre do Carandiru, como foi relatado em Massacre

do Carandiru: vinte anos sem responsabilização (FERREIRA et al. 2012, p.1), e ler o

relato oficial inicial, em que os policiais relataram 8 mortes apenas, a Comissão de

Direitos Humanos relatou 111 e os presos relataram em torno de 200 mortes,

entende-se a necessidade de um olhar crítico para esses números considerados

oficiais.

Para fornecer uma visão mais objetiva da situação dos presídios do

Brasil em época de pandemia foi feito um levantamento dos dados disponibilizados

pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) (2020). Segundo o órgão, até 2

de julho de 2020, a população carcerária era formada por 748.009 detentos. O Estado,

no entanto, optou por fazer apenas 27.147 testes. O resultado encontrado foi 4.739

infectados e dos 1.086 suspeitos, sendo que 62 morreram. Na análise desses dados

é necessário levar em consideração a baixa testagem e também a possibilidade de

subnotificação – uma vez que a doença pode não manifestar sintomas ou sintomas

leves, que podem ser desconsiderados.

Conforme o objetivo específico de identificar as medidas que têm sido

propostas e efetivadas pelo Estado, foram colhidos dados do INFOPEN sobre as

populações das prisões de cada estado brasileiro. Para tanto, consideramos as

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

medidas que tinham sido realizadas até a data 11 de julho de 2020. Inicialmente,

destacamos a quantidade total de presos, no geral, e depois especificamos o tipo de

regime, levando em conta: (i) se existem detentos em tratamento ambulatorial; (ii)

se foram feitas medidas de segurança ou não; (iii) a quantidade de medidas de

segurança.

ESTA TOTAL FECHA SEMIABER ABER PROVISÓR TRATAMEN MEDIDA


DO DO TO TO IO TO DE
AMBULATO SEGURAN
RIAL ÇA
AC 8414 3879 2111 202 2218 0 4
AL 9161 1610 2637 1812 3063 0 39
AM 10890 2550 3843 1414 3064 0 19
AP 2750 1071 879 101 689 2 8
BA 15108 5030 2419 259 7336 0 64
CE 31569 7698 5658 4444 14556 0 213
DF 16636 8312 5361 0 2894 0 69
ES 23427 10527 4204 801 7835 1 59
GO 25761 8772 4097 2361 10520 4 7
MA 12346 4966 2516 362 4433 16 53
MG 74712 34292 9558 456 29082 21 1303
MS 17578 9928 2206 1108 4184 78 74
MT 12519 6554 214 68 5661 0 22
PA 20825 8758 3368 2785 5823 0 99
PB 13326 5964 1845 1258 4217 0 42
PE 33641 16185 5005 6 12249 42 154
PI 4433 1793 656 0 1983 0 1
PR 29831 18556 2207 125 8664 1 278
RJ 50822 19171 11418 373 19752 0 108
RN 10290 4411 1770 1175 2894 0 40
RO 13611 5734 3024 3055 1782 1 15
RR 3688 1274 650 745 1017 1 1
RS 41189 15547 11105 2220 12238 27 52
SC 23470 11840 5891 2 5686 51 0
SE 6244 3350 1 0 2827 0 66

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

SP 231287 142538 41137 0 46298 4 1310


TO 4481 2237 636 5 1593 1 9

É possível concluir a partir desses dados a enorme amplitude de medidas

de segurança que não necessariamente, tem relação direta com a proporcionalidade

do tamanho do estado e/ou da população carcerária presente. No entanto, o fator

decisivo é o tipo de política usada para com os detentos: se os estados destinaram

verba suficiente para que os presos, tenham seus direitos garantidos como

dignidade e saúde, como previsto na constituição ou se os estados utilizarão de uma

política que desumaniza essas pessoas.

Em seguida, foram identificados dados relevantes à Covid-19 nos cárceres, isto

é: número de presos suspeitos de terem contraído o novo coronavírus, o número

de confirmados até a data da coleta dos dados (22 de julho de 2020), os óbitos e,

também, os recuperados. Além da data da primeira medida tomada por cada estado

para que fosse possível analisar as diferenças presentes nas regiões no quesito

cárcere.

Estad Suspeit Detecçõ Óbit Pop. Prisio Recuperad Data da primeira


o as es os nal os medida
AC 248 176 3 8414 105 5/4/2020
AL 13 19 0 9161 7 5/5/2020
AM 0 100 1 10890 96 24/3/2020
AP 0 27 1 2750 0 3/4/2020
BA 0 27 0 15108 0 20/3/2020
CE 0 529 3 31569 440 25/3/2020
DF 0 1432 3 16586 1334 8/4/2020
ES 0 69 5 23427 127 20/3/2020
GO 365 365 2 25761 185 26/3/2020
MA 45 149 1 12346 120 26/3/2020
MG 127 344 1 74712 371 26/3/2020
MS 81 88 0 17423 5 24/3/2020

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

MT 72 399 2 12519 108 24/3/2020


PA 205 501 0 20825 358 1/4/2020
PB 6 205 2 13326 199 20/3/2020
PE 50 790 6 33641 675 20/3/2020
PI 307 164 0 4433 121 27/3/2020
PR 2 1 0 29690 0 20/3/2020
RJ 55 32 14 50822 21 26/3/2020
RN 291 234 0 10155 123 23/3/2020
RO 44 93 1 13419 70 2/4/2020
RR 0 60 6 3688 41 1/4/2020
RS 66 425 2 41189 170 21/3/2020
SC 80 702 1 23470 100 23/3/2020
SE 0 14 1 6244 0 20/3/2020
SP 134 1688 16 231287 120 23/3/2020
TO 0 116 0 4481 81 21/3/2020

Um dos aspectos que podem ser abordados acerca desses dados é a

disparidade encontrada, entre as datas das primeiras ações. Ao comparar os estados

Bahia e Amapá, por exemplo, há mais de um mês de diferença. Em um mês de

espera, muitos detentos amapaenses podem ter sido infectados pela demora de agir

em uma situação de crise.

Outro fato a ser observado aqui, é que o número de mortes foi maior na

região sudeste, em detrimento das outras, sobretudo nos estados do Rio de Janeiro

e São Paulo e menor na região Norte, com destaque para o estado do Tocantins com

zero óbitos até 22 de julho de 2020.

Tendo em vista todos os dados disponibilizados até aqui, notou-se a

necessidade de fornecer uma visão mais ampla, integrada e detalhada do que fora

feito por todos os estados do Brasil para a prevenção desse vírus nos cárceres.

Portanto, realizou-se um destaque para todas as medidas que cada região tomou

para conter a situação, mostrando a frequência de cada uma delas e a quantidade

135
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de medidas que cada estado tomou até o dia 22 de julho. Com isso, fora criada, para

melhor compreensão dos dados, uma legenda de todas as ações tomadas.

Foi possível observar, novamente, grandes disparidades em relação a

quantidade de ações feitas por cada estado devido a contabilização – feita neste

artigo – de todas as medidas. Para exemplificar tais fenômenos, destaca-se Paraná

com apenas 3 medidas e Ceará com 14. Mesmo que sejam levados em conta outros

fatores, é possível que a diferença nas verbas que cada estado destina às prisões seja

um fator decisivo.

Além disso, de acordo com a legenda das tabelas, foi estabelecida uma

relação entre elas e os estados brasileiros de forma a ilustrar, por meio de símbolos,

quais ações cada estado tomou ou não, sendo ✔ para ação realizada e × para cada

ação não realizada. Isso fora feito com a finalidade de detalhar de forma ainda mais

precisa o que cada estado fez ou não para a prevenção da COVID-19 nas prisões

brasileiras.

Para que se tornasse viável a ilustração dessas medidas em uma tabela,

optou-se pela adoção de uma legenda, sendo que cada número representa uma

medida, da seguinte forma: (1) Adoção de prisão domiciliar (que se enquadrem nas

hipóteses concessivas legais); (2) Assepsia diária das celas; (3) Aumento do tempo

diário de banho de sol; (4) Disponibilização de equipamentos de proteção

individual (EPI’S); (5) Distribuição de epi para os servidores lotados nas unidades

prisionais e hospitalares; (6) Educação em saúde (informações acerca do covid-19);

(7) Elaboração de Nota Técnica; (8) Higiene das mãos e etiqueta respiratória; (9)

Isolamento de Presos maiores de 60 anos ou com doenças crônicas; (10) Isolamento

de sintomáticos - com cortina; (11) Isolamento de sintomáticos - com marcação no

chão; (12) Isolamento de sintomáticos - com máscara; (13) Isolamento de

sintomáticos- em celas; (14) Limitação em número de visitas a presos; (15)

136
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Limitação/ Suspensão de Transferência entre Unidades da Federação; (16) Medidas

tomadas na unidade no estabelecimento de unidades de entrada de internos, para

quarentena, e outras para serem unidades sentina e para a recepção de presos

contaminados; (17) Suspensão de atendimento de Advogados/Defensoria Pública:

15; (18) Suspensão de Saídas Temporárias; ( 19) Suspensão de visitas a presos; (20)

Transferência de unidade prisional para um isolamento mais adequado; (21)

Triagem na entrada da Unidade Prisional; (21) Triagem na inclusão do Interno; (22)

Uso de tornozeleiras eletrônicas para presos do semiaberto.

ES 1 2 3 4 5 6 7 8 9 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 2 2
TA 0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 0 1 2 3
D
O
A ✔ ✔ 🗶 🗶 🗶 🗶 ✔ 🗶 ✔ 🗶 🗶 🗶 ✔ 🗶 ✔ 🗶 ✔ ✔ ✔ 🗶 ✔ ✔ 🗶
C
A ✔ 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 🗶 ✔ 🗶 ✔ 🗶 🗶 🗶 🗶
L
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As mortes por brigas entre facções ou rebeliões nos presídios são as que

mais chamam a atenção da mídia e da sociedade como um todo. No entanto, há

uma causa ainda maior e mais comum de mortes nos presídios, e ela não tem um

rosto definido, não tem arma, não faz barulho e sequer pode ser detida pelo sistema

de justiça criminal, mas pode ter diversos nomes: HIV/AIDS, hepatite, tuberculose,

sarna e agora também: coronavírus. Devido a uma série de fatores combinados, que

envolvem superlotação, escuridão das celas, falta de circulação de ar, racionamento

de água, e ações médicas insuficientes, o mal que mais aflige as prisões brasileiras

são as doenças!

Os problemas supracitados, se espalham do “Oiapoque ao Chuí”, ou seja,

problemas que estão em todas as regiões do país, de norte a sul, provando que, não

são casos isolados, ou problemas pontuais, e sim, algo estrutural, nas ditas prisões.

Na região norte, a título de exemplo, a situação da Penitenciária Agrícola de

Monte Cristo (PAMC) tem sido acompanhada por diversas entidades.

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Em 2018, depois de uma visita à PAMC, o presidente do Conselho Seccional

da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional de Roraima, Ednaldo Vidal

Presidente, afirmou que “O que percebemos é que a omissão por parte dos gestores

estaduais para a possível epidemia de sarna existente na unidade. Ou seja, o Estado

não está dando condições mínimas para o atendimento de saúde e tratamento da

doença que se alastra na PAMC (Penitenciária Agrícola de Monte Cristo). É preciso

que haja esta sensibilização por parte do Executivo para com o trabalho eficiente

realizado pela FTIP”.

Dois anos se passaram, mas a epidemia de sarna humana no PAMC não. Em

janeiro de 2020, entidades nacionais e internacionais, como a Pastoral Carcerária e

a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, receberam novas denúncias sobre

a epidemia de sarna no local, que acometeu mais de 24 presos na unidade prisional;

alguns detentos descreveram a sarna como “uma sensação de estar sendo comido

vivo”.A epidemia de sarna é apenas um dos problemas do PAMC, visto que a

unidade também possui problema de superlotação, de acordo com relatório do

Defensoria Pública de Roraima (CRUZ, p.1, 2020) Segundo dados do MP-RR

(Ministério Público de Roraima), 2.086 presos superlotam o local atualmente

(MADEIRO, p.1, 2020). "Celas onde cabem até três presos estão com mais de 18, que

por falta de espaço, estão dormindo no banheiro", diz texto da defensoria. Relatórios

da Ordem dos Advogados do Brasil em Roraima (OAB-RR) apontam que celas de 6

m², com capacidade para três ou quatro pessoas, abrigam até 15 homens, ou até mais

(OLIVEIRA, p.1, 2020)

A juíza da Vara de Execução Penal, Joana Sarmento, mandou interditar

parcialmente o presídio para evitar que número de presos ultrapassasse 2 mil

internos e disse que “o Executivo desconhece a principal lei da física: ‘dois corpos

não ocupam o mesmo lugar no espaço’ (OLIVEIRA, p.1, 2020). O caso supracitado

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mostra que os problemas não são casos isolados: a combinação de doenças

infectocontagiosas e superlotação é uma praxe no sistema carcerário brasileiro, e são

essas condições sórdidas e intrínsecas as prisões que fazem com que as mesmas

sejam sinônimos de morte. Aditando tudo isso ao novo coronavírus, temos a

continuidade de uma política de morte massiva e silenciosa, que se em várias das

prisões do país.

Na região Nordeste também podem ser verificadas violações à saúde das

pessoas presas. Segundo uma entrevista feita pela Folha Uol (FABRINE, 2020 p. 1)

(com o subprocurador-geral da República Domingos Sávio Dresch da Silveira,

coordenador da Câmara do Sistema Prisional ligada à PGR (Procuradoria-Geral das

República), “Aquilo que se entende por assistência [nos presídios] é, quando muito,

um médico duas vezes por semana. Não é um pequeno hospital, uma enfermaria”.

Com essas palavras, o sub-procurador-geral conseguiu explanar, de forma

simplificada, a real situação dos cárceres.

Ainda de acordo com a plataforma supracitada, o professor da Faculdade de

Medicina da USP (Universidade de São Paulo) Mário Scheffer, quando entrevistado

sobre a situação dos presídios em época de pandemia respondeu: “Não tenho

dúvida de que uma epidemia sem retaguarda [médica] vai dizimar parte da

população carcerária, há risco de disseminação maior e, obviamente, vai ser”.

Continuando seu pensamento, ele completa: “O avanço da contaminação no sistema

carcerário afeta quem está do lado de fora.” Mesmo com todos os presos estando

mais suscetíveis a contrair o novo coronavírus devido a precária situação sanitária

das prisões, a população carcerária do Brasil sofre com a falta de profissionais para

tratá-la e com uma infraestrutura que não é capaz de fornecer todos os cuidados

necessários para esses detentos. De acordo o CNMP (Conselho Nacional de Política

Criminal e Penitenciária), 31% dos cárceres brasileiros não possuem a assistência

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

médica adequada exigidas pela Lei de Execução Penal. A estatística se refere a 1.439

cárceres. Infelizmente, a situação é ainda pior para a região Nordeste que conta com

a pior estatística dentre as regiões brasileiras com 42,7% das prisões sem assistência

médica internamente.

Como já atentado antes, os detentos são mais vulneráveis a doenças. No

entanto, como vimos, a assistência médica é bem precária. No sistema carcerário,

existem 1095 médicos ou 1 para 687 presos, enquanto para a população total, menos

vulnerável, a proporção é de 1 para 460, de acordo com o CFM (Conselho Federal

de Medicina). No entanto, mesmo com esses dados, o fato não sensibiliza, tampouco

se converte em mais políticas públicas voltadas à saúde no cárcere

Dentre as medidas recomendadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

para que ocorra a diminuição da superlotação dos presídios em época de COVID-

19 está a adoção do regime domiciliar para detentos com idade avançada. No

Centro-oeste, no entanto, de acordo com a pesquisadora Haydée Caruso, mesmo

que isso esteja acontecendo em algumas unidades, não são todos os presos em

grupo de risco que estão sendo liberados e assegura que tal fato pode levar a um

cenário desastroso para os cárceres segundo o Correio Braziliense (CALCAGNO,

2020, p. 1).

De acordo com a especialista, “Não se trata de ver quem tem que cumprir

mais ou menos anos de pena. É questão humanitária e civilizatória, e temos que

pensar não só nos internos, mas também nos agentes penitenciários’’, ainda,

segundo o jornal eletrônico supracitado.

Esse relato demonstra a urgência de que sejam seguidas, de fato, as

medidas de desencarceramento propostas pelo (CNJ). uma vez que o

desencarceramento é a única medida efetiva para diminuir contágio, segundo

afirma Leonardo Biagioni, coordenador do Núcleo Especializado de Situação

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Carcerária da Defensoria Pública do Estado de SP de acordo com site O Globo (2020,

p.1). No entanto, não é isso que ocorre: a prova disso é que o judiciário negou,

segundo o levantamento do mesmo jornal, 84,2 % dos habeas corpus impetrados

durante a pandemia até catorze de julho

A professora da Faculdade de Direito UnB Cristina Zackseski, em entrevista

ao Correio Braziliense (CALCAGNO, 2020, p.1), afirma que o número de presos

com diagnóstico positivo na Papuda, uma região de segurança máxima onde foram

erguidos 4 presídios (CDP, CIR, PDF I e PDF II), cresceu rapidamente,

demonstrando o risco de infecção nos cárceres. De acordo com a especialista, em

um mês o número de presos infectados subiu de 1 para mais de 200.

Com isso, o Centro-Oeste, de todas as regiões brasileiras, prova-se ser a que

possui a maior concentração de casos de COVID-19 nos cárceres, com o Distrito

Federal, levando o título da capital cujos presídios têm mais da metade do total de

infectados, em relação a todas as outras prisões do Brasil, com 608 detentos testando

positivo.

Outro problema relativo à saúde dentro dos presídios é o acesso à água.

Esse recurso natural, essencial e indispensável à sobrevivência humana tem,

literalmente, suas horas contadas em alguns presídios do sudeste, por conta do

racionamento da mesma dentro dos presídios.

Em Minas, por exemplo, ao fim de 2019, fora decretado oficialmente o

racionamento de água dentro das unidades prisionais sob a alegação de que o gasto

médio de água por preso é 88,7% maior do que a média brasileira, e que o gasto

chegará a R$ 7.682.901,78 em apenas junho de 2019.(SEJUS, 2019 p.1) Por meio de

nota, a SEJUS informou que o racionamento de água é “ medida de economia e

prevenção ao desperdício, diante de um quadro de crise fiscal no estado.” (CNJ,

2019)

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O que os supramencionados órgãos competentes ignoram é que a

impossibilidade do uso da água enseja em um tratamento absolutamente

degradante. A medida descabida, impede que o preso tenha efetivo e pleno acesso

à higiene pessoal, ignora que a água é um recurso essencial, e que restringir acesso

a mesma é ferir, ainda mais, a integridade física e moral do apenado.

O juiz Wagner de Oliveira Cavalieri, da Vara de Execuções Criminais de

Contagem, determinou a suspensão do ato, atendendo a pedidos do Ministério

Público e da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, decisão esta que foi

acatada pelas autoridades do Sistema Penitenciário. De acordo com o juiz,

“Não se trata tão somente da privação de água para beber ou para


banho, mas também de descarte de rejeitos fisiológicos dos presos.
Tal questão atinge também a esfera da saúde pública, sobretudo nas
celas coletivas. Imaginem-se as condições do ‘boi’ de uma cela
superlotada, com inúmeros presos fazendo suas necessidades sem
a possibilidade de descarte para o esgoto. […] O preso deve ser
tratado com disciplina e rigor, mas também com dignidade”.
(SILVA, 2020)

O racionamento de água, não é uma exclusividade do presídio de Minas, o

mesmo fato ocorre também em presídios do Rio de Janeiro, onde algumas unidades

tem apenas duas horas de água disponível por dia (STABILE, 2020 p.1). Com isso,

responde-se o questionamento levantado durante a pesquisa: não há cumprir com

as normas da OMS dentro das unidades prisionais brasileiras, já que os recursos

mínimos são constantemente cerceados, como a água.

Uma questão a ser destacada é a superpopulação carcerária brasileira,

considerada uma das maiores do mundo - o que é um reflexo das desumanas

condições dos presídios do Brasil. A exemplo disso, A Cadeia Pública de Porto

Alegre, o antigo Presídio Central, é considerada pelo CPI do Sistema Carcerário do

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Congresso Nacional a pior prisão do Brasil, tendo sido rotulada de “A Masmorra

do Século 21”, devido a sua superlotação carcerária e sua péssima infraestrutura.

Com capacidade para 1,7 mil presos, ela aloca atualmente cerca de 4,5 mil detentos

e já foi alvo, também, de denúncias à Organização dos Estados Americanos (OEA)

por violação dos direitos humanos.

É nesse cenário caótico, de infraestrutura precária, gestão inadequada - feita

por militares ao invés de agentes penitenciários- e situação sanitária de dar dó que

o primeiro preso, contando com os de todo país, testou positivo para a COVID-19

no antigo Presídio Central.

“Não existe pena de morte na nossa constituição. Por mais que as pessoas

errem, elas estão em responsabilidade do Estado para cumprir a sua pena. É

complicado quando um Estado falha a ponto de deixar uma pessoa sob sua custódia

morrer, mesmo com avisos, mesmo com peticionamento para que ela seja solta” -

criticou Gelson Fassina, um dos advogados do preso que agora se tornou apenas

mais uma estatística da necropolítica estatal.

Com isso, já era de se esperar que o pior viria. Wanderson Menezes, 26 anos,

detento desse mesmo presídio, morreu infectado com o novo coronavírus. Mesmo

depois de seus advogados tentarem, sem sucesso e por duas vezes, conseguir que o

detento fosse transferido para a prisão domiciliar, devido a dificuldades de respirar,

relatada por ele aos familiares e defensores, além de tosse com sangramento, o que

gerava a suspeita de que ele havia contraído tuberculose e a doença é considerada

fator de risco para a COVID-19.

Segundo o G1 do Rio Grande do Sul (2020, p.1), a juíza Sonáli da Cruz

Zluhan, da Vara de Execuções Criminais (VEC) responsável pela fiscalização do

cárcere, ao ser questionada sobre a situação do Presídio em época de pandemia e a

dinâmica existente nos cárceres relatou: “Como controlar 300 presos em um espaço?

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Teria que ser um policial para cada um dos presos para retirar alguém de lá. No

meu ponto de vista, aquele presídio tinha que ter sido desativado há muito tempo”.

Levando em conta tudo que fora visto até aqui, desde a infraestrutura precária

dos presídios até as medidas propostas e efetivadas pelos estados para a prevenção

da COVID-19 nos cárceres, ficou claro que a prisão amplifica a transmissão de

doenças e favorece o adoecimento do apenado. Logo, de acordo com os estudos, foi

possível concluir a total impossibilidade das prisões seguirem, de fato, as

recomendações feitas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para combater o

novo coronavírus.

As orientações de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)

e com a Organização Mundial da Saúde (OMS), não são compatíveis com o cenário

histórico decadente dos cárceres brasileiros, dito isto, fica evidente que quando o

judiciário decide não seguir a Lei de execuções penais, a Constituição, o artigo 4 da

recomendação 62 do (CNJ), a (OMS) e a (OPAS), ele está decidindo pela morte de

quem encontra-se no cárcere.

Em suma, fica explícito que o estado brasileiro falhou e segue falhando em

cuidar daqueles que estão sob a sua custódia. É importante enfatizar que a situação

desumana em que se encontram os apenados não é recente, não nasceu com a

chegada do coronavírus, ela está presente desde os primórdios do cárcere, a

pandemia da COVID-19 escancarou as mazelas que sempre estiveram presentes

nesses ambientes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi exposto, com a análise da literatura específica e dos dados

citados, foi possível chegar à conclusão de que o panorama pré-pandêmico dos

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cárceres já explicitava as condições precárias do sistema penitenciário do Brasil.

Ademais, também é possível perceber que, por mais que não existam tantas ações

comissivas por parte do Estado, há inúmeras ações omissivas. Isto é, o Estado

escolhe não tomar decisões para combater o coronavírus no contexto do sistema

prisional como, por exemplo, aplicar medidas de desencarceramento.

Dessa forma, o contexto mantido nas prisões impossibilita que as recomendações

da (OMS) sejam seguidas. Em suma, verificou-se que a necropolítica somada ao

sistema punitivista do Brasil pode causar a morte de dezenas de milhares de

brasileiros. Logo, é importante que o Estado mude sua postura e passe a

implementar, de forma gradual, as medidas de desencarceramento, garantindo que

os direitos à saúde, à dignidade e à vida sejam garantidos a todos, pois essa é a única

forma de impedir um colapso na saúde pública.

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150
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O DIREITO DA GESTANTE EM TRABALHO DE PARTO (E NO

PÓS-PARTO) A ACOMPANHANTE E AS RESTRIÇÕES DO

COVID-19

Karine Domingos de Souza 20


Paulo Sérgio Gomes Soares 21
Gustavo Paschoal Teixeira de Castro Oliveira 22

RESUMO:
O direito à saúde é um direito fundamental, presente na Segunda Dimensão dos Direitos
Fundamentais, posto que está inserido nos direitos sociais. O escopo abordado neste artigo
diz respeito às análises das restrições impostas pelas organizações nacionais e
internacionais, em função da Covid-19, e as contradições geradas no âmbito dos Direitos
Humanos e dos Direitos Fundamentais da gestante/parturiente, no que tange ao direito a
acompanhante, conforme previsto pela Lei Federal nº. 11.108, de 07 de abril de 2005. A
finalidade, portanto, é propor pontos de compatibilização entre as contradições, de forma
que se garanta os direitos da gestante, com a segurança prevista pelas Organizações de
saúde nacionais e internacionais em relação à Covid-19, mas avaliando as restrições de
modo que aponte a existência de violações dos direitos fundamentais. Para alcançar tal
objetivo, o método utilizado foi o dedutivo, com pesquisa de dados bibliográficos, no viés
de uma abordagem qualitativa. A pesquisa realizada teve foco teórico com finalidade
exploratória. Foi analisado, no discorrer do trabalho, o desconhecimento das mulheres de
seus direitos como influência no descumprimento da Lei do Acompanhante; breves
considerações sobre o movimento do parto humanizado no Brasil; a relevância do
acompanhante; e, por fim, os impactos e pontos de discussão da restrição. Logo, ficou
evidenciado que, mesmo diante pandemia, de um ponto de vista jurídico, o direito a
presença de acompanhante não é derrogável, e faz parte do bem estar físico e psíquico da
parturiente e do nascituro. O artigo procurou contribuir com o debate em torno do direito
fundamental à saúde da parturiente em tempos de pandemia.

20
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Prestação Jurisdicional e Direitos
Humanos (UFT/ESMAT). E-mail: karine.direito@uft.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7064561946604860.
21
Doutor em Educação (UFSCar/2012). Professor no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado
Profissional em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos (UFT/ESMAT). Bolsista FAPTO. E-mail:
psoares@mail.uft.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1365699355771676.
22
Doutor em Direito (UniCEUB/2016). Professor no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado
Profissional em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos (UFT/ESMAT). Bolsista FAPTO. E-mail:
paschoal@mail.uft.edu.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/7410990226412683.

151
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Palavras-Chave: Direitos Humanos; Direitos fundamentais; Direito da Gestante; Direito a


acompanhante; Covid-19.

ABSTRACT:
The right to health is a fundamental right, present in the Second Dimension of Fundamental
Rights, since it is inserted in social rights. The scope addressed in this article concerns the
analysis of restrictions imposed by national and international organizations, as a result of
Covid-19, and the contradictions generated in the scope of Human Rights and Fundamental
Rights of the pregnant woman / parturient with regard to the right to a companion, as
provided by Federal Law No. 11,108, of April 7, 2005. The purpose, therefore, is to propose
points of compatibility between the contradictions, in order to guarantee the rights of the
pregnant woman, with the security provided by national and international health
organizations. in relation to Covid-19, but evaluating the restrictions in a way that points
to the existence of violations of fundamental rights. To achieve this goal, the method used
was the deductive one, with bibliographic data search, in the bias of a qualitative approach.
The research carried out had a theoretical focus for exploratory purposes. It was analyzed,
in the discourse of the work, the ignorance of women as an influence in the non-compliance
with the Law of the Companion; brief considerations about the humanized birth movement
in Brazil; the relevance of the companion; and, finally, the impacts and discussion points of
the restriction. Therefore, it was evident that, even in the face of a pandemic, from a legal
point of view, the right to the presence of a companion is not derogable, and is part of the
physical and psychological well-being of the parturient and the unborn child. The article
sought to contribute to the debate around the parturient's fundamental right to health in
times of pandemic.

Keywords: Human Rights; Fundamental rights; Maternity Law; Right to a companion;


Covid-19.

INTRODUÇÃO

De acordo com a Lei Federal nº. 11.108, de 07 de abril de 2005, toda gestante

tem direito a acompanhante, mas, desde a eclosão da pandemia, várias

maternidades no Brasil têm proibido a presença de acompanhantes durante o

trabalho de parto e pós-parto, ou utilizado medidas extremamente restritivas.

Um dos argumentos se apoia na pressuposição de que com isso vai haver

uma diminuição no risco de transmissão e de contágio da Covid-19, considerando

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a circulação de pessoas na maternidade. Outro argumento se apoia na ausência de

materiais de proteção para os acompanhantes.

Há quem defenda que no contexto da pandemia, a lei do acompanhante não

se aplica, porque, nesse momento, o “direito coletivo à saúde” se sobrepõe ao

“direito individual” de cada pessoa, exigindo uma análise de ponderação de

princípios. O debate proposto no artigo gira em torno das contradições que

envolvem essa problemática e procura contribuir para esclarecer a situação de um

ponto de vista jurídico.

Para o Ministério da Saúde do Brasil, grávidas e mulheres que deram à luz

recentemente são mais vulneráveis a infecções em geral e, por isso, estão nos grupos

de risco do vírus da gripe, por exemplo. Mas a lei confere direito ao acompanhante

à gestante. Como resolver a contenda, agora, já que não se trata de uma mera gripe?

No Brasil, desde 2005, a Lei n°. 11.108, mais conhecida como Lei do

Acompanhante, entabula que os serviços de saúde maternos permitam a presença

de um acompanhante de livre escolha da mulher durante todo o período de trabalho

de parto, parto e pós-parto imediato. A regulamentação, por conseguinte, seguiu

evoluindo para abarcar a presença do acompanhante nos âmbitos público e privado,

e foram formalizadas, inclusive, através de outros documentos, como, por exemplo,

a Portaria n°. 2.418 do Ministério da Saúde (MS), que passou a autorizar o custeio

de despesas com o acompanhante durante o processo parturitivo, incluindo gastos

com refeições, acomodação e demais acessórios demandados no processo.

Outro importante instrumento normativo é a Resolução da Diretoria

Colegiada (RDC) n°. 36, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), de

2008, que dispôs sobre o Regulamento Técnico para Funcionamento dos Serviços de

Atenção Obstétrica e Neonatal, e que também serviu de elemento reafirmador no

que concerne a luta pela preservação do direito da mulher ao acompanhante. Para

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

tanto, estabeleceu parâmetros para que os serviços pudessem assegurar uma

estrutura física adequada e segura para acompanhantes dentre outras

determinações.

Em 2010, já no âmbito privado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar

(ANSS) estabeleceu através da Resolução Normativa n°. 211, que os atendimentos

de obstetrícia no setor privado, independente do plano de saúde, deveriam cobrir

todas as despesas com o acompanhante.

Assim, para adentrar a seara da legalidade das restrições importas durante

o período pandêmico, inicialmente, o presente artigo abordou, à luz do

ordenamento jurídico, os diplomas legais aplicáveis ao caso, as determinações do

Ministério da Saúde e as medidas resolutivas que cerceiam do grupo em comento.

Também, foi explanado o desconhecimento das mulheres como influência

no descumprimento da Lei do Acompanhante e se tal fator efetivamente traz

prejuízos não só a consecução do direito ao acompanhante, mas se também serve

como indicador de violação aos Direitos Humanos da parturiente, seu

acompanhante e o nascituro.

Por conseguinte, foram tecidas breves considerações sobre o movimento

do parto humanizado no Brasil, que surgiu em meados dos anos de 1970, bem como

a influência desse movimento de humanização na inserção do acompanhante

durante o processo parturitivo.

Por fim, dedicou-se uma seção para esclarecer como tem sido efetivada na

prática as restrições, os impactos relatados pelas gestantes, a atuação do legislativo

frente as queixas de violação do direito e suas implicações no aspecto psicológico

familiar dos envolvidos.

Logo, a proposta indicada no artigo caminha para a compatibilização, ainda

que mínima, entre a obediência às restrições e a salvaguarda da saúde coletiva,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

considerando os argumentos acerca das medidas de restrição e isolamento social

com aqueles que defendem os princípios da humanização do parto e do nascimento

(a conservação os direitos das gestantes e a sua autonomia de vontade). Contudo,

partindo do pressuposto de que não havendo lei que recomende ou flexibilize o

direito da gestante ao acompanhamento durante o parto e pós-parto, continua

sendo direito fundamental e inviolável a sua tutela e dever dos hospitais públicos e

privados oferecer condições físicas a efetivação do direito, guardadas, por óbvio, as

medidas restritivas apontadas no transcorrer do trabalho.

Assim, o que se espera é que se consiga apontar as contradições existentes,

todavia, com fulcro a reforçar a garantia dos direitos da gestante em ter um

acompanhante de sua confiança, mas procurando pontos que compatibilizem tais

direitos com a segurança, no que diz respeito às restrições impostas pelos órgãos de

saúde, considerando que não há proibição da presença do acompanhante. Em

tempos de pandemia, o debate contribui para mostrar os efeitos dela, da pandemia,

na legislação e no comportamento das pessoas, impondo mudanças abruptas nunca

antes vivenciadas.

1. A ASSISTÊNCIA À GESTANTE E A LEGISLAÇÃO NO BRASIL

O direito à saúde está positivado no art. 6º, da Constituição Federal de 1988,

em sede de direitos sociais. Assim, se estabelece como direitos sociais fundamentais

a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção

à maternidade e à infância. Em seu art. 196, a Constituição Federal reconhece a

saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais

e econômicas. A Organização Mundial de Saúde (OMS), por sua vez, define a saúde

como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

como a ausência de doença. Feitas estas considerações, é elementar que a proteção

a maternidade esteja imbuída nas discussões dos direitos relativos à saúde.

O problema em questão abarca a condição de saúde da mulher em trabalho

de parto e pós-parto em relação aos cuidados e direitos respaldados legalmente,

como o direito a acompanhante para a manutenção da saúde física e mental, bem

como para cuidados básicos. Mas cabe salientar que, após o parto, a mulher entra

em um momento de regressão para o período pré-gravídico, o puerpério, fase de

significativas modificações tanto físicas quanto emocionais, que não tem um tempo

determinado para terminar. Para fins didáticos, é uma fase que se inicia logo após

o parto e vai até o 10º dia pós-parto; tardio, com início no dia 11º ao 42º dia pós-

parto; e remoto com início 43º dia até um ano pós-parto (BRASIL, 2016).

Contudo, o mundo está vivendo um momento de emergência de saúde

pública, decorrente da pandemia de Covid-19, mas desde o início do surto houve

uma grande preocupação diante de sua rápida propagação e impactos nos sistemas

de saúde e na economia. A despeito disso, as recomendações da Organização

Mundial da Saúde, do Ministério da Saúde do Brasil, e outras organizações

nacionais e internacionais têm sugerido a aplicação de planos de contingência

semelhantes aos da gripe influenza e suas ferramentas, devido mesmo às

semelhanças clínicas e epidemiológicas entre esses vírus respiratórios.

Dentre os planos de contingência, considerando a gravidade do Covid-19,

outras medidas de contenção foram impostas como, por exemplo, o distanciamento

social, a restrição de circulação pública, a quarentena, o lockdown, o uso obrigatório

de máscara e outras.

Tais restrições causaram muitas situações que exigem uma análise das

contradições em relação à legalidade, como é o caso em estudo, que diante da

ocorrência de recusa de hospitais e maternidades em permitir o acompanhamento

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da gestante no pré, durante o parto e no pós-parto para acatar as medidas de

contenção do Covid-19, podem estar violamdo os direitos das mulheres em situação

de parto.

Segundo Dias (2011), o modelo de assistência à saúde fragmentado,

curativo e hospitalar caracterizou toda a construção do sistema de saúde do Brasil,

de forma a privilegiar e consolidar as práticas médicas individuais, financiadas pelo

sistema previdenciário, em detrimento das ações coletivas de prevenção e

promoção da saúde.

Na década de 1990, como resultado do ativismo das mulheres e da

emergência da medicina baseada em evidências, um movimento mundial começou

a documentar os benefícios emocionais e de saúde e alta satisfação materna, com a

presença e apoio contínuo durante o parto. Grupos de pesquisadores e ativistas, em

vários países, organizaram ensaios clínicos para randomizar mulheres com e sem

acompanhantes. Esses estudos e as revisões sistemáticas decorrentes

documentaram os muitos resultados positivos para a saúde materna e neonatal

dessa intervenção simples. Isso levou à recomendação internacional pela

Organização Mundial da Saúde (OMS) na década de 1990, de que “o apoio contínuo

durante o trabalho tem benefícios clinicamente significativos para as mulheres e

crianças e nenhum prejuízo conhecido, e que todas as mulheres devem ter apoio

durante o parto e nascimento” (DINIZ et al., 2014, p. S141).

Ponderam Beauchamp e Childress que a disponibilidade das informações

poderá favorecer a compreensão das parturientes em relação aos seus direitos,

fazendo com que se sintam respeitadas. Para tanto, é necessário profissionais de

saúde envolvidos, comprometidos com o processo de cuidar, capazes de reconhecer

o direito das parturientes em expressar suas opiniões e a sua possibilidade de fazer

escolhas, baseadas em seus valores e crenças pessoais, o que exige “apenas um grau

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

substancial de entendimento e liberdade de alguma coerção, e não um

entendimento pleno ou uma completa ausência de influência” (BEAUCHAMP;

CHILDRESS, 2002, p. 352).

Para averiguação prática da análise do descumprimento da legislação e seus

impactos, uma pesquisa descritivo-exploratória, de natureza qualitativa, cujos

dados foram coletados em quatro hospitais da Região Metropolitana II do Estado

do Rio de Janeiro, foi realizada entre janeiro e julho de 2014 e apresentados através

do artigo intitulado “O descumprimento da Lei do Acompanhante como agravo à

saúde obstétrica” (RODRIGUES et al., 2017). O estudo identificou com acuidade

uma noção do tamanho do desconhecimento por parte das mulheres quanto ao teor

da Lei do Acompanhante, assim como aos seus direitos.

Indiretamente, através das entrevistas, possibilitou confirmar que essa

desinformação ocorre. Também, por parte dos profissionais de saúde, configurando

privação dos direitos reprodutivos contra a mulher:

[...] como já sou maior de idade não posso ter mais acompanhante.
[...] somente menor de idade pode ter alguém com você. [...] falaram
isso logo quando eu entrei para ser atendida [...]. não deixaram a
minha mãe entrar comigo [...] e como eu não tenho mais direito se
fosse adolescente até eu brigaria para ter, mas fazer o que? [...] (P18);
[...] falavam que eu não podia ter acompanhante, aqui ninguém tem
o acompanhante [...] e as pessoas falaram que não pode e deveriam
deixar uma pessoa ficar, somente menor de idade [...] (P20).
(RODRIGUES et al., 2017, p. 3).

Os autores mencionam que, embora a Lei n°. 11.108/2005 esteja em vigor há vários

anos, sendo o instrumento que institui no âmbito público e privado a modalidade de

assistência ao acompanhante, os depoimentos colhidos durante a pesquisa confirmam a

gravosa situação de desinformação quanto a possibilidade de um acompanhante de livre

escolha da mulher durante o período de pré-parto, parto e puerpério imediato. Esclarecem,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

também, que o acesso à informação deve ter início já no acompanhamento pré-natal,

fazendo com que a mulher seja informada acerca desses direitos legais e possa tomar uma

decisão consciente, caso necessário.

Sem dúvida, conforme entabula Rodrigues et. al. (2017), no transcorrer do estudo,

a desinformação sobre esse direito ao acompanhante sustenta o descumprimento de seus

direitos instituídos. A instituição de saúde, ao impedir que a mulher usufrua do

acompanhante de livre escolha, corroborando uma prática em que o profissional de saúde

perpetua ‘rotinas’ e ‘normas’ implantadas historicamente na atenção ao parto e ao

nascimento, conforme se observa nos relatos a seguir:

[...] eu não tive isso, não deixaram o meu marido participar comigo,
e tentei ver isso, mas esse médico não estava deixando. [...] as outras
meninas, os seus esposos estavam junto, não sei porque ele não
deixou ficar e ver o meu parto, achei uma falta de compreensão! [...]
(P03); [...] na sala de parto foi estranho, não deixaram a minha mãe
entrar. [...] o médico disse que não podia entrar na sala. [...] nesse
momento iria ficar sozinha, somente depois iria me ver [...] (P15).
(RODRIGUES et al., 2017, p. 4).

Outro ponto que merece profunda reflexão é que o direito ao acompanhante ainda

não se tornou uma realidade para a totalidade das mulheres brasileiras, pois muitas não

conseguem usufruí-lo, seja pela carência de informações à mulher e/ou ao tímido

movimento de participação social nessas questões, no Brasil.

Entretanto, a violação dos direitos se torna ainda mais gravosa quando,

ultrapassada a barreira do desconhecimento, mesmo cientes do direito em comento, esse

fato não lhes assegurou o exercício de cidadania e a efetivação. Os depoimentos são claros

a esse respeito:

[...] mas não consegui [...] (P02); [...] eu briguei com todo mundo
aqui. [...] sei que tem uma lei [...]. Tenho um direito de ter o
acompanhante, chamei a polícia e tudo, mas não consegui
atendimento, pois não tinha espaço suficiente para isso [...] (P19).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

[...] pois, quando eles [profissionais] falam que não pode [ter
acompanhante] acho que é normal, nem questiono, e não falo nada,
pois eles entendem disso [...] (P01); [...] já sei como funciona, achei
normal, porque eles [profissionais] falam que não pode entrar
ninguém, e temos de respeitar e acatar o que falam para a gente [...]
(P10). [...] achei uma indiferença comigo, um tratamento ruim com
que eles [profissionais] me trataram. Não deixaram a minha mãe
entrar no pré-parto. No parto o médico disse que ninguém vai
entrar, e aqui não pude ficar com ninguém. Me sinto sozinha o
tempo todo, sem ninguém da família [...] me tratou igual a um
cavalo [...] uma situação horrível e desumana, ele me tratando mal
e me desrespeitando o tempo todo [...] (P05);
[...] não dá para dialogar com a médica, uma bruta e grossa, uma
insensível, pois deveria ter deixado a minha mãe entrar nesse
momento. [...] um momento que esperamos e ela não deixou, falou
que não podia e não iria deixar. [...] as enfermeiras, e não tinha
condição mesmo [...] (P09). (RODRIGUES, 2017, p. 5).

Assim, conforme expõem os autores, mesmo a autoridade e o poder

conferidos pela instituição ao profissional de saúde, a mulher vivenciou uma

relação de desigualdade na relação de poder, não lhe restando outra opção senão se

submeter à anulação do seu direito ao acompanhante durante o componente do

parto e nascimento.

Uma lamentável perspectiva, porém de importante discussão, também

presente no estudo sobre o cumprimento da Lei do Acompanhante, adentra a

perspectiva da parturiente quanto o cumprimento do direito no âmbito público e

no âmbito privado. A ausência de apoio institucional de caráter privado,

relacionada com a Lei do Acompanhante, pode ser observada nos depoimentos das

mulheres, quando relataram que a unidade hospitalar particular tende a respeitar o

texto legal, ao contrário do serviço de saúde público:

[...] e se quisesse procurar um hospital particular, aqui ela não


deixava, me senti abandonada, muito ruim essa situação e se não
fosse teria de procurar outro local, somente o particular tem o

160
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

acompanhante [...] (P07); [...] e disse: ‘somente no particular tem


isso, aqui não tem isso’, e me senti desesperada e abandonada,
queria pelo menos o meu pai comigo [...] (P14). (RODRIGUES et al.,
2017, p. 7).

Aqui, os autores apresentam depoimentos que remetem ao que “seria

diferente no serviço particular”, e essa noção permeia uma condição de apoio que o

serviço de saúde na instituição pública negou. Com esse descumprindo a Lei do

Acompanhante contribui para a insegurança da mulher no momento do parto.

Então,

pelo que foi exposto, infere-se que no imaginário social, se a mulher


‘paga’, o serviço concede-lhe mais apoio durante o processo
parturitivo, e a sua vivência permite que o processo seja mais
seguro, ao contrário das mulheres do estudo, que apontaram essa
diferenciação de caráter socialmente discriminatório, que precisa
ser superada pelas instituições, por gestores e profissionais da
saúde, a partir do cumprimento da Lei do Acompanhante em vigor,
bem como da Política de Humanização do Parto e Nascimento
(RODRIGUES et al., 2017, p. 8).

Da mesma forma, depreende-se da análise do estudo comentado que o

descumprimento da Lei n°. 11.108/2005 ocorre nas maternidades públicas,

principalmente, pelo desconhecimento da mulher a respeito do seu direito de ter

um acompanhante. Ademais, como foi mencionado, outro fator preponderante para

tal violação diz respeito a desigualdade nas relações de poder dos profissionais de

saúde, e por estruturas tradicionais das instituições, além de características do

modelo de gestão vigente.

Cita-se, nesse ponto, o estudo apresentado por Brüggemanna et. al., 2015,

intitulado “No parto vaginal e na cesariana acompanhante não entra: discursos de

enfermeiras e diretores técnicos”, que buscou compreender, sob a ótica de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

enfermeiros e diretores técnicos, as razões que levam as instituições de saúde de

Santa Catarina a impedirem a presença do acompanhante no parto vaginal e na

cesariana.

Nas ideias centrais, apresentadas no artigo, ficou evidente que o motivo das

restrições do acompanhante são basicamente as seguintes: a sala cirúrgica não é

lugar para o acompanhante; na sala de parto acompanhante não entra; o

acompanhante não tem preparo emocional e psicológico; falta de participação no

pré-natal dificulta a entrada do acompanhante; se o acompanhante não pede, ele

não entra, mas se exigir, entra.

Enfim, os autores ponderam, em suas conclusões, que devido a

desigualdade nas relações de poder dos profissionais de saúde existe uma postura

de “poder supremo”, mas que o impedimento do acompanhante está pautado em

ideias preconcebidas de que ele pode interferir negativamente na organização do

processo de trabalho. Mencionam, em suas conclusões que:

A inserção do acompanhante no processo de nascimento requer


mudanças de atitudes dos profissionais, em especial os que ocupam
cargos de gestão nas instituições de saúde, sejam da área médica ou
de enfermagem. A adoção dessa prática pode contribuir para a
redução de intervenções desnecessárias indutoras das complicações
obstétricas que, por sua vez, estão associadas com a mortalidade
materna no Brasil, que permanece acima da meta estipulada para
2015 pelos ODM. (BRÜGGEMANNA, et. al., 2015, p. 157).

Como bem avaliam os autores mencionados, em suas conclusões, é preciso

a revisão de práticas e renovação de indicadores de atendimento, para que haja

priorização na humanização da assistência à mulher em qualquer fase da sua

gestação, tendo em vista banir do processo assistencial qualquer forma de violência

e, sobretudo, e fazer cumprir rigorosamente o que prevê a Lei do Acompanhante.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

2. O MOVIMENTO PELA HUMANIZAÇÃO DO PARTO NO BRASIL

No Brasil, o movimento pela humanização do parto é impulsionado por

experiências em vários Estados. Na década de 1970, surgiram profissionais

dissidentes, inspirados por práticas tradicionais de parteiras e índios, como Galba

de Araújo no Ceará e Moisés Paciornick (1979) no Paraná, além do Hospital Pio X

em Goiás, e de grupos de terapias alternativas como a Yoga, com o Instituto Aurora

no Rio. Na década de 1980, vários grupos oferecem assistência humanizada à

gravidez e parto e propõem mudanças nas práticas, como o Coletivo Feminista

Sexualidade e Saúde e a Associação Comunitária Monte Azul em São Paulo, e os

grupos Curumim e Cais do Parto em Pernambuco (DINIZ, 2005, p. 631).

Menciona a autora, quanto a formalização desse processo que a Rede pela

Humanização do Parto e do Nascimento (Rehuna), fundada em 1993,

denunciou algumas circunstâncias de violência e constrangimento nas assistências

e condições pouco humanas a que as mulheres e as crianças são submetidas nesse

momento delicado. Condições como imposição de rotinas, como a posição a do

parto e interferências obstétricas desnecessárias que rompiam com a naturalidade

dos mecanismos fisiológicos do parto e exprimiam mais uma patologia intervenção

médica, uma experiência de terror, impotência, alienação e dor. Assim, a cesárea

acabou sendo a melhor forma de dar à luz, sem medo, risco e dor.

Um marco muito importante na popularização do movimento da

humanização do parto foi dado pela primeira maternidade pública "autodefinida"

como humanizada, no Rio de Janeiro, em 1994, que recebeu o justo nome de Leila

Diniz.
Outros marcos em termos de políticas públicas foram a criação do
Prêmio Galba Araújo para Maternidades Humanizadas, em 1998, e
a proposição das Casas de Parto. Os critérios para a concessão do

163
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

prêmio são baseados na adesão às recomendações da OMS, tais


como a presença de acompanhantes no pré-parto, parto e pós-parto,
a assistência aos partos de baixo risco por enfermeiras, e controle
das taxas de cesárea. Concedido em nível estadual, regional e
nacional, o Galba tem provocado uma mobilização dos hospitais e
tido a participação de um número de serviços crescente a cada
edição, contribuindo para conferir legitimidade ao modelo
humanizado – ainda que os serviços premiados enfrentem
incontáveis problemas para a implementação do modelo [...]. O
projeto de Casas de Parto, após um início promissor, encontra
limites e resistências principalmente dos médicos. (DINIZ, 2005, p.
632).

Para a autora, estas iniciativas inauguraram um processo mais amplo de

humanização dos serviços conduzido pelo Ministério da Saúde, como o Programa

de Humanização no Pré-Natal e Nascimento (PHPN) e o de Programa de

Humanização de Hospitais, lançados em maio e junho de 2000, com objetivo de

abranger centenas de instituições.

Nessa esteira, conforme se depreendem dos apontamentos feitos, para

Diniz (2015), as propostas de humanização de hospitais, da assistência ao recém-

nascido, ao prematuro (associado ao modelo de "mãe-canguru"), ao abortamento, e

inclusive à morte. A humanização aparece como a necessária redefinição das relações

humanas na assistência, como revisão do projeto de cuidado, e mesmo da

compreensão da condição humana e de direitos humanos.

Em 1998, o Ministério da Saúde inicia a implementação de uma série de

iniciativas e incentivos, voltados às questões da humanização, objetivando

melhorar a qualidade da assistência obstétrica, revalorizar o parto normal, reduzir

as taxas de cesáreas desnecessárias, modelo que vem crescendo ao longo das

últimas décadas, e fortalecer a relação da mãe com seu bebê (BRASIL,1998;

BRASIL,1999). Ademais, brilhantemente Diniz conclui que:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O termo humanização do parto se refere a uma multiplicidade de


interpretações e a um conjunto amplo de propostas de mudança nas
práticas, trazendo ao cotidiano dos serviços conceitos novos e
desafiadores, às vezes conflitantes. [..] Humanização é também um
termo estratégico, menos acusatório, para dialogar com os
profissionais de saúde sobre a violência institucional. No caso
brasileiro, a obstetrícia parece ter apelo inegável em defesa das
mulheres, que seriam aqui mais beneficiadas, barganhando mais
alívio da dor e mais preservação genital, desde que paguem por
isso: eis o padrão ouro da assistência na prática. (DINIZ, 2005, p.
635).

É preciso, além da mudança de algumas práticas hospitalares claramente

desatualizadas, que a humanização mude o olhar da sociedade no geral para a gestante, e

processo do parto. Isso, por sua vez, se dará quando houver uma efetiva educação sobre

sexualidade, empedramento feminino, desconstrução do parto como motivo de vergonha,

dor e sofrimento, e edificação de uma filosofia de vida voltada para percepção e

esclarecimento da gestante.

3. PARTICIPAÇÃO DO ACOMPANHANTE NA HUMANIZAÇÃO DO PARTO E NO

BEM ESTAR DA GESTANTE E DO CONCEPTO

Segundo a Organização Mundial de Saúde, Ministério da Saúde (1996) o

acompanhante no parto humanizado é a pessoa que provê o suporte à mulher durante o

processo parturitivo e de acordo com o contexto assistencial, este pode ser representado por

profissionais (enfermeira, parteira), companheiro/familiar ou amiga da parturiente, doula

e mulher leiga .

Ocorre que para Longo et. al. (2010), entretanto, o conceito de acompanhante

apresentado pela Política Nacional de Humanização, conhecido como “Humaniza SUS”, já

aponta o acompanhante como o representante da rede social da paciente que a acompanha

durante toda a permanência no ambiente hospitalar. As diferentes concepções e avaliações

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

culturais de cada mulher, referente a cada parto, orientam quem ela escolherá para

acompanhá-la durante o processo de parturição.

Já foi evidenciado que quando a parturiente tem o direito a sua livre escolha ao

acompanhante respeitado, valendo-se dos critérios volitivos para determinar sua vontade.

Tanto que, via de regra, os acompanhantes são as mães, companheiros, irmãos, amigos

próximos, ou seja, uma figura que a gestante atribua uma sensação de apoio e confiança, e

que possa lhe assistir em qualquer dificuldade. Se a equipe médica converge com as práticas

de um parto humanitário, respeitando o plano de parto desejado pela gestante, isso,

atrelada a presença de um ente que lhe confere confiança, só tem a beneficiar o processo de

parturição.

O guia prático de assistência ao parto normal para uma Maternidade Segura

apresenta aspectos gerais da assistência ao parto, dentre eles o apoio durante o parto e a

escolha do acompanhante como prática demonstrativa útil que deve ser estimulada.

Embora esse documento tenha sido distribuído a todos os obstetras brasileiros no ano de

2000, a divulgação dessas práticas precisa ser intensificada junto à população, para serem

conhecidas e utilizadas pelas mulheres, e assim incentivar o parto natural contribuindo

para a redução de morte materna e neonatal. (OMS, 2017, p. 16,17-28).

A grande maioria das mulheres considerou que ter um acompanhante durante o

trabalho de parto e nascimento “foi muito útil” ou “útil”, para ter uma experiência melhor

e mais calma no parto (91,2% das respostas válidas); apenas 2,7% do total da amostra

pensaram que “não era útil” e fez as mulheres mais nervosas. (DINIZ et al., 2014, p. S144).

No artigo apresentado por Diniz et. al (2014), que discorreu sobre a

“implementação da presença de acompanhantes durante a internação para o parto: dados

da pesquisa nacional Nascer no Brasil”, evidenciou-se que:

Considerando-se as mulheres que não tiveram um acompanhante (dados


não mostrados na tabela), as razões dadas para este fato eram
principalmente: o não cumprimento institucional da legislação,
principalmente, ‘nenhum tipo de acompanhante permitido no
hospital’ (52%), e outras formas de restrições (somente para

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

cesarianas ou para adolescentes, para acompanhantes mulheres,


para aqueles que participaram de um curso, para aqueles que
tivessem pago etc.) Outra causa foi ‘não tem ninguém para ficar com
ela’ (18%), seja porque o parceiro tinha de ficar com as outras
crianças ou por falta de uma rede de apoio social, ou por causa de
‘internação inesperada para o parto’, em situações em que a mulher
veio sozinha apenas para uma consulta pré-natal e teve uma
indicação imediata para uma cesariana. Algumas mulheres que
foram transferidas de outros serviços relataram obstáculos de
acesso, como ‘a ambulância não permitiu trazer o acompanhante’.
Identificamos frequente falta de informação às mulheres antes do
parto sobre o acompanhante. Elas usaram as seguintes expressões
para afirmar que não foram informadas: ‘não sabia que era
permitido’, ‘não sabia que era permitido em partos vaginais’, ‘não
sabia que era permitido para não-adolescentes’ etc. Apenas 5,7%
das mulheres desacompanhadas (1,4% do total) disseram que
estavam sozinhas porque não queriam ter qualquer acompanhante
(dados não apresentados na tabela). Encontramos grande variação
em termos de implementação de acompanhamento entre as regiões:
23,1% e 22,6% das mulheres tiveram acompanhante de acordo com
a lei nas regiões Sudeste e Sul (melhores resultados) e apenas 11,7%
no Norte. A Região Centro-oeste teve a pior situação, com mais de
38,9% das mulheres com nenhum acompanhante. (Figura 1). [...] As
mulheres que com mais frequência ficaram sem qualquer
acompanhante foram as que tiveram parto vaginal, viviam na
Região Centro-oeste, tinham rendimentos mais baixos, menor
escolaridade, eram pretas ou pardas, multíparas e usuárias do setor
público. A forma de pagamento para assistência ao parto das
mulheres foi fortemente associada a ter ou não ter qualquer
acompanhante: no setor público 29,5% não tiveram qualquer
acompanhante, no setor privado apenas 4,7%. O estado civil das
mulheres e o tipo de profissional não foram estatisticamente
diferentes nas chances de ter acompanhante; a idade materna não
foi significativa na análise bivariada. (DINIZ et al., 2014, p. S144-
S145).

Um importante indicativo de desigualdade, ainda não mencionado no

presente texto, aparece nas inflexões propostas no resultado do trabalho, qual seja:

desigualdade regional. Isto porque, ficou demonstrado que a porcentagem de

desconhecimento da gestante no que se refere ao seu direito a acompanhante, é

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

maior na região norte. Esta premissa, por sua vez, só confirma que as desigualdades

regionais no Brasil vão muito além de termos econômicos, é uma desigualdade

social tamanha que reflete até no direito de informação à gestante.

Destaca-se que, no Brasil, as instituições de saúde que permitem a presença

do acompanhante são as que buscam reduzir intervenções desnecessárias, sem

evidências e não recomendadas pela OMS para a assistência ao parto, e que

implementaram mudanças mínimas na ambiência e no mobiliário, tais como ter

cadeiras para todos os acompanhantes. Assim, a correlação entre a presença do

acompanhante e a adoção de boas práticas nas instituições pode ter contribuído

para esses resultados. Também há de se considerar que o profissional de saúde

tende a mudar de atitude quando o acompanhante está presente, o que pode ser

observado nos estudos que mostram que as mulheres ficam mais satisfeitas com a

experiência do parto e com as orientações e os cuidados recebidos dos profissionais

de saúde quando possuem um acompanhante de sua escolha. (MONGUILHOTT et

al., 2018, p. 8).

Pontua Diniz et. al. (2014) que apesar da evolução legislativa e cultural-

social, os estudos aqui mencionados mostram que de fato a presença contínua de

um acompanhante durante o parto na maioria dos serviços ainda é um privilégio

para as mulheres com maior renda e escolaridade, de cor branca, pagando pela

assistência, e que tiveram uma cesariana. São dados de violações a Direitos

Fundamentais alarmantes e para mudar a cultura tradicional de descaso com o bem-

estar, a segurança e o conforto das mulheres durante o parto. Isso inclui a

autoridade e as capacidades de negociação para promover uma cultura de respeito

aos direitos das mulheres, superando a resistência dos profissionais à mudança de

rotinas discriminatórias.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

5. O direito da gestante em trabalho de parto e no pós-parto a


acompanhante e as restrições da COVID-19
Desde o início do atual surto de coronavírus (SARS-CoV-2), causador da

Covid-19, houve uma grande preocupação diante de uma doença que se espalhou

rapidamente em várias regiões do mundo, com diferentes impactos.

De acordo com Freitas (2020), não existiam planos estratégicos prontos para

serem aplicados a uma pandemia de coronavírus – tudo é novo. Recomendações da

OMS, do Ministério da Saúde do Brasil, do Centers for Disease Control and

Prevention (CDC, Estados Unidos) e outras organizações nacionais e internacionais

têm sugerido a aplicação de planos de contingência de influenza e suas ferramentas,

devido às semelhanças clínicas e epidemiológicas entre esses vírus respiratórios.

Esses planos de contingência preveem ações diferentes de acordo com a gravidade

das pandemias.

O Ministério da Saúde estabeleceu a Portaria nº. 2.222/GM/MS, de 25

agosto de 2020, que institui, em caráter excepcional e temporário, Ações Estratégicas

de Apoio à Gestação, Pré-Natal e Puerpério e o incentivo financeiro federal de

custeio para o enfretamento da Emergência em Saúde Pública de Importância

Nacional (ESPIN) decorrente da pandemia do coronavírus. Dentre as

determinações destacam-se as ações estratégicas e os objetivos de atuação, em seus

artigos 2º e 3º.

Assim, os estabelecimentos de saúde, no tratamento da gestante, tem

obedecido as regras gerais impostas pela pandemia (uso de máscaras,

disponibilização de modos de higienização da mão, distanciamento dentre outros),

contudo, além dessas condutas, muito tem se ponderado sobre a legalidade da

restrição do acompanhante já que, a principal característica do vírus é sua

transmissibilidade.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A situação não é simples. É necessária uma ponderação entre o direito

coletivo a saúde e o direito da gestante ao acompanhante. Não se pode negligenciar

nenhumas das situações, porque, é fato a situação de gravidade, principalmente na

saúde pública, que atende parcela considerável da população, sendo a redução da

presença de pessoas, no geral, uma medida de segurança até mesmo para a gestante

e o concepto.

A Fiocruz (2020) sistematizou e disponibilizou ao público as premissas que

se firmaram no Encontro com os Especialistas obstetras dentre os quais Adriana

Gomes Luz, Marcos Nakamura, Renato Sá, que formaram os principais pontos

(grifo nosso):

Com a pandemia de COVID-19 protocolos de atendimento e


guidelines devem ser reorganizados à luz de novas evidências. No
Brasil, a presença do acompanhante de livre escolha da mulher
durante o parto é lei federal. Deve-se avaliar sua condição de saúde
e a realidade de cada serviço a fim de garantir segurança para a
mulher, seu bebê e para a equipe de saúde. O acompanhante deve
estar assintomático para síndrome gripal e utilizar paramentação
adequada. Apesar de grande preocupação por parte dos
profissionais de saúde quanto aos equipamentos de proteção
individual, a precaução padrão e a correta higienização das mãos
são recomendadas para o atendimento de gestantes assintomáticas.
A utilização de máscara N95/PFF2 deve ocorrer em casos suspeitos
ou confirmados de COVID-19, onde haja risco de geração de
aerossóis. Durante o trabalho de parto os profissionais de saúde
sempre devem utilizar os EPIs, uma vez que é inviável a utilização
de máscara pela gestante, principalmente durante a fase ativa do
trabalho de parto. Até o momento, não há evidências suficientes
sobre a transmissão vertical. Ainda assim, existe preocupação
quanto ao risco de contaminação do bebê a partir do contato com a
mãe infectada, seja durante os cuidados ou pela proximidade
durante a amamentação.

A Fiocruz (2020) cita na referida matéria que recentemente a Federação

Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) lançou um guia, onde a recomendação

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

era de não ter acompanhante. Porém, o próprio Colégio Real Inglês (Royal College of

Obstetricians and Gynaecologists), outras sociedades e o Ministério da Saúde no Brasil se

manifestam pela possibilidade da presença do acompanhante, desde que esse

acompanhante não esteja sintomático. No entanto, ressaltou que se o acompanhante de

escolha da mulher estiver sintomático, não é recomendado que ele seja acompanhante no

período do parto e pós-parto. E determina em casos de acompanhantes assintomáticos e no

puerpério:

Por sua vez, se o acompanhante estiver assintomático, ele pode


acompanhar a mulher e deve-se seguir as recomendações de
precaução, de higienização das mãos, etc. Vale lembrar que a
escolha e presença do acompanhante no parto e pós parto imediato,
no Brasil, é garantida por uma lei Federal. No caso da presença de
doulas durante a pandemia, precisa-se discutir com as mulheres.
Trata-se de colocar mais uma pessoa na cena do parto no momento
onde a recomendação é de diminuir o fluxo e também os riscos de
contaminação. Há também que se avaliar a ambiência dos serviços
e formas de reduzir os riscos de contágio dos acompanhantes, não
só no momento do parto, mas também no alojamento conjunto
durante o puerpério. A falta de equipamentos de proteção
individual (EPI) pode colocar em risco os profissionais de saúde e
também os acompanhantes. (FIOCRUZ, 2020).

Já a Lei n°. 13.079/20, que preconiza as medidas para enfrentamento da

emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do

coronavírus responsável pelo surto de 2019, em seu artigo 3º, § 2º, inciso III, dispõe

que a disciplina para os cuidados com a Covid-19 não deve se afastar dos postulados

da dignidade da pessoa humana (grifo nosso):

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de


importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades
poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as
seguintes medidas: § 2º Ficam assegurados às pessoas afetadas
pelas medidas previstas neste artigo: I - o direito de serem

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

informadas permanentemente sobre o seu estado de saúde e a


assistência à família conforme regulamento; II - o direito de
receberem tratamento gratuito; III - o pleno respeito à dignidade,
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas,
conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário
Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº. 10.212, de 30 de
janeiro de 2020.

Foi justamente com base neste artigo, e diante do descumprimento latente das

maternidades que estavam tolhendo indiscriminadamente a presença do acompanhante

que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ajuizou uma Ação Civil Pública, em uma

das Varas da Fazenda Pública de Mogi das Cruzes (SP), para obrigar a Santa Casa de

Misericórdia a garantir a todas as gestantes o direito a um acompanhante antes, durante e

depois do parto.

O juiz destacou em sua decisão que, a Santa Casa não pode inviabilizar o direito

da mulher: “A Lei 13.979/20, não suspendeu a eficácia da Lei 11.108/05, que alterou a Lei do

SUS (Lei 8080/90), ao estabelecer o direito ao acompanhante antes, durante e depois do

parto”, afirmou. O magistrado destacou que o acompanhante continua garantido, desde

que se submeta aos procedimentos da nota técnica da Secretaria de Atenção Primária à

Saúde, referente às medidas de prevenção para os partos durante a epidemia.

(ASCOM/DPE-SP, 2020).

A Câmara Legislativa Federal, através do deputado Ricardo Silva (PSB-SP),

também se manifestou sobre o celeuma, e protocolou o Projeto de Lei 3823/20, que institui

normas de caráter transitório e emergencial para a proteção de gestantes, parturientes,

puérperas (mulheres no pós-parto) e bebês durante a emergência de saúde pública do novo

coronavírus. Conforme noticiou a Agência Câmara de Notícias (2020):

O parlamentar lembra que o Ministério da Saúde incluiu as


grávidas e as puérperas até duas semanas após o parto entre o
grupo de risco para Covid-19 e publicou um protocolo de manejo
clínico específico para elas. Porém, ainda assim, segundo ele, ‘77%
das mortes de gestantes e puérperas por Covid-19 registradas no
mundo ocorreram no Brasil’. Os dados são de estudo publicado no

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

periódico médico International Journal of Gynecology and Obstetrics.


Segundo o estudo, o atendimento pré-natal de baixa qualidade, a
falta de recursos para cuidados críticos e de emergência, as
disparidades raciais no acesso aos serviços de maternidade, a
violência obstétrica e as barreiras adicionais colocadas pela
pandemia para o acesso aos cuidados de saúde específicos às
gestantes são citados como motivos para a alta taxa de mortalidade
no Brasil.

O projeto prevê, nesse espeque, várias medidas, como leitos exclusivos, pré-

natal através de telemedicina licença-maternidade de 180 dias (ao invés de 120), e

quanto ao direito a acompanhante.

Acompanhante. A proposta permite ainda que seja flexibilizado o


direito das parturientes à presença de acompanhante durante o
trabalho de parto e pós-parto imediato, garantido hoje pela Lei
11.108/05, bem como o direito à visitação, conforme
critérios técnicos previamente estabelecidos pelo Poder Executivo e
pelas unidades hospitalares públicas e privadas. Segundo o texto, o
alojamento conjunto mãe-filho deverá ser mantido sempre que
possível em isolamento, em quarto privativo, assegurado o
distanciamento mínimo de 1,5 metro entre o leito da mãe e o berço
do recém-nascido. A amamentação será assegurada ainda que em
caso de infecção por Covid-19, desde que a mãe deseje amamentar
e esteja em condições clínicas adequadas para isso, conforme
atestado pelo médico responsável, devendo ser orientada quanto
aos cuidados necessários e aos eventuais riscos de transmissão por
gotículas e contato. (Agência Câmara de Notícias, 2020).

Vários outros estados, a exemplo do Mato Grosso do Sul, através da

Associação dos Municípios do Mato Grosso do Sul, publicou Diretrizes no manejo

de pacientes gestantes e puérperas internadas com suspeita ou confirmação de

infecção pelo sars-cov-2 (covid 19), que preconizaram:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Diante da pandemia do novo Corona vírus (Covid-19), e conforme


determinações da Fundação Municipal de Saúde, as maternidades
da rede municipal passam a adotar as seguintes regras visando a
implementação e reforço das precauções de contato no âmbito de
suas instalações: - Terão direito a acompanhante apenas as
pacientes puérperas (pós-parto normal e pós cesárea), pessoas com
deficiência e pessoas com idade < 18 anos, respeitadas as normas
internas de precauções de contágio; - Não serão permitidos
acompanhantes com idade ≥ 60 anos ou < 18 anos. - Não serão
permitidos acompanhantes com sintomas gripais ou que sejam
contactantes de pessoas com sintomas gripais. - O acompanhante
deve usar máscara cirúrgica durante toda a permanência
hospitalar. - Não haverá troca de acompanhante, poderá ocorrer
mediante comunicação prévia à (ao) enfermeira (o) do plantão. -
Suspender as visitas à todas as pacientes internadas, salvo, no caso
de puérpera, no qual será permitida visita do pai do recém-nascido,
respeitadas as normas internas da instituição. - Distância de 1,5
metros dos leitos de maternidade (MATO GROSSO DO SUL,
Diário Oficial, 2020).

Observa-se, portanto, que além da Lei Federal que garante o direito há

também um claro movimento social legislativo que visa à garantia da presença do

acompanhante. Nessa seara, somam-se as dificuldades de cultura médica, restrição

indiscriminada, bem como a até a ausência de EPI’s para os acompanhantes, a

violação acaba se tornando rotina e o momento tratado outrora com tanta

expectativa transforma-se em verdadeiro pesadelo.

É relevante olvidar que por ser um momento singular e único, o Estado,

enquanto garantidor integral do texto constitucional, precisa garantir as

parturientes, de forma segura que caso deseje, uma pessoa de sua confiança lhe

acompanhante. Faz parte do desenvolvimento saudável e menos intervencionista

do parto e do bem estar psicológico e físico das parturientes e do concepto.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Até que se edite uma lei contrária à presença do acompanhante, no caso de

pessoa assintomática, com ou sem a presença de atestado, tem-se que acatar o

previsto na Lei Federal nº. 11.108 e garantir esse direito fundamental da gestante em

trabalho de parto e pós-parto.

O descumprimento da Lei n°. 11.108/2005 se dá nas maternidades públicas,

pelo desconhecimento da mulher a respeito do seu direito de ter um acompanhante

de sua livre escolha durante o parto e o nascimento. Além disso, ficou caracterizado

que a privação do direito ao acompanhante também se efetivou pela desigualdade

nas relações de poder dos profissionais de saúde, e por estruturas tradicionais das

instituições, além de características do modelo de gestão vigente.

Não permitir a presença do acompanhante no momento do parto e

nascimento é uma prática que se expressa culturalmente nas relações com os

profissionais de saúde, segundo a qual o acompanhante é uma “complicação” nesse

momento. Assim, em algumas situações, o profissional acaba utilizando sua

autoridade e poder institucional para impedir que a mulher faça valer esse direito

legal, o que pode caracterizar uma violação dos direitos sexuais, reprodutivos e

humanos. Desse modo, o acompanhante assegura à mulher apoio físico e emocional

auxiliando a acalmá-la e promovendo a fisiologia do parto, assim inibindo

intervenções desnecessárias e até mesmo a própria violência, manifestada pelos

profissionais de saúde com condutas inadequadas e discriminatórias que, por

ocasionarem sentimentos negativos na mulher, podem contribuir para um parto

mais inseguro.

Evidentemente, o acompanhante contribui em diversas esferas de

adaptação da puérpera e do recém-nascido, desde as modificações emocionais até

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

as físicas. O fato de ter uma pessoa de confiança ao lado auxilia no trabalho de parto,

pois tranquiliza a mulher e a predispõe ao enfrentamento de qualquer possível

alteração decorrente das primeiras horas pós-parto, bem como no próprio cuidado

da mulher e nos cuidados com o recém-nascido, inclusive a amamentação.

Enfatiza-se, portanto, que a escolha do acompanhante é de livre escolha da

parturiente, podendo ser homem ou mulher; em hospital público ou particular; com

atendimento pelo SUS, particular ou plano de saúde, cabendo ao

hospital/maternidade, providenciar os recursos necessários para garantir a

privacidade/intimidade e segurança das demais gestantes e parturientes como uso

de Equipamento de proteção e afins.

O apoio contínuo no trabalho de parto e nascimento é uma intervenção

segura e altamente efetiva para melhorar os resultados maternos e neonatais, com

altos índices de satisfação materna, custo muito baixo, e é um direito das mulheres

brasileiras, conforme estabelecido pela Lei no 11.108/05. Embora haja avanços a

serem comemorados na implementação dessa política, como uma melhoria lenta,

mas consistente na presença de acompanhantes desde os últimos dados nacionais,

a maioria das mulheres no Brasil não pode contar com a presença de um

acompanhante durante o trabalho de parto ou parto.

A presença de acompanhante pode ser considerada um marcador de

segurança e qualidade do atendimento, e também um indicador da incorporação de

vários dos princípios do Sistema Nacional de Saúde (SUS), como a integralidade

dos cuidados de saúde, a universalidade, a equidade e a humanização.

Se a presença dos acompanhantes no parto deve ser implementada como

uma política de saúde universal e equitativa, a informação regular sobre esta

presença deve ser parte de protocolos de serviços e dos treinamentos para os

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

profissionais, incluindo a responsabilização dos serviços que recusam a proteger e

cumprir os direitos das mulheres.

REFERÊNCIAS

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Loyola, 2002.

BRASIL. Lei Federal nº. 11.108, de 07 de abril de 2005. Brasília: Câmera dos
Deputados, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
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2022/2020/lei/l13979.htm#:~:text=L13979&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20as%20
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BRASIL. Portaria nº. 2.222/GM/MS, de 25 de agosto de 2020. Institui, em caráter


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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA ASSISTÊNCIA À SAÚDE E

OS DESDOBRAMENTOS NA PANDEMIA DO NOVO

CORONAVÍRUS

Fabrízia da Fonseca Passos Bittencourt Ordacgy23

RESUMO
No Brasil, a trajetória histórica da constitucionalização do direito à saúde, pública e privada,
apresenta-se como tema essencial a ser analisado, especialmente no atual momento, quando
se debate o alcance e a importância do Sistema Único de Saúde e os deveres sociais do
sistema privado de saúde, ante a pandemia pelo novo coronavírus. O legislador
constituinte, decerto sem prever uma crise sanitária como a de hoje vivida, instituiu dois
sistemas de assistência à saúde distintos, a saúde pública, patrocinada pelo Estado através
do Sistema Único de Saúde, e a saúde privada, sujeita à livre iniciativa, porém regulada
pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, que é uma autarquia especial com escopo de
regular e fiscalizar o mercado de saúde. Assim, no presente trabalho, pretende-se analisar
a trajetória histórica constitucional da formação do sistema de assistência à saúde, no Brasil,
com escopo de se entender a democrática opção do legislador constituinte de erigir à
condição de direito fundamenta o direito à saúde, garantido a todos, indistintamente. O
presente trabalho iniciará expondo as terminologias adotadas, delimitando o tema à análise
do direito à saúde configurado no acesso à assistência médica. Posteriormente, traçará a
evolução do direito à saúde, com um estudo comparativo com o direito internacional, e a
consequência do resultado do atual sistema de assistência à saúde ante à pandemia da
COVID-19.

Palavras-chave: Direito à Saúde Individual; Trajetória histórica; Saúde Pública; Saúde


Privada.

ABSTRACT
In Brazil, the historical trajectory of the constitutionalization of the right to health, public
and private, presents itself as an essential theme to be analyzed, especially at the present
moment, when the scope and importance of the Unified Health System and the social duties
of the system are debated. private health system in the face of a new coronavirus pandemic.
The constituent legislator, certainly without foreseeing a health crisis like the one
experienced today, instituted two distinct health care systems, public health, sponsored by

23
Defensora Pública Federal. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense – UFF.
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos, Instituições e Negócios da Universidade Federal
Fluminense. E-mail: fabriziadpu@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8883639952901885

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

the State through the Unified Health System, and private health, subject to free initiative,
however regulated by the National Supplementary Health Agency, which is a special
autarchy with the scope of regulating and supervising the health market. Thus, in the
present work, we intend to analyze the constitutional historical trajectory of the formation
of the health care system in Brazil, with the aim of understanding the democratic option of
the constituent legislator to erect the right condition to the right to health, guaranteed to all,
indistinctly. The present work will start exposing the adopted terminologies, delimiting the
theme to the analysis of the right to health configured in the access to medical assistance.
Subsequently, it will trace the evolution of the right to health, with a comparative study
with international law, and the consequence of the result of the current health care system
in the face of the COVID-19 pandemic.

Key-Words: Right to Individual Health; Historical trajectory; Public health; Private Health.

INTRODUÇÃO

A saúde pública como um bem jurídico tutelado indistinta e universalmente

constitui conquista obtida pelo povo brasileiro, após o processo de

redemocratização que culminou na promulgação da Constituição da República de

1988. A tutela da saúde tal qual prevista no atual sistema constitucional, caracteriza-

se como um instrumento que permite a consecução do valor da igualdade material,

já que não traça qualquer distinção para que se tenha acesso ao serviço público de

assistência à saúde.

O direito à saúde como disciplinado hoje difere com os sistemas anteriores à

Constituição de 1988. De fato, o mesmo ocorreu em relação aos demais direitos

fundamentais, cujo traçado se apresenta de forma intrincada, com avanços e

retrocessos, a depender do período histórico, e com o direito à saúde não foi

diferente. Não obstante o primeiro organismo internacional voltado para a saúde, a

Organização Pan-Americana de Saúde, tenha sido criada no ano de 1902, foi após a

Segunda Guerra Mundial, com a tendência de humanização dos direitos que, em

1948, foi criada a Organização Mundial de Saúde – autoridade coordenadora das

181
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ações sanitárias no sistema das Nações Unidas, sendo de sua responsabilidade

desempenhar função de liderança nos assuntos sanitários mundiais, configurar a

agenda das investigações em saúde, estabelecer normas, articular opções de

políticas, prestar apoio técnico aos países e vigiar as tendências sanitárias mundiais.

Com a criação da Organização Mundial de Saúde, antecedida por outros

movimentos internacionais em prol da tutela da saúde, erigiu o bem “saúde” a

condição de direito, que passou ser responsabilidade compartilhada por todos os

países, exigindo o acesso equitativo e a atenção sanitária, além da defesa coletiva

frente às ameaças internacionais. Hoje, mais do que nunca, a alteração da leitura

feita da “saúde”, seu reconhecimento como direito, mostra-se essencial diante do

desafio que se tem enfrentado na luta contra o novo coronavírus.

No Brasil, no entanto, quando se iniciou o processo de reconhecimento da

saúde como um direito, na década de 40 do século passado (pois, até então, a tutela

da saúde se desenvolveu inicialmente como um favor, uma caridade, de órgãos não

governamentais, ou como um serviço privado, sem qualquer controle ou regulação

estatal), esta foi tutelada como um direito social exclusivamente em favor do

indivíduo integrante de uma classe ou categoria de trabalhadores, isto é, somente o

trabalhador de ofício com instituto de previdência (caixas de assistência) tinha

acesso ao serviço de assistência à saúde. Aos demais cidadãos, eram destinados os

serviços privados de saúde (prestados livremente e sem qualquer interferência

estatal), pagos por aqueles que tinham condições de arcar com seus custos, ou das

entidades filantrópicas (onde a assistência à saúde era prestada na forma de

caridade), destinadas à comunidade carente.

De toda sorte, ainda que a saúde como um direito de uma parcela de

cidadãos fosse exclusiva daqueles abarcados, em razão de seu ofício, pelas caixas de

assistência, percebe-se que já era um avanço trazido pela Constituição da República

182
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de 1934, pois os sistemas constitucionais anteriores (1824 e 1891), assim como

durante a era colonial, a saúde do indivíduo não era obrigação do Estado, qualquer

que fosse a condição do cidadão, na sociedade.

Somente na década de 70 do século passado, com o nascimento do

movimento sanitário que tinha por fito a universalidade da saúde, é que se passou

a discutir a necessidade de o direito à saúde ser de titularidade indistinta e um

mister estatal. Justamente deste movimento, somado aos tratados internacionais,

que o constituinte de 1988 moldou a garantia do direito à saúde previsto na

Constituição.

Ao mesmo tempo que se reconheceu o direito fundamental à saúde pública

e gratuita como ônus estatal, o legislador constituinte também dispôs que a saúde

pode ser objeto de exploração, estando sujeita à livre iniciativa. De fato, a assistência

à saúde já era prestada pelo particular, não se tratando de uma novidade em si. A

inovação se percebe na sujeição da assistência à saúde promovida pela iniciativa

privada livre à regulação e fiscalização estatal, atualmente realizada pela Agência

Nacional de Saúde Suplementar.

O presente trabalho mostra-se atual e de suma importância para o período

hoje experimentado pela sociedade. O mundo já vivenciou epidemias, ao longo do

tempo. No entanto, a globalização impôs um novo formato à sociedade, inclusive

em relação à pandemia da COVID-19, que deixou de ser restrita a um único

continente para tomar proporções globais. Mais do que nunca, o Estado é necessário

e é indispensável o cumprimento de seu mister na tutela da saúde do cidadão.

Neste contexto, pretende-se expor o caminho percorrido para o

reconhecimento do direito à saúde, pela Constituição de 1988, de maneira a

sedimentar a essencialidade do direito à saúde do cidadão garantido de forma

183
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

universal e a necessidade de atuação incisiva de controle e fiscalização do Estado

do fornecimento do serviço de assistência à saúde, pelo particular.

1. TERMINOLOGIA: SAÚDE PÚBLICA E SAÚDE PRIVADA

Inicialmente, com fito de delimitar o objeto deste trabalho, deve-se anotar

que os termos saúde pública e saúde privada serão adotados para designar os serviços

de assistência à saúde, hospitalar e ambulatorial, seja ela prestado pelo Poder

Público (por intermédio do Sistema Único de Saúde, doravante SUS 24) ou prestada

pelo particular. Desse modo, estará excluída da análise qualquer conduta estatal

voltada para a saúde coletiva, como medidas de prevenção, controle de endemias

etc. – malgrado se tratar de tema de importante análise e intrínseca relação com a

assistência à saúde, porém fora daquilo que se propõe neste momento.

A delimitação do tema é importante, tendo em vista que a assistência à saúde

do indivíduo pode ser identificada fases distintas, caracterizadas em três acepções

que emergiram ao longo da história: enquanto favor; enquanto um serviço

decorrente de um direito trabalhista ou como um serviço privado; enquanto direito

(ASENSI, 2010, p. 15), o que denota que a saúde, como serviço de assistência médica

ao indivíduo, que passou a ser da responsabilidade integral do Estado a partir de

1988 – ao passo que, em momentos anteriores, já era visível a preocupação do Estado

com a saúde coletiva, haja vista, por exemplo, as campanhas de vacinação.

24
A observação terminológica apontada é importante em razão da distinção existente na doutrina daquilo que
seria “direito à saúde” e “direito sanitário”. Para o presente trabalho será adotado “direito à saúde” entendido
como direito subjetivo do indivíduo de se valer dos serviços públicos prestados – ou os que deveriam ser
prestados – pelo SUS, ou pelo particular de assistência à saúde; entendendo como “direito sanitário” as
políticas públicas voltadas para o controle e prevenção de doenças e epidemias de forma ampla e indistinta,
não voltando-se diretamente para o indivíduo considerado em si mesmo, e sim para a coletividade, como
saneamento básico, a título de exemplo, não sendo este o objeto do presente trabalho, cabendo registrar que
o “direito sanitário” tal qual caracterizado, de uma maneira geral, é mister do Estado, ainda que este se valha,
eventualmente, do serviço particular, através de contratos administrativos firmado entre ambos.

184
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Portanto, mais uma vez se ressalta que o presente trabalho estará restrito

àquilo que se concerte ao direito à saúde em sua faceta de assistência à saúde do

indivíduo.

2 EVOLUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO CONTEXTO DO

DESENVOLVIMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

O constitucionalismo atual não seria o que é sem os direitos fundamentais,

uma vez que há um estreito nexo de interdependência (ou independência mútua)

entre ambos. É possível, assim, acompanhar por meio da história a evolução dos

direitos fundamentais. De fato, a história dos direitos fundamentais é também uma

história que desemboca no surgimento do moderno Estado constitucional, cuja essência e

razão de ser residem justamente no reconhecimento e na proteção da dignidade da pessoa

humana e dos direitos fundamentais do homem (SARLET, 2012).

O mundo antigo, por meio da religião e da filosofia (da cultura greco-romana

e do pensamento cristão), deixou como legado as ideias-chave da dignidade

humana, da liberdade e da igualdade dos homens que, posteriormente, vieram a

influenciar diretamente o pensamento jusnaturalista. Todavia, da mesma forma é

certo que, numa fase inicial de reconhecimento dos direitos fundamentais na esfera

do direito positivo, estes eram protegidos em favor da burguesia, isto é, garantia-se

a liberdade, a igualdade (na casta, e não entre castas) e a propriedade, apontando-

se a Magna Carta (1215)25 como um dos primeiros documentos escritos a reconhecer

25
A Magna Carta do Rei João Sem-Terra constitui pacto estabelecido por este e pelos bispos e barões ingleses,
em 1215, servido para garantir aos nobre ingleses privilégios feudais, alijando, a princípio, a população do
acesso aos “direitos” garantidos no pacto, porém servindo de referência para alguns direitos e liberdades civis
clássicos, como o habeas corpus, o devido processo legal e a garantia da propriedade.

185
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

tais direitos26. No século XVIII, dois documentos importantes marcam a transição

das liberdades legais ingleses para os direitos fundamentais constitucionais, quais

sejam, a Declaração de Direitos do povo da Virginia, de 1776, e a Declaração

Francesa, de 1789. Nasce, aqui, a primeira geração ou primeira dimensão dos

direitos fundamentais positivados27.

É a partir do século XIX, com a revolução do proletariado, que surgiram das

reivindicações dos trabalhadores os direitos econômicos e sociais. O século XX

assistiu aos primeiros documentos que conciliaram direitos de liberdade e direitos

sociais – como ocorreu, por exemplo, nas Constituições Mexicana (1917) e de

Weimar (1919). Certamente que o impacto da industrialização e os graves

problemas sociais e econômico fizeram surgir uma nova forma de proteção do

indivíduo, através da positivação de direitos econômicos e sociais.

No entanto, é após as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, devido à

experiência dos governos totalitários, que surgiu forte movimento para elevar ao

âmbito do direito internacional a tutela dos direitos humanos, já que homem, desde

então, passou a ser o centro de atuação dos Estados e organismos internacionais,

não se admitindo qualquer violação aos seus direitos, garantidos pela sua própria

condição humana.

Ainda que se pense que desde a Declaração dos Direitos do Povo da Virgínia

(1776) ou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) os direitos

26
De acordo com SARLET, a ‘Magna Charta’ não foi o único, nem o primeiro, (documento escrito positivando
direitos fundamentais) destacando-se, já nos séculos XII e XIII, as cartas de franquia e os forais outorgados
pelos reis portugueses e espanhóis.
27
Para fins metodológicos, serão adotadas as expressões “gerações” e / ou “dimensões” de direitos
fundamentais, malgrado se conheça a discussão terminológica existente. Em que pese a discussão e sua
importância na esfera teórica, o presente trabalho não só não pretende esgotar ao tema, como também se
propôs somente a fazer um simples apanhado histórico da evolução dos direitos fundamentais até chegar a
proteção à saúde, demonstrando o atraso na tutela do referido bem jurídico, de forma que a discussão acerca
da precisão ou imprecisão do termo “geração”, ou a melhor ou pior utilização do termo “dimensão”, não tem
cabimento neste momento.

186
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

humanos já vinham sendo protegidos, é certo que as referidas declarações – ainda

que configurem um marco na evolução do constitucionalismo mundial –

apresentam marcada ideologia individualista, tutelando apenas a liberdade, a

propriedade e a busca da felicidade, não estando restrito aos membros de um

estamento ou casta, mas a “todo indivíduo” (LUÑO, 1984) que não fosse escravo –

a título de ilustração, pode-se citar a escravidão nos Estados Unidos da América,

que somente foi abolida, efetivamente, em 1808 (isto é, após a edição do diploma

aludido). Desta forma, ainda que as Declarações de Direitos tenham marcado a

história do constitucionalismo mundial, os direitos não eram de todos os

indivíduos, mas daqueles que eram livres e, em especial, dos que, além de livres,

eram burgueses.

Portanto, a tendência de humanização dos direitos veio com a Segunda

Guerra Mundial, conforme dito, quando os seres humanos, indistintamente, foram

elevados ao centro dos ordenamentos jurídicos, nacionais e internacionais. A

dignidade humana se assenta sobre o pressuposto de que cada ser humano possui

um valor intrínseco e desfruta de uma posição especial no universo (BARROSO,

2013), compreensão marcada nos novos diplomas legais produzidos no pós-guerra.

O Brasil, por sua vez, não acompanhou com sincronia a evolução do direitos

fundamentais ocorrida especialmente na Europa e nos Estados Unidos da América,

até mesmo por razões históricas, por sua independência tardia, sua cultura colonial

e os regimes ditatoriais que se instauraram ao longo de sua evolução político-social.

Somente com a Constituição de 1988 pode-se dizer que, pela primeira vez na

história do constitucionalismo pátrio, os direitos fundamentais foram tratados com

a merecida relevância que se requer no da matéria. De acordo com Sarlet,

187
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Dentre as inovações, assume destaque a situação topográfica dos


direitos fundamentais, positivados no início da Constituição, logo
após o preâmbulo e os princípios fundamentais, o que, além de
traduzir maior rigor lógico, na medida em que os direitos
fundamentais constituem parâmetro hermenêutico e valores
superiores de toda a ordem constitucional e jurídica, também vai ao
encontro da melhor tradição do constitucionalismo na esfera dos
direitos fundamentais. Além disso, a própria utilização da
terminologia "direitos e garantias fundamentais” constitui
novidade, já que nas Constituições anteriores costumava utilizar-se
a denominação “direitos e garantias individuais” (...). A acolhida
dos direitos fundamentais sociais em capítulo próprio no catálogo
dos direitos fundamentais ressalta, por sua vez, de forma
incontestável sua condição de autênticos direitos fundamentais, já
que nas Cartas anteriores os direitos sociais se encontravam
positivados no capítulo da ordem econômica e social, sendo-lhes,
ao menos em princípio e ressalvadas algumas exceções,
reconhecido caráter meramente pragmático.

Embora a ordem jurídica brasileira tenha sido influenciada, de certa maneira, pelos

acontecimentos ocorridos em outros países – especialmente nos países da Europa e

nos Estados Unidos da América – ela trilhou seu próprio caminho e muitos direitos

fundamentais somente vieram a ser, efetivamente, integrados à ordem

constitucional pátria com o advento da Constituição de 1988. Foi, justamente, o que

ocorreu com o direito à saúde reconhecido de forma universal e indistinto,

garantido a todos os indivíduos.

De fato, a saúde pública somente veio a ser tutelada como um direito social

e reconhecida como um direito fundamental garantido a todo cidadão, de caráter

universal, a partir da Constituição de 1988, o que demonstra ser uma contradição,

considerando a evolução dos direitos fundamentais e dos direitos sociais no âmbito

internacional. Diz-se contraditório, registra-se, uma vez que o bem jurídico “saúde”

tem intrínseca relação com a vida e o bem estar do cidadão, de forma que há estreita

ligação com a dignidade humana. Assim, pensar que somente em 1988 a saúde

188
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pública veio como um direito universalmente garantido, é perceber o caráter

anacrônico da proteção.

No caminho trilhado pelo Direito Constitucional brasileiro, verifica-se certa

abertura à proteção dos direitos fundamentais, em específico a tutela da saúde,

desde a Constituição do Império, outorgada em 1824, a qual, em seu artigo 79, inciso

XXXI, garante a todo cidadão os socorros públicos28. No entanto, não se pode fugir à

observação de que tal garantia não era voltada a todos os brasileiros, ainda mais

considerando que, à época, o regime escravocrata ainda estava em vigor.

A Constituição Republicana de 1891, por outro lado, não trilhou os mesmos

passos, refletindo o pensamento liberal da época e passando ao largo de qualquer

pretensão social, limitando-se a disposições relacionadas à organização do Estado e

ao reconhecimento do direito de liberdade (DALLARI e JUNIOR, 2010).

Assim, tanto no Império quanto nos primórdios da República, a saúde

pública era prestada pelo Estado a título de favor, e não como uma obrigação para

com os cidadãos que compõe a unidade política estatal (ASENSI, 2010). Assim, a

saúde prestada pelo Estado aos indivíduos da sociedade

...seria uma benesse que poderia ser retirada ou restringida em


qualquer momento, sem qualquer garantia para sua manutenção.
Sobretudo a partir da adoção de medidas curativas e
campanhísticas que marcaram o período, a saúde foi alçada a
assunto de Estado, porém, ainda assim, sua exigibilidade pelos
cidadãos restou submetida à discricionariedade do poder público.
Não havia qualquer instrumento jurídico -legal que garantisse a
universalidade deste direito, sendo concentrada no Estado a
possibilidade e a discricionariedade de realizar ações em saúde em
benefício de uns em detrimento de outros, inclusive de forma
autoritária, a exemplo do que se desenvolveu no âmbito da Revolta

28
Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a
liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira
seguinte. (...)XXXI. A Constituição tambem garante os soccorros publicos.

189
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da Vacina de 1904. Diante desse cenário, a saúde é vista em ampla


medida como um favor. (ASENSI, 2010, p. 15)

Não se pode olvidar que os serviços privados de saúde já existiam, no Brasil,

sendo prestado àqueles que tinham condições de arcar com os seus custos. No

entanto, não havia qualquer controle estatal na prestação dos serviços privados,

tampouco uma preocupação do Estado na fiscalização do serviço de assistência

privada de saúde. Ademais, aos indivíduos desprovidos de recursos para o

pagamento de assistência médica privada, destinavam-se os serviços prestados

pelas entidades filantrópicas, na qualidade de benesse, caridade, em favor da pessoa

doente.

O movimento de 1930 – que levou Vargas ao poder – e o movimento

constitucionalista de 1932, culminaram na Constituição de 1934, que trouxe título

próprio para “Ordem Econômica e Social” (Título IV), traduzindo a adoção do

chamado Estado Social de Direito (DALLARI e JUNIOR, 2010). Neste período,

houve a ampliação dos direitos dos trabalhadores, a criação de caixas de assistência

e a reforma política, todas previstas na nova ordem constitucional.

Dessa forma, da instalação da colônia até a década de 1930, as ações eram

desenvolvidas sem significativa organização institucional29. Assim também ocorreu

na Europa, que ainda se recuperava da Primeira Guerra Mundial, mas já

experimentava um segundo momento do processo de industrialização, onde o

trabalhador era protegido de forma mais eficiente, considerado um fator de

produção a ser tutelado em prol do desenvolvimento industrial – o trabalhador

europeu era protegido, não em razão de sua condição humana (que somente veio a

ser lida como uma forma essencial de proteção dos seres humanos após a Segunda

29
Fonte: http://www.funasa.gov.br/web/guest/cronologia-historica-da-saude-publica, última consulta
realizada em 03/09/2020.

190
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Guerra Mundial), mas sim em razão do modelo capitalista de produção, garantido

a mão-de-obra apta a promover os meios de produção.

No Brasil não foi diferente. A partir da Constituição de 1934, a saúde passou

a ser tutelada na seara constitucional, porém como um direito atrelado ao

trabalhador. O artigo 121, §1º, alínea “h”, previa garantia a assistência médica e

sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto,

sem prejuízo do salário e do emprego... De tal previsão se percebe a inexistência de um

caráter universal da proteção da saúde pública, sendo a mesma voltada para a

pequena parcela do povo brasileiro que possuía emprego formal.

Não obstante a ampliação dos direitos do trabalhadores e a criação de caixas

de assistência (registrando que a saúde privada garantia a assistência à saúde dos

trabalhadores fora do regime das caixas de assistência, mas em condições de arcar

com o seu custo), parcela significativa da população ficava à margem da proteção

do direito à saúde, por não estar vinculado a qualquer categoria ou classe de

trabalhadores, tampouco podendo arcar com os custos da assistência particular,

contando com a entidades filantrópicas – como a Santa Casa – para se socorrer nos

momentos em que se viam com a saúde abalada. A marginalização desta parcela da

sociedade foi mantida pelos regimes posteriores, já que todos os que sucederam à

Constituição de 1934 mantiveram a saúde como um direito do trabalhador

(extensível a seus familiares), e não como um direito universalmente protegido 30.

Assim,

30
A Constituição da República de 1937 manteve a estrutura protetiva da saúde do trabalhador existente no
sistema anterior, como se compreende da norma estabelecida no artigo 137, alínea l, que teve sua vigência
suspensa pelo Decreto 10.358/1942, quando se declarou o estado de guerra, no Brasil. A Constituição de 1946
também manteve a proteção da saúde somente em favor do trabalhador, semelhante ao diploma
constitucional anterior, como se depreende da dicção do artigo 157, inciso XIV. Da mesma maneira, a
Constituição de 1967, artigo 158, inciso XI, alterado pela Emenda Constitucional nº 1/1969, que manteve o
mesmo sistema protetivo de saúde instituído pelas Constituições anteriores, como se percebe em seu artigo
165, inciso XV.

191
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A ampliação dos direitos dos trabalhadores, a criação de caixas de


assistência, a reforma política desenvolvida no período e o advento
dos planos privados permitiram uma reconfiguração das relações
de poder presentes no campo da saúde. Neste período, houve um
crescente movimento de mercantilização da saúde, de modo que
seu acesso esteve diretamente ligado à capacidade do indivíduo
suportar o pagamento de planos privados, ou à sua condição de
trabalhador, na medida em que a saúde se caracterizou como um
serviço ou como um benefício trabalhista. (ASENSI, 2010, p.16)

No plano mundial, em 1948, foi criada a Organização Mundial de Saúde

(doravante OMS), no contexto do pós guerra e da elevação do ser humano ao centro

de toda a atuação estatal e dos organismos internacionais31. A OMS passou a ser a

autoridade coordenadora das ações sanitárias no sistema das Nações Unidas, sendo

de sua responsabilidade desempenhar função de liderança nos assuntos sanitários

mundiais, configurar a agenda das investigações em saúde, estabelecer normas,

articular opções de políticas, prestar apoio técnico aos países e vigiar as tendências

sanitárias mundiais. Dessa maneira, a saúde passou a ser uma responsabilidade

compartilhada por todos os países, exigindo o acesso equitativo e atenção sanitária

em favor de todos.

Ainda no ano de 1948, foi realizada a Conferência Internacional sobre Cuidados

Primários de Saúde, no Cazaquistão. Do encontro resultou a Declaração de Alma-

Ata, documento que refirma a saúde como um direito do homem (tal qual já dito no

preâmbulo do ato de Constituição da OMS), além de asseverar a necessidade de sua

31
Como já apontado, a tendência de humanização dos direitos veio com a Segunda Guerra Mundial, pois para
impedir que os seres humanos voltassem a ser algoz e refém de atrocidades entre seus pares, o ser humano
passou, então, a ser elevado ao centro dos ordenamentos jurídicos, nacionais e internacionais, não sendo
possível qualquer distinção na proteção de seus direitos, de forma que, qualquer homem, independentemente
de raça, cor, sexo, origem, crença ou qualquer outro fator distintivo, tem garantido direitos mínimos para uma
vida digna. Assim, a dignidade humana – como valor que fundamenta os próprios direitos humanos – se assenta
sobre o pressuposto de que cada ser humano possui um valor intrínseco e desfruta de uma posição especial no
universo (BARROSO, 2013, p. 14).

192
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

promoção, proteção e recuperação para o desenvolvimento econômico e social,

através de adoção de medidas sanitárias e sociais (GLOBKNER, 2011).

No referido documento, afirmou-se, portanto, o direito do


indivíduo não meramente à saúde, mas também ao acesso aos
cuidados em saúde, em correspondência com um dever imposto aos
governos do mundo, o de prover os referidos cuidados. Começou-
se a vislumbrar aí não apena um direito abstrato à saúde como
também um direito concreto à atenção sanitária. (GLOBKNER,
2011, p. 47)

A Declaração de Alma-Ata resultou na consolidação do bem jurídico “saúde”

como um fim a ser perseguido pelos Estados, qualquer que seja a forma de sua

realização, através do próprio Estado ou através deste em parceria com o setor

privado. Ademais, tampouco havia distinção entre as pessoas, não importando sua

condição de arcar com o pagamento do serviço de assistência privada ou sua

vinculação a uma categoria específica de trabalhador (como ocorria no Brasil). Ao

contrário, a diretriz estabelecida internacionalmente indicava a necessidade de

proteção de todos os seres humanos, indistintamente, já que a saúde passava, então,

a ser erigido ao plano de bem jurídico vinculado aos direitos humanos.

Todavia, malgrado os documentos e declarações internacionais, o sistema

brasileiro foi mantido em suas Constituições, que previam a garantia da assistência

à saúde exclusivamente em favor dos trabalhadores, por meio das caixas de

assistência (posteriormente, institutos de previdência), restando aos demais

cidadãos arcar com o pagamento dos serviços privados (que, tampouco, eram

regulados ou fiscalizados pelo Estado, tendo iniciado o processo de organização dos

planos de saúde a partir da década de 5032) ou se valer das entidades filantrópicas.

32
Fonte: https://www.camara.leg.br/radio/programas/275168-, consulta em 12/09/2020

193
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A partir da década de 70, no Brasil, iniciou-se movimento em favor da Reforma

Sanitária, contrapondo-se à concepção não universal da saúde, defendendo esta

como um direito subjetivo voltado a todos os indivíduos (ASENSI, 2010)33. Deve-se

principalmente a este movimento o sistema de saúde pública tal qual delineado na

Constituição da República de 1988, sendo certo que o texto constitucional resultou

da proposta emanada da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de

1986, em Brasília.

Na 8ª Conferência Nacional de Saúde, foi elaborado documento que respaldou

toda a construção da garantia do direito à saúde pública para todos os indivíduos,

indistintamente, tal qual previsto na Constituição de 1988. O referido documento

tinha caráter eminentemente político, traçando pauta de reivindicações acolhidas

no processo de redemocratização, isto é, nos debates da constituinte instaurada.

A construção do projeto da reforma sanitária fundou-se na noção


de crise: crise do conhecimento e da prática médica, crise do
autoritarismo, crise do estado sanitário da população, crise do
sistema de prestação de serviços de saúde. (FLEURY, 2009)

Dessa forma, saúde pública como um valor universal garantido a todos os

indivíduos da sociedade brasileira, indistintamente, nasce como uma luta política

no contexto de crise democrática do governo ditatorial instaurado desde o Golpe de

1964. Nasce na década de 70 do século passado como objeto de insurgência política,

porém se amolda como uma reivindicação ao longo do tempo, influenciando

33
Também chamado de Movimento Reformista e Movimento Pró-Reforma, o Movimento Sanitário
Brasileiro originou-se do meio acadêmico, em especial nos Departamentos de Medicina Preventiva,
na década de 1970, período marcado pela repressão ditatorial. É nesse contexto que ele se inicia e
acaba reforçando-se com o apoio estudantil secundário, de profissionais da saúde, centros de estudos
sanitários (destaque para o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES, órgão de representação
e difusão do movimento), associações (a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva –
ABRASCO merece relevo), conselhos, sindicatos, parlamentares e outros segmentos da sociedade
(OLIVEIRA, 2005)

194
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sobremaneira a estrutura e o tratamento que vieram a ser dados pela Constituição

de 1988.

A “percepção social da saúde como direito de cidadania” seria “um


dado novo na história das políticas sociais brasileiras”, uma vez que
“essa percepção é fruto dos movimentos sociais de participação em
saúde da segunda metade dos anos 70 e do início dos anos 80”.
(ASENSI, 2010, p. 16/17)

A saúde pública passa, então, a ser garantida na Constituição da República de

1988 como um direito fundamental (de 2ª geração ou dimensão, na medida em que

configura um direito social), cujo acesso deve ser universal e igualitário,

abrangendo todo e qualquer indivíduo. Configura verdadeiro direito-dever, já que

é um direito garantido aos cidadãos e de responsabilidade do Estado, sendo certo

que sua organização administrativa – isto é, a forma através da qual as

Administrações Públicas federal, estadual e municipal devem ser organizadas em

prol da realização da saúde pública como um direito universal – é elaborada através

do Sistema Único de Saúde – SUS.

Perceba-se a importância que foi dada ao direito à saúde, pela Constituição de

1988. Ao garanti-lo no rol de direitos sociais, houve seu reconhecimento expresso

como um direito fundamental de 2ª geração ou dimensão. Agregue-se a isto o fato

de ainda ser uma garantia universal e indistinta, abarcando todos os indivíduos e

não mais uma categoria. Desta forma, o direito à saúde também passou a integrar o

bloco de constitucionalidade que constitui cláusula pétrea, não sendo possível sua

alteração para sua restrição ou extinção. Ao contrário, como direito fundamental

que é, sua interpretação e concepção deve ser a mais ampla e extensa possível.

195
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O direito à saúde ainda se constituiu como cláusula pétrea no


âmbito constitucional, uma vez que, em virtude de sua associação
direta com o direito à vida, não pode ser excluído do resguardo que
lhe foi alçado pela Carta Constitucional e pelas legislações
posteriores. (ASENSI, 2010, p. 17)

Ao lado da saúde pública universal, diante da estruturada rede de planos de saúde

– cujo surgimento data a década de 50 do século passado -, a Constituição de 1988

também garantiu à livre iniciativa a assistência à saúde, o que não era novidade,

exceto pelo fato de estar expressamente previsto a partir da nova norma

constitucional. A inovação do sistema de assistência privada à saúde reside no

controle e na fiscalização realizados por agência especificamente criada para tal fim,

atualmente a Agência Nacional de Saúde Suplementar. A previsão de controle e

fiscalização do serviço privado de saúde, ao contrário de enfraquecer o direito à

saúde – sob o equivocado fundamento de diminuir o SUS -, enaltece e ergue o

direito à saúde a patamar que implica reconhecê-lo, de forma indubitável, como um

direito fundamental salvaguardado pelo Estado.

Atualmente, vive-se a inimaginada situação de uma pandemia, com a

ameaça global da contaminação pela COVID-19. O mundo já experimentou

epidemias ao longo de toda a história da humanidade, mas a pandemia pelo novo

coronavírus demonstrou que a globalização, ao facilitar do fluxo de pessoas pelo

mundo, também permitiu a rápida propagação do vírus.

No Brasil, a partir de março, iniciou-se o processo de controle da

contaminação pelo novo coronavírus, com a adoção de inúmeras medidas estatais

com tal fito, inclusive com edição de legislação dispondo sobre medidas voltadas

para o enfrentamento da emergência de saúde pública: a Lei 13979/2000. O referido

diploma legislativo prevê a possibilidade de utilização do aparato do serviço

privado de saúde, pelo SUS, o que não é, a princípio, uma inovação, já que a Lei

196
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

8080/90 também permite a contratação do serviço privado de saúde para fazer frente

à demanda do SUS, porém agora, com a pandemia da COVID-19, o tipo de

contratação tende a ser imperativa, já que há necessidade de salvaguardar vidas em

risco pelo agravamento da situação clínica do doente contaminado.

Ademais, ao mesmo tempo em que são traçadas estratégias de controle da

propagação do vírus e de tratamento médico do doente contaminado, a Agência

Nacional de Saúde Suplementar também impôs, com sua atuação, medidas

estratégicas para assegurar o contratante do serviço de plano de saúde a

manutenção do uso de seus benefícios, estendendo a cobertura dos contratos de

plano de saúde (incluindo a realização de exame para diagnóstico da COVID-19) e

regulando a forma de reajuste anuais desses mesmos contratos.

Percebe-se, assim, um movimento do Estado brasileiro para garantir o direito

à saúde da coletividade e do cidadão, considerado individualmente. Ao ascender a

saúde à condição de direito fundamental de todos, universalmente, garantiu-se que

nenhuma pessoa será alijada de tratamento médico, o que é importante e se vê

essencial com a pandemia do novo coronavírus. Hoje, cabe ao Estado adotar

medidas para preservar o amplo acesso ao tratamento médico – seja no serviço

público de saúde, seja no serviço particular de saúde -, até mesmo impondo

medidas de regulação do serviço privado de assistência à saúde. Decerto, a

obrigação não existiria ou seria mitigada se o direito à saúde não tivesse percorrido

todo o seu caminho até o seu reconhecimento como direito fundamental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A acepção de saúde variou ao longo do tempo, sendo certo que seu conceito

é social e culturalmente construído; depende, entre outros fatores, da percepção de

197
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

normalidade presente em uma sociedade, de suas crenças, experiências e preconceitos sobre

o processo de saúde (GLOBEKNER, 2011, p. 30).

Somente na Constituição da República de 1988, a saúde pública foi garantida

como direito de todos e mister do Estado. Dessa forma, a saúde pública tal qual

idealizada e garantida na Lei Maior, traduz verdadeira vitória de ordem política,

após longa trajetória de lutas em favor de sua universalização.

Por esta razão, a necessidade de se analisar o reconhecimento do direito à

saúde como um direito humano fundamental, e desde já se responde por meio de

justificativa dada pelo próprio historiador:

“A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que


vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um
dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século
XX. Quase todo jovem de hoje cresce numa espécie de presente
contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da
época em que vivem.” (HOBSBAWM, 1995, p. 13)

No caso do direito à saúde, a incompreensão do passado poderia acarretar o

entendimento de que a saúde sempre foi um bem tutelado pelo Estado – o que não

foi – excluindo da garantia um fator social relevante: o direito à saúde tal qual

concebido atualmente, como um direito humano fundamental, é o resultado de

reivindicações das mais variadas fontes (cientistas, sanitaristas, médicos,

administradores públicos, trabalhadores e, principalmente, cidadãos). Assim,

compreender o direito à saúde como um direito humano fundamental não é

possível – ou, ao menos, é difícil – sem que se visualize a trajetória que culminou no

reconhecimento da saúde como um direito.

Talvez hoje pareça óbvio que o acesso aos bens e medidas voltadas à saúde

seja um direito de todo o ser humano, mas a verdade é que esta concepção (que

198
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

agora parece tão clara) é fruto da modernidade e o reconhecimento do direito

humano fundamental à saúde ocorreu, em plano internacional, ainda no século

passado, e no Brasil, somente a partir da Constituição de 1988, isto é, tardiamente.

As Constituições brasileiras, como visto, até 1988, não previram o direito à

saúde como uma garantia voltada a todas as pessoas, indistintamente. Ao contrário.

Desde a Constituição de 1934, o direito à saúde passou a ser tutelado, porém

somente em favor dos trabalhadores formais (ou seja, aqueles que possuíam carteira

de trabalho assinada, estando vinculados a uma classe ou categoria de

trabalhadores), de forma que grande parte da população se via excluída da

proteção. O sistema excludente permaneceu assim organizado também nas

Constituições brasileiras seguintes, tutelando somente os trabalhadores formais,

por meio das caixas de assistências e, posteriormente, instituto de previdência e

assistência, alijando as demais pessoas, que deveriam arcar com os custos do

tratamento particular ou contar com a caridade das entidades filantrópicas, para

fins de assistência à saúde.

No entanto, na década de 70 do século passado, com os movimentos

sanitaristas, passou-se a “levantar a bandeira” em favor de um acesso universal da

saúde pública, agora vista como um direito subjetivo do cidadão. Influenciando o

processo constituinte, o movimento sanitarista de 1970 suscitou o debate no

plenário da constituinte, fazendo prevalecer o direito à saúde como um direito

universal, representando verdadeira vitória para o sistema constitucional de

proteção dos direitos fundamentais.

O modelo de universalização do direito à saúde idealizado no movimento

sanitarista foi adotado na Constituição de 1988. Ao lado da garantia da assistência

pública de saúde, também foi dado a particular a exploração do mercado de

assistência à saúde, porém sujeitando-se à regulação e à fiscalização, pelo Estado,

199
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

por meio da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. O resultado do regime

híbrido adotado pelo legislador constituinte não se apresenta como uma

contradição, e sim como verdadeiro reconhecimento da saúde como direito

fundamental, impondo um duplo dever do Estado, que deve adotar medidas para

o fornecimento gratuito e universal de serviços de saúde, bem como fiscalizar e

regular o mercado de saúde privada.

Não se permite qualquer tipo de flexibilização ou se aceita a ineficácia do direito

à saúde, sob pena de se ir de encontro àquilo que foi traçada como uma verdadeira

luta social. A universalidade do direito à saúde, tal como garantida na Constituição

de 1988, é reflexo de árdua discussão e atende ao vetor axiológico da dignidade da

pessoa humana. Mais do que nunca, diante da crise sanitária instaurada pelo novo

coronavírus, o acesso à assistência à saúde é (como sempre deveria ter sido) dever

imperioso do Estado.

A pandemia da COVID-19 fez o mundo se voltar para aquilo há muito

esquecido: a necessidade de se garantir o amplo acesso à saúde. A crise sanitária

trouxe diversas reflexões de ordem econômica e social, questionamentos acerca do

formato moderno de Estado, mas principalmente a necessidade de a saúde ser

garantida de forma universal. A globalização trouxe junto dela uma uniformidade

das necessidades humanas, no que diz respeito ao direito à saúde.

A leitura do direito à saúde no decorrer do tempo permite a visualização da

conquista social da saúde garantida como um direito universal. Possivelmente, sem

o formato do direito à saúde que se tem hoje na Constituição de 1988, a crise

sanitária seria ainda mais fatal do vem sendo, uma vez que seriam alijados os

indivíduos sem condição de arcar com o pagamento de tratamento médico – o que

é comum no país como o Brasil, que é pobre e hoje, novamente, volta a experimentar

a miséria de parte de sua população – como também se abriria espaço para o abuso

200
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de poder do particular que presta serviço de assistência à saúde, o que é coibido por

meio de instituição estatal voltada para a regulação e fiscalização dos serviços

privados de saúde (a Agência Nacional de Saúde Suplementar), da mesma forma

constituindo uma conquista do povo brasileiro.

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202
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

OS DESAFIOS DO TELETRABALHO NA PANDEMIA DO NOVO

CORONAVÍRUS (COVID-19)

Cicília Araújo Nunes 34


Cláudia Costa Paniago Pereira 35
Taciana Cecília Ramos 36

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo alinhar e avaliar os desafios presentes no exercício
da jornada de trabalho pelos teletrabalhadores brasileiros, sobretudo com o advento da
pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Esse escopo se justifica na medida que vem à
tona a preocupação com a saúde dos trabalhadores nos aspectos mental e físico no contexto
do teletrabalho, uma vez que esses empregados remotos poderão trabalhar “sem limites”,
escapando do poder diretivo do empregador e em desacordo com os direitos fundamentais
laborais. O método de pesquisa deste estudo é o dedutivo e as técnicas de pesquisa são a
bibliográfico-doutrinária, com a revisão da literatura e da legislação brasileira e
internacional sobre o tema, e também a técnica estatística, a partir da análise de dados
institucionais sobre a realidade do teletrabalho no Brasil. Este estudo é dividido em três
capítulos: “O teletrabalho, a jornada de trabalho e o direito à desconexão: os dilemas
teletrabalhistas à luz dos direitos humanos fundamentais dos trabalhadores”; “As
dificuldades estruturais e psicológicas enfrentadas pelos empregados no teletrabalho”; e
“Os impactos na saúde física e mental das pessoas que trabalham remotamente em tempos
de Covid- 19”. Como conclusões, infere-se que o teletrabalho pode ocorrer de forma a
prejudicar a qualidade de vida daqueles que praticam seu labor de maneira telemática, pois
apresenta uma jornada de trabalho sem limitação horária e, não raro, se associa à alta carga
de trabalho e à pressão da demanda de mercado. Urge, então, conferir prioridade à saúde
mental dos teletrabalhadores nessa fase incerta e garantir que o trabalho seja prestado em
condições benéficas a suas esferas psíquica e emocional.

Palavras-chave: Covid-19; Teletrabalho; Desafios.

34
Mestra em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), na área de concentração em Direitos e
Garantias Fundamentais. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Advogada do
Escritório de Assessoria Jurídica Popular - ESAJUP/UFU. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4013-2070. E-mail:
cicilia_nunes@hotmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7306678828926262.
35
Especialista em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).
Bacharel em Direito pela Faculdade Pitágoras. E-mail: claudiacostapaniago@gmail.com. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5005508434220006.
36
Especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário na Atualidade pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC-MG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-
mail: tceciliaramos@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4051938812175123.

203
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
The present work aims to align and evaluate the challenges present in the work shift by
Brazilian teleworkers, especially with the advent of the new coronavirus pandemic (Covid-
19). This scope is justified to the extent that the concern with the health of workers in the
mental and physical aspects in the context of teleworking comes to the fore, since these
remote employees will be able to work “without limits”, escaping the directive power of
the employer and in disagreement with fundamental labor rights. The research method of
this study is deductive and the research techniques are bibliographic-doctrinal, with a
review of the literature and brazilian and international legislation about the subject, and
also the statistical technique, based on the analysis of institutional data on the reality of
teleworking in Brazil. This study is divided into three chapters: “Teleworking, the working
day and the right to disconnect: the teleworkers dilemmas in the light of fundamental
human rights of workers ”; "The structural and psychological difficulties faced by
teleworkers"; and "The impacts on the physical and mental health of people who work
remotely in Covid-19 times". As conclusions, it is inferred that teleworking can occur in a
way that affects the quality of life of those who practice their work in a telematic way, as it
presents a working day without time limits and, often, is associated with a high workload
and pressure from market demand. Therefore, there is an urgent need to give priority to
the mental health of teleworkers in this uncertain phase and to ensure that work is provided
in conditions that are beneficial to their psychic and emotional spheres.

Keywords: Covid-19; Teleworking; Challenges.

INTRODUÇÃO

O ano de 2020 se iniciou com uma crise de saúde pública internacional

deflagrada pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19), que interferiu

drasticamente nas relações sociais e econômicas globais, mormente nas práticas de

trabalho e de emprego dos povos.

Ante esse quadro, o Governo Federal Brasileiro promulgou a Lei nº 13.979,

de 6 de fevereiro de 2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da

emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do

coronavírus responsável pelo surto de 2019”, e a Medida Provisória (MP) nº 927, de

204
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

22 de março de 2020 37 , que estabeleceu alternativas trabalhistas, a exemplo do

teletrabalho (artigo 3º, inciso I), para lidar com essa situação atípica.

Exposto esse problema de saúde que afeta o mundo e que ataca a realidade

fática dos trabalhadores brasileiros, já afligidos com o desemprego e a

informalidade, foi proposta esta pesquisa. Evidencia-se, então, a relevância do

presente estudo, pois apresenta ao mundo jurídico um fato novo, que é o

repensamento das relações trabalhistas no Brasil no contexto pandêmico, atrelado a

ponderações já tradicionais, mas não superadas, como a questão do trabalho

precarizado ou da falta de ocupação digna para inúmeros compatriotas.

Tendo como enfoque a jornada de trabalho, a atenção à boa qualidade de

seu exercício e os desafios para que isso se efetive, esta pesquisa está centrada no

instituto do teletrabalho, estatuído no “Capítulo II-A” da Consolidação das Leis do

Trabalho (CLT), nos artigos 75-A e seguintes.

Conforme prevê o texto do diploma celetista, o teletrabalhador não está

submetido ao regime de duração do trabalho (artigo 62, inciso III). Desta forma, o

teletrabalhador não possui direito à limitação da duração máxima de 8 (oito) horas

diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais (artigo 58 da CLT combinado com

artigo 7º, inciso XIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 -

CRFB/1988).

Diante desse cenário, justifica-se esta pesquisa, pois vem à tona a

preocupação com a saúde dos trabalhadores nos aspectos mental e físico, uma vez

que esses empregados remotos poderão trabalhar “sem limites”. Por conseguinte,

eles poderão estar sujeitos a variados problemas decorrentes da má qualidade de

vida no trabalho e que podem escapar do poder diretivo do empregador, tendo em

vista que a “teledireção” foi pouco explicitada na CLT com a Lei nº 13.467/2017

37
A MP 927 perdeu a validade em julho de 2020.

205
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(artigo 75-E). Todo esse contexto pode afrontar, igualmente, os direitos

fundamentais dos obreiros (artigo 1º, inciso III, combinado com o artigo 7º da

CRFB/1988).

A hipótese deste trabalho, destarte, é de que o exercício adequado da

jornada de trabalho na modalidade de teletrabalho é desafiador e que pode ocorrer

de forma a prejudicar a qualidade de vida daqueles que praticam seu labor total ou

parcialmente distante da empresa, de maneira telemática.

Para validar ou não essa hipótese, o método de abordagem a ser utilizado

nessa pesquisa será o dedutivo e as técnicas de pesquisa serão a bibliográfico-

doutrinária, com a revisão da literatura e da legislação brasileira e internacional

sobre o tema, e também a técnica estatística, a partir da análise de dados, com o

intuito de obter uma definição mais concreta da situação dos trabalhadores no Brasil

que vivenciam o teletrabalho, em especial nesse período de pandemia de Covid-19.

O recorte metodológico do presente trabalho é a análise das dificuldades

enfrentadas pelos teletrabalhadores. Para compreender a relação homem-trabalho

e realizar essa verificação, esta pesquisa adota o pensamento do psiquiatra

Christophe Dejours, o “pai” da Psicodinâmica do Trabalho, como referencial

teórico.

O objetivo geral deste trabalho, assim, é alinhar e avaliar os desafios

presentes no exercício da jornada de trabalho pelos teletrabalhadores brasileiros,

sobretudo com o advento da pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Para tanto,

este estudo será dividido em três capítulos: “O teletrabalho, a jornada de trabalho e

o direito à desconexão: os dilemas teletrabalhistas à luz dos direitos humanos

fundamentais dos trabalhadores”; “As dificuldades estruturais e psicológicas

enfrentadas pelos empregados no teletrabalho”; e “Os impactos na saúde física e

mental das pessoas que trabalham remotamente em tempos de Covid- 19”.

206
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Inegavelmente, a conjuntura imposta pela pandemia de Covid-19 trouxe

mudanças bruscas e sérias para a implantação do teletrabalho no Brasil, seja na

rotina dos empregados, seja na direção feita pelos empregadores. Entretanto, o

trabalho não pode ser visto somente como meio de obtenção de renda e

sobrevivência, mas como forma de identidade pessoal, bem como de

desenvolvimento de habilidades sociais e relações comunitárias, compreendendo

certa carga de subjetividade humana. É com essa perspectiva que se passa para o

primeiro capítulo desta pesquisa.

1. O TELETRABALHO, A JORNADA DE TRABALHO E O DIREITO À

DESCONEXÃO: OS DILEMAS TELETRABALHISTAS À LUZ DOS DIREITOS

HUMANOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES

O teletrabalho foi amplamente utilizado em decorrência da pandemia por

Covid-19. O modelo tradicional de cumprimento de jornada nos estabelecimentos

empresariais cedeu lugar ao trabalho prestado por meios telemáticos. A alteração

ocorreu de forma brusca; sendo assim, as empresas e os trabalhadores não estavam

preparados para essa realidade, cenário que resulta em complexos desafios para o

mundo do trabalho.

De acordo com o artigo 75-B da CLT, considera-se teletrabalho “a prestação

de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a

utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza,

não se constituam como trabalho externo” (BRASIL, 1943).

O direito à desconexão se torna um desafio na atual conjuntura, pois o

artigo 62, inciso III, da CLT, exclui os teletrabalhadores do regime de controle de

jornada de trabalho. Desta forma, o teletrabalho não possui direito à limitação da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

duração máxima de 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais

(artigo 58 da CLT combinado com artigo 7º, inciso XIII, da CRFB/1988).

A ausência de controle da jornada de trabalho causa preocupação em

relação à saúde psicofísica do trabalhador. A falta de equipamentos adequados à

realização do trabalho aumenta as chances de sofrer lesões, tais como os Distúrbios

Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT). Além disso, a alta carga de

estresse decorrente da cobrança por produtividade eleva os riscos de

desenvolvimento de transtornos emocionais e de acometimento da Síndrome de

Burnout, entre outros prejuízos decorrentes da inadequada prestação laboral.

Sendo assim, é fundamental priorizar a saúde mental dos trabalhadores

nesse momento de incertezas e de mudanças significativas. Para alcançar esse

objetivo, é preciso garantir que o trabalho seja prestado em condições favoráveis ao

psicológico dos trabalhadores e em condições dignas.

Um dos grandes desafios presentes no exercício da jornada de trabalho

pelos teletrabalhadores brasileiros consiste na necessidade de equilibrar a vida

pessoal e profissional, já que muitas vezes sofrem com a alta carga de trabalho e a

pressão da demanda, podendo trazer prejuízos à saúde do obreiro.

A Constituição Federal brasileira elenca alguns direitos fundamentais nos

artigos 5°, 6º e 7º, relativos à proteção do trabalhador, e, no mesmo sentido, a CLT

estabelece a proteção à saúde e ao lazer do trabalhador. Tais dispositivos alinham-

se às garantias constitucionais no sentido de proporcionar ao empregado a

manutenção de sua saúde física e mental. E, a partir da aplicação dos direitos e

garantias fundamentais, surge o direito à desconexão.

O autor Jorge Luiz Souto Maior (2003, p. 3) esclarece que o direito à

desconexão não representa a ausência de trabalho, e sim a necessidade de trabalhar

menos, até o nível necessário à preservação da vida privada e da saúde. Para o

208
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

referido autor, a preocupação em desligar do trabalho é essencial, especialmente

diante deste mundo do trabalho marcado pela evolução tecnológica, pela deificação

do mercado e pelo atendimento, em primeiro plano, das exigências do consumo.

Portanto, o direito à desconexão não se refere a um direito de não trabalhar

por completo, mas a um direito de trabalhar menos, em um período de tempo

razoável que permita ao empregado dispor de seu tempo livre, de forma a preservar

a sua integridade física e psíquica.

2. AS DIFICULDADES ESTRUTURAIS E PSICOLÓGICAS ENFRENTADAS

PELOS EMPREGADOS NO TELETRABALHO

Prosseguindo com a abordagem do tópico anterior, tem-se que o

teletrabalho representou uma modalidade laboral que ampliou a competitividade

dos empreendimentos no mundo globalizado pós-industrial, pois, em síntese,

permitiu a redução de custos empresariais por diminuir ou eliminar a necessidade

da presença física dos trabalhadores nos estabelecimentos, flexibilizando a forma

de prestação laboral.

Dessa forma, o teletrabalho representou maior capacidade de produção a

custo reduzido, o barateamento do produto ou serviço, com maior circulação de

capital, agora em uma conjuntura internacional sem tantas fronteiras. Ademais,

houve maior detenção setorial de tecnologia e capital, com imposição de regras, e o

enfraquecimento do Estado Nacional para estabelecer e implantar políticas sociais

diante da atuação dessas empresas transnacionais e multinacionais (BELMONTE,

2008, p. 298).

Isso induz a certos problemas observados no contexto do teletrabalho que

precarizam a realidade laboral como um todo, a saber: eliminação de postos

209
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

tradicionais de trabalho e aumento do desemprego; possibilidade de

desenvolvimento total ou parcial do trabalho à distância sem o controle direto do

empregador; fragmentação dos movimentos coletivos; violação das regras e dos

princípios trabalhistas (BELMONTE, 2008, p. 299).

Alexandre Agra Belmonte (2008, p. 300) prossegue nos apontamentos

acerca das dificuldades encaradas pelos teletrabalhadores. O autor cita a

fragmentação ou dispersão desses trabalhadores, dada a destruição da noção de

coletividade e implantação da lógica de divisão de tarefas. Não é incomum a falta

de visão global da empresa e de seus objetivos por esses obreiros. O isolamento

social pode facilitar, ainda, a interpenetração da vida profissional na vida pessoal

desses trabalhadores, minimizando o contato entre colegas e com os superiores

hierárquicos.

Evidencia-se, também, uma espécie de “controle invisível” da medida da

produtividade desses profissionais em ambiente remoto. Há o risco de

informalidade e de maior exploração do trabalho deles. Pode ocorrer, conforme

Belmonte (2008, p. 300), um tratamento diferenciado de salários e de direitos,

incluindo a chance de subcontratação ilícita.

Observa-se, dessa maneira, que, para muitos teletrabalhadores, essa

experiência de trabalho remoto pode soar como positiva, uma vez que não

acontecerá gasto de tempo com deslocamento para o local de trabalho, menos

contato com a poluição urbana e maior autonomia e independência para a

realização de suas atividades. A outro giro, para outros teletrabalhadores, essa

realidade pode ser negativa, com a insurgência das seguintes questões:

(...) problemas de conexão (internet, telefone ou videoconferência),


falta de local apropriado para trabalhar, presença da família,
principalmente de crianças pequenas ou de pessoa idosa que

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

demanda cuidados; dificuldades em estabelecer fronteiras entre a


vida profissional e pessoal, especialmente das mulheres (o
problema da dupla jornada feminina); dificuldade em controlar a
jornada e a carga de trabalho, em respeitar os intervalos para
alimentação e dos domingos e feriados, sem olvidar a questão do
direito à desconexão. (GAURIAU, 2020, p. 229)

Um ponto polêmico no âmbito do teletrabalho inscrito nesse roteiro de

dificuldades é o que se refere à jornada de trabalho e o seu controle. No Brasil, o

artigo 62, III, da CLT excluiu expressamente o teletrabalhador do controle da

jornada de trabalho, como tratado anteriormente.

Outra questão desafiadora está vinculada à responsabilidade do reembolso

dos custos com equipamentos e infraestrutura utilizados no teletrabalho. A Medida

Provisória nº 927/2020 previa que o reembolso das despesas arcadas para

implementação do teletrabalho pelo empregado deveriam ser previstas em contrato

escrito, firmado previamente ou no prazo de 30 dias, contado da data da mudança

do regime de trabalho, de acordo com o artigo 4º, § 3º (BRASIL, 2020). Essa

disposição legal difere da prevista no artigo 75-D da CLT, que nada prevê nesse

sentido (GAURIAU, 2020, p. 225-226).

Ainda nessa seara da responsabilidade pela aquisição, manutenção ou

fornecimento dos equipamentos, o texto do artigo 4º, § 4º, da Medida Provisória nº

927/2020 previa que, se o trabalhador não possuísse os equipamentos necessários ao

teletrabalho, o empregador poderia fornecê-los em regime de comodato e pagar

pelos serviços de infraestrutura, que não se caracterizariam como verba de natureza

salarial.

Rosane Gauriau (2020, p. 227) destaca que o artigo 75-D da CLT estipula

que a responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos

equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessários ao teletrabalho será

211
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

estabelecida por acordo entre empregado e empregador, por meio de contrato

escrito, sem maior detalhamento dessa situação.

Todas essas questões controversas estão em debate no campo doutrinário e,

certamente, serão objeto de diversos entendimentos jurisprudenciais futuros. Ainda

atrelada a essas dificuldades ora apontadas, estão outros desdobramentos do

teletrabalho em tempos de pandemia de Covid-19 na saúde física e mental dos

trabalhadores que exercem essa modalidade laboral, o que será apreciado no

capítulo adiante.

3. OS IMPACTOS NA SAÚDE FÍSICA E MENTAL DAS PESSOAS QUE

TRABALHAM REMOTAMENTE EM TEMPOS DE COVID- 19

De acordo com Christophe Dejours, as condições de trabalho impactam a

saúde física do trabalhador, por sua vez, a organização do trabalho impacta a saúde

mental do obreiro (DEJOURS, 1992, p. 78). Sendo assim, é fundamental garantir que

a estrutura do trabalho e sua organização sejam estabelecidas de forma a garantir a

saúde psicofísica dos trabalhadores.

O teletrabalho, por ser executado fora das dependências das empresas,

pode apresentar riscos à saúde física do indivíduo. A autora Denise Fincato (2009,

p. 119) destaca os seguintes riscos decorrentes do teletrabalho: temperatura

inapropriada ao desempenho da atividade; excesso de ruído, utilização de

equipamentos ultrapassados que dificultam o desempenho da atividade

profissional etc. Além disso, a ergonomia também se apresenta como um problema,

pois nem sempre a estrutura do local de trabalho garante condições às posturas

corretas. Nesse sentido, as empresas precisam investir em equipamentos adequados

212
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a serem fornecidos aos empregados, bem como devem orientar a forma correta de

prestação laboral, garantido, assim, a saúde física do teletrabalhador.

Em relação à saúde mental, é preciso levar em consideração que o trabalho

está sendo prestado isoladamente pelos trabalhadores em seus domicílios e,

conforme esclarece Dejours (1992, p. 40), o isolamento dos trabalhadores prejudica

a capacidade de compreender o sentido do trabalho e o destino de sua tarefa,

situação que gera danos ao psicológico do indivíduo.

Ainda no aspecto da saúde mental, é importante considerar que há uma

quantidade imensa de informações disponíveis no ambiente virtual e, somando-se

à flexibilidade de horários do trabalho remoto, pode ocorrer uma sobrecarga

emocional em virtude do excesso de horas trabalhadas. Tais dificuldades se inserem

em um contexto de insegurança gerada pela pandemia. O medo de contrair a

doença e o risco de perder o emprego em decorrência da crise resultam na

dificuldade enfrentada pelo trabalhador para estabelecer limites às atividades

profissionais (ROCHA; NOGUEIRA, 2020, p. 203).

Pontua-se, ainda, a dificuldade de diferenciar a vida privada e a vida

laborativa, pois este cenário pandêmico, com seus impactos no mundo do trabalho,

tornou essa diferenciação mais complexa. As autoras Rosiene Rocha e Mayara

Nogueira (2020, p. 204-205) destacam a importância do suporte emocional

viabilizado aos empregados por meio de atendimentos virtuais por psicólogos, bem

como destacam a importância da interação por redes sociais como forma de

minimizar os efeitos do isolamento social.

Outro elemento que deve ser considerado é a dificuldade de realizar o

trabalho em casa em um momento em que a rede de apoio está comprometida, em

virtude do fechamento de creches, escolas, afastamento de cuidadores etc. Esse

cenário afeta, principalmente, as mulheres, pois a estrutura da sociedade, de uma

213
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

forma geral, as sobrecarrega em relação aos trabalhos domésticos e cuidado com as

crianças, idosos, enfermos, etc.

Diante de tantos desafios no âmbito da saúde mental, é fundamental

concentrar esforços para garantir o equilíbrio emocional dos teletrabalhadores. Em

relação à importância de tutelar a integridade mental dos trabalhadores, Dejours

(1992, p. 139) destaca que:

“A liberdade não se dá” dizem “ela se conquista”. O mesmo


acontece com relação à organização do trabalho. [...] Considerando
o lugar dedicado ao trabalho na existência, a questão é saber que
tipo de homens a sociedade fabrica através da organização do
trabalho. Entretanto, o problema não é, absolutamente, criar novos
homens, mas encontrar soluções que permitiriam pôr fim à
desestruturação de um certo número deles pelo trabalho.

Dejours (1992, p. 75) esclarece que a relação de trabalho envolve todos os

laços humanos criados pela organização do trabalho, relações com a hierarquia, com

as chefias, com a supervisão e com outros trabalhadores, podendo revelar impactos

desagradáveis à saúde do trabalhador, dependendo da forma de execução e

organização da atividade laboral. Portanto, é imprescindível que a organização do

trabalho estabeleça, como prioridade, a saúde mental e física do trabalhador nesse

momento marcado por tantas incertezas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia de Covid-19 alterou a dinâmica mundial em todas as áreas e,

certamente, as relações de trabalho também foram – e estão sendo – gravemente

afetadas. Diversos postos de trabalho foram perdidos, o índice de desemprego

aumentou, e, para manter empregos, o regime de teletrabalho está amplamente

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

difundido. Tal medida é indispensável para resguardar a saúde dos trabalhadores

em virtude da necessidade de manter o isolamento social durante o período

pandêmico.

Entretanto, é preciso reconhecer os desafios impostos à manutenção da

saúde física e psíquica dos teletrabalhadores. O estudo demostrou a relevância de

garantir equipamentos adequados e fornecer suporte emocional aos empregados,

garantindo, inclusive, o direito à desconexão. Portanto, compreende-se a

necessidade de utilização do modelo de teletrabalho para manter os empregos nessa

situação de pandemia; contudo, é imprescindível garantir condições adequadas à

preservação da saúde psicofísica dos teletrabalhadores.

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217
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

DIGNIDADE HUMANA EM QUESTÃO: FALTA DE DENSIDADE

NORMATIVA OU RECUSA DOS PACTOS SOCIAIS?

Karen Artur38
Ligia Barros de Freitas39

Palavras-chave: Racionalidade Neoliberal; Direito do Trabalho; Decisões Judiciais; Direitos


Humanos; Convenções Internacionais

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é mostrar a disputa dos sentidos do direito

na área trabalhista, abordando como determinadas ideias liberal-conservadoras,

presentes no ambiente da Reforma Trabalhista e e em seus desdobramentos mais

recentes, com as medidas sobre a pandemia, promovendo a destruição dos avanços

na constitucionalização dos direitos fundamentais da área laboral, bem como em

sua mobilização como direito humano e fundamental. Além disso, o estudo enfatiza

práticas judiciais de resistência a esse processo.

Por meio de uma abordagem crítica à economização da sociedade via

instituições judiciais, analisamos como a Reforma Trabalhista, instituída pela Lei

13.467/2017, e as posteriores Medidas Provisórias de enfrentamento da Covid-19,

trouxeram insegurança jurídica ao mundo do trabalho ao afastarem-se de uma visão

democrática de acesso à justiça e ao colaborarem com o empobrecimento da

linguagem de direito.

38
Doutora em Ciência Política. Docente de Direito do Trabalho da UFJF. Email: karenartur2014@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6014314141747645 .
39
Doutora em Ciência Política. Docente de Direito do Trabalho da UEMG. Email: ligiadefreitas@ig.com.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1456376742053508.

218
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A racionalidade neoliberal não reconhece os direitos sociais como legítimos

e as mudanças institucionais na área trabalhista no Brasil, desde a reforma

trabalhista e, mais recentemente, com a pandemia da COVID-19, têm distanciado

o país de uma agenda de direitos humanos. Isso tem ocorrido por meio da adoção

de regras que tornam o trabalhador constantemente mobilizado para o trabalho e

que buscam romper as solidariedades coletivas entre trabalhadores.

Dispositivos centrais dessas mudanças, apresentados em discursos

jurídicos, evidenciam outros pontos que merecem atenção, além dos problemas

acima expostos, por também provocarem a destruição das próprias instituições

públicas, por meio do afastamento de uma visão democrática de justiça e do

empobrecimento da linguagem de direitos.

O afastamento de uma visão democrática de justiça acontece quando, em

nome da eficiência econômica, os grupos vulneráveis têm obstacularizada a

possibilidade de expressarem suas demandas. Já o empobrecimento da linguagem

de direito é revelado em discursos afirmam que o princípio da dignidade humana

não tem densidade normativa, de modo a deslegitimar as lutas sociais, a regulação

pública e as decisões judiciais que defendem o valor social do trabalho, e em

discursos que, apoiados em uma visão economicista do Direito, afirmam a

impossibilidade de proteção trabalhista pública das novas formas de organização

da produção e do trabalho, contrariando a base de formação do Direito do Trabalho,

que é justamente considerar a realidade do trabalho para proteger as partes.

A Reforma trabalhista promovida pela Lei 13.467/2017 trouxe insegurança

jurídica ao mundo do trabalho e diversos questionamentos sobre a

constitucionalidade de diferentes alterações promovidas, uma delas, foi sobre a

política de justiça. A Justiça Gratuita, mitigada pela Reforma, não isenta ao

pagamento das custas, honorários sucumbenciais e perícias aos beneficiários que

219
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

venha obter créditos no processo em que foi condenado as referidas despesas, ou

em outro. Enquanto há discursos que entendem o acesso à justiça como um direito

humano fundamental, o mais básico de todos, pois é via acesso facilitado à Justiça

que os demais direitos se concretizam, logo, apontando para a

inconstitucionalidade da reforma sobre esse ponto, há outros discursos, com viés

mais economicista, que defendem a constitucionalidade da norma, utilizando,

como argumento a ótica da eficiência, no sentido de que a diminuição de processos

trabalhistas implicaria expansão do mercado de trabalho, desconsiderando

argumentos de justiça.

Em relação ao empobrecimento da linguagem de direitos, três aspectos da

reforma e seus desdobramentos serão abordados. O primeiro refere-se às mudanças

no âmbito do direito coletivo dentro de um arranjo institucional que visa a

prejudicar a produção de argumentos públicos a respeito de uma regulação não

mercantil do direito do trabalho, ao ampliar a negociação individual e ao retirar

recursos de poder dos sindicatos de representar os trabalhadores.

O segundo aspecto diz respeito à tensão para a realização dos

mandamentos constitucionais relativos à saúde e segurança do trabalhador, que se

mostram cada vez mais atacados pelas mudanças legislativas recentes.

Já o terceiro envolve os desafios impostos à construção de uma ordem social

e econômica pautada na valorização do trabalho digno trazidos com a construção

de justificativas para a expulsão de diversas formas de trabalhos da proteção da

relação de emprego, especialmente, nas plataformas digitais..

Este artigo, além de abordar esse afastamento da agenda de direitos

humanos provocado pela incompatibilidade entre o pensamento neoliberal e as

concepões de direito democraticamente desenvolvidas, busca trazer resistências

aos desdobramentos das últimas reformas na área trabalhista. Para tanto, após essa

220
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

introdução, analisa os argumentos de ações judiciais paradigmáticas, levantadas em

pesquisas prévias, que se apoiam em convenções internacionais, em temas sobre o

acesso à justiça, o papel dos sindicatos, o meio ambiente laboral e as plataformas

digitais. Com isso, em seus apontamentos finais, afirma a importância dessas

resistências na manutenção de uma esfera pública a favor dos sentidos

humanizadores da construção sócio-jurídica enfatizada por visões sobre o

constitucionalismo social, os quais são necessários para enfrentamento do

recrudescimento das desigualdades.

DIREITO FUNDAMENTAL AO ACESSO À JUSTIÇA: ENTRE RESTRIÇÕES

NO STF E AFIRMAÇÕES NA JUSTIÇA DO TRABALHO

A análise sobre os direitos humanos deve partir do fato social, ou seja, da

lutas que conduziram ao conjunto de garantias jurídicas e também das

desigualdades que permanessem na realidade, demandando novas atuações. Essa

é abordagem de Flores (2009), segundo o qual:

Falamos de direitos e parece que tal reconhecimento jurídico já


solucionou todo o problema que envolve as situações de
desigualdade ou de injustiça que as normas devem regular.
Somente devemos nos preocupar com as garantias judiciais dos
direitos, desprezando absolutamente que, atrás de todo edifício
jurídico, se escondem sistemas de valores e processos de divisão do
fazer humano que privilegiam uns grupos e subordinam outros.

No entanto, com a disseminação da racionalidade neoliberal, os pactos

jurídicos por justiça e as demandas pela constante reconfiguração dos direitos e

políticas relacionados têm encontrado resistências nas próprias instituições que

deveriam garantí-los. Brown (2015) alerta para os perigos da economização da

221
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sociedade, por meio da constituição de uma racionalidade governamental e jurídica

pela qual o Estado não apenas regula os efeitos do mercado, mas, sobretudo,

fomenta a competição, generalizando o modelo empreendedor para todos os

domínios da vida. Nesse processo, toda a preocupação com as desigualdades deve

ser apagada, inclusive aquelas presentes nos entendimentos jurídicos e políticos

democraticamente construídos.

Nesse sentido, a única função legitimadora do direito é aquela que traz essa

nova ordem do mercado, num verdadeiro empobrecimento de sua linguagem e

afastamento das preocupações normativas que deveriam caracterizar a democracia.

Justiça social, dignidade humana, reconhecimento do desequilíbrio nas relações

sociais, política judicial democrática, direitos humanos e fundamentais, enfim, todo

o corpo do direito deve ser dissolvido nos interesses econômicos das últimas

transformações, as quais sempre são apresentadas como inovadoras e modelos a

serem seguidos, apesar dos retrocessos sociais e argumentativos.

Trata-se, assim, de uma visão do direito que desconsidera a preocupação

sobre o acesso Justiça e sua evolução cronológica, que tal como posto por

Cappelletti e Garth (1988), ocorreu em ondas. A primeira onda consistiu na

preocupação com a assistência judiciária para as pessoas pobres; a segunda na

representação jurídica para direitos difusos e a terceira onda que centra à atenção

em mecanismos e procedimentos judiciais e extrajudiciais para processar e prevenir

as disputas nas sociedades.

Segundo à ótica do mercado, o Ministro Relator Luís Roberto Barros relator

da ADI 5666, sobre o acesso à justiça, se valeu de argumentos economicistas para

votar pela constitucionalidade dos artigos da Reforma Trabalhista sobre o tema.

Elencando a necessidade do crescimento econômico, com a expansão do mercado

de trabalho, defende que os custos individuais do litígio não devem ser menores

222
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

do que o custo social. Os custos individuais seriam aqueles compostos pelas

honorários periciais, sucumbenciais e custas processuais, importante para

desestimular o litigante aventureiro; e os custos sociais, estão relacionados com

aqueles necessários para manter a máquina judiciária e a problemática do excesso

de litigiosidade. Com isso, o Estado tem o dever de diminuir a excessiva

judicialização, pois o volume exponencial de processo poderia gerar a piora da

Justiça, prejudicando a qualidade da entrega jurisdicional ao empregado.

Por outro lado, pesquisa realizada no TRT 3 aponta a utilização dos

enunciados produzidos pela ANAMATRA referentes ao acesso à justiça na reforma

trabalhista, no primeiro ano de sua publicação (ARTUR, NABAK, OLIVEIRA, 2019).

Por meio da defesa do direito fundamental do acesso à justiça, trabalhadores

puderam ter discutidas questões relativas à sua saúde, as quais são centrais para

sua proteção social. Segundo a pesquisa, as demandas referiam-se a aspectos

básicos como adicional de insalubridade e à políticas iluminadas em sua

importância pela última convenção da OIT, contra violências no trabalho e a

respeito do direito a um meio ambiente laboral não agressor da dignidade física,

mental e social dos trabalhadores. Além disso, os casos encontrados foram

representativos de ações individuais contra grandes setores econômicos.

Continuando a pesquisa no TRT3, mas com foco no controle de

convencionalidade40, além das discussões sobre a inconvencionalidade da reforma

trabalhista no tocante à ausência de diálogo social à prevalência do negociado sobre

o legislado, também se revelou que a maioria das decisões encontradas referem-se

ao tema do acesso à justiça, impulsionando o controle difuso das normas

concernentes ao tema, em um impulso a uma política judicial de respeito a esse

40
Trata-se da pesquisa “Direito do Trabalho, mudanças institucionais e desafios impostos pelo mercado:
estratégias de defesa do trabalho digno”, coordenada pela Profa. Dra. Karen Artur, que conta com o trabalho
do bolsista VIC da UFJF, Marcelo Lopes Sobral Júnior.

223
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

direito fundamental, contrariamente, portanto, às visões economicistas que, em

nome da eficiência, são negadoras dos conflitos democráticos e produtoras de

vulnerabilidades sociais. Em setembro de 2018, reconheceu o Tribunal Pleno do

TRT-MG a inconstitucionalidade da reforma trabalhista no tocante ao acesso à

Justiça, editando a Súmula 72.

Segundo Sadek (2014, p. 63), “o reconhecimento dos direitos e os

mecanismos para garantí-los no âmbito constitucional e infraconstitucional foram

os passos mais significativos dados na direção da democratização do acesso à

justiça”. Entretanto, a desigualdade na distribuição de renda e no usufruir dos bens

coletivos deve ser levada em consideração do Judiciário para a construção do real

acesso à Justiça e a construção de uma sociedade mais igualitária, assim como fez o

TRT3.

DIREITO FUNDAMENTAL À NEGOCIAÇÃO COLETIVA: LIBERDADE

ECONÔMICA VERSUS DIÁLOGO SOCIAL

A reforma trabalhista buscou flexibilizar ainda mais as relações de trabalho

no país, aumentando o leque de opções contratuais atípicas, e, por outro lado,

procurou desestruturar o sistema de regulação pública dessas relações (KREIN,

2019).

Esse processo desconstituinte (Paixão, 2018) tem contado com o apoio de

juristas. Assim, o presente trabalho partiu da inquietação causada pela perpetuação

de visões sobre a relação entre o direito e a economia que prejudicam a efetivação

de direitos humanos que são fruto de lutas históricas, expressos nos pactos sociais

das Constituições e dos tratados internacionais. Essa visões estão presentes em

votos de ministros do STF, como vimos, e também, em juristas do trabalho com

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

posições institucionais. Um exemplo está na falas do ministros Ives Gandra da Silva

Martins Filho, em seminário promovido pelo Instituto Brasileiro de Segurança

Jurídica (IBSEJUR) e pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de Goiás

(ESUMP)41. Para o ministro, o princípio da dignidade humana não tem densidade

normativa, de modo que o juiz do trabalho não pode criar obrigações econômicas.

Sobre o tema da negociação coletiva, apesar de defender a atuação da sociedade,

essa defesa revela-se minimizadora do papel do Estado e ampliativa da

possibilidade de redução de direitos via negociação coletiva, além de desestimular

a importância da justiça social impressa nos pactos sociais citados, no sentido de

que os esforços devem significar a melhoria das condições sociais dos trabalhadores.

Portanto, por meio de visões destruidoras da importância das instituições

do trabalho, sindicatos foram especialmente prejudicados com o fim do imposto

sindical, sem nenhuma transição nas regras de financiamento; com o seu

afastamento das negociações face aos dispositivos que possibilitam os acordos

individuais em questões-chave para a regulação do trabalho, como a jornada; e por

meio de regras que, em nome da desburocratização e de uma pretensa liberdade do

poder empregatício, buscam retirá-los da proximidade com os trabalhadores e do

próprio jogo democrático da solução dos conflitos de trabalho em momentos de

maior fragilidade contratual, a exemplo da desobrigação da homologação da

rescisão do contrato junto ao sindicato e, notadamente, da sua não participação nas

negociações coletivas em dispensas em massa.

Dentro desse cenário de valorização da vontade das partes, muito embora

a realidade continue a informar o desequilíbrio nessas relações, com os

41
Para acesso à programação, ver: MP-GO. http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/evento-esump-ibsejur-
seguranca-juridica#.XrmqEWhKjIU. Para acesso à fala do ministro: ESUMP MPGO. I Congresso Brasileiro de
Segurança Jurídica. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8DcG6wXGHPs&t=6636s. Acesso em
11 de maio de 2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

trabalhadores sujeitos às mazelas de sua dependência em meio à escalada da crise

econômica, já no cenário social da pandemia causada pelo novo coronavírus,

causador da covid-19, o legislador preferiu aprofundar a desregulação pública do

trabalho a buscar soluções dialogadas coletivamente. Nesse sentido, o artigo 2º da

MP 927, de 22 de março de 2020:

Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o


empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual
escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício,
que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos,
legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na
Constituição.

Contra a MP, foram foram ajuizadas a ADI 6342, pelo Partido Democrático

Trabalhista, a ADI 6344, pela Rede Sustentabilidade, a ADI 6346, pela Confederação

Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, a ADI 6348, pelo Partido Socialista

Brasileiro, a ADI 6349, pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo Partido

Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), a ADI 6352,

pelo partido Solidariedade, e a ADI 6354, pela Confederação Nacional dos

Trabalhadores da Indústria.

A confirmação da possibilidade de acordos individuais sem necessidade de

negociação coletiva, trazida com a MP 927 e aceita pelo STF, ainda que sob o

argumento de um momento excepcional, reforça a tendência devalorização da

liberdade econômica em detrimento dos direitos fundamentais, a qual soma-se à

tradição de antissindicalidade de nosso sistema, o que também pode ser visualizado

nas ADIS sobre a terceirização e sobre o fim do imposto sindical.

Essa inclinação aos argumentos que desvalorizam os direitos sociais,

presente em muitos casos na judicialização da política latinoamericana, ganha corpo

quando tribunais promovem o poder de certos grupos e a defesa dos direitos de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

propriedade, os quais, uma vez distribuídos de forma muito desigual, pioram a

equidade (SIEDER, SCHJOLDEN, ANGELL, 2011).

Em nosso país, a retirada de poder dos sindicatos choca-se com os

instrumentos normativos da Organização do Trabalho que garantem e incentivam

o diálogo social como chave para o trabalho decente e o desenvolvimento

sustentável (FREY, MACNAUGHTON, 2016), os quais podem alcançar o bem estar

dos trabalhadores, a eficiência econômica e a confiança nas instituições

democráticas, ou seja, com ganhos para além das relações privadas, alcançando

toda a sociedade em sua relação com o Estado Democrático de Direito.

Apesar desse cenário restritivo para a efetivação de direitos fundamentais,

com as mudanças trabalhistas e, depois, com a pandemia, espalharam-se pedidos

judiciais, pela inconvencionalidade da legislação que restringe a participação dos

sindicatos na negociação das demissões em massa e, também, para que

determinadas empresas se abstenham de realizar a dispensa coletiva de

empregados sem prévia negociação coletiva, conforme pode ser levantado em

recente ação civil pública promovida pelo Ministério Público do Trabalho:

Desse modo, em consonância com o disposto no art. 13 da Convenção n.


158, art. 4º da Convenção 98 e art. 5º da Convenção 154, todas da OIT, art.
8.1 do PIDESC, bem como nos arts. 26 e 29 da Convenção Americana de
Direitos Humanos, consoante a interpretação autêntica adotada pela Corte
IDH, no Caso Lagos del Campo vs. Peru, em sede de controle de
convencionalidade, deve o art. 477-A da CLT ser interpretado no sentido
de que não eliminou do ordenamento jurídico pátrio a necessidade da
negociação coletiva prévia para a validade da dispensa em massa (Ação
Civil Pública, TRT da 2a Região, processo 1000347-72.2020.5.02.0086, de 26
de março de 2020).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Essas demandas evidenciam a importância dos parâmetros da OIT para

legitimar escopos mais abrangentes do Direito do Trabalho, que não sejam

meramente de manutenção do livre mercado.

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE DO TRABALHADOR: ESPAÇO PARA

RECONSTRUÇÃO DE UM DIREITO HUMANO DO TRABALHO

As normas constitucionais e internacionais do trabalho sobre proteção

social dos trabalhadores estão intimamente ligadas à prevenção de doenças e

violências resultantes de condições de trabalho inadequadas e opressivas. Este é um

espaço no qual deve haver atuação estatal para todos os trabalhadores,

independentemente da forma contratual dos quais fazem parte, justamente por ser

um direito fundamental (MARANHÃO, 2017), constantemente mobilizado pelos

atores sociais como um direito humano do trabalho, cuja perspectiva de efetivação

deve tomar como eixo uma visão coletiva de saúde.

Supiot (2017), analisando os processos direcionados para a mercantilização

total da vida, aponta para as novas formas de controle do trabalhador que o

impulsionam para uma intensa mobilização para o trabalho, desumanizando. No

Brasil, um dos processos que estão contribuindo para a contínua institucionalização

dessa desumanização é a reforma trabalhista.

Essa reforma, negando a proteção jurídica por um meio ambiente do

trabalho equilibrado, tentou dissociar a jornada de trabalho da proteção da saúde

coletiva determinada pela Constituição Federal. Por outro lado, em seus

desdobramentos, as medidas provisórias que se seguiram após a sua publicação, e,

mais tarde, com a pandemia, buscaram ampliar a jornada de trabalhadores da saúde

e afastar a fiscalização do trabalho, numa constante busca da criação de um domínio

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

senhoril. De forma mais grave, a MP 927 também visou a retirar a responsabilidade

do empregador por acidente de trabalho advindo de contaminação pelo novo

coronavírus.

Felizmente, por maioria dos votos dos ministros do STF, foram suspensos

o artigo 29 da referida MP, que não considera doença ocupacional os casos de

contaminação de trabalhadores pelo coronavírus, e o artigo 31, que limitava a

atuação de auditores fiscais do trabalho à atividade de orientação.

Parece-nos, portanto, que o meio ambiente é um ponto sensível, um limite,

de alguma forma ainda reconhecido, ainda que contestado, para interpretações

judiciais que permitam a mercantilização total da vida dos trabalhadores. Contudo,

há que se lembrar a necessidade da mobilização pela efetivação desse direito. De

fato, se tomarmos como exemplo a questão do amianto no país, foi a conjunção de

esforços da sociedade e de associações de juristas que permitiu uma abertura dos

entendimentos da Corte para o grave problema e não uma mera disposição para

efetivar direitos humanos (ARTUR, FREITAS, 2017).

A questão da necessidade do equilíbrio entre as várias dimensões da

jornada, como tempo de trabalho, respeito à saúde e à vida social já vinha sendo

objeto de preocupação das instituições do trabalho, tanto via doutrina do dano

existencial e ações do Ministério Público do Trabalho como por meio de debates da

OIT sobre o futuro do trabalho. No entanto, apesar desse olhar ter sido prejudicado

pelo atual governo, ele ressurgiu com força na pandemia, especialmente em razão

do excesso de trabalho, riscos de acidentes e falta de tempo para o cuidado.

Assim, cabe acompanhar como o Supremo irá pronunciar-se a respeito ADI

6380, de 07 de abril de 2020, proposta pela Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Saúde e pela Federação Nacional dos Enfermeiros em face de

dispositivos da MP 927, que ampliam a jornada em tempos de pandemia, a exemplo

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da 12 x 36, a qual, segundo a reforma trabalhista, poderia torna-se parâmetro para

todos os trabalhadores. As demandas desses profissionais devem ser visibilizadas

e debatidas pelo potencial de reflexão e mudança social.

PLATAFORMAS DIGITAIS: O SER HUMANO COMO UM SERVIÇO

As análises sobre o trabalho nas plataformas digitais têm apresentado seu

uso como um processo de fuga da regulação trabalhista, o qual não seria uma

grande novidade, já que as condições de trabalho da gig economy, juntamente com

as terceirizações, subcontratações e trabalhos temporários tornaram-se a

característica marcante do mercado de trabalho desde o século XX (CARDOSO,

ARTUR, 2020).

Apesar da existência de estudos e de decisões judiciais, por todo o mundo,

denunciando o dumping social praticado por essas empresas (CARDOSO, ARTUR,

2019), as ideias liberal-conservadoras que naturalizam essas práticas de um

mercado desregulado também se fazem presentes no mundo jurídico.

Voltando ao problema motivador do presente artigo, na mesma palestra na

qual o ministro Ives Gandra Martins Filho afirmou que o princípio da dignidade

humana não tem densidade normativa, ele afirmou que, ao acionarmos o celular,

estavamos chamando um trabalhador apenas, desvinculando-o, portanto, da

organização econômica centrada em uma marca, que controla esse trabalhador e

organiza o mercado de trabalho na área de transporte, via algorítimos (OITAVEN,

CARELLI, CASAGRANDE, 2018).

Visões como essa se fecham para as desigualdades presentes nessa relação,

na qual os trabalhadores assumem todo o risco da atividade, de modo a quebrar as

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

regras que visam à coesão social, já que tornam possível a fuga da regulação

trabalhista e dos sentidos de justiça do ordenamento público.

Durante pandemia da Covid-19, a superexploração desses trabalhadores

descortinou-se. Com atuação exemplar, o MPT, emitiu notas sobre os

procedimentos a serem adotados por empresas para garantir a saúde e segurança

dos trabalhadores e promoveu ações judiciais no sentido de garantí-las para os

trabalhadores de empresas de tranporte por aplicativos.

No entanto, essas ações enfrentam a recusa ao cumprimento do pacto social

e constitucional pela valorização do trabalho, com violação ao princípío da

dignidade humana e os direitos fundamentais de todos os trabalhadores. Com isso,

há decisões judiciais que ignoram os valores de justiça social presentes na

Constituição de 1988 e nas normas internacionais da OIT42, defendidos pelo MPT.

Portanto, adotando-se as teses sedutoras a favor do mercado, corre-se o

risco da redução do escopo do direito do trabalho e da desconstrução dos pactos

por justiça social, a ponto das instituições judiciais unicamente servirem para

informalizar as relações de trabalho, invisibilizar o sofrimento no trabalho, afastar

as demandas dos trabalhadores, e tornar o ser humano um mero serviço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As últimas interpretações do STF sobre as Medidas Provisórias em face da

COVID-19 não têm sido diferentes dos julgamentos sobre pontos da Reforma

Trabalhista. Há uma continuidade dos discursos jurídicos pautados na eficiência

42
Essa decisão suspendeu liminar proferida pela 82ª Vara do Trabalho de São Paulo em sede de ação civil
pública ajuizada pelo MPT contra o Ifood, no processo nº ACP-1000396-28.2020.5.02.0082. A decisão reflete
o ânimo em afirmar a proposta das plataformas de que são meras intermediadoras e que não teriam
responsabilidades, além de haver uma omissão em reconhecer os direitos humanos fundamentais de todos os
trabalhadores.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

econômica em contraposição às visões mais voltadas à defesa dos direitos humanos,

que têm sidas desqualificadas. Em todos os casos aqui apresentados, há um

afastamento de uma visão democrática de justiça e um empobrecimento da

linguagem do direito, com a desvalorização das preocupações com os direitos

fundamentais da dignidade humana, justiça social e princípios democráticos.

Embora, na aprovação da Reforma Trabalhista e nos julgamentos das ADIs

pelo STF, tenham prevalecido os discursos de viés economicista, calcados na visão

de que o mercado deve agir mais livremente para o fomento de empregos e

crescimento econômico - o que implica, na prática, em precarização das relações de

trabalho e no ataque às instituições de proteção das relações de trabalho- no próprio

mundo jurídico, há resistências à essas visões, como os posicionamentos da

Anamatra ao tratarem como direito fundamental o direito de acesso à justiça, bem

como do TRT3, que acabou se valendo desses posicionais e de normas

internacionais para afastar as restrições ao acesso à justiça.

Na mesma lógica de valorização da liberdade econômica, de

empobrecimento do direito e de desestruturação do sistema de regulação pública

das relações de trabalho, os sindicatos foram prejudicados com a extinção do

imposto sindical, ao mesmo tempo em que, em tese, ganhariam maiores poderes

para a defesa dos trabalhadores, com a negociação coletiva sobrepondo à leis, ainda

que menos benéfica ao trabalhador. Na prática, a reforma promoveu a fragilização

dos sindicatos e, ao mesmo tempo, os afastou de situações de fragilidade do

empregado, como em sua rescisão contratual; além disso, abriu a possibilidade de

acordos individuais em matérias, até então, consideradas de ordem pública, como

jornada e grau de insalubridade.

Igualmente, a reforma trabalhista, e as medidas provisórias que se

seguiram, tentaram dissociar a jornada de trabalho da proteção da saúde coletiva e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

afastar a fiscalização do trabalho. Dando continuidade às reformas, com a

motivação de medidas para o enfrentamento da pandemia, profundou-se a

flexibilização na proteção à saúde do trabalhador, com a tentativa de retirar a

responsabilidade do empregador pela contaminação pelo coronavírus, não a

considerando como acidente de trabalho.

Mas, sobre o meio ambiente do trabalho, são encontradas, igualmente,

resistências de interpretações judiciais contra a mercantilização da saúde do

trabalhador; o próprio STF suspendeu o artigo 29 da MP 927, que não considerava

como doença ocupacional os casos de contaminação de trabalhadores pelo

coronavírus. Cabe acompanhar, a partir de agora, como serão tratadas as demandas

vindas das entidades sindicais dos trabalhadores.

Além disso, a própria atuação do MPT tem se mostrado firme na defesa dos

direitos humanos do trabalho. Fundamentada na defesa dos valores sociais do

trabalho, essa instituição também tem atuado fortemente nos temas do meio

ambiente laboral, dos direitos coletivos do trabalho e do afastamento das fraudes

trabalhistas.

Em síntese, como resultado principal apontamos que as ideias que visam a

justificar a Reforma Trabalhista e as Medidas Provisórias para o enfrentamento do

Covid-19, bem como decisões nelas baseadas, aprofundam a precarização das

relações de trabalho, entretanto, as resistências a essa visão economicista do direito

do trabalho colaboram na manutenção de uma esfera pública a favor dos sentidos

humanizadores da construção sócio-jurídica calcadas no constitucionalismo social

e todos os pactos sociais a ele relacionados.

Concluindo, essas tendências de aprofundamento da precarização têm

contado, portanto, com a atuação do mundo jurídico, apesar das resistências,

inclusive aquelas contra a uberização do mundo do trabalho. Esperamos que a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

economização do mundo não feche as possibilidades dessas disputas, que têm sido,

centralmente, desiguais.

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235
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA EM TEMPOS DE

PANDEMIA: EM BUSCA DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS

TRABALHISTAS

Débora de Jesus Rezende Barcelos43


Carolina de Souza Novaes Gomes Teixeira44
Caroline Fernanda Silva45

RESUMO
O presente artigo tem como objeto inicial a realização de uma discussão a respeito da
constitucionalização dos direitos trabalhistas sob a ótica da legislação simbólica. A seguir,
procurar-se-á perfazer uma análise acerca das Medidas Provisórias de números 927 e 936
editadas pelo Estado brasileiro em caráter excepcional e temporário para regulamentar as
relações de emprego em meio a pandemia do Covid-19 como um possível mecanismo de
precarização trabalhista. Posteriormente, os movimentos sociais serão indicados enquanto
meio de enfrentamento para tal condição, partindo da conscientização e da força
transformadora histórica que carregam.

Palavras-chave: Constituição do Trabalho; Legislação Simbólica; Pandemia; Movimentos


sociais.

ABSTRACT
This article has as its initial object the realization of a discussion about the
constitutionalization of rightshistas from the perspective of symbolic legislation. Next, an
attempt will be made to carry out a labor analysis of Provisional Measures 927 and 936
issued by the brazilian State on an exceptional and temporary basis to regulate employment

43
Mestranda em Trabalho, Democracia e Efetividade no Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais com bolsa de pesquisa do CNPq. Especialista em Direito do Trabalho e
Previdenciário pela mesma instituição. Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). E-mail: deboradejesus.barcelos@gmail.com.
http://lattes.cnpq.br/4533856264834711
44
Doutora e Mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela PUC - Minas. Possui graduação em
Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto (2011). Especialista em Direito Privado pela Universidade
Cândido Mendes - RJ e em Direito da Propriedade Intelectual pela Justus Liebig Universitat - Giessen,
Alemanha. Atualmente é professora Adjunto I da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora
convidada de cursos preparatórios para concursos e pós-graduações. E-mail: carolinasnovaes@gmail.com.
http://lattes.cnpq.br/2084982453540295
45
Graduanda em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC MINAS). E-mail: caroline2805.cs@gmail.com. http://lattes.cnpq.br/5364274653182608

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

relations in the midst of the Covid-19 pandemic as a possible precarious mechanism.


Subsequently, social movements will be indicated as the means of coping with such a
condition, based on the awareness and historical transformative power they carry.

Keywords: Constitution of Work; Symbolic Legislation; Pandemic; Social movements.

INTRODUÇÃO

Após 31 anos do surgimento da Constituição Federal de 1988, grande parte dos

direitos sociais ali inseridos, em especial, direitos fundamentais trabalhistas ainda

não foram efetivados.

Há certo absenteísmo Estatal no que se refere às dificuldades enfrentadas pela

parcela mais pobre da sociedade, notadamente, os trabalhadores, que mais sofrem

com isso, posto que têm no trabalho o principal, quando não, o único meio de

sustento e, portanto, ficam sujeitos aos mais variados tipos de exploração.

Nesse contexto, as medidas provisórias 927 e 936 editadas pelo Estado

brasileiro em caráter excepcional e temporário para regulamentar as relações de

emprego em meio a pandemia do Covid-19 demonstram concretamente essa

indiferença Estatal no que se refere a proteção da classe mais fraca, haja vista que

revelam, sobretudo, preocupações com a sobrevivência das empresas, pouco se

importando com a essencialidade dos direitos trabalhistas que se mostram ainda

mais imprescindíveis em um cenário de enfermidade.

Não fosse o bastante, a pandemia ainda fortalece e intensifica o teletrabalho,

modalidade de labor precária e que, muito provavelmente, persistirá em grande

número mesmo após o fim da pandemia, já que reduz os custos dos empregadores.

Nesse cenário, um dos maiores temores que circundam o mundo do trabalho

diz respeito a possibilidade de eventual permanência das aludidas regras e

circunstâncias, mesmo após a vitória sobre o Covid-19.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Ademais, conforme já dito anteriormente, ainda tem-se o problema de que

inúmeros direitos constitucionais trabalhistas ainda não foram sequer efetivados, o

que contribui ainda mais para a debilidade do Direito do Trabalho.

A falta de interesse dos poderes executivo, legislativo e judiciário em dar

concretude à norma a transforma em um tipo de legislação simbólica, conceituação

adotada por Harold Kindermann e difundida por Marcelo Neves (1994) para definir

textos sem qualquer significado jurídico e que se prestam, primariamente, a atender

finalidades políticas, relegando a um segundo plano a aplicação efetiva da norma.

Infelizmente, ao analisar a incidência do artigo 7º da Constituição Federal em

termos práticos, percebe-se que os direitos trabalhistas não têm sido vistos, nem

tratados como direitos fundamentais, mas sim como direitos de ‘baixo-escalão’. Ora,

em se tratando o Direito do Trabalho de um instrumento destinado a promoção da

dignidade da pessoa humana, observa-se que a sua contínua ignorância e descaso

constitui, na realidade, um descaso com o próprio ser humano, o que não pode de

modo algum ser admitido.

Nesse contexto, o problema a ser discutido na presente pesquisa se resume em

averiguar a eficácia da normatização constitucional trabalhista no plano efetivo,

principalmente em meio a pandemia do Covid-19 e em realizar a busca de

mecanismos capazes de fortalecer o Direito do Trabalho garantindo a sua

aplicabilidade fática.

Assim, a fim de tentar solucionar essa questão, buscaremos apresentar como

hipótese a importância dos movimentos sociais, que, por certo, não se restringem a

meras aglomerações de rua, mas, ao contrário, podem também ser realizados de

outras formas, principalmente pela atuação na internet considerando o atual cenário

de distanciamento social enquanto medida indispensável ao combate da

disseminação do Covid-19.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A partir destas premissas, a presente pesquisa justifica-se pela sua relevância

jurídica e social, haja vista que a busca de novas soluções que tenham como objetivo

a efetivação dos direitos fundamentais trabalhistas coaduna-se com a nova

perspectiva de repersonalização do Direito do Trabalho, voltado ao sujeito e a sua

dignidade, a fim de propiciar progresso e justiça social.

Por fim, a metodologia a ser utilizada passará pelo método monográfico

analítico, fazendo uso do levantamento bibliográfico e do estudo de material

doutrinário enquanto técnica de investigação.

I. O PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DO

TRABALHO

A história do Direito do Trabalho se confunde com os próprios movimentos

sociais que deram vazão à sua criação. Conforme bem observa Maria Cecília

Máximo Teodoro, Direito do Trabalho e movimentos sociais estabelecem uma

relação recíproca de causa e efeito, como se fossem os dois lados de uma mesma

moeda. Não é sem razão que “o Direito do Trabalho é essencialmente social, pois

sempre foi, é, e sempre será uma movimentação dos atores sociais em busca de

melhores condições de trabalho” (TEODORO, 2014, p. 02).

Ora, se o Direito do Trabalho é originário dos movimentos sociais, é ele também

um movimento social histórico que propiciou a regulamentação para o trabalho.

Porém, cumpre frisar, que não se trata de um direito gerado pacificamente, mas sim,

arrancado a sangue e fogo do regime capitalista e liberal que imperava à época da

Revolução Industrial como uma reação ao egoísmo e a exploração sem limites do

trabalho humano.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A constitucionalização do Direito do Trabalho, contudo, veio a acorrer bem

mais tarde, cujo marco inicial em âmbito mundial foi a Constituição do México de

1917, seguida pela Constituição de Weimar na Alemanha em 1919 e pela

Constituição Espanhola de 1931, que trataram de elevar ao status constitucional um

amplo rol de regras regulamentadoras da relação de emprego.

Especificamente no Brasil, o processo de constitucionalização do Direito do

Trabalho teve início com a Constituição de 1934, que reconheceu os princípios da

proteção social do trabalhador, da dignidade humana e da atuação coletiva dos

trabalhadores, além de fixar limites de jornada e estabelecer um salário mínimo. A

Constituição de 1946 deu prosseguimento a esse processo, assegurando, dentre

outros direitos, o direito a greve e a proteção contra a discriminação salarial em

razão de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil, sendo a primeira editada após

o reconhecimento do Direito do Trabalho como um ramo autônomo no Brasil. Já a

Constituição de 1967, no entanto, foi alvo de um certo retrocesso quanto a

regulamentação de direitos trabalhistas, posto que foi elaborada em um contexto

caracterizado por um Estado abstencionista. A Emenda Constitucional de 1969

praticamente em nada alterou no tocante a regulamentação dos direitos trabalhistas

se comparada a redação original de 1967, mantendo a postura cruel e

antidemocrática do Estado. Até que finalmente, em 1988, a nova Constituição

elevou o trabalho e os direitos a ele inerentes à condição de elementos constitutivos

de uma ordem social global, trazendo o maior rol de direitos trabalhistas já

contemplados até então, e, com isso, evidenciou a sua maior preocupação com a

dignidade humana do obreiro.

À expressão constitucionalização do Direito podem ser atribuídos vários

significados e diversos sentidos.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Ferdinand Lassale (2012) lecionava, que o processo de constitucionalização

envolvia a soma e a junção dos fatores reais de poder 46 que imperavam em uma

determinada sociedade dando-lhes expressão escrita em uma folha de papel, sendo

que, a partir de então, seriam legitimados como um verdadeiro direito e, portanto,

passíveis de toda aceitação.

Para Virgílio Afonso da Silva (2011, p.39), “quando se fala em

constitucionalização do direito, a ideia mestra é a irradiação dos efeitos das normas

(ou valores) constitucionais aos outros ramos do direito”.

Especialmente no que se refere à constitucionalização do Direito do Trabalho,

porém, Maria Cecília Máximo Teodoro (2014, p. 03) assevera, que esta veio para

representar “o reconhecimento dos Estados da necessidade de se valorizar o ser

humano em sua atividade mais comum: o trabalho”, por se tratar do principal,

quando não, o único, instrumento de sobrevivência do trabalhador e mediante o

qual encontra dignidade e inserção social.

Antônio Baylos (2004), por seu turno, entende que a constitucionalização do

Direito do Trabalho significa a assunção de compromisso, pelo Estado, no sentido

de atuar contra a desigualdade econômica e social característica das sociedades de

mercado a fim de promover o progressivo nivelamento de tais assimetrias.

No entanto, para o presente ensaio, utilizaremos do sentido conferido à

constitucionalização do Direito do Trabalho por Cléber Lúcio de Almeida e Wânia

Guimarães Rabêllo de Almeida (2017), para quem, a constitucionalização de normas

trabalhistas é um processo, que se desenvolve em duas fases. A primeira delas seria

46
Ferdinand Lassalle (1825-1864), que viveu no século XIX, entendia, à sua época, por fatores reais de poder
que imperavam em uma sociedade, a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia, os banqueiros, a pequena
burguesia e a classe operária. Adaptando, porém, seus ensinamentos ao nosso tempo, não conseguimos
vislumbrar outros fatores reais de poder além do grande capital, compreendido em seu sentido amplo, e da
grande classe trabalhadora, também em sentido amplo, contemplando as diversas etnias, gêneros e crenças
que a compõem.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a constitucionalização formal do Direito do Trabalho, que, em síntese, se refere à

inclusão de regras e princípios do Direito do Trabalho na Constituição, o que

resultaria na verdadeira criação da constituição do trabalho. Já a segunda fase

corresponde à constitucionalização substancial do Direito do Trabalho, que, por sua

vez, vem a ocorrer quando poder legislativo e poder negocial observam os ditames

constitucionalizados tanto na criação do ordenamento jurídico laboral, como na

interpretação e aplicação de suas normas em âmbito administrativo ou judicial,

assim como, quando a norma constitucionalizada encontra o respeito pela própria

análise e crítica doutrinária, intervindo, em termos gerais, nas relações individuais

e coletivas de trabalho.

Em outras palavras, pode-se dizer que a constitucionalização substancial do

Direito do Trabalho comporta a “transformação da realidade econômica, jurídica,

política e social pela constituição do trabalho”. (ALMEIDA; ALMEIDA, 2017, p. 83).

Convém ressaltar, porém, que a mera constitucionalização formal do Direito do

Trabalho não constitui um fim em si mesmo, mas sim, promover a efetividade da

dignidade da pessoa humana, da justiça social 47 , cidadania e democracia, tendo

sempre em vista o progresso e o desenvolvimento contínuo da nação em busca de

uma sociedade mais livre, justa e igualitária.

Por todo o exposto, conclui-se, portanto, que por constitucionalização do

Direito do Trabalho pode-se entender, o processo de inclusão de regras e princípios

juslaborais na Constituição (constitucionalização formal do Direito do Trabalho) e

de transformação não só da legislação infraconstitucional por força destas regras e

princípios, como também da realidade fática da ordem social que visa

47
Quanto à conceituação do incógnito termo “justiça social”, partilhamos do entendimento de Cléber Lúcio
de Almeida (2015), para quem, por justiça social entende-se, a garantia da participação de todos nos benefícios
do progresso econômico e social como instrumento de distribuição de riqueza, posto que o trabalho humano
é imprescindível para a sua acumulação, e, portanto, deve a riqueza ser distribuída da forma mais equitativa
possível para todos àqueles que contribuem para a sua formação.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

regulamentar, através da interferência direta nas relações individuais e coletivas de

trabalho (constitucionalização substancial do Direito do Trabalho).

Porém, conforme se verá mais adiante, em termos práticos, tem-se que a

constitucionalização formal do Direito do Trabalho foi cuidadosamente observada

quando da redação da atual Constituição Federal de 1988, contudo, seu aspecto

substancial vem sendo frequentemente negligenciado, o que contribui para o

enfraquecimento de seu poder de regulamentar e intervir na realidade fática. Quem

mais sofre com isso é a parcela menos favorecida da sociedade, notadamente, a

classe trabalhadora, que então, fica sujeita a brechas para as mais variadas formas

de exploração.

II. CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA: DA [IN]EFICÁCIA DA

NORMATIZAÇÃO CONSTITUCIONAL TRABALHISTA NO PLANO

EFETIVO

A Constituição, como sistema de normas e princípios, almeja, como qualquer

regra de Direito a sua concretização no mundo dos fatos.

Com efeito, o Direito Constitucional e o seu objeto – a Constituição – existem

para se efetivarem.

De acordo com Luís Roberto Barroso (2006, p. 82-83), a efetividade das normas

significa “[...] a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social.

Ela representa a materialização dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a

aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da

realidade social”.

Nesse contexto, Marcos André Couto Santos (2004) ensina, que para que a

Constituição se torne efetiva em termos práticos, é imprescindível o empenho dos

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

governantes e da população em respeitar o ordenamento jurídico e em fazer valer

os princípios norteadores da ordem normativa. Na ausência deste empenho, a

Constituição torna-se letra morta, não passando daquilo que Marcelo Neves (1994)

chama de legislação simbólica.

Por legislação simbólica pode-se entender, de acordo com Marcelo Neves

(1994), pioneiro da teoria no Brasil, como a “[...] produção de textos cuja referência

manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e

hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-

jurídico” (NEVES, 1994, p. 32). Ou seja, o objetivo do texto, na legislação simbólica,

não é inicialmente regular direitos e deveres, mas sim, atender a um jogo político.

A referência deôntico-jurídica torna-se secundária, passando a ser relevante a

referência político-valorativa, e assim, vão se formando textos sem normatividade,

textualidade apenas.

Maria Cecília Máximo Teodoro e Sabrina Colares Nogueira (2014, p. 199),

delimitam a semântica da expressão “simbólica” no contexto jurídico, “como um

instrumento de demonstrar ideologias, especialmente no caso da legislação,

ideologias políticas em detrimento da função jurídico instrumental da norma, ou

seja, normativo jurídica”.

No mesmo sentido é o entendimento de Pedro Lenza (2014), para quem, o ato

de legislar em caráter simbólico exerce papel político-ideológico, servindo para

encobrir problemas sociais e obstruir transformações sociológicas.

Teodoro (2014) ainda ensina, que é no plano da vigência social das normas

constitucionais que se sobressai a problemática da constitucionalização simbólica.

A medida em que se vai apresentando certo descompasso entre as disposições

constitucionais e o comportamento dos agentes públicos e privados, também vai se

percebendo a falta de normatividade da Constituição.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Diante disso, resumidamente, pode-se dizer que legislação simbólica “é aquela

em que, em razão da prevalência da dimensão político-ideológica, há um déficit de

concreção normativa”. (TEODORO; NOGUEIRA, 2014, p.199).

Para facilitar a identificação de um texto legal como simbólico, Marcelo Neves

(1994), adotando a classificação proposta por Harold Kindermann ensina que uma

legislação simbólica pode ter três objetivos, quais sejam: a) confirmar valores sociais;

b) demonstrar a capacidade de ação do Estado; c) adiar a solução de conflitos sociais

através de compromissos dilatórios.

O primeiro objetivo destina-se a confirmação dos valores sociais de um grupo

contra outro em razão da exigência que se faz ao legislador de tomar um

posicionamento no que se refere aos conflitos sociais de valores, devendo a

concepção valorativa escolhida ser condensada em normas que condenam condutas

contrárias e favorecem, quando não abrigam, aquelas que se demonstram

compatíveis com os valores estabelecidos. Trata-se, porém, de uma mera vitória

legislativa, a medida em que a eficácia normativa dessas leis fica relegada ao

segundo plano. (NEVES, 1994).

O segundo objetivo refere-se à demonstração da capacidade de ação do Estado

no intento de assegurar a confiança dos cidadãos no governo.

Sob a pressão do público diante de certa insatisfação, o Estado, então, se volta

à construção de todo um aparato legislativo destinado a dar uma aparente solução

para os problemas reclamados, ainda que esteja apenas a mascarar a realidade para

dar uma resposta pronta e rápida ao povo, embora não mova uma palha para a

efetivação dessas normas. É a chamada legislação-álibi que, conforme aponta

Neves, (1994, p. 39-40) destina-se

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

[...] a criar a imagem de um Estado que responde normativamente


aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações
sociais não sejam realmente normatizadas de maneira consequente
conforme o respectivo texto legal. Nesse sentido, pode-se afirmar
que a legislação-álibi constitui uma forma de manipulação ou de
ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas,
desempenhando uma função ideológica.

Agindo desta forma, o Estado, descarrega-se da pressão política e firma-se

como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos, ganhando a confiança e a

lealdade das grandes massas.

Por fim, o terceiro objetivo ou característica da legislação simbólica é dilatar

compromissos. Com frequência, legislações simbólicas adiam conflitos políticos

sem realmente resolver os problemas sociais subjacentes. Trata-se da elaboração de

um texto legislativo que é aprovado consensualmente pelas partes, mas cujo objeto

não se funda na solução do empasse, mas sim, na transferência de sua resposta para

um futuro indeterminado. (NEVES, 1994).

Como exemplos deste aspecto, Marcelo Neves (1994) cita a Constituição de

Weimar e a lei norueguesa de empregados domésticos de 1948. Em relação a esta

última, os empregados ficam satisfeitos por ter papel aparentemente progressista,

ao passo que os empregadores também se satisfazem, pois contempla cláusulas que

impedem a sua punição em caso de violação da lei, garantindo a sua ineficácia no

plano efetivo.

Como se vê, conforme ensina Thaís de Souza Lima Oliveira, a legislação

simbólica importa em um agir estratégico, posto que a atividade legiferante não tem

correspondência com as verdadeiras intenções dos agentes políticos. Assim, sob

uma roupagem normativo-jurídica, textos e mais textos são produzidos a serviço do

meio sistêmico de poder, seja ele político, econômico ou moral, formando um

discurso legal capaz de persuadir e de convencer uma farsa.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O discurso dos agentes políticos é ilocucionalmente insincero; não


se visa à regulação de condutas e a asseguração de expectativas
humanas, presta-se, primariamente, para a confirmação de valores
sociais, como fórmula de compromisso dilatório ou como meio para
reforçar a figura estatal como digna de confiança e preocupada com
os anseios sociais. Não se trata, [...] de um “agir abertamente
estratégico”, mas de um “agir ocultamente estratégico”, eis que o
público é iludido e mesmo manipulado inconscientemente.
(OLIVEIRA, p. 06).

Essa apropriação sistêmica do direito por mecanismos e códigos de poder

opera-se tanto no nível do processo legislativo quanto no processo de sua

concretização. Com isso, tanto a criação como a aplicação do direito tornam-se palco

da imposição de interesses particulares e hegemônicos.

Partilhando dessa mesma linha de raciocínio, Maria Cecília Máximo Teodoro

(2014) ensina, que um dos grandes problemas da legislação simbólica é o fato do

direito se tornar refém de ideais político particulares que variam segundo os grupos

que ocupam os cargos de direção do país. Para a autora retrocitada, a agenda

política deixa de ser guiada pelos valores constitucionalmente insculpidos para se

dirigir conforme o grupo que faz maior pressão política.

Nesse cenário, observa-se que o texto legal vai perdendo sua força enquanto

regulador de comportamentos e garantidor de direitos e transforma-se em um

mecanismo de manipulação e persuasão a serviço das classes dominantes.

As consequências não poderiam ser piores, destinatários do texto sentem-se

enganados e perdem a crença no sistema jurídico como um sistema promotor da

justiça, o que desencadeia um verdadeiro obscurantismo social.

Nesse sentido, Carolina de Souza Novaes Gomes Teixeira (2015) nos lembra,

que o aniversário de 31 anos da promulgação da Constituição Federal Brasileira de

1988 não deve ser necessariamente comemorado. Ora, os direitos sociais ali

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previstos, em especial, os direitos trabalhistas, ainda não se encontram, em grande

parte, efetivados, o que atinge não só o trabalhador individualmente lesado, mas

toda a sociedade, que se vê despojada daquilo que lhe foi outorgado pela Carta

Máxima.

Como afirma Maurício Godinho Delgado, especificamente no que se refere ao

Direito do Trabalho “o que se afirmou nesse período foi o inquestionável caráter de

direito escrito, especialmente direito legislado, que caracteriza a cultura do país ao

longo de sua história”. (DELGADO, 2019, p. 153). No entanto, mesmo diante da

produção de incontáveis textos legislativos, a efetividade das normas trabalhistas

continua miserável. (TEIXEIRA, 2015).

Com efeito, ao analisar o artigo 7º da Constituição Federal de 1988, percebe-se

que grande parte dos direitos trabalhistas ali inseridos são simbólicos, posto que até

os dias de hoje não foram efetivados, sobrepondo-se à sua função simbólica em

detrimento da instrumental. Segundo leciona Maria Cecília Máximo Teodoro (2014,

p. 05), “eles servem para guiar a pactuação da força de trabalho, mas também para

‘confortar’ os trabalhadores”.

Assim, na prática dos sistemas sociais é preciso distinguir política instrumental

e política simbólica.

A primeira seria privilégio de grupos minoritários, organizados


para obtenção de benefícios concretos e satisfação de interesses
específicos; enquanto a segunda seria orientada por símbolos-
condensação, consistindo em uma função harmônica e aquietadora
do público. (TEODORO, 2014, p.04).

Nesse contexto, o que se alerta, portanto, é para o fato de determinadas normas

trabalhistas constitucionais, tais como a proteção da relação de emprego contra

despedida arbitrária (art. 7º, I, CF); proteção do mercado de trabalho da mulher (art.

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7º, XX, CF); aviso prévio proporcional ao tempo de serviço (art. 7º, XXI, CF);

proibição de diferenças de salários, no exercício de funções e de critério de admissão

por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7º, XXX, CF); direitos estendidos

à categoria dos trabalhadores domésticos (art. 7º, parágrafo único, CF), adicional de

penosidade, dentre tantas outras normas significarem apenas uma tentativa de

apresentação da imagem do Estado como preocupado com os valores por elas

apresentados, quando na verdade, não dá qualquer relevância para a sua

concretização efetiva, o que evidencia o caráter simbólico de nossa Constituição.

Somente a título de exemplo, conforme recente pesquisa do IBGE (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística), apesar da vedação constitucional de

diferenciação de salários por motivo de sexo, raça ou cor, ficou constatado que as

mulheres ganham aproximadamente 27% a menos que os homens em todas as

ocupações, sendo que a grande maioria dos trabalhos elencados na modalidade de

tempo parcial também são ocupados pelo público feminino. Não obstante, maior

ainda é a discriminação entre pessoas negras, que vêm recebendo cerca de 73,9% a

menos que os brancos. (IBGE, 2019).

Também exemplificando a constitucionalização simbólica, Teodoro e Nogueira

(2014) fazem menção a legislação que regulamenta o aviso prévio proporcional.

Para as autoras, a Lei nº 12.506/2011 apenas confirma o já conhecido caráter

simbólico da legislação constitucional, a medida em que não efetiva o direito ao

aviso prévio proporcional, mas sim o limita. Para tanto, argumentam que a norma

constitucional é clara ao mencionar que o aviso prévio será proporcional ao tempo

de serviço, não podendo a legislação infraconstitucional limitar este tempo de

serviço ao equivalente a vinte anos e, respectivamente, sessenta dias de aviso.

Ademais, a aludida lei é também simbólica no sentido da dilação de compromissos,

pois somente adia o compromisso de impedir, de uma vez por todas, a despedida

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arbitrária, já que apenas três dias de aviso-prévio por cada ano de trabalho não

onera em nada essa modalidade de dispensa. Ou seja, “o legislador, como álibi ao

compromisso de garantir ao trabalhador a estabilidade no emprego, concedeu-lhe

um direito mínimo, sob o argumento de proteção da relação de trabalho, dilatando,

mais uma vez, o dever máximo de garantir a estabilidade no emprego”.

(TEODORO; NOGUEIRA, 2014, p. 200).

Destarte, convém lembrar que a despeito da norma constitucional contemplar

a proteção do mercado de trabalho da mulher, o que se viu na prática com a Reforma

Trabalhista foi bastante diferente, visto que restava por admitir a permanência de

mulheres grávidas em labor insalubre, recordando mais uma vez o papel simbólico

do art. 7º, XX, da Constituição Federal. Felizmente, tal previsão absurda

contemplada na reforma já foi revogada, graças ao bom senso do poder judiciário

em julgamento liminar da ADIN 5938, mas não deixa de chamar a atenção para a

astenia de nossa norma constitucional.

Frisa-se, que estes são apenas alguns dos inúmeros exemplos do caráter

simbólico da legislação constitucional trabalhista brasileira, pois, como ressaltado,

a sua numerosa ocorrência ocasiona a impossibilidade técnica de enunciar a todos

neste breve ensaio.

De toda forma, além dos direitos sociais previstos na Constituição Federal de

1988, não se pode olvidar que há ainda outros direitos, igualmente fundamentais,

que se encontram espalhados ao longo de nosso ordenamento jurídico e que

também precisam de efetivação. (TEIXEIRA, 2015).

Ressalta-se, que vários destes direitos não foram efetivados como deveriam,

não em razão de sua orientação constitucional ou legal, mas sim, porque o país não

teve ainda representantes eficientes e políticas públicas que visassem dar

concretude ao texto normativo.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nesse contexto, não se pode esquecer de referir, que ao deixar de assumir o

compromisso de conferir efetividade aos direitos previstos em sua Constituição, o

Estado acaba por permitir a exclusão social e econômica das camadas menos

favorecidas da sociedade, aí incluídos os trabalhadores. Com isso, resta por

promover, de uma certa forma, “a invisibilidade daqueles submetidos à extrema

pobreza; a demonização daqueles que desafiam o sistema e a imunidade dos

privilegiados, minando a imparcialidade da lei”. (VIEIRA apud TEODORO, 2014, p.

09).

O resultado é que o Estado se torna negligente com os invisíveis,


violento e arbitrário com os moralmente excluídos e dócil e
amigável com os privilegiados, que estão posicionados acima da lei.
Assim, mesmo que se tenha um sistema jurídico adequado às
diversas “máximas” relacionadas com a formalidade do Direito, a
ausência de um mínimo de igualdade social e econômica inibe a
reciprocidade, através da subversão do Estado de Direito.
(DELGADO, 2006, p. 120).

Especificamente no âmbito dos direitos fundamentais trabalhistas, tal

subversão é ainda mais gritante. Isto porque, considerando que se tratam de verbas

de caráter exclusivamente alimentar, os direitos trabalhistas não são passíveis de

disposição e a sua não concreção tem como consequência direta o aprofundamento

da desigualdade e a elevação da pobreza. (TEODORO, 2014).

Apesar disso, as máximas de flexibilização e desregulamentação não param de

crescer e o que se tem visto recentemente é um aumento absurdo da relativização

de normas que já não eram cumpridas em sua integralidade, o que evidencia um

grave retrocesso na proteção daqueles direitos mais essenciais ao ser humano, posto

que instrumento de proteção e resguardo de sua própria dignidade.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

III- PANDEMIA E SUA INSTRUMENTALIZAÇÃO PARA A FRAGILIDADE

DA PROTEÇÃO TRABALHISTA

Em um cenário nunca antes experimentado pelo Brasil, é preciso refletir sobre

a postura estatal de manutenção dos direitos fundamentais trabalhistas sob uma

condição meramente simbólica. Efetivamente, uma pandemia, com altos índices de

infecção e milhares de mortes, exige a alteração de padrões sociais de forma ampla

e ágil. Porém, as mudanças que têm sido feitas não observam os interesses da classe

trabalhadora, mas apenas do capital, servindo para aprofundar ainda mais um

abismo já preexistente que insiste em comprimir a classe que depende de seu

trabalho para viver.

Iniciaremos nossa análise a partir da demonstração do modo como a

disseminação do Covid-19 serviu para fortalecer as pautas de flexibilização

trabalhista, agindo como uma espécie de intensificador dos retrocessos que

antecederam a própria pandemia. Com efeito, a exigência de distanciamento social

para diminuir a velocidade de transmissão do vírus intensifica o home office, espécie

laborativa cujo gênero é o teletrabalho.

Por teletrabalho, entende-se, como “a prestação de serviços

preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de

tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se

constituam como trabalho externo” 48 . Trata-se, de modalidade inserida na CLT

através da Lei 13.467/2017, e que, frequentemente, é apontada como trabalho

precário.

48
Redação constante do art. 75 B da Lei 13.467/2017, bem como do art. 4º, § 1º da Medida Provisória nº 927,
de 22 de março de 2020.

252
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nesse contexto, a Medida Provisória- MP- nº 927, de 22 de março de 2020,

elencou o teletrabalho como uma das possíveis medidas a serem adotadas para o

“enfrentamento dos efeitos econômicos [...] e para a preservação do emprego e da

renda” (Art. 3º, caput), porém, acaba por tornar esse tipo de trabalho ainda mais

fragilizado, à medida que o rege de forma menos exigente que os próprios moldes

em que foi acrescido à CLT pela Reforma Trabalhista, Lei 13.467/2017.

Deste modo, a redação trazida no artigo 4º da MP 927, – diferentemente da

regulamentação formulada pela Lei 13.467/2017 em seu artigo 75-C –, não exige,

para a implementação do teletrabalho, a consignação em acordo individual, que

passa a poder ocorrer mediante mera decisão unilateral do empregador,

prescindindo apenas de notificação com quarenta e oito horas de antecedência.

Outra flexibilização trazida ao teletrabalho pela MP em espeque diz respeito às

avenças que envolvam custos com equipamentos, manutenção, entre outros gastos

relativos à infraestrutura e aparelhamento necessários a prestação de serviços.

Ressalta-se, que tanto a CLT quanto a MP preveem, que tais tratativas devem se dar

por meio de contrato escrito, conforme artigos 75-D e artigo 4º, § 3º,

respectivamente. Noutro giro, a medida provisória permite que se consigne em

contrato tais negociações no prazo de até trinta dias após a mudança do regime de

trabalho, fazendo assim, com que o trabalhador se mantenha no escuro acerca de

tais gastos no referido período.

Ademais, uma frequente benesse apontada como inerente ao teletrabalho diz

respeito à suposta liberdade de ingerência por parte do trabalhador em seu próprio

tempo. Porém, na realidade, a condição comum de home office instalada pela

pandemia gera diversas dificuldades relacionadas ao controle da jornada de

trabalho. Seja por limitações relacionadas com a infraestrutura, inviabilizando a

prestação de serviços em tempo correspondente ao que se gastaria nas

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

dependências empresariais, ou mesmo por necessidade de satisfação de metas

impostas pelo empregador, o empregado controla sua jornada não mais pelo tempo

em que está à disposição da empresa, mas sim pelo atingimento de certos

marcadores.

Nessa conjuntura, o trabalhador perde completamente a capacidade de

controlar seu tempo dedicado as atividades laborais, havendo uma completa

confusão entre sua jornada de trabalho e os momentos que deveriam servir ao lazer,

descanso e convivência familiar. Neste ínterim, relevantes se tornam as ponderações

de Leandro Henrique Costa Bezerra (2019):

O fenômeno da globalização, com as novas tecnologias digitais,


intensifica o descontrole do tempo do empregado pela empresa. O
trabalho está no computador ou no celular pessoal: qualquer meio
telemático tem aptidão de estruturar uma relação de emprego. O
empregado torna-se um instrumento despersonificado para a
empresa, sem qualquer particularidade de gestão que adeque o
empreendimento às qualidades de cada trabalhador, sem esquecer
dos resultados lucrativos de pretensão da empresa. Contudo, a
empresa é uma construção humana, e não o contrário. (BEZERRA,
2019, p. 3).

Como se vê, a elasticidade desmedida da jornada de trabalho torna-se uma

realidade que compromete não só o descanso e a saúde do empregado, mas

também, o tempo que deveria ser investido no lazer e na convivência familiar. Não

obstante, em tempos pandêmicos, com a exposição diária a notícias que atestam

mortes e caos, tais condições se tornam ainda mais graves, o que gera um prejuízo

à saúde psíquica do trabalhador.

É ainda imperioso se atentar ao fato de que a adesão ao teletrabalho em

decorrência da pandemia onera o empregado no desempenho de suas funções. Com

efeito, sobre ele acaba recaindo um ônus inesperado, tal como, por exemplo, os

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

gastos com energia elétrica, internet, depreciação e manutenção de equipamentos

eletrônicos, eventuais gastos com telefonia, etc, tudo contrariando a ideia de que

pertence ao empregador os riscos inerentes a sua atividade econômica.

Para além, outra medida apontada pela MP 927 é a alteração do prazo de aviso

prévio relativo ao gozo de férias, que na CLT é de trinta dias, com a necessidade de

pagamento antecipado, passando a medida provisória em comento a permitir que

tais formalidades sejam cumpridas no prazo de quarenta e oito horas quando se

tratarem de aviso prévio, e, em se referindo ao pagamento, que seja até o quinto dia

do mês subsequente. Já o pagamento do terço constitucional, por sua vez, pode ser

feito até a data da quitação do décimo terceiro salário. Como se vê, novamente há

uma protelação no que se refere ao pagamento de benefícios sociais, o que, valha

dizer, sempre foi mister para o amparo econômico do trabalhador, quiçá, em tempos

de pandemia.

Por fim, ainda em relação a norma em espeque, destaca-se a possibilidade

trazida pelo artigo segundo, que permite a celebração de acordo individual a se

sobrepor aos demais instrumentos normativos legais e negociais, excetuadas as

disposições constitucionais. Em que pese a impossibilidade de alteração das

disposições constitucionais, há lesão a questão fundamental do Direito do Trabalho,

pois se opera uma ofensa ao princípio da norma mais favorável, dando lugar a

acordos que lesionam benefícios já estabelecidos. Não obstante, opera-se, ainda,

lesão ao princípio da inalterabilidade contratual lesiva, também basilar deste ramo

jurídico, uma vez que se legitima a supressão de direitos garantidos em

instrumentos antecedentes.

É valido elucidar que a Medida Provisória 927, felizmente, perdeu sua vigência

durante o desenvolvimento deste trabalho, em razão de não ter sido convertida em

lei no prazo de sessenta dias, contados de sua edição, conforme previsto nas regras

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

do processo legislativo brasileiro, entretanto, não se opera a invalidade de atos

praticados durante a sua vigência passada.

No tocante a MP 936 de 01 de abril de 2020, que “institui o Programa

Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas

trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública”

(BRASIL, 2020), os pontos que mais se destacam são a redução da jornada de

trabalho e dos salários em até 70% pelo prazo de até noventa dias e a suspensão

do contrato de trabalho pelo prazo máximo de sessenta dias, artigos 7º e 8º,

respectivamente.

Tratando da redução da jornada e dos salários, a medida concede permissão

para que seja realizada por intermédio de simples acordo individual. Convém

observar, no entanto, que tal previsão importa em violação direta ao artigo 7º,

incisos VI e XIII, da Constituição Federal de 1988, que aludem ao princípio da

irredutibilidade salarial, uma vez que a Lei Maior determina que a redução

salarial e da jornada somente pode se realizar mediante convenção ou acordo

coletivo de trabalho.

Quanto a suspensão do contrato de trabalho, por sua vez, a CLT, no artigo

476-A regulamenta, que esta deve possuir a duração de dois a cinco meses,

mediante previsão em acordo ou convenção coletiva. Já a MP 927, por seu turno,

dilata o referido prazo em sessenta dias e outra vez possibilita a utilização de

acordo individual para tanto.

Novamente, vê-se que as opções políticas não visam a efetividade de direitos

constitucionais trabalhistas, mas sim a sua estrita submissão a interesses

econômicos.

Neste ponto, há que se refletir que o cenário de instabilidade econômica, crise

sanitária e a própria temeridade pela vida, causados pela Covid-19 e seus

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

consequentes efeitos na condição psíquica dos indivíduos tem se tornado solo fértil

para proposições que dizem respeito a relativização e fragilização dos direitos, ou

mesmo servindo de forma protelatória na implementação de sua real eficácia.

Efetivamente, em um contexto aliado à falta de perspectiva, o medo do

desemprego faz com que os indivíduos julguem razoável a submissão a certas

privações e a supressão de direitos, na esperança de manter-se a qualquer custo

empregado. Dito de outro modo, é a utilização do desastre “para fazer avançar um

projeto profundamente impopular” (KLEIN, 2008, p. 460).

Assim, o estabelecimento de medidas flexibilizadoras instituídas

aparentemente como emergenciais e em decorrência de tempos excepcionais,

quando se mostram favoráveis a grandes empresas e corroboram aos fins de

acumulação do capital, acabam por se perpetuarem após a superação do momento

de crise, construindo novos paradigmas em que supostas doutrinas de

“desenvolvimento” emergem como uma oportunidade para o enfraquecimento da

classe trabalhadora de modo permanente.

Neste sentido, a utilização da pandemia como instrumento de fragilização da

proteção do trabalho já se constitui uma realidade. Estudo realizado pela Fundação

Getulio Vargas-FGV, demonstra que empresas de diversos setores, exceto no

Comércio, afirmam adoção total ou parcial do teletrabalho como enfrentamento

da crise gerada pela pandemia. “O home office foi adotado por 80,4% das

indústrias, 68,6% das empresas prestadoras de serviços e 59,6% das empresas de

construção. No comércio, apenas 26,6% das empresas passaram a se utilizar deste

artifício.” (FGV, 2020).

Por seu turno, Camila Boehm (2020), repórter da Agência Brasileira de

Comunicação, empresa que compõe o sistema público federal de comunicação,

noticiou, citando outro estudo da FGV, que após a superação da pandemia por

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

coronavírus o que se espera é que o equivalente a 30% das empresas brasileiras

passe a adotar o home office de maneira regular. (BOEHM, 2020).

Sabidamente, o movimento ideológico-político que sustenta o caráter simbólico

das normas sob análise, não é um movimento que emerge do contexto de pandemia,

mas foi por este intensificado, servindo a excepcionalidade como álibi para

retrocessos, reafirmando modos de precarização antes já intentados, ou mesmo se

valendo de um cenário instável e socialmente dramático para o estabelecimento de

medidas que privilegiam interesses de grupos hegemônicos, a pretexto da

manutenção da empregabilidade e vitalidade econômica do país.

Nesse contexto, a pergunta que se instaura é a seguinte: qual seria, então, o

caminho a ser trilhado na busca pela efetividade dos direitos trabalhistas, tendo em

vista que a proteção no plano jurídico não tem sido suficiente para barrar a

arbitrariedade?

Acreditamos, que a força necessária para a transformação das dinâmicas sociais

reside na própria sociedade, haja vista que, conforme discorrido anteriormente, o

poder público, partindo de uma perspectiva propriamente neoliberal e exploratória

tem atuado em sentido contrário a necessária efetivação de direitos e a emancipação

trabalhista.

IV. OS MOVIMENTOS SOCIAIS COMO INSTRUMENTO NA BUSCA POR

EFETIVIDADE AOS DIREITOS TRABALHISTAS

A Revolução Industrial representa um relevante marco nos modos de vida

econômicos e sociais, sobretudo, quando se aborda temáticas com enfoque na

relação de trabalho. Isso porque, a transformação por ela ocasionada em muito

perdura no cotidiano trabalhista até os dias de hoje. Segundo as lições de Mario

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Schmidt (2019), a expansão da indústria na Inglaterra, país pioneiro na instalação

de fábricas industriais gerou um êxodo da população camponesa para a cidade,

levando-os a percepção de que era necessário vender sua capacidade produtiva a

fim de sobreviver, fazendo surgir a classe proletária. (SCHMIDT, 2009, p. 308).

Este cenário consistia em donos de fábricas se enriquecendo continuamente

enquanto trabalhadores e suas famílias sofriam as mais diversas privações, sendo

expostos a péssimas condições de trabalho, baixos salários, jornadas exaustivas,

exploração infantil, ambientes de trabalho insalubres, castigos corporais, entre

outros. Em resposta a este contexto, surgiram então, os movimentos de reação da

classe trabalhadora, que, inicialmente, se voltavam a destruição dos maquinários

fabris 49 como forma de reivindicar melhores condições de trabalho e melhores

salários. Com o passar do tempo, entretanto, concluíram que o cerne da questão não

eram as máquinas, senão a relação existente entre o núcleo trabalhador e

proprietários dos meios de produção, o que levou os trabalhadores a perceberem a

necessidade de se organizarem e ocuparem espaços políticos, fazendo surgir os

movimentos sindicais. (SCHMIDT, 2009, P. 312).

Essa breve recapitulação histórica possui o fito único de demonstrar, que desde

o início dos modos industriais do capitalismo caminha-se pari passu a atuação de

grupos que se mobilizam na luta da classe trabalhadora contra abusos e

explorações, delineando a necessidade de um corpo social ativo e reivindicante.

Maria da Gloria Gohn (1997) assevera, não haver um conceito rígido e exclusivo

para descrever, o que, de fato, seja tido como um movimento social. Isso porque, o

movimento em si, possui uma intima relação com a realidade social que lhe é

49
Em sua obra, Schmidt destaca os movimentos intitulados de Ludismo, em que diversos operários, que eram
anteriormente artesãos, se agrupavam para destruir máquinas como modo de reivindicação, pois entendiam
que a máquina é que havia destruído os modos de sobrevivência pelo artesanato e também o movimento
chamado de Swing, este liderado por camponeses que também viam nas máquinas as razões de falência de
suas pequenas propriedades. (Schmidt, 2009, p. 312).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

inerente. Assim, critérios temporais, históricos, geográfico-espaciais, dentre outros,

não podem ser tomados enquanto paradigmas (GOHN, 1997, p. 13) para a definição

de movimento social, posto que incapazes de abarcar em seu interior toda a

complexidade que permeia os mais diversos movimentos. De acordo com a aludida

autora, “os movimentos são fluídos, fragmentados e perpassados por outros

processos sociais” (GOHN, 1997, p. 343), além de serem plurais quanto as razões de

sua existência e também em seu modo atuante, daí porque se pode afirmar ser

incoerente uma conceituação única e genérica.

Apesar disso, reconhece-se aqui a importância de se destacar uma especificação

conceitual para o termo, especialmente, a fim de esclarecer as considerações

abordadas neste trabalho. Desta feita, quando utilizamos a expressão “movimentos

sociais”, procuramos nos referir a:

[…] ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e cultural que


viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar
suas demandas. Na ação concreta, essas formas adotam diferentes
estratégias que variam da simples denúncia, passando pela pressão
direta (mobilizações, marchas, concentrações, passeatas, distúrbios
à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.)
até as pressões indiretas (GOHN, 2011, p. 335).

Vê-se que não se trata simplesmente de uma aglutinação de determinados

grupos sociais, mas sim de uma reunião com um propósito firme. Neste sentido,

Maria da Gloria Gohn (1997) diferencia os movimentos sociais dos demais

agrupamentos ao mencionar que aqueles:

(...) possuem identidade, têm opositor e articulam ou


fundamentam-se em um projeto de vida e de sociedade […]
apresentam conjuntos de demandas via práticas de
pressão/mobilização; têm certa continuidade e permanência. Não
são só reativos, movidos apenas pelas necessidades (fome ou

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

qualquer forma de opressão); podem surgir e desenvolver-se


também a partir de uma reflexão sobre sua própria experiência. Na
atualidade, apresentam um ideário civilizatório que coloca como
horizonte a construção de uma sociedade democrática. (GOHN,
2011, p. 4)

Historicamente, os movimentos sociais brasileiros já deram grandiosos

exemplos da eficácia deste meio de atuação em busca de um Estado que

corresponda às necessidades de seus governados. A título de exemplo, pode-se citar

a greve operária de 13 de maio de 1978, as movimentações nas ruas em 1984 contra

a ditadura e em busca do direito ao voto para a presidência, o movimento caras-

pintadas em 1992 contra o governo Collor, as jornadas de junho no ano de 2013

contra o aumento das tarifas de ônibus, etc.

Estes e outros exemplos demonstram, que a mobilidade social comporta sim, o

poder necessário para não só colocar em pauta, mas também para promover a

concretude de grandes transformações sociais tendo em vista a justiça social, a

democracia e os interesses das classes populares.

Ademais, conforme ensina Noberto Bobbio (1992), os direitos do homem, ainda

que fundamentais sejam, não estão desde sempre postos, mas sim, são históricos,

dado que surgem como resultado de determinadas circunstâncias e lutas, “nascidos

de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” (BOBBIO,

1992, p. 05). A aludida afirmativa é de extrema importância, principalmente no que

diz respeito ao caráter não definitivo dos direitos, pois, de certa forma, implica dizer

que, embora a Constituição Federal de 1988 seja, com todo o seu arcabouço

protetivo um marco nacional em direção a dignidade do trabalhador, conferindo

importantes vitórias no campo jurídico, sua mera redação não significa o exercício

concreto e definitivo de tais direitos, o que faz surgir a necessidade de se lançar mão

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

dos movimentos sociais enquanto um instrumento de contrapoder das minorias em

direção a transformação da realidade social.

Ocorre, que mudanças propiciadas por intermédio de movimentos sociais

geralmente pressupõem uma grande mobilização de massas, o que, por sua vez,

demanda certa indignação coletiva perante os padrões impostos. Neste sentido,

convém dizer, que desde sempre os trabalhadores vêm sofrendo diretamente os

efeitos de escolhas políticas firmadas a pretexto da defesa da economia, entretanto,

muitas vezes, acabam reputando como assertiva a supressão de seus direitos sob o

temor referencial de perda do emprego e isso contribui para o triunfo da exploração.

Com efeito, é preciso que haja conscientização por parte dos trabalhadores no

sentido de que entendam em que tipo de sociedade estão inseridos e quais as

necessidades essenciais da classe a que pertencem, para que, posteriormente,

possam atuar em busca da efetividade daquilo que já lhes foi garantido, tendo em

mente que não basta que o Estado reconheça formalmente os direitos fundamentais

trabalhistas, sendo preciso também concretizá-los através de leis eficazes aplicáveis

na vida real. Essa efetividade, por sua vez, carece de uma atuação ativa não só dos

poderes executivo, legislativo e judiciário, mas também de uma atuação social que

anseie e reivindique por isso. Conforme já dizia Marx citado por Schmidt (2009, p.

312), é preciso de um corpo trabalhador ciente de que “a emancipação do proletário

é obra do próprio proletário”.

Por fim, como dissemos, distanciar-se dos demais é elemento fundamental

para o enfrentamento da pandemia, mais precisamente, a principal estratégia de

que dispomos. No entanto, embora o distanciamento social pareça caminhar em

sentido oposto a necessidade de mobilização e articulação de movimentos, o

aparente limitador pode ser facilmente superado com a mesma estratégia utilizada

pela tendência que atua no desmonte dos direitos trabalhistas: a tecnologia.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Se, por um lado, a expansão tecnológica serve de justificativa para a

intensificação do teletrabalho, pode também ampliar o alcance do engajamento e da

articulação popular, posto que comporta a possibilidade de aproximar públicos que

anteriormente se encontravam distantes, ao mesmo tempo em que consegue chegar

a locais antes inviáveis, além de promover um aumento significativo de visibilidade

das mobilizações. Com efeito, as redes sociais e demais espaços de discussões e

interações virtuais desconhecem barreiras geográficas, possibilitando o

fortalecimento e a aproximação dos povos mesmo em tempos em que o seguro é

manter-se fisicamente distante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um importante marco de proteção

aos Direitos Trabalhistas, ampliando o rol de direitos e garantias destinados a

promoção de um trabalho mais humano e digno.

Porém, em tempos de crises, tal como a enfrentada atualmente em decorrência

da pandemia do novo Covid-19, estes direitos, que deveriam se mostrar ainda mais

eficazes quanto ao resguardo e proteção do trabalhador, garantindo-lhe uma vida

digna mesmo em tempos de calamidade, acabam, na verdade, sendo

completamente negligenciados e postos em segundo plano pelo poder público.

Com efeito, os direitos trabalhistas têm sido sistematicamente desrespeitados,

sobretudo, a partir de uma omissão proposital por parte do Estado. Neste cenário,

previsões constitucionais trabalhistas carecem de efetividade prática e passam a

assumir a mera condição de legislação simbólica, isto é, todo um aparato normativo

destinado a simples oferta de uma solução, que aparentemente corresponda aos

anseios populares, embora o Estado não tenha o mínimo interesse em concretizá-lo.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Isto porque, não raras vezes, percebe-se um atuar estatal baseado meramente

em interesses político-ideológicos que se alinham aos interesses de grupos

hegemônicos, notadamente, aqueles que comportam o poderio econômico. Diante

disso, a efetivação de direitos sociais torna-se tema em aberto, sem a mínima

pretensão de uma atuação eficaz por parte do poder público.

Ressalta-se, que as Medidas Provisórias editadas no contexto pandêmico,

especialmente as de números 927 e 936, demonstram claramente, que ao ser

chamado para ofertar soluções urgentes e pontuais para a sociedade em tempos

difíceis, o Estado, prefere, a pretexto de uma suposta atenção à economia e a

manutenção de empregos, sobrepor interesses hegemônicos em detrimento da

proteção do trabalhador hipossuficiente, o que o faz violando diversas

determinações do Texto Constitucional.

Em resposta a esta tendência de reafirmação e fortalecimento da precarização,

urge a mobilização da classe trabalhadora mediante a sua articulação em

movimentos sociais bem definidos, para que se possa exigir uma postura realmente

protetiva do Estado, isto é, que não se restrinja apenas a esfera legislativa, posto ser

sabido que nem mesmo a inserção de previsões na Constituição Federal, norma de

maior privilégio dentro do sistema jurídico-normativo é capaz de assegurar

efetividade.

Historicamente, os movimentos sociais atuaram inúmeras vezes como força de

transformação, entretanto, na atualidade, o desenvolver de uma mudança

verdadeiramente transformadora requer de seus entusiastas o reconhecimento da

realidade social que os circunda, bem como, a compreensão de que precisa ser

mudada. Portanto, no atual contexto, lutar pela concretude dos direitos trabalhistas

exige a conscientização da classe trabalhadora, o que acreditamos ser possível

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

através de uma educação verdadeiramente libertária, tal como aquela apresentada

por Paulo Freire (1996).

De fato, novos desafios se desenham em paralelo a luta pela sobrevivência em

meio à pandemia. Se antes era difícil efetivar direitos, agora, ainda se deve lutar

para que não sejam suprimidos em tempos pandêmicos, tornando a exceção, regra,

uma vez que ciclos capitalistas enxergam na crise oportunidades para seus próprios

fins de exploração, o que não pode de modo algum ser admitido e precisa ser objeto

de luta.

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269
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

FRONTEIRAS E PORTAS FECHADAS: MULHERES TRAFICADAS

NOS TEMPOS DO CORONAVÍRUS

Bianca Pereira Bittencourt50


Nayara Tavares Cardoso51

Palavras Chave: Tráfico de pessoas; Direitos humanos femininos; Cooperação internacional

INTRODUÇÃO

Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o vírus SARS-

Cov-2 uma pandemia global. No final de 2019, o novo vírus se expandira

globalmente, a partir de Wuhan, na China, a causar síndrome respiratória aguda

grave. Relatório publicado em meados de abril do ano corrente por “International

Journal of Environmental Research and Public Health” (14 April 2020) afirma que,

até aquele momento, não havia resposta global e padronizada à pandemia. Cada

país tem enfrentado a crise a partir das próprias possibilidades, conhecimento e

hipóteses. Assim, não há o implemento de novas políticas cooperativas

internacionais para o enfrentamento à pandemia, para o cuidado e a proteção das

vítimas do vírus. Como sabemos, não existe, até o momento, um antiviral específico

ou vacina para tratar ou combater a doença respiratória que vem ceifando vidas em

todo o cenário global. A prática do isolamento social para evitar a contaminação

pelo COVID-19 tem sido largamente utilizada nos países.

50
Doutora em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Pós-Doutora em Ciência
Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). E-mail:
bia.pbittencourt@gmail.com – Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2595875916200878
51
Doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). E-mail:
nayaracardoso@uol.com.br – Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2820087891391912.

270
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Em análise recente, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime

(UNODC) (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, 08/05/2020) mostra que bloqueios,

restrições de trabalho, diminuição de recursos têm resultado em perigo na vida de

pessoas vitimadas pelo tráfico de seres humanos, já antes vulneráveis. Em se

lembrando que as mulheres constituem a maioria dos traficados, notadamente para

exploração sexual, e também no âmbito de casamentos forçados, há que se

considerar os riscos crescentes de violação de seus direitos humanos, como o direito

ao trabalho e, em última instância, o direito basilar à própria vida. Nosso artigo

propõe-se a discutir aspectos dessa questão: de como a pandemia de coronavírus

mostra-se particularmente prejudicial à fruição dos direitos humanos femininos no

que concerne às mulheres vítimas do tráfico de pessoas. Com o auxílio da teoria da

interdependência complexa, defendemos a hipótese de que para a fruição de

direitos humanos - e particularmente direitos femininos -, as instituições

internacionais, como a ONU, e a cooperação internacional, constituem fator

estruturante. Se a pandemia fecha as fronteiras e, de igual modo, fecha as portas

atrás das quais essas mulheres têm seus direitos violados, a cooperação

internacional resta prejudicada, mas não impossível. Há que se viabilizar esforço

especial dos Estados e das sociedades em abraçar as medidas de combate a o tráfico

e de proteção às vítimas.

OBJETIVOS

Temos por objetivo discutir, a partir de autores como Catherine Z. Worsnop,

como a conjuntura de pandemia pode favorecer as atividades dos traficantes de

pessoas e tornar ainda mais difícil a proteção de direitos humanos femininos.

Ademais, buscaremos identificar e analisar as possíveis formas de os Estados

271
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

implementarem a cooperação internacional no âmbito da ONU, especialmente no

que tange ao UNODC.

REFERENCIAL TEÓRICO

Faremos nossa análise sob a perspectiva das Relações Internacionais,

especificamente da teoria da interdependência complexa, a qual sublinha a

relevância dos direitos humanos para o pleno funcionamento da sociedade

internacional e que tem nas instituições e na cooperação internacionais elementos

fundamentais para esse funcionamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao provocar o fechamento das fronteiras e contribuir, no âmbito do

isolamento social, para a invisibilidade das vítimas do tráfico humano, a pandemia

de COVID-19 mostra-se particularmente perigosa para essas vítimas, porquanto,

entre outras coisas, limita seu acesso a serviços essenciais. A pandemia tem

demonstrado que efeitos financeiros e sociais dos bloqueios recaem em maior

proporção sobre populações de baixa renda, nas quais se inserem as vítimas do

tráfico. Nesse sentido, justifica-se discutir os efeitos da pandemia sobre a plena

fruição dos direitos humanos das mulheres, as quais configuram a maioria das

vítimas do tráfico humano.

272
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O DIREITO FUNDAMENTAL À PRIVACIDADE: UMA ANÁLISE

DO COMPARTILHAMENTO DE DADOS PESSOAIS EM TEMPOS

DE PANDEMIA

Mariana Boechat da Costa52

RESUMO
O presente estudo tem a finalidade de avaliar a possibilidade do compartilhamento de
dados pessoais como instrumento de combate à Covid-19. Quanto à justificativa, esta
decorre do fato de os dados coletados serem capazes de contribuir com a eficácia do
isolamento social ao apontar os locais de aglomeração entre pessoas infectadas. Sob esse
viés, será realizada uma pesquisa qualitativa, por meio do método investigativo analítico-
descritivo, para a observação de normas, doutrinas, jurisprudências e documentos escritos.
O primeiro tópico abordará o conceito, as características e a classificação doutrinária dos
direitos fundamentais no ordenamento jurídico. Em seguida será analisada a colisão entre
os direitos fundamentais à privacidade e à saúde pública. Para tanto, será levado em
consideração o implemento do Sistema de Monitoramento Inteligente no Estado de São
Paulo, o qual foi alvo de um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça. Por
conseguinte, com base na decisão do Supremo Tribunal Federal, será demonstrada a
influência da Lei Geral de Proteção de Dados – antes de sua vigência – no sistema
constitucional brasileiro. Por fim, conclui-se que, o uso de dados pessoais deve ser
considerado um instrumento de controle da Covid-19, desde que as informações coletadas
estejam em conformidade com as garantias de tratamento adequado e seguro de proteção
de dados.

Palavras-chave: direitos fundamentais; direito à privacidade; saúde pública; dados


pessoais; pandemia.

ABSTRACT
This study aims to evaluate the possibility of sharing personal data as an instrument to
combat Covid-19. As for the justification, this arises from the fact that the data collected are
able to contribute to the effectiveness of social isolation by pointing out the places of
agglomeration among infected people. Under this bias, a qualitative research will be carried
out, through the analytical-descriptive investigative method, for the observation of norms,

52
Mestranda em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Universidade Candido Mendes, unidade
Centro/RJ. E-mail: maryboechatdacosta@gmail.com. Currículo lattes:
https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=4CA78712F748690965BC0F19317F1D5C.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

doctrines, jurisprudence and written documents. The first topic will address the concept,
characteristics and doctrinal classification of fundamental rights in the legal system. Then
the collision between the fundamental rights to privacy and public health will be analyzed.
For this purpose, the implementation of the Intelligent Monitoring System in the State of
São Paulo will be taken into account, which was the target of a habeas corpus at the Superior
Court of Justice. Therefore, based on the decision of the Supreme Federal Court, the
influence of the General Data Protection Law will be demonstrated - before its effectiveness
– in the Brazilian constitutional system. Finally, it is concluded that the use of personal data
must be considered an instrument of control of Covid-19, provided that the information
collected is in compliance with the guarantees of adequate and safe data protection
treatment.

Keywords: fundamental rights; privacy right; public health; personal data; pandemic.

INTRODUÇÃO

A pandemia da Covid-19 causada pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2) é

considerada, atualmente, um dos maiores desafios sanitários em escala global. No

Brasil, segundo dados do Governo Federal, a taxa de letalidade é de 3,0% dos casos

confirmados. A grande preocupação decorre da elevada velocidade em que o vírus

se propaga, atingindo, no momento, cerca de 29 milhões de infectados ao redor do

mundo e 921 mil mortos.

A peculiaridade do Coronavírus de 2019 se dá pela ausência de um padrão

reconhecível pela medicina, o que dificulta o tratamento de pacientes e ocasiona

vastas incertezas médico-científicas no período de tratamento. Devido ao alto

impacto da Covid-19, os sistemas de saúde alertaram para o risco de colapso, uma

vez que não possuem estrutura suficiente para suportar uma demanda em alta

escala.

Em razão disso, seguindo as orientações da OMS, o Brasil decretou medidas

de contenção da doença, como a restrição de locomoção e o fechamento do comércio

275
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e de serviços. A principal forma de conter a proliferação do vírus está baseada na

prevenção. Desse modo, com a autorização da União, os governos dos Estados e

Municípios receberam autonomia para dispor acerca das medidas de seguranças

regionais, de acordo com a peculiaridade de cada local, levando sempre em

consideração o número de casos confirmados.

Nesse contexto, a pesquisa proposta tem como objetivo avaliar a

possibilidade do compartilhamento de dados pessoais como instrumento de

combate à Covid-19. Nesse sentido será analisado o princípio da proporcionalidade

e seus desdobramentos, além de decisões, recentes, dos Tribunais Superiores.

Identifica-se como situação problema a possível violação ao direito fundamental à

privacidade. Nesse viés, a hipótese de resposta se baseia na premissa de que o uso

de dados pessoais coletados deve estar em conformidade com as garantias de

tratamento adequado e seguro de proteção de dados.

A justificativa do presente trabalho é a melhor compreensão dos contornos

da proteção de dados pessoais em um cenário pandêmico, rumo à eficácia das

medidas de isolamento social para conter os efeitos da Covid-19. Ao passo que os

dados coletados podem contribuir com a eficácia do distanciamento social,

apontando locais de aglomeração entre pessoas infectadas.

Em relação aos aspectos metodológicos, será realizada uma pesquisa

qualitativa, por meio do método investigativo analítico-descritivo, para a

observação de normas, doutrinas e documentos escritos. Serão obtidas fontes

primárias e secundárias por meio de arquivos públicos, particulares, programas

investigativos, entre outros, os quais serão analisados e interpretados com vista à

elaboração de um estudo descritivo.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

O termo direitos fundamentais surgiu na França durante o movimento

político e cultural que resultou na Declaração Universal dos Direitos do Homem e

do Cidadão de 1789. Seu principal objetivo consiste na proteção e promoção da

dignidade da pessoa humana, abrangendo direitos relacionados à liberdade e à

igualdade. Sendo assim, “os direitos fundamentais são os direitos humanos

consagrados e positivados na Constituição de cada país (plano interno), podendo o

seu conteúdo e conformação variar de acordo com cada Estado”. (NOVELINO,

2020, p. 309)

No que se refere à classificação doutrinária, a mais adotada no Brasil é a

concepção trialista, a qual divide os direitos fundamentais em três grupos: direitos

de defesa – relacionados às liberdades negativas e aos direitos políticos; direitos

prestacionais – ligados às liberdades positivas; e os direitos de participação – que

garantem aos indivíduos a possibilidade de fazer parte da formação da vontade

política da comunidade. Esta perspectiva tem como fundamento a “teoria dos

status” defendida por Georg Jellinek.

Os direitos fundamentais apresentam características próprias e particulares

que os diferenciam dos demais direitos. Nessa senda, destaca-se a universalidade

como a existência de um núcleo mínimo de proteção à dignidade presente em

qualquer sociedade, mesmo que os aspectos culturais sejam distintos. De igual

modo, a historicidade também é uma característica dos direitos fundamentais, uma

vez que estes surgem e se desenvolvem de acordo com o momento histórico,

podendo, inclusive, ter o seu conteúdo e sentido alterados.

No tocante ao conteúdo patrimonial, os direitos fundamentais são

inegociáveis, intransferíveis e indisponíveis, ou seja, estamos diante da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

característica da inalienabilidade. Igualmente, não se torna possível a ocorrência da

prescrição (imprescritibilidade). Nessa linha, outro relevante aspecto diz respeito à

irrenunciabilidade, em que não se admite a renúncia ao núcleo substancial de um

direito fundamental. No entanto, a limitação voluntária é permitida desde que se

faça uma análise da validade da finalidade do ato de renúncia, assim, deve-se

analisar o direito fundamental concreto a ser preservado e a posição jurídica do

titular – livre e autodeterminada.

Além disso, outro ponto importante, refere-se à relatividade ou

limitabilidade dos direitos fundamentais, uma vez que estes não podem ser

considerados absolutos. Todos os direitos são passíveis de restrições impostas por

interesses coletivos ou por outros direitos positivados na Constituição Federal.

As dimensões dos direitos fundamentais foram inspiradas pelo lema

revolucionário do século XVIII – liberdade, igualdade e fraternidade. A primeira

dimensão dos supracitados direitos está ligada ao valor liberdade, consagrando os

direitos civis e políticos. Já a segunda dimensão, relaciona-se à igualdade material,

alcançando os direitos sociais, econômicos e culturais. Os direitos de terceira

dimensão estão ligados aos valores da fraternidade ou da solidariedade, incluindo-

se nesse rol o direito ao desenvolvimento do meio ambiente, à autodeterminação

dos povos e o direito de comunicação. Por sua vez, os direitos de quarta dimensão

estão relacionados à democracia, à informação e ao pluralismo. Por fim, os direitos

de quinta dimensão trazem a paz como direito supremo da humanidade.

No direito pátrio, os direitos fundamentais foram positivados pela primeira

vez na Constituição de 1824, porém foram se modificando ao longo da história de

acordo com o interesse e as necessidades do homem. A constituição Federal de 1988

(CF/88) foi promulgada em um período de redemocratização, tendo como principal

objetivo garantir os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Nesse

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sentido, o art. 5º, caput, dispõe que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção

de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no

País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade”.

Vislumbra-se, assim, que a Constituição se torna fundamental à

organização da sociedade, referindo-se não apenas ao Estado, mas também a

própria comunidade política. Ela possui a finalidade de preservar as conquistas

incorporadas ao patrimônio da humanidade e concretizar bens e valores ainda não

alcançados. Nesse sentido, constata-se que a Carta Magna de 1988 é considerada

um grande avanço normativo em relação as demais, uma vez que proporcionou aos

cidadãos maiores garantias e direitos.

A Constituição, portanto, cria ou reconstrói o Estado, organizando


e limitando o poder político, dispondo acerca de Direitos
Fundamentais, valores e fins públicos e disciplinando o modo de
produção e os limites de conteúdo das normas que integrarão a
ordem jurídica por ela instituída. Como regra geral, terá a forma de
um documento escrito e sistemático, cabendo-lhe o papel, decisivo
no mundo moderno, de transportar o fenômeno político para o
mundo jurídico, convertendo o poder em Direito. (BARROSO, 2011,
p. 98)

Dentre o rol dos direitos fundamentais um dos mais importantes é o

referente à liberdade. O homem nasce livre e com o passar do tempo evolui de um

estado de liberdade natural para o de uma liberdade convencional, oriundo de um

pacto social. A liberdade não se origina apenas da natureza, mas também resulta de

um contrato social. Nesse sentido, “cada um de nós põe em comum sua pessoa e

todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral e recebemos, enquanto

corpo, cada membro, como parte indivisível do todo”. (ROUSSEAU, 1983, p. 39).

279
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O conceito de liberdade, incialmente, era limitado à ideia de liberdade

pessoal. Com o decorrer dos tempos uma nova dimensão foi inserida, abrangendo

um novo rol de liberdades públicas, como a liberdade de pensamentos, de

consciência e crença. A liberdade é compreendida como a faculdade que o homem

tem para fazer ou deixar de fazer tudo aquilo que não prejudique outrem.

O direito à privacidade – tema central da referida pesquisa – previsto no

art. 5º, inciso X, da CF/88 tem o condão de resguardar à privacidade, facultando ao

indivíduo conduzir a sua própria vida, sem a intromissão de terceiros. Sendo assim,

a Carta Magna assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra

e da imagem.

No tocante ao direito à igualdade, entende-se que este consiste em

assegurar aos indivíduos em situações iguais um tratamento isonômico, ou seja, os

mesmos direitos, prerrogativas e vantagens. Sendo assim, “a regra da igualdade não

consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se

desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é

que se acha a verdadeira lei da igualdade.” (BARBOSA, 1999, p.8). Para assegurar a

correta aplicação do princípio da igualdade, o que se visa concretizar é “a justiça,

não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições

socialmente desiguais”. (SILVA, 2007, p. 126)

De acordo com a doutrina liberal clássica, os direitos fundamentais

apresentam limitações ao exercício do poder estatal, reduzindo-se ao âmbito das

relações entre o particular e o Estado. Esta relação jurídica hierarquizada é

denominada pela expressão “eficácia vertical” dos direitos fundamentais. No

entanto, a incidência desses direitos foi estendida para o âmbito das relações

privadas, uma vez que a opressão e a violência contra os indivíduos não são

provenientes apenas do poder estatal, mas também de múltiplos atores privados.

280
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Sendo assim, denomina-se “eficácia horizontal” a projeção dos direitos

fundamentais entre particulares.

Sem direitos do homem reconhecidos e efetivamente protegidos


não existe democracia, sem democracia não existem as condições
mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os
indivíduos, entre grupos e entre as grandes coletividades
tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticos que são
os Estados. (BOBBIO, 2004, p. 15).

A preservação dos direitos fundamentais do cidadão deriva de um modelo

jurídico-constitucional destinado a proteger-lhes de qualquer violação. Este

modelo, constitui-se de um aparato essencial para que se estabeleça a convivência

pacífica entre as partes. Pode-se dizer que as garantias fundamentais estão previstas

na própria essência de um Estado político organizado, o qual se utiliza de todos os

mecanismos possíveis para salvaguardá-los.

2. A COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À PRIVACIDADE

E À SAÚDE PÚBLICA

Segundo Robert Alexy, os direitos fundamentais são considerados

mandamentos de otimização e consagram um direito provisório restringível por

outras normas em sentido oposto. Nesse viés, a determinação do direito positivo

apenas se torna possível à luz das circunstancias fáticas do caso concreto seguida

da ponderação entre princípios colidentes, sendo necessária a aplicação das regras

do postulado da proporcionalidade.

Nessa linha, um ponto importante a ser destacado afirma que os direitos

fundamentais só podem ser restringidos em caráter geral por meio de normas

281
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

elaboradas por órgãos dotados de atribuição legiferante conferida pela constituição.

Esta restrição deve estar expressa ou implicitamente autorizada (reserva legal),

sendo considerada uma espécie de proteção contra a adoção de medidas restritivas

dos direitos fundamentais pela administração pública, sem que exista um

fundamento legal ou constitucional.

Cumpre ressaltar, a observância do princípio da proteção do núcleo

essencial. Por este requisito, entende-se que existe um conteúdo essencial dos

direitos e garantias fundamentais que não pode ser violado, nem mesmo nos casos

em que o legislador estiver constitucionalmente autorizado a editar normas

restritivas.

Ademais, deve-se respeitar o princípio da não retroatividade, uma vez que

as situações definitivamente consolidadas devem ser resguardadas, para preservar

a segurança jurídica dos cidadãos. Sendo assim, “uma lei nova que estabeleça

restrições a direitos fundamentais não poderá alcançar fatos consumados no

passado (retroatividade máxima), prestações vencidas e não pagas (retroatividade

média) e, nem mesmo, efeitos futuros de fatos passados (retroatividade mínima)”.

(NOVELINO, 2020, p. 333)

Desse modo, conforme o postulado da proporcionalidade, exige-se que a

restrição imposta a um determinado direito fundamental seja adequada, necessária

e proporcional em sentido estrito. Ou seja, os meios utilizados e os fins perseguidos

pelo legislador dependem da adequação das medidas adotadas de modo preciso e

juridicamente permitidos; da necessidade de sua utilidade; e da satisfação das

vantagens do fim em detrimento às desvantagens do meio, realizadas por um juízo

de ponderação – proporcionalidade em sentido estrito.

282
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(...) o princípio da proporcionalidade não é útil apenas para


verificar a validade material de atos do Poder Legislativo ou do
Poder Executivo que limitem direitos fundamentais, mas também
para, reflexivamente, verificar a própria legitimidade da decisão
judicial, servindo, nesse ponto, como verdadeiro limite da atividade
jurisdicional. O juiz, ao concretizar um direito fundamental,
também deve estar ciente de que sua ordem deve ser adequada,
necessária (não excessiva e suficiente) e proporcional em sentido
estrito. (MARMELSTEIN, 2008, p. 385)

Dando seguimento à discussão e tratando, especificamente, da colisão entre

direitos fundamentais à privacidade e à saúde pública oriunda do

compartilhamento de dados pessoais no período de pandemia, cabe analisar qual

direito deve preponderar no referido caso. Sendo assim, iremos abordar os limites

de cada direito à luz do princípio da proporcionalidade, observando os

desdobramentos e implicações de cada restrição no cenário atual.

Nesse sentido, a colisão entre direitos fundamentais ocorre quando o

comportamento do mesmo titular se enquadra no âmbito de proteção de mais de

um direito fundamental. Destarte, utiliza-se a técnica de ponderação para verificar

os limites de cada direito e determinar qual deles deve preponderar no caso

concreto.

A ponderação é uma técnica de decisão empregada para solucionar


conflitos normativos que envolvam valores ou opções políticas, em
relação aos quais as técnicas tradicionais de hermenêutica não se
mostram suficientes. É justamente o que ocorre com a colisão de
normas constitucionais, pois, nesse caso, não se pode adotar nem o
critério hierárquico, nem o cronológico, nem a especialidade para
resolver uma antinomia de valores. (MARMELSTEIN, 2008, p. 386)

283
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Para melhor compreendermos o tema em análise, faz-se mister definirmos

a abrangência do direito à privacidade, o qual emana diretamente do princípio da

dignidade da pessoa humana. Com o fim precípuo de proteger a privacidade, a

Constituição Federal assegura a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da

honra e da imagem. Nesse sentido, o art. 5º, inciso X, dispõe que “São invioláveis a

intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito

a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

A intimidade refere-se ao modo de ser de cada indivíduo, ou seja, ao mundo

intrapsíquico aliado aos sentimentos de sua identidade (autoestima, autoconfiança),

além da sexualidade. Os segredos e as informações confidenciais são protegidos. Já

a vida privada consiste nas relações do indivíduo com o meio social, em que não

houver interesse público na divulgação. Por sua vez, a honra abrange a reputação

do indivíduo perante o meio social e na estimação que possui de si mesmo.

(NOVELINO, 2020, p. 381)

No tocante ao enquadramento constitucional dos sigilos bancário, fiscal,

telefônico e informático há divergências se estes sigilos estariam abrangidos pelo

direito à privacidade (CF, art. 5º, X) ou pela inviolabilidade de dados (CF, art. 5º,

XII). Entende-se que a proteção ao sigilo de dados está voltada essencialmente à

liberdade das comunicações pessoais, havendo, assim, um duplo enquadramento.

Ou seja, a comunicação dos dados (interceptação) está inserida no âmbito de

proteção da liberdade de comunicação pessoal; enquanto que o conteúdo dos

dados, quando atrelado à vida privada ou à intimidade, está abrangido no âmbito

de proteção do direito à privacidade.

284
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Cabe mencionar que a Lei n. 13.709/201853 – Lei Geral de Proteção de Dados

Pessoais (LGPD), conforme será abordada posteriormente, possui o escopo de

garantir direitos ao cidadão sobre os seus dados pessoais e determinar o modo de

tratamento desses dados pelas entidades públicas e iniciativas privadas. Ou seja, a

LGPD é considerada uma nova forma de proteção à privacidade. Destacam-se,

assim, os seus fundamentos:

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como


fundamentos:
I - o respeito à privacidade;
II - a autodeterminação informativa;
III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de
opinião;
IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;
V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;
VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor;
e
VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da
personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas
naturais. (grifos nossos)

De outro modo, o direito fundamental à saúde tem previsão expressa no

art. 196 da Constituição, ao dispor que “A saúde é direito de todos e dever do

Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do

risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e

serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Sendo assim, é classificado

como um direito social de segunda dimensão, tendo como destinatário final toda a

coletividade, ou seja, é um direito difuso.

53
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 15
jun. 2020.

285
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os direitos fundamentais da segunda geração “são os direitos


sociais, culturais, e econômicos, bem como os direitos coletivos ou
de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas
formas de Estado social […]”. E, estão intrinsecamente ligados aos
direitos prestacionais sociais do Estado perante o indivíduo, bem
como assistência social, educação, saúde, cultura, trabalho,
passando estes direitos a exercer uma liberdade social.
(BONAVIDES, 2000, p. 528) (grifos nossos)

O alto grau de importância do direito à saúde deriva da sua íntima relação

com o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que aquele se torna

essencial para a efetivação de outros direitos. Embora os direitos fundamentais

sejam autoaplicáveis, para que o direito à saúde tenha efetividade torna-se

necessário sua implementação por intermédio de políticas públicas. “O direito a

saúde é o principal direito fundamental social encontrado na Lei Maior brasileira,

diretamente ligado ao princípio maior que rege todo o ordenamento jurídico pátrio:

o princípio da dignidade da pessoa humana – razão pela qual tal direito merece

tratamento especial”. (CURY, 2005, p. 17)

No mês de abril, com o intuito de conter os efeitos negativos da pandemia

da Covid-19, o governo do Estado de São Paulo firmou com as telefonias móveis

uma parceria público-privada para implementação de um Sistema de

Monitoramento Inteligente (SIMI). O SIMI consiste no fornecimento de dados de

localização dos celulares dos usuários para observação do deslocamento de pessoas,

possibilitando, assim, o envio de alertas em locais com alto índice de aglomeração.

Ocorre que tal medida foi alvo de uma ação popular no Tribunal do Estado

de São Paulo (TJ/SP) e de um Habeas Corpus (HC) no Superior Tribunal de Justiça

(STJ). Em ambos os casos foram questionadas a falta de transparência, uma vez que

os termos da medida não foram publicados no Diário Oficial (DO), além disso não

houve anuência prévia e expressa dos usuários no compartilhamento dos dados.

286
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Dessa forma, os direitos fundamentais à privacidade e à inviolabilidade de dados

telefônicos foram questionados. Nesse sentido:

HABEAS CORPUS COLETIVO, EM QUE SE INDICA COMO


COMO IMPETRADO O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO
PAULO E COMO PACIENTES OS MORADORES DA REFERIDA
UNIDADE DA FEDERAÇÃO. PRETENDIDA SUSPENSÃO DO
SISTEMA DE MONITORAMENTO INTELIGENTE (SIMI-SP),
IMPLEMENTADO EM PARCERIA DO GOVERNO LOCAL COM
OPERADORAS DE TELEFONIA CELULAR, PARA
MONITORAÇÃO, POR VIA DE GEORREFERENCIAMENTO, DA
TAXA DE ISOLAMENTO SOCIAL NO ESTADO. NÃO
INDICAÇÃO DE RESTRIÇÃO OBJETIVA AO JUS AMBULANDI.
REMÉDIO HERÓICO: VIA PROCESSUAL DESTINADA A
TUTELAR APENAS IMEDIATO CONSTRANGIMENTO ILEGAL
AO DIREITO DE LIBERDADE. IMPOSSIBILIDADE DE MANEJO
DE WRIT COLETIVO EM QUE A PARTE IMPETRANTE NÃO
DEMONSTRA A POSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DOS
ALEGADAMENTE ATINGIDOS. INVIABILIDADE, AINDA, DE
IMPETRAÇÃO DE MANDAMUS CONTRA ATO EM TESE.
IMPROPRIEDADE ABSOLUTA. PETIÇÃO INICIAL
INDEFERIDA LIMINARMENTE.
(STJ - HABEAS CORPUS: HC Nº 572.996 – SP: 2020/0086190-9.
Relatora Min. Laurita Vaz. Data da publicação:16/04/2020) (grifos
nossos)

Conforme mencionado pela ministra Laurita Vaz, em sua decisão

monocrática, o habeas corpus não é o instrumento adequado para se discutir o caso

em comento, pois a violação ao direito de locomoção deve ser iminente e concreta,

e não hipotética. Além disso, a relatora enfatizou que tanto o governo estadual

quanto as operadoras de celular afirmaram que o sistema não permite a

individualização dos dados dos usuários, não sendo possível identificar as pessoas

potencialmente atingidas. Cabe registrar que após a publicação da supracitada

287
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

decisão, o governador do Estado de São Paulo, João Doria, no dia 5 de maio,

promulgou o Decreto n. 64.963, de 2020 54 , dando transparência aos termos das

medidas instituidoras do SIMI.55

Ademais, cabe mencionar que o compartilhamento de dados pessoais será

válido apenas enquanto perdurar o período de pandemia – isto é, trata-se de uma

medida excepcional para o controle de um fato atípico e desconhecido. No caso em

tela, o compartilhamento de dados é considerado uma medida adequada,

necessária e proporcional em sentido estrito, pois os dados coletados são agregados,

ou seja, não são passíveis de individualização. Além disso, a medida tem o objetivo

de evitar aglomerações e com isso conter a propagação do vírus. Sendo assim, no

referido caso, mediante um juízo de ponderação, o direito fundamental à saúde

deve preponderar em detrimento ao direito fundamental à privacidade.

3. A INFLUÊNCIA DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS

NO PERÍODO DE PANDEMIA

As formas de relacionamentos interpessoais, seja na esfera privada ou

pública, sofreram uma série de transformações com o advento da evolução das

tecnologias nos campos da informação e da comunicação – sobretudo à internet.

Desse modo, as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) são

compreendidas como mecanismos de valor ao estabelecer conexões entre a

sociedade civil e o Estado. Entretanto, quando utilizadas de forma incorreta podem

infringir direitos constitucionais sensíveis. Nesse viés, consagra-se uma sociedade

54
Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/2020/decreto-64963-
05.05.2020.html#:~:text=Decreta%3A,entidades%20da%20Administra%C3%A7%C3%A3o%20P%C3%BAblica
%20estadual. Acesso em: 02 set. 2020.
55
Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/planosp/simi/. Acesso em: 5 set. 2020.

288
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de informação, composta por um modelo de desenvolvimento sociopolítico cujo fim

é a satisfação plena dos cidadãos e a propagação do conhecimento.

Nessa senda, a informação torna-se a base da vida e das relações humanas

e sociais. Entende-se que uma sociedade capaz de fomentar uma comunicação de

forma livre e descentralizada, de igual modo, irá proporcionar a difusão da

informação. As tecnologias digitais aumentaram consideravelmente o acesso à

informação e às formas de comunicação, ocasionando mudanças no modo de ser de

cada sociedade. Consequentemente, a legislação deve acompanhar essa evolução,

modificando antigos parâmetros para estabelecer novos meios de proteção que

antes eram desnecessários.

Na sociedade informacional, o acesso às informações por intermédio da

internet possibilitou uma ampliação na troca de dados entre pessoas e organizações.

Entretanto, esse avanço se tornou, na maioria das vezes, o responsável pela violação

da vida privada de usuários em busca de dados pessoais. Nesse sentido, a internet

pode ser considerada um instrumento de ameaça à privacidade dos indivíduos,

visto que simplifica a troca de informações entre os prestadores de serviços e facilita

o monitoramento das condutas virtuais na rede. Sendo assim, fez-se necessário a

proteção de dados pessoais nos ordenamentos jurídicos.

A necessidade de proteção do indivíduo contra o risco de divulgação de

seus dados pessoais se baseia na possibilidade de comercialização destes sem a

devida autorização. Nesse viés, como mecanismo de proteção, destaca-se a Carta de

Direitos Fundamentais da Comunidade Europeia que reconhece a proteção de

dados como direito fundamental. No que se refere à tutela dos dados pessoais, seu

surgimento ocorreu no ano de 1970. A lei do Land Alemão de Hesse, de 1970; a lei

nacional de proteção de dados na Suécia: o Estatuto para bancos de dados de 1973

– Datalaf 289; e o Privacy Act norte-americano, de 1974. Na década de 1990, a União

289
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Europeia aprovou a diretiva 95/46/CE referente à proteção dos dados das pessoas

singulares e sobre a sua livre circulação.

Ultrapassado o resgate histórico, percebe-se que o Brasil demorou a

apresentar, juridicamente, uma legislação de proteção de dados. Apenas em agosto

de 2018 foi publicada a Lei n. 13.709 – referente à proteção de dados pessoais

(LGPD). Ocorre que o mencionado diploma previu um prazo de 24 meses de vacatio

legis após a data de sua publicação. Porém o Senado Federal, no dia 3 de abril,

aprovou o adiamento da entrada em vigor da LGPD para o ano de 2021. Logo em

seguida, foi editada a Medida Provisória (MP) n. 959 de 202056 que previa a vigência

da LGPD para o dia 3 de maio de 2021. Entretanto, contrariando seu posicionamento

anterior, o Senado Federal não converteu o dispositivo referente à prorrogação da

vacatio legis e encaminhou o projeto de lei de conversão para o chefe do Executivo

Federal. Assim, a LGPD entra em vigência imediata após a sanção ou veto do

Presidente da República.

No tocante aos objetivos, a LGPD irá regulamentar qualquer atividade que

envolva a utilização de dados pessoais, inclusive, nos meios digitais, por pessoa

natural ou jurídica, tanto em território nacional ou em países onde estejam

localizados os dados. Ou seja, a lei tem por fim garantir direitos aos usuários e

facilitar a fiscalização contra abusos na utilização dos dados. Ademais, os dados

pessoais devem ser analisados em conformidade com os princípios da finalidade,

transparência, segurança e responsabilidade.

Corroborando desse entendimento, o Plenário do Supremo Tribunal

Federal (STF) suspendeu a eficácia da Medida Provisória n. 954, de 202057, que prevê

56
Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/141753.
Acesso em: 05 set. 2020.
57
Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/medida-provisoria-n-954-de-17-de-abril-de-2020-
253004955. Acesso em 09 jul. 2020.

290
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a produção de estatística oficial

durante a pandemia da Covid-19. Entre os argumentos expostos, destaca-se a

violação do direito constitucional à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados. 58

Nesse sentido:

Segundo argui, a MP n. 954/2020 não evidencia a importância superlativa


da pesquisa estatística que embasa a solicitação de compartilhamento dos
dados, tampouco explicita a forma como esta pesquisa contribuirá na
formulação das políticas públicas de enfrentamento da crise sanitária,
uma vez não informados os tipos de pesquisas a serem realizadas. Noutro
espectro, destaca não esclarecido o motivo para o compartilhamento de
dados, já informado pelo IBGE o adiamento do Censo Demográfico para
o ano de 2021.
5. Busca seja assentada a inconstitucionalidade material da MP n.
954/2020. Para tanto, assevera a necessidade de tutela do direito
fundamental à proteção de dados pessoais, a teor do art. 5º, XII, da CF,
que assegura a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das
comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas,
ressalvada a relativização, nessa última hipótese, mediante ordem judicial
e para fins de persecução penal. Argumenta com o direito fundamental à
inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem
das pessoas (art. 5º, X, CF), como fundamento do indivíduo para
determinar e controlar, frente ao Estado, a utilização dos seus dados.
Seguindo essa linha discursiva, aponta para a existência, no desenho
constitucional brasileiro, de um direito fundamental à proteção de dados,
na concepção de um direito à autodeterminação informativa, em que
fundamenta, inclusive, a edição da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei
n. 13.709/2018). Ainda nessa perspectiva e para ilustrar, invoca a decisão
do Tribunal Constitucional Federal Alemão que reconheceu, em 1983,
forte no direito geral da personalidade, o direito fundamental à
autodeterminação sobre dados pessoais, diante de intervenções estatais.

58
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442823&ori=1. Acesso
em: 03 set. 2020.

291
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(STF – MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE


INCONSTITUCIONALIDADE 6.387 DISTRITO FEDERAL. Relatora:
Min. Rosa Weber. Data da publicação: 24/04/2020) (grifos nossos)

Conforme mencionado na decisão selecionada, a MP não delimita o objeto

da estatística a ser produzida, a finalidade específica e a sua amplitude. De igual

modo, não informa como os dados fornecidos serão efetivamente utilizados no

combate à pandemia e nem a sua necessidade, uma vez que não foram informados

os tipos de pesquisas a serem realizadas. A MP não delimita o campo de proteção

na operação de processamento de dados, pois não são apresentados mecanismos

técnicos ou administrativos capazes de evitar que os dados pessoais possam ser

utilizados de forma indevida. Denota-se, assim, que os mandamentos

constitucionais de proteção aos direitos fundamentais não foram respeitados.

De forma histórica, no acórdão supracitado, o STF reconheceu o direito

fundamental autônomo à proteção de dados pessoais no Brasil. Entende-se, assim,

que a pandemia do novo coronavírus não pode ser considerada um pretexto para a

formação de um Estado de vigilância. Ou seja, qualquer compartilhamento de

dados pessoais deve estar em conformidade com os princípios da finalidade,

adequação, necessidade transparência, segurança, não discriminação e

responsabilidade.

Desse modo, constata-se a influência da LGPD – antes de sua vigência – no

sistema constitucional brasileiro, uma vez que a decisão do STF se refere,

especificamente, à Lei Geral de Proteção de Dados, tutelando o direito à

autodeterminação informativa 59 . O uso de dados pode ser considerado um

instrumento de combate à Covid-19, pois as informações colhidas contribuem com

59
Direito do indivíduo de controlar e proteger os próprios dados pessoais, levando em consideração a
tecnologia e o processamento de informação.

292
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a eficácia do isolamento social. Sendo assim, destaca-se a relevante função da LGPD

– isto é, estabelecer critérios seguros para o compartilhamento de dados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como se observou ao longo deste estudo, o direito fundamental à

privacidade e o compartilhamento de dados pessoais são temas sensíveis no atual

cenário pandêmico. A saúde pública e o sistema econômico-financeiro foram

diretamente impactados pela crise sanitária global. Desse modo, discutiu-se sobre a

possibilidade do uso de dados pessoais como instrumento de controle dos efeitos

da Covid-19.

Dentro deste contexto, analisou-se o julgamento de um habeas corpus (HC)

no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a implementação do Sistema de

Monitoramento Inteligente (SIMI) no Estado de São Paulo, onde se questionou a

falta de transparência e de anuência prévia dos usuários. O Tribunal indeferiu a

petição inicial, por entender que o HC não era o meio adequado, além disso

enfatizou que não houve a individualização dos dados coletados – ou seja, não

houve risco à privacidade dos usuários.

Além dos argumentos mencionados no acórdão, a referida pesquisa

abordou a colisão entre os direitos fundamentais à privacidade e à saúde pública.

Para tanto, fez-se necessária a análise do princípio da proporcionalidade e os seus

desdobramentos. Verificou-se, assim, que a implementação do SIMI foi uma

medida adequada; necessária; e proporcional em sentido estrito – mediante um

juízo de ponderação. Destacou-se, que a medida tem o objetivo de evitar

aglomerações e com isso conter a propagação do vírus. Neste caso, o interesse

público preponderou sobre o privado.

293
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Em seguida, foi interpretada uma decisão do Supremo Tribunal Federal

(STF) que declarou a inconstitucionalidade da Medida Provisória n. 954, de 2020,

que autorizou o compartilhamento de dados pessoais pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE). Entre os argumentos expostos, destacou-se a violação

do direito constitucional à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados. O IBGE

não especificou como os dados dos usuários seriam efetivamente utilizados no

combate à pandemia, além disso não delimitou o campo de proteção na operação

de processamento de dados.

De forma emblemática, no acórdão supracitado, o STF reconheceu o direito

fundamental autônomo à proteção de dados pessoais no Brasil. Entendeu-se, assim,

que a pandemia do novo coronavírus não poderia ser considerada um pretexto para

a formação de um Estado de vigilância. O compartilhamento de dados pessoais

deve estar em conformidade com os princípios da finalidade, adequação,

necessidade transparência, segurança, não discriminação e responsabilidade.

Desse modo, verificou-se, os reflexos da Lei Geral de Proteção de Dados

Pessoais (LGPD) – antes de sua vigência – no sistema constitucional brasileiro.

Conforme analisado, o conteúdo da LGPD influenciou diretamente as decisões dos

Tribunais. Os dados coletados podem contribuir com a eficácia do isolamento

social, apontando locais de aglomeração entre pessoas infectadas. Sendo assim, o

uso de dados pessoais deve ser considerado um instrumento de combate à Covid-

19, desde que as informações colhidas estejam em conformidade com as garantias

de tratamento adequado e seguro de proteção de dados.

294
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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A LUTA COLETIVA DOS ENTREGADORES LATINO-

AMERICANOS CONTRA A PANDEMIA DO CAPITALISMO:

MOVIMENTOS GREVISTAS EM TEMPOS DE COVID-19

Ana Beatriz Bueno de Jesus 60


Bruna da Penha de Mendonça Coelho61
Maria Eugênia Pinheiro Sena da Silva62

RESUMO
O objetivo do artigo consiste em compreender os contornos da repercussão dos
movimentos grevistas dos trabalhadores por plataformas digitais de entrega durante a
pandemia de Covid-19, com foco para as greves internacionais no âmbito da América
Latina e para as paralisações realizadas no Brasil. A escolha do tema se justifica por sua
atualidade e relevância, uma vez que lida com questões sociais pulsantes. Quanto aos
métodos de pesquisa, conjugam-se a revisão bibliográfica e a pesquisa empírica documental
(a partir das bases materiais atinentes à convocação dos movimentos por parte dos
trabalhadores e à propagação desses atos por veículos de informação). Na introdução, são
expostas as delimitações metodológicas da análise, bem como o enfoque crítico que se
pretende conferir: isto é, busca-se situar os movimentos grevistas no contexto de
explicitação das contradições do modo de produção capitalista (com foco para o conflito
capital-trabalho). Por sua vez, o desenvolvimento é dividido em três eixos de análise: o
primeiro se destina ao mapeamento das três primeiras greves internacionais na América
Latina; o segundo se debruça sobre os movimentos realizados no Brasil; e o terceiro diz
respeito a uma abordagem crítica acerca do fenômeno da uberização. Na conclusão, retoma-
se a hipótese de pesquisa, que consiste na apreensão de que se encontra em curso uma
tendência de internacionalização da articulação coletiva dos entregadores por plataformas
digitais.

Palavras-chave: greve; uberização; entregadores; conflito capital-trabalho; Covid-19.

60
Mestranda em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário (PPGD/UERJ; bolsista CAPES). Pós-graduada em
Direito Processual e do Trabalho pela CBEPJUR. Graduada em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da
UFRJ. Integrante do grupo de pesquisa Trabalho no Século XXI (UFRJ). E-mail: anabeatrizbuenoadv@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4954660805246043.
61
Doutoranda em Teoria e Filosofia do Direito pelo PPGD/UERJ e em Sociologia pelo Instituto de Estudos
Sociais e Políticos (IESP/UERJ, bolsista CNPq). Mestra e graduada em Direito pela UERJ. Integrante do
Laboratório de Estudos Interdisciplinares Crítica e Capitalismo (LEICC/UERJ). E-mail:
brunapmcoelho@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1876206005014598.
62
Graduada em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. E-mail: mariaeugeniapsena@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5514554213595707.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
The objective of the article is to understand the repercussions of delivery workers’ strikes
during the Covid-19 pandemic, with a focus on international strikes in Latin America and
on the stoppages in Brazil. The choice of the theme is justified by its topicality and
relevance, since it deals with pulsating social issues. As for research methods, the
bibliographical review and empirical documentary research are combined (from the
material bases related to the summoning of movements by workers and the propagation of
these acts by means of information). In the introduction, the methodological delimitations
of the analysis are exposed, as well as the critical approach that is intended to be conferred:
that is, the article aims to understand the strikes in the context of deepening of the
contradictions of the capitalist mode of production (with a focus on the capital-labour
conflict). In turn, development is divided into three axes of analysis: the first axis intends
to map the first three international strikes in Latin America; the second one focuses on the
movements carried out in Brazil; and the third one concerns a critical approach about
uberisation. In conclusion, the research hypothesis is resumed, which consists in the
apprehension that a trend towards internationalisation of the collective articulation of
deliverers by digital platforms is underway.

Key-Words: strike; uberisation; deliverers; capital-labour conflict; Covid-19.

INTRODUÇÃO

A crise potencializada pela pandemia da Covid-19 não é nova nem

meramente sanitária. Trata-se do aprofundamento de uma crise social que abrange

as esferas de sociabilidade em sentido amplo: é também econômica, política,

ideológica, ambiental, jurídica e cultural. Afinal, todas essas relações se

interconectam e geram influxos recíprocos a partir da lógica social ditada pelo modo

de produção vigente. Note-se que, quando falamos em modo de produção, não

pretendemos qualquer tipo de análise mecanicista: pelo contrário, referimo-nos ao

capital enquanto uma relação social.

O regime de acumulação neoliberal, forma hegemônica através da qual se

reproduz o capitalismo hodiernamente, tem como uma de suas pautas a

desarticulação coletiva dos trabalhadores e a desregulamentação das relações

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

laborais. Essa agenda afeta, diretamente, as garantias sociais do trabalho (tidas, no

vocabulário jurídico, como direitos fundamentais de segunda geração) e tende a

agravar a irresponsabilização do capital pela força de trabalho por ele usurpada. A

pandemia sanitária, portanto, não cria essas contradições do conflito capital-

trabalho, apenas as explicita e as leva ao limite.

Colocados na linha de frente da engrenagem capitalista durante a

pandemia, expostos ao perigo da morte e despojados de qualquer garantia social,

os trabalhadores por plataformas digitais63 de entrega têm buscado se articular em

todo o mundo. Nesse sentido, o tema deste artigo diz respeito aos movimentos

grevistas dos trabalhadores de plataformas digitais durante a pandemia de Covid-

19, a partir de uma perspectiva crítica acerca da expansão do capitalismo. Apesar

de serem formalmente tidos por “autônomos”, ainda assim optamos pela palavra

greve, porque entendemos que, na materialidade das relações sociais, é a

mercantilização da força de trabalho para quem detém o controle do processo

laboral (no caso, para os proprietários da plataforma) que os caracteriza enquanto

classe trabalhadora.

Nessa linha, busca-se investigar o seguinte problema de pesquisa: de que

maneira esses trabalhadores têm reverberado a articulação da luta coletiva para

reivindicar direitos trabalhistas durante a pandemia? Como hipótese, tem-se a

concepção de que essa articulação, muito embora conte com dificuldades na

configuração de instituições de representação de tais trabalhadores enquanto

categoria profissional, tem se alastrado e produzido importantes movimentos

63
O termo “plataforma digital” é preferível em relação ao termo “aplicativo”, na medida em que, como
preceituado por Rodrigo Carelli: “Aplicativo é o nome dado ao programa instalado em aparelhos eletrônicos
para acesso à plataforma digital operada por uma empresa. Ora, hoje em dia todas as empresas têm um
aplicativo, obviamente não se confundindo com ele” (CARELLI, 2019).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

grevistas de resistência na América Latina, apontando para uma tendência de

internacionalização da organização coletiva.

A relevância e atualidade do tema se justificam na medida em que, em um

mundo globalizado, rodeado de novas tecnologias e com o desemprego crescendo

exponencialmente, plataformas de entrega como Loggi, Ifood, Rappi, Uber eats e Glovo

são apontadas, pela classe capitalista, como formas de facilitar o cotidiano e gerar

postos de trabalho. Essa falsa apreensão da realidade se sustenta por meio da

difusão do discurso de que haveria uma liberdade calcada na suposta ausência de

subordinação econômico-jurídica desses trabalhadores à plataforma e,

consequentemente, ao capital. Não obstante, suas condições de trabalho

demonstram, de forma palpável, a completa subordinação e a precarização

envolvidas nessa relação laboral.

Como recorte geográfico, selecionamos movimentos grevistas de

trabalhadores por plataformas digitais de entrega em países da América Latina, com

especial atenção para as três primeiras greves de âmbito internacional: 22 de abril

de 2020, 29 de maio de 2020 e 1º de julho de 2020. Quanto aos movimentos no Brasil,

a pesquisa enfoca, sobretudo, as manifestações de 20 de abril de 2020 em São Paulo,

convocadas pelo Sindimoto/SP, e as mobilizações relativas às greves do dia 1º e 25

de julho de 2020.

O recorte temporal da pesquisa diz respeito ao período compreendido entre

a decretação do estado de pandemia pela Organização Mundial da Saúde e a data

de elaboração do artigo (julho de 2020), sem que com isso se ignore o fato de que já

se verificavam movimentos de resistência de similar teor mesmo antes da

pandemia. Quanto aos métodos de pesquisa, adotamos a revisão bibliográfica

(sobretudo, a partir de obras do pensamento social trabalhista crítico), conjugada

com a pesquisa empírica documental (tendo em conta, em especial, as bases

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

materiais atinentes à convocação dos movimentos por parte dos trabalhadores e à

propagação desses atos por veículos de informação).

O objetivo do artigo consiste, portanto, em compreender os contornos da

repercussão dos movimentos grevistas dos trabalhadores por plataformas digitais

de entrega durante a pandemia de Covid-19. Assim, os dois primeiros tópicos do

desenvolvimento pretendem mapear os principais movimentos desses

trabalhadores, no período de abril a julho de 2020, com foco para a América Latina

e também, em um sentido mais específico, para o Brasil, buscando compreender

seus contornos e seus efeitos na articulação da luta coletiva. Por sua vez, o terceiro

e último item do desenvolvimento se debruça sobre o fenômeno da chamada

uberização, as tensões em torno da caracterização da subordinação jurídico-

trabalhista e os desafios para a organização coletiva desses trabalhadores. Como

desfecho, as considerações finais resgatam a hipótese lançada nessa introdução,

além de perpassar pelas principais conclusões observadas ao longo do artigo.

I. A AMÉRICA LATINA E OS CONTORNOS DOS MOVIMENTOS

GREVISTAS INTERNACIONAIS DE ENTREGADORES

Em um cenário social marcado pela explicitação das contradições sociais

fundantes do modo de produção capitalista (especialmente, o conflito capital-

trabalho), a percepção da injustiça, por parte dos trabalhadores, torna-se mais

aguçada. De um lado, o crescimento da demanda por serviços de entrega e do lucro

das plataformas; de outro, a degradação ainda maior das condições de vida e

trabalho daqueles que produzem, efetivamente, a riqueza social. 64 Diante da

64
Para uma análise de dados estatísticos a respeito das condições de trabalho dos entregadores durante a
pandemia no Brasil, cf. ABÍLIO et al, 2020.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

intensificação da jornada e do incremento da exposição a riscos (seja de acidentes

de trânsito, seja da enfermidade da Covid-19) a que estão submetidos, os

trabalhadores passaram a fortalecer a articulação coletiva e a organizar movimentos

de paralisação (e de protesto e resistência em sentido amplo) em diversos países.

Como recorte metodológico, optamos por abordar, neste tópico, os três primeiros

movimentos internacionais na América Latina que despontaram no cenário da

pandemia de 2020, quais sejam: os de 22 de abril, 29 de maio e 1º de julho.

Importante marco inicial para a internacionalização do movimento grevista dos

entregadores na América Latina se deu com a paralisação do dia 22 de abril de 2020,

formalmente aderida por organizações de trabalhadores de seis países (Argentina,

Equador, Guatemala, Costa Rica, Peru e Espanha). O comunicado de convocação

para o movimento, divulgado pelas redes sociais de perfis como o da Agrupación de

Trabajadores de Reparto Argentina (ATR), foi assinado pelas seguintes organizações:

Glovers Unidos Argentina, ATR, Glovers Unidos España, Glovers Ecuador, Glovers Costa

Rica, Glovers Elite de Guatemala e Repartidores de Perú. A íntegra do documento pode

ser acessada pelo endereço eletrônico da Prensa Obrera (2020). Nas redes sociais,

podem ser encontradas referências ao movimento com as expressões #YoNoReparto,

#22AParoInternacionalDeRepartidores e #22ANoReparto.

No comunicado oficial de convocação, as organizações afirmam que a

pandemia potencializou a precarização e a condição de superexploração a que estão

submetidos os entregadores. O comunicado alude, ainda, ao caso que operou como

estopim para diversos movimentos prévios: a morte de Emma, por atropelamento,

enquanto realizava entregas pela PedidosYa na Argentina. Expõem-se também as

longas jornadas de trabalho e a insuficiência (e mesmo ausência) de fornecimento

de equipamentos de proteção e de higiene pessoal. Dentre as reivindicações mais

urgentes apontadas no documento, constam o aumento de 100% no pagamento por

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pedido e a concessão de equipamentos de segurança e higiene (cf. PRENSA

OBRERA, 2020).

No documento, são mencionados também os movimentos nacionais anteriores,

como os da Argentina (Mar del Plata, Rosario e Neuquén), Guatemala (paralisação

do dia 05 de abril de 2020), Costa Rica, Peru e Espanha. Por fim, vale ressaltar que

o fechamento do comunicado faz importante referência à necessidade de articulação

dos trabalhadores a nível supranacional, uma vez que a degradação das condições

de trabalho é experimentada por todos: “Os entregadores de todo o mundo, sem

importar a nacionalidade nem o aplicativo [...], temos que nos unir em uma luta

para derrotá-los. A unidade e organização dos entregadores de todos os apps de

todos os países é o único caminho para conquistar nossos direitos” (cf. PRENSA

OBRERA, 2020, tradução livre do espanhol).

A segunda paralisação internacional de entregadores realizou-se no dia 29 de

maio de 2020, desta vez somada pelo movimento Ni un repartidor menos, contando

com importante ato no México (#NIUNREPARTIDORMENOS, 2020). Vale notar

que a origem do coletivo Ni un repartidor menos fora motivada, dentre outros fatores,

pela memória de José Manuel Matías, que perdeu a vida em novembro de 2018,

enquanto realizava uma entrega no México. Segundo informações da Prensa Obrera

(MOMPELIER, 2020), que destacou a mobilização de cerca de 200 jovens em

Córdoba, os movimentos do dia 29 de maio alcançaram diferentes países:

Argentina, Equador, Chile, México, Costa Rica e Guatemala.

Vale destacar, por fim, o movimento grevista do dia 1º de julho de 2020,

apontado pelas organizações que o convocaram como a terceira paralisação

internacional dos trabalhadores de entrega (as duas primeiras se referem aos

supramencionados movimentos dos dias 22 de abril e 29 de maio de 2020). Esse

movimento foi particularmente importante para a articulação dos entregadores no

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Brasil, uma vez que, em conjunto com a greve nacional do mesmo dia (que será

analisada no tópico seguinte deste artigo), o país passou a integrar também a lista

de nações que se somam aos movimentos internacionais da América Latina.

O documento de convocação dessa paralisação foi intitulado Comunicado

Internacional: 1/7 vamos a un nuevo paro internacional de repartidores. Assinam o

comunicado as seguintes organizações: Entregadores Antifascistas Brasil, Treta no

Trampo Brasil, Agrupación de Trabajadores de Reparto Argentina, Redapps Unidos

Argentina, Glovers Ecuador, Riders Unidos Ya Chile, Org. Repartidorxs Unidxs Costa

Rica, #NiUnRepartidorMenos Internacional e Motociclistas Unidos México. A íntegra

pode ser encontrada em postagem do dia 25 de junho de 2020, na página oficial do

facebook da Agrupación ATR (2020).

Nesse documento, é reforçada a condição de superexploração e de máxima

precarização, o que fez com que a paralisação fosse aderida por trabalhadores do

Brasil, Chile, Equador, Argentina, México, Costa Rica e Guatemala. A adesão do

Brasil é mencionada com destaque no comunicado: “Desta vez, a greve

internacional se sentirá com força no Brasil” (AGRUPACIÓN ATR, 2020, tradução

livre do espanhol). Merece atenção também a seguinte passagem, que demonstra a

consciência da interconexão entre a crise sanitária e a acumulação capitalista: “Viva

a unidade dos trabalhadores de todo o mundo, que enfrenta não só a crise sanitária,

mas também a crise capitalista que os governos e empresas tentam colocar sobre as

costas dos trabalhadores” (AGRUPACIÓN ATR, 2020, tradução livre do espanhol).

Dentre as principais reinvindicações veiculadas nesse instrumento de

convocação da greve, incluem-se: fim dos bloqueios arbitrários (com a restituição

das contas), justiça em memória dos trabalhadores que perderam a vida, concessão

de bônus emergencial por se tratar de atividade essencial, possibilidade de rejeitar

pedidos sem ser sancionado por isso, além de medidas de saúde em face da

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pandemia (como testes, realização de quarentena e reembolso econômico para os

trabalhadores que tiveram contato com ambientes contaminados ou pessoas

adoentadas por Covid-19).

Esse resgate dos três primeiros movimentos grevistas internacionais na

América Latina parece apontar para o sentido de nossa hipótese de pesquisa traçada

na introdução: verifica-se um horizonte de ampliação da articulação dos

entregadores a nível internacional (sobretudo, tendo em mente as importantes

adesões dos trabalhadores mexicanos e brasileiros). Embora o caminho de

superação material das estruturas de desigualdade do capitalismo envolva um

processo histórico longo, observa-se aí importante passo: se a acumulação

capitalista tende a se internacionalizar cada vez mais (e, com ela, o poderio político-

econômico das plataformas digitais), a classe trabalhadora precisa resistir a esse

cenário a partir de estratégias que sejam também supranacionais. E nada mais

importante para a contestação do imperialismo que a integração latino-americanista

de trabalhadores.

II. OS MOVIMENTOS GREVISTAS DOS ENTREGADORES NO BRASIL

Inicialmente, cumpre esclarecer que, embora a greve 65 do dia 1º de julho

tenha sido 66 a mais expressiva no cenário nacional, ela não foi a primeira

movimentação importante no Brasil. O ato contestatório do dia 20 de abril, em São

Paulo, convocado pelo Sindimoto/SP, foi motivado pelas condições precárias de

65
Optamos por utilizar o termo greve, muito embora os instrumentos de convocação dos trabalhadores
tenham dado preferência à expressão breque, para reforçar a subordinação contida nesta relação de trabalho.
Vale ressaltar que não ignoramos o fato de que exista uma disputa, mesmo dentro do movimento de
entregadores, a respeito da melhor forma de caracterização das paralisações. Essa disputa se reflete, inclusive,
na escolha dos arranjos discursivos a serem veiculados para o público.
66
Até a data do término da escrita deste artigo (31 de julho de 2020).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

trabalho durante a pandemia do Coronavírus. Com as mesmas pautas da greve

internacional, a paralisação de abril deu visibilidade às mobilizações dos

entregadores de aplicativos no país, desencadeando a greve do dia 1º de julho e os

breques dos aplicativos nos dias 14 e 25 do mesmo mês.

É interessante observar que o Sindimoto é um sindicato de Motociclistas,

Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo, fundado em 1991,

que tem abraçado a causa dos entregadores de plataformas digitais

(SINDIMOTO/SP, 2020)

Quanto à articulação dos trabalhadores por plataformas digitais de entrega,

em termos gerais, há, ainda, uma estrutura organizativa limitada, uma vez que esses

trabalhadores são, em grande maioria, informais e dessindicalizados. Desse modo,

o apoio do Sindimotos e de organizações como a dos Entregadores Antifascistas é

de imensa importância para o engajamento em sua luta.

O movimento de abril inaugurou uma agenda de extrema importância no

cenário nacional. Convocado através de uma cartilha divulgada nas redes sociais e

no site do Sindimoto, intitulada “Convocação de todos os trabalhadores de todos os

aplicativos para manifestações dos entregadores de app”, trazia, resumidamente, as

seguintes reivindicações: i) aumento do valor das corridas; ii) fornecimento de EPIS

de higiene e segurança; e iii) fim dos bloqueios. Os entregadores reivindicam, ainda,

benefícios, como vale-refeição e seguro contra roubo, acidente e de vida

(SINDIMOTO/SP, 2020).

Sobre as reivindicações, algumas considerações merecem ser tecidas.

Primeiramente, quanto ao valor das corridas, vale reforçar que as plataformas de

entrega possuem mecanismos baseados na ideia de oferta e demanda, que, em meio

a uma crise financeira e sanitária, geram prejuízos imensuráveis aos trabalhadores.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Como uma das principais recomendações para a contenção da pandemia é

ficar em casa, a comodidade oferecida pelos aplicativos de entrega se torna ainda

mais atraente. Isso porque os serviços de delivery não se limitam a restaurantes e

lanchonetes, possibilitando que os usuários realizem compras em supermercados,

farmácias e demais estabelecimentos através de alguns toques na tela do

smartphone.

Com o aumento da demanda em razão das medidas de quarentena e

isolamento social, e da oferta (como consequência do crescimento do desemprego e

da informalidade no Brasil), os entregadores veem potencializada sua situação de

trabalho em constante risco, sem qualquer amparo por parte das plataformas ou do

Estado, por um valor praticamente irrisório. Consoante a Rede Brasil Atual, “só o

IFood recebeu 480 mil novos inscritos, entre março e junho. Já a Rappi diz ter

registrado aumento de 128% em abril, na comparação com igual mês ano passado”

(PEREIRA, 2020c).

Segundo a Aliança Bike67, na “Pesquisa do Perfil dos Entregadores Ciclistas

de Aplicativo”, os trabalhadores geralmente são homens negros, na faixa dos 20

anos, sendo que a média de horas à disposição dos aplicativos é de 9 horas e 24

minutos por dia. Além disso, 30% pedalam mais de 50 km por dia, e a principal

motivação dar início às entregas por aplicativo foi o desemprego (ASSOCIAÇÃO

BRASILEIRA DO SETOR DE BICICLETAS - ALIANÇA BIKE, 2019).

A pesquisa supramencionada, ainda, demonstra que, em média, os ciclistas

entregadores ganham R$ 936 por mês, como se observa (figura 1):

67
Segundo o site da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas, “criada em 2003 e formalizada em 2009, a
Aliança Bike é uma associação que tem como missão fortalecer a economia da bicicleta e o seu uso por
brasileiras e brasileiros, atuando em diversas frentes de trabalho para promover o uso de bicicletas como
transporte, esporte e lazer” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO SETOR DE BICICLETAS - ALIANÇA BIKE, 2020).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

F IGURA 1- RENDIMENTO MENSAL DOS CICLISTAS ENTREGADORES EM 2019

Fonte: Associação Brasileira do Setor de Bicicletas - ALIANÇA BIKE (2019)

A breve análise da tabela anteriormente apresentada permite concluir que as

plataformas de entrega remuneram seus trabalhadores com valor inferior a um

salário mínimo nacional. Ressalte-se que esses dados se referem ao período de

realização da pesquisa da Aliança Bike, cujos resultados foram publicados em 2019.

Desde então, especialmente em virtude do cenário de agravamento da crise social

pela pandemia, os trabalhadores de entrega experimentaram e experimentam uma

deterioração ainda maior de suas condições de trabalho.

De acordo com a pesquisa realizada pela Rede de Estudos e Monitoramento

da Reforma Trabalhista (Remir Trabalho), da Universidade Estadual de Campinas

(Unicamp), 68,9% dos entregadores tiveram queda nos ganhos durante a pandemia.

Ainda, de acordo com o levantamento, antes, 34% ganhavam em torno de um

salário mínimo (R$ 1.045), caindo para 26,7% a proporção dos que afirmavam

ganhar acima de dois salários mínimos (PEREIRA, 2020c).

Vale dizer também que todas as plataformas de entrega rejeitam o vínculo

empregatício com os trabalhadores, afirmando, na maioria dos casos, que apenas

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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fornecem a tecnologia do serviço.68 Paulo Roberto da Silva Lima, o Galo, líder do

movimento dos Entregadores Antifascistas, reivindica, ainda, que as plataformas

de entrega arquem com vale-refeição para os trabalhadores, com objetivo de que os

aplicativos reconheçam o vínculo empregatício futuramente (REDE BRASIL

ATUAL, 2020).

Na questão do fornecimento de equipamentos de proteção individual, o

reflexo da pandemia de COVID-19 é ainda mais evidente, já que esses trabalhadores

necessitam de itens básicos de higiene - máscaras e álcool em gel - para resguardar

tanto a saúde deles, como dos usuários das plataformas digitais.

Quanto ao pedido do aumento do valor das corridas e fim dos bloqueios,

vemos, mais uma vez, a precarização desse trabalho, que se agravou

exponencialmente no cenário de pandemia. Os entregadores de aplicativos

tampouco podem escolher os pedidos sem o risco de sofrer punições das

plataformas, que podem ir de um bloqueio por alguns minutos à suspensão de suas

contas sem maiores explicações.

No dia 1º de julho de 2020, os entregadores realizaram manifestações em todo

o país, com maior engajamento em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,

Fortaleza, Salvador e Brasília. Na Avenida Paulista, o protesto reuniu cerca de dois

mil motoboys e ciclistas. Em Brasília o local escolhido foi o Congresso Nacional

(PEREIRA, 2020a). Ao longo do dia, os termos #BrequeDosApps e #GreveDosApps

estavam entre as Trending Topics do Twitter.

A segunda greve nacional dos entregadores das plataformas digitais ocorreu

em um final de semana (25 de julho de 2020), quando a demanda por entrega é

68
Nesse sentido, de acordo com o The Intercept Brasil: “Vender a ideia de independência dos profissionais é
uma estratégia para se distanciar deles e das obrigações que teriam que assumir caso admitissem o que se vê
na prática: que funcionam com base em hierarquias rígidas e criam relações de poder em que os entregadores
são o lado mais frágil” (LARA; BRAGA; RIBEIRO, 2020).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

expressivamente maior, como estratégia para forçar os aplicativos a negociarem

melhores condições de trabalho.

De acordo com o que Mateus Souza, entregador antifascista, pontuou em

entrevista concedida ao do.trabalhador sobre o balanço dos breques dos apps,

embora os números apontem que o movimento do dia 25 de julho contou com mais

adesão de apoiadores do que de entregadores, isso não é uma perda, pois essa

movimentação contribui para o crescimento das organizações a médio e longo

prazo, bem como, para o amadurecimento político da categoria

(DO.TRABALHADOR, 2020a).

Assim, percebe-se que há uma tentativa constante de esvaziamento da figura

do trabalhador, e, também, de desmonte das entidades sindicais através da falácia

do empreendedorismo. Contudo, organizações como o TRETA NO TRAMPO e os

Entregadores Antifascistas, com engajamento na luta massificada e sem

interferência de nenhum partido político, estão se posicionando à frente da luta dos

entregadores das plataformas digitais.

Não podemos deixar de falar sobre os “contra-movimentos” de

desarticulação coletiva dos trabalhadores, que ocorreram através de represálias

governamentais – multas - e financeiras – bloqueios. Financiado pelos aplicativos

como forma de promover um discurso de empreendedorismo, o movimento “NÃO

BRECA MEU TRAMPO” veiculou, em horário nobre (DO.TRABALHADOR,

2020a), a ideia de que a vida é uma entrega, romantizando a precarização

experimentada diariamente nessa relação laboral.

Como consequência da reverberação da luta dos entregadores das

plataformas digitais, apoiada pelos usuários, observamos a má avaliação dos

aplicativos, que se soma ao fato de que as plataformas não tenham se pronunciado

sobre os bloqueios e tampouco tenham atendido as pautas reivindicadas. Segundo

310
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

dados coletados pelo jornal O Globo, a partir do site Appbot, que faz o

acompanhamento das notas atribuídas às aplicações nas lojas virtuais Google Play

e Apple Store, em 1º de julho, os aplicativos receberam 53.411 avaliações – em 98%

os usuários atribuíram apenas uma estrela, e deixaram críticas ao modelo de

negócios adotado por essas empresas (PEREIRA, 2020a).

Por fim, conclui-se que, embora a luta dos entregadores de aplicativos seja

relativamente nova, suas pautas merecem ser acolhidas pelas instituições

legislativas e judiciais, sem que as organizações de trabalhadores sejam usadas

apenas como mecanismos de consulta, participando ativamente na elaboração de

normas que beneficiem esses trabalhadores.

III. A UBERIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E OS DESAFIOS DA

ORGANIZAÇÃO COLETIVA DOS TRABALHADORES DE PLATAFORMAS

DIGITAIS DE ENTREGA

Após compreender os movimentos grevistas dos trabalhadores de

plataformas digitais de entrega no Brasil e em outros países da América Latina, é

importante entender o fenômeno de uberização do Direito do Trabalho, que pode

ser observado “a partir do final do Século XX, com a utilização de inovações

tecnológicas” (CARELLI, 2018). Nele, tenta-se enfraquecer os movimentos grevistas

de resistência, mas, o que também se vê na realidade prática, é que a precarização

das relações de trabalho que lhe é inerente acaba por estimulá-los, uma vez que os

trabalhadores veem na greve uma possibilidade de obterem melhorias nas

condições de trabalho.

A uberização, conforme Ludmila Abílio, é “uma tendência global que

estabelece novas formas de organização, gerenciamento e controle do trabalho”

311
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(ABÍLIO, 2020, p. 13). Essa tendência se alinha com o regime de acumulação

neoliberal, que se baseia em medidas pró-capital de flexibilização e

desregulamentação do trabalho. É preciso notar que a uberização já atinge diversas

categorias profissionais - como motoristas, motofretistas, professores e empregadas

domésticas – e tende a se expandir.

Na uberização, há uma tentativa constante de descaracterização do vínculo

de emprego, tornando os trabalhadores supostos empreendedores69, dentro de uma

falsa aparência de liberdade, como preceituado por Han (2018, p. 14). As atividades

que são desenvolvidas através de plataformas digitais estão dentro do denominado

crowdwork, que busca colocar em contato “diversas organizações e indivíduos com

outras organizações e indivíduos por meio da internet, permitindo a aproximação

entre consumidores e trabalhadores de todo o mundo” (KALIL, 2017, p. 148).

A jurisprudência não é unânime quanto ao reconhecimento ou não do

vínculo de emprego entre entregadores de plataformas digitais e a referida

plataforma. A principal fundamentação para o não reconhecimento do vínculo de

emprego se pauta nessa suposta “liberdade”, evidenciada, sobretudo, em uma

jornada de trabalho flexível, o que afastaria, segundo essa visão, a subordinação.

Já decisões que reconhecem a relação empregatícia se fundamentam na

existência dos elementos caracterizadores do vínculo de emprego, quais sejam:

subordinação (presente quando o empregado se compromete a seguir os ditames

do poder diretivo do empregador), onerosidade (notada na contraprestação

econômica), não eventualidade ou habitualidade (perceptível na continuidade do

69
Conforme OLIVEIRA, CASTRO e SANTOS (2017, p. 100), percebe-se que “a reestruturação produtiva do
capital, baseada na precarização do trabalho e na flexibilização do uso da força de trabalho, está diretamente
ligada a ascensão da razão empreendedora como solução de problemas sociais”

312
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

trabalho realizado) e pessoalidade (marcada pelo caráter infungível do trabalhador)

(DELGADO, 2018, p. 315-325), em conformidade com os artigos 2º e 3º, da CLT.70

Aqui está o primeiro grande desafio para a organização coletiva desses

trabalhadores: ao não serem reconhecidos como empregados, torna-se mais difícil

a articulação coletiva, através dos sindicatos e/ou associações profissionais 71 , em

conformidade com o artigo 8º, caput, da CRFB/88. Afinal, para que um sindicato

possa ser constituído é preciso que “aglutine empregadores ou trabalhadores

integrantes de uma mesma categoria” (SILVA, 2014, p. 263).

Ora, se os entregadores de plataformas digitais são meros empreendedores,

não haveria o que se falar de representação sindical. Dentro desse raciocínio, esses

trabalhadores poderiam se encaixar em uma associação profissional de autônomos,

o que não seria a situação ideal, na medida em que, na realidade fática, são

entregadores que se submetem às ordens da plataforma digital.

70
Pode-se exemplificar o não reconhecimento do vínculo de emprego na seguinte sentença: A magistrada
entendeu que a plataforma rappi “apenas disponibiliza a sua plataforma para que os possíveis entregadores
se cadastrem, fazendo uma intermediação entre empresa terceira-entregador, possibilitando a entrega dos
produtos aos consumidores”. Ao verificar se havia subordinação, ponderou pela existência de uma autonomia
mitigada, na medida em que “são poucos os trabalhadores celetistas que podem escolher livremente quais
dias trabalhar, sem ingerência de seu empregador”. Dessa forma, afirmou que não há uma “figura jurídica que
esteja entre a relação de emprego e o trabalhador totalmente autônomo”, logo, “ou o trabalhador é
empregado ou não é” e por não verificar os elementos do vínculo de emprego, não o reconheceu (BRASIL.
Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Processo nº 1000952-03.2019.5.02.0070, 2019). Já o
reconhecimento do vínculo de emprego pode ser exemplificado na seguinte sentença: Foram encontrados os
elementos caracterizadores do artigo 3º, da CLT: a pessoalidade se configurou por o motoboy ter que “ser
necessariamente cadastrado na ré, isto é, passar pelos critérios definidos pelas reclamadas, não podendo ser
alguém escolhido exclusivamente pelo dono do veículo ou por algum motoboy já cadastrado na ré”; a
onerosidade foi observada pelo “pelo interesse econômico mútuo na relação de trabalho”; a habitualidade foi
observada pela continuidade de serviço realizado para plataforma rappi durante um período específico; a
subordinação foi evidenciada com a negativa do motoboy ser autônomo, bem como foi afirmado que o
“simples fato de autor ter liberdade na escolha dos dias que trabalharia não o aproxima do autônomo, como
regra, e sim da figura do empregado intermitente, categoria de empregado que é autorizada a escolher se
aceita ou não o labor a convite da empregadora”. A magistrada, ainda, afirmou que “o uso de meios
tecnológicos não descaracteriza a subordinação direta”, conforme o artigo 6º, da CLT (BRASIL. Tribunal
Regional do Trabalho da 2ª Região. Processo nº 1000955-39.2019.5.02.0043, 2019).
71
É válido mencionar que “as associações profissionais (coletivas) não sindicais possuem a finalidade precípua
de defender direitos, interesses e prerrogativas apenas de seus associados nos termos das disposições contidas
em seu estatuto” (CABRAL; PAULA, 2020, p. 130).

313
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Percebe-se que a ideia de empreendedorismo tende a inibir uma consciência

de classe e de coletividade por parte desses trabalhadores, deixando-os

fragmentados. As organizações aqui apresentadas: Agrupación de Trabajadores de

Reparto Argentina (ATR); Glovers Unidos Argentina; Glovers Unidos España; Glovers

Ecuador; Glovers Costa Rica; Glovers Elite de Guatemala e Repartidores de Perú; o

“SINDIMOTOSP” e os “Entregadores antifascistas” tentam organizar esses

trabalhadores para que possam resistir frente à expansão do capitalismo e lutar por

direitos mínimos trabalhistas.

Nesse mesmo sentido, Virgínia Fontes pontua que “quanto mais se expande

o capitalismo, mais o trabalho assume múltiplas configurações, recobertas por

contraditórias aparências, disseminadas, enfatizadas pela propaganda e pela atuação

empresarial e estatal” (FONTES, 2017, p. 47). Nota-se que a uberização do trabalho

cresce juntamente com a expansão do capital e busca contradizer a relação de

emprego com ideias de liberdade e empreendedorismo, representadas pela figura

do “burguês-de-si-próprio e proletário-de-si-mesmo” (ANTUNES, 2018, p. 39).

Essa figura demonstra ser uma estratégia dos “Estados capitalistas” – assim

denominados por Virgínia Fontes (2017) - para conter a resistência e conscientização

dos trabalhadores, reduzindo seu intervencionismo sobre o trabalho empregado e

“ampliando a contenção da massa crescente de trabalhadores desempregados,

preparando-os para a subordinação direta ao capital” (FONTES, 2017, p. 49). Busca-

se enquadrar esses trabalhadores como verdadeiros autônomos, dentro da figura

do empreendedor, quando, em realidade, são submetidos constantemente a um

controle realizado pela “própria organização algorítmica do trabalho” (CARELLI,

2018).

A resistência através das greves, observadas no presente artigo, preocupam

o capital em conjunto com as plataformas de entrega, afinal, a organização coletiva

314
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desses trabalhadores é capaz de colocar em “xeque” toda a exploração a que são

submetidos. Dessa forma, outro segundo desafio para esses trabalhadores é o

próprio controle realizado pelos algoritmos da plataforma. Como relatado pelo

entregador Paulo Lima, integrante do movimento de entregadores antifascistas, a

plataforma realiza o denominado “bloqueio branco” como punição: “Você vai para

a manifestação e no dia seguinte tá ali no bloqueio branco (...) você não é bloqueado

oficialmente, para não ter problema judicial, mas você para de receber os pedidos”

(DO.TRABALHADOR, 2020, 18 minutos e 40 segundos).

Outra consequência desse controle, que também prejudica a organização

coletiva dos trabalhadores, é pontuada na fala de um entregador entrevistado por

Ludmila Abílio: “o dia que eu participo de manifestação, eu não ganho nada, mas

no dia que não participo, ganho mais, porque cai a oferta de motofretistas”

(INSTITUTO DE ECONOMIA DA UNICAMP, 2020, 54 minutos e 50 segundos).

Assim, os entregadores se veem frente a um duplo desafio: conquistar o

reconhecimento da relação de emprego entre eles e a plataforma de entrega e

estabelecer uma organização coletiva bem estruturada, como uma forma de

resistência e reivindicação de direitos trabalhistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A potencialização da crise social pela pandemia da Covid-19 leva ao limite

o conflito capital-trabalho. O reforço ao ideário neoliberal, através de discursos que

pretendem contornar a crise capitalista sem questionar seus pressupostos materiais

de desigualdade, afeta, sobretudo, direitos sociais – principalmente os trabalhistas

– arduamente conquistados ao longo da história. Em um contexto socioeconômico

de recessão, a intensificação da precarização do mercado de trabalho explica

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

facilmente a ascensão de premissas equivocadas, que pregam uma suposta ausência

de subordinação desses trabalhadores às plataformas. Não obstante, o aumento do

risco de contágio intensifica uma condição que já era precarizada antes da

pandemia: a maioria dos entregadores vivencia uma situação de extremo limite

financeiro, dependendo das diárias e gorjetas para o sustento das suas famílias.

Nesse sentido, a uberização do Direito do Trabalho, bem como a

precarização das relações de trabalho que lhe é inerente, busca, constantemente, a

fragmentação desses trabalhadores, a fim de manter o controle do capital, em

detrimento do reconhecimento de direitos trabalhistas. Para isso, procura colocá-los

frente a não caracterização do vínculo de emprego e a um medo constante, gerado

pelo controle realizado pelas plataformas digitais, através, por exemplo, do

“bloqueio branco” e do aumento da remuneração recebida com as entregas

realizadas em dias de greve.

Podemos notar, a partir das reflexões desenvolvidas no artigo, que o

esgarçamento dessas contradições estruturais do modo de produção vigente tem

levado à emergência, em caráter supranacional, de movimentos grevistas, com a

participação de organizações e coletivos de trabalhadores em sentido amplo. A

partir da análise dos movimentos selecionados, estamos agora em condições de

resgatar nosso problema de pesquisa e nossa hipótese, que haviam sido lançados na

introdução: de fato, a pandemia parece ter sido o motor social para a potencialização

de uma tendência à internacionalização latino-americana da articulação coletiva dos

trabalhadores por plataformas digitais de entrega.

Essa tendência parece se confirmar na medida em que, observando-se o

entrelaçamento entre as três primeiras greves internacionais na América Latina (22

de abril, 29 de maio e 1º de julho de 2020), importantes adesões têm sido verificadas

ao longo desse percurso – notadamente, a difusão dos movimentos para o México e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

para o Brasil. Muito embora os trabalhadores sigam sendo submetidos a condições

de precariedade extrema, o fortalecimento dessa integração internacional latino-

americana pode contribuir para que, no futuro, desenvolvam-se entidades de

representação e organização a nível supranacional. Esse caminho se apresenta como

estratégia fundamental de resistência da classe trabalhadora, uma vez que as

plataformas operam no sentido da internacionalização cada vez maior da

acumulação capitalista.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(IN)VISIBILIDADE DO MUNDO RURAL: FRAGILIZAÇÃO DE

DIREITOS À POPULAÇÃO CAMPESINA EM TEMPOS DE

PANDEMIA VERSUS A REDE DE SOLIDARIEDADE DO MST

CONTRA O CORONAVÍRUS – UM OLHAR SOBRE GÊNERO

Andreza Aparecida Franco Câmara72


Larissa César Zavatário73

RESUMO
A partir do estudo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no assentamento
Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Osvaldo de Oliveira – no município de
Macaé –, foi possível perceber que estudar o MST é não se ater apenas em sua construção e
luta pois, tema complexo, tangencia inúmeras áreas do direito. O objetivo é compreender a
invisibilidade campesina, sobretudo em tempos de pandemia e como sua atuação em
direitos humanos ao mesmo tempo em que os demanda. Outrossim, objetiva-se falar um
pouco do papel da mulher no contexto do movimento, justificando-se a importância dos
direitos fundamentais à luz do sistema de garantias, no qual estamos inseridos. A
metodologia utilizada é a pesquisa-ação e revisão da literatura. Importa dizer que em razão
da pandemia, foi preciso adaptar a metodologia, de modo que a colheita de dados ocorreu
de forma virtual para fins de conclusão desse. No desenvolvimento serão abordados dois
capítulo. O primeiro capítulo discorrerá a respeito da (in)visibilidade do movimento em
contraponto a rede solidária estabelecida pelo assentamento e direitos que embora
positivados, carecem de efetivação. Já o segundo capítulo, tratará do trabalho e gênero no
campo, e como se dão essas relações. Podendo-se, nas considerações finais, concluir que o
modelo de produção desenvolvida no movimento, se apresenta como resistência e anuncia
direitos e garantias fundamentais, e alternativas face a problemas sociais e econômicos.
Tem-se os processos agroecológicos como emancipatório, e reconstrutor de relações
socioeconômicas e ambientais. Evidenciando-se como demandante e precursor de políticas
públicas, empreendendo esforços para obtenção e promoção de saúde, alimentação,
educação e emancipação de gênero.

72
Doutora pelo PPGSD/UFF. Professora Adjunta no Curso de Direito da UFF/ICM/MDI. Pesquisadora e líder do
Grupo no Diretório do CNPq “Observatório de Estudos e Pesquisa do Interior: Território, Populações
Tradicionais e Políticas Públicas”. Pesquisadora FAPERJ. andrezaafc@hotmail.com. http://lattes.cnpq.br/52318
24758786824.
73
Bacharelanda em Direito pela UFF. Bolsista FAPERJ. larissacz@id.uff.br.
http://lattes.cnpq.br/3751194523132 930.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Palavras Chave: Garantias fundamentais; políticas públicas; movimentos sociais; MST;


gênero.

ABSTRACT
From the study of the Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) at the Projeto de
Desenvolvimento Sustentável (PDS) settlement - in the municipality of Macaé - it was
possible to realize that studying the MST is not just sticking to its construction and struggle
because, a complex theme, touches numerous areas of law. The objective is to understand
the peasant's invisibility, especially in times of pandemic, and its role in promoting human
rights at the same time that it demands them. Furthermore, it aims talking a bit about the
role of women in the context of the movement, justifying the importance of fundamental
rights in the light of the guarantee system, in which we are inserted. The methodology used
was action research and literature review. It is important saying that due to the pandemic
it was necessary to adapt the methodology so that data collection took place in a virtual
way, for the purpose of concluding this article. In the development, two chapters will be
approached. The first one will talk about the (in)visibility of the movement in contrast to
the solidarity network established by the settlement and rights that, although positive, need
to be implemented. The second chapter, on the other hand, will deal with labor and gender
in the field, and how these relations take place. It can be concluded, in the final
considerations, that the production model developed in the movement presents itself as
resistance and announces fundamental rights and guarantees, and alternatives in the face
of socioeconomic problems. Taking the agroecological processes as emancipatory, and
reconstructor of socioeconomic and environmental relations; showing itself as a plaintiff
and precursor of public policies, making efforts to obtain and promote health, food,
education and gender emancipation.

Keywords: Fundamental guarantees; public policy; social movements; MST; gender

INTRODUÇÃO

“Quem você pensa que eu sou, aquele que você viu na TV?
O que te faz pensar que sou tão diferente de você?
Pois tenho família e filhos pra criar
E sou eu que estou aqui, lutando pelo que é meu por direito
Devo ocupar, Devo produzir, Devo resistir”
(MST – Dead Fish)

O presente trabalho tem início com o projeto de iniciação científica desde 2018, a

partir do estudo de gênero no contexto do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST),

322
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

com o recorte para o assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Osvaldo

de Oliveira, localizado no município de Macaé, no Rio de Janeiro. Com o estudo e

desenvolvimento de pesquisa e extensão foi possível observar que estudar o MST é ir além

de compreender sua importante constituição e luta, é entender toda sua complexidade de

temas que o tangencia e que carecem de resguardo à luz do sistema de garantias

fundamentais.

Ao analisar as lutas e conflitos de classes, observa-se a problemática de uma clara

questão social a ser enfrentada e superada e, em que pese os movimentos sociais tenham,

em certa medida, conseguido alguma democratização dos espaços, isso não é recorrente e

é constante a luta para afirmação de suas culturas e políticas de inclusão: contra a exclusão,

objetivando adesão em novas políticas públicas e a manutenção dos poucos direitos já

reconhecidos, como também o reconhecimento de direitos ainda ignorados.

Demonstrando-se relevante a análise do tema para compreensão do meio social

imposto ao movimento que, mesmo com suas demandas e lutas por políticas públicas,

inclusão, e efetivação de direitos e garantias fundamentais – já assegurados

constitucionalmente e por instrumentos internacionais, mas que nem sempre estão em

pleno gozo por assentadas e assentados – conseguem promover ações enquanto atores

sociais para a promoção de direitos fundamentais como alimentação, saúde, meio ambiente

e educação.

É com a justificativa de que faz-se necessário dar efetivo cumprimento ao exercício

dos direitos de segunda dimensão preconizados, que se esbarram no fato de que quem

deveria dar efetividade a esses direitos, não os promovem, seja pela falta de vontade ou

escolhas políticas e econômicas na prestação de políticas públicas, manutenção e geração

de novos direitos. Levantado-se a hipótese de que ocorre a invisibilidade do mundo rural,

sempre existente, mas que vem à tona em tempos de pandemia, não somente pelas

carências da promoção de tantos direitos, alguns já enunciados, mas sobretudo, pelas

fragilidades do direito à saúde (pouco) oferecidos à população campesina, dentre outros

que serão trabalhados.

323
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O método utilizado valeu-se da técnica de revisão de literatura e de experiências

anteriores com o Estudo Interdisciplinar de Vivência nas Atividades Campesinas (EIV),

especialmente no assentamento Projeto de Desenvolvimento Sustentável Osvaldo de

Oliveira, em Macaé-RJ, e realização das feiras agroecológicas e da Jornada Universitária em

Defesa da Reforma Agrária (JURA), assim como a análise e estudo de casos, tudo a partir

da pesquisa-ação. Tendo sido necessário, em último turno, se valer de pesquisas e

noticiarios virtuais em razão do momento de pandemia que imposibilita a ida à campo e

para fins de encerramento deste trabalho.

O objetivo se afigura em compreender o estigma da invisibilidade campesina,

principalmente em tempos de pandemia, como também a política organizacional do

movimento e sua atuação enquanto ator social e precursor de políticas públicas em direitos

humanos no combate das desigualdades sociais no campo. Assim como entender suas

ações, tendo-o como impulsionador de atividades sociais e de desenvolvimento, não apenas

para o próprio grupo, mas também aberta aos demais da sociedade, além da importância

dos direitos fundamentais à luz do sistema de garantias.

Questiona-se como pode um movimento que em muito carece de efetivação,

implementação ou criação de direitos, promover a manutenção do meio ambiente, de

alimentação, saúde e educação para o assentamento e para demais grupos de modo

solidário durante a luta e, principalmente, ao mesmo tempo em que se enfrenta uma

pandemia do nível da COVID – 19. Por fim, objetiva-se discorrer um pouco sobre o papel

da mulher no contexto do movimento 74 , justificando-se a importância dos direitos

fundamentais à luz do sistema de garantias, no qual estamos inseridos e que são

constantemente ignorados ou violados pelas autoridades que deveriam colaborar para a

promoção desses direitos e não sustentar o posicionamento de necropolítica75.

74
Explica-se que apenas por limitação de espaço e recorte de objeto de pesquisa, a condição de gênero será
tratada a partir das participações e estudos de campo, não tendo sido possível realizar um recorte racial e de
orientação e identificação de gênero, em que pesa seja reconhecida a relevância do estudo.
75 Análise pelo conceito de Achille Mbembeque em que coloca que o Estado dita quem está ‘apto’ a viver e
quem deve morrer, dando espaço a inumanidades. E em que (…) “populações são submetidas a condições de
vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’” (MBEMBEQUE, 2016).

324
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1 (IN)VISIBILIDADE – GARANTIA DE DIREITOS E REDE SOLIDÁRIA

Por meio das instituições participativas, entendidas como formas diferenciadas de

incorporação de cidadãos, associações e movimentos sociais da sociedade civil na

deliberação sobre políticas, novos protagonismos induziram e promoveram o processo de

partilha de poder, isto é, através da constituição de uma instituição na qual atores estatais

e atores da sociedade civil participam simultaneamente (AVRITZER, 2008). Sendo possível

perceber que as maiores ou menores possibilidades de geração de novos direitos em uma

sociedade relacionam-se à existência ou não de um Estado democrático de direito que

permita a sociedade civil se expressar com liberdade de voz, manifestar seus conflitos

sociais e equacionar demandas materiais e simbólicas, através de movimentos sociais,

grupos de pressão institucional e/ou representantes na própria esfera estatal (SCHERER-

WARREN & LÜCHMANN, 2004).

Dentre muitos direitos que devem ser efetivados ao movimento, os direitos sociais

são um grupo de direito que estão assegurados no artigo 6º da Constituição Federal como

um direito de todos. Em âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU),

em 1948, adotou e proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e enuncia em

seu artigo XXV que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz (..)”, dentre

outros, de ter assegurada sua “saúde e bem-estar, principalmente quanto à alimentação, (...)

serviços sociais (...) e meio de subsistência por circunstâncias independente da sua

vontade”. Ao mesmo tempo, a ONU fomentou a criação de órgãos especiais atrelados a sua

estrutura, e capazes de se dedicarem a garantir direitos considerados essenciais a todos,

como é o caso da Organização Mundial de Saúde (OMS), por exemplo.

Relevante é o levantamento histórico, para que seja possível compreender que os

direitos humanos englobam e são de todas as pessoas e, portanto, universais e essenciais

para uma vida digna. Frisa-se, seu titular é a coletividade, não admitindo distinção. Todos

esses temas são indissociáveis pois tocam o MST de certa maneira. E em que pese direitos

básicos resguardados pela Constituição, estão contemplados nos Objetivos de

325
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para 2030, que consiste em um plano de ação

para países e indivíduos de todo o mundo, que reconhece em todas as formas e dimensões

que a erradicação da pobreza, desenvolvimento sustentável e o fortalecimento da paz

universal com maior liberdade são os maiores desafios global (ONU, 2015). Isso traz à tona

as mazelas da sociedade e o fato de ainda termos atualmente que discutir direitos básicos e

urgentes para uma vida digna; sobre direitos que já eram para estar consolidados. Para

demonstrar tal afirmação, tem-se, por exemplo, que a Constituição Federal acrescentou o

direito social à alimentação em seu artigo 6º apenas em 2010, por meio da Emenda

Constitucional n° 64. O Direito Humano à Alimentação Adequada, que se relaciona não

apenas com o consumo e a produção sustentável, mas também com a agricultura

sustentável, e que também está inserido no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos

Humanos, que consiste em:

(...) acesso físico e econômico de todas as pessoas aos alimentos e


aos recursos, como emprego ou terra, para garantir esse acesso de
modo contínuo. Esse direito inclui a as diversas formas de acesso à
água. Ao afirmar que a alimentação deve ser adequada entende-se
que ela seja adequada ao contexto e às condições culturais, sociais,
econômicas, climáticas e ecológicas de cada pessoa, etnia, cultura
ou grupo social (MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO
SOCIAL, 2013).

Importa dizer que os ODS da ONU para 2030 foram pactuados após o limite da

agenda de 2015 e em substituição aos antigos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

(ODM). Iniciando-se a discussão sobre a necessidade de novos objetivos na Rio+20

(Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável). Foi em 2015 que

mais de 150 líderes mundiais se reuniram na sede da ONU em Nova Iorque e passaram a

visar um plano de ação para países e indivíduos para desenvolvimento mundial, baseado

em 17 objetivos, dentre alguns já citados, buscando implementar uma agenda de

desenvolvimento sustentável até 2030 (ONU, s.d.).

326
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Acordando uma agenda global que tenha comprometimento com pessoas e o

planeta, bem como para a promoção de paz, de vida digna e principalmente erradicação da

pobreza. Os países signatários receberam orientação para a implementação desses objetivos

(em dimensões ambientais, sociais, econômicas e institucionais). A imposição de ODS não

são obrigatórios, mas enquanto países signatários, e aí inclui-se o Brasil, trata-se de uma

assunção de compromisso voluntário para o desenvolvimento sustentável (ONU, s.d.). E

que pode ser implementado por políticas públicas, planos e programas a serem

desenvolvidos pelos países, assim como por meio de ações entre governos, empresas,

academia e sociedade civil. O problema se mostra quando a ocorrência de tais direito

apresentam-se apenas no plano formal e a realidade apresentada no plano fático é

notadamente divergente.

Em que pese as fragilidades enfrentadas pelo movimento para efetivar tais direitos

– mesmo que positivados –, o que é possível observar é que o MST demonstra atuação

enquanto ator social e precursor de políticas públicas em direitos humanos, em promoção

de direitos sociais à sociedade, e no caso em estudo, ganhando destaque quando do

enfrentamento ao COVID-19. Tendo promovido ações solidárias de doações de alimentos

agroecológicos às comunidades em situação de vulnerabilidade econômica e sanitária,

enviando frutas, verduras e legumes provenientes do cultivo de diversos assentamentos e

acampamentos. Por meio do exercício do direito à alimentação saudável verifica-se o

engajamento na prevenção e educação para que produtores promovam o escoamento,

entrega e comercialização desses produtos.

As redes solidárias tem ocorrido em âmbito nacional, sendo possível destacar

doações em todo o Brasil, calculando-se por meio do site oficial do movimento a entrega de

cerca de 2.800 tonelada de alimentos até 12 de agosto de 2020 (MST, 2020). No PDS Osvaldo

de Oliveira, pode-se destacar que mesmo sob ameaça de despejo, as famílias se organizaram

para produção agroecológica, livre de químicos – agrotóxicos e transgênicos, tendo como

alicerce “a projeção de trabalho de base nos territórios, distribuindo alimentos nas favelas,

ocupações urbanas e territórios de vulnerabilidade”, tendo realizado, apenas o PDS, a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

doação de cerca de 10 toneladas de productos agroecológicos (MST, 2020). É assim que “a

agroecologia é percebida como um processo de organização social, cultural e produtivo,

que reconstrói relações socioambientais que não se baseiam exclusivamente em valores

urbanos” (CÂMARA et al., 2020), movimentando-se de invisível para visível, ao menos aos

olhos de quem é ajudado e quem toma conhecimento das medidas. Seguindo, porém, na

busca de efetivação de direitos para ‘si’ – enquanto grupo –.

Para o MST a solidariedade está nos fundamentos da vida social


enquanto um valor, um princípio que orienta a luta pela reforma
agrária e pela construção de um projeto popular de país. (…) O MST
reafirma, assim, seu compromisso com a agroecologia e a defesa da
soberania alimentar como garantia de sobrevivência da população
brasileira. (BARROS & TEIXEIRA, 2020, p. 5 e 7).

Nota-se que o movimento perpetua e está em consonância com os direitos

fundamentais no qual estamos inseridos, diferente de entes e atores políticos que

deveriam tomar frente e, a partir das observações à luz do sistema de garantias,

adotar medidas para ajudar não só a cidade como também, e principalmente, o

campo que sofre grande estigma, especialmente quando se trata de movimentos

sociais como o MST – que se desdobra com as atividades compesinas. Algumas

pessoas acreditam que o "MST existe por influências subversivas dos partidos de

esquerda” (FIGUEIREDO & CALBINO, 2018, p. 105), a imagem tida a respeito do

MST é de que o movimento:

(...) é uma organização constituída por vândalos e ladrões, que


buscam depredar, roubar e expropriar a propriedade privada (...)
discurso, moldado por uma visão que seleciona acontecimentos que
projetam uma ideia negativa ao movimento (...) que visam
desconstruir a imagem do MST, e/ou construir uma narrativa entre
a população da rejeição (FIGUEIREDO & CALBINO, 2018, p. 95-96).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Podendo-se concluir que, comumente estigmatizado e sofrendo diversas

violações, na pandemia da COVID – 19, se encontram ainda mais fragilizados pelas

dificuldades encontradas em saúde ou mesmo escoamento de produtos para

geração de renda. Observa-se com o estudo, temas que tangenciam questões de

grande relevância social e que fazem parte de um ‘todo’ dentro do mundo

campesino como: fome zero e agricultura sustentável; erradicação da pobreza;

saúde e bem estar; igualdade de gênero; redução de desigualdades; consumo e

produção responsável e educação de qualidade. Isso porque o movimento não

poderia deixar de ser analisado com amplitude e com olhar para a importância de

diversos assuntos que o permeiam e não só a saúde, moradia e alimentação, mas

tantos outros comtemplados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)

da ONU para 2030, revelando a importância do tema. Ademais, no tocante da

pandemia a vida como um todo importa, de saúde a alimentação, como bem estar

e lazer.

A pandemia trouxe à tona as contradições de clase – sempre existente, mas

sobremaneira em evidencia –, eis que acentuam as desigualdades e demonstram

que o avanço da problemática pode ser desastroso.

A situação se agrava ainda mais na atual crise sanitária brasileira


(…) onde a higiene e o distanciamento social são fundamentais para
a contenção do vírus. Esse contexto impõe muitas dificuldades para
essas populações cumprirem as recomendações das autoridades
sanitárias: água e sabão para lavagem frequente das mãos, acesso
ao álcool 70%, uso de máscaras, testagem, acesso aos serviços de
saúde ambulatoriais e hospitalares em caso de infecção (MST, 2020).

Além disso, outro enfrentamento que se apresenta, em razão das medidas de

saúde, com o isolamento, é a inviabilidade da manutenção dos circuitos de feiras,

que ocorriam em diversas cidades e em Macaé, dentre outros lugares, no pátio da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Universidade Federal Fluminense – UFF, locais comuns para comercialização mas

que no momento não podem receber as feiras. Isso ocasiona grande dificuldade para

o escoamento de alimentos, dificultando a geração de renda, podendo ocasionar,

ainda, o perecimento dos alimentos.

A COVID – 19 traz implicações distintas a depender de cada classe, e no

campo, apesar de suas fragilidades desde tempos remotos à pandemia, o

movimento, embora com tantas dificuldades impostas, nos ensina, não só pelo

exemplo de solidariedade, mas pelos ideais, que a saúde, a alimentação e o cuidado

com o meio ambiente depende do equilíbrio sustentável e saudável entre a

sociedade, na relação com o campo (natureza), o meio ambiente e o povo enquanto

nação. Merecendo destaque e visibilidade o movimento e a realização da rede

solidária mesmo enquanto que invisível a muitos da sociedade e carente de muitas

demandas em direitos fundamentais.

Passa-se a análise do estudo de gênero e como se dá a relação no campo de

trabalho e convivência entre pares, tendo como objetivo tentar resgatar informações

da situação da mulher no momento de pandemia em que se impõe.

2 RELAÇÕES DE GÊNERO E TRABALHO NO CAMPO

O processo de socialização, construiu o conceito de gênero e suas diferenças;

distinções hierárquicas, de identidade, e da construção social do que é ser homem e

do que é ser mulher, e em que este “ser homem” possui maior status social. Designa

papéis, direitos e oportunidades em uma sociedade, o que explica em muito as

grandes desigualdades entre pessoas de géneros distintos (PASTORE, 2005; SILVA

& SCHNEIDER, 2010; SOARES, 2004). Assim, existe uma:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(...) necessidade de construir uma nova ordem nessas relações entre


homens e mulheres, como parte substantiva de uma ordem social,
mais plural e democrática. Uma ordem que não se sustente na
subordinação e na dependência das mulheres, mas na igualdade e,
consequentemente, em relações sociais mais justas, mais
democráticas e mais plurais (SOARES, 2004, p. 116).

Quer dizer, “falar em igualdade de gênero é romper com um universo restrito


do não reconhecimento da alteridade, do outro, da diferença, para caminhar em direção

ao espaço de equidade, da emancipação e do pertencimento” (MINISTÉRIO DO MEIO

AMBIENTE, 2018, p. 113), e participação nos espaços, reconhecimento e valorização da

mulher em pé de igualdade com os homens nas esferas política, social, econômica,

laboral, pessoal e familiar (Idem). A ideia de equidade de gênero se relaciona

completamente como sendo um direito humano, e é termo para o alcance do

desenvolvimento sustentável e a redução da pobreza (FUNDO DE POPULAÇÃO DAS

NAÇÕES UNIDAS, 2019).

A desigualdade no que tange ao trabalho também se coloca, privilegiando o

homem enquanto as mulheres cuidam da casa ou atividade de produção tidas como

‘menores’, a exemplo de pequenas criações e das hortas, referenciando-as apenas como

“ajudantes”, o que gera uma desvalorização do trabalho das mulheres, já que o que

desempenha acaba por não ter valor econômico de renda para a casa (SILVA &

SCHNEIDER, 2010). Concluindo-se que tendo ou não entrado nos movimentos

motivadas ou influenciadas pela “existência de ‘questões de mulheres’, todas se

depararam, no decorrer da militância, com experiências de discriminação de gênero”

(SILIPRANDI, 2009, p. 182), desde a escassa participação das mulheres agricultoras na

maioria dos espaços, principalmente nas direções, tendo a busca de igualdade, sido um

outro motivador para também se manterem nos movimentos.

Em um contexto pandêmico, a exigência sanitária por isolamento deveria ser

viável a todos, mas os dados do Observatório da Mulher contra a Violência (OMV)

331
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mostram que para as mulheres tal contexto fez aumentar os índices de violência

doméstica contra elas, que passam mais tempo em casa com seus agressores, o que

dificulta, inclusive, a denúncia por parte dessas mulheres às autoridades (BRASIL,

2020), demonstrando que o lar nem sempre e não para todos é o local mais seguro

do mundo.

No contexto dos movimentos sociais, e no caso do MST, já se reconhece que

um dos grandes desafios é “romper com o patriarcado76, inclusive com os homens

participando desta desconstrução” (MST, 2020). Foi nessa situação sanitária e de

saúde instaurada que foi criada a campanha “Mulheres Sem Terra: contra o vírus e

as violências” (Idem), que foi pensado em três eixos e com o intuito de que seja

construído uma rede de solidariedade contra a violência:

(…) “Violência contra os sujeitos vulneráveis”, o segundo é


“Autocuidado, trabalho e saúde, pensando corpo, mente e
relações”, conversando sobre outras formas de violência. O terceiro
é “O que é a resistência ativa neste momento de pandemia”, ou seja,
como pensar produção, cooperação e autonomia das mulheres e do
conjunto do movimento, pois ficarão em casa, mas não em silêncio.
Portanto, o combate à violência é o principal foco desta campanha.
Queremos fazer com que o conjunto do MST se envolva nesse
debate (MST, 2020).

Reconhece-se que acampamentos e assentamento não são ilhas isoladas, e

acabam por refletir as relações sociais externas, então mesmo com todas as

atividades de formação que o MST costuma promover, nessas situações atípicas e

76
O termo correto para essas discussões seria ordem patriarcal de gênero. Não apenas por se tratar de um
termo mais completo, mas porque pelo que se observa das relações, o problema não está detido apenas no
gênero – termo genérico, mas a uma subordinação das mulheres supostamente devida ao homem e que
culmina nessa desvalorização da mulher, impondo-se mesmo como uma “ordem” do patriarcado ao gênero
mulher (SAFFIOTI, 2011). Tal conceituação não será possível discutir no presente trabalho com tamanha
profundidade que merece, mas vale o registro dessa outra forma de classificação do que queremos abordar,
que é a desigualdade entre homens e mulheres em diferentes esferas da vida pública e particular.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

peculiares, é preciso de programas como esse, pois acaba por haver também

violência no campo.

Assim é que as políticas de equidade são úteis a enfrentar eixos que impõem

a desigualdade, como “a falta de autonomia pessoal e econômica, a desigualdade

na divisão sexual do trabalho, na família, a autonomia do corpo e a sexualidade, o

racismo e os preconceitos, romper com o silêncio e a invisibilidade das vozes das

mulheres” (SOARES, 2004, p. 117). Afinal, restrições e falhas institucionais que

nutrem as desigualdades de gênero tem menor probabilidade de serem tratadas e

corrigidas se perpetuada a existência dessas disparidades (MINISTÉRIO DO MEIO

AMBIENTE, 2018).

Pois considerar as mulheres apenas como ‘ajudantes” faz com que elas

acumulem as atividades doméstica com as da agricultura, conciliando

permanentemente essas tarefas e sem o devido reconhecimento e espaço

(PASTORE, 2005). Isso decorre da construção patriarcal em que o homem é tido

como um representante dos interesses da casa, com poder decisório e a mulher o

ajuda, e gere os serviços domésticos. Aqui está configurada a chamada divisão

sexual do trabalho, onde o trabalho do homem é mais valorizado e há distinção

entre ‘trabalho de homem’ e ‘trabalho de mulher’ e é nesse momento que as

mulheres começam a se mobilizar politicamente para terem reconhecidas suas

identidades de trabalhadoras rurais – agricultoras (SILIPRANDI, 2009).

É essa mesma construção de divisão sexual do trabalho que colabora com a

violência em que o homem sendo ‘melhor’ a mulher se vê subjulgada às suas

vontades. Por isso é que “debater a divisão sexual do trabalho, compreendendo que

a sobrecarga das mulheres com o trabalho reprodutivo, e a invisibilidade deste estão

nas raízes da opressão e exploração das mulheres, e no campo essa invisibilidade

estende-se para o trabalho nos quintais e no roçado” (MST, 2020).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A partir dessas questões, entende-se que a promoção da inclusão ou, de

direito iguais em gênero, carrega elementos cruciais para promover e manter essa

equidade nos âmbitos econômico, social e ambiental, pricipalmente para momento

como esses – que está instituído na saúde –. Isso porque, se a mulher tem acesso

adequado a recursos, ou se há um programa eficiente de transferência de renda, elas

participam e aproveitam como iguais da vida econômica e progresso econômico. De

igual modo, já na dimensão social, compreende-se a igualdade de gênero como

requisito para o alcance da justiça social – que tem o acesso e a participação das

mulheres em espaços de forma equitativa, como aspecto/elemento fundamental

para seu convívio social de forma igualitária, em aspecto cotidiano e nos contextos

extremos como o da pandemia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A necropolítica instaurada, contra a cidade, e mais ainda com o campo,

colocando a população campesina ainda mais vulnerável, confirma a hipótese de

que, faz-se necessário dar efetivo cumprimento ao exercício dos direitos

preconizados de 2ª dimensão, não observado pela (des)política atual. Apesar disso,

luta-se para que seja priorizado processos de inclusão social de setores e camadas

tidas como “vulneráveis” ou “excluídas”, que movimentos campesinos, como o

MST, ganham corpo cada vez mais e que suas ações, por si só, possam ser

reconhecidas como instrumentos de políticas públicas também para a sociedade e

que sua forma reivindicativa e solidária seja modelo. Os movimentos sociais

contemporâneos realizam diagnósticos sobre a realidade social, elaboram

propostas, representam simbolicamente e na prática um conjunto de ações, práticas

e discursos que acarretam o pertencimento social do grupo, que apresentam um

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ideário civilizatório que coloca como horizonte a construção de uma sociedade

democrática.

Com o presente, foi possível concluir que o modelo de produção

agroecologica desenvolvimento no movimento, se apresenta como resistência

baseado em direitos e garantias fundamentais, conciliando alternativas face aos

problemas sociais, culturais, ambientais e econômicos – incluindo os de necessidade

prioritária: de moradia, de alimentação, e outros relacionados ao que se entende por

dignidade da pessoa humana, inclusive igualdade de gênero. Promovendo, com as

ações solidárias, direitos, em meio a pandemia, ao mesmo tempo em que demanda

por atuação político-social.

Demonstrando, ainda a estratégia do movimento como demandante e

precursor de políticas públicas visando atender demandas para além da reforma

agrária, empreendendo esforços para obtenção e promoção de saúde, educação,

acessibilidade, assistência social, infraestrutura, geração de renda, viabilização de

plena comercialização e escoamento dos produtos agrícolas e emancipação de

gênero.

E em que pese os obstáculos encontrados pelo grupo, incluindo o grupo de

mulheres, tem-se que os processos agroecológicos como emancipatório e

politizador, apresentando-se em um processo de organização social, cultural e

produtivo, que reconstrói relações socioambientais que não se baseiam

exclusivamente em valores urbanos e que são pautados em direitos e garantias.

Sendo necessário da visibilidade ao movimento, já que, ainda que se

reconheça alguma democratização de espaços, necessária é a ampliação desses e

também de políticas públicas para todos o grupo, que em muito já desempenham

seu papel como precursores de cidadania, mas que em contrapartida muito precisa

de efetivação de direitos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Quanto às mulheres do movimento devem ser reconhecidas como cidadãs

plenas, sujeitas de direitos, sendo estirpado qualquer tipo de violencia contra elas,

que possuem papel chave na econômica familiar; necessitam de políticas públicas

específicas de gênero para ultrapassar obstáculos que as impedem ao direito à terra,

à renda, à opinião e ocupação de espaços – inclusive de liderança, segundo suas

próprias vontades e interesses. Só por meio desse enfrentamento é que as mulheres

poderão se colocar ativamente na luta pela terra e por suas próprias demandas e

vontades. Que viabilize serem sujeitas políticas ou sociais, como queiram, e que

proporcionem sua libertação do patriarcado e dos ditames da sociedade sexista.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A SUSPENSÃO DOS PRAZOS PARA AQUISIÇÃO DE

PROPRIEDADE DURANTE A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: A

RATIO LEGIS E AS CONSEQUÊNCIAS PARA A EFETIVAÇÃO DO

DIREITO À MORADIA

Alexandre Hiromitsu Hamasaki77


Patrícia Silva Cardoso78

RESUMO
A Lei n. 14.010/2020 dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações
jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do Coronavírus. O artigo 10 da lei
prevê a suspensão dos prazos de aquisição para a propriedade, nas diversas espécies de
usucapião, o que significa dizer que o prazo suspenso não se contabiliza para fins de
requisito temporal. Justifica-se o presente estudo, uma vez que a suspensão de prazos é
uma medida excepcional no Direito Privado, que pode afetar a situação jurídica do
possuidor direto, o que levou à indagação se tal escolha legislativa se configura como a mais
adequada a tutelar o direito à moradia. Assim, a partir de pesquisa bibliográfica, com uma
abordagem qualitativa, o estudo visa analisar a razão do legislador criar a regra para
suspender o prazo para aquisição de propriedade, nas diversas modalidades de usucapião,
e as repercussões dessa medida para os prazos em curso, sob a perspectiva da efetivação
do direito social à moradia.

Palavras-chave: Lei n. 14.010/2020; usucapião; suspensão de prazos; ratio legis; direito à


moradia.

ABSTRACT
The Law 14.010/2020 provides on the Emergency and Transitional Legal Regime of Private
Law relations on the period of Coronavirus pandemic. The Article 10 of the law provides
for the suspension of the acquisition periods for ownership, in the various species of
usucaption, which means to say, that suspend period is not counted for the time
requirement. The present study is justified since the suspension of terms is an exceptional

77
Advogado; Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense; alexandrehamasaki@id.uff.br,
http://lattes.cnpq.br/0514538485850387.
78
Doutora em Direito da Cidade pela UERJ, em co-tutela com a "Università di Roma - La Sapienza", mestrado
em Direito Civil pela UERJ e graduação em Direito pela UERJ; Professora Adjunta de Direito Civil da
Universidade Federal Fluminense (Volta Redonda); psilvacardoso@yahoo.com.br,
http://lattes.cnpq.br/8018781068310809.

340
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

measure in Private Law that can affect the legal situation of the direct possessor, which led
to the question whether such legislative choice is the most appropriate to protect the right
to housing. Therfore, based on bibliographic research, with a qualitative approach, the
study aims to analyze the reason of the legislator to create the rule to suspend the term for
acquisition of ownership, in the diverse modalities of usucaption, and the repercussions of
this measure for the terms in course, under the perspective of the effectiveness of the social
right to housing.

Key-Words: Law 14.010/2020, usucaption, suspension of deadlines, ratio legis, right to


housing.

INTRODUÇÃO

Com o reconhecimento de calamidade pública pelo Poder Executivo

Federal e Congresso Nacional, dada a pandemia do Coronavírus (COVID-19),

buscou-se um regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de

Direito Privado, de modo a preservar relações jurídicas e proteger os vulneráveis, o

que levou o Senado Federal a propor o Projeto de Lei n. 1.179/2020.

O Projeto de Lei foi sancionado pelo Presidente da República e publicado

no Diário Oficial da União (DOU) de 12 de junho de 2020, entrando em vigor a Lei

n. 14.010/2020, na data de sua publicação, instituindo normas de caráter transitório

e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado em virtude

da pandemia do Coronavírus (artigo 1º da Lei n. 14.010/2020).

Dentre os dispositivos da lei, destaca-se a suspensão dos prazos de

aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de

usucapião, a partir da entrada em vigor da lei até 30 de outubro de 2020 (artigo 10

da Lei n. 14.010/2020). O que significa dizer que, quando a lei entrou em vigor,

paralisou-se todos os prazos de usucapião de propriedade e o restante do prazo só

voltará a correr após o dia 30 de outubro de 2020. Durante esse período, não se

contabiliza o tempo transcorrido para fins de usucapião.

341
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A problemática paira sobre o fato de a Lei 14.010/2020 trazer uma única

disposição aplicável a todas as espécies de usucapião, sem levar em consideração

importantes espécies de usucapião que visam efetivar o direito à moradia (como a

usucapião especial urbana, a usucapião especial rural e a usucapião familiar); o que

evidencia um embate entre o direito fundamental de propriedade, daquele que é o

titular do direito real, e o direito fundamental de acesso à propriedade e direito

social à moradia, do possuidor direto (usucapiente).

Dessa forma, a partir de pesquisa bibliográfica, objetivou-se no presente

trabalho, a análise dos fundamentos dessa regra de transição para se entender a

razão que levou o legislador a propor a suspensão dos prazos de aquisição de

propriedade pela usucapião e a repercussão da medida nos prazos em andamento.

Para tanto, busca-se, inicialmente, apresentar as razões que levaram o

legislador brasileiro à criação da Lei n. 14.010/2020, que dispõe sobre o Regime

Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no

período da pandemia do Coronavírus. Posteriormente, analisa-se a relação existente

entre a usucapião e o direito à moradia para, no final, verificar a medida de

suspensão dos prazos de aquisição de propriedade, nas diversas modalidades de

usucapião, sua razão legislativa e suas consequências nos prazos em andamento,

tendo como base a efetivação do direito social à moradia.

1. LEI N. 14.010/2020 (PROJETO DE LEI N. 1.179/2020 DO SENADO FEDERAL)

A pandemia do novo Coronavírus afeta, indubitavelmente, diversos

direitos sociais, como a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o

transporte e o lazer. Mas não se pode deixar de mencionar, igualmente, que a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pandemia acomete as relações jurídicas de Direito Privado, que sofrem suas

consequências em decorrência da pandemia.

Visando as potenciais consequências econômicas e sociais da pandemia nas

relações jurídicas de Direito Privado, por iniciativa do então presidente do Supremo

Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, com a autoria do Senador Antonio

Anastasia, foi proposto o Projeto de Lei n. 1.179/2020, para instituir normas de

caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito

Privado no período da pandemia do Coronavírus.

A grande preocupação legislativa era trazer maior segurança jurídica

durante a pandemia e evitar decisões conflitante entre os diversos tribunais do

Brasil, além de instituir normas que fossem transitórias para que não afetassem

entendimentos consolidados do Direito Privado. Buscava-se, ainda, preservações

de relações jurídicas, proteção de vulneráveis e proporcionar adequado equilíbrio

de posições em assuntos complexos e de difícil ponderação entre interesses79.

As consequências jurídicas da pandemia do novo Coronavírus nas relações

jurídicas privadas eram consideradas emergenciais e que careciam de

esclarecimentos jurídicos na jurisprudência e na doutrina. A dúvida de como seriam

solucionados os conflitos nas relações privadas ocasionados pela pandemia foi

fundamental para a criação da proposta de lei. Por ser uma situação totalmente

excepcional, poderiam surgir decisões judiciais com as mais diversas

fundamentações, o que poderia ocasionar grande insegurança jurídica.

79
Por exemplo, visando preservar relações jurídicas, o Projeto de Lei n. 1.179/2020 previa sobre a resilição,
resolução e revisão dos contratos; para proteção dos vulneráveis, havia previsão sobre Locações de Imóveis
Urbanos e, para as proporcionar adequado equilíbrio de posições em assuntos complexos e de difícil
ponderação entre interesses, foi proposto suspensão de prazos prescricionais, decadenciais e de usucapião.
Muito embora, ao sancionar a Lei n. 14.010/2020, o Presidente da República tenha vetado, dentre outros, os
dispositivos sobre a resilição, resolução e revisão dos contratos e sobre as locações de imóveis, o Congresso
Nacional rejeitou o veto.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Ademais, havia grande preocupação da utilização da pandemia como caso

fortuito e força maior, de forma generalizada, para fundamentar um possível não

cumprimento obrigacional, o que poderia frustrar a efetividade de vários contratos

pactuados antes da pandemia.

É de se destacar, além disso, que o legislador, atento às consequências

jurídicas que a pandemia poderia ocasionar nos contratos de locação de imóveis

urbanos, teve o cuidado de debater o assunto e propor um capítulo próprio para

essa modalidade contratual, com vistas a preservar ao máximo o direito

fundamental e social à moradia80.

A ocorrência da pandemia do novo Coronavírus é um fato transitório e, por

mais que possa demorar, em algum momento irá cessar, ora pela criação de uma

vacina contra o vírus, ora pela diminuição da propagação. Ou seja, por ser uma

situação temporária, havia um interesse legislativo para a criação de uma norma

igualmente transitória, mas com a manutenção de entendimentos tradicionalmente

consolidados no Direito Privado.

O Projeto de Lei 1.179/2020, após o trâmite no Congresso Federal, foi

sancionado pelo Presidente da República, dando origem à Lei n. 14.010/2020, que

entrou em vigor na data de sua publicação (publicada no D.O.U. de 12 de junho de

2020).

Dentre uma das importantes contribuições da referida lei, destaca-se o

artigo 10 da Lei n. 14.010/2020, que suspende os prazos para aquisição de

propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir

80
Na proposta inicial elaborada pelo Senador Antonio Anastasia, havia a possibilidade de suspensão do
pagamento dos alugueres das locações residenciais em razão de alteração econômico-financeira do locatário,
mas a proposta não logrou êxito e foi retirada do PL n. 1.179/2020. Sobre as locações de imóveis urbanos
entrou em vigor, tão somente, a disposição sobre a impossibilidade de concessão de liminar para desocupação
nas ações de despejo previstos no artigo 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei do Inquilinato (art. 9º da
Lei n. 14.010/2020).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da entrada em vigor da Lei até 30 de outubro de 2020. Cumpre discutir, então, qual

foi a razão legislativa para a referida medida e suas consequências jurídicas na

efetivação do direito à moradia, o que se passa a discutir.

2. RELAÇÃO ENTRE A USUCAPIÃO E O DIREITO À MORADIA

A usucapião é uma das formas de aquisição de direitos reais. Comumente,

associa-se a usucapião à aquisição de propriedade, mas é pacífico na doutrina que

a usucapião pode ensejar a aquisição de outros direitos reais (suscetíveis à

usucapião) como, por exemplo, o direito real de servidão (Enunciado 251 da III

Jornada de Direito Civil) e o direito real de laje (Enunciado 627 da VIII Jornada de

Direito Civil).

Como bem descreve Gustavo Tepedino, Carlos Edison do Rêgo Monteiro

Filho e Pablo Renteria (2020, p. 118 e 119), não há um consenso doutrinário definido

para o fundamentos jurídico da usucapião, podendo se falar em presunção de

abandono da coisa pelo titular do direito real, ou em segurança jurídica e

regularização da situação jurídica do possuidor, ou em função social da

propriedade. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira (2017, p. 121):

A tendência moderna, contudo, de cunho nitidamente objetivo,


considerando a função social da propriedade, há de inclinar-se no
sentido de que por ele se prestigia quem trabalha o bem usucapido,
reintegrando-o pela vontade e pela ação, no quadro dos valores
efetivos de utilidade social, a que a prolongada inércia do
precedente proprietário o condenará.

Qualquer que seja o seu fundamento, contudo, há que se verificar

casuisticamente os elementos da usucapião e verificar a ocorrência da aquisição do

345
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

direito real. A usucapião deve ser analisada com muito cuidado, pois, de um lado,

existe a aquisição da propriedade por aquele (usucapiente) que cumpriu todos os

requisitos da usucapião e, por outro, há um proprietário (ou titular de outro direito

real usucapível) que perde o seu direito real em decorrência de sua inércia em não

manifestar oposição à posse do usucapiente.

É de se atentar que há a plena possibilidade de o proprietário não fazer uso

de seu bem. É poder do proprietário usar, gozar, dispor e reaver o bem de quem

quer que injustamente o possua ou detenha, conforme o artigo 1.228 do Código Civil

(CC/02), mas como o próprio dispositivo preceitua, tais poderes são facultativos ao

proprietário, tanto é que, “confere ao titular o poder de decidir se deve usar a coisa,

abandoná-la, aliená-la, destruí-la, e, ainda, se lhe convém limitá-lo, constituindo,

por desmembramento, outros direitos reais em favor de terceiros” (GOMES, 2012,

p. 104).

Ou seja, nada impede que o proprietário não faça uso da coisa que lhe

pertence, pois o não uso do bem pelo titular do direito real, por si só, não acarreta a

perda da coisa pelo instituto da usucapião. É possível que o proprietário nada faça

com a seu bem e a propriedade continuar sendo de sua titularidade, até porque “a

inércia ostensiva contínua e ininterrupta do titular do direito real somente acarreta

a sua extinção quando há lesão a seu direito subjetivo levada a cabo pelo possuidor

que exerce as faculdades dominicais que lhe conferem a aparência de proprietário”

(TEPEDINO; MONTEIRO FILHO; RENTERIA, 2020, p. 128).

A aquisição da propriedade pela usucapião é excepcional, e, por isso, além

do não uso pelo proprietário, há de se comprovar a posse mansa e pacífica, além

dos outros requisitos elencados na lei para a configuração da usucapião.

A posse mansa e pacífica é requisito essencial para todas as modalidades de

usucapião, sem a qual não se mostra configurada a inércia do proprietário, ou do

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

titular do direito real, em não se opor à posse direta do usucapiente. Nas palavras

de Gustavo Tepedino, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Pablo Renteria (2020,

p. 124 e 125):

Considera-se posse mansa e pacífica quando não foi contestada pelo


proprietário da coisa, a qualquer título, judicial ou extrajudicial,
durante o decurso do prazo prescricional. Com isto, se o
proprietário toma medida com o fim de romper a continuidade da
posse, opondo-se ao exercício dos poderes inerentes à propriedade
pelo possuidor, impede a consumação do prazo prescricional.

Se o usucapiente comprova o não uso do bem pelo proprietário, só está a

demonstrar uma faculdade dada pelo ordenamento jurídico, mas se o proprietário

comprova que houve oposição à posse, está prejudicada a configuração da

usucapião, pois a posse não terá sido mansa e pacífica.

Fica evidente, na esteira dos pensamentos de Nelson Rosenvald (2019, p.

276), que, no Estado Democrático de Direito, além do direito e garantia fundamental

de propriedade, daquele que já a possui, há igualmente que se reconhecer o direito

de acesso à propriedade, daqueles que não a tem.

Em outras palavras, a Constituição cidadã estaria garantindo, igualmente,

o direito fundamental das pessoas a terem acesso à propriedade. Dessa forma, a

usucapião se mostra uma ferramenta que possibilita o acesso à propriedade,

sobretudo, quando há o interesse de efetivar o direito fundamental e social à

moradia.

A moradia é um direito constitucionalmente previsto no artigo 6º da Carta

Magna de 1988, introduzido pela Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de

2000. Nas palavras de José Afonso da Silva (2014, p. 189):

347
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O direito à moradia não é necessariamente direito à casa própria.


Quer-se que se garanta a todos um teto onde se abriguem com a
família de modo permanente, segundo a própria etimologia do
verbo “morar”, do latim morari, que significa “demorar”, “ficar”.
Mas a casa própria constitui o meio mais efetivo do direito à
moradia, cujo conteúdo envolve não só a faculdade de ocupar uma
habitação, mas também a habitação de dimensões adequadas, em
condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal
e a privacidade familiar.

A relação entre a usucapião e o direito à moradia pode se dar de duas

formas, ora o direito à moradia pode ser verificado como uma finalidade da

usucapião, ora ele integra um requisito para a configuração da usucapião.

Quando a usucapião é uma ferramenta para efetivar o direito à moradia, o

direito social é um fim; busca-se, por meio da usucapião, dar acesso à propriedade

e garantir o direito social à moradia e é esta efetivação que se busca com a usucapião.

Nesse sentido, a moradia não necessariamente configura um requisito para a

usucapião, mas esta será a ferramenta para a efetivação daquela.

Em contrapartida, o direito à moradia pode integrar como próprio requisito

à usucapião, sem o qual não se configurará a existência da aquisição do direito real.

Nesse aspecto, não se verificando a utilização do imóvel com intuito de moradia,

por falta de cumprimento de um requisito sine qua non, não estará configurado

aquela modalidade de usucapião.

Diante disso, fica claro que: (i) a usucapião com finalidade de efetivar o

direito à moradia pode ser observada em qualquer espécie de usucapião; (ii) o

direito à moradia, como requisito, é observado apenas em algumas das

modalidades de usucapião, não em todas, e (iii) as modalidades de usucapião que

têm o direito à moradia como requisito visam a efetivação do direito fundamental

e social à moradia.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

É importante ressaltar que a usucapião para finalidade de efetivar o direito

à moradia pode ser observada em qualquer espécie de usucapião, em uma acepção

genérica. Casuisticamente, não são todas as usucapiões que vão apresentar a

finalidade de efetivar o direito à moradia. Pode ocorrer, por exemplo, de o

usucapiente querer a aquisição da propriedade apenas para alugar o imóvel, o que

não demonstra a finalidade de efetivar o direito à moradia. A finalidade de efetivar

tal direito social pode ser observada em qualquer espécie de usucapião, basta que o

usucapiente busque a aquisição da propriedade para tal finalidade,

independentemente da modalidade de usucapião.

A título ilustrativo, basta imaginar uma pessoa que possui como sua área

urbana com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, nela construindo uma

edificação para sua moradia. O direito à moradia não é um requisito para a

configuração da usucapião, mas a usucapião extraordinária efetivará o direito à

moradia, tão somente se verificando os requisitos temporal e de posse mansa,

pacífica e ininterrupta.

Por outro lado, o direito à moradia como requisito não é observado em

todas as modalidades de usucapião, pois apenas algumas espécies trazem a

moradia como um elemento essencial. É possível observar a moradia como requisito

na usucapião especial urbana (artigo 1.240 do Código Civil), na usucapião especial

rural (artigo 1.239 do Código Civil) e na usucapião familiar (artigo 1.240-A do

Código Civil). É de se verificar, ainda, a moradia como elemento para reduzir o

prazo de usucapião extraordinária, conforme o artigo 1.238, parágrafo único, do

Código Civil.

A moradia, nesse caso, compõe um dos elementos caracterizadores de

determinada modalidade de usucapião, de modo que, uma vez verificada a não

utilização do imóvel para moradia, a própria configuração da usucapião se mostra

349
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

prejudicada, pois é requisito sine qua non para a aquisição da propriedade por aquela

espécie de usucapião.

Verifica-se, nas modalidades de usucapião que possuem a moradia como

requisito, que há nelas, consequentemente, a finalidade de efetivar o direito à

moradia. Ou, ao menos, o legislador assim presume. Tanto é assim que, quando há

tal propósito, o legislador diminui consideravelmente o prazo mínimo de posse

exigido para a configuração da usucapião. A usucapião extraordinária, por

exemplo, se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual,

reduz para dez anos o prazo para a usucapião (artigo 1.238, parágrafo único, do

Código Civil), o que significa uma redução de 33,33% (um terço) do prazo exigido

originalmente.

Da mesma forma, observa-se que as modalidades que têm a moradia como

requisito, possuem prazos consideravelmente menores, exatamente, visando a

finalidade de efetivar tal direito fundamental e social. Na usucapião especial urbana

e rural, o prazo mínimo exigido por lei é de cinco anos e, na usucapião familiar, o

prazo legal é de dois anos.

A relevância do direito fundamental de acesso à propriedade, bem como a

efetivação do direito social à moradia por via da usucapião, se verifica na previsão

constitucional de duas dessas modalidades de aquisição de propriedade.

Destaca-se que a usucapião especial urbana (pro moradia) encontra sua

previsão no Código Civil (artigo 1240), no Estatuto da Cidade (artigos 9º a 13) e na

Constituição Federal, que assim dispõe:

Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e


cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e
sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família,

350
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro


imóvel urbano ou rural. (art. 183, CRFB/88)

Da mesma forma, a usucapião especial rural é disciplinada no Código Civil

(artigo 1.239) e na Constituição Federal, que dispõe que:

Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano,


possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área
de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares,
tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela
sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. (artigo 191 da
CRFB/1988)

Fácil é observar que é essencial, para a usucapião especial urbana e para a

usucapião especial rural, que o imóvel sirva de moradia para o possuidor direto ou

para a sua família, de forma que a usucapião é uma ferramenta para concretizar o

direito à moradia digna, e, consequentemente, dar acesso à propriedade. Na

usucapião especial rural, além da moradia, é essencial que a utilização da área rural

a torne produtiva pelo trabalho do usucapiente ou de sua família, por isso tal

modalidade é conhecida, também, como usucapião pro labore.

No caso da usucapião especial urbana, Gustavo Tepedino, Carlos Edson do

Rêgo Monteiro Filho e Pablo Renteria (2020, p. 137) entendem que “a moradia

insere-se no rol de direitos sociais (CF, art.6º) e a usucapião especial urbana se

apresenta como um dos instrumentos de sua realização”. Até por isso exige-se que

o usucapiendo não tenha outro imóvel, reconhecendo uma única vez, ao mesmo

possuidor, o direito à aquisição de propriedade, pela usucapião especial urbana.

Denota-se que o usucapiente pode adquirir outras propriedades pela

usucapião, desde que seja de outra modalidade. Ou seja, uma vez que se reconheça

a usucapião especial urbana, não é possível que a mesma pessoa adquira a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

propriedade de outro imóvel por essa modalidade de usucapião, mas é possível que

haja reconhecimento por outra modalidade. Se uma pessoa adquiriu uma

propriedade pela usucapião especial urbana, pode a mesma pessoa adquirir outra

propriedade pela usucapião extraordinária. O que não pode ocorrer é o inverso,

pois se a pessoa tiver adquirido uma propriedade pela usucapião extraordinária,

não seria possível a posterior declaração de usucapião especial urbana, pois é

requisito desta última que o usucapiente não possua outro imóvel.

A usucapião familiar, por sua vez, foi incluída no Código Civil pela Lei n.

12.424/2011, e possui sua previsão no artigo 1.240-A do Código Civil, que assim

dispõe:

Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem


oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de
até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja
propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que
abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família,
adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário
de outro imóvel urbano ou rural. (artigo 1.240-A do CC/02)

Fácil e identificar que se trata de uma modalidade muito similar à

usucapião especial urbana. Aliás, os requisitos que se verifica nesta são também

identificadas naquela, com duas peculiaridades: o tempo de posse e o abandono do

lar pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro. Na usucapião familiar, então, a usucapião

recai sobre a parte da propriedade que pertence ao ex-cônjuge ou ex-companheiro

que abandonou o lar, sendo exigido um prazo de apenas dois anos.

Nesse caso, a efetivação do direito social à moradia, embora se verifique,

não é tão presente quanto na usucapião especial urbana. Não há dúvida de que a

efetivação do direito à moradia se encontra presente, tendo em vista que há a

exigência de que o usucapiente não seja proprietário de outro imóvel e, assim,

352
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

efetivar ali a sua moradia. Mas sua finalidade maior é “agilizar a partilha de bens

do casal, em decorrência do fim do casamento ou da união estável” (TEPEDINO;

MONTEIRO FILHO; RENTERIA, 2020, p. 141).

Longe de se discutir a polêmica envolvendo o instituto da usucapião

familiar, fato é que o legislador dispôs, com a saída do ex-cônjuge ou ex-

companheiro do imóvel, a presunção legal de que o abandono do lar e a não

oposição (e a não providência da partilha) configura uma abdicação da porção de

sua propriedade em favor daquele que continuou no lar, o que permitiria ao

usucapiente a aquisição do domínio integral do imóvel, efetivando ali a sua

moradia.

Uma vez verificada a relação existente entre a usucapião e o direito

fundamental e social à moradia, passa-se a verificar a razão legislativa para a

suspensão de prazos para aquisição de propriedade, nas diversas modalidades de

usucapião, e as consequências jurídicas da medida para a efetivação do direito à

moradia.

3. SUSPENSÃO DE PRAZOS PARA AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE. A

RATIO LEGIS. AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS PARA A EFETIVAÇÃO DO

DIREITO À MORADIA.

A regra geral, no Direito brasileiro, é que o tempo flui ininterruptamente, a

concretizar a ocorrência de prescrição, decadência e usucapião, conforme o caso.

Contudo, é possível que haja, para fins jurídicos, a paralização da contagem do

tempo para evitar que o transcurso do tempo produza seus efeitos regulares.

Antes da ocorrência da pandemia do novo Coronavírus já era possível

verificar a ocorrência de interrupção, impedimento e suspensão dos prazos de

353
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

usucapião, nos termos do artigo 1.244 do Código Civil vigente. Contudo, o

dispositivo faz referência às causas de interrupção, impedimento e suspensão dos

prazos prescricionais, de forma que somente quando verificada uma das hipóteses

taxativamente elencadas para a prescrição é que haverá a possibilidade de

interrupção, impedimento e suspensão do prazo para a usucapião.

Em decorrência da pandemia do novo Coronavírus, o artigo 10 da Lei n.

14.010/2020, passou a dispor sobre a suspensão de prazos de aquisição para a

propriedade mobiliária e imobiliária, nas diversas modalidades de usucapião,

durante o período da pandemia. Com isso, o prazo fica suspenso desde a entrada

em vigor da lei e o restante do prazo, conforme o artigo, só volta a correr após o dia

30 de outubro de 2020.

Como já mencionado, é requisito essencial para a configuração da

usucapião que a posse seja mansa e pacífica, o que significa dizer que a posse deve

ser sem oposição do titular do direito real. Ou seja, o proprietário, para evitar a

consumação da usucapião deve reaver o bem, pelo seu poder de sequela, ou, no

mínimo, manifestar oposição à posse do usucapiente.

Verifica-se, com a pandemia do novo Coronavírus, que a Administração

Pública passou a adotar medidas para restringir a locomoção de pessoas, com a

finalidade de evitar grande circulação de pessoas em locais públicos, aglomerações,

propagações do vírus e aumentar a medida de isolamento social, sendo o lockdown

o procedimento mais radical de confinamento.

Então, verifica-se, por um lado, que o proprietário precisa manifestar

oposição à posse para não ver efetivada a usucapião em sua propriedade e, por

outro, que medidas estatais (fato do príncipe) dificultam ou até impedem a

locomoção do titular até a sua propriedade, o que torna precária a possibilidade de

reaver o bem ou de manifestar sua oposição à posse do usucapiente.

354
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Se a oposição não ocorre por fato alheio à vontade do titular do direito real,

não é razoável que o prazo de usucapião corra contra ele. Resta claro que o

legislador buscou tutelar o direito fundamental de propriedade, para evitar que

injustiças sejam cometidas contra o proprietário.

Dessa forma, é perceptível que a razão legislativa para a suspensão de

prazos de aquisição de propriedade pela usucapião é a dificuldade ou a

impossibilidade de o proprietário se locomover para manifestar sua oposição à

posse do usucapiente em sua propriedade, dada as medidas adotas pelo poder

público para evitar a propagação do novo Coronavírus.

Contudo, ao momento em que se propõe a suspensão de prazos de

aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de

usucapião, indistintamente, embora tecnicamente se fale em suspensão de prazo de

aquisição, o que ocorre de fato é o aumento do lapso temporal exigido para a

usucapião.

Se a posse ininterrupta é um requisito para a usucapião, embora o prazo

para a aquisição fique suspenso, a posse não pode ser interrompida, sob pena de

não cumprir esse requisito da usucapião. Então, verifica-se que o usucapiente deve

se manter na posse direta do bem para cumprir o requisito da posse ininterrupta,

mas esse tempo não será contabilizado para fins de usucapião em decorrência da

suspensão.

Dessa forma, se a posse deve ser ininterrupta e a lei exige o prazo mínimo

de cinco anos para usucapião especial urbana, por exemplo, se, factualmente, o

tempo não para e, juridicamente, a contagem do prazo fica suspenso, ocorre que, no

aspecto fático, o prazo para a aquisição fica maior, pois além dos cinco anos exigidos

legalmente, há o tempo que o prazo fica paralisado e que o usucapiente precisa se

manter na posse direta.

355
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Observa-se que, no período entre a entrada em vigor da lei e o dia 30 de

outubro de 2020, o prazo para a aquisição de propriedade fica suspenso, o que

significa dizer que nenhuma modalidade de usucapião irá se completar nesse

período, pois não se contabiliza, para o requisito temporal, os dias que estão

suspensos. Mas, por outro lado, pode ocorrer de o proprietário do imóvel, mesmo

diante das dificuldades e das proibições de locomoção, vir a reaver o seu bem ou a

se opor à posse durante esse período de suspensão do prazo, o que frustraria a

efetivação da usucapião.

Embora a razão legislativa para a suspensão do prazo de aquisição de

propriedade pela usucapião seja a dificuldade ou o impedimento de locomoção

para o titular do direito real manifestar sua oposição à posse em seu bem, em

decorrência de medidas estatais para conter a propagação do novo Coronavírus,

pode ocorrer, eventualmente, de o proprietário conseguir reaver o bem ou se opor

à posse em sua propriedade durante esse período, ora pela falta de fiscalização, ora

por pequenas medidas de contenção à locomoção adotadas ou, até mesmo, por

pouco contágio na região e a desnecessidade de medidas estatais para a contenção

da propagação.

Então, se o prazo fica suspenso para a aquisição de propriedade, nas

diversas modalidades de usucapião, além do tempo não se contabilizar para fins de

usucapião, pode ocorrer de, durante esse prazo suspenso, o proprietário vir a

manifestar sua oposição. Ou seja, se o titular do direito real se opõe à posse, há a

frustração da usucapião, pois a posse não será mais mansa e pacífica, requisito

essencial para a efetivação da usucapião, qualquer que seja a sua modalidade.

Não há dúvida que, quanto maior o prazo exigido pela lei, para o

cumprimento do requisito temporal da usucapião, maior o risco para o usucapiente

e maior a segurança para o proprietário. Isso porque o primeiro tem que cumprir

356
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

todos os requisitos legais, durante todo o tempo de posse, para ver configurada a

aquisição do direito real, e o segundo, tem mais tempo para reaver o bem de quem

quer que injustamente o possua ou, ao menos, para manifestar sua oposição à posse

direta do usucapiente.

É de se observar, então, que o principal prejudicado pela suspensão do

prazo aquisitivo é o possuidor direto que está na iminência de completar o prazo de

usucapião. Aquele que acabou de iniciar a posse direta do bem, ainda que

prejudicado, terá vários outros meses que deverá cumprir para a aquisição da

propriedade; aquele que está prestes a completar o prazo legal, contudo, corre o

risco de não concretizar a usucapião em decorrência da suspensão do prazo, tendo

em vista que pode ser frustrado na configuração da usucapião caso o titular do

direito real manifeste sua oposição durante o período em que o prazo se encontra

suspenso.

Basta imaginar duas pessoas, que se encontram na posse mansa, pacífica,

ininterrupta, cada qual em um imóvel. Uma delas, na posse direta há 14 anos e 5

meses; a outra, com 2 anos de posse direta. Para a configuração da usucapião

extraordinária, fica claro que a suspensão do prazo se torna um risco maior para

quem possui mais tempo de posse, do que para o outro possuidor que possui menos

tempo de posse81, uma vez que o primeiro está na iminência de completar o prazo

aquisitivo de propriedade pela usucapião, ao passo que o segundo está muito longe

de completar o prazo legal exigido.

De igual modo, pode-se pensar nas proporções do que essa suspensão irá

aumentar no tempo fático para cada modalidade de usucapião. Se, por um lado,

81
É de se prestigiar que, um proprietário que fica mais de 14 anos inerte, sem manifestar oposição à posse
direta do usucapiente, muito provavelmente não irá manifestar oposição ou reaver o bem, ainda que haja
suspensão do prazo aquisitivo. Mas, ainda assim, é de identificar o risco, uma vez que o prazo fica suspenso
para a contagem do prazo de aquisição e pode ocorrer a oposição, pelo proprietário, durante a suspensão.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

quanto maior a relevância da usucapião o prazo para a efetivação da usucapião é

menor, por outro, se o prazo ficará suspenso pelo mesmo tempo,

independentemente da espécie de usucapião, significa que o aumento fático do

tempo será proporcionalmente maior nas modalidades de usucapião com grande

relevância jurídica.

Para ficar claro, basta observar a usucapião extraordinária e a usucapião

familiar. A primeira possui o prazo mínimo de quinze anos exigidos para a

usucapião e a segunda possui o prazo legal de apenas dois anos. Dessa forma, se o

prazo ficará suspenso por pouco mais de quatro meses82 (se não houver alteração

legislativa no termo final83), para todas as modalidades de usucapião, o aumento

factual de prazo será maior, proporcionalmente, na usucapião familiar do que na

usucapião extraordinária84.

Dessa forma, ao se analisar a ratio legis para a suspensão do prazo de

aquisição de propriedade para bens móveis e imóveis, nas diversas modalidades de

usucapião e a repercussão da medida nos prazos de usucapião em andamento, é

possível verificar que a Lei n. 14.010/2020 buscou privilegiar o direito do

proprietário, que se vê privado da possibilidade de defender presencialmente o seu

direito, não sendo, por outro lado, uma medida adequada a tutelar o direito social

à moradia, tendo em vista que o usucapiente se vê prejudicado com a medida.

Mostra-se nítida, assim, a prevalência do direito fundamental de propriedade, em

82
Pois a lei entrou em vigor na data de sua publicação (publicado no DOU de 12.6.2020) e o termo final previsto
no artigo 10 da Lei n. 14.010/2020 é dia 30 de outubro de 2020.
83
O termo final elaborado pelos legisladores leva em consideração que até 30 de outubro de 2020 haverá uma
melhora na contenção da propagação do Covid-19 e presume que até o termo final já estará normalizado as
situações de locomoção e mobilidade, que foi a ratio legis para a propositura da suspensão de prazos de
usucapião.
84
Na situação fática, tendo em vista que o tempo não para, o aumento desse prazo suspenso na posse
ininterrupta da usucapião familiar corresponde à aproximadamente 17% (4 meses e 19 dias + 24 meses), já
para a usucapião extraordinária, o aumento corresponde à aproximadamente 2,5% (4 meses e 19 dias + 180
meses).

358
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

detrimento do direito fundamental de acesso à propriedade e do direito social à

moradia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consta salientar que a criação da Lei n. 14.010/2020 é muito relevante, pois

visa trazer efeitos emergenciais e transitórios para solucionar possíveis conflitos que

possam afetar relações jurídicas de direito privado em decorrência da pandemia do

Coronavírus. Objetivou-se no presente trabalho analisar a razão do legislador criar

a regra para suspender o prazo para aquisição de propriedade, nas diversas

modalidades de usucapião, e as repercussões dessa medida para os prazos em

curso, pois houve a indagação se tal escolha legislativa se configuraria como a mais

adequada a tutelar o direito à moradia.

A suspensão visa privilegiar o proprietário que, em virtude das medidas

adotadas pelo poder estatal (fato do príncipe), não pode, ou possui grandes

limitações para a defesa de seu direito real. A ratio legis para a suspensão do prazo

de aquisição de propriedade para os bens móveis e imóveis, nas diversas

modalidades de usucapião, são as medidas adotadas pela Administração Pública

para conter a propagação do novo Coronavírus e os consequentes reflexos na

locomoção e na acessibilidade do proprietário para defender os seus direitos e se

opor à posse direta do usucapiente em um bem de sua propriedade.

Se a impossibilidade ou dificuldade de defender seus direitos e se opor à

posse do usucapiente decorre de um fato estranho à vontade do proprietário (ou do

titular de outro direito real), não é razoável o prazo de usucapião correr em desfavor

dele. Isso significa dizer que o legislador, então, preferiu a proteção e a garantia do

direito fundamental de propriedade para não haver injustiças contra o titular do

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

direito real em decorrência de um fato não imputável a ele. Com a suspensão do

prazo, nenhuma aquisição de propriedade irá ocorrer pela usucapião desde a

entrada em vigor da Lei n. 14.010/2020 até o dia 30 de outubro de 2020.

A proposta, contudo, parece não levar em consideração a existência de

modalidades de usucapião de grande relevância social, tais como a usucapião

especial urbana e a rural. Há o prejuízo considerável ao possuidor direto que se

encontra no bem com a finalidade de constituir um lar, no caso da usucapião

especial urbana, e de estabelecer uma moradia na área de terra, tornando-a

produtiva, no caso da usucapião especial rural.

Ocorre que, factualmente, o tempo não para. O que significa dizer que,

indiretamente, a proposta está a aumentar o tempo necessário para a configuração

da usucapião pelo possuidor direto do bem. Isso porque a posse deve ser

ininterrupta, mas o tempo que o usucapiente permanece no imóvel durante o prazo

de suspensão não lhe favorece, pois, juridicamente, não se contabiliza esse período

suspenso para fins de usucapião.

O tempo, na usucapião, possui grande relevância. Quanto maior o tempo

exigido, maior é o risco do usucapiente de não ver concretizado a aquisição de

propriedade, e maior a segurança do titular do direito real, uma vez que terá mais

tempo para manifestar sua oposição.

Além de o prazo não favorecer o usucapiente, pode haver proveito da

suspensão pelo proprietário, pois, embora o tempo se encontre paralisado para fins

de aquisição pela usucapião, pode ocorrer, durante o período da suspensão, a

oposição à posse do usucapiente, o que frustraria a configuração da usucapião e,

consequentemente, a efetivação do direito social à moradia.

Além disso, com a suspensão do prazo de aquisição de propriedade pela

usucapião, de forma indistinta, há um aumento fático muito maior,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

proporcionalmente, do tempo necessário para a usucapião nas modalidades de

maior relevância jurídica.

Isso não significa dizer, por óbvio, que a Lei n. 14.010/2020 visou prejudicar

os usucapientes de efetivar o direito social à moradia e o direito fundamental de

acesso à propriedade, até porque é de elevada relevância a razão legislativa para a

suspensão do prazo de aquisição de propriedade pela usucapião. Mas fica claro que

a escolha legislativa não se configura como a mais adequada a tutelar o direito social

à moradia. A efetivação do direito à moradia pelo mecanismo da usucapião

(sobretudo a especial urbana, rural e familiar) se mostra afetada pela medida, tendo

em vista a possibilidade de a usucapião se frustrar pela oposição do proprietário

enquanto suspenso o prazo de aquisição de bens mobiliários e imobiliários, nas

diversas modalidades de usucapião.

Em suma, a escolha legislativa privilegiou o direito do proprietário, que se

vê privado da possibilidade de defender presencialmente o seu direito real ou, no

mínimo, com grande dificuldade de se opor à posse direta do usucapiente. A

medida não se configura como a mais adequada para a tutela do direito social à

moradia. Houve, assim, a preferência pela tutela do direito fundamental de

propriedade em detrimento do direito social à moradia e do direito fundamental de

acesso à propriedade.

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MÃES TRABALHADORAS NA PANDEMIA DA COVID-19

Flaiza Sampaio Silva85


Isabela Miguel de Carvalho86
Izabelle Maria Patitucci de Azevedo87

RESUMO
A Pandemia do COVID-19 que fora declarada em 11/03/2020 pela Organização Mundial de
Saúde – OMS, trouxe consigo medidas de restrições de funcionamento de setores do
mercado de trabalho, bem como o isolamento social. Após 6 (seis) meses, o colapso
aconteceu e alguns governos trabalham para a flexibilização das medidas antes
estabelecidas, mesmo que a curva do contágio ainda se encontre em ascensão e não em
declínio. A maioria das empresas optou por reinventar sua forma de trabalho. Aos
trabalhadores que prestam serviços de escritório, a alternativa encontrada fora o home
office, ou seja, o trabalho remoto, podendo ser realizado da casa do funcionário, sem
necessidade de deslocamento. O objetivo é demonstrar que, além do trabalho doméstico
não remunerado, da reprodução social e dos salários inferiores, a mulher, mais uma vez foi
a mais penalizada com a decretação da quarentena em razão da pandemia em nosso país.
Conforme exposto, busca-se demonstrar como as consequências do isolamento social em
virtude do Covid-19 serão sentidas majoritariamente pelos grupos historicamente
marginalizados, ressaltando e potencializando formas discriminatórias machistas e
patriarcais.

Palavras-chave: Mulheres; Pandemia; COVID 19; Mercado de Trabalho

ABSTRACT
The COVID-19 pandemic that was declared on 03/11/2020 by the World Health
Organization, brought with it measures to restrict the functioning of sectors of the labor
market, as well as social isolation. After 04 (four) months, the collapse happened and some
governments are working to relax the measures previously established, even though the
contagion curve is still on the rise and not on the decline. Most companies have chosen to
reinvent their way of working. For workers who provide ―office‖ services, the alternative
found outside the ―home office‖, that is, remote work, can be carried out from the

85
Advogada, Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense.
flaiza.sampaio@gmail.com; http://lattes.cnpq.br/8155863064103422
86
Advogada, Mestranda em Direito e Políticas Públicas pela Unirio. isabela.miguelc@gmail.com ;
http://lattes.cnpq.br/7801638912592469
87
Advogada, Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense, Pós Graduada em
Direito de Família e Sucessões pela UCAM. izabellepatitucci@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3329943370732610

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

employee's home, without the need to travel. The objective is to demonstrate that, in
addition to unpaid domestic work, social reproduction and lower wages, women, once
again, were the most penalized with the decree of quarantine due to the pandemic in our
country. Demonstrate how the consequences of social isolation due to Covid -19 will be felt
mostly by historically marginalized groups, highlighting and enhancing sexist and
patriarchal forms of discrimination.

Keywords: women; pandemic; Covid-19; job Market.

INTRODUÇÃO

O trabalho do cuidado e o doméstico foi atribuído historicamente e de

maneira arbitrária às mulheres, grupo historicamente marginalizado, e socialmente

responsável pelo dever de cuidar da casa e da maternidade, e por este motivo é um

dos grupos que mais sofre consequências com a política de isolamento social, em

consonância com a manutenção da dupla jornada de trabalho.

Nos referindo apenas a este grupo elitizado de trabalhadores, encontramos

as mulheres, que possuem, além da carga horária de trabalho externo, tiveram que

agregar o trabalho doméstico e a educação dos filhos. Com as instituições de ensino

estão fechadas, sendo elas públicas ou privadas, a mulher, além de enfrentar a sua

carga de jornada maior que seu companheiro, tem que arcar com a educação

domiciliar.

A presente pesquisa busca demonstrar a necessidade de mudança nos

paradigmas sociais para equilíbrio da saúde mental de grupos minoritários, em

contraste com o movimento e teoria feministas, para que haja a efetividade da

igualdade de gênero, conforme previsão constitucional.

A metodologia utilizada será análise documental e de dados; análise

constitucional e legal com viés jurídico-sociológico.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. A PANDEMIA DO COVID-19 E O TELE TRABALHO

A Covid-19 é uma doença infecciosa causada pelo novo coronavírus, o qual foi

identificado pela primeira vez em dezembro de 2019, em Wuhan, na província de

Hubei, na China, conforme dados fornecidos pela Organização Mundial da Saúde.

Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou que o surto

da doença causada pelo novo coronavírus constituía uma Emergência de Saúde

Pública de Importância Internacional, ou seja, o mais alto nível de alerta da

Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional.

A lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispôs sobre as medidas para

enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional,

decorrente do novo coronavírus, a qual previu, entre outras medidas, a

possibilidade de adoção de isolamento e quarentena.

A folha informativa COVID-19 – Escritório da OPAS e da OMS no Brasil,

confirmou o primeiro caso do novo coronavírus no Brasil na cidade de São Paulo,

em 26 de fevereiro de 2020.

Logo após, em 11 de março de 2020, A Organização Mundial da Saúde

caracterizou o novo coranavírus como uma pandemia. Tendo em vista o

alastramento da doença, em 13 de março de 2020 o Ministério da Saúde

regulamentou critérios de isolamento e quarentena, de acordo com a linha do tempo

disponibilizada pelo site Sanar Med.

Dessa forma, em 16 de março de 2020, o governador do estado do Rio de

Janeiro, por meio do decreto nº 46.973, já revogado, determinou a suspensão de

eventos e atividades com presença do público que envolvesse aglomeração, como

cinemas, teatros, aulas presenciais, por exemplo, bem como recomendou restrições

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

para restaurantes, bares, academias, shoppings, entre outras, com base no estado de

emergência no âmbito do Estado.

Em meio a esse contexto, a Organização Internacional do trabalho declarou que,

com as referidas medidas de restrição e consequente fechamento de diversas

atividades, além da ameaça a saúde pública, o mundo do trabalho foi

profundamente atingido, com impactos econômicos e sociais, afetando os meios de

subsistência. Para tanto, foram necessárias alternativas a continuidade e

preservação dos trabalhos, como por exemplo, o tele trabalho.

O tele trabalho passou a ser regulado em novembro de 2017, por meio da lei

13.467/2017, conforme os artigos 75-A e seguintes da CLT, sendo que “considera-se

tele trabalho a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do

empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que,

por sua natureza, não se constituam como trabalho externo”. (CLT, art. 75B)

Para permitir o enfretamento dos impactos da Covid-19, a Medida Provisória

927/2020, sem validade desde 19 de julho de 2020, trouxe um conjunto de

alternativas flexibilizadas em relação a legislação ordinária, como por exemplo, o

teletrabalho obrigatório, que antes da pandemia era considerado exceção.

Assim, na vigência da MP 927/2020 não era necessário mudar o contrato de

trabalho para que todos os colaboradores, estagiários e aprendizes trabalhassem

remotamente. O empregador poderia, unilateralmente, alterar o regime do

empregado de presencial para o teletrabalho, desde que fossem avisados com pelo

menos, 48 (quarenta e oito) horas de antecedência.

Todavia, faz-se necessária a livre manifestação da vontade do trabalhador para

atuar no regime de teletrabalho, uma vez que a produtividade do trabalhador neste

regime é controlada com maior rigor, bem como não existe uma separação do

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

espaço-tempo dedicado entre o trabalho e a família/lazer. (PRATA, Marcelo

Rodrigues; FILHO, Eduardo Pragmácio, 2020. P. 333)

Além disso, o tele trabalho promove o isolamento do obreiro, o que torna

difícil sua ascensão profissional e a luta sindical por novas conquistas. (PRATA,

Marcelo Rodrigues; FILHO, Eduardo Pragmácio, 2020. P. 333)

De lado outro, com o teletrabalho o trabalhador possui uma jornada mais

flexível, poupa tempo com deslocamentos e passa mais tempo em contato com a

família.

Ainda, através da nota técnica nº 6, publicada em 22 de março de 2020, o

Ministério Público do trabalho pronunciou-se no sentido da priorização do tele

trabalho como medida de enfretamento, conforme abaixo:

VI. PRIORIZAÇÃO DE MEIOS ALTERNATIVOS PRÉVIOS


AQUALQUER PLANO DE DEMISSÃO VOLUNTÁRIA
(OUEQUIVALENTE) OU DISPENSA DE TRABALHADORES, com
privilegiamento da negociação coletiva e/ou do diálogo com as
entidades sindicais, para análise e adoção de medidas de redução
de impacto na manutenção do emprego e da renda dos
trabalhadores, observando-se o princípio da irredutibilidade
salarial, com a obrigatoriedade de adoção gradativa de medidas de
menor impacto aos trabalhadores, como: a. Adoção de trabalho
remoto (teletrabalho/home office); b. Flexibilização de jornada; c.
Redução de jornada e adoção de banco de horas; d. Concessão
imediata de férias coletivas e individuais; sem a necessidade de pré-
aviso de 30 dias de antecedência e/ou notificação de com 15 dias de
antecedência para o Ministério da Economia, cientificando-se a
entidade sindical representativa, antes do início das respectivas
férias (MPT, 2020);

Dentre as orientações gerais recomendas pelo ministério da Economia aos

trabalhadores e empregadores em razão da pandemia da Covid-19, através do ofício

Circular SEI nº 1088/2020/ME, publicado em de 27 de março de 2020, uma das

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

medidas necessárias para promover o achatamento da curva de contágio foi a

promoção do teletrabalho ou trabalho remoto, com a intuito de evitar

deslocamentos de viagens e reuniões presenciais, utilizando recurso de áudio e/ou

videoconferência.

O teletrabalho, em virtude da pandemia do Covid-19, tornou-se uma tendência

no mundo todo, ganhando visibilidade e com grande potencial de crescimento em

diversos países. A Análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada apontou

que o formato poderá ser adotado em 22,7% das ocupações nacionais, alcançando

mais de 20 milhões de pessoas, o que colocaria o Brasil na 45ª posição mundial no

ranking do trabalho remoto.

Para mais, o resultado do estudo “Potencial de teletrabalho na pandemia: Um

Retrato no Brasil e no Mundo”, realizando pelo IBGE, demonstra que o maior

potencial de teletrabalho foi identificado no Distrito Federal, sendo que 31,6% dos

empregos podem ser executados de forma remota, seguidos por São Paulo, com

27,7% e Rio de Janeiro 26,7%.

Entretanto, ainda é prematuro afirmar que as modalidades de trabalho que

surgiram ou cresceram no cenário pandêmico terão o mesmo comportamento após

o fim do isolamento.

Por fim, insta registrar que até 14 de agosto de 2020 foram confirmados no

mundo 20.730.456 milhões de casos de Covid-19 e 751.154 mil mortes, segundo a

OMS, sendo certo que, no Brasil, foram 3.278.895 milhões de infectados e 106.574

mil mortes, segundo o Consórcio de Veículos de imprensa.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

2. REFLEXOS DA DOMINAÇÃO PATRIARCAL

Momentos de crise ressaltam as desigualdades vividas previamente na

sociedade. Como ressalta Santos:

“Desde o século XVII, os três unicórnios são o capitalismo, o


colonialismo e o patriarcado. São os modos de dominação
principais. Para dominarem eficazmente têm de ser destemperados,
ferozes e incapazes de se dominar, como adverte Da Vinci. Apesar
de serem omnipresentes na vida dos humanos e das sociedades, são
invisíveis na sua essência e na essencial articulação entre eles. A
invisibilidade decorre de um sentido comum inculcado nos seres
humanos pela educação e pela doutrinação permanentes. Esse
sentido comum é evidente e é contraditório ao mesmo tempo. Todos
os seres humanos são iguais (afirma o capitalismo); mas, como há
diferenças naturais entre eles, a igualdade entre os inferiores não
pode coincidir com a igualdade entre os superiores (afirmam o
colonialismo e o patriarcado).” (SANTOS, 2020, p. 12)

O patriarcado é um modelo sócio-cultural de dominação com reflexos

econômicos que se difunde na Humanidade desde a Antiguidade e se perpassa até

os dias de hoje. Os seres detentores do poder e de suas estruturas são os homens,

enquanto as mulheres e outros seres são infantilizados, inferiorizados e diminuídos,

tendo-lhes o espaço público negado.

Com o avanço dos estudos e teorias feministas, fez-se necessário a

atualização do conceito de patriarcado, com base em estudos realizados por

feministas. Facio e Fries trazem:

“Para algumas feministas, o patriarcado é: a manifestação e


institucionalização do domínio masculino sobre as mulheres e as
crianças da família, em um domínio que se estende a sociedade em
geral. Implica que os homens tem poder em todas as instituições
importantes da sociedade e que priva as mulheres para que não

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

tenham nenhum tipo de poder, nem direitos, nem influências ou


recursos.” (FACIO. FRIES, 1999, p. 45)

O conceito de patriarcado exposto por estas feministas adentram a conceituação

atual, por além da vivência regional da América Latina. Com isso, elas acrescentam

que “para outras feministas, o patriarcado significa uma tomada de poder histórica

por parte dos homens sobre as mulheres cujo agente ocasional foi a ordem biológica,

se bem elevado esta a categoria política e econômica.” (FACIO; FRIES, 1999, p. 45)

Isto exposto, observa-se que o patriarcado generaliza e institucionaliza o sexo

biológico na sociedade, impondo (utiliza-se o gerúndio por ser ainda um sistema

vigente) determinados papéis sociais pautados pela determinação da genitália,

afastando toda e qualquer definição de gênero e definindo, no nascimento, o papel

que aquele ser humano desempenhará na sociedade, bem como características

prévias e adequadas a eles.

Ao se abarcar a ideia do papel social desempenhado na sociedade por homens

e mulheres, Facio e Fries dissertam:

“Poderíamos dizer que dos homens em nossas sociedades


caribenhas e latino americanas se espera um comportamento
racional, produtivo, agressivo, etc.., ou pelo menos se acredita que
os homens não deveriam ser irracionais, dependentes, passivos ou
doces; e das mulheres se espera e se acredita que são doces,
sensíveis, passivas, caseiras, maternais ou pelo menos que não
deveríamos ser agressivas, fortes, independentes, etc. Assim, ainda
que nós mulheres sejamos fortes e independentes e ainda que nos
tenha tocado viver com homens que não são para nada ativos ou
produtivos, seguimos acreditando que “o homem” é o que a cultura
dominante nos diz que é e que “a mulher” é o que a cultura
dominante nos diz que é.” (FACIO; FRIES, 1999, p. 45)

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Deste modo, tem-se o sexo biológico atrelado para determinar e estabelecer aos

papeis sociais de gênero e garantir a manutenção da dominação e opressão do

homem pela mulher, do masculino pelo feminino, que é o patriarcado. Atualmente,

as opressões patriarcais são silenciosas, com alguns destaques, porém, com

destaque exacerbado em momentos de crise. Boaventura traz que:

Finalmente, o patriarcado induz a ideia de estar moribundo ou


enfraquecido em virtude das vitórias significativas dos movimentos
feministas nas últimas décadas, mas, de facto, a violência
doméstica, a discriminação sexista e o feminicídio não cessam de
aumentar. A segunda astúcia consiste em capitalismo, colonialismo
e patriarcado surgirem como entidades separadas que nada têm que
ver umas com as outras. (SANTOS, 2020, p. 12)

Assim posto, a pandemia do COVID-19 e as crises as quais ela expos, bem como

aquelas atreladas à políticas neoliberais de negação de direitos, também expos como

o patriarcado afeta as relações interpessoais, afetando majoritariamente mulheres,

sem esquecer do recorte interseccional de classe e raça. O autor complementa:

A quarentena será particularmente difícil para as mulheres e,


nalguns casos, pode mesmo ser perigosa. As mulheres são
consideradas «as cuidadoras do mundo», dominam na prestação de
cuidados dentro e fora das famílias. Dominam em profissões como
enfermagem ou assistência social, que estarão na linha da frente da
prestação de cuidados a doentes e idosos dentro e fora das
instituições. Não se podem defender com uma quarentena para
poderem garantir a quarentena de outros. (SANTOS, 2020, p. 15)

Assim, as mulheres, como os seres cuidadores da espécie, são as mais afetadas

no que tange à dupla jornada de trabalho, em especial, em um cenário pandêmico.

A possibilidade do homeoffice, não estendida a todas as mulheres, e com problemas

maiores às mulheres do Sul global, Vergés traz:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A vida confortável das mulheres da burguesia só é possível em um


mundo onde milhões de mulheres racializadas e exploradas
proporcionam esse conforto, fabricando suas roupas, limpando
suas casas e escritórios onde trabalham, tomando conta de seus
filhos, cuidando de suas necessidades sexuais de seus maridos,
irmãos e companheiros. Consequentemente, elas têm como
passatempo discutir a legitimidade das coisas, reclamar que não
querem ser “incomodadas” no metrô ou assumir postos de
liderança em grandes empresas. (VERGÈS, 2020, p. 36)

Percebe-se o recorte da opressão da colonialidade nas mulheres do Sul global, e em

como perpassam diferentes maneiras de vivencia do cenário de trabalho doméstico

e homeoffice.

3. A PRECARIZAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO

Muitos autores já discutiram a precarização do trabalho, diante do avanço

tecnológico e a transformação do mercado de trabalho. Com a pandemia da Covid-

19, o processo se acelerou em muitas esferas.

Já é sabido que condições precárias de trabalho ocorrem ao redor do globo e,

enquanto uma parte da sociedade tem acesso à aparelhos eletrônicos, de alta

tecnologia, mineiros estão às minas em jornadas de trabalho desumanas, em busca

do avanço da tecnologia. (ANTUNES, 2018, p. 25)

E que ainda, mulheres e crianças na Índia que trabalham em caldeiras,

carregam galões de até 220 quilos para tingir o tecido que vestimos. (ANTUNES,

2018, p. 26) Ainda neste livro, o autor ressalta que tais condições são um

“privilégio”, uma vez que pior seria o desemprego.

DARTOT e LAVAL, em uma crítica ao sujeito neoliberal, que além de ser

refém do sistema capitalista, com as “novas formas de emprego” precárias,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

provisórias e temporárias, que tiveram como consequência o aumento do medo

social pelo desemprego, facilitando a implementação da neogestão nas empresas.

E por neogestão, entendem que as empresas impões situações aos

trabalhadores, sendo esta novidade do capitalismo resumida em: produzir “sujeitos

empreendedores”, que irão ampliar a disputa entre si. (DARTOT; LAVAL, 2016, p.

324 e 325).

Os autores, mencionando Weber lembram da ideia de “jaula de aço”

construída pelo capitalismo aos trabalhadores, e ressaltam que no modelo de

neogestão, seria o mesmo que dizer que cada trabalhador deve construir sua própria

jaula e fornecer todos os recursos, suportar todos os riscos e sem as garantias

historicamente conquistadas. (DARTOT; LAVAL, 2016, p. 326).

Ressaltam que a mentalidade foi induzida a pensar dessa maneira:

(...) Ele deve cuidar constantemente para ser o mais eficaz possível,
mostrar-se inteiramente envolvido no trabalho, aperfeiçoar-se por
uma aprendizagem contínua, aceitar a grande flexibilidade exigida
pelas mudanças incessantes impostas pelo mercado. Especialista
em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo,
empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu
a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na
competição. Todas as suas atividades devem assemelhar-se a uma
produção, a um investimento, a um cálculo de custos. A economia
torna-se uma disciplina pessoal. (DARTOT; LAVAL, 2016, p. 325)

Nancy Fraser, ao criticar o “O Novo Espírito do Capitalismo” de Boltanski e

Chiapello, diz que os autores não enxergaram as perspectivas de gênero, deixando

de compreender o capitalismo neoliberal completamente. (FRASER, 2009, p. 24)

Fraser continua com a crítica ao capitalismo neoliberal:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Mas o capitalismo neoliberal tem tanto a ver com Walmart,


maquiladoras e microcrédito quanto com o Silicon Valley e o Google.
E seus trabalhadores indispensáveis são desproporcionalmente
mulheres, não apenas jovens mulheres solteiras, mas também
mulheres casadas e mulheres com filhos; não só as mulheres
racializadas, mas virtualmente mulheres de todas as nacionalidades
e etnias. Como tais, as mulheres despejaram-se em mercados de
trabalho ao redor do globo; o efeito foi cortar na raiz de uma vez
por todas o ideal do salário familiar do capitalismo organizado pelo
Estado. No capitalismo neoliberal “desorganizado”, este ideal foi
substituído pela norma da família de dois assalariados. Não
importa que a realidade que subjaz o novo ideal sejam os níveis
salariais decrescidos, diminuição da segurança no emprego,
padrões de vida em declínio, um aumento abrupto no número de
horas trabalhadas em troca de salários por família, exacerbação do
turno dobrado – agora frequentemente um turno triplo ou
quádruplo – e um aumento de lares chefiados por mulheres. O
capitalismo desorganizado vende gato por lebre ao elaborar uma
nova narrativa do avanço feminino e de justiça de gênero.
(FRASER, 2009, p. 24)

Tal precarização se potencializou com a Pandemia da Covid-19, uma vez que,

como mencionado no ítem 1 do presente artigo, trabalhadoras e trabalhadores de

todo país tiveram que se estruturar rapidamente para manterem seus empregos e

consequentes meios de subsistência.

As mães trabalhadoras tiveram que adequar sua rotina de trabalho com o

acompanhamento dos filhos em suas atividades escolares, o trabalho doméstico, o

bombardeio de informações, o isolamento social, entre demais situações como

perdas de familiares, angústias, fobias, etc.

4. A DUPLA JORNADA DAS MÃES TRABALHADORAS

Silvia Federici, filósofa feminista, ressalta que o trabalho doméstico e o trabalho

reprodutivo foram ignorados por muitos autores, inclusive por Marx, o que a faz

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

acreditar que ele estava ancorado num visão da revolução tecnológica, em que a

liberdade seria conquistada apenas através da máquina e do trabalho assalariado.

(FEDERICI, 2019, p. 201).

Destaca ainda que o trabalho doméstico se permaneceu invisível até a década

de 60 e 70, tempo em que surgiram os movimentos do Wages of Housework Movement

liderados por Mariarosa Dalla Costa, Selma James e Leopoldina Fortunati, que

estavam contra à imposição do trabalho doméstico e ao modelo de reprodução do

sistema fordista. (FEDERICI, 2019, p. 205).

A autora segue dizendo que o trabalho doméstico, atrelado ao trabalho do

cuidado e a sexualidade são pilares que mantém a máquina capitalista girando,

como segue:

(...) produzimos o produto mais precioso que existe no mercado


capitalista: a força de trabalho. O trabalho doméstico é muito mais
do que limpar a casa. É servir aos assalariados física, emocional e
sexualmente, preparando-os para o trabalho dia após dia.
(FEDERICI, 2019, p. 68)

O cuidado das crianças (trabalhadores do futuro), quem as ampara na vida

escolar, estimula o seu desempenho, conforme espera o capitalismo, para que cresça

e se torne um adulto produtivo. E afirma ainda que por trás de cada fábrica, escola

ou escritório, há o trabalho oculto de milhões de mulheres. (FEDERICI, 2019, p. 68)

A pandemia da Covid-19 potencializou e intensificou as relações familiares, de

modo em que as mães trabalhadoras, por muitas das vezes, integralmente

dependentes do sistema educacional para deixarem seus filhos e conseguirem

possuir uma jornada de trabalho equivalente aos homens e às mulheres sem filhos,

se encontram neste momento sem as escolas funcionando.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

As mães que contavam com rede de apoio familiar, ou com creches parentais,

se encontraram na mesma situação, uma vez que as avós, na maioria dos casos, são

idosas e são muito vulneráveis ao desenvolvimento da Covid-19, por se

enquadrarem no grupo de risco. (OMS, 2020)

Antes mesmo do estado pandêmico, uma pesquisa do IBGE feita em 2019

revelou que, em média, as mulheres brasileiras dedicavam o dobro do tempo dos

homens a afazeres domésticos e cuidados de pessoas, sendo 21,4 horas semanais

para as mulheres e de 11,0 horas para os homens. (IBGE, 2020)

Uma pesquisa global da Ipsos com a ONU Mulheres revelou que a pandemia

aumentou o abismo na divisão de tarefas não remuneradas, no Brasil e nos outros

16 países pesquisados. De acordo com ela, 43% das mulheres entrevistadas em maio

(contra 35% dos homens) concordaram com a frase: "Tive que assumir muito mais

responsabilidade pelas tarefas domésticas e cuidados com crianças e família

durante esta pandemia". (ONU MULHERES, 2020)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com os dados explicitados, foi possível concluir que a pandemia da Covid-19

afetou em maior proporção as mulheres mães, em virtude de sua vulnerabilidade e

da imposição patriarcal e capitalista da responsabilidade do trabalho doméstico e

do trabalho do cuidado.

Mulheres mães trabalhando de maneira remota não conseguem separar suas

atividades de trabalhadoras com a responsabilidade da maternidade e das

demandas atreladas à esta última.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O feminismo de terceira onda, também conhecido por sua interseccionalidade

percebe que mulheres negras e pobres sofrem ainda mais que as mulheres brancas,

por sentirem as desigualdades atreladas também à raça.

A falta de uma educação atrelada ao gênero causa a ignorância de homens e

mulheres quanto aos seus papéis sociais. A mulher não deve ser atrelada ao trabalho

doméstico, na mesma medida que nem todo homem tem força física para

determinado trabalho braçal.

As diferenças de cada ser, independente de gênero têm que ser levadas em

conta, conforme escreve BUTLER, quando idealiza o abolicionismo de gênero.

(BUTLER, 2003, p. 26)

Ocorre que em tempos de emergência, os mais vulneráveis serão sempre os

mais atingidos, visto que não possuem apoio governamental, são peças descartáveis

de um sistema cruel que visa a centralização de riqueza.

O Brasil de 2020 possui um governo de extrema direita, que tem por objetivo

desmantelar os direitos sociais já conquistados, com um discurso neoliberal covarde

e com um conservadorismo exacerbado.

A intenção é fragilizar os mais fracos para fortalecer suas riquezas e nenhum

véu é posto sobre suas atitudes. A sede é tão grande, que pedaços da nossa

democracia, arduamente conquistada, são jogados fora, na frente de todos, diante

da imprensa e por atos oficiais.

A proposta do presente trabalho foi ressaltar que as mães, aquelas responsáveis

pela criação, cuidado e reprodução do bem mais precioso do capitalismo (a mão de

obra), são todos os dias, sobrecarregadas com atividades, desvalorizadas sem

reconhecimento e muita das vezes, retiradas do mercado de trabalho pelo fato de

serem mães.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A Constituição prevê a igualdade entre homens e mulheres e também os

Direitos Sociais, porém, Políticas Públicas não são implementadas pois não há

interesse e nem representatividade política para que os direitos femininos sejam

implementados.

REFERÊNCIAS

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

DESCONSTRUINDO O MITO DA MULHER-MARAVILHA:

DIÁLOGOS SOBRE A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E OS

IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 SOBRE AS

MULHERES

Carla Appollinario de Castro88


Márcia Cristina Souza de Oliveira89
Simone Cortes Belfort90

RESUMO
Considerando que o sobre-trabalho marca a vida social das mulheres, em suas variadas
dimensões (trabalho doméstico não remunerado, trabalho doméstico, trabalho
reprodutivo), objetiva-se problematizar os marcadores de gênero e de parentalidade no
contexto da pandemia decorrente da COVID-19. Para tanto, além da releitura da categoria
analítica da divisão sexual do trabalho, também foram apresentados relatos das mulheres,
extraídos de suas redes sociais (Facebook), observados durante o contexto pandêmico, com
o fim de demonstrar que durante o isolamento social, quando o trabalho produtivo passou
a ser realizado sob a forma de home office, a carga mental das mulheres foi acentuada, o que
resulta no necessário resgate do debate que envolve os distintos aspectos que permeiam a
divisão sexual do trabalho (separação de tarefas e de responsabilidades entre homens e
mulheres; dever de cuidado atribuído somente às mulheres e o acúmulo de todas essas
funções com as do trabalho produtivo remunerado).

Palavras Chave: mito da mulher-maravilha; divisão sexual do trabalho; patriarcado,


capitalismo; COVID-19.

88
Graduada em Direito, mestre e doutora em Ciências Sociais e Jurídicas, Professora da Faculdade de Direito
e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
carlauffsdv@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3666357154549659.
89
Graduada em Direito, mestre em Ciências Sociais e Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Direito da Universidade Federal Fluminense. E-mail: mcsoliveira.advrj@yahoo.com.br. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8241924728839333.
90
Graduada em Direito, mestre e doutoranda em Ciências Sociais e Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, professora da professora da UCAM Niterói e do
Sistema Kroton Educacional. E-mail: simonebelfort@globo.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5647310946297236.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

INTRODUÇÃO

A atual pandemia da COVID-19 (doença infecciosa causada pelo novo

coronavírus)91 tem imposto inúmeros desafios à sociedade global no que tange aos

aspectos econômicos, sociais e políticos, fazendo emergir diversas discussões sobre

distintas dimensões da vida social.

Um, entretanto, chama bastante atenção e diz respeito especificamente às

relações de gênero, que é a divisão sexual do trabalho produtivo e do trabalho

doméstico.

Isso porque o isolamento social imposto pela pandemia tem agravado o

quadro de acúmulo de múltiplas jornadas pelas mulheres e, consequentemente,

acentuado o esgotamento físico e mental das mulheres que estão à frente das tarefas

domésticas em conjunto com o trabalho na modalidade home office, a supervisão do

ensino dos filhos e os cuidados de parentes.

Assim, se por um lado, a pandemia reforçou os traços da divisão sexual do

trabalho, por outro lado, ao impulsionar a publicidade da problemática na rede

mundial de computadores, o que tem ocorrido por meio dos relatos dessas

mulheres, em escala global, tem permitido o resgate desse debate e sua necessária

discussão na esfera pública, razão pela qual a presente comunicação se insere em

atual e importante debate.

O problema de pesquisa reside na necessária reflexão acerca das profundas

relações entre capitalismo e patriarcado, que impõe o desafio de pensarmos em que

medida a divisão sexual do trabalho tem sido reforçada no contexto da pandemia

da COVID-19.

91
Fonte: Folha informativa COVID-19 - Escritório da OPAS e da OMS no Brasil. Organização Pan-americana de
saúde e Organização mundial da saúde. Disponível em https://www.paho.org/pt/covid19 Acesso em
24.09.2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nossa hipótese, de certa forma explicitada no título, remete ao mito da

mulher-maravilha, pois em nenhum país do mundo foi adotada qualquer medida

que minimizasse o acúmulo de jornadas pelas mulheres durante o enfrentamento

da COVID-19, reforçando, desse modo, o imaginário social e coletivo que entende

tais mulheres como guerreiras e capazes de suportar todas as formas de sobre-

trabalho.

O artigo está estruturado em três eixos de discussão, que serão

apresentados da seguinte forma: i) releitura da categoria analítica da divisão sexual

do trabalho contextualizada a partir da pandemia da COVID-19; ii) apresentação de

relatos de mulheres publicados nas redes sociais (Facebook); e iii) reflexão sobre o

trabalho das mulheres realizado na modalidade home office.

Para tanto, o presente trabalho adotou como metodologia: revisão da

bibliografia acerca da divisão sexual do trabalho e levantamento e análise crítica dos

relatos das mulheres nas redes sociais submetidas ao sobre-trabalho e ao home office

durante a pandemia da COVID-19.

Esta pesquisa teve como objetivo geral analisar a divisão sexual do trabalho

e suas expressões no sobre-trabalho das mulheres no contexto específico da

pandemia global da COVID-19, com recorte especial sobre o panorama brasileiro.

POR QUE FALAR EM DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO CONTEXTO DA

PANDEMIA?

Porque a divisão sexual do trabalho faz parte das relações sociais, envolve

questões de gênero e impacta de forma direta o chamado trabalho produtivo e

reprodutivo.

Inicialmente é importante destacar que, sob o nosso ponto de vista, a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

divisão sexual do trabalho como se apresenta, não é um destino biológico e natural,

no qual os homens são designados ao trabalho produtivo e as mulheres ao trabalho

reprodutivo. Mas sim, uma construção social, na qual existe uma relação de poder

dos homens sobre as mulheres historicamente adaptada a cada sociedade

(KERGOAT, 2009).

Essa divisão social e sexual possui como princípios norteadores a separação

entre o que é trabalho de mulher e trabalho de homem, e a hierarquização que

considera o trabalho realizado pelas mulheres no interior de seus lares “invisível” e

de menor valor, do que o trabalho realizado pelos homens em suas atividades

externas e remuneradas (KERGOAT, 2009).

Neste sentido é importante analisar como as construções sociais ao longo

dos séculos produziram e legitimaram essa separação e hierarquização no seio

social, sendo o termo “patriarcado” um dos que sintetiza a forma de organização

familiar em que um homem, o patriarca, submete os outros membros da família ao

seu poder (LIMA, 2019).

A análise marxista do patriarcado teve grande influência nos estudos

feministas, ao considerar a submissão da mulher e apontar importantes conexões

nas desigualdades de gênero, tais como a posição das mulheres na sociedade, as

mudanças estruturais ocorridas nas relações de parentesco e na divisão do trabalho,

a dominação econômica e política dos homens e seu controle sobre a sexualidade

feminina (LIMA, 2019).

Ao se revelarem as desigualdades históricas, o conceito de gênero passou a

ser delineado, contribuindo não somente para a desnaturalização do patriarcado

como organização familiar e social, mas também problematizando o domínio dos

homens sobre as mulheres, em particular nas relações conjugais (LIMA, 2019).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

“É significativo que a família patriarcal e a imagem da mulher


reclusa à esfera privada e submissa ao marido persistam como
modelo de relações conjugais, mesmo quando a participação das
mulheres no orçamento doméstico, proporcionada pelo trabalho
fora de casa, se contrapõe às figuras tradicionais do homem
provedor e da mulher economicamente dependente, que
caracterizam o patriarcalismo.” (LIMA, 2019, p. 581)

No Brasil, por exemplo, mesmo com os avanços legislativos obtidos, desde

o período colonial até a vigência do atual Código Civil de 2002, que perpassa pela

promulgação da Constituição Federal de 1988, o modelo patriarcal ainda

desempenha importante papel na estruturação das relações conjugais (LIMA, 2019).

Ainda é no núcleo familiar que as desigualdades e a divisão sexual do

trabalho se reproduzem, mantendo o homem em posição privilegiada, enquanto

pesa sobre os ombros das mulheres a responsabilidade, quase que exclusiva, pela

realização do trabalho doméstico não remunerado, cuidado e educação dos filhos,

além do amparo aos parentes enfermos, deficientes ou idosos.

E esta divisão desigual de afazeres da vida privada, teve reflexos na lenta

inserção da mulher no mercado de trabalho durante o século XX, sendo necessário

registrar que uma das primeiras ocupações laborais das mulheres no Brasil foi o

trabalho doméstico remunerado, seguido posteriormente pelas ocupações em

atividades agrícolas, no setor industrial, e mais recentemente no setor de comércio

e de serviços (MELO, 2018).

Mas, apesar do fato da mulher ter ingressado no mercado de trabalho e

representar, em pleno século XXI, e no ano de 2015, o percentual de 55,2% da

população economicamente ativa, segundo dados publicados pelo Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2020a), a almejada “independência”

econômica não diminuiu as obrigações impostas pelo casamento e pela

maternidade.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Outro dado relevante apontado pelo IPEA (2020b) no mesmo ano de 2015 é

que a porcentagem de horas semanais dedicadas aos afazeres domésticos pelas

mulheres e pelos homens, com 16 anos ou mais de idade, também divergem

consideravelmente. Enquanto as mulheres dedicam 24,4 horas semanais aos

afazeres domésticos, os homens dedicam 10,8% apenas.

Em outras palavras, participar ativamente da renda familiar não concedeu

às mulheres uma divisão mais igualitária do trabalho doméstico ou dos cuidados

com a prole. Ao contrário, acrescentou a dupla jornada às suas vidas.

Jornada essa que se torna tripla quando desejamos prosseguir com os

estudos, e que se transformou em múltiplas jornadas, durante a pandemia da

Covid-19, ao acrescentar às tarefas já existentes, a supervisão do ensino on-

line/remoto das filhas e dos filhos, cumulativamente com o trabalho remunerado

realizado na modalidade home office, sem uma rede de ajuda de outras mulheres,

como as trabalhadoras domésticas, diaristas, ou babás, também em isolamento.

É notório no Brasil e no mundo, as consequências econômicas e sociais

causadas pela pandemia da Covid-19. Todavia, especialmente dentro deste contexto

histórico, as mulheres têm sido gravemente impactadas em sua subjetividade, não

somente por meio do esgotamento físico e mental, resultante da sobrecarga de

tarefas, mas também pelo distanciamento ou isolamento social, que contribuiu

também para o aumento acelerado dos conflitos familiares, incluindo a violência

doméstica.

Segundo dados divulgados pela Agência Brasil, em 01 de junho de 2020, os

casos de feminicídio cresceram 22% em 12 estados durante pandemia. Em

contrapartida, houve queda na abertura de boletins de ocorrência, o que demonstra

que as mulheres estão mais vulneráveis e com maiores dificuldades, durante a crise

sanitária, de formalizar queixa contra seus agressores.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Importante notar que a controvérsia apresentada pelos dados é explicada

pela

(...)convivência mais próxima dos agressores, que, no novo


contexto, podem mais facilmente impedi-las de se dirigir a uma
delegacia ou a outros locais que prestam socorro a vítimas, como
centros de referência especializados, ou, inclusive, de acessar canais
alternativos de denúncia, como telefone ou aplicativos (AGÊNCIA
BRASIL, 01/06/2020).

Fazendo uma análise crítica e contextualizada historicamente concluímos,

então, que não somente “as mãos” do patriarcado ainda alcança e guia as relações

de gênero em nossa sociedade, como também contribui para a manutenção da

superexploração da força de trabalho feminina, em sintonia com a lógica

implementada pelo capitalismo neoliberal.

ANTES DA PANDEMIA, A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO ERA UM

TEMA EM PAUTA PARA AS MULHERES?

Em 2018 viralizou no Twitter, a hashtag #porramarido, criada por mulheres

(CLAIRE, 2018). A ideia era compartilhar situações nas quais os maridos não

conseguem fazer tarefas que deveriam ser divididas de forma mais igualitária.

Chamar a atenção para o fato de que não fosse preciso dizer a uma pessoa adulta e

capaz, que consegue trabalhar e produzir, como e quando realizar tarefas diárias e

pertinentes a manutenção do lar.

A reportagem sobre a hashtag #porramarido, tem em seu subtítulo, “histórias

hilárias de mulheres sobre seus companheiros” (CLAIRE, 2018), e vem relatando

acontecimentos cotidianos que, em um primeiro momento, parecem piadas

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divertidas, como relata Lana Del Rio, “história de ontem: Põe a roupa na máquina?

Ponho. Ele colocou a roupa na máquina, mas não ligou, porque eu não tinha

pedido” (CLAIRE, 2018), mas que não tem nada de hilárias.

Desde sempre escutamos histórias como essa, e tantas outras do tipo: por

que você não me acordou? Por que você não me pediu? Qual o problema de fazer

depois? Por que você se incomoda tanto com a casa suja? Eu até cozinho, mas não

lavo a louça porque não gosto!

O problema é que sem perceber, nós mulheres reproduzimos e

perpetuamos essas diferenças de atitude e comportamento entre os gêneros. Com a

pandemia da COVID-19, os relatos se multiplicaram, na medida em que todas as

dimensões da vida ficaram restritas ao lar.

A maior movimentação de pessoas dentro do mesmo ambiente privado,

intensificou a quantidade de afazeres domésticos, antes realizados

majoritariamente pelas mulheres da família, ou nos lares de maior poder aquisitivo,

pelas empregadas domésticas ou babás. Mas a pandemia trouxe um ingrediente

adicional para esse contexto: a realização do trabalho na modalidade home office.

Em artigo da Folha de São Paulo (MENA, 2020) vários depoimentos relatam

a existência de uma estrutura patriarcal e a sobrecarga de atividades sobre as

mulheres.

Na Justiça, citada como exemplo, a divisão por gênero se destaca

dependendo do nível em que se encontra a análise. Quanto mais alta a hierarquia,

maior é a diferença. Entre os servidores e advogados a diferença é equilibrada, os

referenciais são de 50,4% mulheres no primeiro caso, e 48% mulheres no segundo

caso (MENA, 2020).

Entre os juízes, na Justiça Federal apenas 32% são mulheres, na Justiça

Estadual 36% são mulheres e na Justiça do Trabalho, 47% são mulheres. Na

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estrutura dos Tribunais, 44% são juízas substitutas, 39% são juízas titulares, 23% são

desembargadoras e apenas 16% são ministras (MENA, 2020).

Segundo Claudia Luna, que é Presidente da Comissão da Mulher

Advogada da OAB-SP, “as profissionais do direito se veem assoberbadas com o

próprio trabalho, os afazeres domésticos, para os quais não tem mais suporte, nos

quais se amparavam para alavancar suas carreiras, e se veem assoberbadas com os

cuidados com os filhos, sem creche e sem escola” (MENA, 2020).

Os relatos não param por aí, para a Advogada Thayná Taredy, de 33 anos,

que mora no seu escritório, é muito complicado realizar todas as atividades: “sou

uma mulher negra, mas sou advogada. Estudei, mas continuo precarizada. Se

tivesse condições econômicas de ter alguém limpando a casa e fazendo comida, já

teria feito meu doutorado”, não esquecendo que ela é mãe solo, de um menino de

12 anos (MENA, 2020).

Noemia Porto, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do

Trabalho – Anamatra, acredita que

“tem um falseamento da valorização do home office porque você não


se desloca, mas ele implica a possibilidade do que chamamos de
autoexploração, um processo invisibilizado em que a pessoa fica na
posição de produzir o tempo inteiro e com muita dificuldade de
disciplina mental para organizar o tempo do rendimento do
trabalho das demais atividades da vida.” (MENA, 2020)

Para Silvia Chakian, Promotora de Justiça do Grupo Especial de

Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra mulheres – GEVID, a

sobrecarga existe mesmo tendo uma divisão de tarefas domésticas e parentais com

seu marido. Ela também acredita que existem muitos advogados e servidores sem

condições para se adequar aos novos modelos de audiências por vídeo conferência,

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

por exemplo, o que pode aumentar o abismo entre as profissionais. Ela termina a

reportagem dizendo

“O custo do papel de heroína, da mulher que dá conta de tudo,


precisa ser debatido, porque faz as mulheres adoecerem. Neste
contexto, os homens são enaltecidos por fazer o que às mulheres foi
ensinado como vocação. E esses valores não são mais compatíveis
com a sociedade de hoje.” (MENA, 2020).

É importante destacar que apesar do home office ter melhorado algumas

condições, tais como a redução do tempo de percurso casa-trabalho-casa, o aumento

do convívio em família, a flexibilização de horários, outras questões tornaram-se

muito precarizadas.

As fronteiras entre trabalho e tempo pessoal se misturaram, as demandas

aumentaram e parece que todo dia é segunda-feira. Os horários após às 22:00 horas,

que antes representavam momento de descanso e tranquilidade, tornaram-se

intensos, já que as crianças e adolescentes, sem atividades externas, nesse horário

ainda estão cheias de energia.

Com a mudança do trabalho presencial para o home office se tornando uma

realidade cada vez mais palpável, as relações conjugais também precisam ser

repensadas. Diversas pesquisas têm sido feitas sobre a manutenção do home office

nas empresas, e uma recente realizada pela Fundação Getúlio Vargas – FGV, indica

que 30% das empresas brasileiras devem manter o home office após a pandemia do

novo Coronavírus (CETRONE, 2020).

Para algumas pessoas, principalmente as que possuem filhos menores de

12 anos, por exemplo, o trabalho em casa se tornou uma corrida interminável, com

horários cronometrados, e ainda assim, não sendo possível lidar e finalizar todas as

atividades.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A migração do trabalho externo para dentro de casa já acentuou as

desigualdades entre homens e mulheres. Segundo a filósofa Camille Froidevaux -

Metterie se esperava que os homens “ ao ficarem mais tempo em casa, fossem notar

melhor o peso das tarefas domésticas e concordassem em compartilha-las, mas as

primeiras pesquisas sobre o assunto parecem indicar que essa consciência realmente

não ocorreu” (CHARREL, 2020).

Com a paralização das aulas, essa desigualdade ficou mais evidenciada

“E isso, qualquer que seja o ambiente social: De acordo com o EIGE


(Instituto Europeu para Igualdade de Gênero), 43,4% das mulheres
com baixa escolaridade já consagravam, antes da crise, pelo menos
uma hora por dia ao cuidado das crianças, em comparação com
25,6% dos homens com baixa escolaridade. E a proporção sobe para
51,8% e 28,7%, respectivamente, entre casais altamente
qualificados.” (CHARREL, 2020)

Todos os dias o equilíbrio entre as variadas atribuições parece não ser

possível, a palavra sobrevivência vem dando a tônica dos dias! Às tarefas realizadas

no cotidiano do “antigo normal”, tais como cuidar da casa, da educação das filhas

e filhos, de assistência aos demais familiares, foram agregadas a supervisão das

aulas on-line, o trabalho em número de horas, por vezes intermináveis, e para as

pessoas que estudam, as produções acadêmicas e as lives foram rapidamente

incorporadas.

Em uma outra reportagem, a Dra. Elizabeth Hannon, editora do Britsth

Journal for the Philosophy of Science, indica que em abril, o número de artigos

produzidos por mulheres e enviados para publicação tinha caído drasticamente

(CLAIRE, 2020). Em outra publicação científica, a revista Comparative Political

Studies, em contrapartida relata que “as entregas de homens aumentaram quase

50% em abril” (CLAIRE, 2020).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Acreditamos que “uma constatação que não parece ser muito difícil para

qualquer um que cumpre as regras do confinamento é de que as mulheres sofrem

uma sobrecarga de trabalho” (GUIMARÃES, 2020).

Em qualquer relato tanto nas redes sociais como nas reportagens científicas

ou sociais, essa sobrecarga aparece cada vez mais intensa. Não importa quanto as

mulheres produzam, e o quanto elas se sintam mulheres maravilhas (ou não!), esses

padrões precisam ser discutidos e modificados.

“Neste contexto, é inegável os impactos na saúde mental de tantas


mulheres que se identificam com os cenários descritos. A tentativa
de corresponder às expectativas de dar conta de todas essas tarefas
leva as mulheres a vivenciarem a frustração, o cansaço extremo,
irritabilidade e altos níveis de estresse. Sair desse lugar onde a
autocobrança em relação a essas tarefas não esteja relacionada ao
medo de ser taxada como incompetente costuma exigir um olhar
mais cuidadoso em relação a si e aos próprios limites, não é
automático e não é óbvio. Isso tudo leva tempo, já que as mulheres
são socializadas para corresponder a tais expectativas.”
(CARDOSO, 2020)

Se temos uma proposta de como mudar esse cenário, sim temos, mas

lembrando que ideias mágicas não existem, fórmulas prontas muito menos, pois

cada uma de nós sabe das suas dores e angústias. Mas acreditamos que as mulheres

devem e precisam ser resistência!

Mas para que essa resistência produza frutos, são necessárias mudanças de

comportamento das mulheres com relação a si mesmas, seus pares e perante a

sociedade. Como exemplo citamos algumas sugestões de Chimamanda Ngozi

Adichie:

1. Mulher, seja uma pessoa completa, a maternidade é uma


dádiva, mas não se deixe definir apenas por esta condição. Você

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pode e deve tirar um tempo para si mesma e suas necessidades


pessoais. O trabalho de cuidar da casa, das filhas e dos filhos não
deveria ter gênero, então o que devermos pensar é qual a melhor
forma do casal se apoiar em suas obrigações com o trabalho e o lar.
2. As mães, por vezes estão tão condicionadas a fazer tudo e
reduzem o papel dos pais. Então aprendam a dividir igualmente a
criação de suas filhas e filhos. Abandonem o verbo “ajudar”, pois
quando dizemos aos pais para “ajudar” estamos implicitamente
afirmando que a criação é uma obrigação materna.
3. Ensine as suas filhas e seus filhos que “papéis de gênero” são
absurdos dentro e fora das relações conjugais. Não ensine às suas
filhas que elas têm mais regras e menos espaço, ou aos seus filhos
que eles têm mais espaço e menos regras (ADICHIE, 2017, p. 14-28).

Acreditamos que com estas mudanças de comportamento, entre outras, que

visam a igualdade de gênero, pressionando a sociedade, possam contribuir para o

surgimento de um novo paradigma social e garantidor da “emancipação” feminina,

bem como da sua condição de saúde física e mental.

Os efeitos da divisão sexual do trabalho e das múltiplas jornadas (que se

acumulam simultaneamente) se materializam sob a forma de sobrecarga mental das

mulheres, que, assim como ocorreu com o movimento #porramarido, passou a se

apresentar como movimento global sinalizado pelas expressões

#cargamentaldasmulheres e #cargamentaldasmulheresnocovid.

Vejamos agora alguns relatos, ilustrativos dos impactos do sobre-trabalho

para as mulheres, extraídos de suas redes sociais, no Facebook.

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TABELA 1 – Relatos das redes sociais registrados com a #cargamentaldasmulheres


NOME 92 e
PROFISSÃO TEMA CONTEÚDO DO RELATO
“O Burnout Materno acontece quando as demandas
externas exigem da mulher muito mais do que ela
acredita e sente que pode exercer. Ou seja, é uma carga
alta de estresse emocional gerado em decorrência de altas
T. A. Sobre o exigências.
Psicóloga Burnout Sobrecarregadas com tantas responsabilidades, as mães
materno vivem um alto nível de esgotamento, sensação de
fracasso, dúvidas sobre sua capacidade de ser uma boa
mãe e falta de amor próprio.
Alguns dos sinais de Burnout Materno envolvem
irritação, cansaço físico e mental gerando uma sensação
de exaustão, tristeza, isolamento, baixa autoestima, não
cumprimento de tarefas diárias, desmotivação, insônia,
fadiga crônica. É um eterno sentimento de não dar conta
da própria vida aliado a uma autocobrança de ter que dar
conta de tudo”.
“Você se sente cansada só de pensar em tudo que tem
para ser feito?
Que tem que pensar em tudo só?
K. F. Sobre a carga Você já passou por uma situação de ter que pedir para
Advogada mental das seu marido, filhos ou irmãos fazerem algo que era de
mulheres responsabilidade deles? Ou já escutaram a desculpa "ah,
mas vc não me pediu pra fazer".
Pois é, a carga mental é uma atividade invisível para os
outros, mas que traz muito cansaço e exaustão, podendo
gerar ansiedade, estresse e até dores físicas.
Carga mental é essa atividade de ter que administrar
tudo, repassar funções para as outras pessoas ou lembrar
de coisas que precisam ser compradas ou feitas por elas,
especialmente quando se trata de tarefas e cuidados
domésticos e familiares.
As pessoas que convivem com você não têm que te
"ajudar", é responsabilidade delas também a
preocupação com as necessidades familiares.

92
Embora o levantamento dos relatos tenha sido possível porque as publicações foram deixadas como públicas
pelas próprias autoras, avaliamos que seria melhor apresentarmos os nomes sob a forma abreviada, à medida
que o objetivo principal consiste em problematizar situações de exploração e não de expor, mais uma vez, tais
mulheres.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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Por isso, comece a delegar e dividir responsabilidades,


saiba dizer não para aquilo que pode te sobrecarregar e
cuide de você também!”

#cargamental “A carga mental na quarentena virou carga


pesada megablaster. Tá dificil de levar. Eu disse aqui
nessa semana que me sinto às vezes uma placa-mãe de
computador: uma máquina de armazenar dados e
manter tudo funcionando. São tantas informações para
guardar que minhas panes têm sido mais frequentes. Sei
quais são os cosméticos que estão no final. Quais as
comidas que as crianças enjoaram na quarentena. As
roupas deles que não servem mais. Os materiais de escola
que estão acabando. O tratamento dentário e os exames
que atrasaram nos últimos meses. Eu podia continuar
ANÔNIMA Carga mental essa lista, mas não quero aborrecer vocês! O que eu
na percebi é que nenhum dos itens diz respeito diretamente
quarentena a minha individualidade. Sou uma mãe escorpiana
controladora e afetiva até a raiz branca do cabelo, o que
só complica as coisas. Por mais que eu divida (sic) a carga
com o meu parceiro, por mais que a dedicação aos nossos
filhos seja a mesma, ele sabe e eu sei: minha carga mental
é maior. É uma carga que nós mulheres somos
condicionadas a carregar desde a infância. E limita os
nossos pensamentos. Isso porque carga mental é
diretamente proporcional ao pouco tempo para pensar
em si mesma. Das incoerências que só a maternidade
proporciona! E assim vai. A cabeça de mãe não para.
Tenho dificuldades para dormir e já levantei várias vezes
de madrugada para tirar mistura do congelador ou pôr
feijão de molho. Ah, e as aulas online? Um capítulo à
parte na vida das mães. Nessa semana, o Rafael, meu
mais velho, tinha várias lições de casa atrasadas e
atividades manuais que exigiam minha participação. Nós
dois piramos. Nem todas as mães têm habilidade com
cola e tesoura. E eu sou uma delas! Ah, eu gostaria de
dizer ao mundo com um megafone: “AS MÃES ESTÃO
EM CASA TRA-BA-LHAN-DO!” Será que é mais fácil
desenhar? A cartunista francesa Emma achou que sim e
fez uma série emblemática sobre carga mental. (postei
nos meus stories) Por tudo isso e meus hormônios na
perimenopausa, eu surtei legal nos últimos dias. O Rafa

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começou a chorar porque não dei conta de montar figuras


geométricas de papel em 3D com ele. E eu chorei pela
minha incompetência. Deixamos a aula online pra lá.
Descemos no parquinho do condomínio, eu, ele e a Clara.
Brincamos de pega-pega e de balançar. Na volta,
comemos bolo de cenoura. Rimos. Nos acalmamos. E é
assim. Um dia de cada vez”. #cargamental
#maternidadereal #maternidade #sabáticodemãe

“Sim, eu sou você em vários momentos... Sei que você


também se identifica comigo em muitos outros! Somos
mães e não importa o quão graduado alguém possa ser,
nenhum ser humano tem o poder de compreender a
maternidade em toda a sua profundidade, até o dia em
M. M. Sobrecarga que se torna MÃE...
da mulher Não existem mães “guerreiras”, existem mulheres
Educadora sobrecarregadas! Mães não querem aplausos, medalhas,
parental troféus, querem ajuda, suporte, empatia, atenção e
cuidado! Não importa o quão independente você é,
quantas batalhas diárias é capaz de vencer, quantos
imprevistos pode contornar, as vezes você só precisa de
alguém que pergunte com real interesse como você está,
que ofereça ajuda, que perceba que antes de ser mãe, você
é humana, tem suas batalhas internas, seus medos,
inseguranças...
Você cuida da casa, do supermercado, da feira, dos filhos,
do marido, da sua profissão... Você dá suporte para os
seus pais, para a sogra, comadre, tia, vizinha... Compra a
ração do cachorro, providencia a manutenção da
máquina, percebe que o tênis do seu filho está apertado e
que sua filha precisa de meias novas! Observa que a
torneira está pingando, que o ralo entupiu, que o arroz
acabou... Você se lembra da aula on-line do mais velho,
mas a caçula se joga no chão porque está com fome,
enquanto você atende o seu chefe ao telefone, sua mãe
espera na segunda chamada e o marido envia mensagem
para lembrar do remédio na farmácia e do condomínio
que venceu...
Então eu te pergunto... você cuida de tudo isso, mas
quem “cuida” de você?”

“Me fala o que é pra fazer que eu faço”.

397
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

“Eu falei que ia fazer, mas você quis fazer antes...”


“O que a gente vai jantar hoje?”
“Você decide!”
T. B. Carga mental “Mas é você que entende dessas coisas”.
Educadora das mulheres “Me lembra?”
“A gente pegou os documentos dos meninos?” (saindo
para viajar, já fora de casa).
“Você sabe onde está o meu...?” (celular, meia, mochila,
escova de dente, documento)
“Será que eu preciso levar casaco ou vou só de camisa?”

Sobre a “Faltou o da mãe que limpa a casa, cozinha todo dia,


conciliação cuida da bebê (fraldas, comida, amamenta...), inventa
D. M. da brincadeiras num apto pequeno, lava roupa, louça... e
Professora e maternidade ainda tem q fazer atividades da pós e algumas palestras
pesquisadora e a vida on-line.”
profissional, (ao comentar um meme que trazia a representação de
durante a vários apartamentos e os afazeres de seus moradores
pandemia do durante a pandemia)
COVID

Sobre a
dificuldade
F.B. de conciliar “Aulas remotas (como aluna) e crianças: não dá certo.
Estudante estudo com Anota aí”.
maternidade,
durante a
pandemia

Sobre a
ANÔNIMA romantização “Precisamos parar de romantizar o termo ‘mulher
do sobre- guerreira’. Guerreira é a Xena. Eu sou sobrecarregada
trabalho mesmo”.

Conforme se depreende dos relatos acima, apresentados de forma

ilustrativa, o problema da sobre-carga das mulheres não é novo e não tem início a

partir da pandemia provocada pela COVID-19. Mas é preciso reconhecer que a

reunião de todas as atividades no ambiente doméstico, antes local de descanso e

398
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

lazer, impôs às mulheres um significativo aumento de tarefas e responsabilidades.

E mais. Esse fenômeno lançou luz ao necessário resgate acerca de um antigo

conceito que é a divisão sexual do trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma teoria ou um conceito, parte dela integrante, dura o mesmo tempo dos

seus pressupostos. Com a divisão sexual do trabalho não seria diferente. Essa

importante chave de compreensão da separação e hierarquização das tarefas e

responsabilidades entre homens e mulheres (e suas consequências objetivas e

subjetivas) é visível e concomitante ao desenvolvimento do capitalismo e dele faz

parte com um dos componentes de seu perfeito funcionamento.

Mas a emergência da pandemia da COVID-19, em escala planetária,

promoveu para as mulheres, além do agravamento do sobre-trabalho e da carga

mental, a oportunidade histórica de lançar luz sobre a problemática dos marcadores

de gênero e de parentalidade, assim como a oportunidade, como nos lembra Debora

Diniz, de impormos novos conceitos e novas formas de conceber a organização

social, a partir de uma gramática feminina, a partir da incorporação de “conceitos

como cuidado, proteção social, interdependência e saúde” (PASSOS, 06/abril/2020).

No momento em que atingimos a triste marca de 139.883 mortes em

decorrência do coronavírus no Brasil, na data de fechamento do presente artigo 93,

estatística que foi agravada pelos marcadores da diferença de gênero, classe e raça,

a possibilidade de construirmos um novo paradigma social com base em valores

femininos, que rompam com a lógica do individualismo, da desproteção, da

93
O presente artigo foi fechado no dia 24/09/2020. Neste dia, chegamos a quase 140.000 vítimas fatais do
coronavírus (MINISTÉRIO DA SAÚDE. Dados de 24/09/2020).

399
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

indiferença à vida alheia, certamente, aponta para o futuro.

Mas, um futuro que deve ser reivindicado como um projeto de utopia

urgente e para a emergência do debate acerca do capitalismo patriarcal, que

demonstra limites claros de manutenção nos mesmos moldes adotados até agora. E

este modelo tem resultado apenas em barbárie institucionalizada e estrutural.

Diante desse cenário tão sombrio, é urgente pensarmos na desconstrução,

simultânea, das relações de poder que nos impõem posição hierarquicamente

inferior aos homens (econômica e socialmente) e, ainda, no que convencionamos

chamar de “o mito da mulher-maravilha”, que apenas romantiza a nossa exploração

e sobrecarga decorrente do acúmulo de funções, tarefas e responsabilidades sociais

e nos impede, na maioria das vezes, de tomarmos consciência desse processo de

superexploração. Mulheres do mundo, uni-vos!

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INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Retratos das


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2020b. Disponível em

401
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diniz.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb
&fbclid=IwAR0R0alCLkAb2uaPWIiru39m7Rkf4nFG4FlurzRQCumBb-
x1Iid8Qt776YI. Acesso em 06 abr. 2020.

402
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CRISE PANDÊMICA X FEDERALISMO COOPERATIVO: O DEVER

CONSTITUCIONAL DO ESTADO CONFORME O ART. 23, II/CF E

OS IMPASSES AO DIREITO À SAÚDE

Leonardo Picolo Cauzim94


Danilo Henrique Nunes95

Palavras-chave: Pandemia; Federalismo; Saúde.

RESUMO
A pandemia causada pelo Covid-19 é considerada a pior crise global e um dos momentos
mais drásticos da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial, conforme as projeções da
ONU. Em razão da calamidade sanitária, faz-se emergencial o amparo do Estado, este que
é o realizador constitucional do fornecimento e a manutenção da saúde pública. De acordo
com o art. 23, II/ CF, é estabelecido que a saúde é matéria de competência comum da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atuando em cooperação. Contudo, a
realidade se distancia dos preceitos da Magna Carta. As normas editadas e decretadas pelos
governos federal, estadual e municipal sobre as medidas de combate ao Covid-19 não só
divergem em relação à manutenção ou desestruturação do isolamento social, causando um
processo de desinformação e insatisfação popular, como também refletem a crise política e
fiscal em meio à crise pandêmica, sendo efeito decorrente da abrangência do texto
constitucional, bem como a carência de lei especial. Diante deste contexto, alicerceado sob
os ensinamentos da metodologia jurídica e hipotético-dedutivo de revisão de literatura,
fora elaborado este artigo a fim de traçar os impasses legislativos que, por sua generalidade
e abstração, afastam os Entes federativos de seus deveres, possibilitando que estes, em
períodos como a presente crise sanitária, não deem cumprimento às suas obrigações
constitucionais, infringindo o direito fundamental social da saúde e apresentando-se
ineficazes para com os as necessidades do povo.

ABSTRACT
The Covid-19 pandemic is considered the worst global crisis and one of the most drastic
moments in humanity since World War II, according to UN projections. Due to the health
calamity, the State is protected as an emergency, which is the constitutional director of the

94
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário da Fundação Educacional de Barretos, Unifeb. E-mail:
LeonardoCauzim@outlook.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/2855498718858789
95
Doutorando e Mestre em Direitos Coletivos e Cidadania pela Universidade de Ribeirão Preto, Unaerp.
Docente, advogado e jornalista. E-mail: dhnunes@hotmail.com Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3286458334196996 Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9162-3606

403
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

supply and maintenance of public health. According to art. 23, II / CF, it is established that
health is a matter of common competence of the Union, the States, the Federal District and
the Municipalities, acting in cooperation. However, reality differs from the precepts of the
Magna Carta. The rules issued and enacted by the federal, state and municipal governments
on measures to combat Covid-19 not only differ in relation to the maintenance or disruption
of social isolation, causing a process of disinformation and popular dissatisfaction, but also
reflect the political crisis and in the midst of the pandemic crisis, an effect resulting from
the scope of the constitutional text, as well as the lack of a special law. In view of this
context, based on the teachings of legal methodology and hypothetical-deductive literature
review, this article was prepared in order to trace the legislative impasses that, due to their
generality and abstraction, remove the federative entities from their duties, allowing them,
in periods such as the current health crisis, do not comply with their constitutional
obligations, violating the fundamental social right of health and being ineffective in relation
to the needs of the people.

INTRODUÇÃO

A presente proposta versa em analisar o atual momento de calamidade

pública em razão da pandemia causada pelo Covid-19, seus efeitos e as ações do

Estado no combate do vírus, evidenciando o conflito de competências entre os Entes

federativos, que, ao invés de agirem de forma conjunta, travam uma guerra política

e fiscal em meio à crise pandêmica, estando esse desacordo jurídico intrinsicamente

relacionado à abstratividade do Texto Constitucional. Para o desenvolvimento da

proposta e sua problemática, é elementar compreender e avaliar conceitos que, em

sua independência como em sua conjuntura esquemática, transfiguram-se em

normas e institutos legais da contemporaneidade brasileira.

O trabalho alicerça-se no método hipotético-dedutivo de revisão de

literatura, debruçando-se em estudos constitucionais, especificadamente os artigos

6º; 23; 24; 30; 196; 197; as Resoluções do STF e os decretos federais e estaduais, sendo

essenciais para a discussão da problemática proposta. Também fora utilizada vasta

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

bibliografia e literatura jurídica, em especial os clássicos da filosofia e sociologia do

direito, da teoria geral do estado e do direito constitucional.

OBJETIVOS

Os objetivos são: a) Avaliar o presente momento de estado de calamidade

causado pela pandemia da Covid-19 e seus efeitos; b) analisar os institutos jurídicos

que definem o direito universal e assegurador de acesso à saúde e prevenção de

riscos para todos (como exemplo o art. 196/CF); c) analisar os institutos jurídicos

que atribuem ao Estado a responsabilidade de efetivação de acesso e prevenção à

saúde (Como exemplo o art. 23, II/CF); d) compreender o conceito de federalismo

cooperativo e como é definida a competência dos entes federativos; e) estabelecer a

problemática da proposta, ou seja, traçar o impasse legislativo que, por sua

generalidade e abstração, não determina qual a responsabilidade especifica dos

entes federativos, permitindo que estes, em momentos como a atual crise sanitária,

não cumpram devidamente sua obrigação constitucional, e, pela falta de

coordenação e organização, não atendem a população como deveriam, infringindo

assim a um direito universal e social, que é o direito à saúde, e que tem essência

fundamental; por fim, solicitar considerações a respeito do tema.

DO CONCEITO DE FEDERALISMO

A respeito do entendimento de federalismo, pode-se definir como forma de

Estado, estabelecida a partir da união dos Entes federados, dotados de autonomia e

submetidos à um poder central e soberano. Neste arranjo, os Entes federados aliam-

se em comum acordo legalmente pactuado pela criação de um governo central,

405
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sendo destinada relativa autonomia político-administrativa a cada membro do

pacto. A palavra “federação” é originária do latim “foedus”, que significa o mesmo

que aliança, pacto, acordo. Logo, é compreende-se que a federação é o resultado da

união, da aliança e do acordo entre estados que se tornaram membros de um todo,

autônomos e submetidos à um Estado central e constitucional, estabelecendo assim,

de forma descentralizada, as competências e deveres de cada Ente federal.

O federalismo, bem como sua estrutura legal pactuada é malhado em

muitos entendimentos históricos, discriminados em detalhes, contudo, mantendo a

característica universal e uniforme, a crosta definitiva. A fonte do federalismo

deriva dos clássicos, principalmente de Charles-Louis de Secondat, o barão de

Montesquieu, que em sua obra “O Espírito das Leis”, (2000, p. 141), tratou de uma

convenção de vários corpos políticos, consentido pelos cidadãos, visando a criação

de uma República Federalista, ou seja, o Estado ideal, pois assim não seria um

pequeno Estado como as repúblicas, sujeitas à destruição por uma força estrangeira,

como também, se Estado grande, em razão da descentralização e separação de

competências, não estaria sujeito à destruição, afastando os vícios causados pela

concentração de poder.

Já os federalistas americanos: Hamilton, Madson e Jay (1993, p.11) na

redação do art. 2º do 'Federalist Papers', definiram que “cada Estado conserva sua

soberania, liberdade e independência". Sendo assim, para a edificação de um Estado

Federal, era necessário a autonomia de cada membro, portanto, se presente a

autonomia, também faz-se necessária a especificação dos deveres de cada Ente.

Segundo Hesse (1998, p. 23), “o federalismo deve ser entendido como um

princípio político fundamental, a fim de unificar totalidades políticas diferenciadas

em uma conjuntura de regras comuns, dispostas a positivar a comum colaboração

entre seus componentes”.

406
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Kelsen (1998, p. 28) traz similar abordagem, assinalando que a repartição de

competências é determinante para a responsabilização das matérias que incidirão

em todo o território nacional, bem como em cada unidade federada, devendo ser

claro e incontroverso o estabelecimento das funções federativas.

Logo, de acordo com o entendimento das escolas de pensamento

apresentadas, para que a forma de Estado federativa seja estabelecida é necessário,

a priori, um corpo normativo jurídico e constitucional, devendo também,

concomitantemente, ser definido especificadamente os deveres de cada Estado-

Membro, atribuindo e limitando responsabilidades para cada qual, de modo a

atingir o êxito no cumprimento de obrigações e assegurar direitos.

A academia brasileira coaduna à compreensão dos antigos, ainda que com

características próprias. O professor Dalmo Dallari (2019) aponta que a legitimidade

do federalismo advém, primeiramente, não de uma força externa, mas de um

comum acordo de cunho jurídico e constitucional, corroborando ao federalismo

histórico.

Vejamos:

A diferença fundamental entre a união de Estados numa


confederação ou numa federação está na base jurídica. Na
confederação os integrantes se acham ligados por um tratado, do
qual podem desligar-se a qualquer momento, uma vez que os
signatários do tratado conservam sua soberania e só delegam os
poderes que quiserem e enquanto quiserem. Bem diferente é a
situação numa federação, pois aqui os Estados que a integram
aceitam uma Constituição comum e, como regra, não podem deixar
de obedecer a essa Constituição e só têm os poderes que ela lhes
assegura.

No que diz respeito ao modelo “à brasileira” adotado pela Constituição

Federal de 1988, marcado pelo traço cooperativo, José Afonso da Silva (2018) aborda

407
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

como “um sistema que combina competências exclusivas, privativas e

principiológicas com competências comuns e concorrentes, buscando reconstruir o

sistema federativo segundo critérios de equilíbrio ditados pela experiência

histórica”, sendo o modelo uma nova experiência de Estado, exigindo a ação

conjunta e harmônica entre os entes para que haja eficácia constitucional.

Da mesma maneira, Ferreira Filho (1991) frisa o contraste entre o modelo

dual e o cooperativo, fazendo considerações e asseverando que, para a saúde

institucional do segundo, é necessária ação mútua e condizentes, pois, é evidente

que a técnica da repartição horizontal favorece à independência recíproca dos entes

federativos entre si, enquanto a da repartição vertical leva, forçosamente, a um a

coordenação na atuação desses Entes.

Portanto, em face de todo o exposto, fora determinado em comunhão pelos

autores que o federalismo "dualista" enfatiza a separação entre os entes federativos

e a especificidade de responsabilidades para cada Estado-Membro, enquanto o

federalismo "cooperativo" encarece, reforça e exige a colaboração entre os Entes

Políticos de nível diverso para os fins comuns.

DO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL DA SAÚDE E AS

RESPONSABILIDADES DO ESTADO

Dentre os direitos sociais pactuados na Constituinte de 1988, a saúde foi

estabelecida como um direito social fundamental (art. 6º), constituindo-se num

direito de todos, sendo público, devendo o Estado ser o fornecedor e realizador de

políticas públicas que assegurem o acesso universal e igualitário da saúde (art. 196),

bem como a institucionalização de um sistema único para atender as necessidades

408
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sanitárias (art. 198, II). Esses preceitos foram reafirmados pelo art. 2º da Lei Orgânica

da Saúde (Lei nº 8.080/90), tamanha essencialidade do instituto.

Uma das melhores definições que abrange e aprofunda o entendimento do

que é um direito social, como o caso da saúde, é trabalhada na lição do professor

José Afonso da Silva (2019), conceituando que os direitos sociais, como dimensão

dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo

Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que

possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a

realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se

conexionam com o direito da igualdade.

Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em

que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o

que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da

liberdade. Logo, os direitos sociais devem ser entendidos como uma ação corretiva

do Estado, tratando os desiguais na medida de sua desigualdade, ou, como na

análise de Bobbio (2004) uma ação positiva do Estado. A saúde fora dotada de status

social fundamental não só pelos constituintes originários, mas reconhecida

universalmente como direito essencial e garantidor dos outros direitos.

A exemplo do pensamento de Alexy (2017), é imprescindível a ponderação

entre os direitos sociais, inclusive o mínimo existencial e a reserva do possível, pois

o direito à saúde de alguns cidadãos pode extinguir o direito de outros devido à

escassez dos recursos.

Outrossim, conforme a concepção do professor Ingo Wolfgang Sarlet sobre

a imperatividade das normas constitucionais, é entendido que, ainda que

preceituados direitos fundamentais sociais e estabelecida força normativa

409
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

constitucional, nenhum resultado terá se o Estado não cumprir as determinações da

lei.

Vejamos:

De modo especial no que diz com os direitos fundamentais sociais,


e contrariamente ao que propugna ainda boa parte da doutrina, tais
normas de direitos fundamentais não podem mais ser considerados
meros enunciados sem força normativa, limitados a proclamações
de boas intenções e veiculando projetos que poderão, ou não, ser
objeto de concretização, dependendo única e exclusivamente da boa
vontade do poder público (SARLET, 2001, p. 9).

Na própria Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 4596

de relatoria do Ministro Celso de Melo, julgada em 29 de abril de 2004, vide ementa

abaixo:

EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO


FUNDAMENTAL. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE
CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE
DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA
DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO
ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS,
ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO DA
LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR.
96
A ADPF 45, com pedido de liminar, foi impetrada pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) contra
veto do presidente da República ao § 2o, art. n. 55 da Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei 10.707/03). Esse
dispositivo considera como ações e serviços públicos de saúde “a totalidade das dotações do ministério da
Saúde, deduzidos os encargos previdenciários da União, os serviços da dívida e a parcela das despesas do
ministério financiado com recursos do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza”. O partido alega que o
veto presidencial diminuiu a quantidade de recursos que serão efetivamente aplicados em “ações e serviços
públicos de saúde”, contrariando a Emenda Constitucional n. 29, que estabelece no art. 198 da Constituição
Federal, § 2o, que os entes da federação devem vincular determinado percentual, a ser estabelecido em lei
complementar para aplicar em ações e serviços públicos de saúde. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n.
45 MC/DF. Relator Ministro Celso de Mello. 29 de abril de 2004. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/pesquisarPeticaoInicial.asp Acesso em: 20.mai.2020

410
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA


DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM FAVOR
DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA
INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO
"MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE
CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS
CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO).

Na ação em comento, o pleno do Supremo Tribunal Federal já havia

entendido o fenômeno da judicialização de politicas públicas, além da compreensão

de que os princípios do mínimo existencial e da reserva do possível devem ser

empregados de forma ponderada e equilibrada na prestação destas políticas pelo

Estado.

Ademais, o STF debruçou-se, ainda sobre o assunto, no Recurso

Extraordinário nº 85517897, de relatoria do ministro Luiz Fux, que teve repercussão

geral reconhecida pelo plenário virtual.

Conforme os autos do RE em comento, uma mulher ingressou com ação

visando à obtenção do remédio Bosentana. Em sede de antecipação de tutela, o

pedido foi concedido em outubro de 2009, tendo sido determinada a aquisição do

medicamento pelo Estado de Sergipe e o cofinanciamento do valor pela União, em

percentual correspondente a 50%.

O Estado de Sergipe, em cumprimento à referida decisão, entregou o

medicamento em novembro do mesmo ano através de sua Secretaria de Saúde. O

juízo de origem ratificou a tutela antecipatória na sentença e, aproximadamente dois

meses depois, a autora do pedido faleceu, o que provocou o término da obrigação

97
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 855178 ED, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Relator(a) p/ Acórdão: Min.
EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 23/05/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-090 DIVULG 15-04-2020
PUBLIC 16-04-2020. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4678356&n
umeroProcesso=855178&classeProcesso=RE&numeroTema=793 Acesso em: 21.mai.2020

411
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de fazer. Contudo, a União permaneceu inconformada com a ordem de

ressarcimento do custeio do medicamento ao Estado de Sergipe.

Em recurso de apelação, o Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região

entendeu que o dever de prestar assistência à saúde é compartilhado entre a União,

os estados-membros e os municípios, e que a distribuição de atribuições entre os

entes federativos por normas infraconstitucionais não elide a responsabilidade

solidária imposta constitucionalmente. É contra essa decisão que o presente RE foi

interposto pela União, alegando violação aos artigos 2º e 198, da Constituição

Federal. Argumentava, em síntese, sua ilegitimidade para figurar no polo passivo

da demanda, alegando que o SUS é guiado pelo princípio da descentralização e que

a obrigação de fornecer e custear os medicamentos seria de incumbência exclusiva

dos órgãos locais.

Vide ementa:

EMENTA: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO.


EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO
EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL
RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO,
CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE.
DESENVOLVIMENTO DO PROCEDENTE.
POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA
NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA
SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos
necessitados se insere no rol dos deveres do Estado,
porquanto responsabilidade solidária dos entes federados.
O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles,
isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a
compensação entre os entes federados, compete à
autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de
descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o
cumprimento conforme as regras de repartição de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

competências e determinar o ressarcimento a quem


suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem
fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA
deverão necessariamente ser propostas em face da União.
Precedente específico: RE 657.718, Rel. Min. Alexandre de
Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos.

Assim, seguramente, pode-se afirmar que, a prestação de serviços de saúde

pelo Estado é concorrente e inclui tanto a União Federal, como Estados-membros,

O Distrito Federal e os municípios, de forma concorrente, em cumprimento ao

mandamento constitucional do art. 196, CRFB/1988 cominado com o art. 23, inciso

II e art. 6º, caput, também da Carta maior.

DA PANDEMIA CAUSADA PELO VÍRUS COVID-19 E O TRANSTORNO

INSTITUCIONAL DAS COMPETÊNCIAS FEDERATIVAS

O presente período de calamidade pandêmica e crise sanitária causado

pelo vírus Covid-19 é considerado não só um dos momentos mais drásticos, mas a

pior crise global da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial, conforme as

projeções da ONU. Por via da conexão geopolítica e comercial dos povos, produto

da realidade globalizada, o vírus alastrou-se e criou comoções nacionais, sendo o

Brasil um dos países que foram afetados forma sistêmica. Tão vasta foi a

contaminação viral, que os primeiros casos confirmados foram em fevereiro de

2020, e de tão célere, em poucos meses a infecção adentrou e invadiu a população

brasileira aos milhares, como também paralisou os três setores essenciais da

sociedade. Evidenciada a calamidade sanitária, fez-se emergencial o amparo do

Estado, entidade que, conforme abordado, é responsabilizado constitucionalmente

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pelo fornecimento da saúde pública, devendo viabilizar o acesso à população e agir

com medidas de segurança para prevenir o risco sanitário.

Caso esguie-se ou deixe de agir em combate ao Covid-19, o Estado não só é

passivo de omissão, inconstitucional e desobediente à força normativa legal, como

também infere direitos individuais e coletivos da população afetada, pois ante à

Assembleia Constituinte, fora-lhe dado o posto de realizador material, não devendo

de forma alguma delega-lo ou deturpa-lo ante crises. Parte dessa responsabilidade

fora formalizada através do art. 23/CF, prevendo a competência administrativa

comum entre os entres federativos, assim como o art. 24/CF prevê a competência

legislativa concorrente, e o art. 30/CF, que confere as reponsabilidades municipais.

De acordo com o art. 23, II/ CF, o dever para com a saúde pública é matéria

de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos

Municípios, devendo cooperar entre si para o alcance do fim que a todos interessa.

Contudo, a realidade se distancia dos preceitos da Carta Magna. As normas

editadas pelo governo federal, estadual e municipal sobre as medidas de combate

ao Covid-19 divergem em relação ao isolamento social, desestruturando-o e

ambientando a desinformação, a insatisfação popular e o desrespeito generalizado

ao bem legal. Sobre a atuação dos representantes do executivo e do legislativo, tem-

se a incongruência com o seu dever governamental, a guerra política e fiscal,

contrárias ao que os doutrinadores e toda a academia entendeu como ação

harmônica e cooperativa.

Quando ainda não havia sido confirmado nenhum caso confirmado de

Covid-19, a União editou a Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que permitiu

as “autoridades competentes” a adotar importantes medidas como a quarentena, o

isolamento social e a realização compulsória de exames e tratamentos médicos. As

medidas traziam a ideia de ‘’isolamento vertical’’ tendo por objetivo o alcance sobre

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pessoas infectadas, suspeitas e população de risco (idosos, portadores de doenças

etc.).

Por outro lado, fora optado pelo governo do Estado de São Paulo o

‘’isolamento horizontal’’, com a pretensão de reduzir ao máximo a circulação de

pessoas, emitindo decretos como: a suspensão de eventos e de aulas na rede pública

de ensino (Decreto SP nº 64.862, de 13 de março de 2020); do funcionamento

de shopping centers e academias de ginástica (Decreto SP nº 64.864, de 16 de março

2020); e a suspensão do atendimento presencial em estabelecimentos comerciais e

prestadores de serviços (Decreto SP nº 64.881, de 22 de março de 2020).

Dissenso, o Presidente da República decretou a MP 926/2020,

determinando que restrições à locomoção interestadual e intermunicipal deveriam

ser embasadas em normas técnicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária –

(Anvisa – art. 3º, VI), assim como também determinou que medidas restritivas

somente poderão ser estabelecidas com base em evidências científicas e em análises

sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no

espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.

Entretanto, o decreto assinala que o Presidente da República é quem deve

definir quais atividades devem ser consideradas essenciais, de modo a não poderem

ser interrompidas durante a pandemia (art. 3º, § 9º). Posteriormente, dois decretos

foram editados (de nº 10.282/20.03 e 10.292/25.03), qualificando diversas atividades

como essenciais, e consequentemente impedindo que os Estados determinassem a

sua paralisação.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

DA RESOLUÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Entendendo que a MP 926/2020 é viciosa em inconstitucionalidade formal,

pois, como dissertado, promoveu alterações nos dispositivos da Lei. 13.979/20, o

Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou a ADI nº 6.341 (medida cautelar) no

Supremo Tribunal Federal, sustentando que a MP esvazia a competência e a

responsabilidade constitucional de estados e municípios para executar medidas

sanitárias (art.18/CF), que a disciplina por meio de medida provisória é indevida e

que a disciplina da matéria deve decorrer somente de lei complementar.

Analisada a ADI pelo ministro Marco Aurélio, fora dada a liminar

determinando inconstitucionalidade parcial da Medida Provisória com a

Constituição Federal, entendendo que, em suma, as competências concedidas à

Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA não afastam a competência

concorrente de estados e municípios sobre a matéria, abordando que “... atendidos

os requisitos de urgência e necessidade, no que medida provisória dispõe sobre

providências no campo da saúde pública nacional, sem prejuízo da legitimação

concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Apresentados embargos de declaração à decisão monocrática, a Advocacia

Geral da União posicionou-se sobre o tema, estabelecendo que é inviável que cada

Estado defina de própria forma o que são serviços essenciais, pois, se assim o fosse,

haveria grave intervenção no abastecimento nacional, no fornecimento de

medicamentos e na circulação necessária de pessoas e bens, sendo inadmissível a

“pulverização absoluta” da ANVISA para o tratar sobre saúde pública, também

argumentando que é exercício normal da competência legislativa da União na

edição de normas gerais sobre proteção à saúde, sendo uma questão que não

comportaria variações estaduais e municipais.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Quando julgada e referendada por unanimidade a liminar do ministro

Marco Aurélio, o Plenário do Supremo Tribunal Federal foi assertivo ao determinar

e reiterar que as competências concedidas à ANVISA pela MP 926/2020 não afastam

a competência concorrente de estados e municípios sobre a saúde pública. Vejamos

o teor da Decisão:

O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida


pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação
conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de
explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo,
nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da
República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços
públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro
Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte, quanto à
interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros
Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Redigirá o acórdão o Ministro
Edson Fachin. Falaram: pelo requerente, o Dr. Lucas de Castro
Rivas; pelo amicus curiae Federação Brasileira de Telecomunicações
– FEBRATEL, o Dr. Felipe Monnerat Solon de Pontes Rodrigues;
pelo interessado, o Ministro André Luiz de Almeida Mendonça,
Advogado-Geral da União; e, pela Procuradoria-Geral da
República, o Dr. Antônio Augusto Brandão de Aras, Procurador-
Geral da República. Afirmou suspeição o Ministro Roberto Barroso.
Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário,
15.04.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência -
Resolução 672/2020/STF).

No voto, o ministro Gilmar Mendes asseverou que “se, por um lado, é

efetivamente relevante a necessidade de padronização dos instrumentos de

enfrentamento da crise sanitária, por outro, é preciso reconhecer que o Brasil é um

país com dimensões continentais, com regiões que demandam soluções ajustadas

ao seu contexto”.

Coaduno, o ministro Edson Fachin reitera o disposto no art. 18/CF entendeu

que é devido que a União legisle sobre o tema, desde que o exercício dessa

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

competência resguarde a atuação político-administrativa própria dos demais entes.

Outrossim, considera que a delegação de competência a um dos poderes do Estado

não pode implicar, sob ângulo material, na hierarquização dos poderes ou das

esferas de Governo, memorando a instituição do federalismo cooperativo. O então

ministro ainda alerta que “o presente caso revela muito bem a necessidade de

definir urgentemente os contornos das competências dos entes da federação no

âmbito do federalismo cooperativo da Constituição Federal”.

A respeito do modelo de Federalismo de Integração, o ministro Ricardo

Lewandoski rememorou o Princípio da Subsidiariedade 98 e o conceito de Interesse

Predominante 99 como premissas para balizar a ação conjunta do Estado frente à

crise pandêmica. Pois, ainda que o art. 21, XVIII/CF determine que cabe à União

planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, deve

haver para todo ato governamental critérios razoáveis e proporcionais, em respeito

à autonomia das esferas federais e visando o diálogo para a cooperação entre os

Entes Federados.

A natureza dos votos proferidos é dotada de taxativa discricionariedade em

face da estrutura cooperativa do federalismo brasileiro, repudiando a invasão e

apropriação de competências, assim como a ideia de hierarquia entre os Entes,

avessa ao Texto Constitucional. O episódio é mais um de diversos temas julgados

no Supremo Tribunal Federal nutridos de similaridade, acionando a Corte em

98
Princípio federativo. Visa a união entre o federalismo à cooperação entre os membros desde que respeitada
a autonomia dos Entes e seja destinada a responsabilidade para aquele que fornecer melhor eficácia.
99
Predominância do interesse local em relação à sua relevância, autonomia e capacidade de eficácia.
(MORAES, 2014).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

diversas épocas para manifestar-se e prover resolução sobre dissídio federativo, a

exemplo da ADI nº 2.903100 em 2005 ou ADI nº 4060101 em 2015.

Tão recente e pacífico é o posicionamento do STF sobre o dever cooperativo

do Estado, especialmente em matéria de saúde, que questionamento aparente

ocorreu em 2019, na ADPF 109 102 . Os ministros votaram simpáticos à decisão

colegiada proferida na ADI nº 6.341, destacando-se o voto do ministro Alexandre

de Moraes. Vejamos um trecho:

“Em relação à saúde e assistência pública, inclusive no tocante à


organização do abastecimento alimentar, a Constituição Federal
consagra, nos termos dos incisos II e IX, do artigo 23, a existência de
competência administrativa comum entre União, estados, Distrito
Federal e municípios. Igualmente, nos termos do artigo 24, XII, o
texto constitucional prevê competência concorrente entre União e
estados/Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da
saúde; permitindo, ainda, aos municípios, nos termos do artigo 30,
inciso II, a possibilidade de suplementar a legislação federal e a
estadual no que couber, desde que haja interesse local; devendo,
ainda, ser considerada a descentralização político-administrativa
do Sistema de Saúde (art. 198, CF, e art. 7º da Lei 8.080/1990), com a
consequente descentralização da execução de serviços e
distribuição dos encargos financeiros entre os entes federativos,
inclusive no que diz respeito às atividades de vigilância sanitária e
epidemiológica (art. 6º, I, da Lei 8.080/1990)”.

Entretanto, por mais que em várias oportunidades a Suprema Corte

orientou e julgou como deve ser a atuação dos Estados-Membros, a rotineira troca

100
Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Associação dos Defensores Públicos – ANADEP com
pedido de medida cautelar, contra a Lei Complementar 48/2003 do estado da Paraíba, que modificou a Lei
Complementar nº 39 de 2002. As leis referem-se à organização da Defensoria Pública no estado.
101
Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino
(Confenem) contra dispositivos da Lei Complementar 170/1998, do estado de Santa Catarina, que limitam o
número máximo de alunos por sala de aula no estado. (Discussão sobre competência legislativa concorrente
na educação, prevista no Art. 24, IX/CRFB).
102
De relatoria do ministro Edson Fachin, a Ação contestou a Lei municipal 13.113/2001, de São Paulo, e o
Decreto municipal 41.788/2002, que proíbiram o uso de amianto como matéria prima na construção civil.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de agentes políticos nos poderes legislativo e executivo acarreta o mesmo conflito

de responsabilidades, por entendimentos unilaterais e ignorância jurídica. O

federalismo cooperativo é enriquecedor e próspero quando as intenções de cada

Estado-membro são conciliadas, por outro lado, entravam, confundem e

desfavorecem o desenvolvimento nacional quando conflitantes.

A esperança de um convívio harmonioso entre os Entes ainda é ideal, quase

que não-eventual, e uma barreira para os legisladores, abordado assertivamente por

Raul Machado Horta (2010, p. 274) ao tratar que “o convívio harmonioso entre

entidade central e unidades periféricas representa grande desafio ao constituinte

federal, em razão da evidente tensão entre dois movimentos contraditórios: a

unidade e a diversidade (coesão e particularismo), que dependem de fatores

extraconstitucionais de índole natural, econômica e social”.

Tamanha é a dificuldade legislativa em estabelecer parâmetros para a

execução da cooperação legal, que, entrega o legislador tal conteúdo à prática

política que, em razão da generalidade do texto constitucional, aproveita por

brechas a aplicação de medidas, como a MP 926/2020 que, em muitos casos,

resultam em ações diretas de inconstitucionalidade ou outros dispositivos de

controle, como a ADI nº 6341.

Em matéria de saúde pública, a generalidade faz-se presente no art. 23, II/

CF, pois, considerada a ausência de lei complementar que estabeleça a competência

comum no fornecimento da saúde, assim como o art. 24/CF não limita o legislador

ao tratar sobre o mesmo tema, favorece então, ambiente para a aplicação de medidas

unilaterais da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios,

corrompendo o instituto, destituindo-o de efetividade, afastando qualquer sinergia

governamental inerte em embates políticos individuais.

420
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A consecutiva ocorrência de fatos, conforme descrito ao longo deste artigo,

demonstram não a realização do preceitos fundamentais e deveres sociais, mas uma

corriqueira exoneração de responsabilidades por parte dos Entes, onde, a

sobreposição de competências para a ação comum e de mesma finalidade revela-se

pouco à ineficácia.

A carência legislativa e completiva referente a responsabilidade sanitária

ambientou um espaço vazio para a criação de ‘’anomalias jurídicas’’, como a PEC

10/2020, também intitulada ‘’orçamento de guerra’’, que fora aprovada pelo

Congresso Nacional, transfigurada na Emenda Constitucional 106/2020, instituindo

regime extraordinário fiscal para o combate ao Covid-19. A emenda permite o não

cumprimento da ‘’regra de ouro’’ do orçamento (art. 167, III/ CF; Lei. Nº 101/2000)

que proíbe que o governo realize dívidas para pagar a despesas correntes, que,

anteriormente, resultaria em crime de responsabilidade; bem como possibilita

contratações temporárias de pessoal, obras, serviços e compras sem a autorização

da LDO; a criação de despesas; incentivos tributários e empréstimos

governamentais a empresas; desde que, com a finalidade abstrata de combate à

epidemia, abrindo possibilidades à anarquia de medidas inconstitucionais,

orçamentos e contratos superfaturados, o enriquecimento ilícito e operações fiscais

desastrosas.

Compreende-se pelo todo que a ausência de lei complementar para a

devida regulamentação da ação cooperativa dos Estados-Membros ao limita-los em

competência e responsabilidade fiscal pode gerar efeitos estarrecedores e

desastrosos, evidenciados em tempos de crise, como a pandemia do Covid-19, em

que, tem-se o conflito interno do Estado, inepto e ineficaz no desenvolvimento de

políticas públicas que diminuam riscos contagiosos e forneçam o acesso aos serviços

de saúde, conforme o art. 196/CF, sendo também responsável por inferir ao direito

421
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

social fundamental da saúde, prolongando sua solvência em razão de decisões

governamentais conflitivas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise pandêmica causada pela Covid-19 não só desestabilizou a sociedade

de forma sistêmica, como também evidenciou a generalidade do Pacto Federativo

esculpido no texto constitucional, promovendo verdadeiros embate entre os entes

federativos em matéria de responsabilidade sanitária, possibilitando interpretações

e medidas dos unilaterais dos entes federativos, resultando não em uma ação

cooperativa, mas em decisões políticas e operações fiscais independentes, muitas

destas inconstitucionais, incoerentes aos princípios da administração pública e

diretamente prejudiciais à efetivação, garantia e segurança de direitos

fundamentais, sendo imprescindível a necessidade de lei complementar que

discipline e ordene em relativo instituto, sendo emergente frente aos anseios

populares de natureza sanitária decorrentes do atual momento de calamidade

pandêmica.

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425
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A PROBLEMÁTICA DO ENSINO PÚBLICO BRASILEIRO DIANTE

DA PANDEMIA DA COVID-19 E A NECESSIDADE DE INCLUSÃO

DIGITAL: A (IN)APLICABILIDADE DO EXAME NACIONAL DO

ENSINO MÉDIO (ENEM) RELATIVO AO ANO DE 2020

Camilla Martins Cavalcanti 103


Nikaelly Lopes de Freitas104
Arnelle Rolim Peixoto105

RESUMO
Dentre as várias áreas impactadas pela pandemia da COVID-19, a educação aparece como
uma das mais latentes, principalmente pelas políticas de isolamento social e pela
insuficiência da inclusão digital dos estudantes, nisto consiste a justificativa e a relevância
do artigo. Objetiva-se, então, por meio deste trabalho, analisar à questão do Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) relativo ao ano de 2020 considerando a problemática
que envolve o ensino público brasileiro diante da pandemia, bem como a necessidade de
inclusão digital. Nesse sentido, o artigo se dividiu da seguinte forma: Em um primeiro
momento, mostra-se a educação frente à Pandemia da COVID 19. Depois, aborda-se a
inclusão digital como uma meio de efetivar o direito a educação. E, por fim, retrata-se a
questão da (in)aplicabilidade do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) referente ao
ano de 2020. Para tanto, o trabalho contou com metodologia do tipo bibliográfica, de
natureza qualitativa, com a finalidade descritiva e exploratória. Conclui-se que para se
efetivar o Direito Fundamental a educação, principalmente em situações como a da
pandemia da COVID-19, faz-se necessária a inclusão digital dos sujeitos envolvidos no

103
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (PPGD/UNIFOR). Diretora e pesquisadora
da linha de pesquisa Direito Internacional dos Direitos Humanos do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos
Internacionais (GEDAI) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro dos Grupos de Pesquisa:
Administração Pública e Tributação no Brasil (GEPDAT) e Relações Econômicas, Políticas, Jurídicas e Ambientais
na América Latina (REPJAL), ambos do Programa de Pós-graduação em Direito da UNIFOR. Endereço
eletrônico: camillam.cavalcanti@outlook.com. Currículo: http://lattes.cnpq.br/5567124816666252.
104
Pós-graduanda em Direito Internacional e Direito Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC-MG). Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará. Pesquisadora do Grupo
de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais (GEDAI/UFC). Endereço eletrônico:
nikaelly_lopes@hotmail.com. Currículo: http://lattes.cnpq.br/3857380840307158.
105
Pós-doutoranda em Direitos Sociais pela Universidade de Salamanca. Pós- doutoranda em Direito pela
Universidade Federal do Ceará. Doutora em Direito pela Universidade de Salamanca. Professora do Grupo de
Estudos em Direito e Assuntos Internacionais (GEDAI/UFC). Professora da Uninassau. Email:
arnellerolim@hotmail.com. Currículo: http://lattes.cnpq.br/8388142696323733.

426
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sistema educacional (professores e estudantes), principalmente pelo entendimento de que


inclusão digital está atrelada ao Direito à educação, considerando a Teoria de direitos
fundamentais de Robert Alexy (2008).

Palavras-Chave: Direito Educação; Direito à Inclusão Digital; Pandemia da COVID 19;


Exame Nacional do Ensino Médio.

ABSTRACT
Among the various areas impacted by the COVID-19 pandemic, education appears as one
of the most latent, mainly due to social isolation policies and the inclusion of students'
digital inclusion, this is the justification and an article of the article. The objective, then, is
through this work, to analyze the issue of the National High School Examination (ENEM)
for the year 2020 considering the problem that involves Brazilian public education in the
face of the COVID-19 pandemic, as well as the need for inclusion digital. In this sense, the
article was divided as follows: At first, education in the face of the COVID-19 Pandemic is
shown. Then, digital inclusion is addressed as a means of realizing the right to education.
And, finally, the question of the inapplicability of the National High School Examination
(ENEM) for the year 2020 is portrayed. For this purpose, the work had a bibliographic
methodology, of qualitative nature, with descriptive qualification. and exploratory. It is
concluded that in order to make the Fundamental Right to education effective, especially
in situations such as the pandemic of COVID 19, it is necessary to digitally include the
obligated subjects in the educational system (teachers and students), mainly due to the
understanding that digital inclusion is linked to the Right to Education, considering Robert
Alexy's Theory of Fundamental Rights (2008).

Keywords: Education law; Right to Digital Inclusion; COVID 19 pandemic; National High
School Exam.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o Direito à educação como direito

fundamental social. Porém o estipulado legislativamente isolado não é suficiente

para se concretizar o Direito à educação, sendo assim, faz fundamental a adaptação

deste direito a situação social. Conforme a teoria criada por Robert Alexy, os direitos

fundamentais podem ter normas de direitos fundamentais atribuídas.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

No Século XXI, com a larga utilização das Tecnologias de Comunicação e

Informação (TICS), nota-se a inclusão digital como uma das formas de inclusão

social. Então, percebe-se que a educação é um instrumento de inclusão social precisa

se adaptar as realidades, entende-se que para se realizar o Direito à educação a

inclusão digital se faz necessária.

Considera-se relevante a temática, pois, com a pandemia da COVID-19 e as

medidas de isolamento social, as aulas passaram a ser remotas e novos desafios

sugiram, principalmente, no âmbito do ensino público brasileiro, pois muitos dos

sujeitos envolvidos no sistema educacional (professores e estudantes) não foram

incluídos digitalmente e, com isso, não estavam preparados para tal situação.

Nessa ambiência, tem-se a problemática do ensino ser concedido em

plataformas virtuais, ainda se pode dizer a inclusão digital que vai além de apenas

se dá acesso à internet aos estudantes. Com o sistema de educação presencial

afetado, torna-se maior ainda a distância entre os estudantes que já eram

privilegiados e os que eram estão prejudicados, em especial, no que diz respeito aos

estudantes vestibulandos do ano de 2020.

Desta forma, por intermédio deste trabalho, objetiva-se analisar à questão do

Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) relativo ao ano de 2020 frente à

pandemia da COVID 19. E, nesse cenário, investiga-se a necessidade de inclusão

digital dos estudantes e professores para se ter concretizado o Direito à educação.

No trabalho, utilizou a metodologia do tipo bibliográfica, na qual por meio de livros

e artigos científicos atuais, fez-se o estudo e a escrita sobre a temática. Por fim, a

natureza é qualitativa com a finalidade descritiva e exploratória.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. A EDUCAÇÃO FRENTE À PANDEMIA DA COVID 19

Embora diversas pesquisas estejam sendo desenvolvidas no âmbito de

diferentes países, o isolamento social e reforço dos hábitos de higiene, permanecem

como os principais mecanismos de enfrentamento ao contágio pelo SARS-CoV-2.

Desse modo, tais fatores impuseram diversos desafios às instituições sociais,

principalmente, a escolar, que com a paralisação das atividades presenciais, foi

forçada a uma reinvenção abrupta de suas bases para a continuidade do processo

de ensino-aprendizagem e manutenção do desenvolvimento cognitivo e

socioemocional dos alunos (TPE, 2020).

Essas mudanças se efetivaram num contexto de ruptura social, onde se

buscava manter certa normalidade quando, em verdade, a vulnerabilidade e o

desemprego aumentavam, à medida que 25.315.341 pessoas adoeciam no mundo e

848.917 delas morriam (MAMOON; RASSKIN, 2020, s.p.). Ainda que negativa para

todos, a atual conjuntura atinge sobremaneira os grupos sociais há muito

marginalizados, tendo em vista que, “qualquer quarentena é sempre

discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais que para outros. Eles têm em

comum alguma vulnerabilidade especial que precede a quarentena e se agrava com

ela” (SANTOS, 2020).

Dessa forma, incorporando uma lógica produtivista de uma quarentena que

“pressupõe que as pessoas tenham casa, dinheiro para comida e que contem com os

meios para se conectar com os outros” (DAVIS; KLEIN, 2020, online), a educação foi

transferida para o meio virtual, tornando mais visível e reforçando a injustiça, a

discriminação e a exclusão social (SANTOS, 2020, online) a que estão submetidas as

milhares de crianças e jovens sem acesso à internet.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

No mundo, cerca de 1,5 bilhão de crianças em idade escolar foram afetadas

pelo fechamento das escolas, incluindo-se aquelas que se encontram no ensino

secundário inferior ou superior, ao passo que, 463 milhões não tiveram como

acessar a aprendizagem remota. De todo modo, nos casos em que esse acesso foi

possível, demonstrou-se grandes limitações na aprendizagem e profundas

desigualdades em seu acesso (UNICEF, 2020).

Isto é, ainda aquelas cujo acesso for possibilitado, outras circunstâncias

podem diminuir ou impossibilitar a aprendizagem, entre elas: o desemprego

familiar, o adoecimento de pessoas da família ou comunidade, a existência de local

adequado e silencioso para estudos, doenças preexistentes, sentimento de medo de

ser contaminado e saúde mental, qualidade da alimentação, responsabilização

desproporcional pelo cuidado com os afazeres domésticos e crianças menores,

violência comunitária e intrafamiliar, bem como saneamento básico, acesso à água

potável e à energia elétrica, habilidade dos professores e apoio da família no

processo de aprendizagem.

Segundo a UNICEF (2020), globalmente, ao menos 31% dos alunos do

primário ao ensino médio não podem ser atingidos pela educação à distância em

razão da falta de políticas de apoio à aprendizagem remota digital ou da falta de

bens domésticos necessários para receber uma instrução nesses moldes, de modo

que:

Os alunos das áreas rurais representam consistentemente a grande


maioria daqueles que não podem ser alcançados por nenhuma das
três modalidades de ensino à distância analisadas,
independentemente do nível de desenvolvimento econômico do
país. No geral, três em cada quatro alunos que não podem ser
alcançados vivem em áreas rurais, mas em países de baixa renda a
porcentagem é ainda maior. Além disso, os alunos dos 40 por cento
mais pobres das famílias representam uma porcentagem

430
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desproporcionalmente alta daqueles que não podem ser


alcançados. Em países de baixa renda, eles representam 47 por cento
daqueles que não podem ser alcançados, enquanto em países de
renda média eles constituem 74 a 86 por cento daqueles que não
podem ser alcançados. (UNICEF, 2020a)106.

No entanto, o relatório alerta que o número real de alunos que não podem

ser alcançados pode se revelar ainda significativamente maior. Desse modo, o

contexto socioeconômico que deriva do quadro pandêmico, ressalta a importância

do ambiente escolar, não só no aprendizado formal, mas no fornecimento de

serviços de nutrição, higiene, saúde mental, apoio psicossocial, além de reduzir

drasticamente o risco de violência (ONU, 2020).

Denise Silva e Francisco Souza (2020, p. 974) relatam que os dados elencados

pela UNICEF refletem o alto índice de abandono escolar e de insucesso educacional.

Os autores preconizam que, apesar do contexto de crise pandêmica, a educação

deverá ser igualitária. Assim, o Poder Público deverá, por meio de políticas

públicas, garantir a concretude do Direito Fundamental à educação,

independentemente das situações de crise. Assim, aduzem:

O estado atual de emergência decorrente da disseminação do


coronavírus a nível global evidenciou a necessidade de
(re)pensarmos o papel dos responsáveis/coletividade nas políticas
públicas educacionais para o fortalecimento do direito fundamental
social à educação, a partir dos diferentes contextos, como
programas de qualificação docente; material didático; transporte
escolar; complemento nutricional; e em especial, acesso igual à
tecnologia de informação. Nesse sentido, a globalização, as crises e

106
No original: “Students in rural areas consistently represent the vast majority of those who cannot be reached
by any of the three remote learning modalities analyzed, irrespective of the country’s level of economic
development. Overall, three out of four students who cannot be reached live in rural areas, but in lower-income
countries the percentage is even higher. In addition, students from the poorest 40 per cent of families account
for a disproportionately high percentage of those who cannot be reached. In low-income countries, they
represent 47 per cent of those who cannot be reached, while in middle-income income countries they constitute
74 to 86 per cent of those who cannot be reached” (UNICEF, 2020a).

431
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a interconectividade global demonstram que, além da transmissão


e da aquisição do saber, a educação também objetiva a integração
da sociedade da informação. Seja aula presencial ou, em tempos de
pandemia, aula on-line, os pais/responsáveis, o Poder Público, as
escolas e os professores, devem levar em conta que a educação
universal e igualitária deve assegurar um sistema educacional
inclusivo em todos os níveis para que todos desenvolvam suas
habilidades segundo suas características e necessidades de
aprendizagem. E a utilização das TIC de forma educativa se mostra
mais um espaço para a construção de saberes e de conhecimentos,
devendo levar em conta as desigualdades existentes como elemento
de construção da educação igualitária (SILVA; SOUZA, 2020, p.
974-975).

Nesse sentido, Alexandre Pereira, Fábio Narduchi e Maria Miranda (2020,

p.232) relatam que “O cenário de enfrentamento à pandemia vem exigindo medidas

biopolíticas por parte do Estado, na área da educação, em função da pandemia de

coronavírus”. Desta forma, em detrimento das medidas de isolamento social para

evitar a propagação do vírus, o Estado tem que intervir por meio de providências

eficazes educacionais para minimizar os danos causados aos estudantes.

Desta forma, a utilização da tecnologia para a educação não tem o escopo de

“substituir o ensino presencial”, pois, no momento, apresenta-se apenas como uma

forma de impedir que os estudantes concluam o ano letivo (PEREIRA; NARDUCHI;

MIRANDA, 2020, p.232). Para Santos et al (2020, p. 459):

[...] vale ressaltar que o processo de isolamento social é sempre


discriminatório. Na conjuntura educacional, observa-se que tem
sido mais difícil para alguns grupos sociais do que para outros e
impossível de conceber para um grande grupo de atores sociais,
com necessidades básicas que já precediam a pandemia, sendo
ainda mais agravada com ela, como é o caso da população em
vulnerabilidade social.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Então, nota-se a necessidade relatar que o ensino remoto improvisado não

significa a concessão de um aprendizado de qualidade. Sendo assim, apenas um

meio de evitar prejuízos ainda mais graves educacionalmente. Cabe ainda ressaltar

que, diante do fato de que os estudantes do ensino público brasileiro não são

incluídos digitalmente se tem ainda um fator que agrava uma avaliação qualitativa

positiva do ensino remoto frente à pandemia da COVID 19.

2. A INCLUSÃO DIGITAL COMO UMA MEIO DE EFETIVAR O DIREITO À

EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID-19

Bitante et. al. (2016, p. 297) ao considerar a importância das Tecnologias da

Informação e Comunicação (TICs) para o aprendizado de estudantes de escolas

públicas, expõe que “No atual contexto da sociedade, não há como se dissociar

aprendizado e tecnologia, pois esta, quando bem utilizada, vem facilitar o

aprendizado [...]”. Assim, entende-se que, em meio às atualizações tecnológicas

presentes no Século XXI, nasce uma necessidade de somar tais meios para melhorar

a qualidade do ensino.

Cabe ressaltar que a existência das TICs na sociedade não significa inclusão

digital de todos. E, no caso do ensino público, apenas a concessão de computadores

e o acesso à internet não configuram a inclusão digital dos estudantes. É preciso que

os estudantes tenham cursos formativos para terem familiaridade com os

instrumentos. Com relação a essa concepção se tem que:

[…] não basta ter computador e conexão à Internet, os jovens


precisam se fortalecer e garantir sua inclusão e inserção social,
acessar os diversos bens culturais e educacionais e aprender a
diferenciá-los, analisá-los, compará-los, fazer suas próprias

433
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pesquisas e tomar decisões quanto às respostas que encontra, ou


seja, superar a lacuna cognitiva (MARTÍNEZ, 2015, p. 347)107.

Considerando que, no Brasil, muitos alunos não têm nem o básico que seria

um computador e o acesso à internet, o cenário do isolamento causado pela

pandemia da COVID-19 é um empecilho a mais para a aprendizagem. Karina

Marcon (2020, p. 100) após problematizar “Que educação estamos praticando e para

quem, neste contexto de pandemia?” concluiu que:

Neste contexto de isolamento social ocasionado pela pandemia


Covid-19, escolas e universidades tiveram que fazer uso das
tecnologias digitais de rede para mediação e continuidade dos
processos de ensino-aprendizagem que não puderam mais ser
realizados presencialmente. Entretanto, os dados sobre acesso aos
computadores e à internet nos domicílios brasileiros apresentados
na Pesquisa TIC Domicílios (CGI.BR, 2019) são preocupantes e
demonstram uma disparidade de acesso aos recursos tecnológicos.
Observamos que 99% da população que fez uso da internet no ano
de 2019 utilizou por meio de telefone celular, e que há uma
diferença profunda e marcante de acesso de acordo com a classe
social [...] (MARCON, 200, p.100).

Nessa perspectiva, a inclusão digital está correlacionada com a inclusão

social. Com isso, na medida em que uma pessoa estiver excluída digitalmente se

tem também agravada a exclusão social desta. Lucila Pesce e Adriana Bruno (2015,

p. 356) acrescentam que “É imperioso trabalhar a inclusão digital como pertencente

ao campo maior da inclusão social, em um movimento capaz de promover a

emancipação dos sujeitos sociais envolvidos [...].”

107
No original “[...] una computadora y una conexión a Internet no es suficiente, los jóvenes necesitan para
fortalecer y asegurar su inclusión e inserción social, acceder a una diversidad de bienes culturales y educativos
y aprender a diferenciarlos, analizarlos, compararlos, hacer sus propias búsquedas y tomar decisiones respecto
de las respuestas que encuentran, es decir superar la brecha cognitiva.” (MARTÍNEZ, 2015, p. 347).

434
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Cabe ressaltar ainda a concepção de Victor Malaggi (2020, p.76) que, ao falar

do papel dos educadores, relata “Cabe a nós tentarmos organizar os contrapontos,

teórica e praticamente, ‘daquilo que é’ e ‘daquilo que virá’ a partir da crise humana

e civilizacional em potencial, derivada da pandemia COVID-19.”. Assim, percebe-

se também a necessidade repensar as abordagens educacionais para o período

pandêmico e para o período pós-pandemia no sentido de se estudar e implementar

a melhor forma de adaptação do sistema educacional.

O Direito à educação é previsto nos artigos 6º e 205 da Constituição Federal

de 1988 com um direito fundamental social (BRASIL, 1988). Entretanto, apesar do

respaldo legislativo, para se concretizar o Direito à educação é necessário um

conjunto de fatores que seja capaz de atrelar tal direito à realidade local. Assim,

ampara-se na Teoria da norma de Direito Fundamental proposta por Robert Alexy

(2008, p.65-66), a qual consiste em considerar que os direitos fundamentais podem

ter direitos atribuídos a estes para que, com isso, sejam concretizados na medida em

que estejam compatíveis contexto social.

Embasado nos impactos gerados pelas Tecnologias de Comunicação e

Informação (TICS) no século XXI, tem-se a construção do pensamento de que o

Direito à inclusão digital pode ser “uma norma de direito fundamental atribuída ao

Direito à educação”. Nesse cenário, para que se tenha efetivado o Direito

fundamental à educação também se faz essencial a efetivação do Direito à inclusão

digital (CAVALCANTI; FREITAS, 2019, p.12).

Porém, mesmo com a tese apresentada de que a “inclusão digital seria uma

norma de direito fundamental atribuída ao direito à educação”, no sistema público

de ensino no Brasil, a maioria dos sujeitos envolvidos não tem nem os instrumentos

(computadores e acesso à internet) para ser incluídos digitalmente. Desta forma,

denota-se caminho logo que precisa ser percorrido para se concretizar o Direito à

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

educação tendo como instrumento a inclusão digital, indo desde a concessão dos

instrumentos até formação dos indivíduos envolvidos.

3. (IN)APLICABILIDADE DO EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO

(ENEM) NO ANO DE 2020 NO CONTEXTO DA PANDEMIA DO COVID 19

No Brasil, a discussão da educação remota ganhou diversos contornos e, no

âmbito do Ensino Médio, restou demonstrada que a situação é acentuada em razão

da realização anual do Exame Nacional, para o qual, os alunos que objetivam uma

vaga em uma Instituição de Ensino Superior, se preparam durante toda a vida

escolar e especialmente no terceiro ano do Ensino Médio, quando os vestibulandos

são submetidos a uma rotina exaustiva de estudos.

O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), instituído pela Portaria MEC nº

438 em 1998 (NORMAS BRASIL, 1998), ao mesmo tempo, segundo Wagner

Andriola (2011), possibilita avaliar o desempenho escolar do ensino médio também

permite o ingresso desse aluno à uma graduação,. Em 2010, com a proposta de

reformulação do Exame, pautou a sua utilização como forma de seleção unificada

para as Instituições Federais de Ensino Superior (ANDRIOLA, 2011).

Nesse último aspecto, observa a importância da temática e a necessidade de

sua aplicabilidade e que tudo transcorra de forma correta, já que se está falando do

sonho desses adolescentes em conseguirem entrar em uma instituição de ensino

superior, abrindo a possibilidade futura de um desenvolvimento pessoal e

profissional dentro do âmbito laboral.

Essa importância em poder aceder à uma instituição de ensino superior (IES)

vem referenciada quando se pensa na educação como redentora, em que possibilita

a integração do indivíduo na sociedade. Nessa tendência, Cipriano Luckesi (1994,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

p. 38) destaca no sentido de possibilitar “a educação como instância social que está

voltada para a formação da personalidade dos indivíduos, para o desenvolvimento

de suas habilidades”.

Todavia, como exposto, a quarentena desnudou o véu sobre o argumento

meritocrático, revelando que as desigualdades iam além do mero esforço individual

e aprofundava as rachaduras no tecido social, distanciando ainda mais os grupos

historicamente marginalizados e excluídos do acesso à educação superior. Expondo

que, na verdade, a “quarentena provocada pela pandemia é, afinal, uma quarentena

dentro de outra quarentena” (SANTOS, 2020, online).

Nesse sentido, pesquisa realizada com “5.513.747 milhões de inscritos no

ENEM em 2018”, verificou que “2.335.639 milhões não tinham computador em

casa”, dos quais “89,1% são de escolas públicas”, “70,3% são negros” e “64,6% são

mulheres” (MIHESSEN; AMORIM; SILVEIRA, 2018), o que somado aos outros

fatores sociais, econômicos e de infraestrutura antes elencados, demonstram a

profunda desigualdade a que estão submetidos.

A partir dessa situação, houve diversos posicionamentos, por um lado o

governo, em primeiro momento, insistia em manter a aplicação, chegando ao

Ministro de Educação, Abraham Weintraub, a defender com um discurso que não

se situa dentro da realidade do contexto brasileiro e defesa à educação para todos,

no qual declarou que “O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) não será adiado

e que não foi feito para corrigir injustiças” (FOLHAPRESS, 2020). Um discurso que

vai de encontro ao que entendimento do papel do Estado na efetividade e

aplicabilidade dos direitos sociais, principalmente ao Direito à educação.

O governo, na insistência em continuar seu posicionamento, utilizou da

propaganda com meio para difundir o seu entendimento, com o lema “O Brasil não

pode parar” (RIVEIRA, 2020). Essa contumácia de não entender que dentro da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pauta da educação persiste a problemática brasileira no que se refere ao acesso à

educação, ao abandono e a inclusão digital, ou seja, três problemas existentes

devido à desigualdade econômica do Brasil.

Desta forma, em meio a conjuntura sociopolítica, econômica e sanitária do

Brasil no período da pandemia, teve-se um embate político em detrimento da

insistência do governo, por meio do ministério da educação, em manter a data para

o ENEM já estabelecida do cronograma do Ministério da Educação (MEC).

Diante disso, movimentos de estudantes alavancaram campanha pelo

adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), justamente por

considerarem que nenhum estudante deveria ser revitimizado pela desigualdade

socioeconômica e, mais uma vez, excluído, obstando a democratização do ensino

superior e aprofundando as disparidades. Com isso, no âmbito judiciário e no

legislativo, sugiram demandas pela alteração da data do exame.

No âmbito judicial, a demanda partiu da União Nacional dos Estudantes e

da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, tais entidades entraram com

mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça, porém foi indeferido

liminarmente por não ter assinatura do ministro da educação (SUPERIOR

TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2020). No legislativo, tiveram projetos de lei com o cunho

de suspender instantaneamente a aplicação das provas e do exame do ENEM, sendo

estes: o Projeto de Lei nº 2623/2020 na Câmara dos Deputados (BRASIL, 2020) e

Projeto de Lei do Senado nº 1277 (BRASIL, 2020) de 2020, o último sugeriu o

adiamento de 30 a 60 dias e, inclusive, foi aprovado pelo Senado (SENADO

FEDERAL, 2020).

Após esse embate, o Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) decidem por adiar a

aplicação da prova do ENEM de 30 a 60 dias e, para tanto, seria feita uma votação

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

no modelo de enquete para que os estudantes optassem qual seria o período da

prova. Com isso, tem-se as seguintes problemáticas: se apenas os estudantes já

incluídos digitalmente conseguiram votar, seria justa essa votação e o período de

adiamento seria satisfatório para, pelo menos, se ter um tempo viável para se sanar

desigualdades. No fim, foi decidido que o ENEM seria em Janeiro de 2021, de

acordo com o Ministério da Educação (MEC, 2020).

Entretanto, o simples adiamento do ENEM não é satisfatório no sentido de

resolver as distâncias de posição e de oportunidades agravadas no cenário da

pandemia da COVID-19. Haja vista que não se pode comparar a possibilidade que

um estudante de uma escola particular em preparar-se para o ENEM que tem um

aluno de escola pública. Mesmo, na tentativa de fazer uma consulta para saber esse

posicionamento, continua atuando na mesma problemática, pois nem todos os

estudantes tiveram os instrumentos para preencher essa consulta pública.

É necessária a efetivação do Direito Fundamental Social à educação em meio

à realidade da pandemia da COVID-19. Entende-se que a educação é um

instrumento eficaz que pode diminuir as latentes desigualdades sociais no Brasil.

Assim, ao considerar as particularidades do ensino frente à pandemia, o adiamento

do ENEM foi decisão razoável para a questão sanitária. Entretanto, não é uma

decisão suficiente para o quesito educacional, porque tão somente postergar a

aplicação prova para o ano de 2021 não exaure as desigualdades estendidas pela

manutenção da educação a distância ou remota e a presença de muitos estudantes

não incluídos digitalmente.

Sendo assim, têm-se que muitos estudantes serão prejudicados no que diz

respeito ao ingresso no ensino superior por não terem tido acesso à educação

durante esse período de pandemia. Assim, faz-se necessário repensar as

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

metodologias que possibilitem incluir digitalmente os estudantes do ensino público

brasileiro, independente das situações de crise.

CONCLUSÃO

Diante do cenário da pandemia da COVID 19, escolheu-se a continuidade na

oferta da educação, ou seja, viu-se que adaptação do ensino para o modelo remoto

seria um meio de cumprir com o calendário escolar e os estudantes não perderem o

ano letivo. Nessa perspectiva, teve-se uma pauta que veio a ser bastante

problemática para ser resolvida: a aplicação ou não do Exame Nacional do Ensino

Médio (ENEM).

Compreende-se que as pessoas podem melhor se qualificar por meio do

ensino superior, o que leva a entender que o acesso à Instituição de Ensino Superior

(IES) é essencial dentro do direito à educação, principalmente quando se trata do

fato de que uma pessoa que tem uma graduação concluída tem maior probabilidade

de encontrar trabalho formal, trabalho esse com todos os direitos garantidos.

Portanto, tal temática é considerada uma pauta importante para que cada ano

se aplica o ENEM, mas a discussão se encaminha para um novo rumo em torno

desse novo contexto, inabitual, que é a pandemia do COVID 19 e as medidas

necessárias que devem ser aplicadas para conter sua propagação. Nesse sentido,

tem-se a interrogação se deveria ou não ter a aplicação nesse ano de 2020.

Questionou-se, então, sobre sua viabilidade a viabilidade da aplicação do

ENEM em meio a pandemia e o contexto dos estudantes de ensino médio no Brasil,

haja vista a (in)suficiência da inclusão digital destes. Na pandemia, ficou evidente a

dificuldade dos estudantes em conseguirem continuar assistindo suas aulas de

forma remota. Então, percebeu-se que não se poderia manter a aplicação da prova

440
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

do ENEM se muitos não conseguiram acompanhar o conteúdo ofertado por não

terem equipamentos que possibilitem nem acesso à internet.

Tal problemática em torno da educação perpassa pela desigualdade

econômica existente no Brasil, principalmente nas comunidades mais vulneráveis

onde os estudantes sofrem com a falta de acesso à educação e, tem-se elevado

número de abandono escolar. Porém, tornou mais grave a situação destes

adolescentes vulneráveis no entorno precário da pandemia da COVID-19, o qual

afetou diretamente à educação escolar, em especial, com a falta de meios que

possibilitem uma qualidade do ensino remoto, ocasionando até no desestímulo para

continuar na escola.

Nesse caso, em meio a dificuldade que persiste no âmbito educacional frente

ao cenário pandêmico, considera-se importante enfatizar a agenda pendente que

não foi tão debatida e que atualmente é tão necessária: a necessidade da inclusão

digital dos sujeitos envolvidos sistema educacional, principalmente dos estudantes

mais vulneráveis. Em uma sociedade tecnologia, a inclusão digital dos estudantes

se faz fundamental, principalmente, pelo fato de que ao conferirem a inclusão

digital e, consequentemente, tem-se a inclusão social destes estudantes. Precisa-se,

então, da adoção de estratégias e abordagens educacionais que possibilitem a

inclusão digital.

Conclui-se que atribuir à inclusão digital como um meio de se efetivar ao

Direito à educação é um passo decisivo para concretização deste direito

fundamental social. Em especial, pelo fato de a necessidade da inclusão digital para

a educação ter sido agradava por conta do necessário isolamento social para a

contenção da pandemia da COVID 19. Afinal, na conjuntura do isolamento social,

o sistema de educação presencial foi afetado e, nesse sentido, é imprescindível se

ter a inclusão digital para que os estudantes tenham o assegurado o Direito à

441
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

educação. Com isso, a melhor solução seria incluir digitalmente os envolvidos no

sistema educacional público para que, assim, os estudantes não ainda mais

prejudicados.

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442
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ensino superior em caso de reconhecimento de estado de calamidade pelo


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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A (IN) EFICÁCIA DO ENSINO À DISTÂNCIA EM TEMPO DE

CORONAVÍRUS E O AUMENTO DA EXCLUSÃO E

DESIGUALDADES SOCIAIS NO BRASIL

Celio de Mendonça Clemente108


Darlan Alves Moulin 109
Maria Débora Mendonça Cosmo 110

RESUMO
Esse artigo objetiva analisar e a (in) eficácia do ensino a distância em tempos de combate
ao coronavírus e o possível aumento da exclusão e desigualdade sociais em função da
falta de acesso a equipamentos adequados e internet por parte dos alunos. Pesquisar a
educação também significa tratar de direitos fundamentais e, essa pesquisa justifica-se por
que é preciso discutir o ensino adotado na educação básica durante a pandemia, pois, isso
poderá contribuir para o aumento da exclusão social e aumentar as desigualdades já
existentes, pois, parte da população, em vulnerabilidade social, não tem condições de
acesso ao ensino à distância, em razão de não ter equipamentos ou acesso à internet. Para
a pesquisa utilizou-se o método crítico, de revisão bibliográfica, a análise de documentos
e dados sobre o acesso à internet e uso de computadores, celulares, etc., presentes no
material estudado. No primeiro capítulo discute-se os preceitos educacionais e a educação
na legislação, o segundo capítulo trata da EaD nos seus aspectos conceituais e marcos
legais e o terceiro capítulo apresentam-se dados sobre o acesso à internet e a
equipamentos, discutindo a EaD em tempos de coronavírus: exclusão e desigualdades. Os
dados apontam para uma realidade que o modelo de ensino utilizado neste período de
combate ao coronavírus poderá aumentar exclusão social e os índices de desigualdade já
existentes na sociedade brasileira, uma vez que por não ter acesso à internet e a
equipamentos adequados, o sujeito fica sem acesso à educação que é um direito que
possibilita acesso a outros direitos, à inclusão e à ascensão social.

108
Mestre em Ensino de Ciências e Matemática pela Universidade Federal de Sergipe – UFS/ PPGECIMA.
Especialista em Educação Matemática pelas Faculdades Integradas de Patos – FIP. Especialista em Gestão
Escolar e Práticas Pedagógicas pela Universidade Cândido Mendes – UCAM. Professor de Matemática na
Educação Básica na SEDUC/CE e na SME/Caririaçu-CE. E-mail: prof.celiomendonca@gmail.com; Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4677212015468292.
109
Mestre em Direitos Sociais, Difusos e Coletivos. Professor de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário
na Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ. Pesquisador bolsista do Programa Pesquisa Produtividade da
UNESA/RJ. E-mail: darlan.moulin@estacio.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/9695783352656464.
110
Bacharel em direito pela Universidade Estácio de Sá. E-mail: debora-cosmo@hotmail.com; Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2343612571690649

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Palavras-chave: (In) Eficácia; Ensino à distância; Coronavírus; Exclusão; Desigualdades


sociais.

ABSTRACT
This article aims to analyze and the (in) effectiveness of distance learning in times of
fighting the coronavirus and the possible increase in social exclusion and inequality due to
the lack of access to adequate equipment and internet by students. Researching education
also means addressing fundamental rights, and this research is justified because it is
necessary to discuss the teaching adopted in basic education during the pandemic, as this
may contribute to the increase of social exclusion and to increase existing inequalities, as ,
part of the population, in social vulnerability, does not have access to distance learning, due
to the lack of equipment or internet access. For the research, the critical method of
bibliographic review was used, the analysis of documents and data on internet access and
use of computers, cell phones, etc., present in the studied material. The first chapter
discusses the educational precepts and education in the legislation, the second chapter
deals with DE in its conceptual aspects and legal frameworks and the third chapter presents
data on access to the internet and equipment, discussing DE over time. of coronavirus:
exclusion and inequalities. The data point to a reality that the teaching model used in this
period to combat the coronavirus may increase social exclusion and the inequality rates that
already exist in Brazilian society, since the subject does not have access to the internet and
adequate equipment without access to education, which is a right that allows access to other
rights, inclusion and social ascension.

Keywords: (In) Effectiveness; Distance learning; Coronavirus; Exclusion; Social differences.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa visa analisar a (in) eficácia do ensino à distância em

tempos de combate ao coronavírus e o consequente aumento da exclusão e

desigualdades sociais e dessa forma, trata da educação como direito fundamental

a partir dos seus preceitos e da legislação vigente, da Educação à Distância (EaD)

a partir dos seus aspectos conceituais e marcos legais e, da EaD em tempo de

coronavírus na perspectiva de exclusão e desigualdades que podem ocasionar.

Essa pesquisa objetiva analisar e a (in) eficácia do ensino a distância em

tempos de combate ao coronavírus e o possível aumento da exclusão e desigualdade

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sociais em função da falta de acesso a equipamentos adequados e internet por parte

dos alunos. Dessa forma, pode-se demonstrar que o modelo de ensino adotado

poderá acarretar aumento da exclusão social e dos índices das desigualdades em

parte da população, principalmente aquela em vulnerabilidade social que não tem

condições de acesso ao ensino à distância, seja pela falta de equipamentos, ou de

internet de qualidade, impedindo a concretização do direito fundamental à

educação.

Questiona-se, como problemática, se este modelo de ensino à distância é

eficaz para promover educação de qualidade ou se pode apenas agravar a exclusão

de alunos que não têm instrumentos para uso e acesso à internet para participar

das aulas em “atividades remotas”, aprofundando as desigualdades sociais, em

função da falta de acesso ao direito à educação.

Pesquisar a educação também significa tratar de direitos fundamentais e

essa pesquisa justifica-se pelas discussões que precisam ser travadas a respeito da

EaD adotada nesse período de pandemia. Nesse aspecto, é relevante discutir essa

realidade para que possa-se fazer correção de rumos e adotar caminhos para que

o direito à educação seja efetivado com sucesso.

Cogita-se que o modelo de ensino à distância irá agravar ainda mais as

desigualdades sociais, hipótese essa confirmada por meio de diversos estudos

realizados, os quais demonstraram que grande parcela da população não tem

acesso à educação por meio da EaD, o que acaba por prejudicar os estudos,

aumentando, assim, os índices de exclusão e desigualdades sociais.

Para tanto, utilizou-se os métodos crítico, de revisão bibliográfica, a

análise de documentos e dados sobre o acesso à internet e uso de computadores,

celulares, etc., presentes no material estudado. Os dados apontam para uma

realidade em que demonstra-se que o modelo de ensino à distância utilizado neste

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

período de combate ao coronavírus poderá aumentar a exclusão social e a

desigualdade social e, dessa forma, o Estado precisa intervir no sentido de

assegurar esse direito.

1 PRECEITOS EDUCACIONAIS E O DIREITO À EDUCAÇÃO NA

LEGISLAÇÃO

O significado de educação em uma perspectiva mais restrita consiste na

aplicação dos métodos próprios para assegurar a formação e o desenvolvimento

do cidadão. É nesse sentido que educação é “a arte de ensinar ou de instruir, isto

é, um conjunto de atividades que visam ao desenvolvimento da capacidade físico,

intelectual do ser humano” (SERRANO, 2017, p. 21).

Esse conceito está presente no artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (LDBEN) – Lei Nº 9394/96 que o ampliou da seguinte forma:

Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se


desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no
trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos
sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais.
§ 1º Esta lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve,
predominantemente, por meio do ensino, em instituições
próprias.
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho
e à prática social (BRASIl, 1996, p. 06).

A educação nas diretrizes gerais tem o sentido de voltar-se para o aspecto

formal, uma vez que responde aos princípios educacionais presentes na

Constituição Federal de 1988 (CF/1988). Dessa forma, é preciso ampliar o conceito

de educação para, “ato ou efeito de educar-se; o processo de desenvolvimento da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

capacidade física, intelectual e moral do ser humano, visando a sua melhor

integração individual e social” (RAPOSO, 2005, p. 01),. Mas, é necessário localizá-

la no contexto de direito fundamental de segunda dimensão presente na CF/1988

e por assim sê-lo tem significado de assegurar a dignidade da pessoa humana e o

Estado Democrático de Direito.

A educação é, portanto, um processo e um direito. Como processo serve

ao desenvolvimento do sujeito social e, como direito serve de esteio para se pensar,

tomar consciência e alcançar outros direitos. “A educação pode ser compreendida

como a base para a concretização dos demais direitos constitucionalmente

garantidos. É através dela que o indivíduo passa a ter consciência de seus direitos,

bem como sobre sua responsabilidade para transformação da sociedade”

(MOULIN; MOULIN; ARBEX, 2019, p. 11).

Nesse sentido, o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) mostra a

educação como parte de um processo dialético que faz a interlocução entre o

sujeito individual e o sujeito como parte da coletividade, fazendo-o humano e

construindo a sua autonomia, fazendo-o, pela sua formação, atuar crítica e

criativamente na sociedade (BRASIL, 2012, p. 08). E essa atuação crítica e criativa

significa ter consciência dos seus direitos, dos direitos de outrem e da necessidade

de cobrar ao Estado que os assegure.

Pensar a educação como direito fundamental com um mínimo de

qualidade torna o sujeito ativo da própria cidadania e da garantia de uma

sociedade digna, justa e igualitária, por exemplo, elementos presentes nos

fundamentos da República. Isso tem imbricações com o desenvolvimento, uma

vez que, “[...] não pode estar associado apenas à ideia de crescimento econômico,

considerando-se reducionista qualquer teoria que sustente tal ideia, uma vez que

o direito ao desenvolvimento deve estar relacionado com as dimensões sociais,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

políticas, econômicas, culturais e ambientais” (SILVA; MOULIN; MOULIN, 2020,

p. 10).

A educação “conceitua-se como um direito superior e essencial à

convivência humana, Trata-se, pois, de um direito venerável de todo ser humano,

por ser causa e condição do desenvolvimento pleno das capacidades física,

intelectual e moral do homem” (SERRANO, 2017, p. 26). É evidente que o

desenvolvimento destas capacidades ocorrem na perspectiva de convivência

social e em favor da coletividade, pois, a educação não é, na sua essência, um

direito individual, mas, coletivo.

Nesse sentido, quando contribui para o indivíduo alcançar e exercer a sua

cidadania, a educação também é útil para que ele alcance suas liberdades

individuais e coletivas, serve de plataforma para garantir outros direitos

fundamentais e acolhem o alcance da igualdade material, por meio da ação estatal,

quando assegura padrões de mínimos de acesso e qualidade a bens materiais,

econômicos e culturais (RAPOSO, 2005).

Quando a CF/1988 e a LDBEN preconizam que todos devem ter acesso à

educação pública, gratuita e de qualidade, inclusive com garantia de sucesso, se

vislumbra que o Estado, ao garantir esse direito público subjetivo, também

implante políticas públicas que visem assegurar a sua concretização com padrões

mínimos de qualidade. Essas condições decorrem da educação como direito da

personalidade e da dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988; SERRANO,

2017).

Sobre a dignidade da pessoa humana,

[...] pode ser compreendida como qualidade daquele que é digno,


superior, merecedor de respeito e de consideração. A dignidade
humana não pode ser mensurada em valor monetário, não pode

452
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ser substituída por qualquer outra coisa. Apesar disso, há uma


dificuldade em se dar uma densidade jurídica ao conceito de
dignidade humana. Qual seria o conteúdo? Sem dúvida, respeito
à vida, à integridade física e psíquica, à consciência, à intimidade,
ao direito de ir e de vir, à liberdade de expressão, de pensamento,
de criação, de associação, de opinião, entre outros. Nesse contexto,
a pessoa se identifica como um ser que concentra valores morais,
Portanto, para realizar-se como um ser moral, deve estar voltada
para seu crescimento nos âmbitos intelectual, cultural e espiritual
(NUNES, 2002, p. 46).

Essa forma de pensar a dignidade da pessoa humana não é própria ou

restrita à doutrina do Direito, mas, está no cerne da CF/1988, tanto é que foi

elevada à categoria de Fundamento da República. E isso tem grande significado o

sujeito de direitos que assume “personalidade” ao nascer, pois, a dignidade da

pessoa humana consubstancia-se como o limite ou a barreira à qual o Estado não

pode transpô-lo na negação, por ação omissiva ou comissiva do Estado, do direito

fundamental.

Assim, “é importante também consignar que a análise jurídica de um

direito impõe, inicialmente, que identifique-se o seu titular, para, em seguida,

adentrar-se na questão da acessibilidade [...]” (MOREIRA, 2017, p. 106). Assim,

diz-se que o titular do direito é o cidadão identificado, que adquiriu a

personalidade ao nascer e passou a ter direitos e, sendo os fundamentais, o Estado

tem a obrigação de provê-los.

Dessa forma, a educação, tanto na CF/1988, quando na LDBEN, assume

essa dupla faceta de assegurar que o Estado não pode negar direitos fundamentais,

na medida em que se configura como direito subjetivo que comina com a sua

obrigação de provê-lo e no mesmo sentido, quando o faz com qualidade, o Estado,

também, viabiliza o mínimo existencial em termos de bens econômicos, sociais e

culturais, além de possibilitar por essas mesmas vias o alcance de outros direitos

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

fundamentais. Assim, a garantia do direito à educação, permite garantir outros

direitos e remete ao seu alcance de muitos outros.

Em uma ótica mais ampla e complementar,

[...] é inegável que a dignidade da pessoa humana depende da


ação do Estado e da utilização do seu aparato para assegurá-la, aos
direitos fundamentais e o mínimo existencial. E não há como
garantir tais direitos sem desenvolvimento nacional, o
fundamento do Estado brasileiro (COSMO ET AL, 2020, p. 05).

Se a garantia dos direitos está vinculada ao desenvolvimento nacional, se

vislumbra a educação como instrumento e processo pelo qual se alcança esse

fundamento. E isso ocorre por que esse direito parece ser o alicerce para o alcance

da dignidade da pessoa humana e para o exercício da cidadania e, “a educação é

indispensável ao pleno desenvolvimento do indivíduo. Em razão disso, o Poder

Público tem o dever de proporcionar os instrumentos necessários para que ela seja

assegurada a todos de forma de forma eficaz e com qualidade” (MOULIN,

MOULIN E ARBEX, 2019, p. 110).

A educação integra os direitos fundamentais e, carrega consigo a obrigação

do Estado de assegurá-la plenamente ao indivíduo. E isso só efetivamente ocorre

quando é provida com um mínimo de qualidade, pois, assim, se reconhece como

direito posto aos sujeitos sociais e como ponto de partida para se alcançar outros

direitos, a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito.

A educação, dependendo de como se ministra, pode ser um instrumento

indutor de profunda exclusão e aprofundamento das desigualdades sociais. Pode

produzir exclusão quando não alcança os estudantes que padecem de condições

necessárias ao acesso e permanência na escola com sucesso. Isso imbrica-se com as

condições físicas, psicológicas, ambientais, etc., de aprender. E quando o sujeito

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

não aprende, as desigualdades sociais são aprofundadas por que, em tese a escola,

ao ministrar um ensino ineficaz, ou deixar de ministra-lo de forma adequada e,

ainda assim, o formaliza como educação, estar também referendando exclusão

presente e aprofundando a desigualdade presente e futura.

As discussões sobre educação que precisam ser trazidas a lume dizem

respeito às condições de acesso e permanência com sucesso, mas, no sentido de

qualidade, pois, esses dois elementos estão imbricados no processo educativo. E

isso significa que tanto as práticas educativas na escola devem ser de qualidade,

quanto, as políticas públicas educacionais e de outras ordens que possibilitam o

acesso à educação também devem sê-lo, pois, não basta escola para que o direito à

educação se concretize.

Assim,

A educação de qualidade é um ideal buscado pelo professor, o


qual pretende ter sua prática educativa como instrumento de
transformação social. Nos mesmo sentido, as políticas públicas
educacionais devem ter essa qualidade como princípio e precisam
respeitar as demandas da sociedade, na medida em que
apresentam clareza na definição de objetivos e finalidades, bem
como, apresentam parâmetros e diretrizes que orientam a
condução do trabalho educativo no âmbito escolar (CLEMENTE,
2017, p. 25).

Essas transformações, contudo, só podem ser alcançadas por meio das

relações que ocorrem no contexto de escola, ensino e aprendizagem. E tais relações

são tão mais fortalecidas e contribuem para a qualidade da educação, quando

professores e alunos da educação básica compartilham o mesmo ambiente e,

assim, fortalecem os processos formativos. Esse é o sentido da educação escolar na

modalidade presencial na educação básica.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Não pode-se negar a existência da educação básica à distância, pois, a sua

efetivação tem lastro normativo e regulamentação legal. Mas, é necessário refletir

sobre como deve ocorrer e em que ou quais circunstâncias pode ser oferecida pelo

Estado como mecanismo de oferta da educação como direito fundamental, com

alcance de todos os sujeitos sociais e, sobretudo, com a qualidade requerida pela

legislação.

Assim, é preciso compreender o significado de EaD e a realidade que se

impõe à escola e aos alunos para a concretização do direito à educação, ante a

Pandemia do Coronavírus. Conhecer essa realidade permite-se discorrer sobre as

possibilidades de garantia do direito à educação, bem como, os seus desafios e

pontos de estrangulamentos.

2 EaD: ASPECTOS CONCEITUAIS E MARCOS LEGAIS

A EaD é uma modalidade de educação e faz parte da realidade do ensino

brasileiro e, consciente, ou inconscientemente, professores e alunos têm no seu

quotidiano, práticas de ensino e/ou aprendizagem que remetem a essa modalidade

de ensino. As atividades domiciliares e trabalhos de pesquisa feitos pelos alunos

em ambientes fora da escola são exemplos de educação formal

ministrada/trabalhada na perspectiva de EaD. Nesse aspecto, tais atividades têm

o sentido de complementar a educação ministrada em sala de aula.

A EaD tem conceito amplo e vai além das atividades ministradas para

resolução ou pesquisas em ambientes não escolares. É necessário um projeto

pedagógico que a fundamente e que seja colocado a serviço do ensino e da

aprendizagem, incluindo ações educativas, tutor à distância e, instrumentos

tecnológicos e de comunicação que torne possível a sua realização. EaD “é uma

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

forma de ensino e aprendizagem mediado por tecnologias que permite que

professores e estudantes estejam em ambientes físicos diferentes enquanto ensinam

e aprendem” (MELLO, BLEICHER E SCHUELTER, 2017, p. 05).

A EaD a partir das atividades realizadas fora da escola, parece restrita por

que atualmente as Tecnologias Informacionais e Computacionais (TIC) assumiram

um papel determinante na consolidação dessa modalidade de educação, enquanto

que, o aparato tecnológico torna factível o encurtamento de distâncias e

possibilidades de interação entre professor e aluno nos mais diferenciados tempos

e espaços.

Assim, nos últimos anos, as TIC sedimentaram práticas educacionais sob

a ótica de uma “educação sem distância” a partir das possibilidades de interação

que determinam na relação professor-aluno, aluno-aluno, professor-conteúdo e

aluno-conteúdo, maior aproximação, com esteio no conceito e no desenvolvimento

da cibercultura. E este é um fenômeno que, “envolve práticas contemporâneas de

sociabilidade no ciberespaço, onde se constituem as redes telemáticas mediante o

uso das tecnologias digitais pelos atores sociais” (DAVID, 2010, p. 07).

Dessa forma, “a cultura contemporânea, associada às tecnologias digitais,

(ciberespaço, simulação, tempo real, processos de virtualização etc.) vem criar uma

nova relação entre a técnica e a vida social que chamamos de cibercultura"

(LEMOS, 2002, p. 15).

Assim, a EaD não pode ser dissociada do uso das TIC e das diversas

formas de comunicação em tempo real, pois, isso torna a aula com maior interação

entre os sujeitos do ensino e da aprendizagem. As TIC, no entanto, não sustentam,

por si só o sucesso dessa modalidade de ensino, uma vez que é necessário, uma

retaguarda de pessoas que façam parte da tutoria e mediação das práticas

educativas na EaD.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Além disso, a EaD, “[...] é marcada por processos de diferenciação e de

diversificação institucional, e também pelo uso sistemático de redes de comunicação

interativas, como as redes de computadores, a Internet e os sistemas de

videoconferência, para a oferta de cursos nesta modalidade de ensino” (MELLO,

BLEICHER E SCHUELTER, 2017, p. 03). Assim, o sucesso da EaD vincula-se à

estrutura de equipamentos e materiais que a instituição dispõe, bem como, aos

professores.

Por outro lado, não é permitido o uso da EaD como única forma de acesso

aos conteúdos da educação formal para todos os níveis da educação escolar. A

legislação brasileira impõe limitações para a aplicação dessa modalidade de ensino

e, além disso, as formas de acesso e interação entre professor e aluno também podem

constituir-se de elementos que impedem a efetivação de uma EaD com a qualidade

que a educação contemporânea requer.

O próprio conceito de EaD, proposto pelo site do Ministério da Educação

(MEC) relembra que é a modalidade educacional na qual alunos e professores estão

separados, física ou temporalmente e, por isso, faz-se necessária a utilização de

meios e tecnologias de informação e comunicação. Essa modalidade é regulada

por uma legislação específica e pode ser implantada na educação básica (educação

de jovens e adultos, educação profissional técnica de nível médio) e na educação

superior (BRASIL, 2020, p. 01).

Essa concepção de EaD recepciona a realidade de que não pode ser

implementada para todos os níveis da educação básica, uma vez que restringe à

educação de jovens e adultos e à educação profissional de nível técnico. Todavia, as

resoluções e decretos atuais relativos à regulamentação dessa modalidade de ensino

apresenta outras circunstâncias da sua utilização e especifica procedimentos para a

sua efetivação.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

As diretrizes da LDBEM, no artigo 80, dizem o seguinte: “O poder público

incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância,

em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada” (BRASIL,

1996, p. 05). Nesse caso, o decreto nº 9.057/2017 é o documento legal mais recente

e importante relativo à regulamentação da EaD no Brasil. Essa norma jurídica trata

desde a conceituação até as formas de acesso e implementação dessa modalidade

de ensino, incluindo os níveis e etapas da educação escolar onde podem ser

utilizada como instrumento de oferta e acesso ao direito à educação.

Esse decreto, conceitua EaD da seguinte forma:

Art. 1º . Para os fins deste Decreto, considera-se educação a distância


a modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica
nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de
meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal
qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e
avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades
educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam
em lugares e tempos diversos (BRASIL, 2017, p. 01).

A EaD sob essa ótica pode ocorrer em espaços e tempos diverso e, aponta

para a necessidade de qualificação de pessoal e disposição de tecnologia necessária

e suficiente para efetivar-se. Dessa forma, vincula-se à necessidade de mediação

didático-pedagógica de um projeto pedagógico concebido de forma sistemática e

intencional, se conformando também aos ideais de cibercultura, sem os quais em

pouco poderia ter o seu sucesso alcançado.

A EaD não pode ter todas as atividades ministradas à distancia e, para a

educação básica, há restrições à essa modalidade de ensino. Por exemplo, sobre o

Ensino Fundamental a própria LDBEN no seu artigo 32, § 4º destaca que, “o ensino

fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais”. Assim, a EaD

não pode ser para o Ensino Fundamental a única forma de acesso à educação,

excetuando-se as situações emergenciais.

E sobre as situações emergenciais o Decreto nº 9.057/2017, especifica que

deve ser ministrado às pessoas que:

Art. 9º [...]
I - estejam impedidas, por motivo de saúde, de acompanhar o
ensino presencial;
II - se encontrem no exterior, por qualquer motivo;
III - vivam em localidades que não possuam rede regular de
atendimento escolar presencial;
IV - sejam transferidas compulsoriamente para regiões de difícil
acesso, incluídas as missões localizadas em regiões de fronteira; ou,
V - estejam em situação de privação de liberdade (BRASIL, 2017, p.
02).

A legislação, ao tratar a oferta de EaD para o Ensino Fundamental coloca no

centro da questão a situação pessoal do estudante e não o sistema de ensino ou

escolas. Isso significa que a “situação emergencial” prevista pelas diretrizes se

define para o sujeito objeto da demanda de educação e não para o Estado,

enquanto provedor desse direito.

Com relação à EaD no Ensino Médio, a LDBEN diz o seguinte:

Art. 36. [...]


§ 11. Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do
ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer
competências e firmar convênios com instituições de educação à
distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes
formas de comprovação:
I – demonstração prática;
II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência
adquirida fora do ambiente escolar;

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

III – atividades de educação técnica oferecidas em outras


instituições de ensino credenciadas;
IV – cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou
estrangeiras;
VI – cursos realizados por meio de educação à distância ou
educação presencial mediada por tecnologias (BRASIL, 1996, p.
15).

As diretrizes da LDBEN não explicitam a EaD como único instrumento de

oferta da educação no Ensino Médio. Pelo contrário, deixa claro que a EaD nessa

nível da Educação Básica pode reconhecer competências e firmar convênios com

instituições de EaD. Isso significa que a EaD também tem caráter complementar à

educação ministrada no âmbito da escola.

A EaD é, portanto, ministrada na educação básica nesses casos específicos. É

evidente que quando se trata de Educação de Jovens e Adultos (EJA) para o Ensino

Fundamental e Ensino Médio, admite-se a EaD como mecanismo suficiente para

que as pessoas que não tiveram acesso à Educação na idade adequada, possa

usufruir desse direito por meio dessa modalidade de ensino. Isso, contudo, só é

admitido pela legislação vigente para correção de fluxo e para avançar para as

séries seguintes.

É prudente dizer que a EaD proposta pela legislação tem instrumentos de

acesso e práticas específicas para essa modalidade, definidas pelas diretrizes dos

diversos sistemas de educação que a adota. Dessa forma, não é uma modalidade

de ensino desconectada da realidade dos alunos da sua demanda e das escolas. De

outra forma, não é direcionada para o ensino formal em massa, uma vez que tem

público específico e volta-se, assim, apenas para uma parcela dos estudantes que,

em síntese precisam avançar e, de alguma forma, já o amadurecimento necessário

para usufruir do ensino por meio da EaD.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A esse respeito, por exemplo, no Curso de Formação de Professores da

Secretaria de Educação do Estado do Ceará, os alunos são orientados para o uso

da plataforma da secretaria e, ao mesmo tempo, para desenvolver rotina de

estudo, com orientação de tutores à distância, que os orientam nas diversas

atividades proposta durante o curso. Além disso, têm atividades avaliativas

individuais para que possam ser avaliados, conforme prepondera a legislação

vigente sobre EaD.

Ainda sobre essa questão, os manuais do curso, ainda ponderam que, embora

a EaD necessite de um esforço redobrado e um nível de comprometimento

individual no sentido de organização de horários de estudo para que se atinjam os

objetivos de aprendizagem em tempo específico, ela apresenta uma série de

vantagens, tais como: disposição de material didático em plataformas ou sites em

formatos variados, interatividade, autonomia e flexibilidade de horários (CEARÁ,

2020).

Assim, a discussão a respeito da EaD deve voltar-se para o público para o qual

se dirige e a forma de acesso deste às atividades educativas ministradas pela

escola. Não é o caso, para a educação básica que, essa modalidade seja aplicada

para o atendimento a todos os alunos, por que pode promover exclusão e

desigualdade no acesso, na permanência e no sucesso dos alunos na escola.

3 A EaD EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS: EXCLUSÃO E DESIGUALDADES

Muitos desconhecem a realidade de vida da maioria dos brasileiros e, as

pesquisas a respeito da acessibilidade aos meios de comunicação e às TIC que,

possibilitam o acesso às redes de ensino na modalidade EaD ainda são incipientes

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e se intensificaram após a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretar o estado

de pandemia em função do Coronavírus.

Nesse sentido, os sistemas de educação brasileiros foram obrigados a

pensar respostas para a educação em uma realidade em que os alunos não podem

estar presentes no ambiente físico da escola e, portanto, passaram a adotar o que

convencionou-se chamar de “atividades remotas” visando dá respostas à

sociedade e atender as demandas da educação.

O discurso de quem defende as atividades educativas por meio de EaD ou

“atividades remotas”, em geral, se constrói a partir das narrativas de que os alunos

não podem atrasar a sua vida estudantil e “não podem perder o ano” na educação.

Essa narrativa trata-se de um contrassenso, uma vez que considerar a EaD como

recurso à educação em tempo de pandemia, sem um planejamento de curso, sem

plataformas adequada e com acesso a todos os alunos, bem como, sem uma

adequada formação de professores para as aulas à distância pode produzir

exclusão de alunos e desigualdades na própria escola.

É preciso conceber o fato de que os meios de acesso à EaD não pode ser de

responsabilidade apenas dos estudantes, pois, estes não optaram por essa

modalidade de ensino e tampouco estão preparados para tal. Além disso, quando

o Estado disponibiliza as “atividades remotas” como único recurso para o aluno

estudar, em síntese, não está provendo a educação como direito.

Para prover o direito à educação o Estado precisa pensar o acesso, a

permanência e o sucesso do aluno e isso implica em disponibilizar estrutura de

materiais e equipamentos e material humano qualificado para trabalhar a EaD.

Além disso, essa modalidade não pode ser massiva, pois, por exemplo, o

atendimento de uma demanda de alunos em uma sala de aula presencial é bem

diferente do atendimento por meio de EaD, inclusive no número de alunos

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

atendidos. Há muitas questões além do conteúdo que dizem respeito à questão da

saúde do professor e também do aluno.

Sobre isso, adverte o seguinte: “[...] quero que a escola se reinvente e se

reinventar não significa transformar o professor em youtuber, mas, aprender a abrir

mão do conteudismo, entender que aprendizagem vai além do que é dado pela

escola e aceitar o ano letivo já não cabe mais em 2020” (SANTOS, 2020, p. 01). A

questão levantada pela autora é relevante por que a aprendizagem é precedida de

muitas outras condições que o aluno deve usufruir, inclusive, as condições

ambientais e de saúde física e psicológica.

A educação é uma preocupação de qualquer sociedade, mas, precisa

revestir-se de sua oferta com qualidade e, pensar a EaD sob a forma de “atividade

remota” como “educação de qualidade” significa adotar a educação formal e sua

qualidade como uma responsabilidade da criança e do adolescente e, embora estes

sejam protagonistas da sua própria educação, não podem ser responsáveis pelos

meios de provê-la. Assim, é inegável que a normalização acrítica do EAD como

substituição dos processos educativos presenciais tende a aprofundar as

desigualdades educacionais históricas no Brasil.

O confinamento compelido pelo coronavírus mantém em casa milhões de

brasileiros, que tiveram suas atividades educacionais presenciais suspensas de

acordo com indicações governamentais e com orientações da OMS de manter o

isolamento como importante meio de combate à pandemia. Neste sentido, a

internet torna-se forçosamente o importante canal de ingresso de estudantes ao

conhecimento, à informação, à cultura e mesmo ao lazer ou à realização de

exercícios físicos.

A crise causada pelo coronavírus tem intensificado o abismo educacional

que sempre existiu no Brasil, uma vez que milhões de pessoas não têm acesso aos

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

meios necessários para realizar um estudo à distância de qualidade. Nesse sentido,

constata-se que “[...] a crise não é cega, nem mesmo neutra, mas atua

intensificando diferenças e distâncias. Muda nossas escalas de valores e

referências, comportamentos, opiniões, nossos direitos e deveres” (BAUMAN;

MAURO, 2016, p. 38).

A oferta de EaD por qualquer plataforma digital por si só não é algo

simplório. Em meio ao confinamento e sem muita alternativa, o governo foi forçado

pela urgência em manter o ensino escolar nas plataformas digitais. O que não parece

razoável por que não leva em consideração a realidade socioeconômica de discentes

e docentes que, somente têm acesso por meio de telefones pré-pagos ou

desconhecem que as operadoras mais populares não possuem uma cobertura de

qualidade. Assim, adverte-se que as redes de ensino estão se utilizando de

plataformas digitais como grupos de Whats App como sendo adequados à EaD e,

embora seja uma rede de acesso popular não responde às demandas do ensino e da

aprendizagem com um mínimo de qualidade.

O ensino por meio da EaD tem problemas que vão além das questões legais.

Essa parece ser uma questão superada, uma vez que as diretrizes do MEC e dos

diversos sistemas de educação formalizaram essa modalidade de ensino. Mas,

outras questões relacionadas ao preparo dos professores com relação a EaD estão

no cerne das discussões e cada um resolve da sua maneira, que mecanismo utilizar

para ministrar as suas aulas, incluindo as videoaulas de outros professores.

Contudo, o que parece ser o ponto de estrangulamento desse modelo de educação

é a impossibilidade de acesso a essas aulas por parte muitos alunos.

A concentração das atividades na internet vem acompanhada da

desigualdade de acesso existente no Brasil. De acordo coma pesquisa levantada

pelo TIC Domicílios 2018, cerca de 85% dos usuários de internet das classes D e E

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

possuem acesso à internet somente por meio de aparelho celular, enquanto 13%

tem acesso tanto pelo dispositivo móvel quanto pelo computador. Na classe A, as

circunstâncias são bem diferentes e para melhor.

Não parece ser o celular o instrumento mais adequado ao estudo por meio

de EaD, uma vez que tem limitações de qualidade de imagem e, além disso, é um

tanto cansativo para os alunos, mesmo esse sendo um aparelho que faz parte do

seu dia a dia. A questão é que o seu uso em atividades formais não faz parte do

seu quotidiano. Além disso, a falta de acesso à internet de qualidade tem

dificultado o usufruto desse do direito à educação, mesmo que por meio de

“atividades remotas”.

Nesse caso, quando o Estado prover a educação apenas por meio de EaD

estar excluindo o aluno que não tem acesso à internet e reproduzindo a

desigualdade também na educação, o que a médio e longo prazos pode trazer

prejuízos para a vida, Não trata-se apenas da (in)eficácia do ensino à distância,

mas, da negação de um direito fundamental que diz respeito à própria dignidade

da pessoa humana e ao exercício da cidadania.

Uma pesquisa realizada nos dias 19 e 23 de março, entre estudantes do

COTUCA (Colégio Técnico de Campinas da Unicamp), é possível detectar o nível

de desigualdade existente. Da pesquisa realizada, cerca de 686 alunos foram

solícitos à pesquisa que demostrou o equivalente a 98,8% deles usufruíam de um

smartphone e 74,4% dos aparelhos possuem capacidade para uso de

armazenamento de algum tipo de informação, bem como suporte para aplicativos.

Outros 77,3% possuem planos de internet compatível a um smartphone. Cerca de

7,5% tem até 1GB de franquia mensal, enquanto 16% entre 1 e 2GB, outros 39,7%

possui entre 2 e 4 GB mensais, uma variação de qualidade e disparidade entre um

e outro, quanto ao aparelho, internet (BOTO, 2020).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os números são de exclusão por falta de acesso a internet. Além disso, em

cada domicílio não se pode ter um ambiente de sala de aula propício ao estudo e,

muitas famílias têm mais de um filho na escola pública, sendo, por vezes

compartilhar um mesmo aparelho telefônico. Isso significa dizer que as questões

não restringem-se ao acesso, mas, também as impossibilidades de acesso em

tempo real e no espaço adequado.

Associados a essas disparidades há outras limitações no campo da

tecnologia e o acesso a este, no mesmo sentido do compartilhamento de aparelhos

de celular, estima-se que, menos de 70% dos alunos possuem acesso a

computadores e 35,7% dos que faz o uso desse equipamento é feito de modo

compartilhado com mais pessoas. E somente 46,3% consideram adequado o

modelo do computador para uso e armazenamento de informações, e 23,9% têm

dificuldades de uso da internet causado pela lentidão. Sem mensurar a dificuldade

e a falta de acessibilidade que as pessoas com deficiência encontram em acessar as

plataformas digitais (CETIC, 2018).

Para assegurar o direito à educação, à informação, à cultura, etc., a todos,

sem distinção daqueles que tem ou não condições de arcar com valores para plano

ilimitado, o Intervozes (2020) protocolou, ainda em março/2020, um requerimento

na Anatel solicitando que o órgão publique uma liminar proibindo a suspensão de

serviços de conexão à internet móvel ou fixa por 90 dias, abrangendo a obstrução

do acesso em caso de alcançado o limite da franquia. A providência tenta diminuir

os impactos causados pelo isolamento social sugerido pela OMS e reforçado pelo

Ministério da Saúde brasileiro para intervir no avanço da pandemia causado pela

COVID-19.

Por isso, é preciso intervir para que seja resguardada a continuidade do

fornecimento de banda larga e telefonia inclusive daqueles consumidores que

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

vierem a ficar inadimplentes em razão da crise econômica que acompanha a

pandemia. O desempenho e luta pelo reconhecimento da internet como bem

essencial, no entanto, não é uma defesa de que as atividades escolares adotem a

educação a distância como única solução para os tempos de pandemia (PEIXOTO,

2020).

Dessa forma,

[...] a lição geral é que se o Estado pode, por meio de solidariedade


social e esforço coletivo, mobilizar recursos para vencer o vírus,
pode também garantir plenamente os direitos humanos, vencer
mazelas sociais como a miséria, a falta de moradia, o desemprego,
desafios ambientais, etc (ROSSI, 2020, p. 05).

Nesse sentido, é preciso reconhecer que as ações de combate ao

Coronavírus não repelem a necessidade de assegurar os direitos fundamentais e,

a educação estar entre os mais importantes, uma vez que a partir dela, outros

direitos são assegurados. Ssim, por exemplo, se a alimentação e o transporte

escolar não fazem parte do contexto presente de EaD, é necessário preocupar-se

com outras demandas dessa modalidade de ensino.

É imperioso salientar que o ensino à distância da forma como está sendo

realizado está provocando um aumento na exclusão social daqueles que não têm

meios de acesso aos equipamentos necessários à plena efetivação do direito à

educação. Esse modelo de ensino, da forma como está sendo realizado acarretará

sérios prejuízos educacionais e, por conseguinte, na vida dos estudantes de hoje,

uma vez que estão sendo privados de educação de qualidade e, isso significa que

a escola está reproduzindo para essa geração a desigualdade imposta pela falta de

acesso à internet.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação é direito fundamental e o Estado precisa assegurar aos sujeitos

sociais com esteio nos ideais a sua efetivação com qualidade significa potencializar

o desenvolvimento do país. É necessário, dessa forma, que a legislação reitere o

arcabouço principiológico que fundamenta o seu provimento pelo Estado, bem

como as formas e meios para a sua efetivação.

Nesse sentido é importante reconhecer que a educação também é, em

grande medida, instrumento de formação do sujeito aprendiz, de

desenvolvimento e de ascensão social. Assim, a educação tanto serve ao indivíduo,

quanto à sociedade, na medida em que responde às demandas da dignidade da

pessoa humana e do Estado Democrático de Direito.

A educação precisa também ser ministrada com qualidade e por meio de

instrumentos eficazes e na modalidade que melhor responder às demandas dos

sujeitos sociais que usufruem desse direito. Dessa forma, verifica-se que o conceito

educacional não se restringe a uma mera transmissão de aulas ou depósito de

conteúdos digitais.

Mesmo que em tempos de pandemia a educação não pode ser considerada

um direito pelo qual o Estado não deva zelar pelo mesmo. Pelo contrário, é

necessário considerar a educação como um instrumento de transposição de parte

dos problemas dessa crise, no entanto, para ser ministrada sob a modalidade EaD

que a única que se dispõe em função do isolamento social é necessário

disponibilizar aos estudantes os instrumentos de acesso, pois, não cabe somente a

ele a responsabilidade de aquisição.

Por outro lado, a substituição acrítica e acelerada dos processos

presenciais em curso por práticas de EaD pode acarretar uma série de problemas

469
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

no curto, médio e longo prazos na vida dos brasileiros. A desigualdade no acesso

à internet e os meios adequados para uso desses meios pode agravar, ainda mais,

os abismos da desigualdade educacional e consequentemente, social, no país.

Percebe-se que, as instituições desconsideram as condições sociais das

famílias que impactam no acesso à educação, que vão desde a saúde física e mental

em tempos de isolamento, aos espaços e condições domésticas de estudo que,

muitas vezes, são precárias. Esse modelo de EaD serve como um “laboratório”

para aqueles que apostam no ensino a distância como forma de barateamento (e

sucateamento) da educação básica e superior no futuro, mas, é necessário advertir

que o Estado precisa agir no sentido de assegurar esse direito fundamental,

inclusive intervindo nas instituições que precarizam a oferta de educação.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS DO TRABALHO EM

TEMPOS DE PANDEMIA FRENTE AO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO

DO TRABALHADOR

Camila Savaris Cornelius 111


Carla Vieira Carmozine 112

RESUMO
O presente trabalho tem por escopo analisar a legitimidade da flexibilização dos direitos
fundamentais sociais do trabalho frente ao princípio da proteção do trabalhador, bem como
das normas constitucionais, analisando também o entendimento do Supremo Tribunal
Federal no julgamento eletrônico em plenário virtual da liminar na Ação Direita de
Inconstitucionalidade (ADI) 6363, frente à crise sanitária ocasionada pelo Covid-19. Busca-
se ainda, observar o cenário das relações de trabalho no Brasil durante a pandemia,
realizando um comparativo entre os direitos sociais do trabalho e a ameaça de desemprego
em massa, analisando-se os efeitos da jurisprudência de crise adotada pelo STF no
momento atual, além das possíveis consequências dessa flexibilização nas conquistas
trabalhistas até então alcançadas. O presente trabalho foi estruturado em três capítulos,
sendo que o primeiro visa abordar o cenário trabalhista na pandemia de coronavírus, o
segundo tratará dos aspectos que envolvem os direitos sociais do trabalho e a ameaça de
desemprego em massa, e o terceiro analisará a denominada jurisprudência de crise que tem
sido adotada nesse tempo de pandemia, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal
Federal. Verificar-se-á ao final que, a flexibilização dos direitos sociais, mesmo em situações
de crise, resulta em um retrocesso aos direitos trabalhistas conquistados a duras penas ao
longo da história, desprotege o trabalhador hipossuficiente e cria uma falsa sensação de
liberdade, quando na verdade permanece refém da vontade do empregador para manter o
seu emprego. Para tanto, serão utilizadas a metodologia qualitativa e bibliográfica e o
método dedutivo.

Palavras-chave: direitos sociais; flexibilização; irredutibilidade salarial; princípio da


proteção; pandemia.

111
Graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do
Vale do Itajaí- UNIVALI, na área de Concentração em Fundamentos do Direito Positivo, Especialista em Direito
do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA, e-mail:
c_savaris@hotmail.com. http://lattes.cnpq.br/4075995413144897.
112
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca. Pós-graduanda em Direito e Processo do
Trabalho pela FDRP-USP (Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo). E-mail:
carlacarmozineadv@gmail.com. http://lattes.cnpq.br/3406284631631876.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
This article is to analyze the legitimacy of the flexibilization of the fundamental social rights
of the work in front of the principle of the protection of the worker, as well as the
constitutional norms, analyzing also the understanding of the Federal Supreme Court in
electronic judgment on the virtual plenary of the liminary in the Direct Action of
Unconstitutionality (ADI) 6363, front of the sanitary crisis caused by Covid-19. It also seeks
to observe the scenario of labor relations in Brazil during the pandemic, comparing between
the social rights of work withd the threat of mass unemployment, analyzing the effects of
the crisis jurisprudence adopted by the STF at the present time , and the possible
consequences of this easing in the labor achievements hitherto achieved. This article is
structured in three chapters, the first aims to address the labor scenario in the coronavirus
pandemic, the second will deal with aspects involving labor social rights and the mass
unemployment, and the third will analyze the so-called crisis jurisprudence that has been
adopted at this time of pandemic, especially within the Federal Supreme Court. In the end,
it will be seen that the flexibilization of social rights, even in crisis situations, results in a
regression to labor rights won at hard times throughout history, unprotects the
hypossufficient worker and creates a false sense of freedom, when in fact remains hostage
to the will of the employer to keep his job. For this, the qualitative and bibliographic
methodology and the deductive method will be used.

Key-Words: social rights; flexibilization; salary irreducibility; principle of protection;


pandemic.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca analisar a legitimidade da flexibilização de direitos

sociais do trabalho, em razão da pandemia ocasionada pela propagação do COVID-

19, frente ao princípio da proteção do trabalhador e a supremacia da Constituição

Federal do Brasil.

A abordagem do respectivo tema demonstra-se relevante diante da situação de

crise mundial ocasionada pela pandemia, com reflexos significativos na área da

saúde, da economia, bem como na humanitária e social, cenário este que preocupa

governantes do mundo todo, exigindo a adoção de medidas emergenciais com o

intuito de controlar a situação e manter ordem.

475
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Dessa forma, busca-se demonstrar com o presente artigo que, apesar dos

esforços frente à crise econômica, a flexibilização dos direitos fundamentais sociais

e, consequentemente, a violação do princípio da proteção do trabalhador, ainda que

em tempos de calamidade pública, é demasiadamente preocupante, haja vista a

afronta direta à supremacia da Constituição Federal, aos princípios do direito do

trabalho e às conquistas trabalhistas alcançadas, inclusive em momentos de crise ao

longo da história.

Diante do exposto, para a elaboração do tema, formula-se o seguinte problema:

Afim de solucionar a crise econômica e evitar o desemprego em massa em tempo

de pandemia causada pelo Covid-19, há legitimidade na flexibilização de direitos

sociais?

Para equacionar o problema levanta-se a seguinte hipótese: Ainda que a

intenção das medidas proferidas fosse evitar o desemprego em massa, é sabido que

a flexibilização dos direitos sociais, violando o princípio da proteção, deixando o

trabalhador exposto, trata-se de retrocesso, especialmente neste momento em que

há ânsia de proteção social.

1 O CENÁRIO TRABALHISTA NA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS

A pandemia do novo coronavírus desencadeou uma crise mundial causando

impacto em diversos aspectos, sobremaneira no âmbito da saúde, da economia,

humanitária e social, afetando, consequentemente, as relações de trabalho.

Como em diversas regiões do planeta, governantes têm tomado medidas

visando a contenção do vírus, na tentativa de contornar a crise econômica que se

instaura e, concomitantemente, preservar a saúde de todos os seus cidadãos. O

prognóstico, segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho) que vem

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

estudando alternativas para uma maior proteção social é de um aumento

significativo e progressivo das desigualdades sociais, situação esta enfrentada

especialmente pelos países em desenvolvimento. (OIT, 2020)

No Brasil, algumas medidas foram tomadas, haja vista e a relevância do

momento, como a decretação do estado de emergência num primeiro momento e,

posteriormente, a decretação do estado de calamidade pública, a partir do Decreto

Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020, em razão dos primeiros casos confirmados

de contágio do vírus no país.

No âmbito das relações de emprego, algumas medidas provisórias foram

editadas, a exemplo da 927/20 e 936/20, as quais, em diversos aspectos, contornaram

previsões constitucionais com a flexibilização de diversos direitos fundamentais

sociais, com a justificativa de uma suposta manutenção de empregos.

Dentre as determinações estão a MP 936/20, que criou o Programa Emergencial

de Manutenção do Emprego e da Renda, que posteriormente foi convertida na Lei

nº 14.020/2020, possibilitando a redução da jornada de trabalho com a proporcional

redução de salário ou suspensão do contrato de trabalho, além da MP 927/20, que

apresar de não ter sido convertida em lei, foi a primeira medida provisória editada

no intuito de garantir o isolamento social dos empregados e a manutenção dos

empregos, possibilitando, entre outras flexibilizações, a antecipação de férias e

feriados, a concessão de férias coletivas e o destaque para um novo modo de gestão

e organização do trabalho com a utilização do teletrabalho, marcado pela utilização

de meios tecnológicos como principal meio de trabalho (RUIZ, 2020, p. 17), haja

vista a necessidade de distanciamento social como forma de prevenção da saúde e,

continuidade das atividades profissionais para o giro da economia.

Importante destacar que esta inserção e uso massivo da tecnologia resultou em

outras mudanças importantes, como a extinção de alguns cargos e profissões, mas

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

também o surgimento de novos nichos de trabalho, tais como a prestação de

serviços por meio de plataformas digitais (VALVERDE, 2020, p. 224), fundamental

para o momento, demonstrando uma mudança progressiva no que se conhece por

relação de trabalho definida pela CLT.

A partir desse quadro, ficou constatado que a crise advinda com o novo

coronavírus, bem como as mudanças ocorridas nesse tempo, marcam a passagem

das relações de trabalho para uma nova realidade, resultando num aumento

progressivo da desigualdade social já existente no Brasil, especialmente porque

somente uma pequena parcela da população que possui acesso a esses novos meios

tecnológicos, possui a produtividade esperada pelo empregador, ou consegue

exercer sua profissão através desse meio (VALVERDE, 2020, p. 227).

E é por isso, além da dificuldade de manutenção das empresas em meio a essa

crise, que o desemprego começa a se intensificar, demonstrando que as medidas

trazidas só tornaram mais dificultosas a manutenção do emprego.

Em outras palavras, uma vez que a economia e as medidas tomadas estão

atreladas, a paralisação das atividades acaba por gerar consequências em todos os

setores, demonstrando que tais flexibilizações não são suficientes para impedir o

desemprego e, pior, acarretam uma violação em massa de direitos fundamentais

sociais.

2 DIREITOS SOCIAIS DO TRABALHO VERSUS DESEMPREGO EM MASSA

Dados oficiais demonstram que a taxa de desemprego que já era de 12,2% no

primeiro trimestre de 2020, ou seja, de janeiro a março, subiu consideravelmente

durante a pandemia, uma vez que passou a ser de 13,3% no segundo trimestre de

2020, isto é, de abril a junho, conforme estatísticas do IBGE. (IBGE, 2020)

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os números comprovam que a retirada de proteções trabalhistas com o

discurso de manutenção de empregos não se sustenta, pelo contrário, além de

fragilizar ainda mais os direitos trabalhistas, especialmente no âmbito do direito

coletivo, não reduziu ou impediu o desemprego, vez que as taxas só vêm

aumentando com o passar dos meses.

O que se denota, portanto, com a retirada de direitos e garantias, é que os

trabalhadores vêm sendo duplamente penalizados, pois demonstra que o foco do

governo não esta no trabalho e no trabalhador que o presta, mas sim nas empresas

e de que forma preservá-las nesse momento de crise econômica. (AMADO, 2013, p.

163)

O conceito de flexibilização é tornar algo menos rígido, porém, nas relações de

trabalho a retirada de rigidez não é tão simples, devendo ser analisada a partir da

perspectiva de Mário Sérgio Salerno, de que ela pode ocorrer, desde que não haja

“deterioração significativa, presente ou futura, de custos, quantidade e tempos”

(SALERNO, 1995, p. 14). Ou seja, vislumbrando todas as conquistas árduas nesta

seara ao longo da história, a flexibilização pode ser um retrocesso.

E, ainda que haja uma justificativa atual para este fenômeno, sabe-se que a

flexibilização dos direitos trabalhistas não é algo novo, pois vem se intensificando

com o passar do tempo, se tornando uma tendência entre os países em

desenvolvimento (KREIN, 2007, p. 21):

Conquistando adeptos no mundo da política e da academia, a defesa da

flexibilização passa a ser feita por entidades de empregadores, por algumas

organizações de trabalhadores e pelo governo como solução para o crescente

problema do desemprego.

Isto ocorreu principalmente quando o trabalho ficou subordinado ao capital

(PEREIRA, 2009, p.29), colocando o papel do Estado como garantidor em segundo

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

plano, pois estancava o meio de produção, além de tornar muito mais onerosa a

produção.

Ou seja, a flexibilização está sempre atrelada às necessidades econômicas e

reflete consequentemente, na elevação do desemprego (KREIN, 2007, p. 01), pois

conforme destacado anteriormente, desvia o principal propósito por detrás das leis

trabalhistas como um todo, pois ao invés de proteger os trabalhadores, a

flexibilização:

(...)aparece como “resposta” a um ambiente em que tende a se


intensificar a concorrência intercapitalista, num contexto de
instabilidade e baixo dinamismo do produto, crescente importância
do capital financeiro (financeirização), prevalência de políticas
econômicas restritivas voltadas ao controle da inflação e elevação
do desemprego. (KREIN, 2007, p. 01)

Ela é o reflexo de uma sociedade que vive tão somente o lucro, independente

das consequências que podem ser vividas pela parte mais fraca desse elo, os

trabalhadores. E, a adoção de medidas provisórias prevendo a flexibilização dos

direitos trabalhistas no Brasil, com a chancela do Supremo Tribunal Federal,

guardião da Constituição, que no entanto permite essa ocorrência sob a ótica dos

impactos econômicos, apenas intensifica o status de impotência dos trabalhadores

perante os empregadores, mesmo quando seus direitos são violados, uma vez que

a economia vem se sobrepondo aos direitos personalíssimos e sociais.

Exemplo disso é o próprio teletrabalho, que conforme destacado por Stürmer

“flexibiliza o tempo e o espaço do trabalho” (STUMER, 2020, p. 341), isso porque

viola diversos direitos do empregado, tais como o direito à desconexão, jornada de

trabalho limitada, dentre outras, além de que pode desencadear diversas doenças

graves ao empregado.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Uma das grandes preocupações com o trabalho remoto é a questão do controle da

boa ambiência laboral, que deve seguir ditames de equilíbrio e salubridade

idênticos ao espaço presencial, atribuindo o Judiciário tal responsabilidade ao

empregador, tradicionalmente. (STUMER, 2020, p. 352)

Ou seja, esse é somente um exemplo de como a nova modernidade, com a

flexibilização dos direitos sociais, pode gerar uma exploração da classe

trabalhadora, se não analisada com cuidado.

E, com essa flexibilização, verifica-se que o princípio da proteção vem

gradativamente sendo relativizado, princípio este que, conforme lições de Maurício

Godinho Delgado, tem o condão de amenizar o desequilíbrio existente entre as

partes num contrato de trabalho, protegendo a parte hipossuficiente, qual seja o

trabalhador, além de ser um princípio que influencia toda a estrutura do Direito do

Trabalho, como regras e princípios (DELGADO, 2017, p. 213-214)

À medida que a MP 936/20 colocou em pé de igualdade os empregados e

empregadores, verifica-se a clara violação do princípio da proteção, uma vez que

retira a guarida da representatividade, por meio do ente sindical, nas negociações

trabalhistas para a retirada de direitos, ainda que sob o véu da temporariedade,

situação que os trabalhadores, por vezes, desconhecem as consequências que tais

alterações lhes trarão.

Além disso, há de se ressaltar a mudança no cenário do mercado de trabalho,

caracterizado pelo aumento da informalidade, demonstrando cada vez mais que os

princípios e regras que estruturam a proteção do trabalhador estão sendo deixados

pouco a pouco de lado, ou ainda, estão somente protegendo uma minoria, qual seja,

o trabalhador em relação de emprego, demonstrando que será necessária uma

reestrutura de como se dará a proteção do trabalhador dessa nova sociedade, mas

lembrando que não deve ser a partir de uma flexibilização sem limites.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Isso ocorre pois a flexibilização sem limites é deixar uma relação a encargo das

partes envolvidas, ou seja, sem qualquer intervenção estatal. Porém, conforme bem

lembra o filósofo George Santayana, “aqueles que não conseguem lembrar o

passado estão condenados a repeti-lo” (VINHAS, 2016), ou seja, ao longo da história

pode-se perceber o quão essencial foi a intervenção estatal progressiva nas relações

de trabalho, por conta da exploração desde os primórdios até os dias atuais, onde

pode-se constatar abusos de direito por parte do elo mais forte, representado pelo

empregador (PEREIRA, 2009, p. 58-59).

A flexibilização se mostra como mais uma ferramenta colocada à disposição do

empregador para realizar esses abusos, que direta, ou indiretamente, são

justificados e legitimados pelo Estado.

E, diferente do que existe numa relação de compra e venda, em que os dois

lados estão em posições contrárias, nas relações de trabalho os trabalhadores

dependem dos empregadores para terem seus direitos assegurados, conforme

explana Pereira:

Logo, tanto no Século XIX quanto na atualidade, justifica-se a


atuação do Estado, pois sem ela os direitos dos trabalhadores
restariam relegados a segundo plano nas empresas. (PEREIRA,
2009, 62)

Dessa forma, ainda que hajam adeptos à esta flexibilização, o ideal é demonstrar

que haverá o comprometimento do empregador, independente do ramo de

atividade, garantir que haja condições dignas de trabalho, bem como a preservação

de direitos e garantias fundamentais, para não ensejar em retrocesso.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

3 JURISPRUDENCIA DE CRISE

O Tratado de Versalhes, firmado em 1919, no pós-guerra, criou a Organização

Internacional do Trabalho, demonstrando que, ao longo da história, em momentos

de crise como no pós-guerra, os direitos sociais foram intensificados e não

relativizados, o que aumenta a preocupação no tocante às recorrentes flexibilizações

nos direitos trabalhistas.

Nesse diapasão, observa-se que a aplicação do princípio da proteção do

trabalhador, inerente à sua condição de hipossuficiente na relação de trabalho,

encontra-se ameaçada, de tal modo que, as garantias mínimas dos mais vulneráveis,

neste caso, os trabalhadores, encontram-se prejudicadas.

Isso, especialmente no tocante as medidas que encarregam o governo de

complementar ou prover a remuneração dos trabalhadores empregados, uma vez

que, lançados à responsabilidade do governo, em políticas públicas ineficientes,

chegam a passar penúria sem que esse limbo seja efetivamente resolvido.

O Supremo Tribunal Federal (STF) foi provocado por meio de Ações Diretas de

Inconstitucionalidade, tais como as ADIs 6342, 6344, 6346, 6349, 6352, 6354, 6375,

6377 e 6380, que questionam a constitucionalidade de diversos dispositivos da MP

927/20, além das ADIs 6363 e 6370, que questionam a MP 936/20, sendo que essas

últimas foram julgadas parcialmente no tocante às decisões liminares, decisões que,

apesar de precárias, são hábeis a demonstrar o entendimento da Corte.

Especificamente com relação à MP 936/20 e o julgamento da liminar na ADI

6363, nota-se que o Supremo Tribunal Federal vem adotando a denominada

jurisprudência de crise, ao flexibilizar direitos constitucionais e sociais do trabalho,

em razão do cenário de pandemia, ponderando tais garantias com a ameaça de

483
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desemprego em massa e a urgência de medidas hábeis a minimizar os impactos

econômicos atuais.

Dessa forma, nota-se que para o bem da economia e de uma suposta garantia

de emprego, alguns direitos constitucionais sociais têm sido afetados com a

flexibilização de normas trabalhistas e constitucionais, que possuem o condão de

proteger minimamente os trabalhadores que, inegavelmente, são a parte

hipossuficiente na relação de emprego.

Fato é que os direitos trabalhistas, especialmente em momentos de crise, são

vistos como vilões da economia, pois ameaçam quebrar negócios, são considerados

excessivos e demasiadamente expensivos ao empresário-empregador.

Nota-se que há uma dualidade de pensamento, notadamente intensificados em

momentos de crise, no tocante a retirada ou manutenção de direitos trabalhistas. Na

visão de Andréa Magalhães, há que se considerar o aspecto bivalente de casa

alternativa, uma vez que as consequências de uma crise respingam em todos os

agentes envolvidos (MAGALHÃES, 2017, p. 253-254):

Por essa razão, direitos trabalhistas representam altos benefícios para os

trabalhadores, mas altos custos para o pequeno empresário, que sob risco de

falência, pode aumentar a taxa de desemprego. Da mesma forma, a flexibilização

dos direitos trabalhistas representa grande benefício para o empresariado, mas

pode comprometer a sobrevivência de família, levado ao extremo.

Diante desse fato, deve-se considerar os impactos extrapatrimoniais de cada

decisão, sobremaneira no que concerne à dignidade da pessoa humana, direito não

quantificável com o qual deve-se trabalhar os critérios de razoabilidade, imperando,

no entanto, o subjetivismo e a sensibilidade dos julgadores nas decisões.

(MAGALHÃES, Op. Cit., p. 254; 257)

484
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A jurisprudência de crise se faz presente também em outros países como

Colômbia, Portugal e Grécia, nos quais já se discutiu, dentre outros temas, o fim de

políticas assistencialistas, cortes de salários e demissões de servidores estáveis,

sendo que, em todos eles, há algo em comum: tomar decisões que envolvem

cenários economicamente instáveis gera criticas e divide opiniões (MAGALHÃES,

Op. Cit., p. 10-11).

A preocupação que se instala a partir do entendimento da Corte Suprema

brasileira, está principalmente relacionada aos riscos de retrocesso nas conquistas

dos trabalhadores ao longo do tempo, uma vez que, apesar de proferidas em tempo

de calamidade pública e pandemia, abre precedentes que podem prejudicar a

efetividade dos direitos trabalhistas no futuro, pois contraria o entendimento da

OIT, bem como outros instrumentos internacionais que versam sobrem os direitos

sociais. (GOMES, 2015, p. 308)

A fim de evitar que tais flexibilizações abram precedentes catastróficos aos

direitos sociais, deveria estabelecer-se regras específicas, rigorosas e de caráter

excepcional, bem como critérios de compensação de perdas, a exemplo da Corte da

Lituânia no julgamento de 2010 instado pelo Parlamento Lituano, no tocante à

aplicação de normas constitucionais em situações de crise econômica e desastres

naturais. (MAGALHÃES, 2017, p. 29-31)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise sanitária ocasionada pelo novo Coronavírus foi um divisor de águas

para todos os setores da sociedade, especialmente para as relações de trabalho,

principal propulsor da economia em todo o mundo.

485
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Diante deste cenário, diversas medidas foram tomadas com o intuito de

controlar a situação para dar continuidade às atividades econômicas, garantir a

saúde da população e, garantir a manutenção dos empregos.

Ocorre que, as medidas tomadas não tiveram o resultado esperado,

especialmente no que diz respeito às relações de trabalho, vez que muitas iniciativas

apresentadas pegaram muitas empresas de surpresa e, principalmente,

trabalhadores do mundo todo.

Exemplo disso, foi a medida universal requerendo o distanciamento social com

a continuidade das atividades através do uso da tecnologia. Soma-se a isso, a vazão

e legitimação da flexibilização dos mais diversos direitos fundamentais sociais,

demonstrando que o foco do Estado já não era mais garantir direitos fundamentais

sociais, mas sim, preservar as empresas e a economia.

Tal manobra desviou o padrão ao longo da história em momentos de crise, que

conforme previsto no Tratado de Versalhes, o ideal sempre fora intensificar os

direitos sociais e não relativizá-los.

E, ainda que a nova sociedade esteja passando por profundas mudanças, sabe-

se que o processo de flexibilização de direitos, especialmente aqueles advindos das

relações de trabalho, deve ser analisada com bastante cautela, haja vista as

peculiaridades advindas desse tipo de relação e, principalmente, do histórico que

embasou a intervenção Estatal de hoje.

Ainda com relação a essas mudanças, sabe-se que os indícios da flexibilização

dos direitos fundamentais sociais não é de hoje, mas que ainda demonstra que falta

de preparo e responsabilidade das empresas em garantir um trabalho digno e

prover direitos sociais à classe, pois parte do processo de flexibilização, é a retirada

total de intervenção do Estado nesta seara.

486
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Outra exemplo do quão maléfico é o processo de flexibilização dos direitos no

âmbito das relações de trabalho, é a recente reforma trabalhista ocorrida em

Portugal a partir da Lei 23/2012 de 25 de junho, que flexibilizou direitos

fundamentais sociais, e que conforme João Leal Amado, pode-se verificar que o

Direito do Trabalho foi engolido e, portanto diminuído pela globalização e ao

capitalismo, constando que já não há mais foco ao que exerce o trabalho, mas às

empresas e ao custo que esta têm para manter este direito (AMADO, 2013, p. 184)

O autor ainda finaliza ao declarar ser uma falácia a fundamentação de que “a

flexibilização do direito laboral equivale, sic et simpliciter, a ganhos de eficiência do

aparelho produtivo e, logo, a uma maior competitividade das empresas” (AMADO,

2013, p. 185).

Essa experiência vivida pelos europeus demonstra que se em tempos de

normalidade o que se verifica é um retrocesso, em tempos de crise, não se pode

esperar que o Estado se abstenha quando mais se espera a sua atuação.

As estatísticas mostram que a flexibilização, em tempos de crise, gera ainda

mais insegurança, bem como, contribui para a violação em massa de direitos

fundamentais sociais. Isso se deve principalmente pela violação do princípio da

proteção do trabalhador, principal alicerce de direitos e normativas de proteção ao

trabalhador, confirmando a hipótese apresentada.

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Congresso Internacional da ABDT : crise econômica e social e o futuro do direito

487
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

do trabalho - Anais do Congresso [livro eletrônico] / coordenação Alexandre Agra


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488
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À SAÚDE VERSUS A

COVID-19

David Augusto Fernandes113

RESUMO
Na atualidade, verifica-se que ainda não se tem proporcionado a todos os cidadãos,
principalmente àqueles mais necessitados, o pleno direito de acesso à saúde, fato que lhes
afeta a dignidade da pessoa humana (DPH). O presente trabalho objetiva determinar os
possíveis impedimentos para que a clientela a ser enfocada nesta pesquisa tenha acesso à
saúde a fim de atender suas reais necessidades. O principal problema que motivou a
realização da pesquisa foi a constatação empírica, na realidade brasileira, das dificuldades
de as pessoas com baixo poder aquisitivo obterem acesso ao tratamento de suas
enfermidades, especificamente a Covid-19. A escolha do tema enfocado na presente
pesquisa justifica-se plenamente pela gravidade do problema que afeta camada
considerável da população brasileira. A metodologia aplicada é a pesquisa bibliográfica e
seu resultado constata que a dignidade da pessoa humana ainda não é proporcionada a
essas pessoas, devido à falta de política governamental rígida e à falta de adequação das
farmacêuticas. Para abranger as questões levantadas, ao longo do desenvolvimento do
artigo, aborda-se preliminarmente a DPH e a afetação da clientela, pelo não recebimento de
medicamentos necessários a seu tratamento. Em seguida, são enfocadas as políticas
públicas voltadas para a área de saúde. Continuando, focalizam-se o Sistema de Saúde
brasileiro e o fornecimento de medicamentos às pessoas debilitadas socialmente e são
expostas as obrigações pertinentes ao Estado abrangidas pela área em estudo. As
considerações finais reúnem os comentários do autor sobre a matéria.

Palavras-chave: Covid-19; Saúde; Vida digna; Dignidade da pessoa humana.

ABSTRACT
Nowadays, it appears that all citizens, especially those most in need, have not yet been
granted full access to health, a fact that affects the dignity of the human person (DPH). The
present work aims to determine the possible impediments so that the clientele to be focused
in this research has access to health in order to meet their real needs. The main problem that
motivated the research was the empirical observation, in the Brazilian reality, of the

113
Pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra/Portugal, Doutor e Mestre
em Direito. Professor Adjunto do Curso de Direito da UFF/ICM/MDI. Docente dos Cursos de Especialização em
Gestão Pública, Gestão Pública Municipal e Gestão em Saúde Pública, na modalidade de Ensino à Distância,
ofertadas pela Universidade Federal Fluminense através do Consórcio CEDERJ e da Universidade Aberta do
Brasil (UAB). CV: http://lattes.cnpq.br /8477467816197173. E-mail:davidaf@id.uff.br.

490
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

difficulties of people with low purchasing power to obtain access to the treatment of their
illnesses, specifically Covid-19. The choice of the theme focused on in this research is fully
justified by the seriousness of the problem that affects a considerable part of the Brazilian
population. The applied methodology is the bibliographic research and its result verifies
that the dignity of the human person is not yet provided to these people, due to the lack of
rigid government policy and the lack of adequacy of pharmaceutical companies. To cover
the issues raised, during the development of the article, DPH and the effect of the clientele
are preliminarily addressed, due to the non-receipt of medicines necessary for their
treatment. Then, public policies focused on the health area are focused. Continuing, the
Brazilian Health System and the supply of medicines to the socially impaired are focused
on and the relevant obligations to the State covered by the area under study are exposed.
Final considerations bring together the author's comments on the matter.

Keywords: Covid-19; Health; Dignified life; Dignity of human person.

INTRODUÇÃO

As notícias, à época, sobre os primeiros casos da Covid-19 amplamente

veiculadas pela mídia davam conta de que, entre as pessoas infectadas pelo vírus,

as mais sensíveis seriam as portadoras de doenças preexistentes (câncer,

hipertensão, doença respiratória crônica, diabetes e doença cardiovascular – DCV)

e que, portanto, apresentavam processo infeccioso mais acelerado.

A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) foi vacilante em informar

os primeiros dados dessa doença e definir o protocolo adequado para seu

tratamento (SANARMED, 2020). Como consequência, a pandemia se propagou

exponencial e sub-repticiamente, mais que nunca despertando a obrigatoriedade de

o Estado prestar proteção para a preservação da saúde dos seres humanos sob sua

responsabilidade.

Calcada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Organização das

Nações Unidas (ONU) configurou os dezessete Objetivos de Desenvolvimento

Sustentável (ODS) a serem alcançados até 2030. Vale ressalvar que em 2000 foram

491
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

estipulados os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM), prevendo, em seu

oitavo objetivo 114


, o acesso a medicamentos essenciais nos países em

desenvolvimento. Apesar de sua importância para a higidez, especialmente das

populações mais carentes, tal objetivo não foi alcançado.

Em setembro de 2015, em reunião na sede da ONU, em Nova York, seus

membros retornaram ao tema, para delinear os (ODS), no sentido de serem

alcançados até 2030, mantendo entre eles o Objetivo 3115. Por meio desse Objetivo

busca-se proporcionar acesso a medicamentos, com a garantia de que todos os seres

humanos possam alcançar seu potencial em dignidade e igualdade, em ambiente

saudável. Propõe-se que tal prerrogativa seja compartilhada por todos os seres

humanos, conforme explicitado no parágrafo 26, no qual se manifesta preocupação

com a saúde de todos, a ser alcançada, inclusive, mediante o fornecimento de

medicamentos.

Para o desenvolvimento do referido tema, o presente artigo se inicia pela

abordagem dos princípios da dignidade da pessoa humana, incluindo um breve

histórico sobre sua observância. Logo adiante, trata-se das políticas públicas

referentes à área em estudo. Em continuidade, focaliza-se o Sistema de Saúde

brasileiro, abrangendo o setor farmacêutico e as empresas atuantes no setor. Na

oportunidade, demonstra-se a obrigação do Estado em atender as demandas da

área da saúde. A partir daqui, enfoca-se como vem sendo proporcionado o acesso a

medicamentos pela população em comparação com os interesses das indústrias

farmacêuticas. Nas considerações finais, busca-se manifestar a opinião geral do

autor sobre o tema abordado.

114
Vide ONU. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível
em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em: 22 abr. 2020.
115
Vide ONU. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível
em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em: 22 abr. 2020.

492
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Para Luís Roberto Barroso, a dignidade da pessoa humana (DPH), na acepção

contemporânea, tem origem religiosa, bíblica: o homem feito à imagem e

semelhança de Deus. Com o Iluminismo implicando a centralidade do homem, ela

migra para a filosofia, tendo por fundamento a razão, a capacidade de valoração

moral e autodeterminação do indivíduo (BARROSO, 2010).

No século XVI, o posicionamento de teólogos espanhóis os levava a

reconhecer os direitos naturais aos indivíduos, deduzidos do direito natural e tidos

como expressão da liberdade e DPH, além de servirem de inspiração ao humanismo

racionalista de Hugo Grócio. Nesse mesmo período, em 1589, o jus philosophus Hugo

Donellus ensinava a seus discípulos que o direito à personalidade englobava o

direito à vida, à personalidade corporal e à imagem, não podendo o primeiro ser

dissociado da saúde (SARLET, 2004). Nesse sentido, Consuelo Cuesta Sanz (1998,

p. 291) salienta o seguinte: “a preocupação pelo comércio foi o motivo principal para

convocar uma Primeira Conferência Sanitária Internacional, em 1851, em que 12

países firmaram uma convenção internacional sobre a quarentena contra a cólera, a

peste e a febre amarela”.

Com o passar dos séculos houve a consolidação de tal pensamento e sua

inclusão em várias constituições dos séculos XVIII e XIX. Já a segunda metade do

século XIX trouxe, com o desenvolvimento econômico, a consciência de que a saúde

passou a ser considerada elemento essencial ao progresso social econômico e

incluída como direito de todo o indivíduo. No início da década de 1940, a saúde já

não era considerada como ausência de enfermidade, mas sim um bem em si mesmo,

do qual se manifestava legítimo e profundamente justo beneficiar, com a

493
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mobilização dos recursos econômicos disponíveis em qualquer parte onde se

encontrassem (SANZ,1998).

Somente após a Segunda Guerra Mundial, o ordenamento internacional

passou a considerar a DPH como sendo o acesso à saúde um direito humano

fundamental, mediante o qual cada cidadão deveria ter seus direitos respeitados

pelo Estado. Assim, propicia que cada indivíduo tenha assegurada sua dignidade

de pessoa humana, conforme enunciado pela primeira vez no preâmbulo da

Constituição da Organização Mundial da Saúde e sucessivamente proclamado na

Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em seu artigo 25.

Portanto, esse direito tardou mais de meio século para afirmar-se como direito

fundamental internacionalmente protegido (NEGRI, 2010).

No transcurso do século XX a DPH se torna um objetivo político, um fim a

ser buscado pelo Estado e pela sociedade (BARROSO, 2010). O reconhecimento

deste direito é conquista sociocultural bastante recente, cujo conteúdo foi cunhado

há aproximadamente setenta anos pela comunidade internacional, assim como

previsto em quase todas as constituições modernas no mundo, no sentido de se

reconhecer a saúde como Direito Humano Fundamental. Está posto que não deva

haver por parte dos Estados qualquer ato inibitório a colocar em perigo a saúde das

pessoas, mas sim realizar todos os esforços para sua preservação (SANZ,1998).

2 POLÍTICAS PÚBLICAS

O legislador constituinte foi pródigo em inserir no artigo 5º, da Carta Magna

vigente, o direito à vida, à liberdade e à igualdade, assim como aqueles coligados a

esses, e todos, em conjunto, circundam o principal deles: a vida humana. Tal

providência implica haver o conjunto de decisões, planos, metas e ações

494
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

governamentais direcionadas para a resolução do problema de interesse de cada

pessoa afetada pela falta de acesso a saúde (SÉGUIN, 2002116).

As políticas públicas são o conjunto de programas, ações e decisões tomadas

pelos governos, sejam na esfera federal, estadual ou municipal com a participação,

direta ou indireta, de entes públicos ou privados, objetivando alcançar o

atendimento populacional de uma determinada área (SECCHI, 2016, p. 3).

A falta de políticas públicas direcionadas para a educação, o saneamento básico,

a igualdade de gênero e a saúde117 acarreta uma série de problemas que não têm sido

tratados corretamente na sociedade brasileira. Além disso, verifica-se que as

pessoas que não têm acesso a esse quarteto de necessidades básicas, são aquelas

mesmas desprovidas de poder aquisitivo para compra de medicamentos

necessários ao restabelecimento de sua saúde, devendo o poder público subsidiá-

los ou fornecê-los a esses desatendidos (grifos deste trabalho).

O programa de distribuição gratuita de medicamentos, com parceria entre

municípios, estados e governo federal por meio do Sistema Único de Saúde (SUS),

é um exemplo salutar de política pública direcionada à área de saúde que deve ser

expandida, não ficando circunscrito a apenas determinados medicamentos

(MOURA, 2019).

Como demonstração de política pública adequada à saúde pública, vale

destacar, no âmbito internacional, a ação da Organização Mundial de Saúde (OMS

ou WHO em inglês), órgão da ONU, que, em sua 66ª Assembleia Mundial da Saúde,

ocorrida em Genebra de 20 a 28 de maio de 2013, aprovou o Plano de Ação Global

da OMS para a Prevenção e o Controle de Doenças Não Transmissíveis 2013-2020

(WHO, 2015).

116
Vide também o artigo 196 da Constituição Federal.
117
Vide ONU. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Disponível
em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2015/10/agenda2030-pt-br.pdf. Acesso em: 22 abr. 2020.

495
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Para que se ter ideia do que ocorre na realidade brasileira, inclusive comparável

com essas disposições internacionais, aborda-se adiante o Sistema de Saúde que

vem sendo aplicado no País.

3 UMA VISÃO DO SISTEMA DE SAÚDE BRASILEIRO

O Sistema de Saúde em vigor divide-se em dois setores: a) o Sistema Único

de Saúde (SUS), público e gratuito, para oferecer o piso básico de atendimento para

toda a população, mediante o abastecimento e o financiamento, dividindo-se em

três níveis: federal, estadual e municipal118. É o setor de utilização principal pelas

camadas mais pobres e de baixa renda, além de atender parte da classe média; b)

setor privado, possuidor de caráter voluntário e complementar, regulamentado e

controlado pelo governo federal. Terceiriza serviços com unidades do SUS, sendo

utilizado por população de média e alta renda que possui seguros adicionais de

saúde.

A reforma implementada significou grande progresso, mas ainda persiste o alto

grau de segmentação do sistema, persistindo baixa integração, em função de

subsistir a heterogeneidade de três tipos: 1) por possuir fornecedor público e

privado de crescente importância; 2) por haver três níveis geográficos – federal,

estadual e municipal –, cada qual com funções próprias de direção, financiamento

e fornecimento; 3) pela exclusão das Forças Armadas e algumas polícias estaduais,

que mantiveram seus próprios programas, assim como os funcionários públicos

federais que foram subsidiados apenas parcialmente (LAGO, 2007).

A Constituição Federal estabelece a participação social no SUS, sendo que a

Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, em seus artigos 5º e 6º, definem os objetivos

118
Vide artigo, 23, II, da Constituição Federal.

496
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e seus campos de atuação (BRASIL, 2020b), inserindo-os no organograma do

Ministério da Saúde. Assim, as políticas e os programas nacionais de saúde a serem

elaborados envolvem os três níveis/esferas, ficando o nível federal encarregado de

aportar a maior parte do financiamento público. Como no artigo 3º deste mesmo

diploma, os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do País,

tendo a saúde como determinante e condicionante (BRASIL, 2020b).

O SUS mantém o Conselho Nacional com participantes das três esferas e,

quando é percebida alguma insuficiência regional ou local, se promovem ações para

regularizá-las, supervisionadas e analisadas pelo Sistema. Observa-se que a

regulação federal abrange também o setor privado, que atua no controle da

qualidade dos serviços prestados, nos preços dos planos e seguros de saúde, e em

mecanismos para recuperar custos de serviços utilizados no SUS (BRASIL, 2020a).

O setor privado demanda a maior parte do gasto de saúde, funcionando

independente do SUS, desprovido de vínculos organizacionais, institucionais e

financeiros, exceto no que tange à regulação e supervisão federal. O setor é

composto por empresas de medicina de grupo (principalmente pré-pagas);

cooperativas médicas que restringem o uso a uma lista de fornecedores; grandes

empresas com planos para seus funcionários; seguros médicos de reembolso;

entidades filantrópicas; gastos à custa do próprio cidadão (LAGO, 2007).

Em 1999, 43% das instalações e 70% dos leitos eram privados, sendo que 58%

desses leitos eram contratadas pelo SUS, além de a imensa maioria dos

equipamentos de alta tecnologia também ser de propriedade particular. Esse fato

continua sendo vivenciado na pandemia da Covid-19.

Tal situação demonstra que o desmonte da rede pública de saúde já ocorre

há décadas, acarretando que as camadas populacionais mais pobres sejam também

as mais afetadas. Diante dessa distorção, quem não disponha de plano de saúde fica

497
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

à mercê do agendamento para o atendimento médico por meio do setor público,

estando condenado ao sofrimento crônico de doenças que, por vezes, atingem

mortalmente o paciente antes de o Estado o socorrer, com sua eterna morosidade.

Em 2008, 25,9% da população brasileira dispunham de plano de saúde. Entre

estas, 77,5% estavam vinculadas a planos de empresas privadas e 22,5% a planos de

assistência ao servidor público. Além disso, do total de pessoas cobertas por plano

de saúde, 47,8% eram titulares do plano de saúde único ou principal que possuíam.

O levantamento suplementar de saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios (PNAD) estimou em 139,9 milhões o total de pessoas que normalmente

procuravam o mesmo serviço de saúde quando precisavam de atendimento, o que

correspondia a 73,6% da população (IBGE, 2008)119.

Pesquisa realizada pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela

Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) mostra que 69,7% dos

brasileiros não possuem plano de saúde particular, seja individual ou empresarial.

Segundo este levantamento esse percentual é ainda maior entre as pessoas das

classes C, D e E, atingindo 77%. Destaca que 44,8% dos entrevistados sem plano de

saúde disseram utilizar o SUS, principalmente os entrevistados das classes C, D e E

(51,4%), quando precisam de atendimento. O restante afirmou que arca com

dinheiro do próprio bolso para pagar pelos serviços necessários (BOCCHINI, 2018).

Neste período da Covid-19 a mídia tem divulgado sintomaticamente a falta de:

materiais e equipamentos necessários ao atendimento dos enfermos, pessoal técnico

e médicos com experiência na área de pandemias. Tudo isso desencadeado por um

processo de falta de investimentos na área de saúde pública.

119
O posto ou centro de saúde foi o local mais declarado como normalmente procurado (56,8%), seguido pelos
consultórios particulares (19,2%) e pelo ambulatório de hospital (12,2%).

498
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

3.1 Setor farmacêutico

A Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998, que aprovou a Política Nacional

de Medicamento (PNM), integrada à Política Nacional de Saúde (PNS) (OLIVEIRA;

LABRA; BERMUDEZ, 2006).

A PNM tem os seguintes objetivos: assegurar os compromissos de governo e

outras instâncias; garantir o acesso a medicamentos essenciais (OPS, 2004; WHO,

2015)120, principalmente para o atendimento de agravos prioritários de saúde da

população; garantir a qualidade, eficácia e segurança dos medicamentos; promover

o uso racional dos medicamentos. Trata-se de política fundamental na

descentralização da gestão, na promoção do uso racional dos medicamentos e na

otimização e eficácia do gerenciamento da assistência farmacêutica (OPS, 2005). Na

tentativa de implementação da PNM foram empreendidos esforços lastreados nas

metodologias propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que se

desenvolveram entre 1998 a 2003 (OPS, 2005).

Nesse período o Brasil já possuía cerca de 400 empresas farmacêuticas. Dessas,

20 multinacionais dominam cerca de 80% do mercado, enquanto as 380 empresas

de capital nacional são responsáveis por, aproximadamente, 20% do faturamento

total. Cabe salientar que o parque industrial brasileiro de medicamentos é bastante

desenvolvido com relação à capacidade de fabricação de produtos finais.

Concomitantemente a isso, se constata o desenvolvimento na produção,

evidenciando forte dependência da importação de farmacoquímicos

principalmente vindos da Índia.

120
A OMS considera medicamentos essenciais aqueles que servem para satisfazer as necessidades de atenção
à saúde da maioria da população.

499
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

3.2 A atuação das empresas farmacêuticas

Os medicamentos se tornaram imprescindíveis para a sociedade brasileira,

estando sob o controle de poucas empresas da área farmacêutica, que atuam de

forma globalizada (OLIVEIRA; LABRA; BERMUDEZ, 2006).

No Brasil existem 21 laboratórios oficiais que produzem juntos cerca de 30%

dos medicamentos utilizados no SUS. Além disso, com os acordos, o Ministério da

Saúde garante a produção dos medicamentos antes comprados de empresas

privadas, muitas delas estrangeiras, estimando uma grande economia nos gastos

com a compra de medicamentos (BRASIL, 2020c) 121. No entanto, tais laboratórios

ainda operam de forma quase ociosa, pois têm capacidade de produzir,

aproximadamente, 11 bilhões de unidades farmacêuticas/ano, com 195

apresentações farmacêuticas, abrangendo mais de 107 princípios ativos. Para se

chegar à produção plena, é necessário existir uma política industrial, científica,

tecnológica e de saúde pública que oriente seu funcionamento.

Em 2017, o Brasil subiu duas posições no ranking global, tornando-se o sexto

maior mercado farmacêutico do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, da

China, do Japão, da Alemanha e da França, segundo a IQVIA 122

(GUIADAFARMACIA, 2018). . Diante desse panorama, é o caso de se verificarem as

obrigações do Estado, com relação aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

(ODS).

121
Vide BRASIL. Ministério da Saúde. Laboratórios Oficiais. Disponível em:
http://www.saude.gov.br/assistencia-farmaceutica/laboratorios-oficiais. Acesso em: 5 abr. 2020c.
122
(NYSE:Q) é uma empresa líder global no fornecimento de informação, soluções tecnológicas inovadoras e
serviços de investigação clínica focada no uso de dados e ciência para ajudar clientes da área da saúde a
encontrar melhores soluções para os seus pacientes.

500
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

4 O ESTADO E SUAS OBRIGAÇÕES

Em 2015, a ONU propôs aos países membros uma nova agenda de

desenvolvimento sustentável para os próximos 15 anos, a Agenda 2030, composta

pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), tendo o Brasil

aquiescido no cumprimento da proposta. Os princípios da Agenda 2030 e dos ODS

se resumem no seguinte: universalidade – são relevantes para todas as pessoas;

integração – equilibra as dimensões ambiental, social e econômica; não deixar

ninguém para trás, pois os ODS têm a intenção de beneficiar todas as pessoas em

todos os lugares. (PACTO GLOBAL, 2020).

Atualmente, 63% de todas as mortes no mundo provêm de DNT,

principalmente cardiovasculares, respiratórias, câncer e diabetes. Estima-se que as

perdas econômicas para os países de renda média e baixa provenientes dessas

doenças ultrapassarão US$ 7 trilhões até 2025.

André-Pierre Contandriopoulos, falando sobre o desafio do acesso a

medicamentos em sistemas de saúde, esclareceu que os países têm problemas

semelhantes na dificuldade de fornecer diversos serviços, entre eles, o acesso a

medicamentos, pela existência de listas de espera inaceitáveis e também pela

enorme disparidade existente entre as camadas sociais, no que diz respeito a contar

com esses serviços em seu benefício (CONTANDRIOPOULOS, 2010).

Se o direito de acesso a medicamento pela população mais vulnerável for

obstado, inibindo o tratamento adequado de sua enfermidade, ela poderia se

socorrer ao Poder Judiciário? Sim, pois é livre o acesso. Contudo, se o Estado alegar

e provar o comprometimento orçamentário como razão para a não disponibilização

de medicamento, utilizando o princípio da reserva do possível, o pleito poderá ser

indeferido. Esse princípio significa “o limite ao poder do Estado de concretizar

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

efetivamente direitos fundamentais a essa prestação” (SARLET; FIGUEIREDO,

2010)123. Entretanto, tal recorrência vai depender do caso concreto a ser analisado

pelo Judiciário124.

Existem diversos motivos que impedem o Estado de cumprir com suas

obrigações, no que tange ao atendimento às necessidades da saúde da população:

falta de recursos e de pessoal, em especial nos hospitais; espera relativamente longa

para atendimentos; desvalorização da medicina de primeira linha (atenção

primária); tensões frequentes entre a assistência pública e os seguros privados de

saúde; repetidos escândalos na prestação de saúde às pessoas menos favorecidas e

aos idosos; grandes distâncias geográficas que dificultam o acesso aos serviços; a

incapacidade de controlar a alta de preços dos medicamentos e de garantir seu

acesso com uso racional (CONTANDRIOPOULOS, 2010). O mesmo autor faz a

seguinte afirmativa:

[...] se o aumento de custos estivesse associado a um ganho


importante para saúde das pessoas, certamente poderia ser visto
como benefício, porém ao comparar-se esse aumento com a
esperança de vida ao nascer, que é um indicador de saúde, constata-
se que não há relação entre a elevação dos custos e a melhoria na
saúde da população (CONTANDRIOPOULOS, 2010, p. 18).

Em resposta às referidas questões, Contandriopoulos esclarece que há dois

grupos de países: aqueles que dispõem de sistema público financiado, de forma

importante, pelo Estado ou por quotização social; os Estados Unidos e a Suíça, nos

quais as despesas privadas são significativas. Quando observados o percentual de

123
Vide também: JACOB, Cesar Augusto Alckmin. A “reserva do possível”: obrigação de previsão orçamentária
e de aplicação da verba. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (Org.). O controle jurisdicional das
políticas públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 237-284.
124
Vide (Superior Tribunal de Justiça – Resp 1762423 CE 2018/0220698-0, Relator: Ministro Og Fernandes,
Data de Publicação: DJ 24/09/2018).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

despesa privada e o aumento dos custos pode-se perceber que existe relação linear

entre eles: quanto mais os países têm sistema público, mais fácil torna-se o controle

de custos; enquanto nos que tem sistema misto público-privado, mais difícil é esse

controle (CONTANDRIOPOULOS, 2010). O mesmo autor acredita que

[...] para se ter um sistema realmente à altura das expectativas da


população, dever-se-ia aumentar o financiamento público; integrar
os serviços e melhorar sua qualidade; organizar a atenção primária;
repensar a governança e a imputabilidade; desenvolver prontuários
médicos únicos e utilizáveis por todos os profissionais; e garantir o
acesso universal e equânime aos medicamentos. Porém, apesar de
essas recomendações serem convergentes, é preciso reconhecer que
os resultados estão longe das expectativas. Fala-se sobre o que deve
ser feito, mas frequentemente não se faz o que deveria ser feito.
Tem-se, então, a impressão de que as reformas propostas não têm a
capacidade de modificar a trajetória do sistema de saúde e de
organizar as transformações requeridas para permitir o encontro da
tríplice exigência de ser equidade, liberdade e eficiência
(CONTANDRIOPOULOS, 2010, p. 20).

Observe-se que o acesso equânime aos medicamentos é igualmente difícil de se

garantir. Trata-se de componente essencial para a preservação da saúde e não se

pode criar impasse nessa área negando o acesso, em especial considerando que a

saúde é um direito e o Estado é seu provedor, devendo assegurar a cada pessoa, por

políticas públicas próprias, o tratamento prescrito. Por outro lado, os medicamentos

muitas vezes indispensáveis ao tratamento são cada vez mais onerosos, se bem que

imprescindíveis.

Constata-se que a despesa per capita com medicamentos em diferentes países é

muito variável, sendo também a responsabilidade pública em relação a eles muito

variável. Aviva o autor que, quanto à regulação dos medicamentos, coexistem

quatro lógicas: 1) lógica do mercado (importância do lucro e responsabilidade

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

social), 2) lógica profissional (independência profissional); 3) lógica democrática (o

papel do Estado no atendimento dos seguintes direitos: o direito à saúde e ao acesso

a medicamentos com equidade; o direito à propriedade intelectual das

farmacêuticas, que constituem parte importante do produto interno bruto - PIB); 4)

lógica tecnocrática (é preciso levar em conta a complexidade do tema e encontrar o

ponto de equilíbrio entre a necessidade de estabelecer condutas clínicas e

terapêuticas e a manutenção da liberdade profissional, conhecida como governança

clínica) (CONTANDRIOPOULOS, 2010).

A menção às quatro lógicas sobre as quais discorre o autor conduz a duas

considerações: a) nenhuma delas, sozinha, mostra-se suficiente para assegurar a

regulação do sistema, independentemente de como ele seja; b) para que uma decisão

seja tomada e seja útil, é preciso basear-se em uma dessas lógicas. Daí,

Contandriopoulos propõe as seguintes questões: Que lógica prevalece sobre a outra

e quando isto ocorreria? Esse impasse pode ser solucionado? Sua resposta é

afirmativa, mas implica a ocorrência de um ou mais dos seguintes eventos:

a) se a regulação democrática, conduzida pelo mundo político, pudesse

assegurar a independência da pesquisa; que pudesse garantir, de maneira

rígida e sem nenhuma exceção, a independência da expertise na avaliação da

eficácia e da segurança dos novos produtos;

b) revisão da legislação com respeito à duração das patentes;

c) a colocação em prática da prestação de informações completas sobre os

medicamentos, obrigando a indústria a rever todos os resultados de suas

pesquisas, incluindo aquelas mantidas em segredo;

d) o financiamento suficiente à formação inicial e contínua de profissionais; e se

o controle dos preços de medicamentos fosse feito pelo governo e não pelas

indústrias;

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e) o controle da publicidade, principalmente aquela voltada para impactar

diretamente a população;

f) a continuação da reforma dos sistemas de saúde, principalmente aqueles que

garantam a universalidade do acesso aos medicamentes e que constituem

elemento importante de programas públicos de seguro-saúde

(CONTANDRIOPOULOS, 2009, p. 21-25).

Cabe, em seguida, abordar a interface entre os princípios que possam

garantir o acesso ampliado aos medicamentos e os interesses das indústrias

farmacêuticas do país e do exterior.

5 ACESSO A MEDICAMENTOS VERSUS AS INDÚSTRIAS FARMACÊUTICAS

O acesso a medicamentos, segundo a OMS, está relacionado com a seleção

racional, preços acessíveis, sistemas de financiamento sustentáveis e sistemas de

abastecimento de medicamentos confiáveis.

Thomas Pogge assevera que cerca de 3,4 bilhões de pessoas detêm menos de

2% da renda global, em comparação com os 6% dessa renda recebida por 1% das

famílias americanas mais ricas, que constituem três milhões de pessoas. Em época

recente, a desigualdade de renda tem diminuído de forma clara somente em quatro

países e o Brasil é um deles, mas ainda está entre as sociedades mais desiguais, com

a metade mais pobre ganhando apenas 14% de toda a renda familiar, em

comparação com os 45% dos 10% mais ricos (POGGE, 2008).

As mencionadas cifras demonstram que os pobres estão alijados do acesso a

medicamentos, pois, conforme assevera o Acordo TRIPS, o preço alto para

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

medicamentos avançados os deixa fora do alcance dos pacientes pobres 125 e

estimula a negligência de doenças concentradas nessas populações126.

As pessoas mais pobres estão expostas a doenças contagiosas, entre outras

agressivas enfermidades, e carecem de meios para protegê-las e a seus familiares,

pois não têm acesso a saneamento básico adequado, não contam com boas

condições de higiene e são desprovidos de prestígio que lhes assegurem a

destinação de políticas públicas em seu benefício. Permanecem, assim, em situação

crônica de vulnerabilidade, sem perspectivas de evolução social.

Na visão de Pogge (2008, p. 124) tal situação pode ser alterada desde que se

efetivem progressos contra a carga global das doenças (CGD), pois essas doenças

afastam, temporariamente ou permanentemente, pessoas do mercado de trabalho.

Caso seja empreendida a reforma do financiamento à prestação de tratamentos

médicos, tal situação poderá ser melhorada para a clientela em questão.

É salutar esclarecer que existem três categorias de medicamentos: a) os

curativos, que removem a doença do corpo do paciente; b) os que aliviam os

sintomas e melhoram o bem-estar e o funcionamento do corpo, sem remover a

doença; c) os preventivos, que reduzem a probabilidade de contrair a doença. Os

medicamentos que aliviam os sintomas são os mais lucrativos, pois os pacientes

mais desejáveis são aqueles que não são curados e não morrem, uma vez que

continuam adquirindo o medicamento regularmente, favorecendo a indústria

farmacêutica detentora da patente127.

125
Hoje em dia, cerca de 100 companhias farmacêuticas de grande porte são responsáveis por cerca de 90%
dos produtos farmacêuticos para consumo humano.
126
Essa negligência se concentra no fato de as grandes empresas farmacêuticas preferirem desenvolver
produtos destinados a público possuidor de recursos para comprar seus produtos, como aqueles para queda
de cabelo, remoção de acne etc., em vez de investir em pesquisa para doença de Chagas, tuberculose, doença
do sono, entre outras.
127
Os medicamentos que aliviam a dor colocam o pobre e o rico no mesmo pé de igualdade, pois não terão
sua doença curada e ficarão à mercê do medicamento por longo período de sua vida.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Argumenta o autor que o mundo reage de diversas formas contra a crise

catastrófica da saúde que atinge as populações de menor renda: com as habituais

declarações, informes, conferências, reuniões de cúpula e grupos de trabalho usuais,

mas também com tentativas de financiar o fornecimento de medicamentos aos

pobres por meio de iniciativas intergovernamentais, com a “3 em 5” 128, mediante

programas governamentais como o Plano de Emergência do Presidente dos EUA

para Alívio da Aids (PEPFAR), por meio de parcerias público-privadas, como a

Aliança Global para Vacinas e Imunização (GAVE) e o Fundo Global para Combater

a Aids, Tuberculose e Malária (GFATM). Ocorrem, também, doações de remédios

das companhias farmacêuticas, bem como esforços variados para promover o

desenvolvimento de novos medicamentos para as moléstias dos pobres, como a

Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), o Instituto para

Uma Saúde Mundial (One World Health – IOWH), o Instituto Novartis para

Doenças Tropicais e vários prêmios, bem como compromissos antecipados de

compra129 e compromissos antecipados de mercado130 (POGGE, 2008).

Constatou-se, no decorrer dos anos, que os programas mencionados aplicaram

bilhões de dólares para neutralizar o custo imposto aos pobres do mundo pela

128
Anunciado em 2003, este programa conjunto WHO/UNAIDS destinava-se a fornecer, até 2005, tratamento
antirretroviral a 3 milhões (do que era então estimado em 40,3 milhões) de pacientes de Aids nos países menos
desenvolvidos. Na realidade, o número de pacientes que receberam esse tratamento aumentou somente em
0,9 milhão e chegou a 1,3 milhão no final de 2005.
129
Um compromisso antecipado de compra (APC) é uma promessa de compra, a um preço preestabelecido e
lucrativo, de um grande número determinado de doses de um medicamento novo que obedece a certas
especificações.
Constata-se situação similar sendo aplicada no Brasil entre o Ministério da Saúde (MS) e algumas empresas
farmacêuticas privadas, sob a denominação de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), sendo que
estas empresas têm seu estoque adquirido pelo MS para utilização pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pelo
prazo de cinco anos.
130
Um compromisso antecipado de mercado (AMC) é uma promessa de subsidiar a venda de grande número
determinado de doses de um medicamento novo que obedece a certas especificações. O único AMC emitido
até agora – financiado por Itália, Reino Unido, Canadá, Rússia, Noruega e a Fundação Gates – é para vacinas
contra doença pneumocócica, causa importante de pneumonia e meningite entre as populações pobres.
Novos relatórios sugerem que ele está projetado para servir, sobretudo aos interesses da indústria
farmacêutica.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

globalização das patentes monopolizadas, cujas ações foram materializadas com a

criação da OMC, mas não atingiram de forma plena seu objetivo. Torna-se

intangível pensar que esse objetivo seja alcançado, se for tratado pela ótica das

empresas farmacêuticas, com base nos pontos apresentados por Pogge (2008, p. 129-

131), a seguir:

a) devido aos preços altos dos remédios – os preços praticados pelas empresas

farmacêuticas estão diretamente ligados à proteção de sua patente e,

enquanto ela estiver em vigor, os preços não vão diminuir, pois o lucro é o

objetivo principal, senão único, do empresário;

b) negligência em relação às doenças concentradas nas populações pobres, por

mais disseminadas que sejam essas doenças – o público-alvo está em países

pobres e o custo-benefício para as empresas não é atrativo, motivo suficiente

para serem deixadas de lado as pesquisas destinadas à cura dessas

enfermidades;

c) preferência pelo alivio de sintomas – a empresas farmacêuticas querem

lucrar e vão lucrar muito mais se não curarem as doenças, mas somente

entregarem medicamentos que aliviem os sintomas e melhorem o bem-estar;

d) desperdício – para implantar seu produto num Estado, a empresa precisa

obter sua aprovação em órgão estatal próprio. Tal providência implica

despesas, assim como o monitoramento dessas jurisdições, a fim de impedir

possíveis violações de suas patentes;

e) falsificação – quando o preço de venda de determinado produto está muito

acima de seu custo de fabricação (mark-up), isto incentiva a manufatura e

venda ilegal desses medicamentos;

f) marketing excessivo – se o mark-up for muito grande, as indústrias

farmacêuticas julgam viável fazer esforços especiais para aumentar o volume

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de vendas influenciando o receituário dos médicos, assediando-os com

promotores de venda;

g) “problema de última milha” – a companhia farmacêutica que desenvolvesse

esforço moralmente motivado para permitir aos pobres se beneficiarem de

seu medicamento patenteado, correria o risco de prejudicar seriamente sua

posição econômica. Quando arcar com o esforço para tornar o remédio

disponível de forma adequada aos pacientes pobres, promovendo a

ocorrência de doença da qual dependem seus lucros, vai também perder os

clientes ricos, que vão encontrar maneira de comprar barato medicamentos

destinados aos pobres;

Segundo o autor, tal situação pode ser modificada por meio da implantação

do Fundo de Impacto sobre a Saúde Global (Health Impact Fund), no sentido de

promover, junto àqueles que detêm a patente dos medicamentos, a opção de

oferecer os medicamentos a preço de custo, em troca de uma recompensa monetária

anual baseada no impacto que tal iniciativa possa acarretar aos negócios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após o exposto acima, verifica-se que a saúde atingiu o status de Direito

Humano Fundamental há sete décadas na sociedade internacional, bem como em

diversas constituições ao redor do mundo, mas para se tornar direito exercido na

prática, implica outro patamar a ser alcançado. Tal situação prática pode ser

constatada no caso dos medicamentos que, mesmo prevista no terceiro item dos

Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) a serem alcançados até 2030, sua

execução tem sido severamente inibida pelas dificuldades que se apresentam a cada

momento, ainda mais no período de pandemia da Covid-19.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

É crucial haver a mediação do Estado no fomento e na gestão em P&D de

medicamentos direcionados aos problemas de saúde das áreas mencionadas.

Entretanto, tal iniciativa implica haver acordo entre as farmacêuticas internacionais

e os Estados, no qual não haja perdas consideráveis para nenhuma das partes: nem

para as farmacêuticas, devido ao investimento aplicado na produção do

medicamento; nem para o Estado, não sendo extorquido pelo preço abusivo que

seja cobrado pelos medicamentos adquiridos.

O Estado brasileiro deve ter atuação mais contundente diante das indústrias

farmacêuticas, com seu poder econômico e de lobby. Para isso, se faz necessário o

investimento robusto em pesquisa e desenvolvimento nos laboratórios do governo;

na aquisição de insumos; no estabelecimento de normas para a produção, registro,

comercialização, distribuição e dispensação de medicamentos; no controle mais

efetivo das farmacêuticas, em suas propagandas reproduzidas nas mídias

divulgando medicamentos que aliviam os sintomas e melhoram o bem-estar e o

funcionamento do corpo, mas não curam as doenças; em campanhas de uso racional

de medicamentos e seu controle.

Todas essas providências são indispensáveis a fim de atender as

necessidades e as expectativas da população, atingindo especialmente a camada

mais pobre, sem condições plenas de acesso aos medicamentos essenciais

direcionados às suas doenças mais frequentes. Tal iniciativa vem ao encontro do

descrito na Política Nacional de Medicamento (PNM), integrada à Política Nacional

de Saúde (PNS) e daqueles nominados por Contandriopoulos (2010) em sua

proposta amplamente abordada.

Há consciência de que essas medidas sejam de difícil realização no momento

atual, entretanto devem ser expostas e discutidas, para promover a mobilização e o

esforço do Estado no sentido de assegurar o direito humano de os setores mais

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

carentes da população terem acesso a saúde, por iniciativa ou não do poder público,

evitando se privar do indispensável para sua subsistência. No caso do Brasil, trata-

se de situação com dependência direta em vários fatores, entre eles a dotação

orçamentária vinculada a três instrumentos normativos – o Plano Plurianual, a Lei

de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária Anual – formatados na

Constituição Federal.

A falta de aparelhamento do Estado na área de saúde para enfrentar as

doenças que acometem a população deve ser corrigida, utilizando-se de políticas

públicas para inibir ou minimizar a ação de doenças no meio social. Para haver

sucesso nesse trabalho, investimentos devem ser alocados continuamente, pois,

caso contrário, a população mais carente será subjugada por essas enfermidades.

Em períodos de pandemias como a Covid-19 os menos favorecidos

economicamente serão sempre os mais severamente atingidos.

Entretanto, desponta a esperança de que tal acerto possa ser alcançado, desde

que sejam concretizadas as propostas da ODS (objetivos 3, 4, 5 e 6). Ocasião em que

os dirigentes do Estado brasileiro se conscientizarão sobre o conjunto de princípios

e valores com a função de garantir a cada cidadão, em todos os momentos, o respeito

e a observância de seus direitos com relação ao acesso adequado à saúde.

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WHO. Medicamentos essenciais e tecnologias sanitárias fundamentais no quadro


das doenças não transmissíveis: em prol de um conjunto de ações destinadas a
melhorar o seu acesso em condições equitativas nos Estados-Membros. Disponível
em: https://www.who.int/ nmh/events/essential_ medicines_2jul15_portugese.pdf.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A PANDEMIA COMO FATOR DE RISCO PARA A

IMPLEMENTAÇÃO DA ECONOMIA CIRCULAR NO BRASIL:

DESAFIO POLÍTICO-JURÍDICO

Newton Augusto Cardoso de Oliveira131


Wilson Tadeu de Carvalho Eccard132

RESUMO
O Brasil, como muitas outras nações, tem travado uma luta constante contra o avanço do
Pandemia dentro do seu território. Esse esforço trouxe como consequência uma estagnação
da economia, um aprofundamento das mazelas sociais que já convivíamos há anos, bem
como pode atrasar a implementação de reformas e movimentos importantes. O objetivo
deste estudo é abordar um destes movimentos, que é a transição para um modelo
econômico mais sustentável, a economia circular, que alcança e atende os direitos
econômicos, sociais e culturais, os quais nos afiliamos e que pode encontrar mais
dificuldade durante o período que se estende a Pandemia. Justifica-se a presente pesquisa
na medida em que as ações tomadas para conter o vírus mortal, que se espalha lentamente
sobre o país, além de violarem os mencionados direitos, infringem com a morte os direitos
humanos e a dignidade da pessoa humana. A hipótese é que as ações governamentais de
combate à covid-19 podem transgredir os direitos humanos e atrapalhar a transição para a
economia circular. A pesquisa será trabalhada com base no método histórico mediante
pesquisa bibliográfica qualitativa. No primeiro capítulo abordaremos, como introdução, o
contexto em que se encontram as discussões levantadas; no segundo capítulo, abordaremos
o que é a economia circular e como ela se conecta com os direitos econômicos, sociais e
culturais; no terceiro trabalharemos as ações governamentais no combate ao vírus da covid-
19, concluindo em seguida.

Palavras-chave: direito econômico; economia circular; covid-19

RESUMEN
Brasil, como muchas otras naciones, ha estado librando una lucha constante contra el
avance del coronavirus dentro de su territorio. Este esfuerzo, sin embargo, ha provocado
un estancamiento de la economía, una profundización de los males sociales que vivimos
desde hace años, además de retrasar la implementación de importantes reformas y
movimientos. El objetivo de este estudio es precisamente abordar uno de estos

131
In memoriam († 25/09/2020) - PPGDIN/Professor CEDERJ, lattes: http://lattes.cnpq.br/6547258530091663.
132
Doutorando PPGDIN/Professor UNESA, e-mail careccard@gmail.com, lattes:
http://lattes.cnpq.br/8815697429970108

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

movimientos, la transición a un modelo económico más sostenible, la economía circular,


que logra y cumple los derechos económicos, sociales y culturales, a los que afiliamos, que
pueden encontrar más dificultades durante el período que prolonga la Pandemia. Así, esta
investigación se justifica en que las acciones emprendidas para contener el virus mortal,
que se propaga lentamente por el país, además de violar los derechos antes mencionados,
vulneran los derechos humanos con la muerte, así como la dignidad de la persona humana.
La hipótesis es que las acciones gubernamentales para combatir el covid-19 pueden violar
los derechos humanos y dificultar la transición a la economía circular, que se trabajará con
base en el método histórico a través de la investigación bibliográfica cualitativa. En el
primer capítulo abordaremos, a modo de introducción, el contexto en el que se encuentran
las discusiones planteadas; en el segundo capítulo, discutiremos qué es la economía circular
y cómo se conecta con los derechos económicos, sociales y culturales; en el tercero,
trabajaremos en acciones gubernamentales para combatir el virus covid-19 y luego
concluiremos.

Keywords: derecho económico; economía circular; COVID-19

INTRODUÇÃO

Muito embora a Pandemia por covid-19 (Sars-CoV-2), que assola o planeta

desde dezembro de 2019, esteja transformando o mundo como o conhecemos no

exato momento em que este texto é escrito (julho/agosto/setembro de 2020), a

necessidade de uma transição para um sistema econômico mais sustentável, como

a economia circular, é aventada por determinados setores da sociedade civil

organizada há, aproximadamente, duas décadas (ELLEN MACARTHUR

FOUNDATION, 2012) (MEADOWS, DONELLA; RENDERS JORGEN;

MEADOWS, 2006)(GEISSDOERFER et al., 2017).

Em razão, também, da Pandemia, boa parte da população mundial pode

perceber a importância da relação economia versus bem-estar social, em

consequência da grande cobertura da mídia acerca dos posicionamentos dos mais

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

diversos líderes mundiais no que toca ao enfrentamento do vírus 133, bem como na

dura realidade enfrentada por todos os brasileiros, em especial das classes menos

abastadas, configurado no dilema de sair de casa para trabalhar e sustentar a família

ou permanecer em casa para se proteger do vírus e passar necessidade134.

Ainda que o objetivo principal de todo o governo seja o de preservar

vidas135, eles se encontram hoje em um dilema perante o debate que se apresenta

entre a necessidade de se manter em pleno funcionamento a economia para evitar a

entrada em colapso e a preservação prioritária da vida (BITTENCOURT, 2020).

No Brasil esse debate se dá face, sobretudo, as opções de política econômica

que hodiernamente são praticadas pelo governo federal, onde tem hegemonia

absoluta na direção da economia gestores que se orientam desde uma perspectiva

fundamentalista pelos ensinamentos da Escola de Chicago.136

Neste contexto, a Pandemia coloca em evidência a necessidade de uma

transição mais rápida do modelo da economia linear, adotado desde a revolução

industrial e cujas características são extrair, produzir e descartar sem se importar

com a quantidade de matéria prima não renovável utilizada e nem com o descarte

consciente, para a economia circular, que repensa toda a cadeia produtiva de

133
O vírus covid-19 já matou, até a segunda quinzena de setembro de 2020, mais de 900.000 (novecentos) mil
pessoas em todo o mundo, sendo mais de 139.000 (cento e trinta e nove mil) apenas no Brasil,
desconsiderando a altíssima subnotificação. Fonte: Consórcio de Veículos de Imprensa do Brasil – Fonte:
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/09/brasil-tem-1136-mortes-pela-covid-19-e-chega-a-
128-mil-obitos.shtml e https://www.worldometers.info/coronavirus/?utm_campaign=homeAdvegas1, acesso
em 10.09.2020.
134
Nota dos autores: Esse dilema, Economia versus Vida, que não se restringiu ao Brasil, e foi um dos muitos
desvelamentos que o Covid 19 trouxe à baila no contexto das sociedades contemporâneas.
135
A crise da pandemia do coronavírus tem preocupado a maior parte dos países do mundo em razão da
inexistência de tratamento ou vacina capaz de evitar a morte de parcela significativa pessoas. O que se conhece
até o presente momento é que embora a letalidade não seja alta, a ausência destas medidas já alcançou
número de mortes superior a outras doenças respiratórias.
136
Essa é a denominação de um grupo de professores liderados por Milton Friedman e George Stigler, com
sede na Universidade de Chicago, na Faculdade de Economia, os dois maiores expoentes do neoliberalismo
econômico americano na segunda metade do século XX. Os professores defendiam a observação dos dados e
a realização de testes empíricos como maneira de mostrar as limitações da ação do Estado na economia.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

maneira orgânica para que o material empregado possa ser reutilizado ao máximo

com o mínimo de desperdício.

Isto tem ficado em evidência dado a crise das redes de fornecimento de

insumos básicos de caráter médico para o combate ao vírus da covid-19, bem como

no descarte irregular destes materiais já utilizados de maneira a comprometer a

saúde da população em geral e dos profissionais ligados à limpeza urbana.

Pretende-se com a presente pesquisa, verificar como se dá a tensão entre o

respeito entre os direitos econômicos e sociais, na necessidade de transição de

modelo de economia, e o combate ao convid-19 por parte do governo, além de

demonstrar como os conceitos da economia circular atendem melhor que o atual

modelo a necessidade de lidar em um mundo complexo como estamos vivenciando.

A hipótese é que as ações governamentais de combate à covid-19 podem transgredir

os direitos humanos e atrapalhar a transição para a economia circular.

A abordagem será mediante um referencial teórico interdisciplinar. No que

toca os direitos humanos, Flávia Piovesan; no que alcança o tema dos direitos

econômicos, Ignacy Sachs; já na abordagem da economia circular, Geissdoerfer e

Ellen MacArthur Foundation. O método utilizado será o histórico com base em

pesquisa bibliográfica qualitativa.

A ECONOMIA CIRCULAR E OS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E

CULTURAIS

A urgência para a adoção de um novo meio de conduzir a economia

nacional pode ser compreendida sob diferentes aspectos. O consumo cada vez

maior necessita de uma constante extração de recursos naturais não renováveis, o

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que gera uma grande produção de resíduos sólidos que não consegue ser absorvida

pela natureza e nem tratada pelas indústrias de transformação137.

O uso consciente da matéria prima e um compromisso com toda a cadeia

(da produção à reutilização destes materiais em novos ciclos) de elaboração de

produtos ou mesmo a prestação de serviços, devem se alinhar às novas práticas de

produção econômica presentes na economia circular, que já são utilizadas em

diversos países da União Europeia, Canadá e China.

A adoção deste modelo pelo Brasil deve ser tomada com o efetivo respeito

aos direitos previstos tanto na legislação interna (Constituição Federal, Política

Nacional de Resíduos Sólidos) quanto externa (Pacto de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais e Protocolo de São Salvador).

A realidade aberta pela crise da Pandemia por covid-19 na forma como

produzimos, compramos, entregamos e descartamos bens e serviços pode

proporcionar uma aceleração neste processo de transição.

No artigo primeiro da Constituição Federal de 1988 o Brasil adota o Estado

Democrático de Direito, que prevê a necessidade de adequação dos direitos

fundamentais com os princípios de direito internacional previstos no artigo 4º da

CRFB/88 138 , colocando em evidência que o respeito aos direitos humanos e as

relações internacionais são fundamentais. E no que tange esta última, se encontra a

Organização Mundial da Saúde - OMS que é uma organização mundial

137
Um exemplo disto são os inúmeros exemplos que são noticiados no mundo de regeneração do ecossistema.
Desde a volta dos golfinhos aos Canais de Veneza à agua de cor “caribenha” na poluída Enseada de Botafogo
no Rio de Janeiro.
138
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-
intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio
ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de
asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social
e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

especializada dentro do sistema da Organização das Nações Unidas dedicada ao

objetivo principal de promover a saúde mundial.

Assim, ao proteger direitos que, por vezes, podem ser conflitantes, como

vida, dignidade, direitos humanos e livre iniciativa, desenvolvimento nacional,

como é o momento atual, é natural que haja tensão no Estado contemporâneo,

principalmente no que tange os direitos sociais, econômicos e culturais.

A busca por uma economia menos prejudicial à saúde e ao meio ambiente

é tema que permeia o Estado brasileiro desde meados da década de 70 do século

XX, quando tiveram início as grandes reuniões de clima promovidas pela

Organização das Nações Unidas – ONU (Estocolmo, 1972) (ECCARD, 2019).

A preocupação com um desenvolvimento também sustentável é objeto de

tratados internacionais, o que demostra a preocupação mundial com o tema. Vale

destacar e analisarmos dois deles. O Pacto Internacional de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais criado em 1966 e adotado pelo Brasil em 1992 e o Protocolo

Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais, "Protocolo de São Salvador", concluído em 1988,

adotado pelo Brasil em 1996 e em vigor desde 1999.

Ajustar estes elementos com efetivo respeito aos direitos humanos,

norteando-o como paradigma e referencial teórico (PIOVESAN, 2004), é desafio

para o governo e uma luta diária pela população para que não haja diminuição de

seus direitos139.

Principalmente no que diz respeito ao direito ao desenvolvimento, uma

ação integrada de tais direitos ajuda em uma integração mais completa, como

aponta Ignacy Sachs:

139
Luta principalmente em razão da adoção de uma postura neoliberal pelo Ministro da Economia, Paulo
Guedes, ex-aluno da Escola de Chicago, durante o Governo, de ultradireita, de Jair Bolsonaro.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a- A articulação de espaços de desenvolvimento, desde o nível local


(que deve ser ampliado e fortalecido) ao transnacional (que deve ser
objeto de uma política cautelosa de integração seletiva, subordinada
a uma estratégia de desenvolvimento endógeno;
b- A promoção de parcerias entre todos os atores interessados, em
torno de um acordo negociado de desenvolvimento sustentável;
c- A harmonização de metas sociais, ambientais e econômicas, por
meio de planejamento estratégico e do gerenciamento cotidiano da
economia e da sociedade, buscando um equilíbrio entre diferentes
sustentabilidades (social, cultural, ecológica, ambiental, territorial,
econômica e política) e as cinco eficiências (de alocação, de
inovação, a keynesiana, a social e a ecoeficiência (SACHS, p.11).

Ao considerarmos a legislação interna, a Constituição Federal é nosso

paradigma, posto que apesar de existir uma tensão entre princípios aparentemente

antagônicos, há orientação principiológica que demanda a tomada de rumos que

orientem a vida econômica da sociedade.

Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV, CF/88), a

construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF/88), a garantia do

desenvolvimento nacional (art. 3º, II, CF/88), a erradicação da pobreza e

marginalização para a redução das desigualdades (art. 3º, III, CF/88), a prevalência

dos direitos humanos (art. 4º, II, CF/88), o exercício de cooperação entre os povos

para o progresso da humanidade (art. 4º, IX, CF/88) são princípios que garantem

um empenho de todos os níveis de governo para uma atenção voltada para o

desenvolvimento tanto de um bem-estar social, como para o desenvolvimento

econômico da sociedade brasileira.

Já no capítulo da ordem econômica e financeira, título VII, que se inicia no

art. 170, visualizamos a disposição de nosso texto maior para o protagonismo

federal na adoção de medidas que irão fomentar a adoção de práticas econômicas

sustentáveis que se fundam nos princípios da valorização do trabalho humano, da

521
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

livre iniciativa, cuja meta é assegurar a todos os brasileiros uma existência digna,

apoiado à justiça social.

É neste momento que vemos outros princípios que nos ajudam a

compreender como se trata de um tema complexo, tais como a propriedade privada

e a função social da propriedade; a livre concorrência e a defesa do consumidor; a

defesa do meio ambiente e redução das desigualdades regionais e sociais e a busca

do pleno emprego (art. 170, incisos, II, III, IV, V, VI, VII e VIII, da CF/88).

Contudo, é no art. 174 140 que encontramos a verdadeira vocação da

constituição econômica presente na constituição federal brasileira.

O imperativo encontrado no texto legal impõe a necessidade de atuação

como agente normativo e regulador da atividade econômica, devendo, ainda,

exercer na forma da lei, as funções de fiscalizar, incentivar e planejar as

alterações/manutenção da atividade econômica, o que será determinante para o

poder público e indicativo para o setor privado.

Assim, ao fomentarmos a necessidade de uma transição de um sistema de

produção econômica para outro, encontramos no poder público grande fatia da

responsabilidade em implementar mecanismos que nos façam caminhar em direção

a um novo rumo, com responsabilidade que alcançam outros poderes do Estado,

como a atuação do Poder Legislativo, posto a determinação de que a lei deve

estabelecer as diretrizes e bases do planejamento econômico, bem como a

estimulação ao cooperativismo.

Tais preceitos constitucionais vão ao encontro do Pacto Internacional de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

140 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - Art. 174. Como agente normativo e regulador da
atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,
sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Fonte:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm; acesso em 05/09/2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na forma como se apresentam

neste Pacto, passaram a ser uma agenda brasileira em 1991, quando o Congresso

Nacional aprovou, em dezembro daquele ano, o texto elaborado pela XXI Sessão da

Assembleia-Geral das Nações Unidas realizada em 1966. Texto este que passou a

vigorar em território nacional no ano seguinte, em 1992.

O texto do Pacto dialoga em diversas ocasiões com o que a Constituição

Brasileira passou a prever após 1988. Desde a previsão de que cada Estado nacional

pode dispor livremente de suas riquezas e recursos naturais, respeitando os acordos

estabelecidos com outros países (Artigo 1º. 2) e a adoção de medidas para promover

os mencionados direitos, seja por esforço próprio ou mediante cooperação (Artigo

2º. 1 e 3); passando pela proteção e preservação do trabalhador, com direito à

sindicalização, e do trabalho, proporcionando orientação e formação técnica de

qualidade, remuneração suficiente para uma existência decente, segurança e

higiene, bem como previdência social (Artigos 6º, 7º, 8º e 9º); para atingir também

uma melhoria contínua de suas condições de vida, combatendo especialmente a

fome, com o desenvolvimento de melhores técnicas de produção, conservação e

distribuição destes gêneros, promovendo a saúde física e mental, devendo

assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como

o desenvolvimento é das crianças; b) A melhoria de todos os aspectos de higiene do

trabalho e do meio ambiente; c) A prevenção e o tratamento das doenças

epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como a luta contra essas

doenças; d) A criação de condições que assegurem a todos assistência médica e

serviços médicos em caso de enfermidade; e educação, que “deverá visar ao pleno

desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o

respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais”.141 (Artigos 11, 12 e 13).

141
Fonte: planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm; acesso em 07/09/2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Assim, quando apresentamos que é necessário modificarmos os rumos da

atividade econômica, promovendo planejamento e incentivo aos mais diversos

ramos produtores em direção à economia circular, tais argumentos decorrem da

narrativa lógica dos instrumentos normativos aos quais o Brasil se guia.

A economia circular – EC – “propõe que o valor dos recursos extraídos e

produzidos seja mantido em circulação por meio de cadeias produtivas integradas” assim,

“O aproveitamento inteligente dos recursos que já se encontram em uso no processo

produtivo possibilita que o crescimento econômico não fique exclusivamente dependente do

consumo crescente de novos recursos.” (SEHNEM; PEREIRA, 2019).

O conceito de EC é interdisciplinar e aparece em discussões há pelo menos

um século e meio, contudo, a expressão empregada neste trabalho despontou no

meio acadêmico e industrial à partir da publicação Towards Circular Economy, em

2012 da Fundação Ellen MacArthur, que foi criada especificamente para difundir o

conceito e contribuir para a transição do sistema linear para este sistema circular

(ELLEN MACARTHUR FOUNDATION, 2012).

O campus 142 do Direito também surge no tratamento da EC circular

exatamente para interpretar como, em uma exegese constitucional, deve o poder

político inserir-se na discussão procedimental, no que toca aos incentivos para

adoção das técnicas de circularidade de insumos produtivos em uma cadeia

orgânica, à luz do artigo 174, da CF/88 apontado acima, bem como na adoção de

uma bandeira política, “uma meta política, em um contexto de aumento dos preços dos

142
Um dos autores deste artigo abordou a influência do campo sociológico no tema da transição para uma
economia circular utilizando a ideia de campus e habitus muito bem trabalhados na obra de Bourdieu. “Na
sociologia econômica estruturalista de Pierre Bourdieu, os conceitos de Campo e Habitus são usados para
explicar que o comportamento do agente econômico (homo oeconomicus) é tanto um fator determinado
quanto um fator determinante do local e das práticas envolvidas neste ambiente e “são adquiridas pela
interiorização das estruturas sociais. Portadoras da história individual e coletiva, são de tal forma internalizadas
que chegamos a ignorar que existem. São as rotinas corporais e mentais inconscientes, que nos permitem agir
sem pensar.” (Thiry-Cherques, 2006). (ECCARD, 2019)

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

recursos e mudanças climáticas.”(SEHNEM; PEREIRA, 2019) O Direito vai além disso,

pois ao poder político também cabe a função de fiscalizar, o que remete à

necessidade regulamentatória, inclusive para fomentar a própria adoção da

Economia Circular.

Assim, tendo em vista a proximidade legal com os institutos aqui trazidos,

verificamos uma clara convergência de diferentes tipos de direitos, tais como o

direito constitucional econômico, o direito ao desenvolvimento, o direito ao

desenvolvimento sustentável, o direito a um meio ambiente sadio, o direito do

consumidor, aos direitos sociais, econômicos e culturais. Podemos ainda afirmar

que uma transição para um novo conceito de economia pode alcançar todos estes

direitos, além, de um dos mais importantes, que são o respeito aos Direitos

Humanos.

O Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em

matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado em 1988 e em vigor

internacionalmente, e no Brasil, desde 1999, representa outro avanço do Estado

brasileiro no que diz respeito à cooperação latinoamericana em matéria de proteção

aos direitos humanos.

Trata-se de um instrumento normativo realizado com base nos direitos

econômicos, sociais e culturais os quais as nações da América Latina já dispunham

em seu direito interno e que reforça a necessidade de empenho da administração

pública em efetivar uma possível adoção da EC, principalmente em razão do que

prevê o Artigo 2, que trata da obrigação de Adotar Disposições de Direito Interno143.

143
Artigo 2 - Obrigação de Adotar Disposições de Direito Interno - Se o exercício dos direitos estabelecidos
neste Protocolo ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-
Partes comprometem-se a adotar, de acordo com suas normas constitucionais e com as disposições deste
Protocolo, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos esses
direitos. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3321.htm, acesso em 10/09/2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Há, de maneira semelhante ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, previsões acerca da proteção do trabalhador em relação ao seu

empregador (Artigos 6, 7, 8 e 9); do direito à saúde física, mental e social, com

destaque para a prevenção e tratamento das doenças endêmicas, profissionais e de

outra natureza (Artigo 10); do direito ao meio ambiente sadio (Artigo 11), educação

(Artigo 13), dentre outros mais direitos.

Importante destacar que esta gama de direitos abrangidos tanto pelo

Protocolo quanto pelo Pacto, estão dentro do que chamamos de respeito aos Direitos

Humanos, que alcançam sim dimensões econômicas, culturais e até históricas.

Lopes e Pereira afirmam: “O reconhecimento destes direitos sofreu influências culturais,

históricas e até econômicas, rendendo-lhes, inicialmente, uma característica de fluidez e

abstração, onde cada Estado assumia o papel de reconhecer, proteger ou mesmo desrespeitar

os Direitos Humanos que lhes convinham.” (LOPES; PEREIRA, 2016)

Para a construção desta proteção, Piovesan (2014) afirma que ações de

diferentes frentes são necessárias, posto que a previsão de proteção em textos legais

não contempla uma proteção efetiva e nem a implantação de políticas públicas em

prol da população144, contudo, a conjunção de instrumentos internacionais, seja de

soft law ou de direito convencional, possibilitam um reforço nesta empreitada(VAL,

EDUARDO MANUEL; ECCARD, 2018).

144
Importante destacar o texto de Flávia Piovesan sobre o tema: A existência de cláusulas constitucionais
abertas a propiciar o diálogo entre as ordens jurídicas local, regional e global, por si só, não assegura a
efetividade do diálogo jurisdicional em direitos humanos. Se, de um lado, constata-se o maior refinamento das
cláusulas de abertura constitucional – a contemplar a hierarquia, a incorporação e as regras interpretativas de
instrumentos internacionais de direitos humanos – por outro lado, esta tendência latinoamericana não é
suficiente para o êxito do diálogo jurisdicional em matéria de direitos humanos. Isto porque interpretações
jurídicas reducionistas e restritivas das ordens constitucionais podem comprometer o avanço e a potencialidade
de cláusulas abertas. Daí a necessidade de fomentar uma doutrina e uma jurisprudência emancipatórias no
campo dos direitos humanos inspiradas na prevalência da dignidade humana e na emergência de um novo
Direito Público marcado pela estatalidade aberta em um sistema jurídico multinível. A formação de uma nova
cultura jurídica, baseada em uma nova racionalidade e ideologia, surge como medida imperativa à afirmação
do ius commune latino-americano em direitos humanos. (PIOVESAN, 2014)

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Assim, a adoção de um programa de transição para uma economia circular

é medida que atende aos acordos multilaterais pactuados pelo Brasil que podem

modificar o rumo da economia nacional tornando-a não apenas mais

economicamente eficiente, posto a possibilidade de reaproveitar os insumos dos

produtos já produzidos reempregando-os novamente na cadeia, mas promover

uma emancipação dos cidadãos brasileiros, que deverão ser contemplados com

políticas públicas de conscientização de seu papel na cadeia circular.

O COMBATE À PANDEMIA NO BRASIL

Aqui no Brasil a situação é complicada, pois há uma clara divisão conceitual

dentro do próprio Poder Executivo quando Ministros da Saúde entram em

divergência com o próprio Presidente da República, que é chefe de Estado e chefe

de Governo, no entendimento de qual deve ser a política pública neste momento.

Outro fator que dificulta a tomada de ações por parte do governo relaciona-

se com o rumo neoliberal que a economia do país passou a ser conduzida, desde o

golpe parlamentar de 2016145, com clara diminuição de direitos e contingenciamento

de verbas, e a pressão cada vez maior que o setor empresarial e industrial faz por

medidas de socorro para seus negócios.146

Assim, por um lado o Presidente Bolsonaro, eleito em 2019, a valorizar o

setor econômico, sob a justificativa de que a ausência de trabalho pode gerar fome,

distúrbios sociais, saques e atos de violência, levar empresas e indústrias a fecharem

145 Golpe este que contribuiu com a derrubada da, então, presidente Dilma Rousseff, do Partido dos
Trabalhadores, rompendo um ciclo de 13 anos de governos de esquerda, que ficou marcado por tirar da
miséria boa parte da população mais pobre, mas também por continuar com um esquema de corrupção entre
as elites brasileiras (empresários, políticos, doleiros, dentre outros), empresas estatais, bem como
construtoras e outras empresas, que movimentou bilhões de reais).
146
Nota dos autores: A atual crise econômica, presente desde o início do 2º governo Dilma, foi aprofundada
pelas políticas recessivas do Governo de Michel Temer com o pomposo título de Ponte para o Futuro.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

seus negócios, e recomendar o uso de medicamentos no tratamento contra o covid-

19 que ainda não tem eficácia comprovada cientificamente.

E por outro lado, uma compreensão diferenciada e contrária dos ministros

da saúde, Mandetta e Teich, ministros estes de formação técnica em medicina que

adotam as posições e orientações da Organização Mundial da Saúde – OMS147, que

não são observadas ou respeitadas na opinião do presidente da república.

O Direito se confronta perante o dilema ético da (des) necessidade de

ponderação entre a saúde e economia, uma vez que é ele quem orienta, rege e limita

a atuação do Poder Público, bem como as relações da sociedade, e, de fato, tem sido

acessado constantemente para contribuir com o enfrentamento da crise mundial,

em solo nacional.

O confronto entre as análises técnicas e cumprimento de normas já

estabelecidas apenas aumentou a tensão da sociedade brasileira que se encontrava

assustada com o avanço da doença no Brasil e conhecedora dos estragos feitos

mundo afora, polarizada politicamente entre os que defendem e apoiam as políticas

econômicas em detrimento do combate efetivo à Pandemia.

A resistência do Poder Executivo no combate à Pandemia ficou claro na

primeira oportunidade que teve. A doença foi descoberta na China, na cidade

Wuhan e muitos estrangeiros estavam no foco do contágio inicial, que ocorreu entre

novembro e dezembro de 2019. Como medida de controle e ajuda humanitária,

muitos países imediatamente promoveram o retorno de seus nacionais. O Brasil,

contudo, em um primeiro momento afirmou que não teria como buscar seus

147
Os ministros da saúde do governo Bolsonaro recomendaram a implementação de políticas de valorização
da vida, mais especificamente o isolamento social, para evitar a proliferação do vírus bem como para dar
tempo aos outros entes federativos (Estados, Municípios e Distrito Federal) para prepararem sua base de
assistência à saúde para a quantidade expressiva de contaminados que procurariam a rede do Sistema Único
de Saúde – SUS, e também não apoiaram a adoção de um protocolo de tratamento onde os medicamentos
defendidos pelo presidente deveriam ser utilizados pelo SUS, em detrimento do pleno funcionamento da
economia.

528
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

conterrâneos, mas mudou de ideia após pressão feita internamente. Este primeiro

ato é simbólico ao demonstrar o comportamento do governo federal até os dias

atuais, ou seja, indefinição das medidas e mudanças bruscas no enfrentamento

(HENRIQUES; VASCONCELOS, 2020).

A preparação para o início da pandemia em solo nacional continuou. O

Ministério da Saúde ativou o Centro de Operações de Emergências em Saúde

Pública para o novo Coronavírus (COE-nCoV) em razão da previsão no Plano

Nacional de Resposta às Emergências em Saúde Pública e o governo federal

reativou o Grupo Executivo Interministerial de Emergência em Saúde Pública de

Importância Nacional e Internacional (GEI-ESPII), que havia sido extinto pelo

Decreto 9759/19 e foi reativado pelo Decreto 10.211/2020.

Apesar destes esforços, o Presidente da República passou a, diariamente,

minimizar a importância da vigilância sanitária necessária, bem como discordar do

isolamento social proposto pelo Ministério da Saúde148 como prática para diminuir

o contágio, logo a proliferação da doença, e equipar o Sistema Único de Saúde com

respiradores, leitos, e todos os insumos necessários para recepcionar os pacientes

(BARRETO et al., 2020; CAMPOS, 2020), comportamento este não isolado, mas

seguido por outros líderes nacionais como, Andrés Manuel López Obrador,

Presidente do México, Rosario Murillo, Vice-Presidente da Nicarágua e esposa do

Presidente Daniel Ortega, capitaneados por Donald Trump, dos Estados Unidos

148
As ações do Presidente sempre serviram para atrapalhar o combate ao vírus em território nacional, como
bem apontado: Iniciativas de governadores foram questionadas pelo presidente da República, que já havia
declarado ao longo do mês, sobre a pandemia, sucessivamente: “é uma pequena crise”, “não há motivo para
pânico”, “isso está sendo propalado pela mídia”, “outras gripes já mataram mais do que esta” e até mesmo
que “é uma fantasia”. Além do discurso, as atitudes pessoais do presidente afrontavam ostensivamente as
recomendações de distanciamento, como a presença em manifestações e locais públicos, sem uso de máscara
ou qualquer outra medida para proteção (...) (HENRIQUES; VASCONCELOS, 2020)

529
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(BURKI, 2020), bem como Alexander Lukashenko, presidente da Bielorrússia, que

recomendou aos cidadãos tomar vodca contra o vírus149.

Outro fator que demonstra o conflito entre os chefes dos poderes executivos

dos entes federativos, especialmente entre os governadores de Estado e prefeitos

municipais e o Presidente da República foi a decisão acerca da aplicação de medidas

restritivas de atividades, sobretudo fechamento de escolas, universidades, proibição

de eventos com aglomeração, como jogos, shows e festas. Ante a ausência de

orientação neste sentido, os governadores e prefeitos decidiram sozinhos por tais

medidas, e foram acusados pelo Presidente de causar pânico na população pelo

“exagero” 150
das medidas tomadas, bem como xingados 151
em variadas

oportunidades.

O ápice da crise da Pandemia no Brasil mostrou uma face muito desoladora

da nossa realidade no campo da saúde, bem como a incapacidade do Sistema Único

de Saúde em suportar uma demanda tão grande. O avanço do vírus em solo

nacional fez com que, na ausência de uma liderança federal por parte do Presidente,

os governadores e prefeitos assumissem o rumo das medidas de combate, mas

esbarraram na falta de recursos e insumos necessários para tanto.

Não havia leitos suficientes, não havia equipamentos suficientes, não havia

pessoal treinado e capacitado suficientes. Em todas as capitais havia ausência de

máscaras de proteção, álcool em gel, roupas hospitalares, medicamentos. Todos

estes insumos poderiam estar disponíveis em solo nacional ou as indústrias aqui

149
Fonte: https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-08-08/negacionismo-de-bolsonaro-diante-da-pandemia-
tem-metodo-e-pode-garantir-sua-sobrevivencia-politica.html, acesso em 10/09/2020.
150
Fonte: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/16/bolsonaro-ataca-governadores-
excesso-nao-vai-curar-problema-vai-agravar.htm, acesso em 10/09/2020.
151
Fonte: https://exame.com/brasil/bolsonaro-chama-governadores-e-prefeitos-de-projetos-de-ditadores-
nanicos/, acesso em 10/09/2020; https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/bolsonaro-ataca-
governadores-isolamento-total-e-tirania,32976128d141f8f303933d6aea6b13981cm8zzc9.html, acesso em
10/09/2020.

530
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

instaladas poderiam adaptar-se mais facilmente para poder produzir caso houvesse

uma atuação do governo federal para reorientar a economia neste sentido, com

medidas de incentivo, impulsionando inclusive a geração de emprego. Mas não foi

o que aconteceu. Iniciativas isoladas e tímidas, muito mais voltadas para um

lampejo do empreendedor para salvar seu negócio a uma medida orientada pelo

setor econômico nacional foi o ápice das iniciativas em solo nacional.

O governo federal sim, adotou medidas de combate à Pandemia

transferindo renda para a população de baixa renda, apoiando empresas com

financiamento para manter seus funcionários em tempos de crise, bem como

adquiriu insumos fora do país para ajudar os demais entes federativos, contudo, a

constante resistência do governo federal, até o momento da entrega desta pesquisa,

em fomentar um efetivo combate levando a sério os riscos da Pandemia,

atrapalharam a população, que ficou dividida pela guerra de narrativas sobre o que

era verdade e o que era mentira, que não conseguiu leitos hospitalares e morreu em

casa sem assistência médica, que não recebeu as medicações necessárias, que passou

necessidade sem poder trabalhar de maneira plena e não conseguiu receber o

auxilio financeiro de maneira rápida, que virou chacota internacional por ter como

líder um negacionista do vírus mais mortal do século XXI até então.

Ao considerarmos o ponto de vista da economia na Pandemia, houvesse o

Brasil designado esforços para uma transição formal das práticas de economia

circular, fundamentadas no pensamento orgânico da cadeia produtiva com o

reaproveitamento da matéria prima empregada em cada produto, o combate ao

vírus fosse menos traumático.

O conceito de uma economia em processo de circularidade vai muito além

do próprio produto em si, pois é necessário uma mudança no comportamento da

própria empresa que produz, dos trabalhadores envolvidos nos diversos processos

531
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(design do produto, embalagem, formas de recolhimento, treinamento de coletores,

centros de reciclagem, readequações estruturais, descarte adequado), bem como da

própria população em si, pois é necessário incorporar o consumidor para que ele

participe da cadeia de produção.

A análise conjunta de todos estes fatores demonstra uma divisão do

combate à Pandemia a depender do ente federativo que se observa. O governo

federal ao não reconhecer a letalidade do vírus desde seu início o impediu de atuar

de forma mais incisiva na proteção da população e no auxílio aos demais entes

federativos.

Nota-se que desde a primeira oportunidade e até o fechamento deste artigo

o governo federal mostra-se pequeno diante da crise, desrespeitando não apenas a

própria Constituição Federal152, naquilo que divide responsabilidade com os entes

federativos como a prevenção de doenças e o fornecimento de tratamento de saúde,

mas também tratados internacionais, comprometendo a saúde da população e

contribuindo com a morte de milhares de brasileiros.

Tais atitudes violam frontalmente os direitos humanos, a dignidade da

pessoa humana, o direito à saúde, ao desenvolvimento humano, prejudicando a

própria emancipação social, e contribui com mortes, doenças, descrédito do poder

152
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas
que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços
de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e
controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou
jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem
um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais;
III - participação da comunidade.

532
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

público, desconfiança no sistema político, diminuição da participação democrática,

crise de representação e problemas sociais para as gerações futuras.

CONCLUSÃO

O presente artigo buscou pesquisar a urgência e as dificuldades para uma

transição para um novo modelo de produção, a Economia Circular, tendo como

pano de fundo um cenário de crise de saúde pública mundial em razão da Pandemia

da covid-19.

Como apontamos no início, a necessidade de uma nova forma de produção

econômica se faz urgente em razão da degradação ambiental que vivemos ao menos

desde a revolução industrial e que passou a ser objeto de discussão mundial à partir

de meados do século passado.

Em que pese a urgência desta transição, que já é observada em outras

nações, o Brasil ainda age timidamente, sem nenhuma ação governamental neste

sentido, fugindo ao que prevê nossa constituição econômica que confere o

protagonismo das medidas econômicas à união federal.

A Pandemia do coronavírus, por outro lado, iniciada no continente asiático

e que impacta o mundo inteiro atualmente em diversas ondas de contágio (já nos

encontramos na segunda onda), afetou frontalmente as economias mundiais,

inclusive a brasileira. A necessidade de isolamento social com o consequente

fechamento de parques, shoppings, teatros, cinemas e mesmo de indústrias para

fins de diminuir a propagação do vírus diminuiu o poder aquisitivo da população

(grande parte que vive da economia informal), bem como promoveu o

encerramento de muitas empresas que não tiveram a capacidade para manterem-se

em funcionamento.

533
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Por outro lado, a confusão gerada pelo governo federal pelo fato de negar a

periculosidade da situação, e até mesmo da mortalidade do vírus, acabou por gerar

desinformação e não adoção de medidas efetivas de combate, que conduziram o

país ao segundo lugar no quadro mundial de mortes de infectados, perdendo

apenas para os Estados Unidos, que tem em seu presidente, Donald Trump, o maior

de todos os negacionistas do vírus.

Este enredo acabou por prejudicar o povo brasileiro, em todas as esferas

sociais, mas em maior parcela as classes mais pobres, que ao necessitarem de

atendimento médico pelo Sistema Único de Saúde, se depararam com uma situação

caótica onde tudo faltou: médicos, equipamentos de proteção individual,

medicamentos, insumos, leitos, dignidade, respeitos aos direitos adquiridos,

respeito aos direitos fundamentais, respeito à constituição federal, respeito aos

tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil.

Até mesmo no ponto de vista econômico não houve alento à população

brasileira. A ausência de medidas concretas para diminuir as perdas econômicas

não foram suficientes. A aquisição de materiais de combate à Pandemia não fora

suficiente. Toda atuação governamental está sendo pífia e ineficaz, pois conduziu o

país a um embate desnecessário entre integrantes dos governos dos entes

federativos ao invés de uni-los em um esforço comum.

É possível neste momento voltarmos à hipótese levantada no início deste

trabalho. A hipótese que motivou os pesquisadores foi que as ações governamentais

de combate à covid-19 poderiam transgredir os direitos humanos e atrapalhar a

transição para a economia circular.

Diante de tudo o que foi exposto é possível confirmarmos esta hipótese. Fica

patente a transgressão aos direitos humanos no exato momento em que se observa

a tragédia causada pela Pandemia em território nacional. São, neste exato momento,

534
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

140.000 (cento e quarenta mil) mortos em decorrência do vírus. Milhares de

familiares que perderam entes queridos de maneira precoce e de forma humilhante

ante à precariedade da saúde fornecida pelo país.

Além destes, outros milhões de pessoas estão vivendo em situações

degradantes, pois perderam empregos e renda e passarão por mais momentos de

dificuldades, pois como exposto, as políticas neoliberais por parte do setor

econômico buscam muito mais proteger empresas e industrias a atender aos direitos

econômicos, sociais e culturais, que permitiriam voltar as atenções para a

viabilização de trabalhos mais dignos, que atenderiam às necessidades pessoais das

famílias, de higiene, segurança, com respeito ainda aos recursos naturais do país.

É fato também que a convulsão política, social e econômica decorrente do

impacto da atuação do governo em tempos de pandemia afastam qualquer

iniciativa para uma transição para um novo modelo econômico. Desta forma, mais

distante estamos de um protagonismo governamental na adoção de políticas

públicas e regulamentatórias de adoção de técnicas e medidas de economia circular.

Isso fica mais claro quando compreendemos que a economia circular exige

uma adequada articulação de políticas públicas por parte do Estado, seja para

preservar o meio ambiente sustentável, de forma a impactar positivamente a saúde

da população, seja para promover um desenvolvimento econômico que garanta

uma subsistência com dignidade.

Assim, quando temos um claro desrespeito aos direitos fundamentais,

direitos civis e políticos, mas também os econômicos sociais e culturais, que não

podem ser separados, observamos um comportamento da Governança nacional que

impede a aplicação do modelo de economia circular, ao ferir a preservação do meio

ambiente ao favorecer formas de produção poluidoras, como a mineração em terras

535
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

indígenas, autorização de mais agrotóxicos na produção, enfraquecimento do

combate às queimadas, atrapalhando o caminho para um novo modelo econômico.

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537
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A FLEXIBILIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS DOS

TRABALHADORES DIANTE DA PANDEMIA DA COVID-19

Alex Faverzani da Luz153


Ariane Faverzani da Luz154
Luis Ângelo Dallacort155

RESUMO
A pesquisa revela o retrocesso dos direitos sociais dos trabalhadores durante a pandemia
da Covid-19. Dessa forma, objetiva realizar uma concisa análise dos direitos da classe
operária sob a perspectiva da Covid-19. Apresenta como problemática verificar de que
forma o estado brasileiro está atuando a fim de evitar e/ou minorar os prejuízos na
economia durante a crise ocasionada pelo coronavírus. Parte do pressuposto de que a
previsão constitucional que delimita os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, prevista
no artigo 7º da Constituição Federal do Brasil de 1988, bem como as garantias expressas na
Consolidação das Leis do Trabalho não são observadas. Assim, utilizando-se do escopo
teórico-bibliográfico e do método hipotético-dedutivo, serão apresentadas breves
considerações sobre os avanços e os retrocessos dos direitos sociais trabalhistas e algumas
das implicações da Covid-19 no direito do trabalho. Os resultados obtidos indicaram que a
pandemia acentuou a vulnerabilidade do proletariado, pois o Estado buscou beneficiar os
empregadores. Assim, não se deve utilizar do atual cenário para justificar a violação de
direitos tampouco se valer do viés democrático-constitucional para impor retrocessos.

Palavras-chave: Classe Trabalhadora; Covid-19; Direitos Sociais; Retrocesso.

153
Doutor em História das Sociedades Ibéricas e Americanas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC-RS) com auxílio CNPq. Mestre em Direito pela Universidade de Lisboa (UL). Mestre em
História pela Universidade de Passo Fundo (UPF) com auxílio CAPES. Especialista em História do Direito e do
Pensamento Político pela Universidade de Lisboa (UL). Licenciado em História pelo Centro Universitário
Leonardo da Vinci. Graduado em Direito pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professor do Instituto
Federal de Mato Grosso - IFMT. E-mail: alexfaverzani@hotmail.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5100841403053828.
154
Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo (UPF) com auxílio CAPES. Especialista em Direito
Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP-RS). Especialista em
Ciências Criminais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP-RS).
Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Meridional (IMED). Graduada em Direito pela
Faculdade Meridional (IMED). Advogada. E-mail: arianefaverzani@outlook.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4134556466550459.
155
Mestrando em Direito pela Universidade de Passo Fundo (UPF) com auxílio CAPES. Pós-graduado em Direito
do Trabalho pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Graduado em Direito pela Universidade de Passo
Fundo (UPF). Advogado. E-mail: luisdallacort92@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7568831264711870.

538
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
The survey reveals the regression of workers' social rights during the Covid-19 pandemic.
Thus, it aims to carry out a concise analysis of the rights of the working class from the
perspective of Covid-19. It is problematic to verify how the Brazilian state is acting in order
to avoid and/or mitigate the losses in the economy during the crisis caused by the
coronavirus. It starts from the assumption that the constitutional provision that delimits the
rights of urban and rural workers, provided for in article 7 of the Federal Constitution of
Brazil of 1988, as well as the guarantees expressed in the Consolidation of Labor Laws are
not observed. Thus, using the theoretical-bibliographic scope and the hypothetical-
deductive method, brief considerations about the advances and setbacks of social labor
rights and some of Covid-19's implications for labor law will be presented. The results
obtained indicated that the pandemic increased the vulnerability of the proletariat, as the
State sought to benefit employers. Thus, the current scenario should not be used to justify
the violation of rights, nor should it use the democratic-constitutional bias to impose
setbacks.

Keywords: Working Class; Covid-19; Social rights; Backspace.

INTRODUÇÃO

A pandemia ocasionada pela Covid-19 impactou de forma severa no âmbito

da saúde pública, ao mesmo tempo que gerou reflexos no contexto econômico,

especialmente nos direitos dos trabalhadores. Dessa forma, com o intuito de

assegurar a manutenção das relações empregatícias, procedeu-se na flexibilização

de direitos sociais dos trabalhadores por meio do estabelecimento de medidas

complementares pelo Estado.

Nesse sentido, verifica-se premente analisar a possibilidade de ocorrer um

retrocesso nos direitos conquistados pela classe trabalhadora devido às ações

implementadas pelas autoridades na atual crise pandêmica. Ressalta-se que o

trabalho, além de promover a sobrevivência dos indivíduos, possibilita o

desenvolvimento e a realização pessoal, bem como a efetivação do princípio da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

dignidade da pessoa humana, sendo dever do Estado, portanto, assegurar a sua

proteção.

Assim, utilizando-se do escopo teórico-bibliográfico e do método hipotético-

dedutivo, será realizada uma concisa exposição sobre os avanços e os retrocessos

dos direitos da classe operária. Em seguida, pretende-se abordar as implicações da

Covid-19 no âmbito trabalhista, assim como as providências adotadas pelo Estado,

considerando as Medidas Provisórias nº 927/2020, a qual teve a sua vigência

encerrada, e 936/2020, convertida na Lei nº 14.020/2020, que regulamentaram as

relações trabalhistas na pandemia.

1. AVANÇOS E RETROCESSOS NOS DIREITOS DOS TRABALHADORES

BRASILEIROS

O trabalho faz parte da estrutura social, sendo dele que sao providos os

recursos dos quais milhares de pessoas auferem seu sustento e de suas famílias. As

formas de trabalho passaram por intensas transformações ao longo dos anos. Em

sociedades antigas, como em Roma, na Grécia e no Egito, a escravidão era a

principal forma de trabalho. Todavia, com o passar do tempo, essa forma de

trabalho, preponderantemente escrava, entrou em declínio, surgindo novas

ocupações, como, por exemplo, as servidões.

Outra forma de trabalho que foi desenvolvida foram as corporações de oficio.

As corporações de ofício atingiram seu apogeu no século XIII e decaíram a partir do

século XV, sendo que no século XIV o declínio já havia iniciado (BARROS, 1997. p.

49).

Em decorrência da Revolução Francesa, ocorrida no ano de 1789, as

corporações de ofício foram perdendo espaço. Dessa maneira, surgiu uma nova

540
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mentalidade, a qual tinha como fundamento o ideal de liberdade do homem e do

comercio, repelindo-se a existência de corpos intermediários entre indivíduo e

Estado (MARTINS, 2005, p. 49).

Com a Revolução Industrial, que acontecia na Inglaterra, a organização do

trabalho, que era estável, paulatinamente, passou por modificações. Os empresários

aderiram à ideia capitalista e começaram a construir fábricas, onde utilizavam da

mão de obra barata de trabalhadores vindos do campo em troca de pagamentos

irrisórios e de condições de trabalho praticamente sem regulamentação alguma

(HONNET, 2015).

Diante das condições precárias de trabalho, muitas vezes, os trabalhadores

não tiveram seus direitos respeitados, sendo necessário a elaboração de diretrizes

de ordem econômica e social que estabeleciam o valor do trabalho, o qual deve ter

uma ordem privilegiada em relação ao capital. Para tanto, surgiram várias normas

de caráter legislativo preocupadas em garantir direitos mínimos à classe

trabalhadora, impondo limites à exploração da força de trabalho (CAMINO, 2003).

No Brasil, quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, buscou-

se garantir determinados direitos aos trabalhadores. Assim, é clara a preocupação

do constituinte na proteção do trabalhador, salvaguardando o operário das

investidas do empresário.

Contudo, mesmo diante do avanço da legislação e da incessante busca dos

trabalhadores em ter suas garantias e prerrogativas especiais preservadas, a

precarização do trabalho e a exploração de mão de obra ainda são uma realidade

que expõem milhares de trabalhadores a situações vexatórias e humilhantes.

O século XX foi marcado pela conquista de vários direitos inerentes ao

homem, como o direito à liberdade de opinião, à reunião, à propriedade, à

dignidade da pessoa humana, entre tantos outros. Também, foi nesse lapso

541
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

temporal que muitos dos direitos da classe trabalhadora foram conquistados, bem

como garantidos em inúmeros textos constitucionais e ordenamentos jurídicos.

Ainda que no decorrer do século XX tenham acontecido importantes avanços

nos direitos da classe operária, a qual por meio de reivindicações e de movimentos

conseguiu alcançar garantias que lhe eram negadas, atualmente, vivencia-se uma

flexibilização desses direitos. Tal situação é gerada pelo sistema capitalista global,

que não se preocupa com o bem-estar social da população, mas, sim, com a

majoração dos lucros, o que causa a precarização das condições de trabalho

(PORTO, 2016, p. 20).

Esse retrocesso dos direitos trabalhistas está diretamente relacionado com as

novas políticas econômicas das décadas de 60 (sessenta) e 70 (setenta) e com a queda

do Estado social, que ocasionou a ruptura entre o Estado e o capital. Em decorrência

disso, surgem as políticas neoliberais, que restringem o Estado ao papel de

estimulador de competitividade, deixando para as empresas a concretização de

investimentos para a retomada econômica (PORTO, 2016, p. 20).

Diante dessa redução do Estado, grandes empresas forçam a relativização

das legislações trabalhistas, argumentando que para que aconteça um

desenvolvimento econômico acelerado se faz necessário retirar e/ou restringir

direitos da classe mais vulnerável. Nesse contexto, com a ascensão do Liberalismo,

grandes grupos econômicos passam a se beneficiar dessas condutas negativas do

Estado, estabelecendo diretrizes empresarias que afrontam a dignidade do

trabalhador como ser humano.

A partir do descaso estatal, a classe operária se vê exposta a inúmeras

violações de seus direitos, as quais se agravam ainda mais no período da pandemia

causada pelo novo coronavírus. De acordo com Santos (2020), os trabalhadores de

todo o mundo enfrentam há mais de quarenta anos ataques aos seus direitos, os

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

quais submetem os operários, ainda que de forma diferente em cada país, a uma

dominação global, pautada na exploração.

Ao longo dos últimos quarenta anos, foi dada uma prioridade maior ao

mercado, deixando de lado o Estado e a comunidade. Por meio de inúmeras

privatizações nos mais diversos setores, como na saúde, na educação, e em outros

serviços sociais fundamentais, o Estado e a comunidade passaram a ser geridos pelo

mercado e por critérios de rentabilidade, que impossibilitaram as nações de

responder às emergências oriunadas da pandemia de forma adequada (SANTOS,

2020).

No Brasil, diante da crise econômica e sanitária da Covid-19, optou-se pela

restrição de direitos aos trabalhadores, os quais já haviam sido relativizados na

reforma trabalhista de 2017, sob o argumento de manter os postos de trabalho

existentes e de promover a criação de novos empregos, o que possibilitaria,

teóricamente, uma expansão do mercado, que não ocorreu. No mesmo sentido, o

governo brasileiro, em decorrência do seu despreparo para enfrentar o vírus, optou

por flexibilizar direitos trabalhistas ao invés de priorizar políticas públicas que

pudessem preservar os empresarios e os postos de trabalho.

2. AS IMPLICAÇÕES DA COVID-19 NO DIREITO DO TRBALHO

No ano de 2020, a humanidade foi surpreendida por uma crise mundial

causada pela Covid-19 que levou a Organização Mundial da Saúde a reconhecer,

em 11 de março de 2020, uma pandemia. Tal crise possui múltiplas faces, já que

impacta na esfera social, humanitária, sanitária, científica, política, cultural e

econômica dos países, surgindo, assim, a necessidade de que o poder público

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

imponha medidas de contenção da disseminação do vírus (SOUZA JÚNIOR;

GASPAR; COELHO; MIZIARA, 2020).

Ressalta-se, porém, que as medidas de contenção estabelecidas ocasionam

reflexos consideráveis no âmbito do trabalho, cabendo à seara jurídica,

especialmente ao direito do trabalho, apresentar alternativas para que o atual

cenário seja superado com o mínimo prejuízo possível aos empregadores e aos

trabalhadores. Desse modo, busca-se agilidade na tomada de decisões a fim de

evitar que a pandemia implique em uma crise econômica.

Embora as medidas sejam criadas com a intenção de preservar a economia e

de favorecer tanto patrões quanto funcionários, repercutem negativamente sobre o

proletariado, uma vez que receiam perder os seus postos de trabalho ou que estes

sejam precarizados (SOUZA JÚNIOR; GASPAR; COELHO; MIZIARA, 2020). Nesse

sentido, surge “[...] um clima de angústia onde os trabalhadores se dividem entre o

pavor daquilo que o outro possa carregar, o medo do presente profissional e o

drama da incerteza do futuro enquanto ser humano e enquanto ser que dedica sua

energia a outrem” (SOUZA JÚNIOR; GASPAR; COELHO; MIZIARA, 2020, p. 9).

Diante disso, com a justificativa de manter os empregos e de minorar os

efeitos da pandemia aos empregadores e à classe trabalhadora, foram publicadas as

Medidas Provisórias nº 927/2020 (BRASIL, 2020) e 936/2020 (BRASIL, 2020). Tais

medidas contemporâneas visam atender as demandas decorrentes da pandemia,

tendo em vista que não havia deliberações anteriores em relação a situações de

emergência.

A Medida Provisória nº 927/2020 (BRASIL, 2020) dispõe sobre as ações que

poderão ser adotadas pelos empregadores para a preservação do emprego e da

renda. Dentre essas providências, destacam-se a permissão para a realização do

teletrabalho, a antecipação de férias individuais, a concessão de férias coletivas, o

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

aproveitamento e a antecipação de feriados, a adoção do banco de horas, a

suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho e o

diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.

Durante a crise ocasionada pela Covid-19, permite-se que o empregador

altere o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, para o trabalho remoto

ou para outra espécie de trabalho à distância, bem como que determine o momento

do retorno às atividades laborais presenciais, não havendo a necessidade de acordos

individuais ou coletivos ou o registro prévio da alteração no contrato individual de

trabalho (BRASIL, 2020). Denota-se que tal deliberação se afasta do previsto no art.

75-C, caput e § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (BRASIL, 2017), o

qual prevê que a alteração do regime presencial de trabalho para o trabalho à

distância deverá constar expressamente no contrato individual de trabalho, assim

como é preciso mútuo acordo entre as partes.

Salienta-se que o trabalho remoto – também denominado de trabalho à

distância – é um gênero que abrange o tradicional trabalho em domicilio, o novo

trabalho em domicílio (home-office) e o teletrabalho, não sendo estes, portanto,

sinônimos. O primeiro trata das atividades exercidas há anos na sociedade,

contemplando vários segmentos profissionais, como as costureiras, as doceiras, os

sapateiros, dentre outros. Já o novo trabalho em domicílio está diretamente

relacionado com a utilização de meios de comunicação e de equipamentos de

informática no exercício das atividades (SOUZA JÚNIOR; GASPAR; COELHO;

MIZIARA, 2020, p. 60). Por fim, o teletrabalho, conforme o art. 75-B da Consolidação

das Leis do Trabalho (BRASIL, 2017), consiste na “prestação de serviços

preponderantemente fora das dependências do empregador, com utilização de

tecnologias de informação e comunicação que, por sua natureza, não se constituam

como trabalho externo”.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Em outras palavras, o gênero trabalho remoto se refere a todas as atividades

laborais prestadas pelo empregado em outro local que não seja o seu ambiente de

trabalho, como em sua residência, em um bar ou até mesmo em outro país. Em

relação às suas espécies, o trabalho em domicílio tradicional é aquele realizado

especificamente no âmbito residencial do empregado; o home-office também é

praticado no domicílio do empregado, mas se faz necessário o uso de tecnologias;

e, o teletrabalho é aquele exercido em qualquer local que não seja o ambiente de

trabalho nem a residência do funcionário, além de ser imprescindível a utilização

de tecnologias de informação e de comunicação.

Quanto ao retorno às atividades presenciais, o parágrafo 2º do artigo 4º da

Medida Provisória 927/2020 (BRASIL, 2020) estabelece que o empregado será

notificado com antecedência mínima de quarenta e oito horas por escrito ou por

meio eletrônico. Tal dispositivo contraria o parágrafo 2º do artigo 75-C da

Consolidação das Leis do Trabalho (BRASIL, 2017), uma vez que este determina o

prazo de quinze dias para que ocorra a transição do trabalho remoto para o

presencial.

Sobre o fornecimento dos equipamentos tecnológicos aos funcionários, os

quais são essenciais para o exercício das atividades empregatícias na modalidade

de trabalho remoto, a Medida Provisória 927/2020 (BRASIL, 2020) não trouxe

grandes modificações em relação à Consolidação das Leis do Trabalho. Dessa

forma, apenas possibilita que o contrato que regule essa situação seja elaborado até

trinta dias contados a partir da data da alteração do regime de trabalho, não sendo

primordial que seja redigido previamente conforme prevê a CLT.

Ainda, destaca-se que a adoção do regime de trabalho remoto também é

permitida aos estagiários e aos aprendizes. Constata-se, assim, uma preocupação

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

em manter os jovens nas equipes de trabalho, pois é essencial que permaneçam se

aperfeiçoando e desenvolvendo as suas aptidões profissionais.

Sobre a antecipação de férias individuais, esta poderá ser informada pelo

empregador ao emprego com antecedência mínima de quarenta e oito horas por

escrito ou por meio eletrônico, devendo constar o período a ser gozado pelo

funcionário. Verifica-se uma redução do prazo do aviso prévio em relação ao

previsto na Consolidação das Leis do Trabalho (2017), que determina, em seu artigo

135, caput, a comunicação prévia de, no mínimo, trinta dias.

Além disso, o empregador poderá conceder as férias mesmo que o período

aquisitivo ainda não tenha transcorrido. De acordo com o artigo 129 e 134, caput da

CLT (2017), o empregado adquire o período de férias a cada doze meses de trabalho,

devendo o empregador concedê-las nos doze meses subsequentes. Por último, as

férias não poderão ser gozadas em períodos inferiores a cinco dias corridos

(BRASIL, 2020), o que se assemelha ao disposto na CLT.

Importa destacar que os trabalhadores pertencentes ao grupo de risco da

Covid-19 terão prioridade na antecipação de férias, sejam elas individuais ou

coletivas (BRASIL 2020). Nas palavras de Souza Júnior, Gaspar, Coelho e Miziara

(2020, p. 69), “trata-se de uma medida que, a um só tempo, viabiliza o isolamento

social previsto na Lei nº 13.979/2020, assegura, ao menos durante o período das

férias, a preservação da relação de emprego e garante ao empregador uma melhor

organização da sua atividade produtiva”.

Também, revela-se possível conceder férias coletivas aos trabalhadores,

desde que sejam notificados pelo empregador com antecedência mínima de

quarenta e oito horas. Evidencia-se que alguns requisitos previstos no artigo 139,

parágrafo 1º, da CLT (2017) são relativizados, sendo permitido ao empregador

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

conceder mais de dois períodos anuais de férias coletivas e não observar o limite

mínimo de dez dias corridos.

Outra medida estabelecida durante o estado de calamidade pública é o

aproveitamento e a antecipação de feriados. Nesse sentido, o artigo 13 da Medida

Provisória nº 927/2020 (BRASIL, 2020) determina que os empregadores poderão

antecipar o gozo de feriados não religiosos federais, estaduais, distritais e

municipais. Para tanto, deverão notificar os seus empregados com antecedência

mínima de quarenta e oito horas por escrito ou por meio eletrônico, indicando

expressamente quais serão os feriados aproveitados.

Ressalta-se que o aproveitamento de feriados religiosos somente poderá

ocorrer com a anuência do empregado, a qual deverá constar em acordo individual

escrito. Ainda, os feriados antecipados poderão ser utilizados para compensação do

saldo em banco de horas (BRASIL, 2020).

O artigo 14 da Medida Provisória nº 927/2020 (BRASIL, 2020) cria nova regra

relacionada ao banco de horas, uma vez que permite a compensação no prazo de

dezoito meses, contrariando o que dispõe o artigo 59, parágrafo 5º, da CLT (2017)

que prevê que a compensação seja realizada em até seis meses. Nessa perspectiva,

tal disposição demonstra o interesse do legislador em causar o menor dano aos

empregadores e aos empregados:

Consiste tal norma em outra regra totalmente compatível com as


necessidades emergenciais decorrentes da pandemia, oferecendo
instrumentos para que, de um lado, os trabalhadores preservem
seus empregos e salários intactos e, de outro, os empregadores
possam, em períodos de bonança econômica, recuperar esse tempo
perdido em forma de reposição das horas lançadas no banco
(SOUZA JÚNIOR; GASPAR; COELHO; MIZIARA, 2020, p. 84).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no

trabalho, prevista no artigo 15 da Medida Provisória nº 927/2020 (BRASIL, 2020),

busca interromper a obrigatoriedade de realização de exames médicos

ocupacionais, clínicos e complementares, exceto de exames demissionais. Os

exames apenas poderão ser retomados após o encerramento do estado de

calamidade pública, devendo ser realizados no prazo de sessenta dias. Porém, caso

se entenda que a prorrogação pode ocasionar riscos à saúde do funcionário, o

médico responsável comunicará o empregador da necessidade de sua execução.

Destaca-se que existe a alternativa de o exame demissional ser dispensado se

o exame médico ocupacional mais recente tenha sido feito em menos de cento e

oitenta dias. Tal norma se apresenta preocupante, pois flexibiliza regras de saúde e

de segurança no ambiente de trabalho em um momento que se faz necessário maior

proteção aos indivíduos:

Seja como for, parece necessário realçar que, nesse cenário


normativo, afrouxar exigências em matéria de saúde e segurança do
trabalhador por medida provisória deixa os empregados mais
vulneráveis à ocorrência de acidentes e, principalmente, de doenças
ocupacionais ou profissionais, justamente num momento em que a
saúde da comunidade como um todo está em risco, a exigir
redobrados cuidados dentro e fora dos locais de trabalho (SOUZA
JÚNIOR; GASPAR; COELHO; MIZIARA, 2020, p. 87).

Ademais, suspende-se a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos

empregadores relativo aos meses de março, abril e maio de 2020, com vencimento

em abril, maio e junho de 2020, respectivamente (BRASIL, 2020). Frisa-se que “a

moratória legal contempla todos empregadores, indistintamente, e dispensa

qualquer formalidade ou solicitação” (SOUZA JÚNIOR; GASPAR; COELHO;

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

MIZIARA, 2020, p. 97). Ainda, o pagamento poderá ser feito parcelado em até seis

meses, sem correção monetária, juros ou multa.

Por fim, “[...] é importante ressaltar que as normas não poderão ser

livremente invocadas em qualquer conduta patronal adotada durante o período de

calamidade pública ditada pela Covid-19” (SOUZA JÚNIOR; GASPAR; COELHO;

MIZIARA, 2020, p. 58). As flexibilizações supramencionadas deverão “[...] ter por

propósito, sindicável e controlável tanto administrativa quanto judicialmente, o

enfrentamento da crise causada pelo coronavírus e a finalidade de preservação dos

empregos e da renda dos trabalhadores” (SOUZA JÚNIOR; GASPAR; COELHO;

MIZIARA, 2020, p. 58).

Atualmente, a Medida Provisória nº 927/2020 teve a sua vigência encerrada

no dia 19 de julho de 2020. Diante disso, os empregadores perdem a possibilidade

de flexibilizar as normas trabalhistas abrangidas por ela. No entanto, ressalta-se que

as medidas adotadas durante a sua vigência são válidas, assim como os seus efeitos

(GAMEIRO, 2020).

A Medida Provisória nº 936/2020 (BRASIL, 2020) instituiu o Programa

Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispôs sobre medidas

trabalhistas complementares. Tal programa possui como finalidade preservar o

emprego e a renda, garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais,

bem como reduzir o impacto social decorrente das consequências do estado de

calamidade pública. Nesse contexto, as medidas trazidas pelo referido Programa

abrangem o pagamento de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da

Renda, a redução proporcional da jornada de trabalho e de salários e a suspensão

temporária do contrato de trabalho.

O Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda será pago

pela União quando ocorrer a redução proporcional de jornada de trabalho e de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

salário e a suspensão temporária do contrato de trabalho. O empregador será

responsável por comunicar o Ministério da Economia sobre tais situação no prazo

de dez dias, contado da data da celebração do acordo (BRASIL, 2020). Ressalta-se

que, segundo o artigo 6º, § 2º, I e II, da Medida Provisória nº 936/2020 (BRASIL,

2020), o benefício não será pago aos seguintes empregados:

§ 2º O Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da


Renda não será devido ao empregado que esteja:
I - ocupando cargo ou emprego público, cargo em comissão de livre
nomeação e exoneração ou titular de mandato eletivo; ou
II - em gozo:
a) de benefício de prestação continuada do Regime Geral de
Previdência Social ou dos Regimes Próprios de Previdência Social,
ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 124 da Lei nº 8.213,
de 24 de julho de 1991;
b) do seguro-desemprego, em qualquer de suas modalidades; e
c) da bolsa de qualificação profissional de que trata o art. 2º-A da
Lei n° 7.998, de 1990.

Quanto à redução proporcional da jornada de trabalho e de salário, estas

poderão perdurar por até noventa dias, desde que acordadas entre empregador e

empregado por acordo individual escrito, e poderá ocorrer nos percentuais de 25%,

50% e 70%. O restabelecimento da jornada de salário e do salário pago ocorrerá em

dois dias corridos a partir do encerramento do estado de calamidade pública, da

data estabelecida no acordo feito entre empregador e empregado ou da decisão do

empregador de antecipar o fim do período de redução (BRASIL, 2020).

Por fim, a suspensão temporária do contrato de trabalho poderá ser

estabelecida pelo prazo máximo de sessenta dias, tendo a possibilidade de ser

fracionada em até dois períodos de trinta dias. Da mesma maneira, tal suspensão

somente será realizada mediante acordo individual escrito entre empregador e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

funcionário, o qual deverá ser comunicado com antecedência mínima de dois dias

corridos (BRASIL, 2020).

Salienta-se que, durante o período de suspensão, o trabalhador terá direito a

todos os benefícios concedidos pelo empregador e ficará autorizado a recolher para

o Regime Geral de Previdência Social na qualidade de segurado facultativo. A

interrupção da suspensão temporária ocorrerá no encerramento do estado de

calamidade pública, da data estabelecida no acordo feito entre empregador e

empregado ou da decisão do empregador de antecipar o fim do período de redução

(BRASIL, 2020).

A Medida Provisória nº 936/2020 (BRASIL, 2020) foi convertida na Lei nº

14.020/2020 no dia 6 de julho de 2020, trazendo novas deliberações em relação à

redução da jornada de trabalho, horas, salários e suspensão do contrato. A título de

exemplo, cita-se a situação das trabalhadoras gestantes e a possibilidade de

prorrogação por ato do Poder Executivo dos prazos para redução da jornada de

trabalho e de salário e para a suspensão temporária do contrato (BRASIL, 2020).

Verifica-se que houve a premente necessidade de mitigar alguns direitos

trabalhistas a fim de manter empresas funcionando e de preservar postos de

trabalho, como na determinação do teletrabalho, da concessão de férias individuais

ou coletivas e da antecipação de feriados. Contudo, as medidas estabelecidas não

contemplam “[...] nenhuma subvenção oficial ou mecanismo compensatório que

gere a sensação de que a preocupação genuína do Poder Executivo é com todos os

atores do mundo do trabalho – e não apenas com um de seus fundamentais

segmentos” (SOUZA JÚNIOR; GASPAR; COELHO; MIZIARA, 2020, p. 9-10). Além

disso, não se vislumbra uma preocupação posterior com o empobrecimento

populacional decorrentes da redução de direitos, o que demonstra que o foco

principal é a preservação da economia.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os direitos sociais dos trabalhadores foram conquistados por meio de

manifestações e da atuação de grupos organizados, não parecendo a sua

flexibilização ser o melhor caminho a seguir. Embora seja imprescindível o

estabelecimento de medidas excepcionais pelo Estado com o intuito de evitar e/ou

minorar os efeitos da pandemia no contexto econômico, não se deve utilizar do atual

cenário para justificar a violação de direitos tampouco se valer do viés democrático-

constitucional para impor retrocessos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia de Covid-19 exigiu a definição de medidas de contenção com o

intuito de impedir a sua propagação. Entretanto, tais medidas impactaram no

âmbito econômico, sobretudo nos direitos da classe trabalhadora, o que requereu a

atuação do Estado na delimitação de providências.

Desse modo, as ações adotadas pelo Estado em relação aos trabalhadores

constam nas Medidas Provisórias nº 927/2020 – que teve a sua vigência encerrada -

e 936/2020 - atualmente, convertida na Lei nº 14.020/2020 - as quais, ao mesmo

tempo que, teoricamente, visam a proteção do emprego e da renda, revelam o

desinteresse governamental na manutenção de importantes direitos sociais. A título

de exemplo, destaca-se a possibilidade de antecipação de férias, o diferimento do

recolhimento do FGTS, a redução proporcional da jornada de trabalho e de salários

e a suspensão temporária do contrato de trabalho.

Em vista disso, constata-se que o Estado possui o dever não apenas de

assegurar o desenvolvimento econômico e melhores condições para os

empregadores, mas também de proteger os interesses dos trabalhadores,

garantindo as condições adequadas para o exercício de sua atividade laboral, o que

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

não ocorre por meio da flexibilização de direitos. Logo, valer-se do atual cenário

pandêmico para permitir retrocessos na esfera trabalhista estimula a naturalização

do desequilíbrio nas relações de emprego, bem como a fictícia permissão para

incidir na violação de direitos dos grupos vulneráveis.

REFERÊNCIAS

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Acesso em: 5 set. 2020.

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medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública
reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do
coronavírus (covid-19), e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm.
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BRASIL. Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020. Institui o Programa


Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas
trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública
reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do
coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dá
outras providências. Disponível em:
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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

HEROÍSMO DO PROFISSIONAL DA SAÚDE COMO FORMA DE

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO

Maria Carolina Rodrigues Freitas156


Elaine Mary Rossi de Oliveira157

RESUMO
Este trabalho tem por objetivo realizar uma crítica à atribuição do status de heróis aos
profissionais da saúde na medida em que tal qualificação promove um processo de
naturalização da violência sofrida por eles e alienação de suas próprias identidades como
trabalhadores, contribuindo para precarização de seu trabalho. Essa qualificação legitima a
aceitação de condições inadequadas de trabalho e a viola direitos trabalhistas e
fundamentais destes profissionais. Embora o objeto deste trabalho esteja inserido na
temática das relações trabalhistas, transbordaremos o modo como o problema se constitui
pela dogmática e nos utilizaremos de uma abordagem sócio filosófica e psicológica sobre o
tema. O texto foi construído em três partes: uma avaliação das condições gerais de trabalho
destes profissionais, o incremento da precarização durante a pandemia e, por fim, o
sofrimento e formas de defesa destes trabalhadores. Nossas conclusões sobre o tema são
ainda provisórias, posto que o fenômeno ainda se descortina diante de nós, mas nossa
crítica é contundente e denuncia a violência que estes profissionais são submetidos pele
estigma de heróis.

Palavras Chave: Direitos Fundamentais; Trabalho; Precarização; Profissionais Da Saúde;


Pandemia; Dignidade

ABSTRACT
This paper aims to criticize the attribution of the hero's status to health professionals as this
qualification promotes a process of naturalization of the violence suffered by them and
alienation of their own identities as workers, contributing to the precariousness of their
work. This qualification legitimizes the acceptance of inadequate working conditions and
the violation of the fundamental and labor rights of these professionals. Although the object
of this work is inserted in the theme of labor relations, we will overflow the way the
problem is constituted by dogmatics and we will use a socio-philosophical and
psychological approach on the subject. The text was constructed in three parts: an

156
Bacharel em História (UFRJ) Bacharel, Mestre e Doutorada em Direito (UNESA-RJ), pesquisadora do
NEDCPD e INCT InEAC, bolsista PROSUP CAPES, carolinarfreitas@gmail.com,
http://lattes.cnpq.br/6072376918939497
157
Bacharel em Direito (UFG), Mestre e Doutoranda em Direito (UNESA-RJ), elainerossi@hotmail.com,
http://lattes.cnpq.br/0586880834647917

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assessment of the general working conditions of these professionals, the increase in


insecurity during the pandemic, and, at last, the suffering and forms of defense of these
workers. Our conclusions on the subject are still provisional since the phenomenon is still
spread out before us, but our blunt criticism denounces the violence that these professionals
are subjected to by the stigma of heroes.

Key-Words: Fundamental rights; Job; Precariousness; Health professionals; Pandemic;


Dignity

INTRODUÇÃO

Em tempos de pandemia vemos aflorar no nosso cotidiano uma série de

manifestações sociais e institucionais qualificando os profissionais da saúde como

heróis. Infelizmente a nobre qualificação provoca duas consequências nefastas a

estes profissionais: a aceitação de condições precárias de trabalho e a imposição de

um papel que viola a dignidade da pessoa humana.

O presente trabalho pretende descortinar essa realidade através da análise de

relatórios elaborados pelos Conselhos Federais e Regionais de Medicina e

Enfermagem e julgados dos Tribunais que atenderam demandas destes

profissionais no período da pandemia de modo a comprovar a hipótese de

precarização do trabalho e sua construção.

De outra via analisaremos de que modo o discurso de qualificação destes

profissionais como heróis promove um processo de naturalização da violência

sofrida por eles e alienação de suas próprias identidades como trabalhadores, por

meio de um “reconhecimento cruel”, que pactua com a negligência por completo

com as condições mínimas de segurança no trabalho, violando direitos e garantias

fundamentais.

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1. QUADRO INICIAL DA PANDEMIA: O SISTEMA DE SAÚDE E SUAS

ENFERMIDADES

A precariedade do sistema de saúde no Brasil já vinha há muito sendo noticiada

e sentida diuturnamente pela sociedade, padecendo os que dependem

exclusivamente do SUS (sistema universal assegurado pela Constituição Federal de

1988), com as péssimas condições de atendimento pelos hospitais de todo o país,

incluindo falta de leitos, de medicamentos, de materiais hospitalares e insuficiência

de corpo técnico. A pandemia colocou um holofote nessa situação. Se a rede

hospitalar não estava preparada para o atendimento em condições normais, o que

se esperar diante da emergência sanitária vivida em ordem mundial?

A precariedade do sistema de saúde, consequentemente, causa a precariedade

das condições de trabalho dos profissionais da área, já afetados pela fragilidade do

universo do trabalho. Abundam denúncias sobre as precárias condições de trabalho

destes profissionais. Durante a pandemia não poderia se esperar quadro diverso.

O COFEN158, os CRMs159 e o CFM160 noticiavam, desde o início, pauperização

das condições de trabalho ocasionado pela pandemia, situação que arrebata para o

trabalho inclusive os profissionais de grupo de risco.

O MPT 161
instaurou vários inquéritos civis baseados em relatórios dos

Conselhos Regionais de Medicina e Conselhos Regionais de Enfermagem para

apurar inadequação e insuficiência de EPI’s (equipamentos de proteção); falta de

158
Disponível em: <http://www.cofen.gov.br/por-que-hospitais-do-rj-tem-mais-mortes-de-enfermeiros-no-
pais-2_79895.html>. Acesso em 01 de jun. 2020.
159
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ), Cremerj em revista, Maio, 2020.
Por ofício, CREMERJ pede EPIs ao Ministério da Saúde.
160
Conselho Federal de Medicina (CFM), Revista Medicina, Ano XXXV, nº 301, Março 2020. Saúde dos médicos
e de equipes deve ser motivo de preocupação de gestores, p.4.
161
Dentre os inquéritos e ações civis públicas propostas pelo MPT com esse objeto, cabe destacar o Inquérito
nº 001955.2020.01.000/4 no Rio de Janeiro e a ACP nº 0000607-54.2020.5.10.0019 no DF

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treinamento e capacitação para os profissionais da saúde; ausência de medidas de

contingenciamento para prevenção de contaminação por esses trabalhadores na

linha de frente no atendimento de pacientes com Covid-19; escassez de profissionais

no Hospital, levando à sobrecarga de jornada daqueles em exercício e falta de

pagamento de salários.

Em razão das apurações nestes inquéritos o Grupo de Trabalho Covid-19 do

MPT editou nota técnica conjunta nº 15/2020 contendo diretrizes para a proteção de

profissionais da saúde durante a pandemia com indicação de medidas que devem

ser adotadas pelos empregadores para prevenir, diagnosticar, proteger e treinar os

profissionais envolvidos no combate ao coronavírus.

A questão também é objeto de um estudo da FIOCRUZ sobre o impacto da

pandemia nas condições de trabalho dos profissionais da saúde coordenado pela

Professora Doutora Maria Helena Machado. Seus resultados preliminares

apresentados em julho indicavam que “as profissões com maior número de

registros dentre os casos confirmados de síndrome gripal por covid-19 foram

técnicos e auxiliares de enfermagem (62.633), seguidos dos enfermeiros (26.555) e

médicos (19.858)”162.

Vale notarmos que o acometimento destes profissionais pelo coronavírus

sequer é considerado pelo Ministério da Saúde como uma doença relacionada ao

trabalho, posto que revogou Portaria nº 2.309/20 que havia incluído o COVID-19

como doença ocupacional. Ao assim proceder o Ministério da Saúde ignora a

relação que existe entre o trabalho desempenhado e o alto risco de contaminação

por esse novo vírus. Felizmente, em decisão nas ADIs 163 que contestam diversos

162
Estes resultados preliminares podem ser encontrado na reportagem: FIOCRUZ AVALIA CONDIÇÕES DE
TRABALHO NA SAÚDE DURANTE A PANDEMIA. Agência Brasil, Rio de Janeiro, 22 de julho de 2020. Disponível
em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-07/fiocruz-avalia-condicoes-de-trabalho-na-saude-
durante-pandemia. Acesso em: 25 de julho de 2020.
163
ADI 6354, ADI 6346, ADI 6342, ADI 6349, ADI 6348, ADI 6352, ADI 6344.

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dispositivos da Medida Provisória 927/2020, o STF se posicionou em sentido

contrário, reconhecendo que a COVID-19 pode ser uma doença ocupacional,

devendo o empregador provar o contrário.

O desamparo destes profissionais é ainda agravado pela postura cambaleante

dos nossos governantes que não lograram êxito, ao longo de todos estes meses, em

desenvolver políticas públicas conjuntas para garantir o fornecimento de insumos,

equipamento de proteção e estrutura de trabalho em todas as regiões do país.

Diante desse quadro, a sociedade ‘enaltece’ os profissionais da área de saúde,

como se vê em manchetes como a do G1 de 17 de maio de 2020: “‘Heróis’ da saúde

recebem cartinhas de crianças durante pandemia em SP: ‘Recarregados’.164

Uma recente campanha do CREMERJ 165 saudando os médicos “heróis” que

atuam durante a pandemia dá conta da dimensão deste processo de naturalização,

demonstrando que nem o próprio conselho profissional, instituição que deve se

apresentar na defesa dos interesses destes profissionais, vislumbra os efeitos

negativos deste título.

Muito embora a qualificação ‘herói’ vise realçar um reconhecimento da

sociedade pela hercúlea atuação que vem sendo feita pelos profissionais da área

diante da pandemia do coronavírus, os efeitos são danosos para esses

trabalhadores, na medida em que, se são heróis, se pode exigir deles empenho para

além do ordinário e abdicação de sua segurança pessoal. A atribuição deste status

ao profissional da saúde representa uma “additional pressure, because superheroes don’t

fail, don’t give up or get sick” (ORNELL, 2020).

164
Disponível em: https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/mais-saude/noticia/2020/05/17/herois-da-saude-
recebem-cartinhas-de-criancas-durante-pandemia-em-sp-recarregados.ghtml. Acesso em 01 de jun de 2020.
165
A campanha se encontra disponível no site da instituição através do link
https://cremerj.org.br/informes/exibe/4766

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Uma série de estudos166 demonstraram que o trabalho em tais condições pode

gerar, para além de um maior risco de contaminação com o vírus, transtornos

psicológicos e psiquiátricos como síndrome de Burnout, transtorno de estresse pós

traumático, depressão e ansiedade.

A atuação durante a pandemia por si só já provoca nestes profissionais um

estresse para além do ordinário, sendo demandados a lidarem com uma doença

desconhecida, sem protocolo de tratamento, temendo a sua contaminação e o

contágio de sua família. Em condições de trabalho precárias, com escassez de

insumos, leitos e mão de obra, o potencial lesivo da atividade desempenhada é

exponencialmente maior. Mas estes profissionais, movidos por vocação e

incentivados pelo perverso heroísmo, prosseguem em suas atividades, muitas vezes

abdicando de regras básicas de segurança no trabalho, conforme comprovam os

inquéritos em curso no MPT.

Esse é o fim visado por essa reflexão, desmistificar o ‘elogio’ lançado para os

profissionais da área de saúde, realçar a realidade brasileira da precarização do

trabalho e chamar a atenção para as medidas que efetivamente podem levar à

verdadeira valorização do trabalho desses profissionais.

166
Dentre os trabalhos analisados, cabe destacar as seguintes produções internacionais sobre o tema:
SHIGEMURA et al. Public responses to the novel 2019 coronavirus (2019-nCoV) in Japan: mental health
consequences and target populations. Psychiatry Clin Neurosci 2020; 74:281-2; XIANG Y et al. Timely mental
health care for the 2019 novel coronavirus outbreak is urgently needed. Lancet Psychiatry 2020; 7:228-9.

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2. DA CRESCENTE PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E SEU

AGRAVAMENTO COM AS MEDIDAS GOVERNAMENTAIS PARA

ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA

A leitura apenas do título poderia resultar em conclusão de que se encontra

equivocado. Mas não, a afirmativa é exatamente esta: em momento de pandemia,

algumas medidas governamentais fragilizaram normas de segurança no ambiente

de trabalho.

Não obstante os fatos acima mencionados, de escassez de EPI’s e insuficiência

de profissionais para o atendimento da população, outras medidas, vindas dos

responsáveis pela adoção de soluções, agravaram ainda mais a situação.

Referimo-nos, em especial, às disposições contidas nas Medidas Provisórias

927/2020 (com vigência já encerrada) e 936/2020 (convertida na lei 14.020/20). A MP

927/2020, que teve vigência de 22.03.2020 a 29.07.2020, no seu capítulo VII, tratava

da suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho,

suspendendo a obrigatoriedade de exames médicos ocupacionais, clínicos e

complementares, excetuando apenas os exames demissionais. O capítulo X, por sua

vez, no art. 26, facultava aos estabelecimentos de saúde no período da pandemia, a

prorrogação da jornada de trabalho por meio de acordo individual, inclusive para

os profissionais com jornada de 12 x 36 e em atividades insalubres; o art. 29

estabelecia que os casos de contaminação pelo COVID-19 não seriam considerados

ocupacionais, a não ser mediante comprovação de nexo causal; e o art. 31, estipulava

a atuação dos auditores fiscais apenas como orientadores pelo período de 180 dias.

Várias foram as ADI’s apresentadas. A ADI 6380 foi ajuizada pela Confederação

Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) e Federação Nacional dos

Enfermeiros – FNE, pugnando pela suspensão da eficácia dos dispositivos acima.

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O STF suspendeu a eficácia dos dois últimos dispositivos. Referida ação teve a

perda de objeto decretada em decisão de 12 de agosto de 2020, em razão do término

da vigência da MP, pelo Ministro Marco Aurélio.

Não se olvida da imprescindibilidade do trabalho dos profissionais de saúde

em razão da pandemia. No entanto, na ordem das prioridades, até mesmo

porquanto extremamente necessários para socorrer a população, a segurança desses

trabalhadores deve estar amplamente assegurada. E deve ser efetiva.

A Constituição, em seu art. 7º, XXII, assegura “redução dos riscos inerentes ao

trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” e a CLT, em seu art.

157, determina às empresas que cumpram e façam cumprir as normas de segurança

e medicina do trabalho, bem como a instrução dos empregados “quanto às

precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças

ocupacionais.”

A obrigatoriedade de realização de exames médicos admissional, periódico e

demissional, por conta do empregador, está prevista no art. 168, também da CLT.

Somente em 8 de julho de 2020, foi publicada a Lei nº 14.023, acrescentando o

art. 3º-J à Lei 13.979/2020, determinando a adoção de medidas imediatas para

preservação da vida e saúde dos profissionais apontados como essenciais ao

controle de doenças e manutenção da ordem pública durante a emergência do

coronavírus. No entanto, a lei ateve-se em especificar esses profissionais;

determinar o fornecimento gratuito de EPI’s; e estabelecer prioridade para testes de

diagnóstico da Covid-19.

Ainda com a finalidade de socorrer trabalhadores e empregadores, ambos

sofrendo os efeitos das necessárias medidas para combater a pandemia, foi editada

a Medida Provisória 936/2020, instituindo o “Programa Emergencial de

Manutenção do Emprego e da Renda”.

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O partido Rede Sustentabilidade propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade

(6363) buscando o controle concentrado de constitucionalidade relativamente ao

disposto nos arts. 3º, 7º e 8º da MP 936/20, em face do disposto nos arts. 7º, VI e XIII

e 8º da Constituição Federal. Como Medida Cautelar foi postulada a suspensão do

uso da expressão ‘acordo individual’ para as medidas de redução de salário e

suspensão do contrato de trabalho, nos dispositivos que menciona. O Supremo

Tribunal atribuiu eficácia à regra na forma em que foi instituída 167.

A MP 936/2020 foi convertida na Lei 14.020/2020, publicada em 07 julho de 2020,

com pequenas alterações no texto, mas sem muita relevância no que diz respeito à

problemática aqui tratada, ou seja, o art. 12 da Lei manteve, em algumas hipóteses,

a possibilidade acordo individual escrito para as medidas elencadas no art. 3º, ou

seja, sem a participação direta dos Sindicatos.

As disposições agora contidas na Lei 14.020/2020 chancelam a precarização das

condições de trabalho pelo afastamento da presença dos Sindicatos nas negociações

de condições de trabalho.

Se está tratando de preservar empregos, garantir uma renda mínima aos

trabalhadores, assegurar boas condições de trabalho, a presença dos Sindicatos é

essencial, não parecendo ter sido outra a finalidade da previsão constitucional

contida no art. 7º, incisos VI e XIII. Consoante texto constitucional, a participação

dos Sindicatos nas negociações é imprescindível como medida de proteção aos

trabalhadores, visando minimizar a desigualdade estrutural existente nos

integrantes da relação de trabalho.

167
Vale transcrever o seguinte trecho da decisão: “O Tribunal, por maioria, negou referendo à medida
cautelar, indeferindo-a, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes, Redator para o acórdão,
vencidos o Ministro Ricardo Lewandowski (Relator), que deferia em parte a cautelar, e os Ministros Edson
Fachin e Rosa Weber, que a deferiam integralmente. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello.
Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 17.04.2020 (Sessão realizada inteiramente por videoconferência
- Resolução 672/2020/STF).” Disponível em:
<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886604>. Acesso em: 30 jun. 2020.

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O sociólogo Ricardo Antunes (2020, p.157-159) nos auxilia na compreensão da

escalada da precarização do trabalho como regra no atual mercado de trabalho, o

que ele chama de precarização estrutural do trabalho. A financeirização e a

mundialização descritas pelo sociólogo provocaram uma mudança na forma de

gestão do trabalho e no foco de atenção do Estado. Argumenta que a lógica

financeira trazida no bojo destes movimentos demanda uma maior flexibilização e

informalidade do trabalho acompanhada, como não poderia deixar de ser, de um

esmaecimento da legislação social protetora do trabalho.

Nesse contexto, destaca ainda Antunes (2020, p.123), o processo contraditório

hoje existente, no qual ante a informatização do trabalho próprio de um mundo

digital, concorre a informalização do trabalho, com a ampliação dos terceirizados,

dos subcontratados, dos flexibilizados, teletrabalhadores, dos trabalhadores em

tempo parcial, formas pelas quais se dá a precarização, também estabelecida com o

enfraquecimento dos sindicatos e desmonte da legislação trabalhista.

Na área médica, uma forma largamente adotada por clínicas e hospitais

(contratantes) tem sido a chamada pejotização, ou seja, contratação de médicos por

meio de pessoa jurídica, para realização do mesmo trabalho executado por

empregados (contratados pelo regime da CLT).

O Conselho Federal de Medicina considera desvantajosa essa forma de

contratação, porquanto esses médicos contratados como pessoa jurídica, percebem

valor inferior em 38% que outros tipos de empregados de outros setores produtivos,

além de deixarem de receber os demais benefícios trabalhistas e previdenciários, o

que foi destacado no 2º Encontro Nacional dos Conselhos de Medicina realizado em

2018, em Brasília/DF168.

168
Para mais informações sobre a crítica ao processo de terceirização: ALMEIDA, Juliane Franco de Sousa.
Aspectos da Pejotização dos Médicos. Migalhas. 2019. Disponível em:

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Referida forma de contratação foi validada pelo Tribunal Superior do Trabalho,

reconhecendo que a partir da vigência das Leis nºs 13.429/2017 e 13.467/2017 está

permitida a terceirização e quarteirização do serviço e da própria atividade-fim

(vide Recurso de Revista n° TST-RR-10287-83.2013.5.01.0011).

Com a ruptura dos laços formais de contratação e a desregulação do trabalho

há o incremento da precariedade. Os trabalhadores, desprovidos de direitos e de

amparo de uma rede social de proteção (Estado + sindicato), por temer o

desemprego, se submetem à baixos salários, baixa segurança no desempenho de

suas funções, assunção de riscos e excesso de jornada.

Como consequência dessa precarização há o que Antunes reconhece como uma

diminuição na fronteira entre o trabalho e a vida privada e uma perda de

pertencimento à classe trabalhadora. Portanto se ao trabalhador só lhe resta a

expressão de suas aptidões no ambiente de trabalho e, pari passo, ele não se

reconhece como membro de um grupo, a qualificação de herói é conveniente a esse

processo de individualização e sofrimento no mercado de trabalho.

3. O SOFRIMENTO NO TRABALHO E AS FORMAS DE DEFESA

A qualificação como ‘herói’ coloca o profissional da saúde em uma armadilha,

se apresentando com um ingrediente que aumenta o sofrimento. É como se a

sociedade estivesse a dizer a esses profissionais que supram as deficiências do

Estado: onde a máquina governamental deveria ter atuado e não o fez, façam vocês.

Esse quadro teria ainda como consequência nefasta a banalização das péssimas

condições de trabalho.

https://www.migalhas.com.br/depeso/307914/aspectos-da-pejotizacao-dos-medicos. Acesso em: 11 set.


2020.

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Para melhor compreensão da forma como os trabalhadores lidam com o

sofrimento, buscamos o auxílio da psicodinâmica do trabalho 169. Se firmando no

resultado de pesquisas, o psiquiatra e psicanalista Dejours (2007, p.34), enfatiza que

é por meio do sofrimento que se dá o consentimento para participação em todo o

sistema. O reconhecimento é a realização do ego que teve suas qualidades e trabalho

recompensados pelos indivíduos com quem o sujeito se relaciona. O sofrimento na

execução da atividade dá a dimensão desse trabalho, portanto é seu elemento

constitutivo.

Na rotina dos profissionais de saúde o sofrimento já é intenso e constante,

causado por várias circunstâncias: medo de contaminação; medo de falhar, de não

conseguir suportar a pressão diária causada por condições extremas e decepcionar

a sociedade; sofrimento físico pelas longas jornadas, muitas vezes com privação do

sono, o que pode levar à ansiedade, depressão, esgotamento físico e mental. Está

presente o medo de não corresponder às expectativas, e agora o medo de falha

diante daquela denominação pretendida benfazeja - herói, mas com consequências

cruéis, ou seja, mais um motivo para sofrimento.

Em Dejours encontramos novamente amparo para compreendermos o que é o

medo e seu impacto na relação de trabalho. O medo é uma experiência subjetiva e,

ao atingir um determinado grau “torna-se incompatível com a continuação do

trabalho” (DEJOURS, 1988, p. 141). O sujeito, para continuar a desempenhar sua

169
A psicodinâmica do trabalho “tem por objeto o estudo clínico e teórico da patologia mental decorrente do
trabalho. Fundada ao final da II Guerra por um grupo e médicos-pesquisadores liderados por L. Le Guillant, ela
ganhou já uns 15 anos um novo impulso que a levou recentemente a adotar a denominação de “análise
psicodinâmica das situações de trabalho”, ou simplesmente “psicodinâmica do trabalho”. Nessa evolução da
disciplina, a questão do sofrimento passou a ocupar uma posição central o trabalho. O trabalho tem efeitos
poderosos sobre o sofrimento psíquico. Ou bem contribui para agravá-lo, levando progressivamente o
indivíduo à loucura, ou bem contribui para transformá-lo, ou mesmo subvertê-lo, em prazer, a tal ponto que,
em certas situações, o indivíduo que trabalha preserva melhor a sua saúde do que aquele que não trabalha.
Por que o trabalho ora é patogênico, ora estruturante? O resultado jamais é dado de antemão. Depende de
uma dinâmica complexa cujas principais etapas são identificadas e analisadas pela psicodinâmica do trabalho.”
(DEJOURS, 2007, p. 21).

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função, estabelece algumas estratégias para lidar com o medo, sendo uma dela a

construção de uma falsa percepção da realidade. O psicanalista dá como exemplo

os trabalhadores em atividades de risco que “negam ou ignoram a sua existência

para que assim possam continuar na execução do trabalho, banalizando ou

normalizando as condições que lhe causam medo” (DEJOURS, 2012, p.61).

Os profissionais de saúde são os que mais necessitam de proteção e segurança

no trabalho neste momento, desempenhando atividade de intenso risco. Eles são

prioridade, posto que essenciais para o tratamento dos demais. E a atenção deve ser

feita não só ante o fornecimento de EPI’s e capacitação, mas também pelo apoio

emocional e psicológico. Contudo, em total contrassenso, não lhes é dada a

possibilidade de manifestar essa fragilidade humana, porque lhes é cobrada a

atuação de um herói. Para encapotar o medo, estes profissionais dissociam seu

trabalho das condições reais de atuação, ignorando a exposição excessiva e a

ausência de proteção170.

E assim o sofrimento passa a ser estruturante do trabalho, naturalizado e

assimilado pelo profissional da área de saúde, vítima de uma violência simbólica,

silente e isolado pelo mercado, amaciado pelo título de herói.

É neste diapasão que nos serve de amparo a compressão de Pierre Bourdieu

sobre poder e o processo de violência simbólica. A violência simbólica encobre a

relação de poder existente entre profissionais e empregadores, ela é “suave,

insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias

puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento” (BOURDIEU, 2003, p.

7-8). Neste processo os profissionais se colocam em situações de aviltamento e

170
Essa hipótese também foi ventilada em outras pesquisas, dentre as quais cabe destacar: DIAS, Elizabeth C.
2015. Condições de trabalho e saúde dos médicos: uma questão negligenciada e um desafio para a Associação
Nacional de Medicina do Trabalho. Disponível em: http://www.rbmt.org.br/details/5/pt-BR/condicoes-de-
trabalho-e-saude-dos-medicos—uma-questao-negligenciada-e-um-desafio-para-a-associacao-nacional-de-
medicina-do-trabalho. Acesso em: 10 jun. 2020.

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depreciação sem que se deem conta de que assim atuam, naturalizando um

comportamento com espeque em compreensões identitárias de suas profissões que

desassociam sua atuação do campo do trabalho.

Estes profissionais são condicionados (ORTIZ, 2007) com perspectivas sociais,

econômicas e políticas, predispondo os indivíduos nas suas percepções e escolhas

por intermédio de disposições socialmente estruturadas assimiladas por

experiências práticas que formam e condicionam o agir individual. E assim os

sujeitos, conscientemente ou inconsciente, reproduzem significados que estão na

base de uma cultura, sob os auspícios de uma suposta vocação.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao naturalizar a precarização e seu papel de herói o profissional da saúde abre

mão de sua dignidade. A nossa dignidade, como sujeito de direito, passa pela

garantia de direitos ligados à proteção, provisão e participação (SARLET, 2007). O

homem deve estar protegido contra a arbitrariedade e os impulsos predatórios de

outros homens, deve ser provido ou ter meios para prover sua subsistência e deve

ter a possibilidade de expressar a singularidade de suas vontades e assim se

reconhecer, numa construção relacional com outros homens, enquanto pessoa.

Outrossim a dignidade da pessoa humana é que impede a instrumentalização

dos sujeitos. Seguindo a matriz filosófica kantiana, sendo o homem um fim em si

mesmo, a dignidade impede que um sujeito utilize outra pessoa para concretizar

sua exclusiva pretensão. Portanto, em razão da sua dignidade o sujeito social está

protegido de sua coisificação, sendo-lhe resguardado o direito de se

autodeterminar.

570
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O profissional herói é um sobre-humano, é um sujeito social que não se

pertence, que pertence aos outros, que renuncia a toda redes de proteção social para

não assumir sua fragilidade. Uma sociedade que impõe esse status está ocultando

suas falhas, ocultando a dificuldade em prestar serviço de saúde à população, em

proteger esses profissionais e na gestão do trabalho. É nesse diapasão que a fala de

Habermas ao ser entrevistado sobre o 11 de setembro nos empresta um grande

contributo: “toda vez que se honram os “heróis”, levanta-se a questão de quem

precisa dele e por quê” (BORRADORI, 2004, p.55), questões encobertas pela fantasia

do título.

No mundo do trabalho os paradoxos estão por todos os lados. Os profissionais

que atuam para salvar vidas, tem suas próprias vidas em risco para

desenvolvimento do trabalho, em razão das condições precárias a que são

submetidos. É urgente que sejam adotadas as medidas regulares de segurança do

trabalho e aquelas recomendadas pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira

para o bem-estar emocional da equipe multidisciplinar durante a pandemia pelo

Sars-Cov-2171 como forma de garantir a dignidade destes profissionais.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

DIREITO HUMANO À ÁGUA POTÁVEL: UM EXAME À LUZ DO

COMENTÁRIO GERAL DA ONU Nº 15172

Douglas Souza Guedes173


Tauã Lima Verdan Rangel174

RESUMO
O presente estudo debruça-se em torno de analisar a garantia de acesso à água potável
reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio do Comentário Geral
Nº 15, como um Direito Humano, tal garantia se relaciona diretamente com o Mínimo
Existencial, pois é indispensável para vida humana. É importante abordar conceitos como
o de direito fundamental e suas subdivisões, pois o direito de acesso à água é compreendido
também como um direito fundamental, e o de mínimo existencial, em que se se nota uma
profunda relação com o direito à água. A metodologia empregada na condução do presente
parte do método dedutivo, auxiliado da pesquisa bibliográfica e da revisão de literatura,
sob o formato de revisão sistemática, como técnicas de pesquisa.

Palavras-Chave: Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Direito de acesso à água;


Mínimo Existencial.

ABSTRACT
The present study is focused on analyzing the guarantee of access to drinking water
recognized by the United Nations (UN), through General Comment No. 15, as a Human
Right, such a guarantee relates directly to the Minimum Existential because it is
indispensable for human life. It is important to address concepts such as the fundamental
right and its subdivisions, because the right of access to water is also understood as a
fundamental right, and the existential minimum, where one can see a deep relationship
with the right to water. The methodology used to conduct the present part of the deductive

172
Artigo vinculado ao Grupo de Pesquisa “Faces e Interfaces do Direito, Sociedade, Cultura e
Interdisciplinaridade no Direito” – vinculado à Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Bom Jesus do
Itabapoana-RJ”
173
Graduando do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Unidade Bom Jesus do
Itabapoana, dsouzaguedes@gmail.com;
174
Pós-Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Sociologia Política da
Universidade Estadual do Norte Fluminense. Doutor e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal Fluminense. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Faces e Interfaces do Direito, Sociedade, Cultura e
Interdisciplinaridade no Direito” – vinculado à Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Bom Jesus do
Itabapoana-RJ” E-mail: taua_verdan2@hotmail.com; Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8802878793841195

574
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

method, aided by bibliographic research and literature review, under the format of
systematic review, as research techniques.

Keywords: Human Rights; Fundamental rights; Right of access to water; Minimum


Existential.

INTRODUÇÃO

Há alguns séculos, as situações tidas como violadoras da dignidade e

muitas vezes da vida humana eram muito comuns, não havendo nenhuma previsão

legal que coibisse tais práticas. No século XX, sobretudo a partir da 2º Guerra

Mundial, o mundo tomou uma nova postura perante as situações e práticas

violadoras da dignidade da pessoa humana, em 1948 foi promulgada a Declaração

Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e a partir desse marco, tem se discutido

muito sobre o respeito e garantia desses direitos. Com a positivação desse conjunto

de direitos nas constituições ao redor do mundo, esses passaram também a ser

denominados direitos fundamentais, uma vez que são indispensáveis para limitar

certos abusos cometidos pelo Estado ou outras situações, sendo o cumprimento

desses direitos a base de edificação do chamado Estado Democrático de Direito.

Faz parte do rol de Direitos Humanos Fundamentais, o direito de acesso à

água, uma vez que a água é indispensável para manutenção das atividades do

organismo, portanto para garantia da vida, e para outras inúmeras atividades

cotidianas, logo garantir o direito de acesso à água é garantir uma vida com

dignidade, assim surge uma estrita relação de tal tema com o Mínimo Existencial.

No mundo, a falta de acesso à água potável é um problema sério que atinge,

sobretudo, países subdesenvolvidos, é perceptível que essa privação de um direito

humano básico, leva a uma série de outros problemas, como por exemplo,

problemas de saúde devido à ingestão de água contaminada. Apresentada à

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

problemática é importante discutir tal tema, uma vez que esse Direito Humano é

sistematicamente violado.

1 DIREITOS HUMANOS EM RESSIGNIFICAÇÃO

O termo “Direitos Humanos” pode ser conceituado como um conjunto de

direitos pertencentes a todos os seres humanos, independente de características

diferenciadoras como “raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer

outra condição”. Os Direitos Humanos são previstos internacionalmente pela

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (ONUBRASIL, s.d., s.p.).

Os Direitos Humanos são um elo fundamental que sustenta a sociedade

humana, desde a relação entre homem e sociedade até a relação do cidadão com

todos os seus semelhantes. Somente com o passar dos séculos as situações

violadoras da dignidade humana e dos direitos humanos fundamentais, foram

entendidas como um conflito fundamental e posteriormente como um problema

social. Por um período considerável da história a Igreja sufocou a relação entre

homem e sociedade, a substituindo por uma ideia de eternidade, com escopo de

afastar do homem o interesse por uma vida “terrestre” transitória digna. No lugar

da relação entre homem e sociedade, a Igreja insistia na máxima homem e reino de

Deus, conjugando todos seus esforços para manter “a riqueza dos ricos e a pobreza

dos pobres”. Com a escravidão, o colonialismo e posteriormente a escalada do

fascismo, imperou um sentimento de recusa e desdenho para com os Direitos

Humanos. Apesar de que em seu aspecto originário a escravidão, o colonialismo e

o fascismo tenham desaparecido, nos últimos anos tem reaparecido sob nova feição,

através de ditaduras, do neocolonialismo e da onda fascista de extrema direita que

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

acomete o Brasil e diversos outros países, em que se podem notar graves violações

dos Direitos Humanos (MBAYA, 1997).

A partir da criação das Nações Unidas e da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, dentre outros instrumentos do direito internacional, deixa de

existir a ideia de exclusividade dos desses direitos. Desde 1945, pode-se notar “um

período reconhecimento da sua universalidade e inclusividade, sendo também, um

período de reivindicação dos povos no sentido de exercerem o direito a

autodeterminação como um direito dos povos e do homem” (MBAYA, 1997, p. 18).

Os direitos humanos são, portanto, o conjunto de direitos pertencentes a todos os

indivíduos sem distinção, obtidos com o nascimento, como por exemplo, o direito à

vida, à liberdade de locomoção e à liberdade de expressão, os indivíduos já nascem

sendo possuidores desses direitos básicos. A partir da positivação constitucional,

esses direitos passam a ser chamados de “direitos fundamentais”, a ideia de direitos

fundamentais está ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, o que

presume que todo ser humano tenha acesso aos direitos mais básicos, ou seja, ao

mínimo existencial (FARIAS, 2015, s.p.).

Os direitos fundamentais podem ser definidos atualmente, como um

produto resultante da conjugação de diversas fontes, desde as mais diversas

tradições das sociedades, até a junção de discussões filosófico-jurídicas, dos

pensamentos oriundos do cristianismo e do direito natural. Esse conjunto de ideias

e discussões colidiu em um aspecto fundamental: “a necessidade de limitação e

controle dos abusos do poder do próprio Estado”, na busca pela garantia dos

princípios substanciais da isonomia e da legalidade como regedores do Estado

Contemporâneo (SAMPAIO, 2017, s.p.). Ainda de acordo com Sampaio (2017):

577
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Assim, a noção de direitos fundamentais é mais antiga que o


surgimento da ideia de constitucionalismo, que, tão somente,
consagrou a necessidade de insculpir um rol mínimo de direitos
humanos em um documento escrito, derivado diretamente da
soberana vontade popular. Os direitos humanos fundamentais
colocam-se como uma das previsões absolutamente necessárias a
todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à
dignidade humana, garantir a limitação de poder e visar ao pleno
desenvolvimento da personalidade humana. A
constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não
significou mera enunciação formal de princípios, mas a plena
positivação de direitos, a partir dos quais qualquer indivíduo
poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário para a
concretização da democracia. Ressalte-se que a proteção judicial é
absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e
o respeito aos direitos humanos fundamentais previstos na
Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral
(SAMPAIO, 2017, s.p.).

O cumprimento dos direitos humanos fundamentais é a base para

edificação do Estado Democrático de Direito, o objetivo principal dos direitos

humanos fundamentais é a garantia da dignidade da pessoa humana (SAMPAIO,

2017). De acordo com Peres Luno (1995, apud, MIGUEL, 2014, s.p.), existem três

modelos de definição para Direitos Humanos: a definição tautológica, a formal e a

finalística ou teleológica. Pela definição Tautológica inexistem elementos que

possibilitem caracterizar tais direitos, os direitos humanos seriam todos aqueles

pertencentes ao homem pelo fato de ser homem. De acordo com a definição formal,

ao não indicar o conteúdo, surge uma indicação sobre seu regime jurídico, essa

definição estabelece que os direitos humanos são pertencentes a todos os homens e

que não podem ter o acesso a ele restrito, “em virtude de seu regime indisponível e

sui generes”. Já a definição teleológica, aponta o objetivo ou fim para conceituar o

conjunto de direitos humanos, segundo essa definição os direitos humanos “são

aqueles essenciais para o desenvolvimento digno da pessoa”. Ainda segundo a

578
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

última definição, os direitos humanos são fundamentais, pois, “sem eles o ser

humano não conseguirá existir ou não será capaz de se desenvolver e de participar

plenamente da vida social e política” (DALLARI, 1998, p. 7, apud, MIGUEL, 2014,

s.p.).

Ainda discorrendo sobre classificações, de acordo com Moreira (2011), os

direitos humanos, à luz da Teoria Geracional, se subdividem em quatro dimensões

de direitos. Os direitos humanos de 1º dimensão são os que tratam dos direitos civis

e políticos, associando-se aos valores de liberdade. Na 2º dimensão se encontram os

direitos sociais, culturais e econômicos, com base nos valores de igualdade. Os

direitos humanos de 3º dimensão são aqueles que versam sobre o “respeito aos

direitos dos povos, objetivando o respeito mútuo, o preservacionismo ambiental,

uma distribuição melhor da renda”. Por fim, os direitos da 4º dimensão tratam dos

direitos oriundos da engenharia genética (MOREIRA, 2011, s.p.).

Os direitos humanos fundamentais sociais são previstos pela Constituição

Federal de 1988, mais precisamente em seu artigo 6º, que diz:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o


trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988).

De acordo com Canotilho (2003, apud, MOREIRA, 2011) os direitos

fundamentais se subdividem em dois grupos: os direitos de defesa e o direito a

prestações. Os direitos fundamentais de defesa são aqueles que têm como escopo

reivindicar do Estado que “se abstenha de praticar condutas contrárias a tais

direitos”, enquanto que os direitos fundamentais a prestações buscam exigir do

Estado “a realização de certas prestações positivas, por exemplo, saúde e educação”,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

o acesso à água e alimentação. Esses direitos são, portanto complementares, uma

vez que os direitos fundamentais a prestações oferecem as condições essenciais para

manutenção da cidadania e liberdade, sem a realização de um, o outro não pode ser

usufruído em sua plenitude (CANOTILHO, 2003, apud, MOREIRA, 2011, s.p.).

Como assevera Pinheiro (2008, apud, MOREIRA, 2011, s.p.), “não adiantaria ter

liberdade sem saúde para gozá-la, ou, então, sem alimentação adequada que

propicie energia suficiente para usufruí-la”, ou seja, sem a garantia dos direitos

fundamentais a prestação, não há a realização dos direitos fundamentais de defesa.

2 O COMENTÁRIO GERAL DA ONU Nº 15: O RECONHECIMENTO DO

DIREITO HUMANO À ÁGUA POTÁVEL

Os direitos humanos são matéria cuja garantia, promoção e discussão

crescem cada vez mais, principalmente por meio de uma perspectiva de

desenvolvimento humano, cuja base são normas de caráter internacional que devem

ser respeitadas e promovidas. Esse entendimento se dá, pois “as desigualdades, as

práticas discriminatórias e a distribuição de poder injustas” são um obstáculo para

que se possa atingir o desenvolvimento (ZONZI; TURATTI; MAZZARINO, 2016,

s.p.). A partir dessa discussão, tem-se o acesso à água potável como um direito

humano universal e de acordo com as normas internacionais é preciso à ação estatal

para sua realização (ZONZI; TURATTI; MAZZARINO, 2016).

Quanto aos eventos internacionais que tem como escopo levantar a

discussão em torno do problema da restrição do acesso à água potável vale lembrar

“os Fóruns Mundiais da Água organizados pelo Conselho Mundial da Água”

(World Water Council), realizados a cada três anos, representando uma base para

colaboração global na busca pela superação dos desafios (ZONZI; TURATTI;

580
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

MAZZARINO, 2016, s.p.). No mundo, cerca de 884 milhões de pessoas tem o direito

de acesso à água potável violado, 2,6 bilhões de indivíduos, cerca de 40% da

população do planeta, não tem acesso ao sistema de saneamento básico (ONU, s.d.,

p. 01). No dia 28 de julho de 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas por meio

da Resolução A/RES/64/292 asseverou que o acesso à água potável é um direito

humano necessário para que o indivíduo possa viver dignamente e realizar os

outros direitos humanos (ONU, s.d.). Ainda de acordo com o relatório da ONU:

Assegurar o acesso à água e ao saneamento enquanto direitos


humanos constitui um passo importante no sentido de isso vir a ser
uma realidade para todos. Significa que:
• O acesso à água potável segura e ao saneamento básico é um
direito legal, e não um bem ou serviço providenciado a título de
caridade;
• Níveis básicos e melhorados de acesso devem ser alcançados cada
vez mais rapidamente; • Os “pior servidos” são mais facilmente
remediados e, por conseguinte, as desigualdades mais rapidamente
diminuídas;
• As comunidades e os grupos vulneráveis serão capacitados para
participarem nos processos de tomada de decisão;
• Os meios e mecanismos disponíveis no sistema de direitos
humanos das Nações Unidas serão utilizados para acompanhar os
progressos das nações na concretização do direito à água e ao
saneamento, de forma a responsabilizar os governos (ONU, s.d., p.
01).

A admissão do acesso à água como elemento essencial para manutenção da

vida se deu em 1977, na Conferência das Nações Unidas sobre Água realizada em

Mar Del Plata, na Argentina. O esboço traçado durante essa conferência prescrevia

que todas as pessoas, “independente da situação econômica e social”, tinham direito

a garantia de acesso à água potável no que tange qualidade e quantidade adequadas

para suprir as necessidades essenciais (SILVA; HELLER, 2016, p. 1885). Em 2002, o

581
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais afirmou

em seu Comentário Geral nº 15 que versa sobre o direito humano de acesso à água

que: “o direito humano à água prevê que todos tenham água suficiente, segura,

aceitável, fisicamente acessível e a preços razoáveis para usos pessoais e

domésticos”. O acesso à água para o indivíduo deve ser continuado e em

quantidade suficiente para atender as necessidades do organismo e para o uso

doméstico. São considerados uso doméstico, “beber, saneamento pessoal, lavagem

de roupa, preparação de refeições e higiene pessoal e do lar”, conforme estudos da

Organização Mundial da Saúde (OMS), para garantir a realização das

indispensabilidades mais básicas, é necessário, diariamente, de 50 a 100 litros de

água (ONU, s.d., p. 2).

A água a ser utilizada no uso doméstico deve ser segura, ela é seguram

quando inexiste a presença de microrganismos, substâncias químicas

contaminantes ou resíduos radiológicos que configurem alguma ameaça para a

saúde dos indivíduos. As orientações da OMS para a qualidade da água para o

consumo configuram um pilar para a elaboração de normas nacionais que irão

assegurar a qualidade da água potável, além disso, a água deve ser incolor, inodora

e insípida (ONU, s.d.).

O consumo de água contaminada pode ocasionar doenças infecciosas como

a diarreia e a cólera, que são a principal causa de morte em países subdesenvolvidos.

A falta de água em algumas regiões do planeta está profundamente relacionada

com a pobreza, o que agrava o abastecimento. O Comentário Geral nº 15 prevê ainda

que devem ser protegidas as fontes de água contra invasão e poluição. O direito

humano à água é violado quando o Estado não intervém para impedir a

expropriação, a destruição e a poluição de ambientes relacionados à água (WORLD

HEALTH ORGANIZATION, 2008). Nesse sentido descortina Amorim:

582
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A crise da água doce é mundial, uma vez que grande parte da


população é ameaçada por sérios problemas ocasionados pela
poluição, escassez, doenças e contaminações, ineficiência de gestão,
conflitos e disputa pela água doce. “Nos últimos 25 anos, hoje,
aproximadamente, 3 bilhões de pessoas não possuem acesso à água
potável e 768 milhões de pessoas, aproximadamente 10% da
população mundial, não possuíam acesso a quaisquer fontes de
água limpa em 2011” [...] A Assembleia Geral da ONU no ano de
2000, reconheceu na Resolução 54/175 o direito ao desenvolvimento
como um direito humano sendo que em seu art. 12 estabeleceu que
“para a plena realização do direito ao desenvolvimento, os direitos
à comida e à água são direitos humanos fundamentais e a sua
promoção constitui um imperativo moral, tanto para os governos
quanto para a comunidade internacional” (AMORIM, 2015, p. 85-
117, apud, FRATON; OLIVEIRA, 2016, p. 12-13).

Essa crise mundial da água ocorre por conta de um padrão insustentável de

desenvolvimento econômico, onde os reservatórios de água potável (no que se

refere à água doce do planeta) são ameaçados não só pelo aquecimento global e

modificações climáticas, mas também pelo descontrolado crescimento do consumo

devido ao desenvolvimento econômico e ao aumento da população nas metrópoles,

isso tudo associado à agricultura mundial e seus danos ao meio ambiente. Existem

previsões de que em 2025, “um terço da população mundial não terá acesso à água

potável para satisfazer suas necessidades básicas” (WOLKMER, 2012, p. 188, apud,

SCHMIDT, 2016, p. 11). De acordo com Corte:

Além de elaborar o conteúdo normativo do direito à água, o


Comentário n.º 15 estipula obrigações aos Estados signatários para
a sua implementação e dispõe, em seu conteúdo, que a água é um
recurso natural limitado e um bem público fundamental para a
promoção e a efetivação de vários direitos, dentre eles à vida digna
e à saúde. Nessa senda, a água deve ser tratada como um bem social
e cultural (portanto, não apenas como um bem econômico).
Ademais, aduz que a forma de ser realizado o direito à água deve
ser sustentável, a fim de que ele possa ser desfrutado pelas

583
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

presentes e pelas gerações por vir (CORTE, 2015, p. 492, apud,


SCHMIDT, 2016, p. 20).

No Brasil, cerca de 19 milhões de pessoas situadas na zona urbana não tem

acesso à água tratada, na zona rural são 21 milhões de indivíduos que também não

têm acesso à água potável, “apenas 46% dos domicílios brasileiros contam com

coleta de esgoto”. A falta de acesso á água para o consumo humano, sobretudo nas

regiões do nordeste semiárido, “apresenta-se como um fato concreto para

fundamentar a necessidade de enunciar o direito à água como fundamental”

(TREVISAN, 2015, apud, SCHMIDT, 2016, p. 28).

3 ÁGUA POTÁVEL COMO ELEMENTO CONSTITUINTE DO MÍNIMO

EXISTENCIAL

De acordo com Barcellos (2008, apud, RESENDE, 2017) o chamado mínimo

existencial, como proteção e direito fundamental as condições de vivência humana

digna, tem como berço o direito alemão. No Brasil, a carta magna de 1988,

reconheceu de modo implícito “o direito fundamental ao mínimo existencial” que

pode ser definido como o direito humano às condições essenciais para uma vida

digna, que não pode sofrer interferência do Estado no que se refere à cobrança de

impostos, exigindo ainda, do Estado, prestações estatais de cunho positivo

(TORRES, 2009, apud, RESENDE, 2017).

O mínimo existencial como um direito humano fundamental, sobrepassa a

ideia de mínimo vital na medida em que não pode ser definido apenas como

“garantia de sobrevivência física do indivíduo”, mas sim a existência no padrão

mais básico de dignidade (SARLET, 2015, apud, RESENDE, 2017). Como assevera

Milaré (2013, apud, RESENDE, 2017) a água enquanto elemento essencial da vida,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pois é parte principal na composição dos seres vivos e do funcionamento de seus

respectivos organismos.

Portanto, a garantia de acesso à água em quantidade e qualidade adequadas

está inerentemente relacionada ao mínimo existencial e é imprescindível para sua

realização, uma vez que não há vida digna onde prevalece a escassez de água

adequada para o consumo humano. “A água potável é, absolutamente, necessária

para a concretização do mínimo essencial à vida digna, vale dizer, do mínimo

existencial, uma vez que sem ela não se garante sequer a sobrevivência física”

quanto mais uma vida digna (GREATREX, 2004, p. 10, apud, RESENDE, 2017, p.

275). De acordo com Pulido:

A Administração Pública tem, também, a obrigação constitucional


de impedir que terceiros violem o direito à água, adotando-se as
medidas administrativas e legislativas necessárias para assegurar
que atores privados não deneguem ou dificultem o acesso à água
potável em condições de igualdade, não contaminem ou explorem
de forma não equitativa os recursos hídricos e não prejudiquem o
acesso físico a um custo razoável a recursos de água suficientes,
salubres e aceitáveis, sempre que controlarem os serviços de
abastecimento de água. Além disso, o Estado deve adotar todas as
medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e judiciais
necessárias, até o máximo dos recursos disponíveis, para realizar,
plenamente, o direito à água. Não há permissão para a postergação
da realização prática ou a inexigibilidade do direito à água, de
modo que o Estado deve fazer todo o possível para realizá-lo,
proporcionando, inclusive, o acesso do ser humano à água limpa e
segura, em especial, quando por circunstâncias alheias a seu
controle, não pode desfrutar deste (PULIDO, 2015, apud, RESENDE,
2017, p. 276).

Como já mencionado, os direitos fundamentais se subdividem em direitos

de defesa e direitos a prestações. Nessa teoria, o direito humano à água como direito

fundamental ao mínimo existencial, reside em uma dupla função: positiva e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

negativa, prestação e defesa. É negativo, pois o referido direito fundamental é

exercido como um limite à atuação dos agentes públicos. É positivo, pois “impõe

para o Estado o dever de executar prestações indispensáveis ao mínimo existencial”

(SARLET, 2015, apud, RESENDE, 2017, p. 277). De acordo com Sarlet (2015):

A proteção de patamares mínimos de dignidade não permite a


defesa de uma gratuidade absoluta no fornecimento de água
potável. Contudo, não se pode perder de vista que a ausência de
acesso à água em quantidade mínima suficiente ao atendimento das
necessidades básicas de sobrevivência poderá caracterizar violação
ao princípio da dignidade humana, ao direito à vida e ao direito
fundamental ao mínimo existencial (SARLET, 2015, p. 422, apud,
RESENDE, 2017, p. 280).

Portanto nos casos de inadimplência involuntária do indivíduo, sobretudo

o de baixa renda, o Estado deverá fornecer, pelo menos “50 litros por pessoa ao dia”,

ou seja, não pode interromper completamente o fornecimento de água potável, pois

caso contrário estaria violando o mínimo existencial, a dignidade humana e o direito

à vida, pois de acordo com a OMS essa é a “quantidade mínima necessária para

atender as necessidades básicas pessoais e domésticas” (HOWARD, 2003, p. 1, apud,

RESENDE, 2017, p. 281). De acordo com Rangel:

Diante do cenário apresentado, em especial as considerações tecidas


a respeito do ideário de mínimo existencial social, salta aos olhos
que o acesso à água potável, na contemporaneidade, reveste-se de
aspecto fundamental para o ser humano, sendo, inclusive, dotado
de proeminência para realização de aspectos inerentes à dignidade
da pessoa humana. É perceptível, desta maneira, que o tema
reclama proteção jurídica expressa, em prol de cada pessoa, a fim
de, em primeiro e último momento, promover a dignidade em seus
plurais e diversificados sentidos. Trata-se de alargar o rol dos
direitos humanos e introduzir temática proeminente em seu rol,
conferindo-lhe a proeminência necessária. É fato que a Constituição

586
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da República Federativa do Brasil de 1988, apesar de


reconhecidamente garantística, não contemplou o acesso à água
potável como direito fundamental, apesar de documentos
internacionais colocarem em destaque tal aspecto (RANGEL, 2016,
s.p.).

O direito humano fundamental de acesso à água precisa ser discutido e

tratado como prioridade pelas instituições sociais e órgãos estatais, bem como por

cada indivíduo da sociedade. A partir do momento que se estabelece o direito à

água como um direito fundamental, é necessária uma mudança de comportamento,

tanto nas atividades desenvolvidas pelo Estado quanto no comportamento da

sociedade. É, portanto dever do Estado legislador “elaborar leis que priorizem a

proteção e a promoção do direito fundamental”, ao Estado administrador compete

estabelecer políticas públicas, a exemplo o Programa Nacional de Apoio e Captação

de Água da Chuva e outras Tecnologias Sociais (Programa Cisternas) e por fim, ao

Estado prestador de serviços cabe o dever de apreciar o conflito e aclarar quais

meios irão concretizar tal direito humano fundamental (RANGEL, 2016, s.p.).

CONCLUSÃO

A falta de acesso à água potável é violadora dos direitos humanos, uma vez

que o Comentário Geral Nº 15 prevê que todos terão acesso à água potável em

quantidade adequada para atender suas necessidades essenciais. O acesso à água

potável integra o mínimo existencial, pois esse compreende as condições mínimas

para vivência humana digna.

Tal discussão se faz importante perante o desconhecimento e desdenho que

se nota atualmente com relação aos direitos humanos e sua positivação. A violação

do direito de acesso à água potável deve ser discutida exaustivamente, até que se

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

possa apontar, com apoio da positivação na legislação se for preciso, soluções que

busquem sanar tal problema. Para início é importante uma discussão saudável entre

governos e sociedades, com escopo de chegar a um conjunto de deveres, como

exemplo o investimento em tratamento de água e o combate ao desperdício. O

mínimo existencial serve como base para a exigibilidade da garantia do direito de

acesso à água, pois a violação desse direito fere uma série de normas internacionais

que versam sobre Direitos Humanos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A EXPLICITAÇÃO DA NECROPOLÍTICA SOBRE CORPOS

ENCARCERADOS EM TEMPOS DE PANDEMIA FRENTE AO

DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Nikaelly Lopes de Freitas175


Bruna Souza Paula176

RESUMO
A saúde é um direito fundamental de acordo com a ótica constitucional brasileira, segundo
a qual todas as pessoas são titulares, sem acepção de nenhuma natureza. Todavia, muitos
fatores socioeconômicos ainda determinam aqueles que terão, ou em que condições terão,
acesso ao atendimento, tratamento e prevenção médica. Nesse sentido, em razão de suas
condições de higiene, acesso à saúde e disposição do espaço, unidades prisionais tem sido,
historicamente, epicentros de doenças infectocontagiosas. Desse modo, o presente estudo
baseado em revisão bibliográfica, demonstra de que forma a pandemia de COVID-19,
aliada à inobservância do direito fundamental à saúde, tem agido, ou pode agir, nos
ambientes carcerários como intensificação do extermínio necropolítico. Para tanto, analisa
a efetividade das políticas públicas sociais de direito universal à saúde no ambiente
prisional, para em seguida tratar da necropolítica que permeia o reconhecido estado de
coisas inconstitucional e seu agravamento diante da crise sanitária.

Palavras-chave: direito à saúde; encarceramento em massa; necropolítica; direitos


humanos; pandemia.

ABSTRACT
Health is a fundamental right according to the Brazilian constitutional perspective,
according to which all people are entitled. However, many socioeconomic factors still
determine those who will have, or under what conditions they will have, access to care,
treatment and medical prevention. In this sense, due to their hygiene conditions, access to
health and space provision, prison units have historically been epicenters of infectious
diseases. Thus, the present study, based on a bibliographic review, demonstrates how the

175
Advogada. Pós-graduanda em Direito Internacional e Direito Humanos pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharelanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará.
Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais (GEDAI/UFC). Endereço eletrônico:
nikaelly_lopes@hotmail.com. Currículo: http://lattes.cnpq.br/3857380840307158.
176
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Mestre em Ciências Jurídico-
Políticas pela Universidade de Lisboa. Endereço eletrônico: brunasouzap@gmail.com. Currículo:
http://lattes.cnpq.br/4520240823157056.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

COVID-19 pandemic, combined with the non-observance of the fundamental right to


health, has acted, or can act, in prison environments as an intensification of the
necropolitical extermination. To this end, it analyzes the effectiveness of social public
policies with a universal right to health in the prison environment, and then deals with the
necropolitics that permeate the recognized unconstitutional state of affairs and its
aggravation in the face of the health crisis.

Keywords: right to health; mass incarceration; necropolitics; human rights; pandemic.

INTRODUÇÃO

Em decorrência do princípio da dignidade humana, o direito à saúde é um

direito fundamental expresso na Constituição Brasileira do qual todas as pessoas

são titulares, incluindo-se, aquelas que se encontram cumprindo pena privativa de

liberdade. Há que se considerar que, o fato de terem contrariado a lei, não faz com

que sua dignidade deva ser suprimida no meio carcerário, devendo serem

resguardados todos os direitos não atingidos pela sentença.

Seguindo este pensamento, o preso não deve ser entendido como mero objeto

da execução penal e sim, segundo reflexo do princípio da igualdade, como ser

humano e sujeito de direitos. Ocorre que, a situação dos presídios brasileiros,

permeado pela constante violação da dignidade das pessoas encarceradas, é bem

diferente daquela idealizada e positivada pela Constituição Federal de 1988 e

demais instrumentos de proteção dos direitos humanos.

Nesse diapasão, diante da atual crise sanitária mundial provocada pela

pandemia de COVID-19, os ambientes carcerários têm sido objeto de bastante

preocupação, pois, na ausência de uma vacina ou medicamento comprovadamente

eficaz, as medidas de enfrentamento e combate ao vírus incluem, principalmente,

os cuidados com a higiene pessoal, o isolamento social e a não aglomeração, meios

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de difícil aplicação no cárcere, além de expor as muitas deficiências existentes deste

ambiente.

Nesse sentido e a partir do conceito de necropolítica estabelecido por Achille

Mbembe (2018), entende-se que a inércia na efetivação dos direitos e garantias

fundamentais da pessoa presa, não são fruto do acaso, mas parte de uma política de

como lidar com corpos elimináveis, cujo valor social foi perdido, antes mesmo do

cometimento de qualquer crime. Nesse contexto e diante do cenário pandêmico,

verifica-se que houve uma explicitação nas práticas estatais de exercer o controle

sobre a mortalidade (MBEMBE, 2018, p. 05), demonstrada pela manutenção da

prisão, inclusive, de pessoas com comorbidades, em ambientes sanitariamente

impróprios.

Diante do exposto, pretende-se com este artigo responder o questionamento

pungente: a política nacional de enfretamento da pandemia nos ambientes

carcerários aliado a inobservância do direito a saúde dos presos são instrumentos

de extermínio necropolítico?

Sendo assim, a presente pesquisa, baseada em revisão bibliográfica, pretende

demonstrar como a não-garantia do direito à saúde, aliado ao estado de coisas

inconstitucionais em que se encontram as unidades prisionais, se concretizam como

expressão da necropolítica dos corpos encarcerados. Para tanto, objetiva analisar-

se-á a efetividade da tutela jurídica do direito à saúde dos presos para destacar como

o agravamento do quadro penitenciário em razão da crise sanitária provocada pelo

COVID-19, pode ter consequências desastrosas para as pessoas presas.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE NO MEIO PRISIONAL

A Constituição brasileira em vigor, ao estabelecer o respeito à integridade física

e moral dos presos, reconhece que devem ser preservados todos os direitos que

comtemplam uma pessoa livre, com exceção daqueles incompatíveis com a sua

condição peculiar de preso, permanecendo, portanto, como sujeito dos demais

direitos e garantias fundamentais (MORAES, 1998, p. 241).

Entre estes direitos, está o direito à saúde, fundamental segundo a ótica

constitucional e estabelecido pelo artigo 196 da Constituição Federal de 1988, de

acordo com o qual fica estabelecido que “a saúde é direito de todos e dever do

Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do

risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e

serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).

Por esta concepção, o Estado tem o dever de não somente tratar os enfermos,

mas promover a profilaxia, evitando o adoecimento da população por meio de ações

positivas ou negativas, diminuindo riscos à saúde de todos e se abstendo de

condutas que prejudiquem a sua integridade (CUNHA JÚNIOR, 2018, p. 680),

ampliando o conceito reducionista que outrora imperava, em que a proteção da

saúde se limitava ao combate às endemias e epidemias (STURZA; CORRÊA, 2015,

p. 404).

A saúde constitui, portanto, direito orientado pelo princípio da universalidade

e igualdade, sem o qual nenhum outro direito poderá ser plenamente satisfeito,

estando diretamente ligado ao direito à vida e ao bem viver. Para a World Health

Organization – WHO, a saúde é definida como “um estado de completo bem-estar

físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (WHO,

1946). Por este panorama, a Pan American Health Organization – PAHO, alerta que

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a saúde deve ser observada segundo as características do indivíduo, do espaço e do

tempo, sendo necessário determinar grupos com necessidade prioritárias e

desigualdades em termos de saúde (PAHO, 2020).

Por sua própria natureza, a situação de encarceramento não deve reduzir ou

inviabilizar o direito à saúde, sob pena de desrespeitar o princípio estruturante da

dignidade da pessoa humana. Por esta concepção, afirma Ingo Wolfgang Sarlet que

onde se ausenta o respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano,

onde as condições básicas para uma existência digna não forem asseguradas e

“onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a

igualdade e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente

assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana” (SARLET,

2011, p. 56).

Para a World Health Organization (WHO), além do respeito aos direitos

humanos de todos, existem ainda outras razões para que o Estado priorize a

promoção da saúde prisional, elas incluem, principalmente, o fato de que a saúde

prisional tem grande impacto na saúde populacional como um todo. Isto é, entre a

população carcerária os agravos em saúde são ainda mais frequentes que na

população em geral o que refletirá na comunidade caso não sejam tratadas, mas em

caso de tratamento adequado, pode significar a redução de iniquidades em saúde,

considerando ainda a situação socioeconômica dos presos e egressos. Desse modo,

promover a saúde prisional é promover a justiça social (ENGGIST et al, 2014, p. 02).

A saúde também é abordada no sistema global de proteção dos Direitos

Humanos, de modo que as Regras Mínimas para Tratamento de Presos – Nelson

Mandela Rules, recomendam que os locais destinados aos reclusos, principalmente

os dormitórios, devem satisfazer todas as exigências de higiene e saúde, levando-se

595
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

em consideração as condições climáticas 177 e, especialmente, o espaço mínimo, a

iluminação, o aquecimento e a ventilação, devendo ainda, todas as zonas do

estabelecimento prisional utilizadas se manterem conservadas e limpas (UNODC,

2015). Da mesma forma, o direito à saúde, também será compreendido pelo

fornecimento de alimentação de valor nutritivo adequado, de água potável,

vestimenta adequada, além de exercícios e recreação. As regras também

determinam que:

A prestação de serviços médicos aos reclusos é da responsabilidade


do Estado. Os reclusos devem poder usufruir dos mesmos padrões
de serviços de saúde disponíveis à comunidade e ter acesso gratuito
aos serviços de saúde necessários, sem discriminação em razão da
sua situação jurídica (UNODC, 2015).

Buscando a concretização da dignidade no ambiente prisional, o direito à saúde

da população carcerária também está tutelado pela Lei de Execuções Penais – LEP,

a qual dispõe que a “assistência ao preso e ao internado é dever do Estado”,

esclarecendo que a assistência se estenderá ao âmbito material, jurídico,

educacional, social, religioso e de saúde. Do mesmo modo, refletindo os ideais

constitucionais, a LEP estabelece que “a assistência à saúde do preso e do internado

de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico

e odontológico” (BRASIL, 1984).

Assim, “o direito a saúde, enquanto típico direito social, implica em prestações

positivas do Estado, sendo indiscutível o relevo que a questão assume na execução

da pena de prisão, face às graves carências sanitárias que a população carcerária

177
Nesse sentido, o STJ no início deste ano atendendo a um pedido da Defensoria Pública de São Paulo e em
acordo com as Regras de Mandela, estabeleceu que deveriam fornecer banho quente aos presos durante o
inverno.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

tradicionalmente apresenta” (STURZA; CORRÊA, 2015, p. 410). Nesse sentido,

Sturza e Corrêa (2015, p. 410) esclarecem que o Estado ao privar as pessoas de sua

liberdade, assume a responsabilidade de zelar pela sua saúde, tanto em relação às

condições nas quais detêm, quanto em termos de tratamentos individualizado

sempre que necessário.

Diante do robusto arcabouço normativo, foram elaboradas políticas públicas de

saúde com o fim de dar efetividade as leis, por meio da promoção do acesso

universal às ações e serviços e do atendimento às necessidades especificas no

ambiente prisional. Nesse contexto, o acesso das pessoas privadas de liberdade aos

serviços de saúde está submetido aos cuidados do Sistema Único de Saúde (SUS)

por meio da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de

Liberdade no Sistema Prisional – PNAISP, segundo a qual a atenção básica deverá

ser ofertada por meio das equipes de Atenção Básica das Unidades Básicas de Saúde

ou por meio das Equipe de Saúde do Sistema Prisional – ESP (BRASIL, 2014).

A referida política tem por alguns de seus princípios o respeito aos direitos

humanos e à justiça social, a integralidade da atenção à saúde da população privada

de liberdade no conjunto de ações de promoção, proteção, prevenção, assistência,

recuperação e vigilância em saúde, executadas nos diferentes níveis de atenção,

além da promoção de iniciativas de ambiência humanizada e saudável com vistas à

garantia da proteção dos direitos dessas pessoas e a valorização de mecanismos de

participação popular e controle social nos processos de formulação e gestão de

políticas para atenção à saúde das pessoas privadas de liberdade (BRASIL, 2014). O

referido plano é entendido como “uma das mais significativas experiências de

humanização no sistema de justiça criminal do país” por ter viabilizado condições

importantes e orientado os governos na busca de congruências entre a execução

penal e o SUS, de modo a possibilitar relativa visibilidade à população custodiada

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e suas demandas por atenção à saúde (Schmitt et al, 2019, p. 19). Todavia, o

positivado segue muito distante da realidade prática, ainda em 2020, dos 927

municípios com prisões, somente em 441 há alguma unidade prisional aderiu ao

plano.

Do mesmo modo, segundo a Resolução n.º 01 de 2009 do Conselho Nacional de

Política Criminal e Penitenciária – CNPCP (BRASIL, 2009), a cada 500 presos deve

haver, na área da saúde, uma equipe técnica formada por um médico clínico, um

enfermeiro, um odontólogo, um auxiliar de consultório dentário, um psicólogo e

nove terapeutas ocupacionais, quando hoje, existem 0,99 médico a cada mil presos

(BRASIL, 2020). Do mesmo modo, abaixo do esperado são os estados onde não

existiam farmácias ou protocolos de atendimentos específicos em caso de ocorrência

de patologias infectocontagioso, carecendo ainda de atendimento médico

emergencial (Schmitt et al, 2019, p. 19).

Assim, a prestação de cuidados de saúde encontra inúmeros obstáculos nas

unidades prisionais, instituições projetadas essencialmente em torno de questões

concernentes a segurança e punição (ENGGIST et al, 2014, p. 02). Desse modo,

embora o direito fundamental à saúde das pessoas presas esteja amplamente

tutelado em dispositivos nacionais e internacionais, enquanto direitos humanos

basilares reconhecidos pelo Estado, a consagração normativa por si só, não tem sido

suficiente para que pessoas encarceradas experimentem a efetivação desse direito

por meio dos acesso aos serviços médicos eletivos e emergenciais, do

aprisionamento em instalações sanitárias adequadas ou mesmo do alcance de

padrões básicos de higiene.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

2 A NECROPOLÍTICA NO AMBIENTE CARCERÁRIO BRASILEIRO

“A cidade do colonizado [...] é um lugar de má fama, povoado por homens


de má reputação. Lá eles nascem, pouco importa onde ou como; morrem
lá, não importa onde ou como. É um mundo sem espaço; os homens vivem
uns sobre os outros. A cidade do colonizado é uma cidade com fome, fome
de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é
uma vila agachada, uma cidade ajoelhada”. (Franz Fanon)

O sistema penitenciário vive uma profunda crise, onde a constante violação dos

direitos fundamentais e dignidade das pessoas presas, em oposição ao próprio

ordenamento jurídico, é amplamente conhecida, refletindo ainda valores medievais

que levaram à criação do sistema punitivo que, hoje, ainda enxerga as penitenciárias

como calabouços destinados a custódia e tortura daqueles que infringiram as leis.

Desse modo, “nosso pensamento é condicionado a pensar as prisões como algo

inevitável para quaisquer transgressões convencionadas socialmente. Portanto, a

punição já foi naturalizada no imaginário social” (BORGES, 2019, p. 28).

A própria concepção de crise, resta confrontada pela presente normalidade,

tendo em vista que a violação de direitos e, mais recentemente, o reconhecido estado

de coisas inconstitucional178 se arrasta desde a sua concepção. Para Boaventura de

Sousa Santos, “a ideia de crise permanente é um oximoro, já que, no sentido

etimológico, a crise é por natureza excepcional e passageira”, de modo que o

“objetivo da crise permanente é não ser resolvida” (SANTOS, 2020).

Como retrata Franco (2004, p. 21), “os seres humanos são, como nunca foram no

passado, e apenas nos textos escritos, tão iguais em direitos, mas,

178
“O reconhecimento de um ECI [estado de coisas inconstitucional] pressupõe, dentro dos parâmetros fixados
pela Corte Constitucional colombiana, especialmente nas tutelas T-25/2004 e T-153, que exista grave e massiva
violação dos direitos fundamentais, uma omissão persistente do Estado em resolvê-la e, ainda, um litígio
estrutural a demandar soluções interinstitucionais para os problemas” (FERREIRA; ARAÚJO, 2016, p. 69). No
Brasil, tal condição foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal por meio da Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental n.º 347.

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desproporcionalmente, tão desiguais em concreto”. Assim, em detrimento do

estrutural valor da dignidade humana e sua ampla tutela legal, o sistema de justiça

criminal e, especialmente, o sistema prisional, perpetua-se enquanto mecanismo

violador de princípios constitucionais básicos e tratados internacionais de proteção

dos direitos humanos assumidos pelo Brasil, contribuindo para a perpetuação da

desigualdade social e revelando que, tirania e vingança, são combustíveis para o

direito de punir.

Para Espinoza (2004, p. 53) o sistema criminal se destaca por ser uma entidade

seletista e perversa, que recruta sua clientela entre os mais miseráveis, seja para

criminalizá-la ou para vitimizá-la. Assim, a realidade que amontoa os apenados em

locais insalubres, sem acesso à educação, saúde e segurança, enquanto aguarda-se

que, ao fim de suas penas, estejam ressocializados e não voltem a incorrer em novos

crimes, tem falhado e se provado ineficaz, principalmente, nos países em que o

acesso aos direitos básicos é considerado um privilégio para a população como um

todo.

Todavia, nesta instituição, regulamentada por uma infinidade de leis que

buscam justificar a soberania do Estado para o uso da violência legítima (WEBER,

2003, p. 09), o ambiente prisional opera a partir de regras, condutas e códigos

próprios, existindo como um espaço cujo ordenamento jurídico se encontra

suspenso, onde o direito incide seletivamente. Desse modo, embora leis determinem

a assistência integral aos presos e a sua integridade, o ambiente carcerário é

permeado pela violação de direitos, materializada não só por meio da violência

física, moral e verbal, mas pela precarização das condições de aprisionamento, a

superlotação que eleva a insegurança e impõe condições tortuosas onde presos não

conseguem deitar ou sentar ao mesmo tempo, a falta de água potável e materiais de

higiene, a má qualidade da alimentação, a deficiência no acesso à saúde e a corrosão

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da identidade. Desse modo, tais violências vão modificando-se do controle para o

extermínio necropolítico (BORGES, 2019, p. 27), que atua sobre vidas cuja

experiência se constitui em termos atravessados pela negação de sua humanidade

plena, expondo, sobremaneira, o racismo do estado (FOUCAULT, 2005).

Isto é, percebe-se que a gestão dos corpos indesejáveis dentro do sistema

prisional se materializa enquanto expressão da necropolítica, termo cunhado por

Achille Mbembe (2018), segundo o qual se expressa pelo poder de ditar quem deve

viver e quem deve morrer. Segundo Borges (2017), trata-se do “poder de

determinação sobre a vida e a morte ao desprover o status político dos sujeitos, onde

a diminuição ao biológico desumaniza e abre espaço para todo tipo de

arbitrariedade e inumanidade”.

Destaque-se que para Achille Mbembe (2018, p. 05), “matar ou deixar viver

constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser soberano é

exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e

manifestação de poder”.

Não é exagero expor dessa forma quando existe um discurso social e

oficialmente consolidado e amplamente difundido de que, “bandido bom é bandido

morto”, onde o sujeito da frase tem endereço, situação socioeconômica e cor de pele

bem definidas. Mbembe (2018, p. 20) defende que:

A percepção da existência do Outro como um atentado contra a


minha vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja
eliminação biofísica reforçaria o meu potencial de vida e segurança,
é este, penso eu, um dos muitos imaginários de soberania,
característicos tanto da primeira quanto da última modernidade.

Por essa razão, Mbembe trata da expressão da soberania como o direito de

matar (droit de glaive), a partir da correlação entre o conceito de biopoder de Michel

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Foucault (2005) e os conceitos de estado de exceção e de sítio. Pois em tais

“instâncias, o poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente se refere

e apela à exceção, à emergência e a noção ficcional do inimigo”, ao mesmo tempo

em que trabalha para produzir a exceção, a emergência e o inimigo ficcional

(MBEMBE, 2018, p. 16-17). A soberania, por sua vez, por ser definida como “um

duplo processo de “autoinstituição” e “autolimitação” (fixando em si os próprios

limites para si mesmo)” podendo ser mobilizada para a instrumentalização

generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e

populações, a partir da “capacidade de definir quem importa e quem não importa,

quem é descartável e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 10; p. 41).

O autor esclarece que ao tratar de terror na modernidade, faz-se necessário se

debruçar sobre aquela que pode ser considerada uma das primeiras manifestações

da experimentação biopolítica: a escravidão, a qual, em muitos aspectos, manifesta

a figura “emblemática e paradoxal do estado de exceção” em que a figura do

escravizado aparece sob s condição de uma tripla perda que determina uma

dominação absoluta. A perda de um “lar”, a perda de direitos sobre o corpo e a

perda do estatuto político” resultando em uma “alienação de nascença e uma morte

social (que é a expulsão da humanidade)” (MBEMBE, 2018, p. 27).

Certamente, a escravidão remete a uma violação sistêmica de direitos, de

apropriação e negação do outro institucionalizada, cuja características de

degradação humana e tratamentos cruéis não devem ser vulgarizadas. Todavia,

percebe-se que o sistema de justiça é inseparável das estruturas que racistas derivam

da escravização (DHESCA, 2020), de modo que, privadas de liberdade, as pessoas

presas passam por um processo totalizante que se traduz na deterioração da

identidade, onde por meio da segregação, as pessoas presas são destituídas, até

mesmo, do controle das informações sobre si mesmas e de sua rotina (GOFFMAN,

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2019, p. 28) de forma que o encarcerado também aparece como “uma sombra

personificada” cuja vida, por vezes, em muitos aspectos, é uma forma “de morte-

em-vida” (MBEMBE, 2018, p. 27-29).

Assim, pode-se verificar no sistema prisional, a manifestação do “deixar

morrer” e do “expor à morte” de diversos modos, como por exemplo, pelo

aprisionamento de organizações criminosas rivais em um mesmo estabelecimento

penal179, pela precarização dos meios de vida e da saúde, bem como pela exposição

a doenças diversas e negligência da saúde mental dos aprisionados. Através das

ações e omissões concretas do Estado, há a gerência da vida, dos modos de

sobrevivência e da morte da população prisional, como pode ser visto pelo quadro

abaixo fornecido pelo Levantamento de Informações Penitenciárias, que informa o

total de mortes no ano de 2015 a cada 10 mil pessoas privadas de liberdade (BRASIL,

2016).

179
Sobre isso, Moura explica que nesse “espaço necropolítico de gestão dos indesejáveis, adstritos a uma
lógica colonial, torna a violência um fim em si mesmo. Um fim para (sobre)viver” (MOURA, 2019, p. 14).

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Na referida tabela, se consegue perceber a existência de estados com uma

expressiva população prisional cuja informação não foi informada, como o Rio de

Janeiro, onde o número de morte em presídios aumentou dez vezes na última

década (DPRJ, 2018) 180 . Destaca-se também o número de mortes cuja causa foi

desconhecida, principalmente, no Estado do Ceará. No levantamento realizado em

2018, a taxa de mortalidade no sistema penitenciário era de 15,2 óbitos para cada 10

mil pessoas presas (BRASIL, 2018). Já entre julho e dezembro de 2019, morreram

1.091 pessoas no sistema penitenciário, sendo 67,55% das mortes em presídios

masculinos e 70,9% nos presídios femininos, decorrentes de motivos relacionados a

saúde.

No Rio de Janeiro em 2018, a Defensoria Pública do Estado verificou que 150

pessoas presas aguardavam atendimento oftalmológico, sem sucesso, apesar do

risco de ficarem cegas (DPRJ, 2018). De acordo com o estudo, naquele ano, 53

pessoas morreram de tuberculose, pneumonias e complicações decorrentes de

infecções pulmonares, sendo que, desse universo, 35 tinham menos de 40 anos de

idade. Tais “mortes invisíveis, tão comuns, são fruto de um espaço inserido um

dispositivo de soberania, que torna as vidas insignificantes e violáveis (MOURA,

2019, p. 13).

Dessa forma verifica-se o cárcere como ambiente em que se proliferam as

condições práticas do exercício do poder de expor à morte, por promover, assim

como os campos de concentração, locais em que os ocupantes são “desprovidos de

estatuto político e reduzidos a corpos biológicos” (MBEMBE, 2018, p. 06-07) os quais

já sofriam, na maioria das vezes, de exclusão social crônica desde o nascimento.

180
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro relatou, em 2018, que em 1998, 26 mortes foram
registradas no sistema prisional carioca, enquanto em 2017 o número saltou para 266. No mesmo documento,
narra-se que 30 dos 83 presos mortos entre 2014 e 2015, apresentavam sinais de emagrecimento excessivo e
desnutrição (DPRJ, 2018).

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Ademais, o enfraquecimento do sistema imunológico e a condições precárias de

higiene, aliados a exposição a violências e doenças diversas faz com que o sistema

prisional, seja especialmente propicio para o aprofundamento de uma crise como a

atualmente vivenciada pelo novo coronavírus, de modo que a necropolítica se

manifesta de modo acentuado pela degradação da saúde dos aprisionados, pela

promoção do enfraquecimento dos corpos, do adoecimento e da morte.

3 A INTENSIFICAÇÃO DA NECROPOLÍTICA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Como anteriormente exposto, a precariedade do sistema penitenciário e a

exposição continuada a patologias diversas, que fazem que com que ambientes

prisionais sejam incubadoras para a proliferação de doenças (NOWOTNY, 2020, p.

967), não fazem parte de uma realidade implementada a partir da pandemia

provocada pelo novo corona vírus, tendo em vista que essas são características

presentes desde a concepção do sistema punitivo. Contudo, a realidade imposta

pela emergência sanitária, intensificou os seus mecanismos, causando mudanças

“no modo como governos, instituições e população naturalizam a gestão da vida

em nome da sobrevivência” (AGAMBEN, 2020).

Desse modo, na ausência de uma vacina ou remédio comprovadamente eficaz

no combate ao SARS-CoV-2, a profilaxia, por meio do rígido distanciamento social

e o reforço com os cuidados básicos de higiene (MATTEW et al, 2020, p. 2.075),

permanecem como os principais meios de diminuir os riscos de contágio pela

doença que já atingiu 28.553.659 de pessoas no mundo, das quais 917.082 vieram a

óbito181. Assim, diante da atual crise sanitária mundial o encarceramento em massa

se revela ainda mais preocupante, sendo a população prisional submetida a um

181
Verificado pela última vez em 12 de setembro de 2020 em Mamoon e Rasskin (2020).

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risco desproporcionalmente alto de contrair o vírus (HENRY, 2020, p. 537;

BARNERT; AHALT; WILLIAMS, 2020; HRW, 2020; SLOANE, 2020; WHO, 2020).

Historicamente, instituições prisionais tem sido o epicentro de surtos

infectocontagiosos, tendo taxas de infecção superiores às de comunidades não

encarceradas (FRANCO-PAREDES, 2020; KINNER et al, 2020). Estima-se que a

infecção por coronavírus seja 15% ainda maior entre a população carcerária 182, de

modo que protocolos de atuação e planos de contenção foram adotados pela maioria

dos países onde a crise se instaurou (DEPEN, 2020).

Em unidades prisionais como as que compõem o sistema prisional brasileiro, a

situação pode ser ainda mais grave (FRANCO-PAREDES, 2020). Isso porque, além

das precárias condições de saúde e higiene, o déficit de vagas chega a 303.112

(INFOPEN, 2018) compelindo à aglomeração os custodiados, onde não resta espaço

para livre circulação de vento, cuidados básicos de higiene ou de condições

sanitárias adequadas, situação que, sobremaneira, afeta a imunidade das pessoas

presas (INFOPEN, 2019).

Estima-se que 6% (seis por cento) dos casos de contaminação por corona vírus

evoluam em sua forma mais grave, apresentando insuficiência pulmonar, choque

séptico, falência de órgãos e risco de morte, sendo idosos, gestantes, pessoas com

doenças crônicas, imunossupressoras e respiratórias, ou portadoras de outras

comorbidades preexistentes como diabetes, tuberculose, doenças renais e HIV,

especialmente vulneráveis a seu modo mais severo (WHO, 2020).

Atualmente, o sistema prisional brasileiro, já soma 23.056 presos contaminados,

4.633 casos suspeitos e 107 óbitos183 provocados por Covid-19 (DEPEN, 2020), mas

182
Segundo Barnert, Ahalt e Williams (2020, p. 964), em 29 de fevereiro de 2020 quase metade dos casos de
COVID-19 reportados em Wuhan, na China, eram do sistema prisional da cidade.
183
Dados acessados até o dia 12 de setembro de 2020. Disponível em:
https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYThhMjk5YjgtZWQwYS00ODlkLTg4NDgtZTFhMTgzYmQ2MGVlIiwidC
I6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9. Acesso em: 17 maio 2020.

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o número pode ser ainda maior. As pessoas presas constituem parcela populacional

permanentemente exposta a precarização da vida em ambientes que abrigam 31.742

presos com comorbidades, além de 11.374 pessoas com mais de 60 anos, ao passo

que somente 66,7% das pessoas encarceradas se encontram em unidades que

contam com módulos de saúde (INFOPEN, 2018, p. 22).

O próprio grupo de risco em razão da idade, deve ser interpretado segundo os

moldes da realidade carcerária, havendo que se considerar a situação peculiar da

pessoa presa, tendo em vista que neste contexto há aceleração do processo de

envelhecimento (DAVIS; KLEIN, 2020) e adoecimento, o que pode ser verificado

pelo número de mortes, mesmo antes da pandemia, entre presos com menos de 40

anos de idade em razão de doenças pulmonares no Rio de Janeiro, expostos na seção

anterior.

A Lei de Execuções Penais brasileira determina que “quando o estabelecimento

penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será

prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento”

(BRASIL, 1984). Todavia, o atendimento médico extramuros implica na mobilização

de escolta policial e transporte, investimento de tempo, pessoas e recursos, de modo

que a administração penitenciária pode relutar em aplicar tanto capital em um único

preso (BURKI, 2020).

Desse modo, para Santos (2020), “qualquer quarentena é sempre

discriminatória, mais difícil para uns grupos sociais que para outros” que têm em

comum alguma vulnerabilidade social precedente que se agrava com ela, de modo

que, “quando o surto ocorre, a vulnerabilidade aumenta, porque estão expostos à

propagação do vírus e onde os cuidados de saúde nunca chegam” (SANTOS, 2020;

CIDH, 2020). Certamente, não se pode afirmar que o vírus opera segundo distinções

de ordem racial e de classe, ou que faça acepção de pessoas. Contudo, podemos

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dizer que as políticas de agentes do Estado (GOMES, 2020), determinam quem terá

e em que condições terá acesso aos serviços de saúde.

Isto é, além da exposição ostensiva ao adoecimento, a pessoa presa não pode

escolher ir até uma unidade de atendimento médico, tendo que ser submetida ao

crivo dos agentes prisionais a fim de que estes determinem a gravidade e a

veracidade de suas queixas, de modo que, não raramente, podem ser encaminhados

para tratamento em um estágio avançado da doença diante das limitações das

habilidades de detecção (BURKI, 2020). Isso ocorre ainda diante das claras

recomendações de que as “decisões clínicas só podem ser tomadas por profissionais

de saúde responsáveis e não podem ser modificadas ou ignoradas pela equipe

prisional não médica” (ONU, 2015).

A própria “imagem que os agentes de segurança mantêm acerca das pessoas

presas fundamenta uma desvalorização das queixas que estes últimos manifestam

quanto a seu estado de saúde. Os detentos são percebidos, muitas vezes como

incapazes, indolentes e dissimulados” (FREIRE; PONDÉ; MENDONÇA, 2012, p.

145). Isto implica na possível existência de uma expressiva subnotificação

determinada pelo número de presos que não estão recebendo tratamento adequado

ou mesmo sendo testados (BURKI, 2020).

Além disso, contrariando o disposto pela Resolução n.º 2 de 2008, do CNPCP, o

uso de algemas, a ostensiva escolta e o estigma experimentados durante o

atendimento médico externo fazem com que presos adiem ou não informem seus

sintomas, agravando seus quadros individuais e potencializando o risco de contágio

para os demais presos. Por esta concepção:

Em situações de emergência, as políticas de prevenção ou de


contenção nunca são de aplicação universal. São, pelo contrário,
seletivas. Por vezes, são aberta e intencionalmente adeptas do

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

darwinismo social: propõe-se garantir a sobrevivência dos corpos


socialmente mais valorizados, os mais aptos e os mais necessários
para a economia. Outras vezes limitam-se a esquecer ou
negligenciar os corpos desvalorizados (SANTOS, 2020).

Ainda diante do que preconiza a Resolução n.º 07 do CNPCP, publicada em

2003, o isolamento clínico por doenças infectocontagiosas no sistema prisional resta

extremamente dificultoso, não só pela sobrelotação, mas também pela estrutura

física dos presídios, que contam com insuficientes consultórios médicos (1.022),

salas de coleta de material para laboratório (470), salas de esterilização (264), salas

de descontaminação (229), observação (1.088) e até sanitários para a equipe médica

(1.552) (BRASIL, 2020).

Nesse contexto, até mesmo as essenciais medidas contendedoras de contágio,

significaram o aumento da vulnerabilidade. A suspensão de visitas e consequente

incomunicabilidade de muitos dos presos, sobre os quais o estado de vida, morte

ou doença não é possível às famílias auferir (INEGRA, 2020; DIÁRIO DO

NORDESTE, 2020), fragiliza ainda mais a manutenção de seus laços familiares e

acentua as condições de precariedade sanitária em razão da dificuldade ou

suspensão de entrega dos materiais de higiene pelas famílias e submete os presos a

dependência exclusiva da administração penitenciária na atenção de suas queixas.

Nessas condições, o aprisionamento, mesmo que por um curto período de

tempo “pode ser equivalente a uma sentença de morte” (DAVIS, KLEIN, 2020). De

modo que o desencarceramento se destaca como justa e eficaz medida de combate

a propagação do contágio pelo vírus (BARNERT; AHALT; WILLIAMS, 2020;

HENRY, 2020; BURKI, 2020, MATTHEW, 2020; NOWOTNY, 2020). Medida

adotada por países como o Irã, que liberou 70 mil presos e concedeu perdão a outros

10 mil (HEARD, 2020), mas que encontra barreira nas políticas de segurança pública

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que entendem os presos como corpos essencialmente perigosos, ainda que se trata

de uma gestante em trabalho de parto ou um idoso com a saúde extremamente

debilitada.

Nas penitenciárias brasileiras, 33,29% das pessoas aprisionadas ainda

aguardam uma sentença judicial, havendo estados em que o número de presos

preventivamente chega a 60% como no Piauí (BRASIL, 2018). Desse modo, o

Conselho Nacional de Justiça emitiu recomendação de medidas preventivas à

propagação da infecção no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo,

considerando a essencialidade da manutenção da saúde das pessoas pressas na

garantia da segurança saúde coletiva, além do alto índice de transmissibilidade do

vírus e seu agravamento no contexto prisional, recomendou que fossem realizadas

a reavaliação das prisões preventivas, priorizando-se os que se enquadrem no

grupo de risco e aqueles presos em estabelecimentos com ocupação superior à

capacidade ou que não disponham de equipe de saúde. O documento ainda

recomendou, entre outras medidas, a concessão de saídas antecipadas e prisão

domiciliar de presos que cumprem regime semiaberto e aberto, mediante condições

a serem definidas pelo Juiz da execução (CNJ, 2020).

Ainda diante da Recomendação, diversos pedidos foram reiteradamente

negados em diferentes instâncias do Poder Judiciário, sob diferentes justificativas,

como a não juntada aos autos de “evidências de que as medidas adotadas no

estabelecimento prisional para prevenir o contágio e fornecer tratamento médico

aos casos confirmados e aos detentos que se enquadrariam no grupo de risco são

ineficazes”, quando o Supremo Tribunal Federal já reconhece o estado de coisas

inconstitucional vivenciada pelo sistema prisional brasileiro (CNJ, 2020), que por si

só, representa um ambiente em que a saúde não pode prosperar. Veja que o instituto

do estado de coisas inconstitucional faz o STF reconhecer que há espaços no

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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território nacionais que a Constituição e os demais instrumentos internacionais de

direitos humanos em que o Brasil é signatário, não são aplicados, nesses ambientes

é como se nunca houvesse tido respeito constitucionais aos direitos básicos.

No Tribunal de Justiça do Amazonas, pedido foi negado mesmo diante de

quadro de doença imunossupressora184. No Acre, preso acometido por hipertensão

e diabetes também teve pedido conhecido e denegado185, o que também ocorreu

perante o Tribunal de Justiça de São Paulo em que paciente portador de câncer,

hipertensão arterial e hérnia inguinal preso em regime semiaberto 186 . Mesmo

perante o Supremo Tribunal Federal, houve o indeferimento de pedido de prisão

domiciliar em que a paciente era idosa de 75 anos, portadora de hipertensão arterial

sistêmica e diabetes tipo 2 e que cumpria pena por crime sem violência ou grave

ameaça187.

No estado de São Paulo, somente 3% dos Habeas Corpus motivados pelo

contexto provocado pelo COVID-19 foram deferidos, ainda que envolvessem

pessoas idosas, mães, gestantes e lactantes, pessoas com deficiência e mais de 5.000

presos provisórios. Em 5.960 processos envolvendo pessoas com comorbidades,

somente 134 alvarás foram expedidos (DPSP, 2020; CONJUR, 2020). As decisões se

fundamentavam no fato de que, para os julgadores, não havia agravamento do

quadro diante do quadro pandêmico ou que o contexto prisional se mostrava

inadequado, sendo, suficientes as medidas adotadas pelos estabelecimentos penais.

Por essa razão, o coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu 188 ,

impetrou Habeas Corpus coletivo n.º 596.189 perante o Superior Tribunal de Justiça,

cujos pacientes eram todas as pessoas presas preventivamente, integrantes de

184
TJAM. Habeas Corpus Criminal nº 4002620-31.2020.8.04.0000; Relator (a): Hamilton Saraiva dos Santos.
185
TJAC. Habeas Corpus Criminal nº 1000825-25.2020.8.01.0000; Relator (a): Elcio Mendes.
186
TJSP. Habeas Corpus Criminal nº 2098876-58.2020.8.26.0000; Relator (a): Otavio Rocha.
187
STF. HC nº 7000712-49.2018.1.00.0000, Relator (a): Edson Fachin.
188
STJ. HC nº 596189 (2020 – 0169244-4) – Relator (a): Sebastião Reis Júnior.

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grupos de riscos para COVID-19 acusados de crimes sem violência ou grave

ameaça. O pedido se baseava na substituição da prisão preventiva pela domiciliar.

Diferentemente do que ocorreu com a concessão do Habeas Corpus Coletivo

143.641 em que se considerou dispensável a possibilidade de identificação

individual, o pedido foi negado sob justificativa de individualização da situação de

cada preso.

Neste sentido, o judiciário é instrumentalizado como agente legitimador do que

para muitos dos presos será equivalente à pena de morte, em um ambiente em que

a doença é transformada em máquina de guerra. Ou, nas palavras de Achille

Mbembe (2018, p. 09) é a tradução explícita de que “a expressão máxima da

soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode

viver e quem deve morrer”. Se a soberania depende da exceção para a gestão da

vida (AGAMBEN, 2020), no meio prisional, há um permanente estado de

emergência a justificar medidas que em nenhuma outra parte seriam aceitas.

Assim, as prisões podem funcionar como verdadeiros amplificadores da

pandemia tendo em vista a aglomeração e os próprios fluxos de funcionamento

prisional, permeado pela chegada de novos presos e troca de turnos da equipe

penitenciária (BARNERT; AHALT; WILLIAMS, 2020; HEARD, 2020; WHO, 2020;

KINNER et al, 2020). No sistema penitenciário brasileiro, 71.903 presos foram

testados (BRASIL, 2020).

Contudo, jamais saberemos ao certo até que ponto a pandemia de corona vírus

penetrou a realidade intramuros ou seu impacto no contexto extramuros (BURKI,

2020). Com os limitados recursos de testagem e a escassez dos equipamentos de

proteção, as pessoas presas acabam não sendo enxergadas como prioridade em

qualquer tempo (HRW, 2020), “reforçando a injustiça, a discriminação, a exclusão

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social e o sofrimento injusto” (SANTOS, 2020) inerentes ao próprio cenário

excepcional, inviabilizando a quarentena dentro da quarentena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o presente estudo, não se tinha como objetivo aprofundar-se nos

pormenores da necropolítica, mas expor como ela pode operar no sistema

carcerário, demonstrando que as narrativas de poder sobre a vida e a política de

morte, tem início muito antes do perecimento total do corpo biológico, quando pela

imposição da exclusão social, do silenciamento, pelo epistemicídio e pela submissão

dos corpos.

Por todo o exposto, é possível perceber que não só o sistema penitenciário

brasileiro tem falhado e se mostrado ineficaz na garantia e promoção do direito

fundamental à saúde, mas o próprio sistema de justiça criminal tem assumido

socialmente caráter, exclusivamente, punitivo, corroborando para o

aprofundamento das vulnerabilidades dos presos, o que tem refletido como morte

e doença no meio carcerário, se manifestando como a própria expressão da

necropolítica que se intensifica diante da crise sanitária provocada pelo novo

coronavírus.

Revela-se assim, a múltipla e extra penalização a que estão submetidas as

pessoas presas, cuja sentença não se limita ao determinado pelo juiz e resta

incluindo castigos corporais e contágio por doenças diversas, com as quais, na

maioria das vezes, elas não estarão econômica e psicologicamente preparadas para

lidar ao deixarem as instituições penais, de modo que em tais condições, estas

sequelas adquirem caráter de pena permanente. Destaca-se ainda, que a prisão

privativa de liberdade continua a perpetuasse em detrimento de outras formas de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pena ou medidas retributivas, demonstrada pelo número de presos provisórios que

hoje se encontram no sistema prisional, para os quais a sentença de morte, por vezes,

chega antes da sentença judicial.

Dessa forma, embora o direito fundamental à saúde das pessoas presas esteja

amplamente tutelado, em dispositivos nacionais, constitucionais e

infraconstitucionais, assim como os internacionais, enquanto direitos humanos

basilares reconhecidos pelo Estado, a consagração normativa por si só, não é

suficiente para que pessoas encarceradas experimentem a efetivação desse direito

por meio dos acesso aos serviços médicos eletivos e emergenciais, do

aprisionamento em instalações sanitárias adequadas, ou mesmo, do alcance de

padrões básicos de higiene.

Convém salutar, que não basta a publicação de leis garantindo a efetivação

desse direito, visto que o próprio fundamento da dignidade da pessoa humana,

critério axiológico e base da efetivação imediata dos direitos fundamentais assim

garante. Bem verdade, necessita-se que a pessoa presa seja enxergada como sujeitos

de direitos, como vidas e não como gastos, de modo que, para garantir direitos

humanos é necessário humanizar o sujeito.

A relutância em estabelecer políticas públicas ou a ineficiência delas no combate

a pandemia dentro do sistema carcerário brasileiro transforma os presos em objetos,

premissa de existência do postulado da dignidade, quando o ser humano, seja ele

encarcerado ou não, é transformado em objeto e não em sujeito de direitos, perde-

se de vista não são a dignidade dos apenados, mas a de todos os seres humanos.

Corpos em busca de direitos, assim é a realidade dos presos, numa paradoxal

realidade em que um direito universal não é para todos.

614
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE E O ENFRENTAMENTO

DA COVID-19 EM ÂMBITO LOCAL

Mirelle Gallas 189

RESUMO
O presente artigo objetiva trazer alternativa à soluções dos problemas sociais nacionais,
com as hipóteses de (in)viabilidade de elaboração de políticas públicas para o combate ao
COVID-19 em âmbito local, a partir de exemplo estratégico que vem sendo adotado na
prevenção de disseminação do vírus no Estado do Rio Grande do Sul, o Sistema de
Isolamento Controlado. O tema se mostra pertinente diante da necessidade de se buscar
alternativas paliativas que valorizem a singularidade e o tratamento individualizado das
diferentes realidades locais, com vistas a proteger a população da melhor forma possível,
até que não se descubra uma maneira efetiva de conter a disseminação e a letalidade da
COVID-19. As políticas públicas têm a função de contribuir ao desenvolvimento e à
diminuição das desigualdades do país, mas tem sido subutilizadas ou mal direcionadas
pelo sistema político. Para, efetivamente, atenderem ao propósito de sua criação é
necessário o melhor planejamento das ações do Estado. Nessa busca por um olhar
diferenciado para diferentes realidades, em análise aos tópicos propostos, conclui-se que o
poder local pode ser uma alternativa mais efetiva para concretização das ações positivas
em matéria de políticas públicas em matéria de saúde para o enfrentamento da COVID-19,
eis que mais próximo do cidadão, diretamente atingido pela boa ou má prestação do serviço
de saúde.

Palavras-chave: direitos sociais; políticas públicas; serviços públicos; poder local; COVID-
19.

ABSTRACT
This article aims to bring an alternative to solutions to national social problems, with the
hypothesis of (in) feasibility of developing public policies to combat COVID-19 at the local
level, based on a strategic example that has been adopted in the prevention of
dissemination. of the virus in the State of Rio Grande do Sul, the Controlled Isolation
System. The theme is relevant in view of the need to seek palliative alternatives that value
the uniqueness and the individualized treatment of different local realities, with a view to
protecting the population in the best possible way, until an effective way to contain the

189
Mestranda em Direito na linha Relações Sociais e Dimensões do Poder pelo Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade de Passo Fundo/RS; Especialista em Direito Processual Civil e Constitucional pela
Universidade de Passo Fundo/RS; Advogada inscrita na OAB/RS sob nº 51.924. E-mail:
mirellegallas@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5985510180372202.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

dissemination and the lethality of COVID-19. Public policies have the function of
contributing to the development and the reduction of inequalities in the country, but they
have been underused or misdirected by the political system. In order to effectively meet the
purpose of its creation, better planning of State actions is necessary. In this search for a
different look at different realities, in analysis of the proposed topics, it is concluded that
the local government can be a more effective alternative for the realization of positive
actions in the field of public health policies for coping with COVID-19 , behold, closer to
the citizen, directly affected by the good or bad provision of the health service.

Key-Words: social rights; public policy; popular participation; local power; COVID-19.

INTRODUÇÃO

As políticas públicas têm a função de contribuir ao desenvolvimento e com a

diminuição das desigualdades do país, mas para efetivamente atenderem ao

propósito de sua criação é necessário o melhor planejamento das ações do Estado.

Nessa busca para atendimento das diferentes realidades e efetivação de direitos,

especialmente os sociais, o poder local, como meio territorial, pode ser uma

alternativa para a efetivação das ações positivas em matéria de políticas públicas

em saúde.

Justifica-se, portanto, a relevância do presente estudo na busca de soluções para

os problemas sociais nacionais, trazendo as hipóteses de (in)viabilidade de

elaboração de políticas públicas, através do poder local, a partir de exemplo

estratégico que vem sendo adotado na prevenção de disseminação do Covid-19,

através do Sistema de Isolamento Controlado adotado no Estado do Rio Grande do

Sul, como forma de enfrentamento das diferentes realidades locais e busca à

concretização do direito à saúde.

O objetivo do presente estudo é analisar a possibilidade do poder local atuar de

forma na elaboração e na execução de políticas públicas sociais, elaboradas e

aplicadas, especificamente, para as regiões que gestiona. O método a ser utilizado é

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

o hipotético-dedutivo, partindo da análise geral de conceitos isolados para chegar

às realidades locais, com vistas a pensar soluções jurídicas para este grave problema

sanitário. O artigo está estruturado em três capítulos definidos como o direito

fundamental à saúde, onde se perpassa pela composição dos direitos fundamentais

e a importância do direito à saúde ao desenvolvimento do país.

No segundo capítulo se analisa a estrutura de formação das políticas públicas

e a importância dos conselhos para efetividade da construção das ações. Por fim, o

terceiro capítulo traz o modelo de distanciamento controlado adotado pelo Rio

Grande do Sul, seu ideário e críticas ao longo da implementação para o

enfrentamento da COVID-19 e a importância do poder local e análise das diferentes

realidades nacionais para maior efetividade das políticas públicas em matéria de

saúde.

O presente artigo não tem o condão de esgotar a matéria, mas sim apontar

medidas paliativas e avaliar a estrutura jurídica existente que trazem legalidade às

ações e podem ser incrementadas com ações novas para que em momentos de maior

regularidade de atendimento à saúde as populações possam contar com um sistema

único de saúde fortalecido e eficiente para atendimento das necessidades dos

cidadãos.

1 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

Os direitos humanos têm uma amplitude e complexidade que é

incompreensível, de forma geral, para a sociedade. Em que pese a evolução

finalística do conceito de direitos humanos e a positivação que lhes traz

reconhecimento formal, há uma grande distância entre a teoria e a prática em

matéria de direitos humanos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Consoante ensinamento de Rubio, há uma bipolaridade entre o que se diz e

o que se faz em matéria de direitos humanos. O que se diz nos apresenta como

exemplos de humanidade, civilidade e progresso, mas o que se faz é

contrabalanceado pela segurança e desenvolvimento econômico, próprios da

sociedade capitalista. (RUBIO, 2018, p. 23-37).

Estruturados ao longo de várias fases da história demarcada por rupturas e

transformações da estrutura da sociedade, bem como transformações da

mentalidade do ser humano, influenciado pelo humanismo, surgem os direitos

considerados como a primeira geração de direitos humanos: liberdade, igualdade e

fraternidade. (MARTINES, 1995, p. 115-125)

A partir do século XIX com os novos movimentos em uma sociedade que

enfrentava graves problemas sociais e econômicos em virtude dos impactos da

industrialização e a doutrina socialista, iniciaram-se os movimentos que

reivindicavam o reconhecimento de outros direitos. Buscavam que o Estado

assumisse a posição ativa na realização da justiça social. Esses direitos caracterizam-

se pela dimensão positiva. Não se tratava mais de evitar a intervenção do Estado

nas liberdades individuais, mas sim obter a liberdade através do Estado. A

sociedade buscava direitos individuais a prestações sociais estatais como a

assistência social, saúde, educação, trabalho, ou seja, o direito de usufruir do bem

estar social. (SARLET, 2012, p. 47)

Os direitos fundamentais passaram por transformações ao longo da história,

“tanto no que diz com o seu conteúdo, quanto ao que concerne à sua titularidade,

eficácia e efetivação”. (SARLET, 2012, p. 45). Nesse aspecto surgiram as “gerações”

ou “dimensões” de direitos fundamentais que coexistem.

Observa-se que com a evolução histórica dos direitos, a partir das lutas de

movimentos sociais, objetivando as suas reivindicações, seguiu-se a burocratização

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e normatização da sociedade e do ordenamento jurídico. Assim se tem a percepção

de que os direitos humanos estão restritos ao aspecto normativo e suas garantias

dependentes das políticas públicas e decisões judiciais, o que, de qualquer sorte,

não pode ser desprezado como forma de garanti-los e efetivá-los. (RUBIO, 2018, p.

34-35)

Ao lado dos direitos sociais, denominados de segunda geração, surgiram os

direitos de terceira geração que referem a proteção ao meio ambiente. O direitos de

quarta geração referem-se, “aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa

biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.”

As exigências dos direitos são sempre as mesmas — “com relação aos poderes

constituídos, apenas duas: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus

benefícios”. (BOBBIO, 2004, p. 9-11)

Os direitos à liberdade exigem obrigações puramente negativas, a abstenção de

determinados comportamentos, inclusive impostos aos órgãos públicos. Os direitos

sociais, por sua vez, somente podem ser realizados se impostas obrigações positivas

aos outros, inclusive aos órgãos públicos. Considerados a segunda geração dos

direitos fundamentais estão relacionados originalmente aos direitos ao trabalho,

saúde e educação. Bobbio aduz que tais direitos “São antinômicos no sentido de

que o desenvolvimento deles não pode proceder paralelamente: a realização

integral de uns impede a realização integral dos outros.” (BOBBIO, 2004, p. 14-15)

A Constituição de 1988, conhecida como a Constituição Cidadã, assume a

incumbência de equilibrar os direitos sociais e sua efetivação com o

desenvolvimento econômico do país, implementando condições de participação da

sociedade no processo de tomada de decisões. O princípio da Dignidade da Pessoa

Humana é corolário do próprio Estado Democrático de Direito.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

No título da “Da Ordem Social”, a partir do art. 193 da Constituição Federal

está disposto o regramento sobre o orçamento e as finanças em termos gerais, o

financiamento da seguridade social e o piso dos gastos com a saúde e educação nos

artigos 198 e 212 do mesmo diploma. Essa previsão de investimentos mínimos em

saúde e educação abrange os três níveis da Federação. A ênfase em tais dispositivos

demonstra a preocupação do constituinte de 1988 em concretizar os objetivos

fundamentais do Estado Democrático de Direito, previstos no art. 3º da Constituição

Federal, apostando na saúde e educação. Esses direitos, entre outros, fazem parte

do núcleo essencial da Constituição. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2018, p.

666-667). Ainda referem:

Por tal razão, é possível afirmar que saúde e educação são direitos
sociais que assumem uma posição preferencial no ordenamento
constitucional brasileiro, o que há de ser considerado quando da
discussão de medidas que tenham como fim estabelecer limites a
tais direitos, inclusive mediante eventual relativização dos pisos de
gasto público, que ao fim e ao cabo, assumem a condição de
garantias dos direitos à saúde e à educação. (SARLET; MARINONI;
MITIDIERO, 2018, p. 666-667)

A Constituição Federal dispõe em seu artigo 196 que a saúde como direito de

todos e dever do estado. Esse direito é garantido “mediante políticas sociais e

econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso

universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e

recuperação". (BRASIL, 1998) No artigo 197 observa-se expressamente que as ações

e serviços de saúde são de relevância pública.

No artigo 198 da Carta Magna, está previsto que as ações e serviços públicos de

saúde fazem parte de uma rede regionalizada e hierarquizada que compõem o

sistema único, observadas as diretrizes de descentralização, atendimento integral e

626
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

participação da comunidade. Essas diretrizes constituem os próprios princípios da

saúde no Brasil e surgiram a partir do projeto de reforma sanitária desenvolvido

pelo “movimento sanitarista” na década de 80. (SIMÕES, 2008, p. 126-127).

A Constituição Federal cria o SUS – Sistema Único de Saúde, como rede

regionalizada e hierarquizada que compreende todas as ações e serviços públicos

de saúde, definindo, em seu artigo 200 as suas competências e dentre elas executar

as ações de vigilância sanitária.

A Lei nº 8.080/1990, conhecida como a Lei Orgânica da Saúde (LOS), (BRASIL,

1990), regulamenta o disposto na Constituição, definindo mais detalhadamente as

competências e atribuições do SUS. Em que pese se baseie nos mesmos princípios,

acarretou um esvaziamento de políticas públicas em saúde em decorrência da

transferência de grande de suas responsabilidades à sociedade, mediante incentivo

às ações das entidades sem fins lucrativos e filantrópicas. O sistema único passou a

exercer o papel promotor e regulador das políticas, transferindo responsabilidade e

recursos a essas instituições para o atendimento da saúde. (SIMÕES, 2008, p. 128)

A LOS, alterada pela Lei nº 12.864, de 2013, estabelece em seu art. 3º, parágrafo

único, que os níveis de saúde são o reflexo da ordem social e econômica do país, e

são determinantes e condicionantes a alimentação, moradia, saneamento básico,

meio ambiente, trabalho, renda, educação, atividade física, lazer, acesso a bens e

serviços essenciais. Também a saúde condiz com ações que se destinem à garantia

de bem estar físico, mental e social, e à coletividade. (BRASIL, 2013)

Por certo, a saúde como direito fundamental social necessita de ações do Estado

para tornar este direito efetivo. Os requisitos condicionantes e determinantes de

uma saúde integral à população estão longe de ser alcançados. O Estado não tem

realizado seu papel controlador e fiscalizador de forma efetiva. Para tanto, as ações

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

devem ser melhor estabelecidas e exigidas, com planejamento e melhor

dimensionamento dos resultados que se pretende satisfazer.

Com efeito, as políticas públicas que visam o atendimento do direito à saúde

neste momento de pandemia da COVID-19 se mostraram insuficientes. Diante das

inegáveis reivindicações para o atendimento da população e o enfrentamento dessa

grave crise sanitária a questão necessita maior atenção de nossa federação, em

especial, através dos governos estadual e municipal onde as ações concretas são

exigidas pelos cidadãos.

2 AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA DE SAÚDE

Em matéria de saúde o desenvolvimento de políticas públicas deve ocorrer nos

três níveis da federação: governo federal, estadual e municipal, cabendo em geral

ao primeiro a aprovação de normas gerais. Ao Estado incumbe a normatização

supletiva e aos Municípios disciplinar os assuntos do seu peculiar interesse. A

competência da União não exclui a competência suplementar dos Estados. Somente

é suspensa a eficácia de leis estaduais no que for contrário ao estabelecido pela

norma federal.

O objetivo da política pública é atenuar os desequilíbrios e desigualdades

sociais próprios da sociedade de nosso tempo. Os próprios indivíduos ou grupos

de indivíduos que buscam o seu atendimento de forma mobilizada ou não, podem

contribuir para que sejam efetivas, mediante sua participação nos processos de

planejamento, execução e avaliação. Tanto as políticas redistributivas quanto de

reconhecimento podem ser mais efetivas se planejadas e executadas aos

destinatários locais que possuem proximidade ao poder público de seus

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

municípios, facilitando assim a participação, as informações qualitativas e outros

impactos reais.

A Constituição como expressão de uma composição social e política em

determinado momento da sociedade é a base da organização para a elaboração de

políticas públicas, observados os direitos ali estabelecidos. Nessa esfera Bucci nos

orienta:

As políticas públicas não são categoria definida e instituída pelo


direito, mas arranjos complexos, típicos da atividade político-
administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever,
compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os
valores e métodos próprios do universo jurídico. (BUCCI, 2006, p.
31)

Dessa forma, a construção de uma política pública pressupõe resignificar os

problemas da sociedade, através de condições sociopolíticas diferenciadas e uma

nova estrutura para seu atendimento no momento social em que identificadas,

através da ação do Estado. Está interligada aos princípios estruturantes da

administração pública, aos projetos, às ações, visando ao princípio da eficiência,

designando não a política do Estado, mas do público, de todos e para todos.

(MAZZA-ARZABE, 2006, p. 61-69) Enfatiza:

A positivação de metas e caminhos para consecução da política


pública reduz o campo da discricionariedade, com razão ainda
maior por tais políticas voltarem-se à realização de direitos sociais,
imprescindíveis à dignidade de cada pessoa em sociedade.
(MAZZA-ARZABE, 2006, p. 66)

Assim, a sua elaboração imprescinde de um programa que equivale ao seu

conteúdo onde se dispõe os objetivos, a reserva dos meios necessários à sua

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

implementação e o tempo necessário para aferição de seus resultados. O

fundamento da ideia de planejamento é a perseguição de fins que alterem a situação

econômica e social da sociedade. Ademais, para a elaboração das políticas há

diversos suportes legais que devem ser observados, tais como: leis, normas

infralegais, decretos, portarias, contratos internacionais, contratos de concessão de

serviço público que necessitam conciliação para melhor estratégia.

É cediço que a concretização de direitos depende da disponibilização de

recursos materiais e humanos, assumindo, portanto, frente ao poder público maior

ou menor relevância econômico-financeira e política. O financiamento dos direitos

sociais para assegurar sua efetividade, depende da previsão no orçamento público,

portanto a organização é imprescindível para a concretização de direitos.

Para tal mister são necessárias três fases, a decisão política de planejar; a

implementação do plano que relaciona o político à administração pública e o plano

em si, que exige o enfoque técnico com exame econômico. O Estado não está

organizado para a formulação e execução de uma política que permita o

desenvolvimento de forma contínua. Isso porque os planos não são precedidos de

planejamento. O planejamento é um processo racional que serve para direcionar e

coordenar a atividade estatal em suas decisões de política econômica e social. O art.

174 da Constituição de 1988 estabelece essa obrigação estatal. O plano, por sua vez,

se presta à concretização das ações. (BERCOVICI, 2006, p. 143-148)

Entre as várias alterações e inclusões inseridos à LOS ao longo dos anos,

importante registrar a Lei complementar nº 8.142/1990 que introduziu a

participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), dispondo

ainda tal legislação sobre as transferências intergovernamentais de recursos

financeiros na área da saúde. (BRASIL, 1990) Nos municípios o recebimento de

recursos fica condicionado à existência de um Conselho da Saúde. O Ministério da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Saúde enfatiza a importância da participação das comunidades locais no

desenvolvimento das políticas públicas em saúde, assim discorrendo:

A boa execução de políticas de saúde e a plena realização do direito


à saúde dependem de uma correta interpretação do direito de suas
novas funções na sociedade moderna. E o desempenho dessa nova
função está diretamente associado à aplicação integral do princípio
de participação da comunidade na gestão das políticas públicas de
saúde, compreendendo a participação na elaboração, na
regulamentação normativa, no planejamento e na execução das
políticas públicas. (BRASIL, 2006, p. 19)

Ainda, a Lei nº 8.142/1990 estabelece a paridade dos Conselhos de Saúde, a fim

de garantir a participação de todos os setores envolvidos na saúde, seja gestor,

prestador, profissional ou o usuário, sendo que este tem assegurado 50% dos

representantes. Carvalho ensina que os Conselhos de Saúde são expressões

institucionais de um processo mais amplo de reordenamento das relações Estado-

sociedade, impulsionado por forças e fatores tanto endógenos quanto exógenos ao

aparelho de Estado que se acelerou no final dos anos 80 e instituiu no país um novo

padrão de políticas sociais, caracterizado pela extensão universal dos direitos e,

portanto, das prestações sociais. (CARVALHO, 1998)

A orientação à governança mais cooperativa foi mantida com a edição da

Norma Operacional Básica – NOB 1/96 do Sistema Único de Saúde (SUS),

observando-se um fortalecimento da municipalização, mediante as bases de um

novo modelo de atendimento integral do direito à saúde, constitucionalmente

garantido.

Diante disso, independentemente da gerência dos estabelecimentos

prestadores de serviços ser estatal ou privada, a gestão da saúde de todo o sistema

municipal é da competência do poder público, respeitadas as atribuições do

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

respectivo Conselho. (RIBEIRO; MOREIRA; OUVERNEY; PINTO; SILVA) A norma

referida que define a responsabilidade do gestor público municipal em garantir

serviços à população local, assim transcrita:

4. Sistema de Saúde Municipal


A totalidade das ações e de serviços de atenção à saúde, no âmbito
do SUS, deve ser desenvolvida em um conjunto de
estabelecimentos, organizados em rede regionalizada e
hierarquizada, e disciplinados segundo subsistemas, um para cada
município - o SUS-Municipal - voltado ao atendimento integral de
sua própria população e inserido de forma indissociável no SUS, em
suas abrangências estadual e nacional.
[...] (BRASIL, 1996)

Com a aprovação do Pacto pela Saúde, em 2006, delineou-se de forma mais

clara as competências e funções e das formas de cooperação entre os entes

federados. Foram criados colegiados de gestão e que serviriam de modelo para as

futuras CIR a serem criadas no Decreto 7.508 de 2011. (RIBEIRO; MOREIRA;

OUVERNEY; PINTO; SILVA) O pacto tem três dimensões justificadas, Pacto pela

Vida, Pacto de Gestão e Pacto em Defesa do SUS. Estabelece a efetivação de acordos

entre as três esferas de gestão do SUS visando a maior efetividade, eficiência e

qualidade das ações, assim como redefine as responsabilidades coletivas pelos

resultados sanitários visando uma melhor organização e qualificação da gestão, em

função das necessidades de saúde da população e na busca da equidade social.

(BRASIL, 2006)

Através da Lei nº 12.466 de 2011 foram acrescentados artigos na LOS para

dispor sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a

organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras

providências, bem como para dispor sobre as comissões intergestores do Sistema

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Único de Saúde (SUS), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o

Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e suas

respectivas composições. (BRASIL, 2011)

O Decreto nº 7.508/2011 regulamenta dispõe sobre a organização do SUS, o

planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa,

estabelece Comissões Intergestores para pactuar o funcionamento e a organização

das ações e serviços, que serão integrados em redes de atenção à saúde. No âmbito

da União é criada a Comissão Intergestores Tripartite - CIT, vinculada ao Ministério

da Saúde para efeitos administrativos e operacionais; no âmbito do Estado é criada

a Comissão Intergestores Bipartite - CIB, vinculada à Secretaria Estadual de Saúde

para efeitos administrativos e operacionais; e a Comissão Intergestores Regional -

CIR, no âmbito regional, vinculada à Secretaria Estadual de Saúde para efeitos

administrativos e operacionais, devendo observar as diretrizes da CIB Estadual. Os

respectivos conselhos estaduais e municipais de saúde são instâncias deliberativas

superiores para a formulação de estratégias e controle da execução das políticas em

saúde. Os municípios participam, portanto, em todas as instâncias. (BRASIL, 2011)

A Constituição Federal, a Lei Orgânica da Saúde e leis complementares

posteriores, bem como toda a legislação que compõe o arcabouço legislativo

brasileiro, trazem inúmeras prerrogativas, deveres e obrigações aos entes federados,

visando a realização de ações para criar condições de vida digna à toda a população

e reduzir desigualdades sociais, entre outros aspectos. Ainda, os entes federados

estão sob a tutela da Lei de responsabilidade fiscal para aplicação de todo e qualquer

recurso. Na saúde observa-se a essencialidade da atividade e sua amplitude para

fins de promoção do bem-estar social que objetiva nosso país. Os recursos a serem

destinados observam uma previsão mínima de aplicação também pelos municípios.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Dessa forma, a criação dos Conselhos interligados ao Sistema Único de Saúde

possibilita um auxílio ao gestor municipal para definição das melhores estratégias

para alocação dos recursos, com vistas ao atendimento do direito à saúde e das

responsabilidades sanitárias à promoção e prevenção da saúde da população.

Assim, é competência também do município assegurar o direito à saúde,

assumir a responsabilidade em incentivar a participação dos cidadãos nos conselhos

municipais, tratar a saúde com extrema transparência e ofertar ações e serviços que

promovam e protejam a saúde das pessoas, previnam as doenças, e possibilitem a

recuperação de doentes. É de sua responsabilidade de seu gestor e equipes,

conhecer o município, a realidade local, suas deficiências sanitárias e os riscos

epidemiológicos possíveis para tratar sempre em sentido preventivo.

Com efeito, cabe aos municípios, uma destinação de recursos no orçamento

municipal para atendimento da saúde em seu aspecto integral, para que possa

atender as ações e serviços sob sua responsabilidade, o que engloba a promoção, o

planejamento, a organização, execução direta ou indireta, o controle, a avaliação, e

a auditoria dos serviços sob gestão municipal; bem como a participação do

processo de integração ao SUS, em âmbito regional, estadual e nacional, visando

assegurar os serviços necessários ao município que gere, bem como os recursos dos

outros entes da federação.

O estabelecimento de políticas públicas com análise das referências nacionais,

de forma exclusiva, acaba desconsiderando as realidades das diferentes regiões do

país, podendo resultar na ineficiência das ações e mau uso de recursos públicos, o

que contradiz ao preceito de desenvolvimento do país.

A utilização de instrumentos que corroborem com a participação dos cidadãos

poderá trazer maiores e melhores resultados na identificação dos problemas reais e

dimensionado das ações necessárias a serem implantadas. Conhecer as diferentes

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

realidades sociais é um pressuposto para estabelecimento de políticas públicas e

serviços públicos efetivos.

3 O ENFRENTAMENTO DA COVID-19 E O PODER LOCAL

O atendimento do direito à saúde, durante essa grave pandemia da COVID-19

evidenciou as fragilidades de nosso sistema exigindo medidas estratégicas para a

disseminação do vírus e o colapso do sistema de saúde. Restou ainda evidenciada a

imensa desigualdade nacional quanto a estrutura do sistema de saúde. A

formulação de políticas públicas deve estar atenda a tais realidades para a

efetivação do direito fundamental social à saúde, especialmente neste momento em

que as diferentes realidades nacionais se evidenciam nas condições sociais para o

enfrentamento da pandemia.

Neste momento de pandemia do Coronavírus (COVID-19), o Governo Federal

do Brasil, sem conseguir tratar de forma objetiva a questão, fortaleceu os governos

estaduais e municipais na tomada de decisões que pudessem trazer alguma

segurança ao sistema de saúde e proteger a população de suas regiões. A pandemia

do Covid-19 vem trazendo ensinamentos que não podem ser desconsiderados após

retomada das atividades de forma integral e à volta da “normalidade”. A

descentralização de ações em matéria sanitária adotadas neste momento para

prevenção e enfrentamento da epidemia pode ser um exemplo a ser observado.

Em 19 de março de 2020 foi decretado estado de calamidade pública em todo o

Estado do Rio Grande do Sul em virtude da pandemia, declarado pelo Decreto n.º

55.128, reconhecido pela Assembleia Legislativa por meio do Decreto Legislativo n.º

11.220, de 19 de março de 2020, e reiterado pelo Decreto n.º 55.154, de 1º de abril de

2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O Estado do Rio Grande do Sul adotou um Sistema de Distanciamento

Controlado através dos Decretos nº 55240 e 55241 (RIO GRANDE DO SUL, 2020),

baseados em análises técnicas, a partir de estudos de especialistas e avaliação da

contaminação em seus Municípios. Tais decretos visam a orientação de

procedimentos e a adoção de medidas de isolamento social eficientes para conter a

disseminação do vírus, bem como para equalizar as diferentes reivindicações sociais

das populações locais no que tange à regulação da abertura de estabelecimentos

comerciais possíveis a cada região, demonstrando que as diferentes realidades

devem ser enfrentadas de forma estratégica.

O Estado do Rio Grande do Sul, na forma disposta no Decreto 55240 de 2020,

teve o território segmentado em sete Macrorregiões, compostas pelos Municípios

correspondentes às Macrorregiões da Saúde, e vinte e uma Regiões correspondentes

ao agrupamento das trinta Regiões da Saúde e respectivos Municípios integrantes

para estabelecimento do sistema de distanciamento controlado. (RIO GRANDE DO

SUL, 2020)

O modelo de Distanciamento Controlado foi construído com base em critérios

de saúde e de atividade econômica, através de um sistema de bandeiras, com

protocolos obrigatórios e critérios a serem seguidos pelos diferentes setores

econômicos do Estado. Tendo por base o grau de risco de cada região, é estabelecida

a bandeira do menor ao maior risco, nas cores amarela, laranja, vermelha ou preta.

É realizado um monitoramento semanal estabelecendo-se a bandeira a ser

observada na próxima semana. Esses resultados são divulgados na sexta-feira,

podendo ser objeto de recursos pelos municípios que compõe as regiões. Quando a

nova bandeira for de risco menor, a classificação passa a valer a partir da 0h de

sábado. As regiões com risco maior, incluindo aquelas que apresentaram recursos,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

terão nova informação na segunda-feira com vigência da bandeira a partir de terça-

feira. (MODELO..., 2020)

Os protocolos adotados para cada bandeira visam dar segurança prioritária à

saúde, mas não deixam de avaliar as questões econômicas e sociais, bem como,

possibilitar que as diversas regiões analisem os dados e apresentem suas

divergências dadas as realidades locais. Os esforços empreendidos para

estabelecimento de um modelo estratégico de contenção da pandemia não surtiram

os resultados desejados acarretando inúmeras críticas quanto ao modelo adotado.

Uma das críticas apresentadas condiz com as dificuldades de organização,

registro e controle de dados, visto que as pessoas circulam e o vírus circula com elas.

Segundo o professor do campus litoral norte da Universidade Federal do Rio

Grande do Sul (UFRGS), Ricardo Dagnino, que desde 29 de fevereiro quando o vírus

se instalou, passou a acompanhar a evolução dos dados afirma que “Não tem como

controlar o vírus. Sem teste massivo e sem vacina, não tem como. Sem testar, não

tem como desenhar uma política pública. Este distanciamento nunca existiu porque

as pessoas não param de circular”. Essa constatação se dá ao fato que nem todas as

pessoas podem de fato parar de trabalhar, portanto a locomoção é necessária.

(POLÍTICA..., 2020)

Em 31 de maio foi publicado o Decreto 55.285 (RIO GRANDE DO SUL, 2020),

que ajustou alguns aspectos do Decreto 55.240, de 10 de maio e reiterou a declaração

de estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul, alterando o art. 21 do

instrumento originário e acrescento parágrafos onde está disposto que as medidas

sanitárias determinadas pelos protocolos do Distanciamento Controlado possam

ser, excepcionalmente e com justificativa clara, substituídas por medidas elaboradas

pelos próprios municípios, desde que não pertençam a regiões que se encontram

classificadas nas bandeiras vermelha, equivalente ao risco alto de contaminação, e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

preta, risco altíssimo. Esse decreto buscou equalizar as questões municipais sociais

e econômicas e a preservação da saúde.

Nos municípios onde se encontram a grande maioria dos hospitais e recursos

médicos há um maior trânsito de pessoas para atendimento e por consequência a

estrutura existente acaba por ser contabilizada para um maior número de pessoas

que aquelas que residem no município. Essa identificação acarreta um maior risco

para a região de abrangência fazendo com que alguns municípios estejam sempre

no rol daqueles com maior risco e as atividades comerciais e industriais tem maior

limitação. O ensinamento que essa estratégia adotada nos traz é a observância das

regiões e suas capacidades de atendimento à saúde e, sem dúvida a efetiva

participação dos municípios na identificação e busca por soluções dos problemas

locais.

Neste momento de grave pandemia nenhuma estratégia é simples. Estamos

verificando governantes do mundo inteiro, inclusive países desenvolvidos, a

operarem com base em erros e acertos, com maior ou menor êxito na disseminação

viral em suas populações. O sistema de saúde mundial se mostra insuficiente dadas

as proporções e rapidez de disseminação da COVID-19. É um momento excepcional

onde não se pode descartar os ensinamentos e a detecção de problemas para

efetivação do direito à saúde.

Em um país com as dimensões do Brasil é possível observar diversas realidades,

as quais precisam ser identificadas para melhor estabelecimento das políticas

públicas garantidoras dos direitos sociais, disponibilizando recursos orçamentários

de forma equânime, a fim de atingir os objetivos constitucionais de universalização

destes direitos. (SANTIN, 2017) A busca pelo desenvolvimento social pode ser

melhor estruturada se observadas essas realidades diferenciadas a partir do

território e seu caráter endógeno.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Dowbor (2010, p. 17) refere que “[...] cada cidade pode organizar a sua

microgestão, aproveitar os recursos subutilizados, otimizar os processos

administrativos, tornar as decisões transparentes para uma comunidade que

conhece a sua realidade e o seu entorno.”

Essa endogenia pode ser descrita como as particularidades atreladas a esse

território, contribuindo para o desenvolvimento gradativo a partir do local para o

global. Lima e D’Ascenzi relacionam essa abordagem como fundamental a entender

os novos papéis das cidades e regiões em um contexto de globalização e

descentralização política, estando mais voltada à solução dos problemas sociais de

maior relevância, de forma estratégica e objetiva. (LIMA; D’ASCENZI, 2018, p. 146-

147).

A manifestação da endogeneidade se observa nos planos político, econômico,

científico e tecnológico e cultural constituindo-se uma base ao desenvolvimento

local. Esse desenvolvimento está relacionado ao desenvolvimento humano por

propiciar que as escolhas advenham do próprio cidadão, contribuindo com a

transformação social e convergindo com os aspectos necessários à formulação de

políticas públicas. Esse entendimento é identificado por Boisier no plano político

como “a capacidade local para propor, desenhar, executar e avaliar as políticas

públicas, dependente de um arranjo político descentralizador.”(BOISIER, 2018, p.

152-153).

Por certo, a eficiência das políticas públicas pode ser melhor alcançada através

do diálogo da sociedade e administração pública nos processos de decisão que

visam a identificação e planejamento das mesmas. Perez salienta a importância dos

instrumentos de participação popular na administração pública e enfatiza a o

respaldo constitucional da admissão de tais institutos de participação. (PEREZ,

2006. p. 163-164).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Assim, Costa observa que “a participação é um dos requisitos essenciais para o

fortalecimento da cidadania no espaço local. Sem a participação efetiva dos

cidadãos, o espaço local pode tornar-se um reduto para o exercício do poder de uns

poucos.” (COSTA, 2010, P. 115)

Com efeito, a participação do cidadão e da sociedade civil em espaços de

discussão auxilia a própria administração pública na gestão municipal. Santos

observa a importância dessa participação no aspecto de descentralização, onde “os

municípios transformam-se em espaços de legitimação das políticas públicas pelo

processo de participação direta da sociedade civil, principalmente, nos Conselhos

Gestores de Políticas Públicas.” Surgem os conselhos municipais no contexto dos

processos de municipalização das políticas sociais, transformando-se em

instrumentos auxiliares da administração pública na gestão. (SANTOS, 2016, p.

298-311)

A concepção do poder local como espaço de discussão e mobilização para

efetivação de direitos sociais demonstra um amadurecimento político. A

descentralização do planejamento das políticas públicas possibilita uma maior

efetividade da gestão municipal ao atendimento das demandas locais resultando

em ganhos para toda a comunidade.

O desenvolvimento social não está afastado da necessidade de equilíbrio das

relações e para tanto é necessária a condução de ações com planejamento e

seriedade, visando a concretização de direitos necessários à proteção das pessoas e

de sua dignidade. Em que pese exista previsão legal para a participação dos

cidadãos e sociedade civil nas escolhas de ações necessárias ao desenvolvimento

social, ainda falta a organização e popularização desta prática a fim de que todos

conheçam suas potencialidades de participação e possam exercer essa participação

com autonomia, mantendo uma cultura de diálogo e solidariedade a fim de fazer

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

valer não somente interesses políticos ou de determinados grupos, mas a premissa

maior de promover o bem comum.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pese a grande burocracia que envolve o efetivo atendimento da saúde,

em todos os níveis da federação, é inconteste a grande participação do ente

municipal em todo o processo organizativo e executório das ações e serviços, seja

de forma direta, na execução direta ou indireta, seja na composição das prioridades

locais.

Outro aspecto relevante para a concretização das políticas públicas junto ao

poder local é a possibilidade de maior acesso do cidadão junto aos órgãos de

discussão, como os conselhos municipais, bem como a utilização da previsão do

orçamento participativo. Essa participação dos cidadãos e grupos de interesses

possibilita uma melhor adequação das ações necessárias e controle efetivo de

resultados, possibilitando adequações em suas formatações sempre que necessário,

fortalecendo o processo democrático.

Os mecanismos de participação democrática e incentivo à participação popular,

pelos municípios, poderão atuar em favor da própria gestão com resultados mais

objetivos e positivos no atendimento das demandas sociais. Mas, ainda será

necessário evoluir no sentido da busca de recursos para concretização de ações e na

busca pela conscientização dos cidadãos quanto a importância da participação nos

processos de formação das políticas públicas, de forma autônoma e crítica, visando

o atendimento de seus direitos sociais e o desenvolvimento social.

Os conselhos municipais têm um grande papel no desenvolvimento de ações

integradas ao SUS, a fim de cumprir essa obrigação dos Municípios em aportar

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

todos os recursos, dentro de um determinado orçamento, para atendimento integral

do direito à saúde da população. Parte desse atendimento refere-se a serviços de

saneamento, vigilância sanitária, composição de atendimentos ambulatoriais junto

aos bairros e atendimento especializado de maior complexidade. Atendimento em

saúde não visa somente a cura de doenças, mas muito mais a prevenção que ocorre

interligada a outros inúmeros direitos que garantia uma vida digna.

A descentralização do planejamento das ações e serviços na área da saúde

possibilita uma maior efetividade aos direito à saúde. Através da participação do

poder municipal, como um porta voz dos cidadãos, bem como gestor

administrativo, conhecedor das peculiaridades de sua base territorial, as ações

podem ser melhor dimensionadas às necessidades de cada região, trazendo ganhos

para toda a comunidade.

REFERÊNCIAS

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compreensão do papel do Estado. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (Org.). Políticas
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Aprovar, nos termos do texto anexo a esta Portaria, a NOB 1/96, a qual redefine o
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instrumento imprescindível à viabilização da atenção integral à saúde da
população e ao disciplinamento das relações entre as três esferas de gestão do
Sistema. Disponível em:
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Acesso em 30 mar. 2020.

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Acesso em: 30 mar.2020.

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BRASIL. Lei nº 8.142 de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da


comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências
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promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências”, para dispor sobre as
comissões intergestores do Sistema Único de Saúde (SUS), o Conselho Nacional de
Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de
Saúde (Conasems) e suas respectivas composições, e dar outras providências.

643
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A SAÚDE COMO DIREITO FUNDAMENTAL GLOBAL:

PERSPECTIVA A PARTIR DA PANDEMIA DO COVID-19

Fabio Luiz Gomes190


Fabiola Vianna Morais191

RESUMO
O presente artigo, por meio dos métodos comparativo, analítico e reflexivo, analisa o direito
fundamental à saúde, a partir da perspectiva da pandemia do COVID-19, como direito
global no sentido de se adotar políticas públicas coordenadas entre os Estados por ela
afetados, desde as medidas de prevenção, contenção e solução das doenças provocadas pelo
coronavírus até as ações de recuperação das respectivas economias, tendo em conta o
contexto na qual está inserida em cada Estado. O atual modelo de saúde se mostrou frágil
e suscetível a diversas influências, seja por razões políticas ou econômicas, expondo as
pessoas a enormes riscos às suas vidas e saúde. Portanto, a governança internacional da
saúde em compatibilidade com a governança econômica deve buscar respostas através de
estudos e posteriores resultados de modo não apenas orientar os Estados, mas também
implementar ações que permitam proteger vidas e gerar o menor impacto econômico
possível. A inteligência artificial poderá servir de ferramenta à remoção dos obstáculos para
a implementação de uma perspectiva de saúde transnacional. Justifica-se, destarte, a
necessidade cada vez maior, a partir do COVID-19, de estudos para se considerar a saúde
como um direito global de modo a garantir dignidade às populações e reforço das
democracias na medida em que cada cidadão teria essa participação internacional.

Palavras-chave: Direito global à saúde; saúde transnacional; inteligência artificial;


pandemia; COVID-19.

ABSTRACT
This article, using comparative, analytical and reflective methods, analyzes the
fundamental right to health, from the perspective of the COVID-19 pandemic, as a global
right in the sense of adopting coordinated public policies among the states affected by it,

190
Professor em Pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas. Advogado. Doutorando em Administración,
hacienda y justicia en el Estado Social pela Universidade de Salamanca. Mestre em Direito Público pela
Universidade de Coimbra. E-mail: fluizgomes@yahoo.com.br. Link do currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2253275025710096.
191
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Direitos, Instituições e Negócios da Universidade Federal
Fluminense. Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra. De Fevereiro de 2019 a Agosto de 2020,
foi Professora Substituta do Departamento de Direito Privado, nível Assistente A, da Universidade Federal
Fluminense (Niterói). E-mail: fabiolavmorais@yahoo.com.br. Link do currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8043511599773332.

647
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

from measures to prevent, contain and solve diseases caused by coronavirus to recovery
actions in the respective economies, taking into account the context in which it operates in
each state. The current health model has shown itself to be fragile and susceptible to various
influences, whether for political or economic reasons, exposing people to enormous risks to
their lives and health. Therefore, international health governance in line with economic
governance must seek answers through studies and subsequent results in a way that not
only guides States, but also implements actions that allow to protect lives and generate the
least possible economic impact. Artificial intelligence can serve as a tool for removing
obstacles to implementing a transnational health perspective Therefore, the increasing
need, from COVID-19, for studies to consider health as a global right is justified in order to
guarantee dignity to the populations and reinforcement of democracies as each citizen
would have this participation. International.

Keywords: global right to health; transnational health; pandemic; artificial intelligence;


COVID-19.

INTRODUÇÃO

A saúde foi desafiada recentemente pela pandemia do coronavírus, assim

como as democracias dos Estados por ela afetadas.

Verificou-se que mesmo os Estados que a reconhecem como um direito

fundamental social não foram capazes de apontar as soluções possíveis e

necessárias para o combate da pandemia.

Ao mesmo tempo, países onde a saúde é dominada pela iniciativa privada,

como nos Estados Unidos da América, se viram lançando mão de medidas que não

foram suficientemente eficazes para evitar a disseminação e o tratamento do

coronavírus a todos os seus cidadãos.

A União Europeia, apesar de toda coordenação entre seus Estados-Membros

e de toda garantia de soberania dos mesmos, instou a decisões conjuntas e

uniformes no sentido de bloquear a disseminação do coronavírus e de garantir a

assistência médica à sua população, bem como todos os cuidados necessários aos

profissionais da saúde, a outros profissionais de atividades essenciais e aos que

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

perderam seus entes, além de buscar formas de evitar as perdas de empregos e a

diminuição das rendas que pudessem levar as pessoas ao risco de vida.

1.HISTÓRICO DO RECONHECIMENTO DA EMERGÊNCIA DA PANDEMIA

DO CORONAVÍRUS POR PARTE DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA

SAÚDE

Uma pneumonia de causa desconhecida detectada em Wuhan, China, foi

relatada pela primeira vez ao Escritório da OMS na China em 31 de dezembro de

2019.

A partir de então, a OMS tem trabalhado 24/7 para analisar dados, fornecer

conselhos, coordenar com parceiros, ajudar os países a preparar, aumentar os

suprimentos e gerenciar redes especializadas.

O surto foi declarado Emergência de Saúde Pública de Interesse

Internacional em 30 de janeiro de 2020.

A comunidade internacional pediu US $ 675 milhões para ajudar a proteger

os estados com sistemas de saúde mais fracos.

Em 11.03.2020 o Diretor Geral da OMS declarou a pandemia do

coronavírus.

Em 26.03.2020, o G20 comprometeu-se a fazer o que for necessário para

superar a pandemia, juntamente com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o

Fundo Monetário Internacional (FMI), o Grupo Banco Mundial, a Organização das

Nações Unidas (ONU) e outras organizações internacionais, trabalhando dentro de

seus mandatos existentes. Os esforços, individuais ou coletivos, destinam-se a:

• Proteger vidas;

• Salvaguardar os empregos e a renda das pessoas;

649
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

• Restaurar a confiança, preservar a estabilidade financeira, reativar o

crescimento e recuperar-se mais forte;

• Minimizar interrupções no comércio e nas cadeias de suprimentos globais;

• Prestar ajuda a todos os países que precisem de assistência;

• Coordenar medidas de saúde pública e financeiras.

2. A SAÚDE COMO DIREITO HUMANO

O direito à saúde foi reconhecido em 1948 na Declaração Universal dos

Direitos Humanos como direito inalienável de toda e qualquer pessoa e como um

valor social a ser perseguido por toda a humanidade, no seu art. 5º, que assim

prescreve: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e

a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,

cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso

de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos

meios de subsistência fora de seu controle.”

A definição moderna de saúde mais utilizada foi desenvolvida pela

Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual saúde é um estado de

completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença

ou enfermidade.

Por sua vez, a Constituição da República Federativa do Brasil prevê no seu

art. 196 que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante

políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros

agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,

proteção e recuperação”

650
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

3. A TRANSNACIONALIDADE DA SAÚDE A PARTIR DO COVID-19

Para ilustrar desde logo a importância do reconhecimento da

transnacionalidade da saúde a partir do COVID-19, cita-se o slogan de Portugal,

quando afetado pela pandemia, que diz: “não escolhe idade nem nacionalidade”.

Nas instâncias europeias, especialmente nas instituições da União Europeia, a

Presidente da Comissão Europeia Ursula Von Der Leyen, enfatizando a necessidade

de ação comum e preservando o mercado único, disse: “Quando precisávamos de

um espírito 'todos por um', muitos deram uma resposta 'apenas para mim'. Mas

agora as coisas estão melhorando. A livre circulação de bens e serviços é a única

maneira de levar os suprimentos para onde eles são necessários. Colocar barreiras

entre nós simplesmente não .az sentido! Os cidadãos da Europa se lembrarão das

decisões e ações que tomamos hoje.”

No Grupo do Parlamento Europeu, manifestaram-se no sentido da

necessidade de uma Europa “que sai da varanda todas as noites para aplaudir os

profissionais de saúde para que os recursos fossem canalizados para os cuidados de

saúde locais e que o fluxo livre de equipamentos e bens médicos fosse garantido,

bem como a manutenção de sistemas políticos, o investimento em pesquisa e a

solidariedade entre os líderes europeus.

Enfatizou-se a necessidade de propor medidas como o Plano Marshall da UE,

financiado por um novo instrumento de dívida europeu comum e um fundo de

desemprego europeu, para ajudar a mitigar as consequências econômicas e sociais

da crise do COVID-19.

Ressaltou-se que se a Europa se preocupa com a solidariedade econômica e

monetária, a solidariedade à saúde é ainda mais necessária. Neste sentido, apoiou-

651
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

se medidas contra voos vazios e considerou-se que cadeias de suprimentos bem

organizadas são os meios para estabilizar a Europa e combater a doença.

Também criticou-se a União Europeia no sentido de não ser capaz de

coordenar as medidas tomadas pelos Estados-Membros, equiparando a crise da

COVID- 19 a “um prego, talvez o último, no caixão de uma burocracia impotente.”

Solicitou-se ajuda para ser estendida aos Balcãs Ocidentais, àquelas pessoas

que perderam sua renda e, através de "coronabonds", para garantir a estabilidade

dos países da UE. Considerou-se que esses tempos extraordinários não são um

pretexto para minar freios e contrapesos: os governos devem permanecer sob o

controle dos parlamentos nacionais.

De outro lado, propôs-se uma resposta pragmática diferente à crise,

entendendo que os novos títulos do euro ou" coronabonds "não seriam uma

maneira eficaz de revitalizar a economia europeia, pois as pessoas precisam

urgentemente de dinheiro. Os bancos centrais nacionais deveriam, em vez disso,

conceder créditos a taxas de juros zero a nossos cidadãos e empresas.

Salientou-se que uma Europa protetora cuidaria de seus trabalhadores

essenciais. E, portanto, em vez de aplaudir os prestadores de cuidados, os caixas, as

pessoas de quem nossas vidas dependem, deveria ser prestada ajuda aos mesmos

com a produção de equipamentos de saúde para ser compartilhada e uma estratégia

clara e coordenada.

O Parlamento Europeu reuniu-se em Março para votar medidas urgentes da

UE para combater a pandemia do COVID-19, incluindo apoio aos sistemas de saúde

e assistência financeira aos países membros mais afetados pela crise atual. Foi a

primeira sessão plenária do Parlamento Europeu a usar votação remota.

Na abertura da sessão, o Presidente do Parlamento Europeu, David Sassoli,

ponderou que se está diante de uma situação extraordinária e inesperada, cujas

652
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

decisões são tomadas sem precedentes, buscando antecipar circunstâncias que

mudam rapidamente para proteger a saúde do pessoal e dos Membros.

No entanto, ressaltou-se que embora tenha havido a desaceleração da

economia, a democracia não podia parar e que a forma de mantê-la era o

funcionamento do Parlamento tomando decisões em prol da população da Europa.

Logo se vê que na Europa, no mundo ocidental a que pertencemos, tendo sido

nesse contexto, o primeiro continente a ser afetado pelo coronavírus, que a

pandemia fez reconhecer a transnacionalidade do problema e das soluções que a

envolvem.

4. A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – OMS E A SAÚDE GLOBAL

Verifica-se que a globalização está impactando a epidemiologia das doenças

infecciosas e a capacidade de prevenir, controlar e tratar efetivamente essas

doenças.

Dessa forma, poder-se-ia, como é o caso da COVID19, ter consequências que

ameaçam a saúde humana e finalmente a vida.

As ações, em nível global, devem alcançar a prevenção e controle de muitas

infecções.

Deve haver uma mudança de paradigma nos valores político-econômicos para

estabelecer um controle de doenças infecciosas, que podem gerar impactos

significativos de perdas humanas e provocar o colapso do sistema de saúde e a

economia.

A saúde é um direito fundamental global.

Deve haver um planejamento no controle das epidemias entre as nações, que

devem necessariamente ser norteados pela Organização Mundial da Saúde – OMS.

653
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A OMS tem a capacidade potencial de detectar e relatar surtos e doenças, bem

como fixar planos aos Estados no controle de pandemias.

Portanto, a OMS assume o papel de líder no mundo da saúde global.

O mundo é hoje considerado uma vila global. Isso ocorre porque agora temos

mais informações disponíveis do que nunca e podemos nos comunicar a uma

velocidade que era considerada impossível apenas alguns anos atrás. A

globalização está impactando as sociedades humanas e os ambientes naturais de

maneiras até então não experimentadas.

De várias maneiras, resultou na proliferação de uma variedade de indivíduos

e instituições de alcance global, preocupados com a produção e a troca de

conhecimentos, valores e crenças. Tais instituições incluem a mídia de massa,

grupos de reflexão, instituições de pesquisa, empresas de consultoria, agências de

publicidade, grupos religiosos, instituições de ensino e organizações de formulação

de políticas.

5. A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL COMO FERRAMENTA PARA REMOÇÃO

DOS OBSTÁCULOS À TRANSNACIONALIDADE DA SAÚDE

Os avanços tecnológicos dos últimos 50 anos que perpassam como elemento

essencial do terceiro milênio tem que estar a serviço e possuem diversas vertentes

de utilização.

Um primeiro passo é desenvolver uma administração de saúde internacional

informatizada, transparente e eficiente, onde os Ministérios de Saúde dos Estados

abasteçam com informações precisas, com dados da saúde do seu país. Essa troca

de informações permitiria ações por parte desse organismo internacional e uma

cooperação entre os cientistas dos diversos Estados.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Essa medida preventiva poderia ser um elemento facilitador de ações eficazes

que pudessem evitar danos à saúde das pessoas, a exemplo da pandemia.

Um outro aspecto que poderia ser utilizado é o desenvolvimento de detecção

de doenças potencialmente coletivas com exames rápidos à disposição facilitada da

população através da utilização benéfica do mapeamento do DNA humano onde se

cruzariam os dados para criação de vacinas ou remédios.

A inteligência artificial também poderia estar a serviço da saúde de modo que

uma vez abastecidos todos esses dados, pudesse orientar as pessoas, ao menos, para

descartarem qualquer doença coletiva.

Todos esses dados deveriam estar públicos de sorte a tornar a saúde coletiva

o mais transparente possível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O atual modelo de saúde se mostrou frágil e suscetível a diversas influências,

seja por razões políticas ou econômicas, expondo as pessoas a enormes riscos às

suas vidas e saúde.

Os governos são responsáveis por possibilitarem que suas populações

alcancem a saúde através do respeito, da proteção e da promoção de direitos, isto é,

evitando violações destes e criando políticas, estruturas e recursos que promovam

e que os reforcem. Têm ainda a responsabilidade de ofertar serviços de saúde e

serviços sociais e promover saúde respeitando os direitos humanos.

Especialmente no que tange à COVID-19, a OMS apelou à ação os Estados e

empresários, e declarou que a pandemia do COVID-19 é uma emergência social e

de saúde global que requer ação efetiva e imediata por governos, indivíduos e

empresas.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

As empresas têm um papel essencial a desempenhar na minimização da

probabilidade de transmissão e do impacto na sociedade. Quanto aos seus

funcionários, ações precoces e eficazes são capazes de reduzir os riscos de curto

prazo e os custos de longo prazo para os negócios e a economia.

Por sua vez, os governos devem alocar todos os recursos necessários para

combater o COVID-19 e eventuais futuras pandemias com o mínimo atraso possível

e garantir o funcionamento eficaz e eficiente das cadeias de suprimentos

transfronteiriças, de produtos médicos e outros bens essenciais.

O reconhecimento da saúde como uma questão transnacional, a partir da

pandemia do COVID-19, poderá conduzir os Estados a melhores soluções para suas

populações, na medida em que a integração e a interação neste setor facilitará o

acesso e à troca de informações e dados fundamentais para prevenção e tratamento

de doenças.

Para efetivar isso, a inteligência artificial, nos termos que se expôs, tem papel

fundamental.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ACESSIBILIDADES DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NAS

CIDADES & O PAPEL DO ESTADO

Alexander Seixas da Costa192


Célia Barbosa Abreu193

RESUMO
A acessibilidade nas cidades consiste num direito fundamental, que deve ser assegurado a
toda pessoa, tenha ela uma deficiência ou não. Afinal, está correlacionado ao próprio
exercício da cidadania, que pressupõe a possibilidade da prática dos direitos/deveres.
Nesse sentido, compete ao Poder Público o dever de implementar políticas públicas
orientadas para uma cidade com maior acessibilidade e, caso permaneça omisso, sustenta-
se que uma maior e mais plena tutela do cidadão nesta situação será obtida mediante o
recurso ao Judiciário por meio de tutela coletiva.

Palavras-chave: Deficiência; Mobilidade; Acessibilidade; Espaço; Urbano.

ABSTRACT
Accessibility in cities is a fundamental right, which must be guaranteed to everyone,
whether they have a disability or not. After all, it is correlated to the exercise of citizenship
itself, which presupposes the possibility of practicing rights / duties. In this sense, it is the
responsibility of the Public Power to implement public policies aimed at a city with greater
accessibility and, if it remains silent, it is maintained that greater and fuller protection of
the citizen in this situation will be obtained through recourse to the Judiciary through
collective protection.

Keywords: Disability; Mobility; Accessibility; Space; Urban.

192
Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense e da Faculdade Cenecista de Rio das Ostras.
Professor de história no Colégio Municipal Elza Ibrahim. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Direitos, Instituições e Negócios/UFF. E-mail: alexandermpt@yahoo.com.br. Currículo lattes:
http://lattes.cnpq.br/1342995859695951.
193
Pós-Doutora, Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ.
Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direitos, Instituições e Negócios/UFF. Professora
Associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
celiababreu@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8015623070536170.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

INTRODUÇÃO

A preocupação legislativa relativamente à pessoa com deficiência ganhou

grande expressão em 2007, com a Convenção Internacional sobre os Direitos das

Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (CDPD) e em seguida pelo

Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), Lei 13146/15, também designada de Lei

Brasileira de Inclusão (LBI), que consagraram o que a doutrina tem designado de

modelo social de deficiência, isto é, que cabe à sociedade se adaptar às pessoas com

deficiência e não o inverso, e que não se pode falar em “problema” na pessoa, mas

nas barreiras sociais que existem no nosso cotidiano.

De fato, basta um simples olhar superficial sobre as cidades para perceber o

quanto são necessárias politicas públicas, em especial no âmbito municipal, a fim

de que uma cidade seja acessível a todos. Assim sendo, um primeiro aspecto a ser

destacado é que lutar por uma cidade acessível beneficia não apenas à pessoa com

deficiência – que talvez tenha uma urgência maior na acessibilidade – mas à toda a

sociedade, seja porque em algum momento qualquer pessoa pode tornar-se

deficiente, ou ter a sua mobilidade reduzida, ou ainda porque existem vínculos

afetivos, sanguíneos ou outros entre pessoas com deficiência e as demais, e por fim,

porque a deficiência de uma pessoa não pode representar um obstáculo para que

tenha acesso à qualquer cidade.

A acessibilidade representa um direito instrumental, na medida em que

através dela é possível exercitar todos os demais direitos. Logo, uma sociedade que

não seja pensada a partir de uma acessibilidade para todas as pessoas será marcada

por uma grande exclusão social. Existem diversas formas de acessibilidade, que

comportam variações desde edificações acessíveis para uma pessoa com deficiência

física até o acesso aos sítios da internet para alguém com deficiência visual. As

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

barreiras que as pessoas com deficiência enfrentam devem ser superadas com apoio

do Poder Público e também da sociedade, bem como dos seus grupos sociais.

A indagação que este trabalho pretende enfrentar consiste em discutir o

papel do Judiciário na concretização da acessibilidade para pessoas com deficiência

nas cidades e tal questionamento perpassa pela compreensão da atuação estatal,

sem evidentemente esquecer que sua garantia é uma tarefa vinculada aos demais

poderes e à toda sociedade. Para tanto, a pesquisa é subdividida em três partes. A

primeira voltada para a acessibilidade da pessoa com deficiência nas cidades. A

segunda destinada ao papel do Estado e ao direito fundamental às acessibilidades.

A terceira abordando a busca da concretização de uma cidade mais acessível, por

intermédio da análise de decisões judiciais sobre a matéria. A metodologia adotada

é bibliográfica e jurisprudencial.

1. ACESSIBILIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA NAS CIDADES

A nossa atual Constituição da República assegura em seu preâmbulo a

constituição de um Estado Democrático de Direito, constando, dentre os objetivos

previstos constitucionalmente, a construção de uma sociedade “livre, justa e

solidária.” A realização deste objetivo implica em incluir a pessoa com deficiência

no projeto constitucional. Sendo assim, a acessibilidade das pessoas que apresentam

algum tipo de deficiência representa um elemento fundamental para que estas

possam exercer seus direitos e ter, em muitos casos, uma vida com dignidade.

A acessibilidade pelo modelo social encara a deficiência enquanto um

elemento de diversidade das características humanas, e desse modo, o déficit de

acesso decorre não de uma questão médica, mas social (BARCELLOS; CAMPANTE,

2012, p. 175-176). É a sociedade que precisa estar envolvida no projeto constitucional

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de promover uma vida mais digna e acessível à pessoa com deficiência, eliminando

ou ao menos reduzindo as barreiras existentes. O chamado modelo social implica

na prestação de direitos sociais à medida que a pessoa é vista pela ótica do cuidado,

e que as pessoas são interdependentes, e com isso, existe uma reciprocidade quanto

a dar e receber apoio (BARBOSA-FORHMANN; KIEFER, 2016, p. 74). Ademais, o

modelo social, segundo observação trazida por Agustina Palacios, viabiliza

compreender a deficiência pelo aspecto físico em contraposição àquela concebida à

luz de um prisma sócio-politico, e que é fundamental para a compreensão de que a

deficiência não se resume a uma questão individual, mas social. Escreve a autora:

(...) Por lo tanto, explica Jenny Moris, “uma incapacidade para


caminhar es uma deficiência, mientras que uma incapacidade para
entrar a um edifício debido a que la entrada consiste un una serie
de escalones es uma discapacidad. Uma incapacidade de hablar es
uma deficiencia pero la incapacidade para comunicarse porque las
ayudas técnicas no están disponibles es uma discapacidad. Uma
incapacidade para moverse es uma deficiência pero la incapacidade
para salir de la cama debido a la falta de disponibilidade de ayuda
apropriada es uma discapacidad.” (PALACIOS, 2008, p. 123-124)

É preciso, portanto, entender que a pessoa com deficiência deve ser tratada

enquanto sujeito de suas escolhas, respeitando a sua autonomia. As pessoas com

deficiência se encontram em quadro de vulnerabilidade, que requer tratamento

diferenciado, e neste sentido, a construção de um meio ambiente acessível significa

lhes permitir exercitar seus direitos com maior liberdade e independência.

A acessibilidade tem previsão tanto no âmbito da CDPD em seu art. 9º e

quanto na LBI no art. 53 até 78, dedicando inclusive um título para este tema, o que

demonstra, por si só, a sua relevância. No âmbito da Convenção, é prevista a

obrigatoriedade dos Estados Partes assegurarem a acessibilidade para as pessoas

com deficiência, como se depreende do art. 4º, alíneas f a i, 9º e 20, a fim de que

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tenham as mesmas oportunidades das demais pessoas sem deficiência, eliminando

as barreiras presentes na sociedade. Este Tratado Internacional foi recepcionado em

nosso ordenamento jurídico na qualidade de Emenda Constitucional, e, desta

forma, enquanto uma norma constitucional é dotada de efetividade plena, devendo

ser observada não apenas pelo Poder Público, mas por toda a sociedade.

Na seara da LBI, o art. 3º, inciso I apresenta a definição de acessibilidade, ao

mencionar que corresponde à utilização, com segurança e autonomia, dos espaços

e equipamentos em sentido lato. A independência e autonomia têm fundamento no

princípio da igualdade material, ou seja, reconhecer a necessidade de um

tratamento diferenciado àquele que tem uma deficiência, a fim de que tenha a

mesma condição daquele que não possui a deficiência.

Na realidade, ao se tratar de acessibilidade, o termo deve ser empregado no

plural, isto é, acessibilidades, tendo em vista as diversas formas que esta pode

assumir. Destarte, menciona-se a acessibilidade comunicacional, relativa ao aspecto

da comunicação; metodológica, pertinente aos métodos de estudo; instrumental,

referente aos instrumentos e ferramentas de trabalho; programática, voltada para a

ausência de barreiras em politicas públicas; atitudinal, que diz respeito às atitudes

humanas com preconceitos; arquitetônica, que se refere às barreiras em ambientes

físicos e de residências (LEITE; RIBEIRO; COSTA FILHO, 2019, p. 290).

É muito comum a referência de que a acessibilidade corresponde a uma

espécie de “direito chave”, ou seja, um direito que constitui um instrumento para o

exercício dos demais direitos da pessoa com deficiência, porque em uma sociedade

que se pauta pela orientação da acessibilidade, as pessoas com deficiência poderão

exercitar os mesmos direitos daquelas que não apresentam deficiência. A

acessibilidade constitui-se num direito instrumental, afinal, sem acesso aos

equipamentos urbanos, às escolas, aos postos de saúde, aos transportes públicos as

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pessoas com deficiência não podem exercer, plenamente, a sua cidadania. Não há o

exercício da inclusão social sem acessibilidade. Não se pode falar em inclusão social

se não há um ambiente acessível (LEITE; RIBEIRO; COSTA FILHO, 2019, p. 284).

Nesse viés, é fundamental que o Estado, por meio de suas políticas públicas,

e também outros segmentos da sociedade, como, por exemplo, pessoas jurídicas de

direito privado, também tenham a orientação de que é necessário assegurar a

acessibilidade. Portanto, é inafastável que os espaços sejam pensados, construídos

e reformados tendo em consideração as diversas deficiências existentes.

No âmbito administrativo, por exemplo, é importante ressaltar o disposto no

art. 54, II da LBI, que vincula a outorga ou renovação de concessão, permissão,

autorização ou habilitação de qualquer natureza à observância das regras de

acessibilidade. Neste sentido, o julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no

âmbito de uma ação civil pública ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa dos

Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD) em face do Município do Rio de Janeiro,

determinando a adaptação de frota de ônibus para pessoas com deficiência, a fim

de que sejam reconfigurados assentos especiais antes da roleta (dois de cada lado)

com aplicação de multa no valor de 5 cadeiras por ônibus não adequado. O Tribunal

entendeu que as concessionárias de transporte público se sujeitam à LBI, bem como

a prestação de um serviço seguro, eficaz e adequado ao consumidor pessoa com

deficiência.194

Trata-se de medida fundamental para o exercício do direito à locomoção e

demais direitos, como o direito ao lazer (dirigir-se a um teatro, uma partida de

futebol), o direito à saúde (comparecer a consulta médica) etc. Em suma, o que deve

ser superado não é pouco, ao revés, são as barreiras existentes na sociedade, que

194
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1595018. Rel. Min. Humberto Martins. 2ª Turma. Data do
Julgamento: 18/06/16. Data da Publicação: 29/08/16.

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podem assumir diversas vertentes: urbanísticas, arquitetônicas, transporte,

comunicação e informação, atitudinais e tecnológicas, entre outras.

A implementação da acessibilidade, por notório, implica em custos, em

investimentos que devem ser realizados. De outro lado, no entanto, há também a

possibilidade de retorno para a cidade, em face da inclusão social e urbanística. 195

Além disso, Ana Paula de Barcellos e Renata Ramos Campante defendem que

qualquer direito fundamental implica necessariamente em gastos e custos, sendo

certo que não deve ser aceita a concepção de que a acessibilidade decorre de uma

benevolência da sociedade e não de um direito, e ainda, que é o momento da

implantação das medidas que implica a maior despesa e não quando estas são

realizadas (BARCELLOS; CAMPANTE, 2012, p. 184).

Afora isso, apontam as autoras acima referidas que, de fato, em determinadas

situações, a acessibilidade pode resultar em custos de outra natureza que não

financeiros, como no caso da realização de obra arquitetônica que acarreta alteração

no patrimônio histórico, ou se a realização da adaptação inviabilizar completamente

o negócio, a ponto de esta atividade econômica ser encerrada. Desta feita, sustentam

que deve ser observada a razoabilidade e a ponderação de interesses, na análise da

acessibilidade (BARCELLOS; CAMPANTE, 2012, p. 185-186). Seja como for, é

preciso que a acessibilidade seja efetivada e o que se defende é que o instrumento

da ação civil pública corresponde ao meio processual mais adequado para a

concretude deste direito, diante da omissão das autoridades públicas. Diante disto,

discutir-se-á o papel que o Poder Judiciário.

195
Trata-se de parte da resposta de Paula Rocha no Conselho de Arquitetura e urbanismo do Rio Grande do
Sul à indagação: Por que as cidades não são acessíveis para todos? Disponível em:
https://www.caurs.gov.br/cidade-acessivel-para-todos/. Acessado em: 25/06/20.

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2. O PAPEL DO ESTADO E DIREITO FUNDAMENTAL ÀS

ACESSIBILIDADES

Com o advento da Modernidade e dos movimentos revolucionários, em

especial na França, o poder do Estado sofreu uma limitação, e daí a clássica distinção

entre os Poderes, cada um na sua esfera, e que, segundo a Constituição da República

do Brasil, devem ser independentes e harmônicos entre si. Neste sentido, surge a

questão de qual o papel que cada poder poderá exercer, a fim de garantir a

acessibilidade às pessoas com deficiência, principalmente nas cidades.

No âmbito do Poder Legislativo, pode-se destacar a acima citada Convenção

dos Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (CDPD),

aparecendo como o primeiro tratado internacional de direitos humanos após a

reforma do Judiciário (Emenda 45/04). Além disso, o também aludido Estatuto da

Pessoa com Deficiência (EPD) que igualmente garantiu diversos direitos em prol

das pessoas com deficiência, inclusive a acessibilidade, que abrange, por exemplo,

o direito de ir e vir em transportes públicos, entre outros.

O Estatuto da Cidade, Lei 10257/01, a seu turno, sofreu alteração com a Lei

13699/18, que incluiu mais uma diretriz de política urbana, assegurando condições

condignas de acessibilidade, tanto em edifícios públicos, quanto nos destinados à

moradia e na prestação de serviços, o que reforça, mais ainda, o dever de pensar a

cidade cada vez com menos barreiras e obstáculos ao pleno exercício da autonomia

de qualquer pessoa, em especial, a pessoa com deficiência. Os Municípios devem se

valer do Estatuto da Cidade, em especial do Plano Diretor, a fim de realizar a

regulação do uso e ocupação do solo e como pensar a acessibilidade, em projeto

coletivo, com diálogo com a sociedade, e não de forma impositiva, como por

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exemplo, o apontado por Denyse Moreira Guedes em relação ao Plano Diretor da

cidade de Santos (GUEDES, 2015, p. 93).

O Poder Executivo tem, em suas mãos, o papel de administrar a cidade, de

gerir a coisa pública. Neste aspecto, deve efetivamente tornar concreto aquilo que

foi previsto pelo legislador, observando notoriamente as regras do direito

administrativo. Desta forma, no estudo ora apresentado, é possível apontar que

uma das medidas que devem ser observadas pelo Estado reside na promoção de

modificações urbanas que levem em consideração a pessoa com deficiência.

Assim sendo, destaca-se a um só tempo a importância do Estatuto da Cidade,

que prevê a função social da cidade e a sua gestão democrática, e a necessidade de

neste âmbito as pessoas com deficiência serem mais ouvidas nos casos de alterações

de espaços públicos, bem como acerca das maiores dificuldades por elas

encontradas para se locomover na cidade, no seu cotidiano. Infelizmente, neste

particular, no entanto, a omissão do Poder Executivo é comum e a partir daí a

tendência de buscar uma proteção pelo Poder Judiciário, segue aumentando ainda

mais a judicialização.

Adverte-se, pois, que a judicialização não se confunde com o ativismo judicial.

Enquanto a judicialização decorre do modelo constitucional adotado em nosso país,

e representa um fato, o ativismo compreende “uma atitude, a escolha de um modo

específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e seu

alcance”. (BARROSO, 2012, p. 24). Portanto, pode-se entender que seja possível

existir judicialização sem ativismo judicial, principalmente porque com a

Constituição de 1988 foram assegurados direitos fundamentais, e assim, é natural

que haja a tendência de buscar sua efetividade pela tutela jurisdicional (BARROSO,

2012, p.25-26).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O Poder Judiciário, mais do que aplicar “automaticamente” a norma ao caso

concreto, possui também dever constitucional de zelar pela democracia, justamente

quando não houver a participação “adequada” dos demais Poderes. O contrário do

ativismo reside justamente na figura da autocontenção judicial, em que o Judiciário

iria se “conter” a fim de não interferir nos demais Poderes, isto é, numa situação

que poderia parecer inviável, tendo em vista a crescente busca pela proteção

jurisdicional (BARROSO, 2012, p. 26).

Por atribuição constitucional, o Poder Judiciário tem o dever de resolução

dos conflitos a ele submetidos, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) atua

como guardião da Constituição da República. Ao proferir uma decisão, além de

observar o preceito constitucional da fundamentação, sob pena de nulidade, o

julgador realiza uma interpretação jurídica da norma aplicada, atuando a

discricionariedade judicial, expressão empregada por Luís Roberto Barroso para

designar que o juiz não figura apenas uma ‘boca da lei”, mas realiza um processo

de interpretação com seus valores, sustentando ainda, que tal discricionariedade

deve seguir a mesma concepção do direito administrativo, visto que o órgão

julgador ao buscar a justiça deve atentar para alguns valores, em específico, a justiça

ao caso concreto, a segurança jurídica e a dignidade da pessoa humana (BARROSO,

2015, p. 33).

O Estado, por meio de sua Administração Pública, possui o direito

discricionário de realizar determinada conduta ou não, conforme os critérios de

conveniência e oportunidade. Entretanto, a discricionariedade não se resume

apenas à figura do Executivo, mas também está presente nos demais Poderes,

porém com um significado e abrangência diversos. Assim, poder-se-á falar em

discricionariedade legislativa, no sentido que o legislador deve observar as normas

constitucionais, e no âmbito do Judiciário, em que a discricionariedade também está

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presente, como se pode identificar ao integrar uma lacuna legislativa ou interpretar

um conceito indeterminado (RAMOS, 2015, p. 126-127).

Isto representa um elemento da interpretação judicial, e neste contexto,

Elival da Silva Ramos comenta:

(...) A discricionariedade judicial se distingue, nitidamente, das


discricionariedades legislativa e administrativa, correspondendo à
liberdade de escolha que se defere ao juiz diante das possibilidades
exegéticas consistentes. Floresce ela no espaço que os balizamentos
normativos autorizam o julgador a se movimentar, porém com a
sensível diferença de que o controle, neste caso, compete ao próprio
órgão ao qual foi deferido o poder discricionário, o que não significa
que possa, em harmonia com o sistema, tudo fazer (RAMOS, 2015,
p. 324).

É importante sinalizar outrossim as consequências de sua decisão judicial

decorrente do ativismo judicial, tendo em vista que se devem verificar

determinados limites. Não se pode tolerar a inércia dos Poderes Executivo e

Legislativo, porém também ao Judiciário não é legítimo usurpar as respectivas

atribuições constitucionais. Neste passo, assinala a doutrina que o juiz deve

observar certos parâmetros na avaliação do ativismo judicial, atentando para as

escolhas efetuadas pelo legislador e também para o grau da discricionariedade do

administrador. Ademais, o julgador deverá se nortear pela razoabilidade e ainda

pelo fato de que determinadas decisões possuem grande impacto na sociedade,

como no caso de controle de constitucionalidade com efeitos erga omnes (ARANHA

FILHO, ARANHA, 2014, p. 319-321).

Correlacionando este tema com o do tópico anterior, ao se assegurar o direito

fundamental às acessibilidades, através de previsões na CDPD, LBI e no próprio

Estatuto da Cidade, surge o dever de empregar políticas públicas que contemplem

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esse direito. Por conseguinte, enquanto os demais poderes da República não vêm

cumprindo seu papel institucional, o que se dá como decorrência das escolhas

“equivocadas” por meio do sufrágio, o Judiciário, quando provocado, deve decidir.

Em outras palavras, o Poder Judiciário tem o papel constitucional de garantir a

aplicação das normas protetivas das acessibilidades.

Todavia, o fato é que nem sempre será possível uma decisão judicial de

realização imediata, ainda que seja necessária. Basta pensar, por exemplo, na

obrigação do Estado em promover a adaptação de todos os edifícios e logradouros

públicos para as pessoas com deficiência. Não se tem dúvida de que se trata de um

aspecto fundamental e imperioso. Mas, como implementá-lo com maior prontidão?

Aplicando uma multa ao ente público caso não cumpra esta decisão? Determinando

que o Poder Público realize um cronograma, com a participação da sociedade,

voltado para a efetivação de obras necessárias e fundamentais para uma cidade

mais acessível? Qual a melhor medida a adotar?

3. EM BUSCA DA CONCRETIZAÇÃO DE UMA CIDADE MAIS ACESSÍVEL

O planejamento urbano deve se pautar pela orientação de que a cidade seja

a máxima acessível possível. Segundo o Estatuto da Cidade, cada cidadão tem

assegurado uma gama de direitos, como, por exemplo, ao transporte, serviços

públicos, lazer e gestão democrática. Entretanto, percebe-se ainda que a construção

de muitas cidades está voltada para priorizar o transporte por veículos particulares,

o que pode resultar em maior número de acidentes, em especial para pessoas com

deficiência, configurando uma visão não democrática das cidades (SILVA, 2016,

passim).

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A respeito ainda da construção das cidades, pondera Flávia Piva Almeida

Leite que os projetos arquitetônicos não levam em consideração de que qualquer

um pode ter, em determinado momento da vida, uma mobilidade reduzida, seja

pelo avançar da idade, ou por conta de algum acidente; não se pode mais construir

uma percepção de um homem “perfeito” (LEITE, 2017, p.14). Por isso, é de extrema

relevância que as barreiras presentes nas cidades sejam removidas, para que todos

tenham o direito de se movimentar pela cidade sem enormes sacrifícios. A

circulação de pessoas está inteiramente relacionada à autonomia de cada um, e é

justamente o que visa tanto a Convenção de Nova York quanto o Estatuto da Pessoa

com Deficiência: a autonomia de cada pessoa com deficiência; que ela possa

transitar pelas ruas, avenidas conforme o seu bel-prazer, para realizar diversas

atividades, desde aquelas relacionadas às questões profissionais até mesmo por

puro lazer:

A necessidade de circular está ligada ao desejo de realização das


atividades sociais, culturais, politicas e econômicas necessárias na
sociedade. As pessoas que vivem nas cidades, dentre elas as pessoas
com deficiência e/ou mobilidade reduzida, circulam ou deveriam
conseguir se movimentar pelos seus espaços com autonomia,
segurança e conforto. Sair de sua residência, conseguir chegar até o
seu local de trabalho, buscar algum lazer ou ir a seu trabalho; todas
essas possibilidades de deslocamento das pessoas pelos espaços da
cidade compõem a mobilidade urbana. Essa necessidade de
deslocar dependerá de como a cidade está organizada
territorialmente e vinculada funcionalmente às atividades que se
desenvolvem em seu espaço (LEITE, 2014, p. 15).

É dever do Poder Estatal implementar políticas que, efetivamente, estejam

orientadas para proporcionar maior mobilidade urbana aos cidadãos, para que

todos exerçam livremente o direito de locomoção. Necessário resguardar o direito

de ir e vir, de transitar pelas vias urbanas, com a remoção das barreiras sociais, que

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não são apenas físicas, mas também atitudinais, o que requer um amplo projeto

educacional, a fim de promover uma conscientização de que se deve ter respeito ao

ser humano. Sem isso, o quadro que se tem é de cidades “inacessíveis” (SILVA, 2018,

p. 56).

Visto isto, cumpre dar início à análise de um julgado que teve por objeto uma

ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público, a fim de determinar que o

Município de Salvador realizasse obras que, em síntese, assegurassem uma

acessibilidade a pessoas com deficiência nos transportes públicos, locais públicos

(praças, jardins), áreas de lazer (teatro, estádio, cinema, ginásio de esportes) e etc,

estipulando um prazo de 60 dias para o ente público apresentar o seu projeto

arquitetônico, cronograma de obras com previsão de término, apontando como

fundamento o Decreto federal 5296/04, que regulamentou as Leis 10048/00 e

10098/00, já determinando ao Poder Público a obrigatoriedade de adaptar as cidades

às pessoas com deficiência.

Diante deste contexto, o Município, então, solicitou a suspensão de uma

tutela antecipada deferida pelo Tribunal de Justiça da Bahia, o que foi deferido pelo

STF, sob o argumento de que a decisão apresentava um potencial de lesão às ordens

administrativa e econômica e que a obrigatoriedade de apresentar o referido projeto

inviabilizaria a máquina administrativa e por fim a própria questão econômica. 196

196
A título exemplificativo, destacamos parte do trecho da decisão: “Nesse sentido, patente a inviabilidade de
elaboração de projetos apenas por meio dos recursos humanos das áreas de engenharia e arquitetura da
administração pública, sendo indispensável, com efeito, licitação para contratação até mesmo dos projetos
arquitetônicos de acessibilidade. E tal medida inviabilizaria obediência ao prazo de sessenta dias fixado pela
decisão impugnada, ante os procedimentos exigidos pelas normas de licitação.
Ademais, não se pode ignorar o risco de lesão à ordem econômica, porquanto, conforme documentos juntados
aos autos, recente projeto de acessibilidade para dez estações ferroviárias de Salvador tem custo estimado de
seis milhões e meio de reais.
Projetando-se o custo para adaptabilidade de toda a cidade, nos termos do acórdão impugnado, inevitável que
recursos não previstos no orçamento sejam retirados de outras ações da Prefeitura, para cumprimento da
decisão, o que implicará sacrifício de outros serviços prestados à população.” BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Suspensão de Tutela Antecipada 584. Rel. Min. Cezar Peluso. Data de Julgamento: 18/08/2011. Data
de Publicação: 30/08/2011.

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Note-se, que um dos argumentos para não se concretizar a acessibilidade em

favor das pessoas com deficiência se pautou na restrição aos recursos. Por outro

lado, surgem demandas coletivas em favor da pessoa com deficiência por meio de

ação civil pública. Em face deste panorama, Daniel Sarmento defende que as ações

coletivas são capazes de apresentar uma decisão mais racional, pois nas demandas

individuais muitas vezes os direitos não podem ser universalizados; concede-se a

alguns e nega-se a outros (SARMENTO, 2010, p. 584).

Constata-se que nesta decisão judicial foi observado, ainda que de forma

indireta, o parâmetro da razoabilidade da universalização, pois não haveria

recursos para a realização desta empreitada. No entanto, é importante ponderar que

diante de uma decisão judicial desta espécie é oportuno que exista uma

“comunicação” entre os demais poderes a fim de que sejam, ao menos

implementadas, de forma progressiva, as medidas cabíveis. O que não pode

permanecer é a inércia e omissão do Estado. Se não é possível a realização de toda

obra, que é necessária; é fundamental que seja dado o primeiro passo, a fim de que

seja efetivada a acessibilidade da pessoa com deficiência, permitindo assim a sua

participação na vida social e o pleno exercício de sua cidadania.

Examinando outra demanda envolvendo o Ministério Público do Estado do

Rio de Janeiro em face do Município de Itatiaia, em que foi pleiteada a condenação

do ente público na realização de adaptações nos espaços públicos, mobiliário

urbano e edifícios de uso público a fim de atender às pessoas com deficiência, vemos

que o Município alegou que o pedido fora genérico, que o tempo de 30 dias não era

viável para a consecução das modificações necessárias para a acessibilidade, e

ainda, que a imposição de multa diária provoca dano à economia pública. O caso

chegou até o STF no pedido de suspensão de liminar, e o Tribunal, de início,

ressaltou na sua decisão que o Judiciário pode determinar a realização de medidas

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pelo Executivo em razão da omissão deste poder, sem que isto configure ofensa à

separação de poderes. O pedido foi indeferido, tendo em vista que o Município por

um longo tempo não realizou as modificações para a implementação da

acessibilidade – que já tinha sido decidida em sentença judicial – e agora o que

desejava era, na verdade, não pagar a multa.197

A argumentação do Município de que o valor alto da multa inviabilizaria a

realização das obras de acessibilidade não foi aceita pelo STF, inclusive

mencionando o art. 537 §1º do Código de Processo Civil (CPC), que convenciona a

possibilidade de se modificar a periodicidade da multa, a fim de facilitar o seu

cumprimento. De fato, o Poder Executivo, tendo em vista sua obrigação de observar

a acessibilidade na gestão de cidade, deve implementar tais modificações na cidade

para que tenha maior acessibilidade. Um possível caminho seria o Município iniciar

as modificações no mobiliário e edifícios com emprego de audiências públicas, para

identificar a quais obras deve conferir uma prioridade, dentro dos limites

orçamentários, sem prejuízo do pagamento da multa pela omissão em relação às

obras de acessibilidade, sendo viável ao juiz reduzir o valor da multa, desde que

fique comprovada, efetivamente, a implantação das medidas de acessibilidade.

Dessa maneira, a despeito da divergência entre as decisões examinadas,

defende-se que as ações coletivas constituem o meio processual mais adequado para

a busca judicial da acessibilidade, em específico por meio de uma ação civil pública.

Evidentemente que as demandas individuais também possuem sua importância, e

decerto devem ser ajuizadas, mas por meio de um processo coletivo é possível

atingir um número muito maior de pessoas com deficiência com a decisão judicial.

197
BRASIL Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada 159. Rel. Min. Dias Toffoli. Data de
Julgamento: 30/03/20. Data da Publicação: 02/04/20.

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NOTAS CONCLUSIVAS

À guisa de conclusão, a Constituição de 1988 apresentou grandes avanços em

termos de garantias de direitos, é o que se depreende, exemplificativamente, da

leitura dos artigos 1º, III; 3º, I e 5º, § 2º. Portanto, a democracia brasileira não pode

ser “marcada” pela exclusão social de qualquer pessoa, mormente de grupos

vulneráveis, como as pessoas com deficiência, que reclamam um tratamento

diferenciado, consideradas suas particularidades.

A acessibilidade consubstancia um direito-chave que viabiliza todos os

demais, à medida que um ambiente acessível à qualquer pessoa com deficiência

permitirá o exercício dos seus direitos fundamentais, como o direito à liberdade,

dentre tantos outros citados ao longo deste trabalho. As barreiras existentes na

sociedade, das mais diversas naturezas, deverão ser combatidas tanto pelo Poder

Público, por meio de políticas públicas, quanto também pela sociedade, seja por

instituições privadas e públicas, que deverão adaptar sua estrutura arquitetônica e

até atitudinal para atender aqueles que possuem algum tipo de deficiência, ou

mesmo a mobilidade reduzida.

O Judiciário representa o poder do Estado que atende as demandas judiciais do

cidadão. Quando instado a resolver demandas coletivas em torno da acessibilidade,

entretanto, a alegação falta de recursos é constante. Neste caso, sustenta-se que é

preciso identificar alguns critérios norteadores a respeito da tutela jurisdicional, em

especial, a ideia de que seja necessária a verificação se é possível ou não realmente

universalizar uma determinada medida solicitada por esta via, sob pena de se estar

perdendo a oportunidade de transformar um direito que seria só de alguns num

direito de todos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Por derradeiro, importante afirmar que, na questão específica da

acessibilidade em favor das pessoas com deficiência, certo é que o discurso de que

a sua implantação representa muito gasto financeiro deve dar lugar àquele em que

_o Estado tem o dever de agir, realizando projetos que visem a eliminação das

barreiras, mesmo que de forma gradual e com um cronograma que objetive a

efetividade de medidas acessíveis_.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

DIREITO À SAÚDE, MÍNIMO EXISTENCIAL E DIGNIDADE

HUMANA: A (IN) EFICÁCIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO

COMBATE À PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS (COVID-

19) NO BRASIL

Rosane Augusto Iellomo198


Alexsandro Oliveira de Souza199
Darlan Alves Moulin200

RESUMO
O presente trabalho visa analisar a efetivação do direito à saúde e a (in) eficácia do Sistema
Único de Saúde no combate à pandemia do novo coronavírus no Brasil. Questiona-se, como
problemática, se as políticas públicas implementadas pelo Estado no enfrentamento a
COVID-19 são eficazes para se garantir o mínimo existencial no direito à saúde,
possibilitando que as pessoas obtenham um tratamento digno contra as complicações da
infecção pelo novo coronavírus. Cogita-se que as ações realizadas pelo Poder Público no
enfrentamento à pandemia não são eficazes, hipótese confirmada a luz de diversos estudos
realizados que demonstraram que o descaso com a saúde pública por anos comprometeu a
estrutura do SUS, uma vez que milhões de reais foram desviados da área da saúde, o que
comprometeu seriamente a eficácia do sistema que acabou sendo revelada em plena
pandemia: o SUS não tem condições de atender com dignidade a população em um estado
de calamidade. Busca-se, então, demonstrar que a eficácia do sistema único de saúde
somente será possível quando forem implementadas políticas que visem resguardar as
condições mínimas para o atendimento da população brasileira de forma digna,
possibilitando à máxima proteção à dignidade. Para tanto, utilizou-se os métodos crítico,
de revisão bibliográfica e análise documental.

Palavras Chave: Direito à saúde; mínimo existencial; dignidade humana; SUS; COVID-19.

198
Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de sá; integrante do grupo de estudos sobre Dignidade
Humana e a função social do Estado em tempos de crise ; e-mail: rosaneiellomodireito@outlook.com; Lattes;
http://lattes.cnpq.br/4240351515714833.
199
Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá; Integrante do grupo de estudos sobre Dignidade
Humana e a função social do Estado em tempos de crise; e-mail: alexeufenix@hotmail.com; Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3204261874505502.
200
Mestre em Direitos Sociais, Difusos e Coletivos. Professor de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário
na Universidade Estácio de Sá – UNESA/RJ. Pesquisador bolsista do Programa Pesquisa Produtividade da
UNESA/RJ. E-mail: darlan.moulin@estacio.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/9695783352656464.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
This work aims to analyze the realization of the right to health and the (in) effectiveness of
the Unified Health System in combating the pandemic of the new coronavirus in Brazil. It
is questioned, as a problem, whether the public policies implemented by the State in
confronting COVID-19 are effective in guaranteeing the minimum existential in the right to
health, enabling people to obtain a dignified treatment against the complications of
infection with the new coronavirus. It is believed that the actions taken by the Public Power
in the fight against the pandemic are not effective, a hypothesis confirmed in the light of
several studies that demonstrated that the neglect with public health for years
compromised the structure of SUS, once millions of reais were deviated from the health
area, which seriously compromised the effectiveness of the system that ended up being
revealed in the middle of a pandemic: SUS is unable to provide dignified care to the
population in a state of calamity. It seeks, then, to demonstrate that the effectiveness of the
single health system will only be possible when policies are implemented that aim to
safeguard the minimum conditions for the care of the Brazilian population in a dignified
manner, allowing maximum protection to dignity. For this, the critical methods of
bibliographic review and document analysis were used.

Keywords: Right to health; existential minimum; human dignity; SUS; COVID-19.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa analisar o direito humano e fundamental à saúde e

a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) no combate à Pandemia da Corona

Vírus (COVID-19). Questiona-se, como problemática, se esse direto fundamental é

efetivado no Brasil e quais tem sido às políticas públicas que tem sido implementada

pelo SUS para garantir a efetivação desse direito em tempos de pandemia COVID-

19.

Cogita-se que o SUS não tem condições de atender às demandas que

surgirem por conta das contaminações por covid-19, o que acabará acarretando um

colapso no referido sistema, hipótese está confirmada por meio de diversas

pesquisas realizadas que demonstraram que o SUS está sendo dilapidado há anos

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

por maus gestores que tem desviado diversos recursos públicos que deveriam ser

destinados à saúde, fragilizando ainda mais a eficácia do referido sistema.

Por tais razões, é imperioso demonstrar que o direito humano e fundamental

à saúde tem sido diariamente violado no Brasil, principalmente em tempos de

pandemia, uma vez que o descaso com tal direito vem ocorrendo por anos,

violando, desta forma, a própria dignidade humana.

A pesquisa demonstrará, ainda, que o direito humano e fundamental à saúde

digna, previsto nos Documentos Internacionais sobre Direitos Humanos e no artigo

6º da Constituição Federal de 1988 não está sendo concretizado para grande parcela

da população brasileira, que tem sua dignidade violada diariamente por não

conseguir viver de forma digna.

Para tanto, utilizou-se dos métodos crítico, de revisão bibliográfica e análise

de documentos para se demonstrar que a não efetivação do direito à saúde acaba

por enfraquecer as políticas de combate à pandemia, uma vez que não é oferecido à

maioria da população, principalmente para aquelas pessoas que vivem em situação

de vulnerabilidade social, o mínimo existencial necessário para viver com

dignidade nesses atuais tempos sombrios.

1. A SAÚDE COMO UM DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL SOCIAL

Inicialmente, sobre os direitos fundamentais elencados e reconhecidos a

partir da primeira constituição passaram por transformações consideráveis em seu

conteúdo. Essa transformação é referente a seu titular de direitos, a aplicabilidade

para o alcance da sua eficácia e os esforços para que os direitos fundamentais fossem

efetivados. O que levou os direitos fundamentais passarem por várias gerações.

Foram surgindo opiniões adversas entre os doutrinadores, e a partir dessas

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

divergências doutrinárias os direitos fundamentais passaram a ser separados em

quatro dimensões (SARLET, 2003, p. 50).

Nesse sentido, percebe-se que a teoria dimensional apresenta o Direito

Fundamental de forma cumulativa e complementar. E também referindo-se a

importância da sua unidade e indivisibilidade no contexto constitucional (SARLET,

2003, p.51).

Ressalta-se que no século XIX, como nos dias atuais, já se esperava do Estado

a realização da efetivação do direito fundamental, como a liberdade e garantia. Os

problemas sociais e econômicos foram surgindo a partir da industrialização, e ainda

tem suas consequências. Apesar de todos os direitos estarem garantidos na

Constituição Federal, eles não têm a sua efetivação e isso já foi comprovado por

diversos doutrinadores e também pela sociedade que ainda é obrigada a reivindicar

aquilo que é seu por direito (SARLET, 2003, p.52).

Outro ponto de suma importância, refere-se aos direitos fundamentais de

segunda dimensão, e que por serem positivados o Estado tem a obrigação de

intervir, que são os direitos sociais individualizados, como à saúde, direitos

econômicos e culturais. Eles são os direitos que versam sobre as “liberdades

sociais”, bem como os direitos fundamentais dos trabalhadores (SARLET, 2003, p.

53).

A Constituição Federal de 1988 tem elencado no art. 6º à saúde como um

direito social, atribuindo ao Estado o dever de assegurar o direito à saúde à todos

os cidadãos brasileiros. E ainda estabelece no art.196, que a saúde é um dever do

Estado (FILHO; LEÃO, 2019, p. 26).

Verifica-se, no entanto, que a Covid-19 potencializou o que há muito tempo

já acontece na sociedade que é a exclusão oriunda da desigualdade. Sabe-se que os

primeiros casos começaram na classe alta e depois atingindo a classe menos

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

favorecida que passaram a lotar os hospitais das capitais, porque as unidades de

atenção básica estavam totalmente despreparadas e desprovidas de recursos

materiais e humanos. Foi o caos vivido pelos menos favorecidos, pessoas morrendo

por ficarem à espera de leitos na UTI. E o mais agravante é ver as pessoas que vivem

em condições de precariedade extrema ter que fazer o bendito isolamento social

(ROCHA; FARIAS, 2020).

Nesse sentido, Sarlet (2003, p. 52-53) esclarece que:

No século XX, que os novos direitos fundamentais, de cunho


positivo e ‘liberdades sociais’, se reportando à pessoa individual,
entre eles o direito social já contemplado na Constituição,
concederam ao indivíduo direitos a prestações sociais estatais e
intensificaram mais o princípio da justiça social, com a
reivindicações das classes menos favorecidas, para que diminuísse
a desigualdade entre as classes mais favorecidas.

Neste sentido, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de

São José de Costa Rica) aderida pelo Brasil, elenca que os direitos e liberdade não

podem ser limitado ou suprimido pelo Estado e pela própria sociedade, por ter o

seu reconhecimento e serem inerentes a pessoa humana o que seria um verdadeiro

retrocesso dos direitos fundamentais. (MOULIN, 2019, p. 83).

Segundo Moulin (2019, p.83-84) “há de forma expressa a impossibilidade

de haver retrocessos na proteção dos direitos e garantias fundamentais”. O

legislador perante a sociedade tem seus limites, ele não pode agir de livre arbítrio,

por que isso poderia destruir o mínimo que garante os direitos fundamentais.

De acordo com Moulin (2019, p. 84) é necessária uma segurança jurídica na

sociedade. Sem segurança jurídica garantida não há limites para que os direitos

sejam respeitados pelos políticos e por quem detém o grande poder. Não pode a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sociedade ficar à mercê da vontade dos políticos e até mesmo da sociedade. Seria

um retrocesso dos direitos e garantias previstos na constituição.

3. A (IN) EFICÁCIA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO BRASIL

Inicialmente tratar-se à, da atuação e objetivo do Sistema Único de saúde,

que é formado por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais e

também órgãos da administração indireta (PAIM, 2015, p. 36.).

Ressalta-se que o Estado tem o dever de garantir e assegurar o cidadão o

direito à saúde. É através de políticas públicas de ordem social e econômica que a

proteção e recuperação da saúde são alcançados. Essas ações possibilitam a

prevenção de várias doenças, diminuindo os riscos que muitas das vezes levam as

pessoas a óbito e também a diminuição do índice das doenças mais graves. Com

isso deve o Estado prover as condições para o seu exercício, assegurando o acesso

universal é igualitário (PAIM, 2015, p. 35).

Importante esclarecer que a Lei Orgânica de Saúde em relação ao SUS é

responsável por definir a competência dos entes, bem como o financiamento,

orçamento entre outros, e também a participação complementar dos serviços

privados. Percebe-se que é uma excelente iniciativa, mais infelizmente a sua

aplicabilidade não é efetiva, diante de tantas lacunas a serem preenchidas. Houve

então a necessidade da descentralização e a busca de financiamento, esforços esses

que foram frustrados por pouca iniciativa no novo modelo de atenção básica de

saúde (PAIM, 2015, p. 38).

Insta salientar que o SUS é o maior Sistema Único Público de saúde do

mundo gratuito. Infelizmente a falta de informação para a sociedade, e o descaso

por parte dos políticos, fazem com que as ações de políticas públicas, a organização

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e o planejamento, deixem muito a desejar para a sociedade tão carente. Exemplo

disso é a distribuição precária de medicamentos, na maioria das vezes os pacientes

se deparam com a falta. Houve sobrecarga nos cofres públicos municipais devido a

ausência de participação do ente federal.

Em 2019 houve um investimento considerável pelo ente público, que

chegou a ultrapassar o mínimo constitucional. Tais investimentos foram para

Equipe de saúde da família, Atenção Básica e leitos de UTI. Mais não foram

necessários para suprir o anseio da sociedade carente. Apesar da falta de recurso

suficiente, o SUS ainda está dando certo em algumas regiões, com a dedicação de

alguns profissionais da saúde. Se houvesse mais informações para a sociedade

certamente teríamos mais fortalecimento nas políticas públicas de saúde

(CONASEMS, 2020).

Ressalta-se que diante da pandemia da corona vírus o SUS está tendo um

papel muito relevante na sociedade, no atendimento da população carente e

também o atendimento de pessoas que mesmo possuindo plano de saúde privado

recorreram ao SUS. Diante desse momento, o governo federal tentou colocar a

disposição dos planos de saúde um fundo para que fosse feito uma parceria, e assim

os diversos leitos que estão ociosos na rede privada seriam disponibilizados para as

pessoas carentes, mais foram diversas tentativas infrutíferas, com a alegação que os

leitos seriam para os inadimplentes. Diante desse fato observamos um dos direitos

fundamentais sendo violado, que é o direito à saúde (PACTU, 2020).

Imperioso salientar que nessa pandemia da nova corona vírus, 70% dos

brasileiros tiveram seu atendimento no SUS, e se dependessem do atendimento na

rede privada morreriam. As medidas de vigilância e contenção da corona vírus

foram todas feitas pelo SUS (PACTU, 2020).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Outro ponto de suma importância é que em 2017 entrou em vigor a Emenda

Constitucional nº 95, conhecida como “emenda do fim do mundo’’ que estabeleceu

o Teto dos Gastos congelando por 20 anos investimentos na área da saúde e da

educação o que ocasionou a falta de recursos. Com a pandemia do coronavírus

(COVID-19), ficou mais claro para a sociedade a deficiência do SUS decorrente dessa

Emenda Constitucional nº 95 e também o aumento, sem dúvida alguma, da

desigualdade. É estipulado um gasto para cada pessoa, com um valor diferenciado

entre os municípios, ou seja, não temos isonomia, algumas pessoas são mais

privilegiadas que as outras. O que com certeza atingiu de maneira significativa as

condições de vida da população mais carente (MARCELO, 2020).

Observa-se que o bloqueio do investimento para o SUS dificultou as

melhorias administrativas, a infraestrutura e um melhor atendimento na atenção

básica, ocorrendo assim superlotações dos hospitais de alta complexidade. Nesse

momento o Brasil vive além da pandemia do coronavírus (COVID-19) surtos

epidemiológicos e a volta do sarampo e febre amarela. Reflexo do descaso por

aqueles que estão no poder. O fato é que a saúde da população está em risco e cada

vez mais as equipes de saúde passam por grandes desafios (CEEN, 2020).

Neste sentido, o Ministério da saúde já tinha alertado para um possível

colapso. A população carente já sofria com esse sistema debilitado. Agora só

potencializou a morte de várias pessoas. A precariedade da infraestrutura no

atendimento básico, a superlotação de pacientes, e os baixos salários, estão levando

os profissionais de saúde a optarem para trabalhar na rede privada.

O Brasil tem um sistema de saúde público reconhecido mundialmente, mais

infelizmente enfrenta grandes problemas que vai desde sua gestão até o

investimento. Um sistema que está sendo inibido, pela emenda constitucional 95,

que estipulou um teto nos gastos da saúde e na educação em um momento

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

totalmente diferente dessa atual conjuntura. Mesmo havendo alguns profissionais

na rede pública não é o suficiente, o número dos profissionais de saúde é muito

inferior ao número de pacientes, ocorre assim a má distribuição de profissionais,

gerando a superlotação e as filas de esperas (CEEN, 2020).

Segundo Moulin (2019, p.82) as garantias e direitos fundamentais passam

por uma evolução, surgindo assim novos direitos para satisfazerem as necessidades

da sociedade. Pode-se citar a necessidade de melhorias na atenção básica no

combate ao novo coronavírus (COVID-19), como, por exemplo, a compra de

respiradores, leitos de UTI, contratação de profissionais entre outros, para

consolidar o direito à saúde de toda a sociedade, tais direitos não podem ser

suprimidos, ou seja, não podem retroagir.

Segundo Moulin (2019, p. 84) diante da clausula de proibição ao retrocesso

social, presente no sistema jurídico pátrio, os direitos fundamentais não podem, de

forma alguma, ser restringidos pelo legislador de forma arbitrária. É importante que

as relações sociais tenham estabilidade, para que sejam respeitados e efetivados

todos os direitos fundamentais e as garantias elencadas na Constituição Federal.

Seria um retrocesso, uma violação ao Princípio da segurança jurídica (BARROSO,

2006, p. 152).

Observa-se que a clausula de vedação ao retrocesso e a Constituição tem

como objetivo impedir que os direitos das minorias sejam violados pela maioria. As

leis são elaboradas pelos parlamentares detentores do poder econômico. Diante da

pandemia do novo coronavírus (COVID-19) com a falta de medicamentos e as filas

sem fim para o atendimento, percebeu-se o tempo todo a violação de tais direitos e

o sofrimento da classe menos favorecida (MOULIN, 2019, p. 85).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

4 O MÍNIMO EXISTENCIAL NO DIREITO À SAÚDE E A PROTEÇÃO À

DIGNIDADE HUMANA

Salienta-se que à saúde é um bem essencial a dignidade da pessoa humana,

sendo certo que sem saúde não há vida. Sendo a saúde um dos direitos

fundamentais indispensáveis à vida, cabe sim ao Estado garantir a sua eficácia e

proteção, uma vez que tal direito é tutelado pelo ordenamento jurídico, estando

elencado no artigo 196 da Constituição Federal, conforme trecho a seguir transcrito:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido


mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.

Segundo Sarlet; Figueiredo (2010, p. 37). “{…} pelo menos no que se refere ao

Estado diretamente da dicção do texto constitucional, que no artigo 196, “a saúde é

um direito de todos e um dever do Estado” salientando a obrigação precipuamente

estatal de proteção e efetivação desse direito”. O que foi surpresa nessa pandemia

do novo coronavírus é que o Poder Público criou um protocolo junto com as

entendidas médicas para escolher quem iria usar os respiradores e quais os

pacientes que seriam encaminhados para os hospitais de campanha, ou seja, quem

iria viver ou morrer. O Estado que deveria garantir o direito à saúde acabou por

violar, por meio desse protocolo, o direito humano e fundamental social à saúde e

à própria dignidade da pessoa humana.

Segundo Sarlet; Figueiredo,( 2010, p. 37) “{…} ainda em favor da existência

de um dever da própria pessoa ( e de cada pessoa) para com sua própria saúde(

vida, integridade física e dignidade pessoal), hábil à justificar dependendo das

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

circunstâncias do caso concreto,{…}”. Neste sentido o direito à saúde é uma

proteção a integridade física. Essa proteção pode ser contra o próprio Estado

detentor do poder ou de privados. Presume-se que o Estado tem o dever de prover

todos os meios necessários para que cada indivíduo tenha a sua vida resguardada

contra agressões ou ameaças a sua saúde. O direito social é de cunho prestacional

como, por exemplo, na saúde é através de exames, atendimento médico e

medicamentos que a saúde do indivíduo é protegida. Mais infelizmente, não está

sendo efetivado e eficaz nesse momento da pandemia.

Imperioso salientar que no que se refere a concretização do direito à saúde,

ainda há um grande caminho a ser percorrido. Podemos afirmar isso diante de

experiências vividas por pessoas na hora que precisaram recorrer ao SUS. As

políticas públicas não saíram do papel. Basta observar a falta de medicamentos,

pessoal da saúde e o ambiente precário onde os pacientes são atendidos, e muitas

das vezes os pacientes ficam dias sentados em cadeiras ou macas desconfortantes a

espera de um leito e isso se não vier a óbito, sendo isso uma violação por parte do

Estado. (SCHNEIDER; OLIVEIRA, 2017, p.313 p. 314).

Ressalta-se que pacientes de coronavírus sofrem com falta de respiradores,

profissionais, e com a escassez de remédios essenciais ao seu tratamento. Os

profissionais de saúde denunciaram a falta dos medicamentos, sendo esse problema

em toda rede pública. Relatos de médicos na rede pública de que pacientes vieram

a óbito por falta dos principais medicamentos para a cura da doença.

O mínimo existencial não foi suprimido pelo o Estado que tem o dever de

prover. Houve a transferência dos medicamentos de u hospital de campanha no

interior do Estado, para um hospital de campanha da capital. O mais favorecido

sendo beneficiado no lugar da população mais carente. Mais uma vez a dignidade

688
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da pessoa humana, o direito à vida sendo violado devido o Estado não suprir o

mínimo existencial (ALTINO, 2020).

Neste sentido, pode-se verificar que o Poder Judiciário desenvolve um papel

muito importante para que o direito à saúde seja efetivado, diante da ausência do

Estado. Com isso houve a judicialização da saúde. Várias ações são propostas no

judiciário para suprir o mínimo existencial necessário à saúde, como é o caso das

ações para adquirir medicamentos caros por pessoa de baixa renda que não

possuem os recursos necessários para obtê-los.

Observa-se que exames e cirurgias são objetos de ações que sobrecarrega o

Poder Judiciário em todo o país. Conflitos pelo simples fato de violarem o direito à

saúde. A sociedade evoluiu e suas necessidades também, motivo pelo qual o

conceito do mínimo existencial deve, necessariamente, seguir essa evolução

(RIBEIRO; FERREIRA, 2017, p.100- 101).

Ressalta-se que é necessário políticas públicas para atender a falta ou

inexistência de recursos para tender a demanda crescente da população, uma vez

que os direitos constitucionais precisam ser efetivados. A sociedade encontra-se

cada vez mais carente e doente, razão pela qual o Estado deve agir com

razoabilidade e proporcionalidade, observando a previsão orçamentária, para

garantir a toda a população às mínimas condições em saúde. Essa efetivação é uma

tarefa árdua mais necessária (RIBEIRO; FERREIRA, p. 102, P. 103).

No Brasil, a dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental que

visa garantir o bem-estar a todos. O Estado tem o dever de fazer com que os direitos

sociais sejam respeitados e concretizados (LEITE, 2020).

Importante esclarecer que a ordem econômica tem a finalidade de assegurar

a dignidade no âmbito familiar, social, dentre outros. A dignidade da pessoa

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

humana está expressa na Constituição Federal de 1988 e deve ser efetivada

(SARLET, 2003, p. 104).

Outro ponto de suma importância, é que na concepção jusnaturalista, a

Constituição consagra a dignidade da pessoa humana partindo do pressuposto de

que o homem em virtude de sua condição biológica humana é titular de direitos que

devem ser respeitados pela sociedade e o Estado (SARLET, 2003, p.108).

Segundo Sarlet (2003, p.109). “ Inicialmente, cumpre salientar que a

dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é algo que simplesmente

existe sendo irrenunciável e inalienável,” Além disso, a dignidade da pessoa

humana é irrenunciável e inalienável, sendo reconhecida, protegida e respeitada, e

que não pode ser tirado, por ser inerente a pessoa humana. É o valor próprio, a

natureza do ser humano. Nessa pandemia do coronavírus, observa-se a indignação

das pessoas por não conseguirem o primeiro atendimento, ficando horas nas filas

dos hospitais. E algumas até morrem à espera do atendimento. Perdem dignidade,

o direito à saúde e a vida.

Seundo Sarlet (2003, p. 109), “art. 1º na Declaração Universal da Organização

das Nações Unidas (1948), seundo o qual todos os seres humanos “todos os seres

humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de

consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade’’.

Quando pensamos em fraternidade, solidariedade e dignidade, vem logo em nossa

mente os direitos fundamentais. Cada indivíduo é único, motivo pelo qual nessa

pandemia que todo o mundo está vivenciando, todas as ações no combate são

coletivas. Quando foi anunciado na mídia o desvio das verbas destinadas para

combater a doença não houve fraternidade e o cuidado por parte de quem detém o

poder.

690
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Percebe-se que a sociedade não acredita mais nos seus governantes, porque

as promessas e o dever de garantir os direitos fundamentais, lamentavelmente, não

são efetivados. No inicio da pandemia todos os olhares atentos nos noticiários, e em

cada olhar uma esperança que tudo seria resolvido. E mais uma vez veio à traição

por parte dos detentores do poder. Nesse sentido, Bauman (2016, p. 24) esclarece

que “o Estado-nação está perdendo sua capacidade de proteger a liberdade e a

igualdade diante da escala e da complexidade de um mundo interdependente que

está excedendo o nacionalismo e a insularidade soberana de suas instituições”.

Desta forma, observa-se que a sociedade não acredita mais no cumprimento

do dever por parte do Estado e por aqueles que foram eleitos democraticamente.

Muitas pessoas perderam a sua vida. Aquele que tinha o dever de cuidar das

famílias, já não existe mais. A política não tem mais o poder de controlar a vida de

sociedade quando não supri as necessidades mais básicas, como por exemplo à

saúde, o direito a vida. Suas regras não protegem mais os menos favorecidos que

são isolados dos seus próprios direitos, “[...] já que sem liberdade material não há

liberdade política”. (BAUMAN, 2016, p. 25)

Neste sentido, verifica-se que o Estado deve assegurar condições mínimas

como, por exemplo, o trabalho, o acesso a saúde, a educação e existência dignas para

integrar as pessoas na comunidade, sendo esse o conteúdo principal do princípio

do Estado Social do Direito (SARLET, 2010, p.20).

Insta salientar que nos casos de omissão ou desvio de finalidade por parte

dos órgãos legiferantes, pode o Tribunal decidir sobre o padrão do mínimo

existencial para uma existência digna (SARLET, 2010, p.23). Desta forma, constata-

se que o Estado tem o dever de garantir às condições mínimas para que as pessoas

possam viver com dignidade.

691
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Essa pandemia do novo coronavírus (COVID-19) faz aparecer algo que já era

suspeita a muito tempo: O Estado não tem dado a importância devida na elaboração

e implementação de políticas públicas adequadas à efetivação do direito à saúde.

Muitos recursos que deveriam ser destinados à saúde são desviados, o que

compromete seriamente o êxito das ações dessa área. Observa-se que muitas vidas

poderiam ter sido salvas se, de fato, a saúde pública fosse levada a sério.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho foi analisado o papel do Estado na efetivação do direito

fundamental social à saúde, bem como a (in) eficácia das políticas públicas para a

concretização de tal direito. Devido à crise sanitária ocasionada pelo novo

coronavírus (COVID-19), observou-se que os Estados não estão preparados para

combater mazelas de alta complexidade, uma vez que o descaso com o sistema de

saúde brasileiro ao longo dos anos comprometeu, de forma aguda, a estrutura do

referido sistema.

Desta forma, conclui-se que as políticas públicas em saúde realizadas pelo

Estado não são eficazes para combater as mazelas ocasionadas pelo novo

coronavírus (COVID-19). Durante a pandemia foi constatado que o mínimo

existencial no direito à saúde não está sendo observado, já que o Estado não

providenciou a estrutura necessária para poder garantir, de forma eficaz, o

atendimento digno para aqueles que necessitaram recorrer aos hospitais para obter

tratamento médico.

Portanto, a crise do novo coronavírus demonstrou que é necessário investir

em políticas eficientes na área da saúde para se garantir a toda a população as

condições mínimas necessárias para uma vida digna. O Estado tem o dever de zelar

692
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pelo bem-estar de sua população e para tanto, deve-se garantir que todos possam

usufruir de um atendimento e tratamento médico de qualidade, resguardando-se,

assim, a própria dignidade humana.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

IMPACTOS DA PANDEMIA NA POLÍTICA EDUCACIONAL

BRASILEIRA

Celia Barbosa Abreu201


Alexander Seixas da Costa202
João Pedro Schuab Stangari Silva203

RESUMO
A pandemia do novo coronavírus acarretou a tomada de medidas de isolamento que
atingiram diversos setores da sociedade, e dentre eles o setor educacional, com quase a
totalidade das aulas presenciais sendo canceladas, ensejando perturbações em diversos
níveis da vida estudantil. Para tanto, o presente trabalho perfaz um exame da crise sanitária
global em curso e da situação da educação presencial, e também, uma abordagem sobre o
neoliberalismo, a globalização e o saber científico, correlacionando a simultaneidade entre
o surgimento da sociedade do conhecimento e os ataques ocorridos a ele ocorridos. Por fim,
analisa-se a Constituição de 1988, o neoliberalismo e a educação, salientando que a
educação não pode, e não deve, ser examinada sob o viés de geração de riquezas, ainda
realizando apontamentos sobre a necessidade de atuação estatal para minimizar os
impactos do fechamento das instituições de ensino. Para tanto, foi elaborada uma pesquisa
teórico dogmática, de cunho qualitativo.

Palavras-chave: Pandemia; Coronavírus; Educação.

ABSTRACT
The pandemic of the new coronavirus led to the taking of isolation measures that affected
various sectors of society, including the educational sector, with almost all of the face-to-
face classes being canceled, causing disruptions at different levels of student life. To this
end, the present work makes an examination of the current global health crisis and the
situation of face-to-face education, and an approach to neoliberalism, globalization and

201
Pós-Doutora, Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ.
Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Direitos, Instituições e Negócios/UFF. Professora
Associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
celiababreu@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8015623070536170.
202
Professor Assistente da Universidade Federal Fluminense e da Faculdade Cenecista de Rio das Ostras.
Professor de história no Colégio Municipal Elza Ibrahim. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Direitos, Instituições e Negócios. E-mail: alexandermpt@yahoo.com.br. Currículo lattes:
http://lattes.cnpq.br/1342995859695951.
203
Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense. E-mail:
joaopedroschuab@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9032655751013575.

696
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

scientific knowledge, correlating the simultaneity between the emergence of the knowledge
society and the attacks that have occurred to him. Finally, the 1988 Constitution,
neoliberalism and education are analyzed, emphasizing that education cannot, and should
not, be analyzed under the bias of wealth generation, still making notes on the need for
state action to minimize the impacts the closure of educational institutions. For that, a
dogmatic theoretical research was carried out, of qualitative nature.

Key-Words: pandemic; education; coronavirus.

INTRODUÇÃO

A pandemia do novo coronavírus trouxe consigo situações inéditas e

preocupantes ao redor do planeta. Já não bastasse os desafios da área da saúde, com

a superlotação dos hospitais e a busca incessante por uma cura ou vacina, vários

setores da sociedade sofrem com o advento das medidas de isolamento social para

contenção da doença. Este também é o caso da área educacional, haja vista que todas

as aulas presenciais foram canceladas, acarretando perturbações em diversos

aspectos da vida estudantil.

Trata-se de uma epidemia que revela, segundo Cueto (2020, online), a torpeza

dos governos autoritários populistas de direita que “atacaram a ciência e a saúde

pública – para que seus seguidores não pensem racionalmente – e criaram as

condições para o desespero, a desinformação, o estigma e o caos que agora

sofremos”. Em outras palavras, uma epidemia que surge como triste sequela de

uma crise que remonta aos anos oitenta do século passado, ocasião em que a maioria

dos governos mundiais abraçaram o neoliberalismo, a globalização e a “cruel

doutrina que proclamava uma drástica redução dos gastos públicos e

desmantelamento da intervenção do Estado nos programas sociais”.

Portanto, analisar os impactos desta crise sanitária na educação se justifica dada

a predominância de um modelo econômico capitalista mundial, com um

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

neoliberalismo crescentemente dominado pelo capital financeiro global, o qual

acaba por sujeitar as áreas sociais – e dentre elas está inserido o setor da educação –

ao modelo lucrativo, para que sejam idealizadas e conduzidas visando o máximo

de lucro possível, ignorando completamente os princípios basilares do Estado

Democrático de Direito de cidadania e dos direitos humanos (SANTOS, 2020, p.24).

O governo brasileiro, apesar da política de liberação emergencial de recursos,

em meio à rápida evolução da pandemia, manteve o aprofundamento das políticas

de redução do Estado e cortes de direitos, ao contrário dos EUA e Europa, onde os

referidos governos correram para injetar os recursos necessários para combater a

pandemia e seus efeitos, recorrendo à reestatização, redução drástica dos juros, a

programas de renda mínima e à suspensão de pagamento de aluguéis, contas de luz

e gás, taxas e impostos (PONTE, 2020, online).

Indo em contraponto, o presente artigo tenta demonstrar a necessidade de

remar-se contra a maré do neoliberalismo, argumentando no sentido de ser uma

exigência a retomada da intervenção estatal na economia e a concretização de um

Estado do Bem-Estar Social em nosso país. Nesse contexto, o trabalho em tela será

composto por três partes. Inicialmente, será realizado um exame da crise sanitária

global em curso e da situação da educação presencial. A seguir, perfar-se-á uma

abordagem sobre o neoliberalismo, a globalização e o saber científico,

correlacionando a simultaneidade entre o surgimento da sociedade do

conhecimento e os ataques ocorridos a ele ocorridos, a exemplo dos cortes de verba,

regressão das políticas públicas e do investimento para a ampliação de escolas e

universidades públicas. Em terceiro lugar, analisar-se-á a Constituição de 1988, o

neoliberalismo e a educação, salientando que a educação não pode, e não deve, ser

examinada sob o viés de geração de riquezas, ainda desenvolvendo apontamentos

sobre a necessidade de atuação estatal para minimizar os impactos do fechamento

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

das instituições de ensino. Para tanto, será realizada uma pesquisa teórico

dogmática, de cunho qualitativo.

1. CRISE SANITÁRIA GLOBAL E EDUCAÇÃO PRESENCIAL

Ao receber a notícia da pandemia do novo coronavírus, a maioria dos governos

ao redor do mundo fechou temporariamente instituições educacionais na tentativa

de conter a propagação da COVID-19. Tais fechamentos estão impactando mais de

72% da população estudantil do mundo, ou seja, mais de 1,2 bilhões de estudantes,

acarretando problemas em diversos aspectos da vida estudantil, como o

aprendizado interrompido, a má nutrição, pais despreparados para a educação a

distância dos filhos em casa, desafios na educação a distância, altos custos

econômicos, dentre outros, sendo que tais transtornos são particularmente mais

severos para a população que é mais vulnerável e economicamente hipossuficiente,

haja vista que as perturbações exacerbam as disparidades e desigualdades já

existentes (UNESCO, 2020, online).

Em nível mundial, estima-se que metade do número total de alunos, cerca de

826 milhões de estudantes, que estão mantidos fora de sala de aula, não têm acesso

a um computador doméstico, e 43% não têm acesso a internet em casa (706 milhões

de estudantes). Além disso, mesmo com a facilidade do uso de aparelhos celulares

para acesso às aulas, cerca de 56 milhões de alunos vivem em locais que não são

atendidos por redes móveis (UNESCO, 2020, online).

Destarte, o Brasil tem seguido a inclinação mundial, porquanto em todo o

território nacional escolas públicas e privadas fecharam suas portas e, na maioria

delas, transferiu-se o ensino presencial para o remoto. Nesse sentido, cabe

perguntar qual será o grau de cumprimento do Estado do mandado constitucional

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

com a educação? Afinal, se as escolas e universidades estão fechadas e,

inequivocamente, será preciso recorrer ao ensino a distância para manter viva a

relação entre professores e alunos, certo é que será necessário o uso da tecnologia

para não interromper este elo tão importante de comunicação, exigindo-se do poder

público tomadas de decisão rápidas sobre questões inéditas e altamente complexas.

Assim sendo, que medidas serão adotadas? Serão organizados e oferecidos

programas de televisão para o ensino dos estudantes? Será inclusa programação

destinada à educação nas rádios? O que será feito para levar, especialmente à

população mais vulnerável, o acesso à internet e aos dispositivos para ter acesso às

aulas? Como ficará a relação entre professores e alunos, haja vista que, se graças a

tecnologia, é possível não interromper o fio de comunicação, o contato humano

direto entre os professores e alunos ainda se torna essencial? Como fica o papel do

ensino, que problematiza e estimula o espírito crítico e autocrítico dos alunos? Os

professores estão preparados e treinados para oferecer a educação à distância e on-

line de maneira eficaz?

O presidente peruano, Martín Vizcarra, exemplificativamente, desde de abril,

diante do quadro de pandemia descartou a possibilidade de aulas presenciais este

ano. Com isso, concluiu que as aulas serão a distância e realizadas por meio de aulas

virtuais na internet, rádio e televisão. Foi lançado o programa de TV, “Eu aprendo

em casa”, bem como o Ministério da Educação comprou 719.000 tablets com internet

para os estudantes da zona rural e 124.000 para os da cidade. Ademais,

considerando que os custos da educação a distância são menores, posicionou-se o

governo favoravelmente à redução das taxas escolares. Num cenário em que muitos

ficaram sem renda, o governo vem estimulando às famílias a retirarem os filhos das

escolas particulares e matricularem nas públicas (ISTO É, 2020, online).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Estas e outras indagações estão no campo das políticas educativas, que,

segundo Antón Lois Fernández-Álvarez e Denis Ribeiro dos Santos, são um

elemento poderoso para realizar a mobilidade social, que as constituições ocidentais

atuais abraçam com valores, princípios e direitos. Consubstanciam a um só tempo

um “poderoso instrumento redistributivo”, e ainda, “contém uma importante força

contra a estratificação social e produzem -ou deveriam produzir- uma considerável

ação em favor da redução da desigualdade pelo chamado efeito de “elevador

social”. De acordo com os autores, este efeito “beneficia a promoção social das

classes mais baixas através das oportunidades que oferece”, como “uma melhor

educação, formação e qualificação profissional, quando elas são financiadas com

fundos públicos arrecadados conforme a capacidade de pessoas e entidades

jurídicas” (FERNÁNDEZ-ÁLVAREZ; SANTOS, s.d.)

Nesse sentido, afirma-se que a educação é “um dos principais meios de

realização de mudança social ou, pelo menos, um dos recursos de adaptação das

pessoas a um mundo em mudança”. Mais do que associá-la à mudança, defende-se

ser preciso associá-la à ideia de “desenvolvimento (social, socioeconômico,

nacional, regional, de comunidades etc)” (BRANDÃO, 2007, p. 78-83). Portanto,

diante da crise sanitária, social e econômica atual, inegável a importância de se

investir, especialmente, na saúde e na educação. Logo, mais até que um meio de

adaptação das pessoas às mudanças em andamento, é necessário passar a enxergar

a educação como um autêntico investimento.

Pessoas educadas importam em mão-de-obra qualificada e seres humanos

motivados enquanto sujeitos do processo, agentes da mudança, promotores do

desenvolvimento, e é para torná-los mais do que cultos, que a educação deve ser

pensada e programada. A este respeito, destaca a doutrina que não à toa alguns

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

países defendem que as propostas de educação venham quase prontas do

Ministério do Planejamento para o da Educação (BRANDÃO, 2007, p. 84).

2. GLOBALIZAÇÃO, NEOLIBERALISMO E SABER CIENTÍFICO.

No mundo contemporâneo, o fenômeno da globalização é cada vez mais

visível e as fronteiras entre países ficam cada vez mais fluidas; promove-se uma

transição de ideias, culturas e valores, mas prevalentemente a globalização

econômica. Não vivenciamos mais um mundo bipolar da Guerra Fria, em que os

embates entre capitalismo e socialismo poderiam ser pensados na lógica de um jogo

de xadrez, ou seja, a cada movimentação de um sistema econômico, o ataque de

outro. Hoje não, o capital é mais que transnacional, o Estado-Nação perde espaço

para grandes concentrações de capital e foi sendo negligenciada uma questão

fundamental: a preocupação com a pessoa humana.

Quando pensamos em globalização, portanto, a correlacionamos com a

globalização econômica e não com a globalização (solidariedade) da sociedade civil.

Consideramos, assim, a globalização típica do modo de produção capitalista, na

qual é nítida a distinção entre países globalizadores e globalizados. Temos em

mente a globalização do capitalismo, ocasião em que o neoliberalismo compreende

a prática e a ideologia dominantes em escala mundial. Ocorre uma dissociação entre

Estado e sociedade civil sem precedentes. A cultura do capitalismo surge

transformando tudo que vê pela frente em mercadoria, demonstrando-se avessa a

valores como a igualdade, a fraternidade e a caridade (IANNI, 1997, p. 71).

Em outras palavras, comumente associamos o processo de globalização,

não a um complexo de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais

intensas, mas sim à globalização excludente e capaz de ensejar um retrocesso tido

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

como brutal para os cidadãos da maioria do mundo. A globalização cujo foco é a

economia de mercado, onde estão presentes as disputas regionais entre os blocos:

europeu, asiático, norte-americano ampliado e latino-americano, o que, ao invés de

estimular, culmina por retardar o próprio processo de globalização. Trata-se da

visão de mundo dividido em blocos, em que estão presentes interesses econômicos

regionais (GADOTTI, 1998, p.4).

Desse modo, para a compreensão da sociedade atual, urge analisar o país

no contexto da globalização, dos avanços tecnológicos e da ideologia do livre

mercado (neoliberalismo). A globalização surge como tendência internacional do

capitalismo e conjuntamente com o projeto neoliberal, determinando aos países

periféricos uma economia de mercado global sem restrições, uma competição

ilimitada e uma minimização do Estado na área econômica e social. Com isso, nestes

surgem problemas como a exclusão social, o desemprego e o aumento da miséria.

Trata-se de uma forma de globalização que abraça a prevalência da economia de

mercado/livre mercado, “uma situação em que o máximo possível é mercantilizado

e privatizado, com o agravante do desmonte social” (SANTOS; ANDRIOLI, s.d., p.

2-3).

As políticas educacionais são projetadas e implantadas segundo estas

exigências da produção e do mercado, o que leva a que se exijam: “pessoas

polivalentes, flexíveis, ágeis, com visão do todo, conhecimentos técnicos e um

relativo domínio na área de informática”, sem mencionar que “falem, leiam e

escrevam em vários idiomas, que possuam habilidades múltiplas, e assim por

diante.” Destarte, aqueles que não estejam capacitados em conformidade com as

exigências do mercado são “excluídos do processo produtivo, resultando em

desemprego, miséria, fome, doença e, em suas últimas consequências, a morte”

(SANTOS; ANDRIOLI, s.d., p. 4).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Surge, por conseguinte, uma situação paradoxal. De um lado, há a

inequívoca relevância adquirida na nova realidade mundial da ciência e da

inovação tecnológica, o que têm levado os estudiosos a denominarem a sociedade

atual de “sociedade do conhecimento, sociedade técnico informacional ou

sociedade tecnológica.” Em suma, um contexto em que o conhecimento, o saber e a

ciência adquirem um papel de destaque. De outro, no entanto, nota-se que a busca

do saber científico se dá não como um fator relevante para a construção da

cidadania dos indivíduos e também de transformação social, mas sim porque “nesta

sociedade marcada pela revolução tecnológico-científica, curiosamente, a

centralidade do processo produtivo está no conhecimento e, portanto, também na

educação”. Em outras palavras, a educação exerce um papel central para o

crescimento econômico do país (SANTOS; ANDRIOLI, s.d., p. 4).

Nesse sentido, temos que a educação é ofertada como uma mercadoria e a

escola aparece, na realidade, enquanto mais uma empresa que oferece um serviço a

um consumidor (o estudante). Há uma lógica das propostas do mercado mundial,

às quais se sujeitam as políticas sociais, econômicas e educacionais. Fala-se assim na

modernização da educação (tal qual na indústria), diversificação, produtividade,

eficácia, competência etc. Há um foco na competição, retirando o sentido crítico e

emancipatório que desta deveria se esperar. Isto, sem mencionar que esta educação

atualizada e de qualidade pode, ao invés de contribuir como fator de mobilidade

social, reduzindo as desigualdades sociais, culminar por corroborar para a

segregação e a exclusão social, na medida em que, em se tratando de um produto, a

verdade é que nem todos podem arcar com seu preço.

Nesse cenário, a figura do cidadão dá lugar ao homem


empreendedor, o sujeito ao qual a sociedade nada deve, aquele que
tem que se esforçar para conseguir o que quer, de acordo com os

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

valores da meritocracia. A referência da ação política não é mais o


sujeito de direitos, mas um ator autoempreendedor que é o único
responsável pelo empreendimento de si. O político passa a enfatizar
a lógica da racionalidade econômica. Nesse sentido, não se governa
um povo. Regula-se o fluxo de populações, fazendo viver quando
se agrega riqueza e capital ao país; e deixando morrer pela
improdutividade ou pouca capacidade de consumo. Esse modelo
atenta diretamente contra a lógica democrática da cidadania social,
“reforçando as desigualdades sociais na distribuição dos auxílios e
no acesso aos recursos em matéria de emprego, saúde e educação”.
Trata-se da fabricação de um número crescente de “subcidadãos” e
“não cidadãos”. (VERBICARO, 2020, online)

A proposta de educação do Brasil é a de preparação de uma mão-de-obra,

mais voltada para o campo técnico do que humano. Se aprendemos a ler, escrever e

contar, em realidade, não há nada de edificante, humanitário ou filantrópico nisto.

Objetiva-se que saibamos ler manuais de instruções; escrever relatórios de

produção; contar a quantidade de produtos numa embalagem, por exemplo. Trata-

se de uma mentalidade que é o suprassumo da exploração capitalista, pontuando

ainda Santos e Andrioli, s.d., p. 8:

É evidente que a preocupação do capital com a educação não é


gratuita. Existe uma coerência do discurso liberal sobre a educação
no sentido de entendê-la como “definidora da competitividade
entre as nações” e por se constituir numa condição de
empregabilidade em períodos de crise econômica. Como para os
liberais está dado o fato de que todos não conseguirão “vencer”,
importa então impregnar a cultura do povo com a ideologia da
competição e valorizar os poucos que conseguem se adaptar à lógica
excludente, o que é considerado “um incentive à livre iniciativa e ao
desenvolvimento da criatividade”.

Sobre o neoliberalismo e a educação no nosso país, entre outros aspectos,

escrevem os referidos autores que, progressivamente, o que se tem buscado é, em

705
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

matéria de política social e educacional, minimizar a presença estatal e ampliar a

abrangência do mercado:

O progressivo aumento das privatizações é a prova mais evidente


disso e como se não bastasse, a educação, que já é em parte
controlada pela iniciativa privada, está sendo entregue de uma vez
por todas ao domínio do capital. O caso mais preocupante é o da
tentativa de privatizar as universidades federais. Se isto acontecer,
as chances já escassas do cidadão pobre estudar, mesmo com a
universidade pública e gratuita, acabarão definitivamente.
(SANTOS; ANDRIOLI, s.d., p. 9).

Ou seja, perante o discurso neoliberal, a educação deixaria de constituir

parte do campo social e político, e ingressaria totalmente na dinâmica de mercado,

para assim, funcionar à sua imagem e semelhança, com vistas a produção de bens

de consumo e para o desenvolvimento do mercado, atribuindo a participação do

Estado, por meio de políticas públicas sociais, a razão para o atraso, e o não

desenvolvimento econômico e social. Desse modo, ao fim, se visaria a promoção de

uma regressão da esfera pública e a criação de um Estado mínimo, inutilizando os

séculos de luta e reinvindicações sociais para a atuação do estado com a promoção

de políticas públicas, visando o crescimento igualitário, a qualidade de vida, a

construção de uma cidadania igualitária e o fortalecimento da proteção à dignidade

da pessoa humana.


3. A CONSTITUIÇÃO DE 1988, A EDUCAÇÃO E A NECESSÁRIA ATUAÇÃO

ESTATAL.

É notória a consolidação do welfare state sobre grandes duas bases, as quais

constituem a social e econômica. A relação entre as duas se mostra quase simbiótica,

706
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

porquanto o viés econômico de um estado de bem-estar inclui substancialmente o

gasto estatal a favor da qualidade de vida da população, que é promovida por

políticas públicas para consubstanciar serviços de qualidade.

As políticas sociais, após um demasiado tempo para sua conquista por meio de

reivindicações da população, foram instituídas para promoção da proteção dos

membros da sociedade, bem como para garantir meios para que todos tenham as

mesmas possibilidades de desenvolvimento e boa qualidade de vida. Em nosso

país, atualmente, as políticas sociais, que dentro delas se inserem as políticas

educacionais, são amplamente discutidas no meio político por constituírem grande

parcela do gasto estatal.

No Brasil, a Constituição cidadã de 1988 proclama a construção de uma

sociedade livre, justa e solidária e a redução das desigualdades sociais como

objetivos fundamentais da República (art. 3º). Aliás, protege de forma explícita e

inequívoca, entre outros direitos sociais, o direito de educação (art. 6º). Nos termos

do artigos 205 a 214, a educação é um “direito de todos e dever do Estado e da

família”, devendo ser “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,

visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da

cidadania e sua qualificação para o trabalho”, com vistas à democratização trazida

pela Constituição, que obriga o poder público ao estabelecimento de metas e

programas para reverter décadas de descaso com a educação, e ainda, traz um

comprometimento com aspectos essenciais, a exemplo uma educação universal,

com qualidade, e acessível a todas as camadas da população (CANOTILHO et al,

2013, p. 1975).

Da mesma forma, a Lei de diretrizes e bases da Educação Nacional configura a

educação como dever do Estado (art. 2º), reforçando a especial responsabilidade

estatal com educação escolar pública (art. 4º) e garantindo para ela padrões mínimos

707
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de qualidade de ensino com a achega dos insumos indispensáveis. Com essa

regulação, o Brasil almeja se constituir inequivocamente num Estado de Bem-Estar,

que ampara especialmente a educação como elemento indispensável da sua

responsabilidade como Estado Social e Democrático de Direito, na conceitualização

iniciada por Heller na República de Weimar (HELLER, 2002, passim).

A constituição de Weimar, foi uma das primeiras em nível mundial a prever

direitos sociais, trazendo um extenso rol de direitos fundamentais, e assim,

influenciando diversas constituições pelo mundo, inclusive a Brasileira de 1988. No

entanto, o Estado Social almejado, principalmente após as crises de petróleo de 1980

e a crise econômica de 2008, claramente se encontra em crise, fazendo com que assim

ressurja o temido “fantasma de Weimar”, com a ascensão de governos autoritários

e populistas, como Hitler e a ditadura nazista.

Lenio Streck, em entrevista, relatou sobre a crise do estado de bem-estar social

no Brasil, esta tendo se dado principalmente após a reforma trabalhista, a reforma

da previdência e o advento da EC 95 e o Novo Regime Fiscal, trazendo a

impreterível necessidade de uma postura substancialista por parte do governo, haja

vista que as garantias constitucionais estariam sendo derrotadas, com “parte do

Supremo Tribunal trocando o texto constitucional pela chamada ‘voz das ruas’”,

com o fim do almejado estado social, justamente pelo dualismo metodológico que

Heller combateu em sua Teoria do Estado, acabando por derrotar também a noção

de constitucionalismo social, e a noção de força normativa da constituição, que já

deveria ser suficiente para garantir o papel do Estado Social previsto no art. 3º

(RODAS, 2019, online).

Além do mais, acrescento, depois da EC 95, pouco resta da ideia de


Estado Social e o papel compromissório da Constituição. É triste
dizer isso. De há muito autores como Gilberto Bercovici, Martonio

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Barreto Lima e Marcelo Cattoni advertem para o fato de a


Constituição estar sendo erodida. Penso que a Constituição exigiu
demais dos juristas e políticos brasileiros. Ouso dizer, tristemente,
que não fomos merecedores desta Constituição. Ela nos exigiu algo
que não tínhamos e não temos. Não fomos ortodoxos na aplicação
da Constituição. Fomos e somos lenientes. O voluntarismo, o
realismo retrô, um constitucionalismo de efetividade que gerou um
neoconstitucionalismo irresponsável, o dualismo metodológico que
coloca a normatividade em segundo plano (voz das ruas,
moralismos), uma dogmática jurídica sem sofisticação teórica, a
moralização do direito, tudo aliado a uma multidão de pessoas da
área jurídica com formação deficiente – afinal, assim como no
parlamento, também existe o “baixo clero jurídico”: eis a receita
para o fracasso da Constituição mais rica já produzida no século XX
(RODAS, 2019, online).

Hesse já alertava para a submissão da normatividade perante a realidade fática,

porquanto a concepção de força determinante constitucional se dá com as condições

de eficácia da constituição, ou seja, a eficácia da norma, como limite hipotético

extremo. Assim, a norma fundamental seria estática e racional, e a realidade fluida

e irracional, existindo entre ambas uma tensão imanente, e por estas razões, a

constituição jurídica, de índole técnica, sucumbe diariamente em face da

constituição real. (HESSE, 1991, p. 09)

Indo além, Hart traz a respeito da regra de reconhecimento e validade da norma

jurídica, sendo que para ele, na vida quotidiana de um sistema jurídico, a sua regra

de reconhecimento raramente é formulada para reafirmar termos gerais de um

critério sobre o outro, como ocorre quando alega a supremacia do parlamento sobre

outras fontes de direito (HART, 1994, p.114).

No Brasil, tem-se a cara tensão entre os dispositivos constitucionais que

garantem uma educação para todos, com padrões mínimos de qualidade, bem como

instituídas para a construção da cidadania e valores sociais, para assim, reduzir as

desigualdades e constituir um estado de bem-estar social, com os interesses de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

diversos segmentos sociais que, ao contrário, mais interessam a eles a geração de

lucros e mão de obra, implicando a “constituição das diferentes equipes que

assumem o Ministério de Educação e as Secretarias de Educação dos estados e

elaboram e implementam as diferentes “políticas” educacionais” (KASSAR, 1998,

online).

O claro caráter dúbio dos dispositivos constitucionais, que ao mesmo tempo,

em seu artigo 209, traz a exigência do cumprimento das normas gerais da educação

nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público para a

exploração do ensino à iniciativa privada, e dispõe, em seu artigo 170 que a ordem

econômica, segue os princípios da propriedade privada e livre concorrência,

embasa diversos discursos neoliberalistas para a construção de uma educação

geradora de lucros, culminando na máxima que, se assim o estudante tiver

condições econômicas para a continuidade dos estudos, após as escolas terem

fechado as portas, e disponibilizado a educação à distância, este continuará

estudando, e se não, nada o Estado tem haver com isso.

Recentemente a discussão da realização do ENEM (Exame nacional do Ensino

Médio) em meio a pandemia, ampliou as discussões sobre a necessidade de atuação

estatal para a redução das desigualdades do acesso à educação. Em maio de 2020, o

Ministro da Educação Abraham Weintraub em seu discurso, dissertou sobre a

desnecessidade de cancelamento do ENEM, haja vista que o exame teria, em tese, a

finalidade de selecionar estudantes, e não corrigir injustiças.

O referido discurso, bem como as diversas propagandas Estatais veiculadas em

diversos meios de comunicação que mostravam realidades de ensino remoto ideais

– totalmente utópicas - visando a não interrupção do exame, acabaram por

consolidar a política do atual governo, que a revés do mandado constitucional de

promoção de uma educação de qualidade acessível a todos, acaba por construir

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mais barreiras de acesso à educação pelas camadas mais pobres da população, com

uma política do “salve-se quem puder”, que ao invés de buscar reduzir as

desigualdades e a promoção de um estado de solidariedade, vai ao contrário, com

um discurso individualista e posturas apáticas do governo.

Hoje, vê-se, no Brasil, o avanço do retrocesso, com a degradação das


condições de trabalho e a retirada de direitos trabalhistas; o
antiambientalismo; o discurso refratário aos direitos humanos e
aumento da força policial, tendo a morte como política de Estado
(necropolítica), que tanto faz morrer (guerra às drogas, à
criminalidade), quanto deixa morrer sem as proteções sociais estatais;
o corte de políticas sociais distributivas; a negação de pautas
identitárias, o que provoca a intensificação da vulnerabilidade de
minorias excluídas historicamente como índios, quilombolas, negros,
LGBTs e imigrantes; ataques e ameaças à veículos de imprensa, afinal,
a imprensa desafia a ilusão do consenso; a intimidação, perseguição e
censura aos professores (combate ao marxismo cultural); a deterioração
das instituições educacionais, universitárias e científicas; o cultivo do
anti- intelectualismo, revisionismo histórico, negacionismo científico e
contrário ao politicamente correto; a demonização do Estado e
privatização das empresas públicas. (VERBICARO, 2020, online)

A atual pandemia pode representar um importante momento para uma reflexão

a respeito do quanto o Estado caminha em direção contrária aos objetivos previstos

no artigo 3º da Constituição da República, não promovendo uma sociedade pautada

pela solidariedade e redução das desigualdades sociais. Assim sendo, a construção

de uma sociedade democrática implica, no âmbito educacional, o acesso à educação,

a fim de que todos tenham a mesma oportunidade, por exemplo, de disputar uma

vaga no certame do vestibular.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É ainda incerto o futuro com o advento da pandemia, que alterou não só as

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

formas como nos relacionamos, como as formas que trabalhamos, e também o modo

de ensinar. O ensino presencial, que passou a ser remoto, trouxe inovações nunca

pensadas, e questões que estavam mais “adormecidas”, como o acesso à educação

de qualidade para as camadas mais pobres da população.

Nesse sentido, torna-se clara a necessidade de atuação estatal com vistas a

reduzir as disparidades para com o acesso aos meios de ensino remoto, que

acabaram por tornar a educação novamente somente acessível a quem tem

condições de não só comprar equipamentos para disponibilização das aulas online,

como quem tem espaço físico para uma boa aprendizagem em casa, e além de tudo,

internet de qualidade.

Inobstante, além das questões acima, tem-se como necessária a especial

preocupação com a aprendizagem dos conteúdos a distância, sendo certo também

que é preciso pensar no bem-estar, saúde mental e equilíbrio emocional dos alunos,

que estão vivenciando situação nunca vivida em nossa sociedade, com vistas a

evitar a evasão dos discentes mais vulneráveis, com a premissa que a educação deve

ser meio de redução de desigualdades, e não o contrário.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O TRATAMENTO DISPENSADO ÀS FAMILIAS DE DETENTOS

NA PANDEMIA DO COVID-19: UM ESTUDO PELA ÓTICA DA

ECONOMIA POLÍTICA DA PENA

Jéssica Domiciano Jeremias204

RESUMO
Em 14 de maio de 2020, o jornal Estadão noticiou que o governo federal brasileiro não
concedeu aos familiares de detentos o auxílio emergencial disponibilizado em razão da
pandemia do novo Corona Vírus. A empresa que faz o processamento dos dados para a
concessão do auxílio admitiu a restrição de acesso às famílias de encarcerados. Noutro giro,
segundo a Dataprev, os requerimentos não foram negados, porém mais de 39 mil pedidos
apresentados pelos familiares de detentos ou pelos próprios indivíduos encarcerados irão
passar por um “processamento adicional”. O presente trabalho objetiva investigar o
impacto do encarceramento para a família dos indivíduos detidos, com especial enfoque na
situação socioeconômica enfrentada por estas pessoas frente à negativa do auxílio
emergencial em decorrência do novo Corona Vírus. Utilizar-se-á, como metodologia, a
análise materialista, por meio do marco teórico analítico crítico da economia política da
pena, feminismo marxista e criminologia crítica. A primeira seção apresenta aspectos
socioeconômicos brasileiros durante a pandemia do Covid-19, com destaque às
vulnerabilidades acentuadas em relação à vida, saúde e subsistência dos trabalhadores. Na
segunda seção, é trabalhado o marco teórico da economia política da pena no contexto da
pena de prisão na sociedade neoliberal para, a seguir, serem trabalhadas reflexões
feministas e familiares acerca dos impactos do encarceramento. Por fim, se investiga o caso
da negativa do auxílio emergencial aos familiares de detentos. Conclui-se que os
trabalhadores que possuem familiares de detentos encontraram especial dificuldade de
manutenção de subsistência durante a pandemia, estando mais propensos aos riscos de
saúde e vida característicos da crise sanitária.

Palavras-chave: Criminologia crítica; Encarceramento; Família; Covid-19; Auxílio


emergencial.

204
Advogada inscrita na OAB/SC, graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC),
mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito UNESC na linha de Direitos Humanos, Cidadania e Novos
Direitos, com ênfase em Criminologia Crítica, pesquisadora do Grupo de Estudos Avançados em Economia
Política da Pena, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em parceria com o Grupo Andradiano
de Criminologia Crítica da UNESC. Endereço eletrônico: jessicadomicianojeremias@gmail.com. Currículo Lattes
em: <http://lattes.cnpq.br/5486365774085204>. ORCID em: <https://orcid.org/0000-0002-1604-0256>.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
On May 14, 2020, the newspaper Estadão reported that the Brazilian federal government
did not grant to the family members of prisoners the emergency aid made available due to
the pandemic of the new Corona Virus. The company that processes the data for the
granting of the aid admitted the restriction of access to the families of prisoners. On the
other hand, according to Dataprev, the requests have not been denied, but more than 39
thousand requests submitted by relatives of detainees or by the incarcerated individuals
themselves will be submitted by an “additional processing”. This paper seeks to investigate
the impact of incarceration on the family of detained individuals, with a special focus on
the social and financial situation faced by these people in the face of the negative emergency
aid resulting from the new Corona Virus. As methodology, a materialist analysis will be
used, through the critical analytical theoretical framework of the political economy of
punishment, Marxist feminism and critical criminology. The first section presents Brazilian
socioeconomic aspects during the Covid-19 pandemic, with a special focus on the
heightened vulnerabilities in relation to the life, health and subsistence of the working class.
In the second section, the theoretical framework of the political economy of punishment is
worked on in the context of the neoliberal. Than, feminist and family perspectives of the
incarceration are analyzed. Finally, the case of the denial of emergency aid to relatives of
prisoners is investigated. It is concluded that workers who have family members in jails
found particularly difficulties to maintain their subsistence during the pandemic, being
more prone to the health and life risks characteristic of the health crisis.

Keywords: Critical criminology; Incarceration; Family; Covid-19; Emergency aid.

INTRODUÇÃO

No dia 14 de maio de 2020, o jornal Estadão (Portal do Estado de São Paulo)

noticiou que o governo federal brasileiro não concedeu aos familiares de detentos o

auxílio emergencial disponibilizado em razão da pandemia do novo Corona Vírus,

no valor de 600 reais. Segundo o portal de notícias, que obteve acesso ao ofício

encaminhado ao Ministério Público Federal pelo Ministério da Cidadania, a

empresa que faz o processamento dos dados para a concessão do auxílio admitiu a

restrição de acesso às famílias de encarcerados. Noutro giro, segundo a Dataprev,

os requerimentos não foram negados, porém mais de 39 mil pedidos apresentados

pelos familiares de detentos ou pelos próprios indivíduos encarcerados irão passar

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

por um “processamento adicional”. Em entrevista ao Estadão, o procurador do MPF

Júlio Araújo destacou a gravidade da situação, principalmente considerando que a

lei não estabelece a restrição operada neste caso (TURTELLI, 2020).

Para além das divergências nas informações prestadas, ora apontando para

uma restrição discriminatória no acesso ao auxílio emergencial, ora apontando para

um suposto “reprocessamento” dos dados, tem-se imposta a problemática de 39 mil

requisições ainda não atendidas. Com isso, infere-se que milhares de pessoas

encontram-se desamparadas pelo Estado em um momento de grave crise sanitária

provocada pela pandemia do Covid-19. Desta forma, para além dos riscos já

trazidos pela própria doença, da crescente sobrecarga do sistema de saúde e da

fragilização das relações de trabalho em decorrência da pandemia, a camada mais

empobrecida da sociedade sofre ainda com a discriminação oriunda dos órgãos da

administração pública. Por esta razão, importa investigar possíveis explicações para

o acontecimento, bem como analisar as consequências da política pública adotada,

principalmente na vida dos que tiveram negado o auxílio.

O presente trabalho apresenta algumas formulações teóricas para a

compreensão de possíveis articulações entre a economia política da pena e gênero,

a partir de uma análise materialista do sistema de punição. Buscar-se-á analisar o

impacto do encarceramento para a família dos indivíduos detidos, com especial

enfoque na situação socioeconômica enfrentada por estas pessoas frente à negativa

do auxílio emergencial em decorrência do novo Corona Vírus.

Assim, busca-se correlacionar o modo de produção de uma dada sociedade –

capitalismo, com o sistema de punição vigente. Para isso, é feito um resgate das

principais formulações acerca da economia política da pena por um viés marxista,

bem como ressaltado os principais marcadores do contexto neoliberal do

capitalismo atual e sua influência nas dinâmicas criminais. Após, apresenta-se

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

algumas perspectivas familiares e feministas do encarceramento, a fim de

demonstrar que o sistema penal atua sobre a vida das famílias também por meio do

controle social sobre seus membros. Por fim, parte-se à análise da negativa do

auxílio emergencial aos familiares de detentos, sob o marco teórico já demarcado.

1. ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS DA PANDEMIA DE COVID-19 NO

BRASIL

Em 21 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou

que, em 31 de dezembro de 2019, foi notificada acerca da ocorrência de casos de

uma pneumonia até então desconhecida. Segundo a nota, de 31 de dezembro de

2019 a 3 de janeiro de 2020, 44 casos desta doença foram detectados na cidade de

Wuhan, China (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020b). Tratava-se do Novo

Corona Vírus. No Brasil, o primeiro caso registrado da doença, segundo dados

informados pelo governo federal, data de 04 de março do ano de 2020 (BRASIL,

2020a). Nesta mesma data, o mundo já contava com 93.091 casos confirmados de

infecção pelo vírus distribuídos em mais de 70 países, segundo o Situation Report-

44 da OMS (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020c). O Situation Report-51,

datado de 11 de março de 2020, relatou que a situação da Covid-19 é pandêmica

(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020d). O anúncio feito pela direção geral

da OMS, na mesma data, declara que esta é a primeira pandemia no mundo vivida

por conta do supramencionado vírus (WORLD HEALTH ORGANIZATION,

2020a).

Apesar do período de quase três meses até a chegada da doença no Brasil,

tempo que poderia ter sido valioso na elaboração de estratégias sanitárias para a

contenção das infecções, a postura adotada pelo governo federal nacional foi de

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negacionismo e irresponsabilidade para com a vida e a saúde de milhões de

brasileiros. Em pronunciamento na data de 24 de março de 2020, o presidente da

república Jair Bolsonaro anunciou que “pelo meu histórico de atleta, caso fosse

contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria

acometido, quando muito, de uma gripezinha ou resfriadinho [...]”, minimizando a

gravidade da situação e pondo em risco todos os brasileiros. Na data de 26 de agosto

de 2020, a Covid-19, em um contexto de projeto genocida do governo federal, já

atingiu 3.669.995 brasileiros, levando 116.580 à óbito (BRASIL, 2020b).

Perigosa não somente pelos seus impactos no campo da saúde e no risco trazido

às vidas humanas, a pandemia também traz consigo significativas consequências

econômicas. A Covid-19 chegou ao Brasil logo após a divulgação de dados

frustrantes acerca do PIB nacional, cujo crescimento foi registrado em 1,1%,

contrariando a expectativa de crescimento de 2,6%. Registra-se que o número obtido

foi menos que os anos de 2017 e 2018. Laura de Carvalho explica que pouco antes

da tomada de medidas restritivas, por parte de diversos entes federativos, o

ministro da economia Paulo Guedes ainda apostava no crescimento de 2,5% do PIB

no ano de 2020. Não obstante, menos de uma semana depois, a necessidade de

abandono das regras orçamentárias da Lei de Responsabilidade Fiscal, a fim de se

obter mais recursos para a contenção da pandemia, já era uma realidade. O decreto

de calamidade pública foi assinado pelo presidente da república Jair Bolsonaro em

20 de março de 2020, permitindo então a criação dos tão necessários créditos

extraordinários (CARVALHO, 2020, pp. 16-17).

O valor previsto para o conjunto de gastos aprovados para o


combate à pandemia somava, em 15 de maio de 2020, R$ 258,5
bilhões, dos quais apenas R$ 67,7 bilhões haviam sido pagos até essa
data. Em proporção do PIB, o volume previsto de recursos não

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

destoa do valor aprovado em países ricos para o combate à


pandemia. Desse total, R$ 123,9 bilhões referem-se ao pagamento
de auxílio emergencial para pessoas em situação de
vulnerabilidade, R$ 3 bilhões à ampliação do programa Bolsa
Família, R$ 56,6 bilhões à concessão de parte do seguro-desemprego
para trabalhadores com contrato de trabalho suspenso ou redução
de jornada, R$ 16 bilhões ao auxílio a estados e municípios, R$ 34
bilhões ao financiamento a empresas para pagamento da folha
salarial e R$ 23,96 bilhões a despesas adicionais do Ministério da
Saúde e demais ministérios (CARVALHO, 2020, pp. 18).

Ao analisar os primeiros impactos sanitários, econômicos e sociais da pandemia

no Brasil, há que se considerar que se fala de um país marcado desde sempre por

intensas formas de exploração e precarização das condições de vida da classe

trabalhadora. Como exemplo, cita-se que, antes mesmo da pandemia do Covid-19

chegar ao Brasil, 40% dos trabalhadores brasileiros encontravam-se em situação de

emprego informal ao fim de 2019. Para mais, 5 milhões de trabalhadores estavam

submetidos ao fenômeno da uberização do trabalho (ANTUNES, 2020, pp. 07-08).

Tendo isso em mente, vê-se que a pandemia do Corona Vírus aponta uma

contradição que atinge a totalidade da classe trabalhadora. Por um lado, como

medida sanitária se faz necessário o isolamento social e a prática da quarentena

como forma de proteção dos trabalhadores contra o contágio do vírus. Contudo, a

mesma situação coloca em vulnerabilidade os desempregados, trabalhadores

informais, uberizados terceirizados etc., que veem prejudicado o seu sustento em

razão da impossibilidade de se auferir renda nas condições de isolamento

(ANTUNES, 2020, pp. 18-19).

Dados do IBGE apontam que, entre 19/07 e 25/07/2020, 76,9% das pessoas

ocupadas estavam trabalhando, 6,2% das pessoas ocupadas estavam afastadas

devido ao distanciamento social, 3,3% das pessoas ocupadas encontravam-se

afastadas por outros motivos e 13,7% das pessoas foram classificadas como

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desocupadas (BRASIL, 2020b). A taxa de desocupação, em 03/05/2020, era de 10,5%.

No mesmo período, o rendimento médio real efetivamente recebido de todos os

trabalhos das pessoas ocupadas foi de R$ 2.077, enquanto era de R$ 2.377 o

rendimento médio real normalmente recebido de todos os trabalhos das pessoas

ocupadas. Em números absolutos, 5,8 milhões de pessoas estavam afastadas do

trabalho devido ao distanciamento social entre 19/07 e 25/07/2020, 8,3 milhões

estavam em trabalho remoto, 18,5 milhões de pessoas não procuraram trabalho por

conta da pandemia ou por falta de trabalho na localidade, 17,7 milhões de pessoas

ocupadas e não afastadas do trabalho trabalharam menos do que o habitual e 24,1

milhões de pessoas ocupadas tiveram rendimento efetivamente recebido do

trabalho menor que o normalmente recebido. Por fim, o relatório aponta que 44,1%

dos domicílios brasileiros receberam o auxílio emergencial (BRASIL, 2020d).

Mascaro afirma que não se pode mencionar as explicações sobre a pandemia a

concepções puramente biológicas, justamente porque a crise evidenciada pela

Covid-19 é fundamentalmente do modelo de relação social que exclui a maioria dos

seres humanos das condições de sustentação material de sua existência. O

desemprego, as condições de habitação precárias, as maiores chances de

contaminação em transportes públicos e a fragilidade do sistema de saúde são

condições históricas do modo de produção capitalista (MASCARO, 2020, pp. 04-05).

Neste contexto, em caso de menor gravidade da crise instaurada pela pandemia,

as demandas sociais poderiam vir a ser ajustadas dentro do capitalismo. Contudo,

o capitalismo não pode resolver as demandas de saúde, salário e habitação. Tudo

sendo mercadoria, não se consegue fazer com que a saúde escape dessa lógica de

mercantilização. No caso dos salários, porque esta é justamente a forma da

exploração econômica. E no caso da habitação, porque a propriedade privada

orienta as próprias condições de moradia e, esta mesma propriedade, é oponível

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

contra todos. Como reação das sociedades capitalistas, costuma-se observar a

determinação de uma renda básica à população mais pobre, linhas de crédito para

empresas, maior prazo de pagamento de tributos etc. Ressalva Mascaro, contudo,

que tais medidas são insuficientes, de modo que o capitalismo não pode dar conta

da pandemia (MASCARO, p. 06-07).

Ademais, ressalta-se que, no contexto da pandemia do Covid-19, além da

amplificação das vulnerabilidades a que está exposta a totalidade da classe

trabalhadora, as desigualdades de gênero afetam de maneira desproporcional a

população feminina, sobrecarregada com as demandas de trabalho doméstico e de

cuidado (CARVALHO, 2020).

Saffioti nos lembra que homens e mulheres não ocupam posições iguais na

sociedade brasileira. Mesmo que uma mulher desempenhe uma função fora do lar,

a essa continua sendo imposta a responsabilidade de cuidado dos filhos, por

exemplo, como tarefa de preparação de novas gerações para o mercado de trabalho.

A sociedade investe muito na naturalização desse processo, de modo que se tenta

fazer crer que o espaço feminino é no lar (SAFFIOTI, 1987, p. 08-09).

No contexto da pandemia do Covid-19, a necessidade de isolamento social, a

sobrecarga do sistema de saúde brasileiro e o fechamento de serviços de

acolhimento de idosos, escolas e creches fez com que uma variedade de

procedimentos, antes realizados nessas instituições, passassem a ser realizados no

âmbito doméstico. Disso, extrai-se um significativo aumento na demanda dos

trabalhos de cuidado, submetendo as mulheres a uma carga ainda maior de

exploração, muitas vezes conciliando os serviços domésticos e de cuidado com

trabalhos remunerados, a fim de manter a renda familiar (IPEA, 2020, p. 10-11).

Com isso, vemos que, para além das desigualdades e altas cargas de exploração

a que já eram submetidos os trabalhadores brasileiros, a gestão sanitária e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

econômica promovida pelo governo federal em razão da pandemia do Covid-19

expôs ainda mais a população nacional a riscos de saúde e vida. Juntamente a isso,

viu-se que as dinâmicas de exploração e desigualdade foram intensificadas ainda

mais no período da pandemia, com o aumento da vulnerabilidade a que são

expostas as camadas mais empobrecidas da população. A precarização das relações

de trabalho e o aumentos jornadas de serviço foram alguns dos exemplos tratados

nesta primeira seção. A fim de se compreender as relações sociais que envolvem os

trabalhadores brasileiros familiares de detentos no contexto da negativa do auxílio

emergencial em razão do Covid, cabe, inicialmente, tecer algumas considerações

acerca da pena privativa de liberdade.

2. A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE NO CONTEXTO CAPITALISTA

NEOLIBERAL

O estudo dos impactos do sistema penal na sociedade brasileira não se limita a

análises quantitativas acerca do cárcere ou às pesquisas que tratem tão somente da

segregação de liberdade. A consolidação da pena de prisão enquanto expressão do

poder de punir do Estado traz consigo a necessidade de reflexões acerca do

fenômeno do encarceramento no contexto brasileiro e neoliberal, a fim de,

posteriormente, compreender as suas articulações com o objeto de estudo ora

proposto.

Foi a criminologia crítica que denunciou a necessidade de uma concepção

materialista da análise dos processos de controle do desvio, o que adiantou o

processo de “entrada do marxismo” na sociologia criminal entre os anos de 1960 a

1970. Das direções de pesquisa tomadas neste período, destaca-se o papel dos

sistemas de produção nas relações capitalistas e os estudos das práticas

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

contemporâneas dos sistemas de controle. Ambas as linhas de pesquisa deram

forma a uma crítica materialista dos processos de punição, por meio do qual se

compreendeu que as formas de punição são entendidos quando se abandonam as

teorias de legitimação da pena. Assim, a penalidade deve ser compreendida através

das relações de produção, relações econômicas e formas de organização do trabalho

(DI GIORGI, 2006, pp. 35-36).

Vera Malaguti Batista afirma que o marxismo foi um eixo essencial para a

consolidação de um olhar que descontruísse as “verdades jurídico-penais do

iluminismo”. As formulações teóricas de Karl Marx demonstraram como o

capitalismo opera a partir da exploração do trabalho, por meio de um processo de

expansão que conta com a dominação do corpo, trabalho vivo e tempo do

trabalhador. A fim de estruturar essa dominação, o capitalismo conta com diversas

formas de controle formal e informal, desde a educação até o sistema penal

(BATISTA, 2012, p. 79).

Duas obras centrais para essas primeiras formulações inspiradas no marxismo

acerca da questão criminal são Punição e Estrutura Social, de Georg Rusche e Otto

Kirchheimer, e Cárcere e Fábrica, de Dario Melossi e Massimo Pavarini. A primeira

obra apresenta-se como um aprofundamento marxista da análise do poder

punitivo, por meio do argumento de que existe íntima relação entre o mercado de

trabalho e a pena. A quantidade de pessoas absorvidas ou não pelo sistema penal

se relaciona à maior ou menor oferta de mão de obra, servindo como forma de

controle dos salários (ZAFFARONI, 2018, p. 145).

Os autores defendem que os conflitos sociais que marcaram a transição para o

modo capitalista de produção entre os séculos XIV e XV levaram a edição de leis

penais rigorosas contra as classes subalternas. O proletariado empobrecido foi alvo

de um forte processo de criminalização, principalmente por meio das legislações

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que protegiam a propriedade. Neste contexto, a fiança passou a ser comumente

aplicada quando o réu era um indivíduo rico, e o castigo corporal caracterizava-se

por um tipo de punição infligida à população pobre (RUSCHE; KIRCHHEIMER,

2016, pp. 31-35). “Enquanto aqueles que tinham recursos suficientes para pagar

estavam aptos a comprar a libertação da punição, delinquentes que não tinham

meios (isto é, em sua grande maioria) eram impotentes para porem-se a salvo do

tratamento severo a que eram submetidos” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2016, pp.

35-36).

Ademais, os autores observaram que a possibilidade de explorar os trabalhos

dos prisioneiros não passou desapercebida. Em um contexto de desaparecimento

do exército de reserva de mão de obra, os trabalhadores podiam exigir melhores

salários e condições, prejudicando o processo de acumulação de capital para a

expansão do comércio. Neste momento, explicam Rusche e Kirchheimer, os

capitalistas demandaram ações estatais para a garantia das condições necessárias à

exploração (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2016, p. 47).

As teses dos autores receberam algumas críticas por parte de Dario Melossi e

Massimo Pavarini na obra Cárcere e Fábrica, no sentido de que as formulações

possuíam um excesso de economicismo, em que pese a importância do mercado de

trabalho no sistema penal. Melossi e Pavarini, portanto, defenderam o

disciplinamento que o cárcere opera na formação de um trabalhador dócil na fase

de surgimento do sistema capitalista de produção (ZAFFARONI, 2018, p. 146).

Também retomando o modo de surgimento da pena privativa de liberdade

enquanto pena, os autores partem da afirmação marxiana de que a transformação

do ex-trabalhador agrícola expulso da terra em um trabalhador operário foi uma

preocupação inicial dos capitalistas. Neste sentido, as casas de trabalho e similares

atenderam a essa necessidade. Não excluindo a teorização acerca do mercado de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

trabalho, apontam que a docilidade ou a resistência do operário às condições agora

impostas dependem da força que esses possuem no mercado de trabalho

(MELOSSI; PAVARINI; 2017, p. 41).

Ademais, Melossi e Pavarini também trabalham o modo como a prisão possui

um objetivo preciso de reafirmação da ordem social, reeducando o criminoso como

ser um proletário socialmente não perigoso. O objetivo é de fato utópico, porém a

redução da individualidade dos reclusos é um fenômeno observável dentro das

instituições prisionais. Ocorre que, para além desta dimensão objetiva, as prisões

cumprem um papel ideológico relevante, de maneira que o interior do

estabelecimento dita, também, normas acerca do mundo exterior (MELOSSI;

PAVARINI, 2017, p. 216-217).

Alessandro Di Giorgi também faz essa ressalva importante, no sentido de que

não devemos compreender a conexão entre a economia e o sistema de punição como

algo automático ou uma “como uma relação mecânica mediante a qual a

superestrutura ideológica da pena possa ser deduzida, de modo linear, da estrutura

material das relações de produção”. A economia deve ser vista como uma

contribuição à formação e consolidação histórica dos sistemas punitivos (DI

GIORGI, 2006, p. 37).

Após este resgate histórico e teórico, importa compreender o estágio atual do

capitalismo na forma neoliberal e suas implicações para a análise do sistema penal.

Alfredo Saad Filho aponta que diferenças metodológicas na análise do

neoliberalismo levaram a distintas formas de entendê-lo. Podem ser apresentadas

quatro compreensões que, em que pese sejam distintas, são intimamente

relacionadas:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

[...] como um conjunto de ideias inspiradas nas escolas econômicas


austríaca e de Chicago e no ordoliberalismo alemão, e elaboradas
sob a égide da Sociedade do Mont Pèlerin; como um conjunto de
políticas, práticas e instituições inspiradas e/ou validadas por essas
ideias; como uma ofensiva de classe liderada pelo Estado contra os
trabalhadores e os pobres, em nome da burguesia em geral ou das
finanças em particular; e como uma estrutura material de reprodução
econômica, social e política, implicando que o neoliberalismo é o modo
de existência do capitalismo contemporâneo ou um sistema de
acumulação (SAAD FILHO, 2015, p. 59).

David Harvey, por sua vez, explica que o neoliberalismo é uma das teorias e

práticas que afirmam a possibilidade de uma melhor promoção do bem-estar

humano a partir das liberdades e capacidades individuais, necessitando-se de uma

estrutura institucional que proteja a propriedade privada e livre mercado e

comércio. A função do Estado, nesse contexto, é dar a estrutura necessária para a

manutenção desses direitos de propriedade, devendo garanti-los inclusive pela

força, se preciso for. A neoliberalização surge como um projeto de reorganização do

capitalismo internacional, a fim de restabelecer as condições de acumulação do

capital e reestabelecimento do poder às elites econômicas, com especial sucesso

neste último (HARVEY, 2005).

As novas formas políticas observadas após os anos de 1980 são muito mais do

que uma modificação do capitalismo, tendo como característica a alteração radical

no modo de exercício de poder governamental. A “grande virada” é possível a

partir da implementação de uma nova lógica normativa, incorporando e

reorientando as políticas e também os comportamentos. Dardot e Laval mencionam

uma subordinação a um novo tipo de racionalidade política relacionada com o

processo de globalização e financeirização de capital (DARDOT; LAVAL, 2016, p,

114).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Neste contexto, a compreensão da economia política da pena a partir do

neoliberalismo pode se dar a partir da construção e defesa de uma estrutura

consensual de valores sociais. Estes valores estão alinhados no aspecto econômico e

criminal por meio da construção do sujeito enquanto produtivo para competitivo,

calculador e cuja atuação é centrada em si mesmo (LEAL, et. al., 2019, pp. 43-44).

Na racionalidade econômica no âmbito criminal, observa-se o neoclassicismo

que coloca o delito como um resultado de um cálculo de custo e benefício feio por

parte do agente. Deste modo, o sistema penal teria com função contrapor esse

cálculo, dissuadindo o delinquente por meio da certeza de imposição de uma pena

rígida e imediata. No contexto liberal, a ideia da defesa social constitui-se enquanto

mercadoria, caracterizando uma indústria altamente lucrativa por meio da venda

da sensação de segurança na forma de sistemas de vigilância, equipamentos para

instituições prisionais, tecnologia de controle etc. O ideário de reabilitação

distancia-se do cárcere em nome da necessidade cada vez maior de vigilância e

severidade, enquanto a racionalidade neoliberal sucede em colocar a

responsabilidade pela própria segurança nas mãos de cada um, alimentando ainda

mais a indústria de segurança privada (LEAL, et. al., 2019, pp. 44-47).

O abandono do ideário de reabilitação insere-se dentro do contexto de Nothing

Works, qual seja, na impossibilidade de se ressocializar o criminoso, adere-se à

necessidade de gestão mais eficiente dos recursos, retomando a exploração

econômica do cárcere, produzindo não só uma sensação de segurança, mas também

valores e ativos econômicos (LEAL, 2020, p. 277).

Nesta linha, o Brasil se encontra, no período contemporâneo, em


meio a dois discursos antagônicos: o discurso do bem-estar se
mantém em torno da recuperação dos indivíduos e a função
interventiva-caritativa do Estado, que é manejada, como aponta

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Garland (2008), a partir dos discursos e das dinâmicas técnico-


científicas, e suas pretensões de neutralidade e eficiência
interventiva, buscando-se as causas das patologias sociais
individuais e coletivas a partir do diagnóstico e intervenção
propiciados com o saber científico e suas tecnologias. E ao mesmo
tempo o discurso e fase de reestruturação pertinente à instalação do
que se denominou por prisonfare, tendo em vista a ampliação da
cultura punitiva, o apelo populista manejado pela mídia que
prescinde de justificativa ou validade científica. É um discurso
ancorado no senso comum sobre as categorias que circundam o
delito e seu tratamento/punição, sendo orientados pelo desejo de
segurança e assim movidos pela ânsia de controle e sensação de
segurança proporcionada para uns à custa da total desestruturação
e desrespeito dos grupos sociais desfavorecidos, pois estes são os
riscos para a segurança (LEAL, et. al., 2019, pp. 48-49).

Dito isso, vimos que a clássica economia política da pena estabeleceu a

necessidade de se compreender o sistema de punição de cada sociedade a partir de

seu modo de produção. Com o avanço do capitalismo para o estágio neoliberal, as

práticas punitivas acompanharam as principais tendências da nova racionalidade,

por meio, principalmente, de uma nova lógica de racionalização das formas de

punição em prol de um aumento de eficiência – maiores taxas de extração de mais-

valia e lucro por meio do mercado do controle do crime.

3. PERSPECTIVAS FAMILIARES E FEMINISTAS SOBRE O

ENCARCERAMENTO

Angela Davis, em sua obra “Estarão as Prisões Obsoletas?”, aponta a

necessidade de se pensar um sistema penal como um todo estruturado a partir das

questões de gênero. É essencial que se pense a influência do gênero na punição

assim como o sistema penal reflete e consolida as estruturas de gênero em nossa

sociedade (DAVIS, 2019, p. 65-66).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O impacto do sistema penal na vida de milhões de mulheres não pode ser lido

tão somente a partir do encarceramento feminino. O encarceramento em massa da

população jovem e negra no Brasil precisa ser analisado juntamente a sua realidade

familiar, social e comunitária. Dados do Levantamento Nacional de Informações

Penitenciárias, publicado em 2019, apontam que a população carcerária brasileira

era de 726.354 pessoas no primeiro semestre de 2017. Em relação ao segundo

semestre de 2016 e o primeiro semestre de 2017, observou-se o aumento de 0,59%

no número de encarcerados, o que equivale 4.234 pessoas. O mesmo documento

aponta, ainda, que o Brasil teve, em média, uma taxa anual de crescimento de sua

população prisional de 7,14% desde o ano 2000 (BRASIL, 2019, p. 07-08). Das

pessoas provadas de liberdade no Brasil, 46,2% são de cor/etnia parda, 35,4% são de

cor/etnia branca e 17,3% de cor/etnia preta. “Somados, pessoas presas de cor/etnia

pretas e pardas totalizam 63,6% da população carcerária nacional” (BRASIL, 2019,

pp. 31-32).

Dos dados, extrai-se que a população mais atingida pelo encarceramento em

massa no Brasil é a racializada como preta e parda, de modo que, apesar de poucos

dados especificamente neste sentido, infere-se que as famílias atingidas pelo sistema

penal também o são. Por esta razão, ao analisar os efeitos do encarceramento na

população feminina enquanto familiares de detentos, há que se abandonar uma

visão homogênea da categoria “mulher”, principalmente porque o referido

processo atinge de maneira específica mulheres negras, em suas particularidades

históricas e sociais.

Michelle Alexander, em estudo acerca do encarceramento em massa vivido pela

população negra e jovem estadunidense, trata acerca impacto da prisão pela vida

das famílias. Em que pese o estudo se dê nos Estados Unidos, e considerando os

poucos elementos destacados sobre o tema nas produções e estatísticas nacionais

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

brasileira, as conclusões da autora são de grande valia para reflexões acerca da

temática.

Um forte exemplo do impacto direto do controle penal masculino sobre a vida

das mulheres no contexto estadunidense foi a legislação que permitiu o confisco de

bens de terceiros caso estes fossem utilizados no cometimento de algum crime. Com

o baixo ônus da prova, bastando ao governo estabelecer uma preponderância de

evidências, esposas que soubessem que seus maridos utilizassem algum tipo de

entorpecente em seu carro, por exemplo, perdiam a propriedade do bem. “Na

verdade, mulheres que tinham algum tipo de relacionamento com homens

acusados de crimes de drogas, normalmente maridos ou namorados, estão entre os

reclamantes mais frequentes em processo de confisco” (ALEXANDER, 2017, pp.

135-136).

Outra consequência nefasta do controle penal sobre a vida das famílias dá-se

pela exclusão de réus dos programas de assistência sociais, em especial de moradia.

Tal procedimento afeta diretamente a família dos acusados, chegando ao ponto de

gerar perdas de guardas de filhos pela ausência de local de residência

(ALEXANDER, 2017, p. 218).

Ao contrário do que versa a crença popular, as famílias de indivíduos

encarcerados sentem não só o estigma que acompanha o aprisionamento, mas

também demais estereótipos que o acompanham, como a ausência da presença

paterna, empobrecimento das famílias e a falta de afeto. Deste forma, um grande

problema enfrentado pela comunidade negra, amplamente submetida a um

violento processo de criminalização, é o processo de isolamento, desconfiança e

alienação. Os indivíduos que retornam as suas comunidades na condição de ex

detentos são, muitas vezes, recebidos com desdém por parte de empregadores,

assistentes sociais, funcionários de departamentos de habitação e também vizinhos,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

professores e até mesmo membros de suas próprias famílias. Para demonstrar a

violência vivenciada por estas pessoas e famílias, a autora afirma que mesmo no Jim

Crow, quando negros eram duramente segregados pela cor da pele nos EUA, as

comunidades eram centros de apoio, solidariedade, aceitação e amor. O

encarceramento, portanto, neste ponto atinge a vida comunitária da população

negra de maneira ainda mais nefasta do que em regimes oficiais de segregação

(ALEXANDER, 2017, p. 242). Intimamente ligado a esse processo de isolamento dos

indivíduos e de seus núcleos familiares e comunitários, Alexander menciona que

mentir sobre o estado de encarceramento de membros da família acaba sendo

estratégia de resistência comum, especialmente no ambiente de trabalho. Ademais,

percebe-se que muitos ex detentos e suas famílias se esforçam para serem

reconhecidos como parte da classe trabalhadora ascendente, ainda que suas rendas

não os inclua nela (ALEXANDER, 2017, pp. 245-246).

Vê-se que sistema penal atua para além da figura do encarcerado, possuindo

forte impacto no entorno social do indivíduo submetido ao cárcere. A prisão opera

uma forma de “punição invisível”, comprometendo formas de subsistência,

destruindo orçamentos familiares e promovendo a estigmatização da mulheres,

crianças e comunidades. Em denso estudo acerca do sistema penitenciário de São

Paulo, Rafael Godoi atesta que a presença das famílias é central na viabilização do

sistema de punição, centralidade esta não contemplada quando se coloca a

experiência das famílias das pessoas encarceradas enquanto um efeito colateral ou

secundário. Por esta razão, não se tem uma situação de imposição de penas sobre

uns e contaminação de outros, mas sim uma administração ampliada das penas que

atinge presos e familiares (GODOI, 2017, pp. 190-193).

O estudo do sistema penal a partir da centralidade da família apresenta um

norte à compreensão do impacto do encarceramento na vida social. Nos casos em

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que a imensa maioria das pessoas encarceradas são homens, como é a situação no

Brasil, compreender o sistema penal pela ótica do gênero impõe, para além do

estudo das mulheres encarceradas, pensar a reconfiguração das relações

econômicas e laborais femininas enquanto elemento constitutivo do sistema penal,

com o que se buscou contribuir neste trabalho. Recorda-se que não há como se

promover o encarceramento em massa de uma população sem atingir seus núcleos

familiares e comunitários, remodelando suas relações econômicas, sociais, de

trabalho e de subsistência em torno da nova realidade do cárcere. A compreensão

de como essas modificações se dão no contexto capitalista é essencial à leitura

efetiva dos impactos do sistema penal e, no caso deste trabalho, apresente elementos

essenciais à compreensão das dinâmicas sociais que sustentaram uma possibilidade

concreta de negativa de auxílio emergencial à família de detentos.

4. O AUXÍLIO EMERGENCIAL E FAMILIAS DE DETENTOS

A Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, estabelece medidas excepcionais de

proteção social adotadas durante o período de enfrentamento da pandemia de

Covid-19. A referida legislação instituiu o pagamento de três parcelas mensais, no

valor de R$ 600,00, aos trabalhadores que cumprirem cumulativamente os

requisitos de idade superior aos 18 anos, exceto nos casos de mães adolescentes,

ausência de emprego formal ativo, ausência de recebimento de benefício

previdenciário, assistencial, seguro-desemprego ou de programa de transferência

de renda federal, recebimento de renda familiar mensal per até meio salário-

mínimo, ou cuja renda familiar mensal total seja de até 3 salários mínimos, que, no

ano de 2018, não tenha recebido rendimentos tributáveis acima de R$ 28.559,70 e

que exerça atividade como microempreendedor individual, contribuinte individual

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

do Regime Geral de Previdência Social ou trabalhador informal, seja empregado,

autônomo ou desempregado, de qualquer natureza, inclusive o intermitente

inativo, inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal

(CadÚnico) até 20 de março de 2020. A mesma legislação, ainda, dispôs que o

recebimento do auxílio emergencial é limitado até dois membros da mesma família,

e que à mulher provedora de família monoparental, cabe o recebimento de duas

cotas mensais do auxílio (BRASIL, 2020c).

Antes da aprovação da Lei nº 13.982/2020, o governo federal, na figura do

ministro Paulo Guedes, anunciou que liberaria a quantia de 15 bilhões de reais em

benefícios no valor de até 200 reais destinados aos trabalhadores autônomos e

informais que já fizessem parte do Cadastro Único e não recebiam outros benefícios.

“Além de prever um valor três vezes menor, o auxílio proposto pelo governo

deixava de fora, portanto, os beneficiários do Bolsa Família e os trabalhadores

desempregados, autônomos e informais que ainda não faziam parte do Cadastro

Único” (CARVALHO, 2020, p. 61).

Conforme extrai-se dos requisitos legais para o recebimento das parcelas do

auxílio emergencial, nada foi disposto acerca da impossibilidade de pagamento das

verbas às famílias que tivessem parentes em situação de reclusão. Contudo, como

já introduzido neste trabalho, o veículo de imprensa Estadão, em 14 de maio de

2020, noticiou a negativa do auxílio aos familiares de detentos (TURTELLI, 2020).

A reportagem detectou uma divergência nas informações prestadas, na medida

em que, segundo ofício encaminhado ao Ministério Público Federal pelo Ministério

da Cidadania, a empresa que faz o processamento dos dados para a concessão do

auxílio admitiu a restrição de acesso às famílias de encarcerados. De maneira

diversa, segundo a Dataprev, os requerimentos não foram negados, porém mais de

39 mil pedidos apresentados pelos familiares de detentos ou pelos próprios

734
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

indivíduos encarcerados irão passar por um “processamento adicional”

(TURTELLI, 2020).

Em abril de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou um

informativo, reiterando que egressos do sistema prisional, pessoas que possuem

parentes presos ou que tenham passado pelo sistema prisional ou familiares de

adolescentes que passaram ou estão no sistema socioeducativo possuem o direito

ao recebimento das verbas relativas ao auxílio emergencial, de forma a garantir um

maior acesso à informação à população que passa pelo controle do sistema penal,

bem como à seus familiares (CONJUR, 2020).

A negativa do auxílio emergencial, ou o “reprocessamento adicional” a que

esses pedidos foram submetidos sem qualquer amparo ou previsão legal pode ser

lido como um exemplo do que Godoi chamou de administração ampliada das

penas, que atinge não somente as pessoas encarceradas como também seus

familiares. Para além das diversas formas invisíveis de punição a que essas famílias

estão expostas juntos a seus parentes encarcerados, a negativa, ainda que

momentânea, do pagamento de verbas emergenciais em um momento de grave

crise de saúde, e também econômica, demonstra, mais que qualquer juízo de

perversidade, um projeto político de manutenção da exploração desta classe social.

Maurício Dieter, resgatando a premissa da economia política da pena – relação

entre as formas de produção e o sistema de punição de determinada sociedade -

trabalha com a categoria de política criminal atuarial. Com isso, aponta que se deve

buscar nas dinâmicas dos espaços sociais, políticos e econômicos os fundamentos

que permitem o uso seletivo das formas de punição como modelo de gestão de risco,

considerando o sistema penal enquanto instrumento de gestão de classe (DIETER,

2012, p. 238-239).

735
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A análise começa, portanto, pela contextualização do cenário


político-econômico que presenciou a emergência e consolidação da
lógica atuarial como critério reitor da criminalização secundária,
período que vai da segunda metade da década de 70 até os dias
atuais e compreende as décadas de crise.622 Caracterizado pela
desilusão quanto à possibilidade de resgatar os anos dourados da
economia imperialista, é durante este intervalo que se estrutura a
chamada configuração contemporânea do capitalismo, na qual a
longa onda expansiva é substituída por uma recessão generalizada
que inverte sua dinâmica: as crises são dominantes, as retomadas
episódicas. O que não muda, entretanto, é o protagonismo dos
monopólios, cujas respostas formuladas para lidar com a
traumática transição da década de 60 à de 70 conduzem a
substanciais alterações no plano econômico, social, político e
cultural, como bem sintetizam Marcelo BRAZ e José Paulo NETTO
(DIETER, 2012, p. 239-240).

Com isto, viu-se que a rearticulação do capital se sustentou sobre os processos

de reestruturação produtiva – apoiado na flexibilidade dos processos e mercados

de trabalho, produtos e padrões de consumo, a fim de renovar a exploração da força

de trabalho e aumentar as taxas de lucratividade, financeirização – concentração do

sistema bancário e financeiro, e ideologia neoliberal, melhor explorada na primeira

seção deste texto (DIETER, 2012, p. 240-243).

Dentre os diversos e importantes desdobramentos que esse processo gerou nas

últimas décadas, neste trabalho cumpre destacar que a consolidação de uma política

criminal atuarial se mostrou eficaz para o controle não só de indivíduos, mas de

toda uma classe social excluída da ascensão social por meio da integração

econômica (DIETER, 2012, p. 248).

O aumento no rigor da disciplina de trabalho, níveis mais altos de flexibilização

dos contratos laborais, insegurança quanto às condições de trabalho, diminuição

significativa de proteção social e um considerável aumento na competição por

trabalhos informais, atingindo principalmente a população negra, formam um

736
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

conjunto de condições ao aumento do reestabelecimento de altas taxas de lucro em

uma economia globalizada. Neste contexto, Di Giorgi aponta que uma série de

fatores não econômicos fazem parte do processo de definição do valor geral da força

de trabalho e dos grupos que preenchem suas vagas. A interação entre estruturas

econômicas, tecnologias governamentais de regulação social, políticas estatais de

intervenção na economia, políticas criminais, dentre outras, agem em conjunto na

determinação desse valor social. Por isso, pode-se dizer que a situação das classes

marginalizadas é determinada pelo seu local na estrutura econômica (DI GIORGI,

2019, p. 49-50).

Defendendo uma economia política da pena que supere a ênfase tradicional dos

poderes da pena, o mesmo autor defende uma análise que compreenda a mudança

na situação das classes menos privilegiadas em face dos processos econômicos e

também extra econômicos, convergindo em um sentido de maior insegurança no

mercado de trabalho e aumento da exploração. Juntamente a isto, vê-se o

desmantelamento de compromissos socais por meio da consolidação de uma

governança neoliberal e desregulamentação do mercado de trabalho. “No campo

da significação cultural, o neoconservador mantém debates públicos sobre

desigualdades socioeconômicas, reforçados por pânicos morais sobre a

criminalidade nas ruas, imigração, drogas, assistência social, entre outras,

legitimando representações dominantes sobre os pobres em contexto pós-

industrial” (DI GIORGI, 2019, p. 50-51).

Ainda que o foco de análise de Di Giorgi, neste texto, resida no

desmantelamento do estado de bem estar social estadunidense, a referida proposta

apresenta importantes ferramentas para a compreensão dos processos de maior

vulnerabilização e aumento de exploração das classes empobrecidas no Brasil.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Conforme se tratou, o implemento de uma lógica atuarial no sistema de justiça

criminal, há muito em andamento nos Estados Unidos, e podendo-se enxergar

largos passos rumo a sua adoção no Brasil, demonstrou eficiência não só no controle

dos indivíduos especificamente selecionado pelo sistema penal, mas de toda uma

classe de pessoas que acaba, direta ou indiretamente, atingida pela malha de

controle do estado.

O caso da negativa (ou, nos termos anunciados, reprocessamento adicional), do

auxílio emergencial em razão do grau de parentesco com pessoas privadas de

liberdade, vê-se, para muito além do que se pode chamar de desrespeito ao

princípio da pessoalidade da pena, uma verdadeira forma de controle de classe,

aumentando o grau de vulnerabilização social e aumento da exploração sobre toda

uma classe.

Em um momento de pandemia, em que se observa uma sobrecarga dos sistemas

de saúde, fragilização das relações de trabalho, sobrecarga de serviços domésticos

e intensificação das desigualdades sociais, a gestão de políticas públicas dirigidas

de maneira prejudicial a determinadas classes demonstra que a análise biológica da

doença não basta. O vírus não só atinge as pessoas de maneira totalmente diversa a

depender de suas classes sociais, estando mais vulnerável a camada mais pobre da

população. Mais que isso, a própria governança implementada na ocasião

demonstra um projeto político de manutenção e intensificação das vulnerabilidades

e explorações daqueles já em situação mais desfavorecida.

Além disso, confirma-se o desmantelamento de compromissos de políticas

públicas de assistência social, já há muito fragilizadas no Brasil. Dentre todos os

argumentos expostos, o que se identifica da política de reprocessamento adicional

do auxílio emergencial às famílias de detentos, junto aos processos de

enfraquecimento das relações de trabalho e sucateamento dos serviços de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

assistência, é a consolidação de uma governança neoliberal promovida em território

brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho objetivou, através de uma concepção materialista, analisar

a situação da negativa do auxílio emergencial, em razão da pandemia do Covid-19,

a que foram submetidos os familiares de detentos em março de 2020. Conforme viu-

se da investigação jornalística realizada pelo veículo de imprensa Estadão, empresa

que faz o processamento dos dados para a concessão do auxílio admitiu a restrição

de acesso às famílias de encarcerados. Por outro lado, a Dataprev informou que o

caso se tratou de um “reprocessamento adicional”, atingindo mais de 39 mil

pedidos de concessão da verba de emergência.

Da análise das condições socioeconômicas brasileiras durante a pandemia, viu-

se que, além das desigualdades e alta carga de exploração a que já é submetida a

maior parte da população nacional, as escolhas políticas de gestão da crise sanitária

aumentaram ainda mais as vulnerabilidades a que são expostos os trabalhadores. A

verba de R$ 600,00 configura-se como uma conquista frente à proposta do governo

federal, que pretendia auxiliar a população mais empobrecida, neste momento de

excepcionalidade, com a quantia de duzentos reais. Não obstante, mesmo o auxílio

emergencial no valor conquistado não foi o suficiente para suprir as demandas de

subsistência das famílias, de modo que inúmeras seguiram expostas à risco de

saúde e vida, precarização do trabalho e aumento nas jornadas de trabalho, em

especial as mulheres, com as altas demandas nas funções de cuidado.

Noutro giro, tratando do âmbito criminal, constata-se que a necessidade de se

proteger a sociedade dos “criminosos” e a possibilidade de mercantilização da

739
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

segurança aliam-se ao abandono do ideário reabilitador do sistema penal,

convergindo na necessidade de otimização dos recursos disponíveis e retomando a

possibilidade de exploração da força de trabalho encarcerada.

As ações repressivas dirigem-se não somente aos indivíduos, mas a toda uma

classe social marcada como alvo de uma prática penal violenta e, muitas vezes,

genocida. Pautando os impactos do encarceramento nas famílias não como mero

efeito secundário, mas sim como central e constitutivo do sistema penal atual, temos

elementos a pensar o grau de exploração ainda maior a que são submetidas as

trabalhadoras e trabalhadores que são familiares de indivíduos selecionados pelo

sistema penal.

No caso estudado, não só os indivíduos efetivamente segregados de sua

liberdade pelo sistema penal, mas também suas famílias, foram diretamente

atingidos por um modelo de governança neoliberal, caracterizado pelo

desmantelamento de políticas públicas de assistência.

O maior nível de obstáculos impostos a essas famílias, sem qualquer previsão

legal, ao recebimento de verbas emergenciais destinadas à subsistência se apresenta

como uma forma de controle de classe. Em especial durante a pandemia do Covid-

19, os trabalhadores que possuem algum grau de parentesco com pessoas detidas

em instituições carcerárias encontraram especial dificuldade de manutenção de

subsistência, estando mais propensos aos riscos de saúde e vida característicos da

crise sanitária, além de estar sujeitos, de forma destacada, aos processos de

flexibilização das relações laborais, impostas pela necessidade de subsistência.

740
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O ACESSO À INTERNET EM TEMPOS DE COVID-19: GARANTIA

DA IGUALDADE MATERIAL NO DIREITO À EDUCAÇÃO

BÁSICA

Janice Scheila Kieling205


Diego Luiz Trindade206
Lisiane Beatriz Wickert207

RESUMO
O presente estudo tem por objetivo identificar se é possível exigir do Poder Público políticas
efetivas para garantir o direito à educação básica através da concretização do acesso à
Internet durante o período de pandemia causada pela COVID-19. Para tanto, cabe abordar
o Direito à Educação sob o prisma do mínimo existencial. Ademais, impende estudar a
igualdade de acesso à educação sob o prisma material, que impõe ao administrador público
o dever objetivo de atender aos ditames constitucionais. Sob o viés prático, cabe analisar a
visão da Corte Constitucional quanto à salvaguarda dos direitos prestacionais, em especial
da educação básica, além de se identificar políticas públicas concretas de acesso à Internet
desenvolvidas durante a pandemia em benefício de alunos carentes. Considerando-se que
o trabalho é de natureza bibliográfica, o método de abordagem utilizado foi o método
dedutivo, concluindo-se, ao final, pela viabilidade de se requerer ao Estado a garantia do
acesso à Internet para a continuidade da educação básica e, se este for omisso, a postulação
judicial.

Palavras-Chave: Direitos sociais; Direito à educação; Igualdade material; Internet; COVID-


19.

ABSTRACT
The presente study search to identify whether it is possible to demand effective policies
from the Government to guarantee the right to basic education through the materialization
of Internet access during the pandemic period caused by COVID-19. Therefore, the Right

205
Pós-graduanda em Direitos Humanos pela Faculdade de Ciências e Tecnologias de Campos Gerais (FACICA).
Bacharel em Direito pela URI - Campus Santo Ângelo. Advogada. E-mail: janiceskieling@gmail.com.
206
Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera Uniderp - Campus Campo Grande.
Bacharel em Direito pela URI - Campus Santo Ângelo. Servidor público federal. E-mail:
diegoottrindade@gmail.com.
207
Mestre em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania pela UNIJUÍ. Pós-graduada em Instituições Jurídico-
Políticas pela UNIJUÍ. Professora da Pós-graduação e Graduação em Direito da UNIJUÍ. Advogada. Email:
lisianewickert@gmail.com. Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4737963Z6.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

to Education must be approached from the perspective of the existential minimum. In


addition, it is important to study equal access to education from a material perspective,
which imposes on the public administrator the objective duty to comply with constitutional
dictates. From a practical point of view, it is necessary to analyze the Constitutional Court's
view regarding the safeguarding of service rights, especially basic education, in addition to
identifying concrete public policies for Internet access developed during the pandemic for
the benefit of needy students. Considering that the work is bibliographic in nature, the
method of approach used was the deductive method, concluding, in the end, by the
feasibility of requiring the State to guarantee Internet access for the continuity of basic
education and, if this is omitted, the judicial postulation.

Key-Words: Social rights; Right to education; Material equality; Internet; COVID-19.

INTRODUÇÃO

O direito social à educação básica integra o mínimo existencial da pessoa

humana, funcionando como veículo propulsor da sua formação. Em razão da

elevada importância desse direito, o isolamento social decorrente da pandemia da

COVID-19 (Coronavirus Disease 2019) impôs a utilização de novas formas de acesso

ao ensino, principalmente por meio da Internet. Todavia, isso acaba dificultando ou

impossibilitando a continuidade dos estudos dos alunos mais carentes, cujo acesso

às plataformas on-line é restrito ou inexistente. É nesse panorama que o Estado tem

o dever de instituir políticas públicas para concretizar o direito à educação e a

igualdade material entre os estudantes.

Inicialmente, esclarece-se que a COVID-19 é causada por um coronavírus

(SARS-CoV-2) comum em muitas espécies de animais, o qual foi transmitido para

humanos, na cidade de Wuhan, na China (em dezembro de 2019). Em 30 de janeiro

de 2020, foi reconhecida a situação de Emergência de Saúde Pública de Importância

Internacional que, em 11 de março de 2020, evoluiu para a condição de pandemia,

declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em razão do contágio em

escala mundial (OPAS, 2020).

746
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

No Brasil, a primeira norma a tratar sobre o tema foi a Lei Federal n.º 13.979,

de 6 de fevereiro de 2020, que dispôs sobre as medidas a serem adotadas no país.

Esta lei conceituou e elencou diretrizes sobre questões como o isolamento social, a

quarentena e a dispensa de licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de

saúde destinados ao enfrentamento da situação pandêmica. Em seguida, foi

instituído Estado de Calamidade Pública pelo Decreto Legislativo n.º 6, de 20 de

março de 2020, a partir do qual foram editados atos normativos e criados projetos

de leis e políticas públicas em todo o território brasileiro.

Nesse sentido, a presente pesquisa tem por escopo identificar se é possível

exigir do Poder Público políticas efetivas para garantir o direito à educação básica

através do acesso à Internet durante o período de pandemia. Para tanto, impende

estudar os contornos jurídico-constitucionais do referido direito social, bem como a

igualdade de acesso à educação sob o prisma material, que impõe ao administrador

público o dever objetivo de atender aos ditames constitucionais. Sob o viés prático,

cabe analisar a visão do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto à salvaguarda dos

direitos prestacionais, em especial da educação básica, além de se identificar

políticas públicas concretas de acesso à Internet desenvolvidas durante a pandemia

em benefício de alunos carentes.

Para isso, o estudo foi desenvolvido por meio do método hipotético dedutivo

e com pesquisas bibliográficas, o que compreende uma valorosa fonte

investigatória. Inclusive, foram feitas buscas em artigos, acervos legislativos e em

decisões judiciais.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. DIREITO SOCIAL À EDUCAÇÃO BÁSICA E O MÍNIMO EXISTENCIAL

A sociedade vive em constante mudança, novos direitos surgem e outros são

reduzidos ou suprimidos de acordo com as necessidades da população, “com a

mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das

classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das

transformações técnicas, etc.” (BOBBIO, 1992, p. 18). Assim, com a evolução dos

direitos fundamentais, surgiram as denominadas “Gerações de Direitos”. A clássica

teoria das gerações dos direitos humanos foi concebida em 1979 (em uma

Conferência ocorrida no Instituto Internacional de Direitos Humanos de

Estrasburgo - França), pelo jurista francês Karel Vasak, que associou cada uma das

gerações aos ideais da Revolução Francesa: “liberté, egalité et fraternité” – liberdade,

igualdade e fraternidade – (RAMOS, 2018, p. 59).

Sob esta perspectiva, a primeira geração engloba as liberdades individuais

(prestações negativas), sendo papel do Estado proteger a esfera de autonomia do

indivíduo, uma vez que o homem individualmente considerado é o titular desses

direitos (RAMOS, 2018, p. 59). A segunda geração abrange os direitos sociais (de

igualdade), “não porque sejam direitos de coletividades, mas por se ligarem a

reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos têm por

titulares indivíduos singularizados” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 201). Através

desses direitos, oriundos do afloramento de variados problemas sociais, busca-se

“estabelecer uma liberdade real e igual para todos, mediante a ação corretiva dos

Poderes Públicos” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 201). Já a terceira geração (direitos

de solidariedade), cuja titularidade é difusa ou coletiva (da comunidade),

compreende o direito ao meio ambiente equilibrado, à paz, ao desenvolvimento, em

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

harmonia com a ideia de que o ser humano integra o planeta e precisa atuar em prol

de sua conservação, em todos os sentidos (RAMOS, 2018, p. 60).

A ideia de participação ativa do Estado no cotidiano dos cidadãos surge a

partir da Primeira Guerra Mundial, quando começa a ser adotada uma política

intervencionista, a fim de organizar os recursos (como a distribuição dos alimentos)

e adotar procedimentos econômicos (controle da mão-de-obra, produção de

determinados produtos) com vistas à melhoria das condições de vida da população

(AGESTA, 2006 apud LEAL, 2009, p. 72). As consequências do cenário de guerra

deixaram um rastro de destruição na vida das pessoas, evidenciando a necessidade

da intervenção estatal para a garantia da dignidade humana.

A atuação do Estado “passa a ser justificada também pela necessidade de

promoção da igualdade material, por meio de políticas públicas redistributivas e do

fornecimento de prestações materiais para as camadas mais pobres da sociedade,

em áreas como saúde, educação e previdência social” (FORSTHOFF, 1986 apud

SARMENTO; SOUZA NETO, 2012, p. 61). O Estado passa a intervir de maneira

intensa na vida econômica das pessoas, fundamentando suas ações na busca pela

justiça social, pois os direitos sociais (direitos a prestações) “são direitos do

indivíduo, em face do Estado, a algo que o indivíduo, se dispusesse de meios

financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no mercado, poderia

também obter de particulares” (ALEXY, 2015, p. 499).

A partir da influência do constitucionalismo europeu, as Constituições

brasileiras passaram a prever os direitos sociais dentro do título concernente à

ordem econômica e social. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

(CRFB/88) foi a primeira a dedicar uma posição especial a aludidos direitos, com

um capítulo próprio, consagrando-se como o maior catálogo de direitos sociais da

história do constitucionalismo pátrio (PIOVESAN, 2013, p. 60-61). Além disso,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

“criou mecanismos especiais de controle da omissão legislativa (ação direta por

omissão e mandado de injunção), destinados a colmatar eventuais lacunas na

realização de direitos, especialmente na formulação de políticas públicas destinadas

a atender às determinações constitucionais” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 1033).

O direito à educação – previsto no ordenamento brasileiro desde a Carta

Imperial de 1824 – é um dos direitos sociais que compõem o mínimo existencial (ao

lado dos direitos à saúde, à assistência social e ao acesso à justiça). Justamente por

isso, tem suma importância para a materialização de um grau mínimo de dignidade

para os cidadãos, pois a educação é fundamental para concretizar outros direitos

fundamentais (MENDES; BRANCO, 2018, p. 1040-1041).

Nessa senda, cumpre destacar que o mínimo existencial compõe o núcleo

essencial do princípio da dignidade da pessoa humana e pode ser conceituado como

um

[...] “conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se


poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de
indignidade”. Para compor esse mínimo existencial indispensável à
promoção da dignidade humana, é necessário, na lição de Barcellos,
levar em consideração a implementação dos direitos à educação
básica, à saúde, à assistência social e acesso à justiça (BARCELLOS,
2002 apud RAMOS, 2018, p. 85).

O próprio artigo 205 da CRFB/88 assegura que a educação é “direito de todos

e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da

sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o

exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, comprovando que se

trata de direito humano fundamental. O dever do Estado é, portanto, garantir que

todos tenham acesso à educação, especialmente ao conhecimento básico e a

capacitações que permitam o ingresso e a permanência no mercado de trabalho,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

buscando alcançar principalmente aqueles que não podem custear uma educação

particular (TAVARES, 2020, p. 958-960).

Notadamente, a atribuição do Estado em relação à educação escolar pública

será efetivada mediante a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4

(quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, organizada da seguinte forma: a) ‘pré-

escola’ 208 , para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade; b) ensino

fundamental, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-

se aos 6 (seis) anos de idade, que terá por objetivo a formação básica do cidadão; c)

ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de 3 (três) anos

(arts. 4º, I, “a” a “c”; 30; 32 e 35, todos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional – LDB – ‘Lei n.º 9.394/96’209).

O tema educação apresenta alta densidade normativa no texto da CRFB/88,

o que demonstra a atenção dispensada pelo regime jurídico vigente desde então.

Além de ser descrito no rol dos direitos sociais (art. 6º), há seção exclusiva localizada

no Título VIII, que aborda a temática da ordem social. Em especial, no que tange à

criança, ao adolescente e ao jovem, refere-se expressamente ao direito à educação

como dever da família, da sociedade e do Estado (art. 227). Por certo, há autêntica

política pública constitucionalmente definida no artigo 208, caput, I, § 1º e §2º, a qual

foi detalhada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8.069/90), nos

artigos 53 e 54, bem como pela LDB, nos artigos 1º a 5º, inclusive quanto aos meios

de execução.

208
A educação infantil corresponde à primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o
desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e
social, complementando a ação da família e da comunidade. Ela será oferecida em: I - creches, ou entidades
equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II - pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco)
anos de idade (arts. 29 e 30 da LDB).
209
A LDB foi editada com base no artigo 22, inciso XXIV, da CRFB/88.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

2 - O ACESSO À INTERNET NA EDUCAÇÃO BÁSICA: UMA FORMA DE

CONCRETIZAÇÃO DA IGUALDADE MATERIAL DURANTE A PANDEMIA

Os direitos sociais possuem como fundamento a igualdade, cujo cerne está

na intervenção estatal, de modo a garantir estes direitos para as pessoas que não

possuem condições de fazê-lo sozinhas, seja por se encontrarem menos favorecidas

economicamente seja por outros fatores. Sem a prestação estatal, os direitos sociais

estariam fadados a ficarem acessíveis apenas às pessoas com poderio econômico,

razão pela qual o Estado possui o dever de equiparar as pessoas em direitos o

máximo possível (OLIVEIRA; LAZARI, 2018, p. 147).

Sendo assim, a igualdade pode ser visualizada sob o vértice formal – oriunda

do liberalismo clássico – em que todos têm acesso aos mesmos direitos sem

quaisquer distinções, ou material – surgida no Estado Social – segundo a qual o

Estado deve adotar medidas concretas capazes de diminuir as desigualdades,

protegendo os grupos vulneráveis. Impende observar que “a regra da igualdade

não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se

desigualam, pois, tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade,

seria desigualdade flagrante, e não igualdade real” (BARBOSA, 2003 apud CUNHA

JR.; NOVELINO, 2015, p. 37).

A igualdade, em sentido material ou substantivo, e especialmente a


autonomia (pública e privada) são ideias dependentes do fato de os
indivíduos serem livres de privações, com a satisfação adequada de
suas necessidades vitais essenciais. Para serem livres, iguais e
capazes de exercer uma cidadania responsável, os indivíduos
precisam estar além de limiares mínimos de bem-estar, sob pena de
a autonomia se tornar uma mera ficção. Isso exige o acesso a
algumas prestações essenciais – como educação básica e serviços de
saúde –, assim como a satisfação de algumas necessidades

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

elementares, como alimentação, água, vestuário e abrigo. O mínimo


existencial, portanto, está no núcleo essencial dos direitos sociais e
econômicos (BARROSO, 2018, p. 71).

De tal sorte, o acesso à Internet se apresenta como verdadeiro vetor do

princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, previsto

no artigo 206, inciso I, da CRFB/88 (dispositivo repetido nos artigos 53, inciso I, do

ECA e 3º, inciso I, da LDB). Para garantir citado direito basilar da sociedade

moderna, esse acesso deve ocorrer por meio de políticas públicas concretas,

denotando-se a insuficiência da igualdade meramente formal.

Evidencia-se, assim, uma verdadeira interdependência entre o direito à

educação e o acesso à Internet, em especial durante a pandemia da COVID-19, haja

vista a necessidade de garantir a educação básica de maneira virtual, em razão das

medidas sanitárias de distanciamento e isolamento social adotadas no combate ao

vírus. Com as escolas fechadas, utilizar a Internet torna-se imprescindível para que

esse direito continue sendo acessível a todos.

É importante destacar que a LDB estrutura todo o sistema de ensino

brasileiro, prevendo que, em regra, todas as etapas da educação básica (ensino

infantil ao médio) serão presenciais e desenvolvidas, predominantemente, em

instituições próprias públicas ou privadas (arts. 29-36). Destarte, apenas em caráter

complementar e excepcional será desempenhada na modalidade de ensino à

distância (art. 80)210. Convém lembrar que, em 12/09/2018, o Plenário do STF julgou

o RE 888.815/RS, em regime de repercussão geral, definindo que não é possível o

210
O art. 80 da LDB é regulamentado pelo Decreto n.º 9.057, de 25 de maio de 2017. Segundo o “art. 8º:
Compete às autoridades dos sistemas de ensino estaduais, municipais e distrital, no âmbito da unidade
federativa, autorizar os cursos e o funcionamento de instituições de educação na modalidade a distância nos
seguintes níveis e modalidades: I - ensino fundamental, nos termos do § 4º do art. 32 da Lei n.º 9.394/96
(situações emergenciais); II - ensino médio, nos termos do § 11 do art. 36 da Lei n.º 9.394, de 1996 ; III -
educação profissional técnica de nível médio; IV - educação de jovens e adultos; e V - educação especial”.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ensino domiciliar (homeschooling) como meio lícito de cumprimento, pela família, do

dever de prover a educação, pois, embora não haja vedação constitucional, o tema

exige tratamento legal específico (BRASIL, 2018).211

Contudo, em razão da pandemia, foi editada a Lei n.º 14.040, em 18 de agosto

de 2020, prevendo normas educacionais a serem adotadas, em caráter excepcional,

durante o estado de Calamidade Pública reconhecido pelo Decreto Legislativo n.º

6/2020. Dentre outras medidas, foram autorizadas atividades pedagógicas não

presenciais, nos seguintes termos:

Art. 2º [...].
§ 4º A critério dos sistemas de ensino, no ano letivo afetado pelo
estado de calamidade pública referido no art. 1º desta Lei, poderão
ser desenvolvidas atividades pedagógicas não presenciais:
I – na educação infantil, de acordo com os objetivos de
aprendizagem e desenvolvimento dessa etapa da educação básica e
com as orientações pediátricas pertinentes quanto ao uso de
tecnologias da informação e comunicação;
II – no ensino fundamental e no ensino médio, vinculadas aos
conteúdos curriculares de cada etapa e modalidade, inclusive por
meio do uso de tecnologias da informação e comunicação, cujo
cômputo, para efeitos de integralização da carga horária mínima
anual, obedecerá a critérios objetivos estabelecidos pelo CNE.
§ 5º Os sistemas de ensino que optarem por adotar atividades
pedagógicas não presenciais como parte do cumprimento da carga
horária anual deverão assegurar em suas normas que os alunos e os
professores tenham acesso aos meios necessários para a realização
dessas atividades.

211
Trecho do voto do Min. Alexandre de Morais: “A Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino
domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite a solidariedade entre Família e Estado, a
fixação de núcleo básico do ensino e todas as previsões que são impostas diretamente pelo texto
constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos, pois são obrigações destinadas a todos aqueles
que pretendam ofertar o ensino obrigatório, seja público, seja privado coletivo, comunitário ou domiciliar.
Dessa maneira, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado
(desescolarização moderada) e homeschooling puro, em qualquer de suas variações, serão inconstitucionais,
pois negam a possibilidade de participação estatal solidária, inclusive na fixação de um núcleo básico de
fiscalização e avaliações”.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Com efeito, as atividades não presenciais deverão ser realizadas com a

utilização da rede mundial de computadores. A propósito, em análise da Lei n.º

12.965/14, conhecida como Marco Civil da Internet, observa-se que o acesso à

Internet é direito de todos e essencial ao exercício da cidadania (arts. 4º e 7º). Vale

salientar, ainda, que a Organização das Nações Unidas (ONU) já reconheceu o

acesso à Internet como direito humano básico e, por consequência, uma ferramenta

essencial à concretização da dignidade da pessoa humana (SAMPAIO, 2020, p. 166).

3. A SALVAGUARDA DO DIREITO SOCIAL FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO

NA VISÃO DO STF

O estado democrático constitucional estabelece papéis específicos a cada um

de seus atores. Existe um amplo espectro de autonomia nas escolhas dos meios e

em que proporção os direitos sociais serão concretizados, o que é denominado de

“livre espaço de conformação”. Portanto, em regra, o Poder Judiciário deve se

autoconter, deixando de intervir nas competências de outros Poderes, a fim de

respeitar as opções realizadas com fulcro em juízos de oportunidade e conveniência.

Isso, contudo, não concede carta branca ao arbítrio e à violação evidente à atribuição

constitucional (ANDREAS, 2002, p. 22-23).

Sob essa ótica, nas hipóteses em que os Poderes Legislativo e Executivo forem

omissos (inconstitucionalidade por omissão) ou praticarem atos indevidos

(inconstitucionalidade por ação) quanto aos próprios mandamentos da Carta

Política, sobretudo em relação aos direitos insertos no mínimo existencial, caberá a

atuação contramajoritária da Corte (TAVARES, 2020, p. 966-967).

Especificamente, em relação ao direito à educação, o artigo 208, § 1º, da

CRFB/88, prevê que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

subjetivo”, consistindo na faculdade de o indivíduo exigir do Estado o

cumprimento de determinadas prestações. Sendo assim, para que seja cumprido o

direito à educação, é necessário que ele seja apto a ser defendido judicialmente

(MENDES; BRANCO, 2018, p. 1042-144).

Seguindo essa diretriz, a LDB apresenta um amplo rol de organismos sociais

legitimados a acionar o Estado em caso de não atendimento da insubstituível

política pública educacional:

Art. 5º O acesso à educação básica obrigatória é direito público


subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos,
associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou
outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, acionar
o poder público para exigi-lo.
§ 3º Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo tem
legitimidade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do §
2º do art. 208 da Constituição Federal, sendo gratuita e de rito
sumário a ação judicial correspondente.

A rica gama de precedentes da Corte Constitucional é capaz de retratar quais

são os principais argumentos suscitados pelo Poder Público em causas relacionadas

ao controle de políticas públicas de acesso à educação básica, bem como identificar

as teses consolidadas nos seus órgãos colegiados. Nesse ponto, observa-se que o

controle jurisdicional acerca da concretização dos direitos econômicos, políticos e

sociais tem relação com a dimensão política da jurisdição constitucional, conforme

destacado pelo Ministro Celso de Mello, em Medida Cautelar proferida na Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 45 (BRASIL, 2004).

Em Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.º 410.715, o Município

de Santo André (SP) alegou que não é possível impor somente ao ente municipal a

manutenção do ensino, em especial, o atendimento de crianças em creches e escolas

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de ensino infantil, pois se trata de responsabilidade solidária de todos os Entes

federados. A ausência de recursos teria limitado o atendimento e a possibilidade de

ampliação em todo o Município. Além disso, as inúmeras medidas judiciais

determinando a inclusão de milhares de crianças em poucas unidades

sobrecarregam o sistema de ensino, caracterizando verdadeira ingerência indevida

do Poder Judiciário na independência do Poder Executivo, pois não se trata de

controle de legalidade e acaba por violar as limitações orçamentárias (BRASIL,

2006).

O recurso foi improvido pela Segunda Turma em 22/11/2005, extraindo-se

como ratio decidendi diversos fundamentos de ordem constitucional. Vale destacar

que a educação infantil representa prerrogativa indisponível voltada ao

desenvolvimento integral das crianças (CRFB/88, art. 208, IV), a qual impõe ao

Poder Público o dever de criar condições objetivas de acesso e atendimento em

creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão

governamental. Também se qualifica como direito fundamental de toda criança, não

se submetendo a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública.

Assim, existe verdadeiro mandamento constitucional (CRFB/88, art. 211, § 2º), do

qual o Ente local não poderá se furtar (BRASIL, 2006).

A propósito, no âmbito das ações afirmativas, alega-se a impossibilidade de

atendimento das políticas públicas sociais, com base na teoria da reserva do

possível, segundo a qual cabe ao administrador fazer escolhas trágicas diante da

escassez dos recursos. Inclusive, a sua origem tem liame com o acesso à educação

(superior), em caso julgado pelo Tribunal Constitucional Federal na Alemanha (no

início dos anos 1970), em que foi proferida a decisão numerus clausus (SARLET, Ingo;

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, 2017, p. 692-693).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Não obstante, tem sido afastada a fórmula da reserva do possível na

perspectiva da teoria dos custos dos direitos, com base na impossibilidade de sua

invocação para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais de prestação

indispensáveis à dignidade humana. Tal entendimento foi aplicado, por exemplo,

no Recurso Extraordinário n.º 1.076.911, julgado em 16/03/2018, pela Segunda

Turma (BRASIL, 2018).

A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em


particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do
bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as
condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção
dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência.
Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo
existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos
prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que
se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em
que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como
se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é
capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível
(BARCELLOS, 2002, p. 245-246).

Em Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público, o Estado do

Amapá foi condenado pelo Tribunal de Justiça daquela unidade federativa a

construir uma escola na Comunidade de Cojubim, no Município de Pracuúba. A

questão chegou ao STF através do Recurso Extraordinário n.º 761.127 e, em sede de

Agravo Regimental, foi aduzida violação aos artigos 2º (separação de poderes) e 205

(dever de educação) da CRFB/88, bem como ao princípio da reserva do possível

(BRASIL, 2014). A Primeira Turma não conheceu do recurso, citando precedentes

com os fundamentos consolidados no âmbito da Suprema Corte, a saber,

inaplicabilidade da reserva do possível em detrimento do mínimo existencial;

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

preservação da dignidade humana (CRFB/88, art. 1º, III); vedação ao retrocesso na

garantia de direitos prestacionais (BRASIL, 2014).

Na mesma linha, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 860.979,

julgado em 14/04/2015, a Segunda Turma manteve a condenação do Distrito Federal

proferida pelo TJDFT à contratação de professores especializados em Libras para

atender a alunos com deficiência auditiva. Por certo, deve ser preservado o núcleo

de intangibilidade dos direitos fundamentais, além de haver diretrizes tanto na

Carta de 1988 quanto nos textos convencionais para inclusão social das pessoas com

necessidades especiais (BRASIL, 2015).

Portanto, diante de condutas injustas e violadoras do direito à educação, a

visão de vanguarda do STF garante ao Poder Judiciário o poder-dever de

concretizar a aplicação da política social prevista no artigo 208, inciso I, §§ 1º e 2º da

CRFB/88.

4. POLÍTICAS PÚBLICAS VOLTADAS À UNIVERSALIZAÇÃO DO ACESSO

À INTERNET PARA FINS EDUCACIONAIS

Ao destacar a educação como um dos direitos sociais que compõem o

mínimo existencial, a CRFB/88 reconhece a responsabilidade do Estado quanto à

salvaguarda e concretização deste direito. O acesso à educação, principalmente em

sua esfera básica, é fundamental para o pleno funcionamento do Estado

Democrático de Direito, visto que “as falhas na formação intelectual da população

inibem sua participação no processo político e impedem o aprofundamento da

democracia” (MENDES; BRANCO, 2018, p. 1040).

Ademais, considerando o nível de abrangência e a necessidade de utilização

de políticas públicas para a sua concretização, os direitos sociais são mais difíceis

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de proteger do que os direitos de liberdade, que fazem parte da esfera individual

do ser humano (BOBBIO, 1992, p. 63). Diante disso, busca-se constantemente a

implantação de políticas públicas aptas a reduzir as desigualdades e alcançar o

maior número possível de pessoas. Nessa senda,

[...] a explicitação das políticas públicas indica aos cidadãos as


intenções do governo em cada área, permitindo a sua participação.
O Estado deixa de ser uma “caixa preta” para a sociedade na
medida em que as diretrizes governamentais são conhecidas, de
modo que os cidadãos podem apoiá-las, acompanhar sua
implementação ou opor-se a sua execução (SCHMIDT, 2008, p.
2313).

As políticas públicas servem como um instrumento de transformação da

ordem social, uma vez que objetivam a redução das desigualdades existentes na

sociedade. No tocante ao direito à educação básica, a diferença entre ensino público

e privado ficou maior e mais evidente durante a pandemia, como ilustra a

Caricatura de Salomón, publicada no jornal “La Prensa Gráfica”, de El Salvador:

Figura 1 - Caricatura retrata o abismo existente na prestação da educação durante a pandemia.

Fonte: SOLOMÓN, 2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Deveras, realizar políticas públicas dessa natureza se revela um dever do Estado,

que não pode se escusar com fulcro na teoria da reserva do possível. As discrepâncias de

ensino entre instituições privadas e públicas acabam sendo potencializadas em decorrência

do pouco ou nenhum acesso à Internet, que, em tempos de pandemia, acarreta o próprio

tolhimento do direito à educação, razão pela qual é tão importante a atuação estatal.

Impende observar que o direito social à educação básica apresenta dupla

dimensão212, assim como os demais direitos fundamentais. Isso significa que existe um viés

subjetivo, segundo o qual se apresenta como um direito individual imprescindível à

proteção do ser humano face a violações concretas ou iminentes. Trata-se da “possibilidade

de o titular do direito fazer valer judicialmente os poderes, as liberdades ou mesmo o direito

à ação ou às ações negativas ou positivas que lhe foram outorgadas pela norma

consagradora do direito fundamental em questão” (SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz

Guilherme; MITIDIERO, Daniel, 2017, p. 248). De acordo com a dimensão subjetiva, “o

‘direito’ de uma pessoa é aquilo que lhe cabe ou lhe é devido enquanto pessoa, e aquilo que

os outros são obrigados ou vinculados a lhe garantir ou a respeitar” (ALEXY, 2015, p. 181).

Por sua vez, a dimensão objetiva consiste na obrigação permanente de proteção dos

direitos fundamentais a ser exercida pelos órgãos estatais, tanto contra agressões dos

próprios Poderes Públicos quanto de particulares, exigindo a adoção de providências para

resguardar os bens protegidos. As políticas públicas estão inseridas nessa dimensão, haja

vista que o Estado está obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício

efetivo desses direitos, os quais não carregam apenas “uma proibição de intervenção

(Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote)”

(CANARIS, 1989 apud MENDES; BRANCO, 2018, p. 1023).

212
É importante reforçar que “a moderna teoria dos direitos fundamentais vem reconhecendo uma dupla
dimensão, ou dupla perspectiva dos direitos fundamentais, na medida em que estes podem ser considerados
como posições jurídicas subjetivas essenciais de proteção da pessoa, como valores objetivos básicos de
conformação do Estado Constitucional Democrático de Direito, manifestando-se, destarte, ora como carta de
concessões subjetivas, ora como limites objetivos de racionalização do poder e como vetor para a sua atuação”
(CUNHA JR., 2015, p. 508).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Assim, no Estado prestacional, o direito objetivo relevante para os


direitos fundamentais 'ultrapassa' o direito (fundamental)
subjetivo. Há tarefas constitucionais (‘princípios’) ‘úteis aos direitos
fundamentais’, às quais (ainda) não corresponde qualquer direito
subjetivo. Com isso, Haberle expressa, de forma concisa, o que
muitos querem dizer quando classificam o problema dos direitos
fundamentais sociais primariamente como um problema de meros
deveres objetivos do Estado. Aqui basta mencionar Hesse, que fala
de uma obrigação positiva do Estado de “fazer de tudo para realizar
os direitos fundamentais, mesmo que não haja para tanto um direito
subjetivo do cidadão”. Dessa maneira, o legislador receberia, “dos
direitos fundamentais, ‘diretrizes e impulsos’” (HESSE, 1983 apud
ALEXY, 2015, p. 516-517).

A inesperada e fatídica pandemia trouxe a necessidade de políticas públicas

mais efetivas e urgentes quanto ao acesso à Internet no âmbito da educação básica.

Em que pese já existirem alguns projetos em andamento e outros encerrados, tais

como: a) Banda Larga nas Escolas; b) criação de Telecentros; c) Inclusão Digital da

Juventude Rural; d) Programa de Inovação Educação Conectada; entre outros,

nenhum deles apresenta o condão de suprir a necessidade de acesso a conteúdo

educacional de forma on-line permanente na residência dos estudantes, mas tão

somente no espaço físico das escolas (OLIVEIRA, 2014, p. 244-246).

Ademais, o Programa de Inovação Educação Conectada 213, instituído pelo

Decreto n.º 9.204/2017, foi criado para ampliar o acesso à Internet para o maior

número possível de escolas, bem como propiciar aos professores e alunos o contato

com as novas tecnologias educacionais. Este programa foi desenvolvido para

cumprir as metas fixadas pelo Plano Nacional de Educação - PNE (Lei n.º

213
O Programa foi organizado para ser concretizado em três fases: “(1) indução (2017 a 2018) para construção
e implantação do Programa com metas estabelecidas para alcançar o atendimento de 44,6% dos alunos da
educação básica; (2) expansão (2019 a 2021) com a ampliação da meta para 85% dos alunos da educação
básica e início da avaliação dos resultados; e (3) sustentabilidade (2022 a 2024) com o alcance de 100% dos
alunos da educação básica, transformando o Programa em Política Pública de Inovação e Educação Conectada
e alta velocidade e fomentar o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica” (BRASIL, M. E.,
2020).

762
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

13.005/2014)214, entre as quais está a universalização do acesso à rede mundial de

computadores nas escolas da rede pública de educação básica, especialmente em

populações com vulnerabilidade socioeconômica.

Não obstante, a pandemia prejudicou as aulas presenciais, razão pela qual a

modalidade on-line se tornou a principal alternativa de estudo. Porém, conforme

pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da

Informação (Cetic), 30% das famílias brasileiras não têm acesso à Internet, ao passo

que 40% dos estudantes de escolas públicas não possuem computadores ou tablets.

Diante desse cenário, alguns congressistas apresentaram projetos de lei (PL) para

assegurar aos estudantes o acesso à Internet através da criação de auxílio financeiro

para a contratação de planos de banda larga fixa e móvel, como o PL n.º 3.462/2020

e o PL n.º 3.466/2020, sendo que o último intenta criar um subsídio permanente

através do Programa Bolsa Internet (BRASIL, S. F., 2020).

Com o mesmo escopo, no Estado do Rio Grande do Sul, a Assembleia

Legislativa destinou recursos a fim de garantir o acesso gratuito à Internet aos

alunos da rede pública estadual de ensino, para aulas virtuais e conteúdos didáticos.

Além disso, o Governo do Estado implantou, em 1º de junho de 2020, o regime de

“Aulas Remotas” na Rede Estadual de Ensino, propiciando a realização de aulas em

ambiente virtual, por meio da plataforma “Google Classroom”. Para tanto, a

Secretaria de Educação disponibilizou Internet patrocinada via celular,

exclusivamente para conteúdo educacional, para todos os alunos e professores que

não possuem acesso (RIO GRANDE DO SUL, S. E., 2020).

214
Meta 7 [...] 7.15) universalizar, até o quinto ano de vigência deste PNE, o acesso à rede mundial de
computadores em banda larga de alta velocidade e triplicar, até o final da década, a relação computador/aluno
(a) nas escolas da rede pública de educação básica, promovendo a utilização pedagógica das tecnologias da
informação e da comunicação;

763
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Destaca-se, também, a criação do Centro de Mídias da Educação, programa

desenvolvido pelo Estado de São Paulo para o retorno das aulas, em 27 de abril de

2020. Por meio de um aplicativo gratuito (o “CMSP”) ou pelos canais de televisão

aberta (TV Educação e TV Univesp), os alunos matriculados na rede pública de

ensino paulista têm acesso a aulas ao vivo, videoaulas e outros conteúdos

pedagógicos durante o período de isolamento social. Inclusive, é possível a

interação entre colegas e a solução dúvidas com os professores através de canais

divididos por disciplinas. Os dados móveis estão sendo fornecidos para os

estudantes de maneira gratuita, pela Secretaria de Educação, após um acordo com

as operadoras de telefonia (SÃO PAULO, 2020).

Por seu turno, outros países da América Latina adotaram medidas similares.

No México, o governo e as emissoras de televisão convencionaram a entrega de

conteúdo à distância, através de aulas televisionadas, tendo em vista que somente

56% (cinquenta e seis por cento) das famílias dispõe de acesso à Internet. Já na

Argentina, o governo e a empresa Telefónica ajustaram a concessão de acesso

gratuito a sites educacionais às famílias que não possuem condições para pagar pelo

serviço, durante a pandemia (BARRÍA, 2020).

De fato, várias políticas públicas implementadas foram possíveis a partir de

alianças entre governos, empresas e organizações nacionais ou internacionais.

Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e

Cultura (UNESCO) vem orientando os países sobre a importância da ligação entre

o acesso à Internet e o direito à educação, da qual decorre a necessidade de priorizar

políticas de acesso aberto, garantindo que a educação pública não dependa

exclusivamente de plataformas digitais fornecidas por empresas privadas (2020, p.

19).

764
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história do constitucionalismo brasileiro atesta a importância do direito

prestacional à educação básica, porquanto ela se manteve intangível desde a Carta

Imperial. De fato, a educação é o pilar para a construção de uma sociedade

democrática e plural, com pessoas plenamente desenvolvidas, capazes de exercer a

cidadania de forma livre e aptas a executar os típicos trabalhos da sociedade

moderna.

De igual sorte, o direito de acesso à Internet legalmente garantido a todos é

indissociável do dia a dia do homem do século XXI. Basta pensar nos segmentos

público e privado, no exercício do trabalho e da cidadania, no lazer, nas novas

modalidades de divulgação da informação e na sua utilidade para fins educacionais.

A pandemia da COVID-19 trouxe uma realidade inédita para a geração atual,

inclusive, colocando em rota de colisão direitos de estatura constitucional. Ademais,

novos conceitos foram repentinamente introduzidos na vida de todas as pessoas, a

saber, isolamento social; quarentena; higienização; uso de máscaras; home office;

lockdown; etc.

Nesse cenário, o desafio que se apresenta é instituir a política pública do

acesso à educação básica por meio da Internet para alunos carentes no contexto da

pandemia. Inevitavelmente, a crise sanitária piora a economia, fato que aumenta as

desigualdades sociais e, por consequência, fere o princípio constitucional da

igualdade de acesso e permanência na escola.

O ensino está imergido em toda essa problemática, tendo em vista que o

direito de acesso à Internet sequer era assegurado para todos os alunos no âmbito

escolar antes da pandemia. A complexidade é ampla, na medida em que viabilizar

o acesso à rede mundial computadores, por si só, não significa a solução do

765
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

problema, pois parcela dos alunos não tem dispositivos eletrônicos, bem como o

conhecimento necessário para acompanhar os conteúdos pedagógicos de forma on-

line.

Nessa linha de raciocínio, a premissa a ser fixada é a de que o viés objetivo

dos direitos fundamentais impõe ao Estado a obrigação de executar as políticas

públicas balizadoras do mínimo existencial, como desdobramento da dignidade

humana. Portanto, enquanto perdurar o estado de calamidade pública gerado pela

pandemia e não for possível retomar o sistema de ensino presencial, é possível

exigir do poder público o acesso individualizado à Internet a fim de garantir a

educação básica para alunos carentes. Tanto é assim que foram identificados

projetos colocados em prática com tal desiderato.

Por certo, qualquer dos legitimados previstos no artigo 5º da LDB poderá

formular pedido de acesso à Internet perante o Poder Público competente em prol

de alunos carentes a fim mantê-los no ensino infantil, fundamental ou médio. Em

casos mais extremos, inclusive, pode ser fornecido o dispositivo eletrônico (por

exemplo, celular), ainda que sob a forma de comodato, atribuindo-se a

responsabilidade de devolução aos responsáveis pela criança ou adolescente.

Outrossim, se for provado que tal encargo não está sendo concretizado, é cabível

acionar o Poder Judiciário, que excepcionalmente deve atuar no seu controle.

Aliás, os casos decididos pelo STF e detalhados no presente estudo podem

ser considerados como paradigmas. A similitude fática se revela pela ausência da

prestação da educação básica. Veja-se que o acesso deve ser visto sob o vértice da

igualdade material, significando que a incumbência abrange o dever do Estado de

fornecer os meios necessários para que o aluno mais carente possa usufruir do

direito prestacional.

766
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Como a sociedade está passando por um período excepcional, em que o vírus

é altamente contagioso e não se permite o contato entre as pessoas, o Estado deve

sim viabilizar o acesso à educação de forma on-line. Por outro lado, diante da crise

econômica latente ocasionada pela pandemia, é muito provável que o Poder Público

coloque em pauta a dicotomia de que os recursos ou serão destinados a garantir a

saúde das pessoas ou a outros direitos sociais (ex.: Internet e educação). Trata-se da

famigerada tese das escolhas trágicas.

Referido contraponto exige uma análise cautelosa, a fim de que não seja

apenas retórica mascarada de reserva do possível, sem prova cabal de ausência de

recursos, fato que contribui para o aumento das diferenças sociais (alunos de escolas

privadas, com acesso aos mais avançados aparatos tecnológicos, versus alunos de

escolas públicas, desprovidos de dispositivos eletrônicos minimamente adequados

e sem acesso à Internet).

Esse cotejo escancara um quadro grave de violação da isonomia. Aliás, a

pandemia acabou exacerbando as diferenças entre as redes de ensino, cabendo ao

Estado o dever de minimizá-las com medidas efetivas de acesso à educação (“Art.

205. A educação, direito de todos e dever do Estado”, da CRFB/88). A escassez de

recursos orçamentários jamais poderá se tornar óbice à garantia das condições

mínimas de existência humana, sob pena de sacrifício do princípio basilar do

constitucionalismo moderno, qual seja, o princípio da dignidade da pessoa humana.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

SAÚDE DE CURTO PRAZO: AS AÇÕES E OS GASTOS DO

GOVERNO FEDERAL NA ÁREA DE SAÚDE PÚBLICA DURANTE

A PANDEMIA – COVID-19

Leonardo Oliveira Tognoc215


Paulo Roberto dos Santos Corval216

RESUMO
No presente trabalho analisam-se as ações do governo federal que, para enfrentamento da
pandemia da Covid-19 na área da saúde, implicaram gastos diretos. Busca-se mapear as
ações, aferindo-se o volume das despesas previstas delas decorrentes. Além disso, esforça-
se para estabelecer um marco de análise dos desenhos institucionais das ações sustentadas
por esses gastos. Como resultado provisório espera-se fixar critério jurídico capaz de
auxiliar na medida do impacto dessas ações, em termos de durabilidade e agregação à
capacidade estatal de prover o serviço público de saúde, ampliando a efetividade do direito
humano fundamental à saúde. Trata-se de tema de elevada relevância prática e implicações
inegáveis, no salvamento de vidas humanas que estão padecendo nas filas dos hospitais
públicos por falta de infraestrutura, equipamentos, leitos e profissionais de saúde
suficientes e bem remunerados, que deem conta do aumento da demanda. Associado ao
quadro de referência da cidadania fiscal e do marco analítico da Análise Integral do Direito
(AID) promove-se pesquisa qualitativa e exame dos dados disponibilizados nos portais de
orçamento e transparência do governo. Além do mapeamento das ações, faz-se o exame da
qualidade, durabilidade e gastos nelas aplicados, utilizando-se dos resultados coligidos
como variável da efetividade do direito humano fundamental à saúde neste momento de
crise. Por razões operacionais de pesquisa recorta-se, para apreciação, o período entre 30 de
janeiro a 08 de maio de 2020 no Brasil. Conclui-se que as ações do governo foram
institucionalmente desenhadas e voltadas ao curto prazo, com baixa possibilidade de
aproveitamento futuro para a operação regular do sistema de saúde pública.

Palavras-chave: orçamento público; estado social; direito à saúde; pandemia – Covid-19;


cidadania fiscal.

215
. Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFF –
(PPGDC – UFF). Pós-graduado em Direito e Advocacia Pública pela (Uerj). Graduado em Direito na (PUC-Rio).
E-mail: leonardo_tognoc@id.uff.br e (Lattes: http://lattes.cnpq.br/2324225159456367).
216
. Doutor em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Ciências Jurídicas na
Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio). Endereço para acessar currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7221133491442018. Indicação do e-mail e link(s) para currículo na plataforma Lattes.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
This work analyzed the actions of the federal government, which involved direct
expenditure in response to the Covid-19 pandemic in the health sector. It attempts to draw
an action diagram to assess the expected costs resulting from it. In addition, it strives to
establish a framework to analyze the institutional design of actions supported by these
expenditures. As an interim result, it is expected that a legal standard will be established to
help measure the impact of these actions, including persistence and aggregation of the
nation’s ability to provide public health services, thereby increasing the efficiency of the
basic human being. Right to health. This is a subject of high practical and undeniable
significance in terms of queuing to save lives in public hospitals due to lack of
infrastructure, equipment, beds and sufficient and well-paid health professionals. This is
the reason for the increase in demand. Combining the reference framework of tax
citizenship and the analytical framework of Comprehensive Legal Analysis (AID) facilitates
qualitative research and inspection of data available on government budgets and
transparency portals. In addition to mapping actions, the collected results are used as
variables for the effectiveness of basic health and human rights in the current crisis, and the
quality, durability, and expenditure of actions are checked. For operational research
reasons, the period from January 30 to May 8, 2020 in Brazil has been deleted for reference.
The conclusion is that the government’s actions are institutionally designed and focused on
the short-term, and they are rarely used in the normal operation of the public health system
in the future.

Keywords: public budget; social status; right to health; pandemic - Covid-19; fiscal
citizenship.

1. INTRODUÇÃO

Reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 30 de janeiro

de 2020, como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional e, em 11

de março, como pandemia, a doença causada pelo novo coronavírus tem desafiado

as estruturas sociais, econômicas, políticas e jurídicas do Mundo. A pandemia

desperta preocupação acerca da proteção dos direitos humanos fundamentais.

Além das medidas públicas que o enfrentamento da doença impôs, trouxe à vista

desigualdades e processos de dominação que, transpondo diferentes segmentos da

existência, encarnaram-se nas instituições e na linguagem jurídica dos direitos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

No Brasil, as medidas de enfrentamento iniciaram em 31 de janeiro de 2020,

com a formação do Grupo Executivo Interministerial em Saúde Pública, seguido do

reconhecimento da Emergência Nacional, em 03 de fevereiro de 2020. Nesse

contexto, a problemática da nossa desigualdade estrutural abrochou, atingindo

aquela parcela da sociedade “sem voz”, menos abastada, que já morria nas filas dos

hospitais públicos brasileiros e em outras partes do mundo por falta de

atendimento, remédios e tratamento adequado.

A categoria analítica da cidadania é útil à compreensão das problemáticas

supramencionadas. Notadamente, a ideia de cidadania fiscal tem o mérito de pôr

em relevo a instrumentalidade das ações estatais voltadas ao combate da pandemia

causada pelo (Covid-19), bem como a problemática da falta de efetividade do direito

humano fundamental à saúde, sobretudo, no que tange à execução do orçamento

público vinculado, atrelado à realização de políticas públicas pelo gestor.

A partir dessa referência, estabelece-se, a hipótese de que no período entre

30 de janeiro de 2020, quando reconhecida à emergência internacional de saúde

pública pela OMS, a 08 de maio de 2020, quando entrou em vigor, no Brasil, a

Emenda Constitucional n.º 106/2020 as ações do governo federal na área de saúde

que implicaram gastos públicos direitos atrelados à pandemia têm mostrado

concretizar orientação emergencial de curto prazo, não importando soerguimento

de estruturas institucionais de maior duração e capacidade de incrementar o serviço

de saúde pública nos anos subsequentes, a fim de dar efetividade ao direito à saúde

no país.

Objetiva-se, contribuir para a construção dos critérios jurídicos capazes de

auxiliar na avaliação do impacto das ações governamentais em termos de

durabilidade e agregação à capacidade estatal de prover o serviço público de saúde,

ampliando, ou ao menos, salvaguardando a efetividade deste direito.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Especificamente, pretende-se: mapear, no período de 30 de janeiro a 08 de maio,

ações do governo federal na área da saúde que implicaram gastos diretos; quer-se

aferir o volume dessas despesas previstas e estabelecer, conquanto em caráter

experimental, um marco de análise dos desenhos institucionais das ações

sustentadas por esses gastos.

Inspirado no marco analítico-metodológico da Análise Integral do Direito

(AID) desenvolve-se, aqui, relato de pesquisa qualitativa de diplomas normativos e

de dados de finanças públicas colocados à disposição nos portais de orçamento e

transparência do governo. O foco recai sobre o volume e as modalidades dos gastos

diretos do governo federal atrelados, na área da saúde, ao enfrentamento da

pandemia da Covid-19, bem como sobre os desenhos institucionais das ações

sustentadas por esses gastos. Além do mapeamento, promover-se-á o exame da

qualidade e durabilidade das ações e gastos nelas aplicados, utilizando-se dos

resultados coligidos como variável da efetividade do direito humano fundamental

à saúde no que toca ao período analisado.

Na próxima seção discorrer-se-á, brevemente, sobre a categoria analítica da

cidadania fiscal como inspiração normativa para a verificação da hipótese. Na

terceira seção, fez-se o mapeamento dos atos normativos e o volume de gastos

diretos envolvidos, deixando, para desenvolvimento futuro, os valores da execução

orçamentária. Ainda, apresentar-se-á estratégia de avaliação do desenho

institucional dessas ações governamentais, examinando-se a qualidade,

durabilidade e gastos nelas aplicados. Os resultados coligidos servirão de indicador

da efetividade do direito humano fundamental à saúde neste momento de crise. Na

quarta seção, as considerações finais.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

2. A CIDADANIA FISCAL COMO MECANISMO DE CONTROLE DOS

GASTOS PÚBLICOS

A categoria 217 analítica da cidadania, no campo epistêmico do direito, é

especialmente útil à compreensão normativa das ações estatais voltadas ao combate

da pandemia causada pelo (Covid-19), notadamente, a noção de cidadania fiscal.

Nas ciências sociais, a cidadania ergueu-se em decorrência do avanço do

capitalismo e das democracias representativas no início do século XX. Serviu em

especial, à compreensão do modo de vinculação dos membros da sociedade que,

conflituosamente, disputam ideias e arranjos institucionais igualitários.

Desenvolvida pela via democrática, percebe-se a cidadania como mecanismo de

superação do reconhecimento e da interação social em termos de classes,

possibilitando, a despeito das rígidas diferenças materiais, alterar de modo

qualitativo o padrão de desigualdade ao promover direitos e deveres de ordem

civil, política e social. Segundo Thomas Marshall (1967, p. 63-76) há um avanço

progressivo no modelo liberal no que tange ao status de cidadão entre os séculos

XVIII a XX, à medida que são reconhecidos direitos que, ampliados inclusive

subjetivamente, podem ser efetivados através de instituições como tribunais,

sindicatos e escolas, a fim de permitir a fruição de direitos, especificamente, dos

direitos sociais, com a institucionalização do Estado do Bem-Estar Social.

Nos estudos jurídicos, a cidadania acabou apropriada por sublinhar a

dimensão dos direitos e deveres de ordem civil, política e social que garantem aos

membros da comunidade, aos cidadãos, um conjunto de direitos. Nesta perspectiva,

217
. Adotam-se como sinônimos, no texto, os termos: conceito, categoria e ideia. Embora distinguíveis, de
ordinário, nas reflexões metodológicas e epistemológicas.

776
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a tendência tem sido sublinhar a dimensão descritiva do processo de acumulação

de direitos humanos tornados fundamentais no curso do processo histórico.

No Brasil, segundo Carvalho (2009, p. 7-8), no período pós-ditadura, já em

meados de 1985, houve um esforço de construção da cidadania que ganhou “voz”

na boca do povo, inclusive com a substituição do próprio povo, pois se dizia “o povo

quer isso ou aquilo”, e se passou a dizer “a cidadania quer...”. A cidadania virou gente,

disse o autor, com apogeu na Constituição Cidadã de 1988.

Nesse contexto, os direitos políticos ganharam amplitude, com a

universalidade do voto facultativo dos menores entre 16 e 18 anos incompletos,

maiores de 70 anos e dos analfabetos, reafirmando-se a obrigatoriedade dos 18 aos

70 anos de idade. Os direitos civis, sociais, econômicos e culturais foram

assegurados. No entanto, os problemas socioeconômicos mantiveram-se em nível

estrutural. A desigualdade social não desapareceu com o advento da democracia. O

desemprego, a falta de saneamento básico, moradia, saúde e educação, a despeito

das melhorias, perduraram.

Assim, o potencial descritivo do conceito vem ganhando renovada

perspectiva, sobretudo, no campo epistêmico do Direito, em busca “da construção

ética e normativa dos direitos ínsitos na concepção de cidadania” (TORRES, 1999, p. 251).

Espera-se, com o auxílio analítico da ideia de cidadania, que os direitos sejam

materializados através de ações do Estado e da sociedade representada na figura

dos seus cidadãos.

Porém, a cidadania, para algumas linhas de pensamento no campo do

Direito, na perspectiva sociológica descritiva clássica apresentaria uma dimensão

passiva, apática, sem cor. De acordo com Enzo Bello (2010, p. 529), a cidadania

passiva teria sido o modo como transplantado o conceito sociológico para o Direito,

funcionando como um “fetichismo constitucional, que representa a ilusão gerada pela

777
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

concepção moderna da cidadania passiva (status de direitos), de que a cidadania se realizaria

plenamente ao ser confiada ao Direito e à Constituição”. No Brasil nem tudo que está na

Constituição é efetivo, como podia ter se pensado, no início, com a promulgação da

Constituição Cidadã de 1988.

Fugindo-se da leitura estilizada – como se busca aqui, ainda que de modo

indiciário, a partir do ponto de vista integral do fenômeno (CORVAL, 2017 e 2009)

a categoria, devidamente criticada, ainda é útil ao pensamento jurídico, voltado à

normatividade, ao orientar a análise da qualidade da apropriação e da

concretização, em diferentes momentos e circunstâncias, dos direitos acumulados,

o que parece possível por meio do exame, delimitado no tempo e setorialmente, dos

desenhos institucionais das ações jurídicas com base neles motivadas.

A cidadania está prevista na Constituição da República Federativa do Brasil

de 1988, em seu artigo 1º, inciso II, como princípio fundamental do Estado

Democrático de Direito. É um reconhecimento importantíssimo. Contudo, sabe-se

que para ser efetivada não basta apenas estar prevista no texto constitucional. A

cidadania como lembra Torres (1999, p. 253-256), provocaria a releitura da relação

entre Estado e cidadão, trazendo consigo a temática dos status. Para Ricardo Lobo

Torres, na linha dogmática jurídica alemã essa relação compreenderia o status

negativus, o status positivus libertatis, o status positivus socialis, e o status activus

processualis.

Nesse sentido, o conceito de cidadania revelaria, para ser trabalhado no

campo do Direito (TORRES, 1999, p. 329-330), várias dimensões, tais como:

dimensão de tempo, de espaço, de bilateralidade e a dimensão processual,

mostrando-se multidimensional, cuja perspectiva traduz-se na “contribuição do

equilíbrio entre valores e princípios e na concretização na ‘era dos direitos’, na medida em

que atue com maior eficácia na ordem normativa em prol da afirmação dos direitos”; de

778
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

maneira, que os cidadãos visualizem os direitos, principalmente, aqueles ditos

fundamentais a existência humana e atue com mais clareza e eficácia na ordem

normativa, através dos princípios constitucionais, em função da afirmação dos

direitos de liberdade e aqueles essenciais à existência.

Desse modo, há percepções acerca da cidadania, destacando-se, no atual

momento histórico, de maneira especial, duas afetas diretamente ao campo

epistêmico do Direito. Especialmente do Direito Financeiro. A primeira perspectiva

é descritiva, objetiva mapear o desenvolvimento institucional das relações entre o

Estado e os sujeitos que o integram, por meio da requalificação destes com a ideia

de cidadania. Nessa direção é citado, com frequência, o trabalho de (MARSHALL,

1967), não obstante ser limitado à identificação de suposta evolução de dimensões

ou gerações de direitos. A segunda perspectiva é a normativo-prescritiva, que

buscam na ideia de cidadania, como multiplicidade de vínculos entre o Estado e os

sujeitos que o compõem, os específicos efeitos jurídicos. (TORRES, 1999) amparado

no constitucionalismo alemão, destaca-se aqui, salientando haver status de cidadania

libertis, etc., cada um invocando um conjunto de efeitos e argumentos jurídicos

peculiares.

Acrescente-se que Ricardo Lobo Torres, mesmo avançando na análise

normativa dos direitos inerentes aos cidadãos de modo a torná-los afirmativos,

apenas tangencia a cidadania ativa em função do reconhecimento do status activus

processualis. Não parece enxergar, no conceito, um mecanismo para promover a ação

do cidadão no controle da efetividade das normas Constitucionais. No campo das

finanças públicas, notadamente, tem se revelado indispensável acolher a crítica

779
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

segundo o qual a cidadania deve ser ativa 218 , promovendo-se, pela ação e

consciência dos cidadãos, impulsos de transformação da realidade.

A cidadania fiscal ampara-se nessas duas fontes imanente à noção da

cidadania multidimensional, mas, de igual forma, com forte influência da teoria

crítica na busca pela efetividade dos direitos fundamentais. Pela categoria da

cidadania fiscal, assim, é posta à reflexão a participação ativa dos cidadãos no

processo político orçamentário, no controle social e na fiscalização dos atos dos

gestores públicos como instrumento de defesa dos direitos humanos fundamentais.

E, para fins do presente trabalho, voltado ao direito humano fundamental à saúde,

põe em relevo a necessidade de avaliação das políticas públicas que concretizam as

ações governamentais e da sociedade que possam fomentar e ampliar capacidades

e estruturas para a vida digna, sobretudo, nos lugares de maior carência. Sublinha,

ainda, que levantamentos, diagnoses e avaliações acadêmicas no setor devem

contribuir para a mudança de arranjos institucionais e de comportamentos,

ativando os cidadãos para que intervenham nas transformações políticas,

econômicas e sociais, não só na hora do voto, mas, também, da fiscalização e

exigência de transparência na execução do orçamento público. Exigências de

controle são estimuladas pela categoria da cidadania fiscal, a fim de que os esforços

de concretização de direitos sejam tornados visíveis, voltados ao bem comum,

capazes de garantir resultados efetivos da normatividade prometida.

A inspiração normativa que daí se colige é mais relevante no momento

atual. Mais do que a insuficiência decorrente da demanda excessiva às ações

públicas e privadas de saúde, a pandemia, no Brasil, recolocou sob os holofotes as

mazelas da subcidadania (SOUZA, 2003) e da deficiente capacidade estatal de

218
. Para (BELLO, 2010, p. 522) a cidadania ativa está “atrelada a uma ideia de justiça distributiva e preconizou
o pertencimento dos indivíduos a uma comunidade democraticamente autogovernada, bem como o
autodomínio dos cidadãos e a participação política direta nos assuntos da coletividade”.

780
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

promover Direitos Humanos, sobretudo, àquele fundamental à saúde (Pacto

Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 12 e art. 25 da

Declaração Universal dos Direitos Humanos) e (CRFB, art. 196). Por conseguinte, a

Covid-19 renova a agenda da construção institucional e transformadora da saúde

pública no Brasil e no mundo, trazendo com ela, novos desafios às finanças públicas

e sua regulação jurídica.

3. AS MEDIDAS DE ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA ADOTADAS PELO

GOVERNO FEDERAL BRASILEIRO ENTRE 30 DE JANEIRO A 08 DE MAIO

DE 2020 E SEUS DESENHOS INSTITUCIONAIS

No Brasil, tendo em vista o setor específico da saúde pública, as medidas de

enfrentamento à pandemia da Covid-19 iniciaram em 31 de janeiro de 2020, com a

formação do Grupo Executivo Interministerial em Saúde Pública, seguido do

reconhecimento da Emergência Nacional, em 03 de fevereiro de 2020. Havia,

inicialmente, de acordo com dados oficiais do Ministério da Saúde a confirmação

do primeiro caso de novo coronavírus em São Paulo, em 26 de fevereiro.219

Entre 30 de janeiro e 08 de maio de 2020 foram adotadas medidas,

normativamente amparadas, pelo governo federal. Na Tabela – 1, a seguir,

219
. O caso narrava que um homem de 61 anos deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein (SP), na terça-
feira dia 25 de fevereiro, com histórico de viagem para Itália, região da Lombardia. Todavia, no dia 02 de abril
de 2020 o Ministério da Saúde voltou atrás e informou, através do site oficial do governo, que houve o caso
de uma mulher de 75 anos, falecida em 23 de janeiro, em Minas Gerais, diagnosticada com o (Covid-19). Este,
através de investigação retroativa, até o momento, foi confirmado como o primeiro caso no Brasil e com óbito.
Possivelmente, houve outros casos talvez diagnosticados com insuficiência respiratória e até aqueles que nem
foram aos hospitais; mas, fato é que a doença já estava no Brasil bem antes da data oficialmente divulgada, e
mais, houve notória demora por parte do Governo Federal em adotar as medidas de enfrentamento.
Disponível em
<https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/04/02/interna_nacional,1135097/primeira-morte-de-
covid-19-no-brasil-foi-em-minas-informa-governo.shtml.> Acesso em 10 de maio de 2020.

781
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

apresenta-se o levantamento quantitativo dos atos normativos do período,

incluindo-se a Emenda Constitucional n.º 106 de 2020:

Tabela 1 – Atos normativos legislativos e administrativos editados entre 30 de janeiro e 08 de maio


de 2020 atinentes às ações de enfrentamento à pandemia Covid-19.
Atos normativos de enfrentamento – Covid-19 Quantidade

Emenda Constitucional 01

Leis Ordinárias 07

Leis Complementares 01

Projeto de Lei 01

Medidas Provisórias 41

Resoluções 50

Portarias 130

Instruções Normativas 10

Recomendações 03

Circulares 01

Total 245
Fonte: elaboração própria com base nos dados extraídos dos endereços eletrônicos do Congresso
Nacional e da Presidência da República.

O mapa normativo da realidade observada até a edição da Emenda

Constitucional n.º 106 de 2020, publicada no Diário Oficial da União em 08 de maio

de 2020, é bastante amplo. Neste ponto, a Medida Provisória constituir veículo

normativo mais utilizado em circunstâncias emergenciais. Focou-se nas 41 Medidas

Provisórias editadas no período proposto, destacando-se aquelas que, nesta fase

ainda em curso da pesquisa, envolviam vultosos gastos direitos e 02 Leis que

possibilitavam adequada mensuração com elementos divulgados ao público para

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

se levar a efeito o experimento aqui proposto. Assim, destacaram-se 08 atos

normativos abaixo:

Tabela 2 – 06 Medidas Provisórias e 02 Leis.


Atos normativos Montante de recursos Medida(s) prevista(s)
envolvidos

MP nº 924 de 13 de março de R$ 5.099.795.979,00 Abre crédito extraordinário,


2020 possibilitando ao Ministério da
Educação: a aquisição de
insumos hospitalares, no âmbito
do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre – HCPA, e da Empresa
Brasileira de Serviços
Hospitalares – EBSERH; ao
Ministério da Saúde: a aquisição
de equipamentos de proteção
individual, treinamento e
capacitação de agentes de saúde,
compra de “kits” de teste para
detecção de (Covid-19),
disponibilização de leitos de UTI.
E, apoio financeiro aos Estados,
DF e Municípios em medidas de
assistência à saúde.

MP nº 938 de 02 de abril de --- Regulamenta a prestação de


2020 apoio financeiro pela União aos
entes federados que recebem
recursos do Fundo de
Participação dos Estados – FPE e
do Fundo de Participação dos
Municípios – FPM no valor de R$
16.000.000.000,00.

MP nº 939 de 02 de abril de R$ 16.000.000.000,00 Abre crédito extraordinário em


2020 favor de Transferências a
Estados, DF e Municípios,
possibilitando recursos, sob
supervisão do Ministério da
Economia, àqueles que recebem
parcelas do Fundo de
Participação dos Estados - FPE e
do Fundo de Participação dos

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Municípios – FPM, visando ao


enfrentamento da situação de
emergência decorrente do
Coronavírus.

MP nº 940 de 02 de abril de R$ 9.444.373.172,00 Abre crédito extraordinário em


2020 favor do Ministério da Saúde,
possibilitando a realização de
despesas a serem executadas
diretamente pela União e
transferências fundo a fundo, aos
Estados, Municípios e DF,
necessárias à oferta de testes
diagnósticos; produção de
medicamentos; estruturação e
operacionalização de centrais
analíticas para diagnóstico da
doença; construção e operação de
centro hospitalar de atenção e
apoio às pesquisas clínicas para
pacientes graves; aquisição de
equipamentos para leitos de
cuidado intensivo; custeio de
serviços de atenção
especializada, especialmente
leitos de terapia intensiva e de
unidades de urgência e
emergência; ampliação do
número de profissionais da
saúde em atuação no SUS;
contratação de serviço de
teleatendimento pré-clínico
remoto em caráter excepcional.

MP nº 941 de 02 de abril de R$ 2.113.789.466,00 Abre crédito extraordinário em


2020 favor dos Ministérios da
Educação; da Saúde; e da
Cidadania. Utilizam-se recursos
relativos às emendas de bancada
estadual, estando originalmente
destinados a finalidades diversas
em órgãos do Poder Executivo,
para apoiar as ações
desenvolvidas pelos Ministérios
da Educação, da Saúde e da
Cidadania no combate do

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Coronavírus, para assegurar


resposta efetiva do Estado à
expansão de casos da doença no
território nacional.

MP nº 947 de 08 de abril de R$ 2.600.000.000,00 Abre crédito extraordinário, em


2020 favor do Ministério da Saúde. A
medida visa à aquisição de
equipamentos de proteção
individual (EPI), como máscaras,
aventais, luvas, sapatilhas e
álcool, usados por profissionais
da saúde, bem como de
ventiladores pulmonares,
destinados à distribuição a
Estados, Municípios e ao DF,
buscando equipar leitos
hospitalares para atendimento
dos casos mais graves da doença.

Lei Complementar nº 172 de 16 Não foi possível apurar o Autoriza aos Estados, DF e
de abril de 2020 montante específico Municípios a transposição e a
transferência de saldos
financeiros remanescentes de
exercícios anteriores, constantes
de seus respectivos Fundos de
Saúde, provenientes de repasses
do Ministério da Saúde,
destinados exclusivamente à
realização de ações e serviços
públicos de saúde, segundo os
critérios disciplinados pelos arts.
2º e 3º da Lei Complementar nº
141, de 2012, condicionados à
observância prévia dos seguintes
requisitos: cumprimento dos
objetos e dos compromissos
previamente estabelecidos em
atos normativos específicos
expedidos pela direção do SUS;
inclusão dos recursos financeiros
transpostos e transferidos na
Programação Anual de Saúde e
na respectiva lei orçamentária
anual, com indicação da nova
categoria econômica a ser

785
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

vinculada; ciência ao respectivo


Conselho de Saúde.

Lei nº 13.995 de 06 de maio de R$ 2.000.000.000,00 Viabiliza a transferência de valor


2020 para Santas Casas e Hospitais
sem fins lucrativos. Por meio
desse auxílio, prestadores
filantrópicos de serviços de saúde
poderão trabalhar de forma
articulada com o Ministério da
Saúde e os gestores estaduais e
municipais do SUS, ofertando-
lhes mais serviços,
principalmente leitos de terapia
intensiva. As Santas Casas
respondem por mais de 50% de
todos os atendimentos do (SUS),
assumindo fundamental
importância no combate ao
Coronavírus. Nota-se que essas
instituições formam uma rede
assistencial estratégica por
estarem geograficamente
distribuídas em todas as
Unidades Federadas, auxiliando
o Ministério da Saúde na luta
contra a pandemia.
Fonte: elaboração própria com base nos dados extraídos dos endereços eletrônicos do Congresso
Nacional e da Presidência da República.

Como se vê, no período de 30 de janeiro a 08 de maio, às ações do governo

federal na área da saúde que implicaram gastos diretos são realizadas através da

abertura de créditos extraordinários no montante estimado em torno de R$

37.257.958.617,00 (Trinta e sete bilhões, duzentos e cinquenta e sete milhões,

novecentos e cinquenta e oito mil, seiscentos e dezessete reais).220

220
. Trata-se de valor estimado. Não foi possível mensurar até o término deste artigo o valor total da
transposição e transferência de saldos financeiros remanescentes de exercícios anteriores, constantes dos
respectivos Fundos de Saúde dos Estados, DF e Municípios, provenientes de repasses do Ministério da Saúde,
destinados exclusivamente à realização de ações e serviços públicos de saúde, autorizada pela LC nº 172 de 16
de abril de 2020.

786
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A análise dos desenhos institucionais das ações sustentadas por esses gastos

foi aqui examinada pela estimativa, qualitativa, do seu impacto em termos de

durabilidade e agregação à capacidade estatal de prover o serviço público de saúde,

para a efetividade deste direito humano fundamental.

Verificaram-se, especialmente, as regras que desenham as ações públicas

adotadas pelo governo federal no enfrentamento da Covid-19. Além de se indicar

montantes e apontar quais e quantas foram às medidas adotadas buscou-se, no

estudo das normas que modelaram institucionalmente essas ações, destacar as

dimensões de durabilidade e agregação à capacidade estatal mediante critérios de

qualidade institucional extraídos da literatura especializada e rearranjados para o

fim específico deste trabalho.

Em linhas gerais, foram destacados da perspectiva analítica de Lowndes e

Roberts (2013, p. 189-192) os critérios de robustez e revisibilidade para compor o

quadro avaliativo da qualidade institucional das regras disciplinadoras das

medidas adotadas pelo governo federal no período examinado.

Percebe-se que é através da clareza dos valores, da natureza e eficácia da

norma aplicada por terceiros que se extrai o desenho institucional, aferindo-se a

robustez da medida adotada. Como a "institucionalização" é um processo contínuo,

não é suficiente examinar os valores e a abordagem de aplicação incorporada ao

“design” original. Há a necessidade de se avaliar até que ponto a clareza de valor é

mantida ao longo do tempo e o desenvolvimento contínuo de estratégias de

aplicação. Na prática, quer se garantir que os novos desenhos institucionais

modelem o comportamento dos atores das maneiras desejadas e deem origem a

novas e específicas "lógicas de adequação". As abordagens para a aplicação podem

depender mais ou menos do controle direto ou da construção de compromissos

entre os atores. Deve-se, portanto, testar as medidas adotadas, verificando-se nelas,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

se há coerência entre os valores, princípios e regras inseridas no sistema jurídico

nacional, se são apoiadas pelos representantes da sociedade e, se alinham com as

experiências internacionais, observando-se, por exemplo, os relatórios do FMI 221,

CEPAL222, OCDE223.

A revisibilidade, por sua vez, segundo Lowndes e Roberts (2013, p. 191-192)

traduz-se por dois critérios: primeiro o da flexibilidade, entendida como a

capacidade dos desenhos institucionais para adaptação ao longo do tempo e para

capturar os benefícios da aprendizagem. E, segundo, o da variabilidade, isto é, até

que ponto há tolerância de diferentes variantes de “design” em diferentes locais.

Em suma, a revisibilidade procura garantir que os arranjos institucionais podem

operar em diferentes ambientes e em circunstâncias mutáveis, e que há capacidade

para inovação e aprendizado. Avalia-se se a medida, na forma como projetada, tem

possibilidades de ser encampada no dia a dia institucional e se, pelas suas regras,

tendo em vista o desenho federativo, pode ser manejada por diferentes instâncias

ou se harmoniza com a divisão de atribuições do Sistema Único de Saúde.

A esse conjunto adicionou-se, da literatura especializada, critérios

utilizados por Adrian Vermeule (2007, p. 05-07) para valoração de arranjos

institucionais normativamente orientados: imparcialidade, accountability,

transparência e deliberação para aferição dos desenhos institucionais.

Para o autor, é por meio de quatro valores fundamentais do constitucionalismo

democrático que se forma algo como o terreno comum entre democratas de diferentes faixas.

Segundo Vermeule (2007, p. 27-75) a imparcialidade significa que os funcionários do

221
. Disponível em <https://nacoesunidas.org/fmi-preve-para-este-ano-maior-recessao-global-desde-1929/>
Acesso em, 11 de junho de 2020.
222
. Disponível em <https://nacoesunidas.org/cepal-apresentara-relatorio-sobre-efeitos-economicos-e-
sociais-da-covid-19-para-america-latina-e-caribe/> Acesso em, 11 de junho de 2020.
223
. Disponível em <http://www.oecd.org/coronavirus/policy-responses/covid-19-na-regiao-da-america-
latina-e-caribe-implicacoes-sociais-e-economicas-e-politicas-prioritarias-433b9d11/> Acesso em, 11 de junho
de 2020.

788
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

governo agem de maneira desinteressada, não dando preferência ao seu próprio

bem à custa dos outros membros da comunidade política. Agem para promover o

bem coletivo. A accountability significa que os agentes públicos devem responder

por suas ações aos outros membros da comunidade política. Por transparência

entende Vermeule (2007, p.177) que o sigilo governamental é presumivelmente

ruim em uma democracia que funcione bem; os cidadãos devem, em geral, ser

capazes de observar a tomada de decisão oficial de alguma maneira, embora possa

ser argumentado que existem boas razões democráticas para superar a presunção

de transparência em uma variedade de configurações para a tomada de decisão

realizada pelos gestores. Já a deliberação significa que os agentes públicos devem

tomar decisões com base em razões de interesse público, e não em preferências

particulares.

Os critérios destacados por Vermeule incluem-se, como especificações a

ideia de robustez aventada por Lowndes e Roberts. Arranjo institucional robusto é

aquele que apresenta coerência com os princípios instrumentais necessários à

efetivação sistematizada de direitos através da cidadania ativa, no caso em análise,

da cidadania fiscal como instrumento de ação, republicano e plural. Complementa

o esforço de delimitação analítica da qualidade institucional das medidas

governamentais aqui analisadas, aportes da Análise de Impacto Legislativo

(ANDRADE; SANTANA, 2017, p. 790-795) e de Legística (GUIMARÃES; BRAGA,

2011, p. 88-90)224.

224
. Para os primeiros autores a Legística se subdivide em material e formal. A perspectiva material, em
consonância com a problemática abordada, os atos normativos realizados pelo governo federal devem se
ocupar da identificação e definição do problema, cuja solução é atribuída à ação legislativa, determinando os
objetivos e disponibilizando meios potencialmente aptos a gerar os efeitos pretendidos pela legislação, no caso
combate eficiente à pandemia causada pelo (Covid-19). A perspectiva formal se destina a aperfeiçoar o círculo
de comunicação legislativa, fornecendo princípios, a fim de melhorar a compreensão e o acesso aos textos
legislativos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nessa direção analítica são enfatizados o processo de formulação das Leis

e o processo decisório, sublinhando-se a relevância, na produção normativa, da

generalidade da Lei, dos custos e benefícios implicados e do impacto territorial, bem

como a capacidade impositiva da lei e o seu impacto em termos de sua eficiência,

eficácia e efetividade (ANDRADE; SANTANA, 2017, p.790-791). Podendo ser

apropriado ou pela robustez ou pela revisibilidade, auxiliando na montagem do

quadro avaliativo desenvolvido nesta pesquisa para examinar as medidas

governamentais contra a pandemia da Covid-19. A Tabela – 3, a seguir, tendo em

conta as seis Medidas Provisórias e as duas Leis da Tabela – 2, mesmo não

dispensando exame mais detalhado e qualificado de cada medida adotada, permite

indicação razoável de quanto às medidas tendem a incrementar a observância e

efetividade dos direitos de cidadania que as motiva.

Tabela 3 – Tabela de avaliação das medidas normativas adotadas pelo governo

federal

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais
Critérios Medida Medida Medida Medida Medida Medida Lei Lei nº
de Provisóri Provisór Provisória Provisória Provisória Provisória Complem 13.995 de
Robustez a nº 924 ia nº 938 nº 939 de nº 940 de nº 941 de nº 947 de entar nº 5. 5. 2020
de de 2.4.2020. 2.4.2020. 2.4.2020. 8.4.2020. 172 de de
13.3.2020 2.4.2020. 16.4.2020 6.5.2020

Coerência Sim. Sim. Sim. Sim. Sim. Sim. Sim. Sim.


Valores, Possui Possui Possui Possui Possui Possui Possui Possui
Princípios, coerênci coerênci coerência coerência coerência coerência coerência coerência
Regras a com os a com os com os com os com os com os com os com os
e/ou preceitos preceito preceitos preceitos preceitos preceitos preceitos preceitos
Direitos constituc s constituci constituci constituci constituci constitucio constituci
que a ionais. constitu onais. onais. onais. onais. nais. onais.
fundamen cionais.
tam

Imparciali Sim, é Sim, é Sim é Sim é Sim é Sim é Sim a Sim, é


dade imparcia imparci imparcial imparcial imparcial imparcial medida é imparcial
(entendid l na al na na medida na na na imparcial, na
a aqui medida medida em que a medida medida medida pois medida
como em que em que União em que em que em que autorizou em que
extensão busca o busca presta busca o busca o busca o aos busca o
dos enfrenta regulam auxílio enfrentam enfrentam enfrentam Estados, ao enfrentam
beneficiári mento entar a financeiro ento da ento da ento da DF e aos ento da
os: se a da prestaçã aos pandemia pandemia pandemia Município pandemia
medida é pandemi o de Estados, como como como s a como
universal, a como apoio DF e fenômeno fenômeno fenômeno transposiç fenômeno
para fenômen financei Município universal. universal. universal. ão e a universal.
todos, ou o ro da s visando Mas Mas é Mas é transferênc Mas a
setorizada universa União ao setorizada setorizada setorizada ia de medida é
, para um l, mas aos enfrentam ao em favor em favor saldos setorizada
grupo e setoriza entes ento da direcionar dos do financeiros para os
qual os federad situação recursos Ministério Ministério remanesce Hospitais
grupo) recursos os que de em favor s da da Saúde. ntes de sem fins
para o recebem emergênci do Educação; exercícios lucrativos
Ministéri recursos a Ministério da Saúde; anteriores, e Santas
o da do decorrent da Saúde e da constantes Casas.
Saúde e Fundo e do e Cidadani de seus
da de Coronavír possibilita a. respectivo
Educaçã Particip us. r despesas s Fundos
o ação dos diretas de Saúde.
(Hospita Estados pela
is das – FPE e União.
Universi do
dades Fundo
de

791
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Federais Particip
) ação dos
Municíp
ios –
FPM.

Accounta Não Não Não Não Não Não Contempl Contempl


bility e contemp contem contempl contempl contempl contempl a previsão a
transparê la pla a previsão a a a de previsão
ncia (se a previsão previsã de previsão previsão previsão controle. de
medida de o de controle, de de de Os controle.
contempla controle, controle ou cria controle, controle, controle, Estados, As
previsão ou cria , ou cria exceção. ou cria ou cria ou cria DF e entidades
de seu exceção. exceção. exceção. exceção. exceção. Município beneficia
controle s que das
ou cria realizarem deverão
alguma a prestar
exceção ao transposiç contas da
sistema ão ou a aplicação
geral de transferên dos
controles cia recursos
públicos) deverão aos
comprova respectiv
r a os fundos
execução de saúde
no estaduais,
respectivo municipa
Relatório is ou
Anual de distrital,
Gestão. bem
como
obrigatóri
a
transparê
ncia do
montante
transferid
o a cada
entidade
beneficia
da.

Qualidade Não Não Não podia Não Não Não Não podia Não
formal (se podia ser podia ser podia ser podia ser podia ser ser podia ser
a medida adotada ser adotada adotada adotada adotada adotada adotada

792
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

já não com base adotada com base com base com base com base com base com base
seria na com na na na na na na
passível legislaçã base na legislação legislação legislação legislação legislação legislação
de ser o legislaçã existente à existente existente existente existente à existente
adotada existente o época. à época. à época. à época. época. à época.
com base à época. existent Observa Observa Observa Observa Observa os Observa
na Observa e à os os os os aspectos os
legislação os época. aspectos aspectos aspectos aspectos formais. aspectos
existente -- aspectos Observa formais. formais. formais. formais. Requer formais.
necessária, formais. os Requer Requer Requer Requer regulamen Requer
proporcio Tem aspectos regulame regulame regulame regulame tação em regulame
nal e caráter formais. ntação em ntação em ntação em ntação em nível ntação em
subsidiári emergen Requer nível nível nível nível administra nível
a e se cial. regulam administr administr administr administr tivo. administr
observa, Requer entação ativo. ativo. ativo. ativo. ativo.
dos regulam em nível
aspectos entação adminis
formais, em nível trativo.
exposição administ
de rativo.
motivos
no
processo
de sua
feitura).
Pode
desdobrar
em um
outra
linha: se a
medida é
bem
detalhada
ou se
requer
regulamen
tação para
sua
aplicação

793
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Deliberaçã Não Não Não Não Não Não Não houve Não
o (se a houve houve houve houve houve houve participaçã houve
medida participa particip participaç participaç participaç participaç o de outros participaç
contou ção de ação de ão de ão de ão de ão de setores da ão de
com a outros outros outros outros outros outros sociedade. outros
participaç setores setores setores da setores da setores da setores da Houve setores da
ão de da da sociedade sociedade sociedade sociedade participaçã sociedade
outros sociedad socieda ou de ou de ou de ou de o do Poder . Houve
setores e ou de de ou de outros outros outros outros Legislativo participaç
pela outros outros poderes poderes poderes poderes e do ão do
realização poderes poderes da da da da Executivo Poder
de da da República República República República Federal Legislativ
audiência Repúblic Repúbli o e do
pública ou a ca Executivo
outra Federal
forma de
consulta
no
processo
de sua
formação)

Simetria Há Há Há Há Há Há Há Há
Internacio simetria simetria simetria simetria simetria simetria simetria simetria
nal (se as com com com com com com com com
medidas alguns alguns alguns alguns alguns alguns alguns alguns
adotadas países. países países países países países países países
encontram
se alinham
com
experiênci
as
internacio
nais –
(Relatório
s FMI,
CEPAL,
OCDE)

Critérios
de
Revisibilid
ade

Transitori Tem Tem Tem Tem Tem Tem Tem Não tem
edade (se vigência vigência vigência vigência vigência vigência vigência vigência

794
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a medida é determin determi determina determin determin determin determina determina


divulgada ada em nada em da em ada em ada em ada em da, da, mas
com função função função de função de função de função de somente restringe
vigência de ser de ser ser ser ser ser enquanto ao teto de
determina Medida Medida Medida Medida Medida Medida durar o 2 bilhões
da no Provisóri Provisór Provisória Provisóri Provisóri Provisóri estado de para
tempo ou a ia a a a calamidad transferên
não) e pública. cia.

Potencial Pode ser Pode ser Pode ser Pode ser Pode ser Pode ser Pode ser A medida
de integrad integrad integrada integrada integrada integrada integrada pode ser
replicação a à lógica a à à lógica à lógica à lógica à lógica à lógica adotada
(se a coorden lógica coordena coordena coordena coordena coordenad por outras
medida ada da coorden da da da da da da da da a da ação entidades
pode ser ação ada da ação ação ação ação federativa, federativa
adotada federativ ação federativa federativ federativ federativ na medida s.
por outras a, com federati , na a, na a, na a, na em que
entidades restriçõe va, na medida medida medida medida descentrali
federativa s. União medida em que em que em que em que za
s ou se impondo em que descentral descentra descentra descentra recursos
pode ser aos descentr iza liza liza liza da União
integrada demais aliza recursos recursos recursos recursos para os
à lógica entes da recursos da União da União da União da União demais
coordenad federaçã da para os para os para os para os entes da
a da ação o. União demais demais demais demais federação.
federativa para os entes da entes da entes da entes da
) demais federação. federação federação federação
entes da . . .
federaçã
o.
Fonte: elaboração própria

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que as ações do governo foram institucionalmente desenhadas e

voltadas ao curto prazo, com baixa possibilidade de aproveitamento futuro para a

operação regular do sistema de saúde pública, mesmo a experiência internacional

indicando que a questão mais crítica no tratamento da doença (Covid-19) em casos

graves é a disponibilidade de leitos e instalações com capacidade de assegurar

795
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

suporte respiratório. Ademais, verifica-se indispensável preparar a rede de atenção

primária para expansão da demanda, tornando-a capaz de exercer a contenção da

transmissibilidade do vírus, e identificar precocemente os casos graves. Todavia, as

medidas adotadas limitaram-se ao suporte emergencial com hospitais de campanha

e poucos equipamentos, demonstrando baixa capacidade de prevenir, controlar e

conter os danos à saúde em decorrência da pandemia global. Evidenciam-se as

mazelas sociais. Constata-se a baixa efetividade do direito à saúde.

Os arranjos institucionais verificados a partir dos critérios de revisibilidade

e robustez ora adotados demonstram a partir do teste realizado em cotejo com a

realidade social observada e a qualidade da norma, que a capacidade dos desenhos

institucionais para adaptação ao longo do tempo e para capturar os benefícios da

aprendizagem e a variabilidade do “design” original em diferentes locais, a partir

das medidas do governo federal, na forma como projetada, são de curto prazo não

encampadas no dia a dia institucional, sobretudo, no desenho federativo brasileiro.

A cidadania fiscal é instrumento de ação em um ambiente republicano e plural.

Trata-se de categoria utilizada aqui em aposta à reflexão sobre a participação dos

cidadãos no controle social dos atos dos gestores públicos como instrumento de

defesa dos direitos humanos fundamentais à saúde. A cidadania fiscal conjuga-se

ao exame das instituições, abarcando regras, práticas e narrativas em interconexão

com agentes múltiplos, recursos de poder, interesse e preferências atreladas à

posição na estratificação social, bem como ou contexto configurador da ação

humana. Esse conjunto é apropriado, no campo epistêmico do Direito, pela

perspectiva da AID.

Assim, a AID demarca os elementos da regulação e produção da norma sua

aplicação na realidade social como fenômeno da linguagem jurídica, voltando-se à

operacionalização desses elementos e interpretações de dados empíricos, abrindo-se ao exame

796
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

empírico em favor de uma perspectiva de “engenharia” institucional, a fim de promover a

eficácia e efetividade das normas jurídicas, no caso voltadas ao direito humano fundamental

à saúde.

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políticas públicas versus avaliação de impacto legislativo: uma visão dicotômica de um
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Oxford University Press, 2007.

798
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

TELETRABALHO NA PANDEMIA DA COVID-19: REFLEXOS DA

MEDIDA PROVISÓRIA 927/2020 NAS CONDIÇÕES LABORAIS

José Sarto Fulgêncio de Lima Filho225


Ana Larissa da Silva Brasil226
José Nilton de Menezes Marinho Filho227

RESUMO
A Medida Provisória 927/2020 trouxe uma série de medidas trabalhistas para o combate à
crise econômica provocada pela pandemia da COVID-19, trazendo disposições que
incentivam a implementação do teletrabalho como mecanismo de continuidade das
atividades da empresa. Nesse contexto, a presente pesquisa tem por escopo analisar os
agravamentos trazidos pela crise da pandemia da COVID-19 às condições de trabalho dos
empregados e empregadas em regime de teletrabalho, em função da aplicação da Medida
Provisória 927/2020. Trata-se aqui de explicativa e qualitativa, utilizado o método de
abordagem dedutivo, a investigação histórica como método de procedimento e a análise
bibliográfica-documental como técnica de pesquisa. Em sua estrutura, o presente artigo
apresenta a forma como o teletrabalho está previsto na ordem jurídica brasileira, depois
analisa as modificações trazidas pela Medida Provisória 927/2020 e, por fim, verifica os
possíveis impactos que regulamentações atuais podem acarretar para as condições laborais
dos trabalhadores e trabalhadoras em regime de teletrabalho. Ao final, conclui-se que a
medida amplia os poderes do empregador sobre os trabalhadores e trabalhadoras nesta
modalidade, que passam a se submeter cada vez mais aos riscos de desenvolvimento de
doenças laborais e de responsabilização pelos riscos da atividade econômica, em razão de
fatores como a falta de controle de jornada de trabalho e a ampliação dos poderes do
empregador.

Palavras-chave: teletrabalho; COVID-19; precarização do trabalho.

225
Professor da Universidade Regional do Cariri (URCA). Especialista em Direito Previdenciário e Trabalhista e
bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail: sarto_filho@outlook.com. Currículo
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3788300482751530.
226
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito do
Trabalho e Previdenciário pela Faculdade Paraíso do Ceará (FAP-CE). Bacharela em Direito pela Universidade
Regional do Cariri (URCA). E-mail: larissa.bras29@gmail.com. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/8693130079985899.
227
Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Cariri (URCA). E-mail:
niltonmarinho_menezes@outlook.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5531914910819228.

799
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
Provisional Measure 927/2020 brought a series of labor measures to combat the economic
crisis caused by the pandemic of COVID-19, bringing provisions that encourage the
implementation of telework as a mechanism for the continuity of the company's activities.
In this context, the present research aims to analyze the aggravations brought by the
COVID-19 pandemic crisis to the working conditions of men and women teleworkers, as a
result of the application of Provisional Measure 927/2020. This is about explanatory and
qualitative, using the deductive approach method, historical research as a method of
procedure and bibliographic-documental analysis as a research technique. In its structure,
this article presents the way telework is provided for in the Brazilian legal order, then
analyzes the changes brought by Provisional Measure 927/2020 and, finally, verifies the
possible impacts that current regulations may have on the working conditions of men and
women teleworkers. In the end, it is concluded that the measure expands the employer's
powers over men and women workers in this modality, who are increasingly subject to the
risks of developing occupational diseases and of being responsible for the risks of economic
activity, due to factors as the lack of control of working hours and the expansion of the
employer's powers.

Key-Words: telework; COVID-19; precarization of work.

INTRODUÇÃO

A pandemia da COVID-19 tem trazido uma série de consequências não

somente à saúde, mas também para a situação do capitalismo internacional, na

medida em que provocou uma relevante crise econômica a nível mundial. Neste

sentido, como maneira de evitar o colapso econômico, os governos internacionais

têm buscando soluções que garantam a continuidade das atividades empresariais e

a demanda por bens e serviços.

Dentre as medidas implementadas pelo Brasil, destaca-se a Medida Provisória

927/2020, a qual, dentre as suas possibilidades, trouxe disposições específicas sobre

a implementação do teletrabalho como mecanismo para manutenção das atividades

empresariais. Ocorre que essa ampla implementação do regime laboral se

desenvolve em meio a um contexto no qual sua regulamentação, incorporada ao

800
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

texto da Consolidação das Leis do Trabalho pela Lei 13.467/2017, ainda apresenta

lacunas relevantes no âmbito de proteção aos direitos sociais do trabalho,

reforçando a necessidade de debate acerca dos impactos sociais do

desenvolvimento de relações laborais flexíveis nesse momento de recessão.

A relevância dessa discussão reside no fato de que o alcance protetivo do

Direito do Trabalho brasileiro tem sido gradativamente reduzido nos momentos

recentes, sob o pretexto de ser uma medida necessária para a geração de empregos.

Diante da crise atual, a proteção já relativizada pelas alterações legislativas

anteriores tende a diminuir, de forma que se faz necessário debater os impactos que

esses fatores podem gerar na vida da classe trabalhadora.

Diante da atualidade e da relevância das discussões, o presente trabalho partirá

da seguinte problemática: quais os impactos que a Medida Provisória 927/2020 pode

acarretar na vida da classe trabalhadora que labora em regime de teletrabalho,

durante o contexto da pandemia da COVID-19?

O objetivo geral consiste em analisar os agravamentos trazidos pela crise da

COVID-19 às condições de trabalho dos empregados/as em regime de teletrabalho,

em função da aplicação da Medida Provisória 927/2020. Para tanto, os objetivos

específicos são: apresentar a maneira como o teletrabalho foi recebido pela ordem

jurídica brasileira, sob a perspectiva dos direitos laborais; analisar as modificações

trazidas para a modalidade pela Medida Provisória 927/2020; e verificar os possíveis

impactos da regulamentação na vida dos trabalhadores e trabalhadoras em regime

de teletrabalho.

Para tanto, será realizada uma pesquisa explicativa e qualitativa, utilizando-se

como método de abordagem o dedutivo. O método auxiliar será a análise histórica

do tratamento jurídico da do teletrabalho no Brasil, bem como do contexto em que

estas transformações aconteceram. A técnica de pesquisa será a investigação

801
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

bibliográfica-documental, analisando as pesquisas já realizadas acerca de temáticas

afins, a CLT e da Medida Provisória 927/2020.

O estudo pretende tecer algumas considerações preliminares a partir das

observações que vêm sendo feitas desde a regulamentação do teletrabalho, com a

Lei 13.467/2017. Assim, buscará compreender o objeto de estudo de uma maneira

crítica, abordando seus principais impactos na vida dos trabalhadores e

trabalhadoras (que sofrem impactos distintos nos seus mundos do trabalho, motivo

pelo qual são grafados em apartado), bem como sua relação com a sistemática

produtiva atual no contexto da COVID-19.

1 O TELETRABALHO NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA

A compreensão de como o teletrabalho foi acolhido pela ordem jurídica

brasileira necessita de uma breve análise a partir do contexto desenvolvido dentro

e fora do país, com o intuito de compreender as nuances atinentes à problemática

do seu tratamento jurídico. Isso porque uma das suas principais características é

justamente a flexibilidade que apresenta para ambas as partes da relação contratual,

fato que pode servir como um disfarce para mecanismos de redução da proteção ao

trabalhador/a na relação de emprego, contribuindo para o desenvolvimento de

modalidades de trabalho cada vez mais precárias.

A partir da década de 1970, os países centrais do capitalismo passam por um

intenso processo de reestruturação produtiva, que atinge os países periféricos, como

é o caso do Brasil em meados da década de 1980, acarretando uma redução do

proletariado industrial e uma forte contratendência de novos contingentes de

trabalhadores/as, especialmente no setor de serviços. Nessa processualidade, o uso

de tecnologias da informação e da comunicação passam a se configurar como um

802
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

elemento novo e cada vez mais central da exploração da mão de obra no contexto

atual (ANTUNES, 2018).

Esse processo vai ganhando maior intensificação nos anos seguintes e se

caracteriza pela flexibilização da produtividade, utilizando os recursos

tecnológicos, não apenas como substitutos da mão de obra fabril, mas também como

mecanismo para melhor aproveitar a disponibilidade de trabalhadores/as. O

teletrabalho, é um grande exemplo dessa utilização das novas tecnologias para

intensificação do trabalho, tendo apresentado suas primeiras experiências

brasileiras no Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO), ainda na

década de 1980 (KRIEGER, 2013).

Esse excesso de flexibilidade causou a emergência de um discurso que prega a

autonomia de trabalhadores/as nessa condição, defendendo a inaplicabilidade da

CLT nesses casos específicos, o que ocasionou a necessidade de elaboração da Lei

12.551/2011. O diploma legal trouxe a seguinte redação para o artigo 6º da CLT:

Art. 6º Não se distingue entre o trabalho realizado no


estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do
empregado e o realizado a distância, desde que estejam
caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de
comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de
subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando,
controle e supervisão do trabalho alheio (BRASIL, 1943).

Com a nova redação, não havia dúvidas de que o teletrabalho deveria obedecer

aos mesmos ditames das demais formas de relação de emprego, uma vez que, além

de não discriminar o trabalho realizado dentro e fora do estabelecimento do

empregador, o artigo 6º também equiparou os meios telemáticos de comando,

controle e supervisão aos meios presenciais.

803
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

No entanto, a matéria só foi objeto de regulação mais específica com a Lei

13.467/2017, a qual trouxe previsões na CLT que, de uma maneira geral, tenderam

a reduzir a proteção conferida às demais formas de relação empregatícia.

Inicialmente, o artigo 75-B do texto consolidado trouxe como conceito de

teletrabalho “a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências

do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação

que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo” (BRASIL, 1943).

Apesar de reconhecer a relação empregatícia já no texto legal, o conceito aqui

verificado abriu margem para discussão, na medida em que cria uma distinção

fictícia entre a modalidade e o “trabalho externo”, com o claro objetivo de evitar o

controle de jornada de trabalho no regime de teletrabalho. Neste sentido, destaca-

se o artigo 62 da CLT:

Art. 62 - Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:


I - os empregados que exercem atividade externa incompatível com
a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada
na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de
empregados; [...]
III - os empregados em regime de teletrabalho (BRASIL, 1943).

O capítulo a que se refere o artigo 62 da CLT aborda as disposições sobre

controle do tempo de trabalho desempenhado pelo empregado/a. Assim, os incisos

destacados abrangem trabalhadores/as aos quais não se assegura o direito de que a

empresa estabeleça limites ao tempo de trabalho, não havendo, portanto, a

obrigatoriedade de pagamento de horas extras, intervalos, entre outros.

O inciso I do dispositivo prevê que quem realiza trabalho externo somente será

excluído/a do regime celetista de controle de limitação do labor se houver anotação

referente a esta condição na Carteira de Trabalho e Previdência Social. Tal regra não

804
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

vale para o teletrabalho, demonstrando uma clara intenção da legislação em excluir

o controle de jornada nessa condição.

Delgado defende que as disposições relativas ao artigo 62 abordam meras

presunções relativas de que é impossível para a empresa controlar o tempo de labor

nestas condições. Desta maneira, se o empregado/a conseguir demonstrar a

possibilidade de fiscalização da jornada, o empregador estará obrigado ao

pagamento dos direitos decorrentes do trabalho extraordinário (DELGADO, 2016).

Entretanto, o uso das tecnologias da informação e da comunicação, por si só, já

representa um aparato de condições de controle do labor desempenhado pela parte

trabalhadora. Assim, ainda que se trate de presunção relativa, a disposição se

apresenta como um importante fator de precarização do trabalho.

Mais adiante, o artigo 75-C do texto celetista regulamenta a forma de

contratação para o regime e os mecanismos de alteração da modalidade de

teletrabalho para a modalidade presencial e vice-versa. Em todos os casos, a

legislação evidencia a necessidade de previsão expressa do contrato, bem como nos

aditivos:

Art. 75-C. A prestação de serviços na modalidade de teletrabalho


deverá constar expressamente do contrato individual de trabalho,
que especificará as atividades que serão realizadas pelo empregado.
§ 1º Poderá ser realizada a alteração entre regime presencial e de
teletrabalho desde que haja mútuo acordo entre as partes,
registrado em aditivo contratual.
§ 2º Poderá ser realizada a alteração do regime de teletrabalho para
o presencial por determinação do empregador, garantido prazo de
transição mínimo de quinze dias, com correspondente registro em
aditivo contratual (BRASIL, 1943).

Cabe destaque para a confusão estabelecida pelo parágrafo segundo que, ao

mesmo tempo estabelece a necessidade de aditivo contratual e o direito potestativo

805
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

do empregador de, no prazo mínimo de 15 dias de antecedência, determinar a

alteração do regime de teletrabalho para o presencial. Neste sentido, a necessidade

de registro do aditivo acaba se tornando sem efeito (CASSAR, 2017).

O artigo 75-D da CLT estabelece que as disposições atinentes à

responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos

tecnológicos e da infraestrutura necessária para a realização das atividades, além

do reembolso das despesas arcadas pelo empregado/a serão previstas

expressamente no contrato de trabalho (BRASIL, 1943).

Percebe-se que o dispositivo autoriza as partes a negociarem livremente acerca

dos custos a serem arcados com o desempenho do trabalho. Com isso, tem-se

presente uma chance bastante relevante de assunção dos riscos da atividade

econômica por parte do trabalhador/a, o que, em regra, é vedado pelo Direito do

Trabalho.

Finalizando o capítulo referente ao teletrabalho, o artigo 75-E vem dispor sobre

a obrigação do empregador de instruir seus empregados/as, de maneira expressa e

ostensiva, acerca dos riscos e precauções que devem ser tomadas no desempenho

das atividades. Além disso, também destaca que trabalhadores/as irão assinar um

termo de responsabilidade, comprometendo-se a seguir todas as orientações de

saúde e segurança laboral emitidas pela empresa (BRASIL, 1943).

Trata-se de uma tese que preconiza, mais uma vez, a assunção dos riscos da

atividade econômica, transferindo a responsabilidade dos acidentes e doenças

decorrentes das atividades ocupacionais para trabalhadores/as. Neste sentido,

desconsideram-se os inúmeros fatores que podem acarretar a ocorrência de

acidentes de trabalho, tais como prazo para entrega, ritmo exigido do empregado,

forma de remuneração, metas impostas, entre outros fatores (SILVA, 2017).

806
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Por fim, a CLT passou a prever também as hipóteses em que o acordo ou

convenção coletiva prevalece sobre o disposto na legislação trabalhista no artigo

611-A, sendo uma delas a norma coletiva que dispõe sobre teletrabalho (BRASIL,

1943). Assim, o acordo ou convenção coletiva que disponha sobre a matéria

prevalecerá sobre o texto legal, ainda que seja para precarizar ainda mais as

condições laborais.

Em suma, a Lei 13.467/2017 possibilitou uma ampliação da flexibilização das

normas regulamentadoras do teletrabalho, sendo perfeitamente possível que o/a

trabalhador/a sofra um processo de precarização bastante relevante das suas

condições de trabalho, tendo em vista a tendência ao enfraquecimento dos

sindicatos, decorrentes de fatores como a imposição de restrições à cobrança da

contribuição sindical (LIMA FILHO, PEREIRA, 2020), além da própria estrutura do

sistema sindical, caracterizada pela ideia de unicidade sindical, o que restringe a

mobilização da classe trabalhadora na busca por melhores condições laborais.

Todos esses fatores demonstram que a ordem jurídica brasileira recebeu o

teletrabalho de uma maneira bastante flexível, coadunando-se com o contexto do já

citado processo produtivo em curso no Brasil desde a década de 1980. Assim sendo,

a legislação laboral se apresenta como um processo de adaptação e conformação

com esse contexto, merecendo avaliações críticas, cujos impactos serão analisados

em momento oportuno.

A MEDIDA PROVISÓRIA 927/2020 NO CONTEXTO DA COVID-19

O contexto atual da COVID-19, doença provocada pelo coronavírus da

síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), vem exigindo um esforço

contínuo dos governos internacionais para o combate à enfermidade, em

807
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

decorrência do seu elevado potencial de contágio. Tais políticas vêm se dando não

tanto em função da letalidade da doença em si, mas sim pelo aumento progressivo

da demanda por atendimento médico hospitalar nos casos considerados mais

graves, provocando risco de colapso no sistema de saúde.

No caso do Brasil, especificamente, é importante assinalar que esse aumento

progressivo, cumulado com a pressão sobre o sistema público de saúde para

atendimento básico a toda a população, vem demonstrando os impactos de uma

lógica privatista e mercantilista em curso durante 30 anos (RAMOS, 2020).

Neste sentido, visando reduzir os impactos provocados pelo contágio da

COVID-19, a estratégia adotada pelos governos internacionais vem sendo o

isolamento social, ou seja, estimular (e, em casos mais graves, obrigar) as pessoas a

permanecerem em suas residências, evitando a frequência de ambientes públicos e

a demanda por serviços não essenciais, tais como farmácias, supermercados e

hospitais. Com isso, busca-se evitar a rápida disseminação generalizada da doença

e, consequentemente, o colapso do sistema de saúde.

Como reflexo desse fato, observa-se a redução da demanda por serviços

considerados não essenciais, impossibilitando a criação de políticas públicas que

visem estimular a produção, como acontece nos tempos de guerra. Assim, emerge

uma grave crise econômica, em que as empresas deixam de produzir e

trabalhadores/as perdem seus empregos para evitar ter suas vidas ceifadas pela

COVID-19 (FERREIRA JÚNIOR; SANTA RITA, 2020).

Na tentativa de continuar a manutenção de sua acumulação, o sistema

capitalista se vê na necessidade de passar por um novo processo de reestruturação,

cada vez mais dependente de uma estratégia que possa conciliar a produtividade

com o isolamento social. Assim, as tecnologias de informação e de comunicação

acabam apresentando um papel decisivo nesse processo, buscando reduzir a queda

808
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da demanda sobre a oferta no mercado de bens e serviços (FERREIRA JÚNIOR;

SANTA RITA, 2020).

Neste sentido, o teletrabalho, que já se apresentava como um mecanismo para

facilitar o processo de acumulação do capital, conforme descrito acima, se apresenta

como uma alternativa ainda mais viável no contexto atual. A explicação para isso

se dá em razão de a tecnologia no desempenho das atividades condensar dois

elementos importantes para a manutenção da acumulação na crise da COVID-19:

flexibilidade e isolamento social.

Essa estratégia se apresenta com grandes possibilidades de manter o sistema de

reprodução do metabolismo social do capital, especialmente levando-se em

consideração a configuração atual da classe-que-vive-do-trabalho, caracterizada por

estar inserida em fatores como: desenvolvimento formas desregulamentadas de

trabalho, especialmente no setor de serviços; expansão das atividades realizadas em

domicílio; e configuração de um mundo do trabalho cada vez mais transnacional

(ANTUNES; ALVES, 2004).

Com isso, na busca pela manutenção da acumulação capitalista, o teletrabalho

e os serviços de entrega por aplicativos vêm se apresentando como algumas das

principais alternativas para a continuidade das atividades desenvolvidas, visando

evitar um colapso no interior do sistema capitalista, bem como a ampliação do

quadro de desemprego para além do estrutural228, fato que reduziria a demanda

para além das possibilidades do mercado.

Visando a preservação da economia capitalista no Brasil, o Governo Federal

vem implementando uma série de medidas provisórias, que objetivam minimizar

228
Denomina-se “desemprego estrutural” o fenômeno provocado pelo contexto de flexibilização produtiva,
que reduz o contingente de trabalhadores/as empregados e provoca uma situação em que a falta de emprego
não decorre mais de um contexto de crise, mas da própria estrutura do sistema capitalista, na medida em que
essa mão de obra disponível pode ser aproveitada para o desenvolvimento do labor em condições mais
precárias, como terceirizados, subempregados, entre outros.

809
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

os danos econômicos causados isolamento social. Não cabe aqui a análise de todas

as normas emitidas pelo Executivo até então, de maneira que o presente estudo se

atém à abordagem da Medida Provisória 927/2020, a qual implementou medidas

trabalhistas de enfrentamento ao estado de calamidade pública provocado pela

COVID-19.

De acordo com o artigo 3º da norma descrita acima, as empresas ficaram

autorizadas a adotar as seguintes medidas para enfrentamento dos efeitos

econômicos decorrentes do estado de calamidade pública e preservação do

emprego e da renda: teletrabalho; antecipação das férias individuais; concessão de

férias coletivas; aproveitamento e antecipação dos feriados; banco de horas;

suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;

direcionamento do trabalhador para qualificação; e o diferimento do recolhimento

do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS (BRASIL, 2020a).

Na mesma data de publicação da medida provisória, o Presidente da República

Jair Bolsonaro emitiu a Medida Provisória 928/2020, que revogou as disposições

atinentes ao direcionamento do trabalhador para a qualificação (BRASIL, 2020b).

Tais disposições autorizavam o empregador a fazer com que os empregados/as se

submetessem a uma suspensão do contrato de trabalho para participar de um

programa de qualificação profissional, promovido pela empresa, por um período

de até 4 meses, sem percepção de salário (BRASIL, 2020a), fato que acarretou uma

repercussão negativa perante a opinião pública e os setores de oposição. Após o

ocorrido, a Medida Provisória 927 não sofreu mais alterações, permanecendo as

disposições remanescentes do texto original pelos meses seguintes.

Por se tratar de um estudo voltado para as repercussões deste instrumento

normativo na vida dos teletrabalhadores/as, aqui serão destacadas apenas as

810
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

disposições que afetaram esse regime laboral em si, conforme se fará a partir de

então. Neste sentido, a matéria é inaugurada com a seguinte disposição:

Art. 4º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o


art. 1º, o empregador poderá, a seu critério, alterar o regime de
trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro
tipo de trabalho a distância e determinar o retorno ao regime de
trabalho presencial, independentemente da existência de acordos
individuais ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração
no contrato individual de trabalho (BRASIL, 2020a).

Diferentemente da CLT, a Medida Provisória ampliou os poderes potestativos

do empregador, dispensando-o de realizar as alterações contratuais por mútuo

consentimento, para o regime de trabalho presencial para o de teletrabalho e vice-

versa. A princípio, não parecem haver efeitos nocivos para os trabalhadores/as, na

medida em que se estabelecem alterações emergenciais em virtude da busca pela

manutenção do emprego e da renda.

No entanto, cabe destacar que, ao serem transferidos de maneira unilateral pelo

empregador, trabalhadores/as se submetem à perda do direito a horas extras e

demais verbas decorrentes do desrespeito à jornada de trabalho, a assunção dos

riscos da atividade econômica e a possibilidade de sofrerem com normas coletivas

que flexibilizem ainda mais as suas condições laborais (LIMA FILHO, 2018), pelos

motivos delineados na seção anterior.

Analisando o sistema jurídico trabalhista como um todo, a simples decisão

unilateral para que empregado/a realize teletrabalho, muito embora existente uma

situação de calamidade pública, acarreta prejuízos pelo fato de submetê-los a um

regime de trabalho mais gravoso e desprotegido. Assim, a inovação se apresenta

como uma violenta exceção à regra da inalterabilidade contratual lesiva,

estabelecida pelo artigo 468 da CLT, que só autoriza a alteração contratual mediante

811
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mútuo consentimento e sem resultar prejuízos diretos ou indiretos ao polo

hipossuficiente da relação de emprego (BRASIL, 1943).

Mais adiante, os parágrafos primeiro e segundo do artigo citado acima

estabelecem, respectivamente, que o teletrabalho descrito na Medida Provisória se

refere aos moldes estabelecidos pela CLT e que a alteração trazida pelo caput do

artigo 4º será notificada ao empregado ou empregada com antecedência mínima de

48 horas, por escrito ou por meio eletrônico (BRASIL, 2020a).

No parágrafo terceiro do mesmo dispositivo, é estabelecido que as disposições

relativas à responsabilidade pela aquisição, pela manutenção ou pelo fornecimento

dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à

prestação do teletrabalho, bem como o reembolso das despesas arcadas pelo/a

empregado/a, deverão ser previstas em contrato escrito, firmado anteriormente ou

no prazo de 30 dias, a partir da data de mudança do regime de trabalho (BRASIL,

2020a).

Como se percebe, a medida flexibiliza e intensifica ainda mais o processo de

exploração da mão de obra, reforçando ainda mais o seu envolvimento na lógica

produtiva, na medida em que permite ao empregador impor a transferência do

custo ou de parte deles para o/a empregado/a, especialmente levando-se em

consideração que tal imposição pode vir revestida do discurso de recuperar a

capacidade econômica para manutenção da atividade empresarial no contexto da

pandemia. Este fator reflete ainda mais a lógica incorporada pelo contexto atual,

envolvendo a subjetividade do/a trabalhador/a no processo produtivo para que se

sintam participantes do sucesso da empresa (ANTUNES, 2018).

O parágrafo quarto do artigo em comento estabelece que, na hipótese de o/a

empregado/a não possuir os equipamentos tecnológicos e a infraestrutura

necessária e adequada à prestação do teletrabalho, pode o empregador fornecê-los

812
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mediante regime de comodato e pagar por serviços de infraestrutura ou, na

impossibilidade do regime de comodato, computar o período da jornada normal de

trabalho como tempo à sua disposição (BRASIL, 2020a).

Tal entendimento reforça ainda mais o que foi abordado acima acerca da

possibilidade de transferência dos riscos da atividade econômica para o/a

empregado/a, uma vez que traz a possibilidade de responsabilização do empregador

pelo custeio dos serviços de infraestrutura. Além disso, mesmo não havendo

recursos tecnológicos suficientes, a Medida ainda autoriza o empregador a deixar

o/a trabalhador/a à sua disposição, o que mantém ainda mais a condição de

inferioridade da parte empregada da relação contratual.

O parágrafo quinto finaliza as disposições do artigo 4º, estabelecendo que o

tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de

trabalho normal do/a empregado/a não constitui tempo à disposição, regime de

prontidão ou de sobreaviso, salvo se houver previsão em acordo individual ou

escrito (BRASIL, 2020a).

Tal dispositivo se mostra inócuo ou, se muito, uma tentativa de buscar reforçar

ainda mais a perda do direito do/a teletrabalhador/a ao pagamento de horas

extraordinárias e outras verbas decorrentes da desobediência às regras gerais sobre

controle de jornada, uma vez que, conforme já estudado na seção anterior, o labor

em regime de teletrabalho não está submetido às regras celetistas atinentes a

limitação do tempo de trabalho.

Por fim, a Medida Provisória 927 ainda estabelece, em seu artigo 5º, a permissão

da adoção de regime de teletrabalho para estagiários/as e aprendizes, nos termos

das disposições já expostas acima (BRASIL, 2020a), ampliando as condições de

flexibilidade e intensificação do trabalho não apenas aos empregados/as em regimes

convencionais, mas também aos que estão na condição de aprendizagem,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

demonstrando a necessidade de aproveitamento da força de trabalho, pelo capital,

ainda em fase de desenvolvimento das habilidades técnicas necessárias ao

desempenho do serviço.

Desta maneira, sob a utilização da retórica de necessidade de manutenção do

emprego e da renda, a Medida Provisória 927/2020 instituiu uma flexibilização

ainda mais ampla do que aquela observada na Lei 13.467/2017. Com isso, observa-

se uma constante busca pelo salvamento das empresas, com pouca preocupação

relativa ao aspecto protetivo do Direito do Trabalho. Assim, os impactos dessa

maneira de enfrentamento da crise devem ser estudados mais detalhadamente,

conforme se fará adiante.

3 IMPACTOS NAS CONDIÇÕES LABORAIS

A Medida Provisória 927/2020 se apresentou ao cenário jurídico brasileiro em

meio a um contexto de crise econômica decorrente das medidas de combate à

COVID-19, ocasionando uma redução na demanda da população consumidora.

Sem demanda a ser cumprida, as empresas reduzem o fluxo de acumulação do

capital e, consequentemente, perdem a capacidade de custeio dos fatores de

produção, acarretando na dispensa de trabalhadores/as. Estes, por sua vez, perdem

a capacidade econômica para o consumo e se veem obrigados a reduzir a demanda

por bens e serviços, gerando um círculo vicioso que impacta diretamente na

economia capitalista.

Na busca pela recuperação da capacidade de acumulação, o capitalismo, em seu

estágio atual, vai procurando se reinventar, a partir de meios que evitem o colapso

da saúde decorrente da COVID-19 e, ao mesmo tempo, evitem um colapso

econômico. Nesse contexto, as tecnologias da informação e da comunicação, que já

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

se apresentavam como fatores determinantes no processo de flexibilização da

capacidade produtiva, vêm servindo agora como mecanismo para manutenção

dessa condição de exploração da mão de obra, tendo o teletrabalho um papel

relevante nesse processo.

Ocorre que não é de hoje que o Brasil vem enfrentando uma situação de crise

que acaba sendo colocada como justificadora para a adoção de medidas relevantes

e urgentes, como é o caso da Medida Provisória 927. Desta as últimas décadas do

século XX, vem se observando um verdadeiro Estado de exceção econômico

permanente, caracterizado pelo “convívio do decisionismo de emergência para

salvar os mercados com o funcionamento dos poderes constitucionais, bem como a

subordinação do Estado ao mercado, com a adaptação do direito interno às

necessidades do capital financeiro” (BERCOVICI, 2006). Com isso, identificam-se os

seguintes desdobramentos desse contexto:

[...] a crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes


nas políticas sociais (saúde, educação, previdência social) ou a
degradação dos salários. E assim obsta a que se pergunte pelas
verdadeiras causas da crise. O objectivo da crise permanente é não
ser resolvida. Mas qual é o objectivo deste objectivo? Basicamente,
são dois: legitimar a escandalosa concentração de riqueza e boicotar
medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe ecológica.
Assim temos vivido nos últimos quarenta anos. Por isso, a
pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a
população mundial tem vindo a ser sujeita. Daí a sua específica
periculosidade (SANTOS, 2020, p. 5-6).

Portanto, a Medida Provisória 927 emerge como um “retrato” dessa

processualidade atual, na medida em que impõe uma série de determinações que

oneram demasiadamente o/a empregado/a, com o argumento de recuperação

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

econômica. Entretanto, muito além do reestabelecimento econômico, essas medidas

também visam assegurar o sistema de acumulação capitalista.

As características desses elementos observados na atualidade se desdobram em

uma evidente transferência dos riscos da atividade econômica para

trabalhadores/as, que se veem com o período de desconexão do trabalho cada vez

mais reduzido (ANTUNES, 2018), tornando-se cada vez mais responsáveis pela

recuperação econômica da empresa.

Entretanto, o simples fato de estar na condição de parte empregada, faz com

que o/a trabalhador/a se encontre em uma situação de flagrante desigualdade, na

medida em que não explora nenhuma atividade econômica, não havendo sentido

para que suporte o risco de um empreendimento do qual não realizou. Em outras

palavras, a pessoa na condição de empregada “apenas vende a sua força de trabalho

por um valor que se agrega à exploração econômica de outrem” (SOUTO MAIOR,

2007).

Assim sendo, ao ter que suportar as medidas excepcionais preconizadas pela

Medida Provisória 927, o/a trabalhador/a se encontra em uma posição ainda mais

acentuada de submissão do que aquele observado nos parâmetros de relação de

emprego fora do contexto de crise provocado pela pandemia da COVID-19:

ampliam-se os poderes do empregador, na medida em que se reduzem os direitos

do/a empregado/a.

Neste sentido, o teletrabalho se apresenta uma alternativa que intensifica ainda

mais o processo produtivo, precarizando as condições laborais e contribuindo para

a formação de adoecimentos no trabalho. Isso porque sua recepção jurídica pelo

Brasil, conforme abordado anteriormente, restringiu uma série de direitos para o/a

trabalhador/a nessa condição, na medida em que trouxe elementos como: falta de

limitação de jornada, possibilidade de custeio dos equipamentos para o

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desempenho do trabalho, bem como de se responsabilizar pelos acidentes e doenças

ocupacionais sofridas.

Intensificando ainda mais essas condições, a Medida Provisória 927 não

somente ratificou a situação já regulamentada na CLT, como também ampliou as

possibilidades de exploração da força de trabalho: além de estender a aplicabilidade

do regime de teletrabalho para aprendizes e estagiários/as, também ampliou os

poderes do empregador na hora de determinar a realização das atividades nesta

condição.

Assim, é possível se observar uma processualidade contraditória na relação

jurídica existente entre as partes empregadora e empregada: ampliam-se os poderes

da empresa sobre o/a trabalhador/a, ao mesmo tempo em que se transfere a este/a

os riscos do empreendimento, responsabilizando-o/a pelos custos necessários ao

desempenho das tarefas à distância, como também pelos eventuais problemas de

saúde decorrentes de doenças e acidentes ocupacionais.

Essa situação ganha contornos ainda mais gravosos quando se leva em

consideração a condição da mulher trabalhadora, em relação ao homem

trabalhador. Não é nenhuma novidade, que a simples condição de se pertencer ao

sexo feminino e, ao mesmo tempo, à classe-que-vive-do-trabalho faz com que a

trabalhadora necessite realizar um trabalho em dupla jornada, conforme esclarece

Antunes:

[...] A mulher trabalhadora, em geral, realiza sua atividade de


trabalho duplamente, dentro e fora de casa, ou, se quisermos,
dentro e fora da fábrica. E, ao fazê-lo, além da duplicidade do ato
do trabalho, ela é duplamente explorada pelo capital: desde logo
por exercer, no espaço público, seu trabalho produtivo no âmbito
fabril. Mas, no universo da vida privada, ela consome horas
decisivas no trabalho doméstico, com o que possibilita (ao mesmo
capital) a sua reprodução, nessa esfera do trabalho não diretamente

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mercantil, em que se criam as condições indispensáveis para a


reprodução da força de trabalho de seus maridos, filhos/as e de si
própria. Sem essa esfera da reprodução não diretamente mercantil,
as condições de reprodução do sistema de metabolismo social do
capital estariam bastante comprometidas, se não inviabilizadas
(ANTUNES, 2009, p. 108-109).

Neste sentido, é o trabalho desempenhado no ambiente doméstico e,

predominantemente, realizado pelo sexo feminino que possibilita o

desenvolvimento de condições sociais mínimas para a manutenção do sistema

capitalista, ainda que de maneira indireta. Isso porque é esse trabalho, não

remunerado, que é responsável por assegurar o bem-estar necessário para que a

classe-que-vive-do-trabalho esteja em situação que lhe permita produzir. Estas

atividades que, embora não remuneradas, ocupam um espaço relevante na vida da

trabalhadora, colocam-na em uma condição ainda maior de exploração e de

exaustão, se comparada com aquela provocada pelo trabalho em condições

convencionais.

No contexto da pandemia da COVID-19, a situação da mulher trabalhadora

assume dimensões mais gravosas. Com o isolamento social, é imposta uma

necessidade de que as pessoas fiquem em casa com o intuito de evitar o contágio e

o aumento da demanda por serviços hospitalares, de maneira que as tarefas

desempenhadas no ambiente doméstico aumentam, conforme esclarece Santos:

[...] A quarentena será particularmente difícil para as mulheres e,


nalguns casos, pode mesmo ser perigosa. As mulheres são
consideradas “as cuidadoras do mundo”, dominam na prestação de
cuidados dentro e fora das famílias. Dominam em profissões como
enfermagem ou assistência social, que estarão na linha da frente da
prestação de cuidados a doentes e idosos dentro e fora das
instituições. Não se podem defender com uma quarentena para
poderem garantir a quarentena dos outros. São elas também que

818
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

continuam a ter a seu cargo, exclusiva ou maioritariamente, o


cuidado das famílias. Poderia imaginar-se que, havendo mais
braços em casa durante a quarentena, as tarefas poderiam ser mais
distribuídas. Suspeito que assim não será em face do machismo que
impera e quiçá se reforça em momentos de crise e de confinamento
familiar. Com as crianças e outros familiares em casa durante 24
horas, o stress será maior e certamente recairá mais nas mulheres
[...] (SANTOS, 2020, p. 15-16).

Com a transferência do labor habitualmente realizado na empresa para o

ambiente doméstico, a trabalhadora, que já se submetia a uma situação mais intensa

do que aquela enfrentada pelo homem, passa por uma condição ainda mais gravosa:

a concentração do trabalho doméstico com o trabalho da empresa em um mesmo

ambiente entrelaça os elementos descritos, potencializando ainda mais os níveis de

exaustão e de desgastes provocados pelo labor.

Com isso, se a implementação do teletrabalho, nos moldes da regulação trazida

pela Lei 13.467/2017 já apresentava contornos graves de precarização das condições

laborais, a Medida Provisória 927/2020, emergente no contexto da COVID-19, atua

como um catalizador desse processo. No entanto, sua forma de impacto assume

desdobramentos distintos, a depender da condição de quem realiza o trabalho,

tendo consequências mais gravosas para as mulheres empregadas, na medida em

que estas se veem com as rotinas domésticas e empresariais entrelaçadas e

intensificadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas últimas décadas do século XX, o Brasil vivenciou um processo de

reestruturação produtiva do capital, caracterizado pela redução do contingente

fabril e pelo desemprego estrutural. Esses fatores permitiram uma ampliação do

819
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

setor de serviços e possibilitaram ao capital o desenvolvimento de modalidades de

trabalho cada vez mais precárias e flexíveis, tendo as tecnologias da informação e

da comunicação um papel decisivo nesse processo.

Essa fase do capitalismo possibilitou o desenvolvimento de atividades que

envolvessem cada vez mais a interação dos/as trabalhadores/as com as tecnologias

de informação e comunicação, como é o caso daquelas desenvolvidas em regime de

teletrabalho. Tal regime se caracteriza pela transferência dos serviços habitualmente

realizados no interior da empresa para o âmbito da residência do/a empregado/a.

Sua regulamentação mais efetiva veio acontecer com a Lei 13.467/2017, que

trouxe uma série de medidas que evidenciavam essa processualidade de

flexibilização das condições, exigindo maior atividade da mão de obra: retirou o

dever do controle de jornada de trabalho; possibilitou a responsabilização do/a

empregado/a pelo custeio dos equipamentos e da infraestrutura necessária ao

desempenho das atividades, bem como pelos riscos de acidentes e doenças

ocupacionais; e permitiu que a norma coletiva prevalecesse sobre a legislação geral

acerca da matéria.

Com a pandemia da COVID-19, as medidas de isolamento social têm se

mostrado decisivas para evitar um colapso na capacidade de atendimento do

sistema de saúde e, ao mesmo tempo, se apresentaram como gatilho de uma crise

econômica sem precedentes no capitalismo, caracterizada pela redução da

demanda por bens e serviços. Esse fato tem feito com que formas de trabalho que

possibilitem a manutenção do isolamento e, ao mesmo tempo, utilizem das

tecnologias da informação e da comunicação para desempenho das tarefas, venham

sendo cada vez mais estimuladas pelo capital.

Por esta razão, dentre as medidas de enfrentamento da crise implementadas

pela Medida Provisória 927/2020, está o teletrabalho. No entanto, cabe destacar que

820
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a norma teve como característica muito maior a busca pela manutenção das

atividades empresariais, do que o amparo aos trabalhadores e trabalhadoras. Dessa

forma, ampliou as possibilidades de aplicação do teletrabalho, nos moldes do

estabelecido pela Lei 13.467/2017, para aprendizes e estagiários/as, além de

aumentar os poderes do empregador para determinação de desenvolvimento de

atividades nesse regime.

Com as possibilidades implementadas pela Medida Provisória 927/2020 e

levando em consideração o cenário da pandemia da COVID-19, observa-se uma

tendência a intensificação do trabalho realizado, na medida em que a norma amplia

os poderes do empregador e precariza ainda mais as condições de desempenho das

atividades pelos/as trabalhadores/as no regime de teletrabalho.

Esse cenário apresenta contornos ainda mais gravosos para as mulheres, na

medida em que a dupla jornada que já enfrentava no cenário imediatamente

anterior à pandemia as colocava em condição desigual. Após a implementação

dessas medidas, além das consequências trazidas pelo isolamento social, o

teletrabalho se apresenta como um mecanismo de entrelaçamento entre o labor

realizado no âmbito doméstico e aquele de interesse do capital, que também passa

a ser realizado em sua residência.

Neste contexto, a COVID-19 acentua ainda mais as desigualdades existentes,

especialmente no âmbito das relações laborais, ampliando os poderes do capital e

sufocando os direitos dos/as trabalhadores/as, que passam a ficar cada vez mais

submetidos ao perigo de desenvolvimento de doenças laborais e de

responsabilização pelos riscos da atividade econômica, devido ao desempenho de

uma rotina de trabalho sem controle de jornada e com maior flexibilidade de

decisões para a empresa na relação empregatícia.

821
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Essa contextualidade denuncia os fortes impactos da lógica acumuladora do

capital sobre a classe-que-vive-do-trabalho, a qual passa a se encontrar em um

cenário progressivo de incertezas, na medida em que as perspectivas de superação

da crise ainda se mostram duvidosas. Assim a discussão sobre a efetividade dos

direitos sociais se mostra urgente, na medida em que irá delinear os caminhos para

um futuro que garanta um mínimo de dignidade às pessoas em seus distintos

mundos do trabalho.

REFERÊNCIAS

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da mundialização do capital, Educação & Sociedade, Campinas, 2004, v.25, n.87,
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era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

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negação do trabalho. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2009.

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A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR ATRAVÉS DA

NEGOCIAÇÃO COLETIVA E AS MEDIDAS PROVISÓRIAS DA

PANDEMIA DE COVID-19

Maria Laura Bolonha Moscardini229


Daniel Damásio Borges230

RESUMO
O presente artigo visa analisar as alterações feitas pelas medidas provisórias sobre
negociações coletivas e acordos individuais devido à pandemia de Covid-19, bem como os
seus efeitos no ordenamento jurídico brasileiro e sua compatibilidade com princípios
fundamentais do direito do trabalho, Convenções da OIT e a Constituição Federal, no que
diz respeito ao direito coletivo e negociações coletivas. A relevância do tema está ligada ao
papel fundamental da negociação coletiva e representatividade sindical para a
democratização das relações de trabalho e garantia de melhores condições aos
trabalhadores. Quanto à metodologia, o método de abordagem é o qualitativo dedutivo e
quanto ao método de procedimento, serão utilizados o método bibliográfico, documental e
jurisprudencial. O presente trabalho está estruturado em três tópicos principais. O
primeiro, busca analisar as mudanças sobre o direito negocial causadas pela pandemia de
Covid-19 e as medidas governamentais impostas. O segundo é a análise conceitual sobre
negociação coletiva no ordenamento jurídico brasileiro, e o terceiro tópico aborda a
proteção do trabalhador em tempos de pandemia. A partir do que foi abordado, concluímos
serem as medidas provisórias que substituíram a negociação coletiva pelo acordo
individual prejudiciais aos direitos e interesse da classe trabalhadora, bem como não são
compatíveis com o texto constitucional, as Convenções da OIT e os princípios fundamentais
do direito do trabalho.

Palavras-chave: negociação coletiva 1; medida provisória 2; pandemia 3; direitos coletivos


4; Covid-19 5.

ABSTRACT
This Article aims to examine the changes made by the provisional measures on collective
bargaining and individual agreements due to the Covid-19 pandemic, as well as its effects

229
Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências
Humanas e Sociais, Campus Franca/SP. E-mail: moscardinimarialaura@gmail.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5137375461339685.
230
Livre-docente em Direito Internacional Público pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. E-
mail: daniel.damasio@unesp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2529993936323609

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

on the Brazilian legal system and its compatibility with fundamental principles of labour
law, ILO Conventions and the Federal Constitution, with regard to collective law and
collective bargaining. The relevance of the theme is linked to the fundamental role of
collective bargaining and trade union representation for the democratization of labor
relations and ensure better conditions for workers. As for the methodology, the method of
approach is qualitative deductive and as to the method of procedure, the bibliographic,
documentary and jurisprudential method will be used. The present work is structured on
three main topics. The first seeks to analyze the changes in business law caused by the
Covid-19 pandemic and the government measures imposed. The second is the conceptual
analysis of collective bargaining in the Brazilian legal system, and the third topic addresses
worker protection in times of pandemic. From what has been addressed, we conclude that
the provisional measures that replaced collective bargaining with the individual agreement
detrimental to human rights and interest of the working class, as well as are not compatible
with the constitutional text, ILO Conventions and the fundamental principles of labour law.

Keywords: collective bargaining 1; provisional measure 2; pandemic 3; collective rights 4;


Covid-19 5.

INTRODUÇÃO

A pandemia de Covid-19 assolou o mundo nos últimos meses e mudou a

estrutura social típica com a qual estávamos acostumados. Devido a facilidade de

contágio e o contexto globalizado, a doença se espalhou rapidamente pelos

continentes, fazendo algo que nunca havia sido cogitado acontecer: o isolamento

social e o fechamento temporário dos comércios e das fábricas.

A quebra com o costume foi grande e atingiu todos os setores da sociedade,

bem como exigiu dos governos medidas e ações especialmente voltadas ao contexto

vivido, para o qual não há comparativo. No Brasil, a declaração do estado de

calamidade pública e a aplicação das medidas de isolamento obrigaram o Estado a

trabalhar pela construção de medidas capazes de impedir a quebra das relações de

trabalho e manutenção dos postos de emprego enquanto perduram os efeitos

econômicos e sociais da pandemia.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O presente trabalho objetiva analisar as alterações feitas sobre as negociações

coletivas pelas medidas provisórias criadas para combater os efeitos da pandemia

de Covid-19 na sociedade e sua compatibilidade com princípios fundamentais do

direito do trabalho, Convenções da OIT e a Constituição Federal no que diz respeito

ao direito coletivo e negociações coletivas.

Além disso, o objetivo do presente ensaio é também averiguar os efeitos dessas

medidas não apenas na sociedade, mas também na esfera jurídica, principalmente

quanto à proteção dos direitos trabalhistas coletivos e dos direitos sociais previstos

na Constituição Federal.

A relevância do tema é grande, uma vez que a negociação coletiva é a

ferramenta através da qual é possível buscar melhorias nas condições de trabalho e

a dignidade do trabalhador. É a partir de negociações coletivas que se torna possível

suprir a hipossuficiência do trabalhador e garantir que sejam seus interesses

resguardados.

Quando a própria legislação torna desnecessária a negociação coletiva e a

representação do trabalhador pelo ente sindical, corre-se o risco de realizar

imposições, e não acordos, bem como prevalecerão os interesses do empregador e a

minoração ou supressão de direitos trabalhistas duramente conquistados, como é o

caso do direito à irredutibilidade salarial.

No âmbito jurídico interno, os direitos sindicais e de negociação coletiva

sofreram grandes alterações desde a reforma trabalhista, as quais foram objeto de

denúncias à OIT e críticas por instituições como a ANAMATRA por desrespeitarem

o texto constitucional e as Convenções da OIT, ferindo os interesses dos

trabalhadores, flexibilizando as normas trabalhista e assim, reduzindo a função

social do trabalho.

827
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

As medidas provisórias adotas pelo governo como resposta aos efeitos da

pandemia seguiram o mesmo embalo legislativo da reforma trabalhista, dessa vez

pautando as atrocidades jurídicas cometidas na necessidade do atual momento.

A hipótese do trabalho é a de que as medidas provisórias que possibilitam

acordar individualmente direitos que antes só poderiam ser negociados através de

negociações coletivas são uma afronta direta à Constituição Federal, às Convenções

da OIT sobre o tema e aos princípios fundamentais do trabalho, bem como causam

prejuízos irreparáveis aos trabalhadores e a luta pelos direitos sociais.

Quanto à metodologia, será aplicado, quanto ao método de procedimento, o

método bibliográfico, documental e jurisprudencial. O método bibliográfico será

utilizado para aprimorar o contato com outras pesquisas e obras desenvolvidas

sobre o tema e propiciar diferentes formas de pensar a matéria. O método

documental possibilita a análise de dados recentes sobre as medidas provisórias,

enquanto o método jurisprudencial, que levará em conta as decisões sobre a ação

direta de inconstitucionalidade – ADI 6.363, possibilita analisar o posicionamento

do Supremo Tribunal Federal sobre o tema e a forma como o judiciário percebe os

direitos coletivos do trabalho sobre negociação coletiva no atual cenário.

O método de abordagem adotado é o qualitativo dedutivo, sendo o texto

desenvolvido em três diferentes tópicos. O primeiro, busca analisar as mudanças

sobre o direito negocial causadas pela pandemia de Covid-19 e as medidas

governamentais impostas. O segundo é a análise conceitual sobre negociação

coletiva no ordenamento jurídico brasileiro, e o terceiro tópico aborda a proteção do

trabalhador em tempos de pandemia.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. AS MUDANÇAS NO DIREITO NEGOCIAL ADVINDAS DA PANDEMIA DE

COVID-19

Muitos autores, como Ney Maranhão e Felipe Prata Mendes (2020, p. 507)

classificam a pandemia de Covid-19 como um momento sem precedentes na

história, com consequências diversas, tanto no âmbito individual, quanto coletivo.

Luciano Martinez e Cyntia Possídio destacam que a progressão geométrica do

Coronavírus fez com que essa pandemia produzisse efeitos desastrosos no atual

contexto de globalização, marcado pela facilidade de comércio e alto fluxo de

circulação de pessoas. Segundo os autores, “São os perigos da pós-modernidade. As

epidemias do passado transformam-se, por isso, em verdadeiras pandemias, sendo

a maior e mais grave de todas a que ora é vivenciada com o Covoravírus” (2020,

edição Kindle).

A falta de preparo dos países para lidar não apenas com a doença, mas

principalmente com os seus efeitos sociais e econômicos, evidenciou falhas

preexistentes que quedavam adormecidas e criou novos conflitos, o que exigiu do

direito um papel fundamental na reestruturação das relações sociais afetadas pelas

mudanças vividas, no intuito de afunilar as inseguranças e padronizar o modus

operandi das instituições.

Ricardo Pereira de Freitas Guimarães (2020, p. 563) destaca importante ponto

sobre o período vivido: a alteração das funções e do quadro social a partir do

isolamento imposto como melhor medida preventiva contra o contágio do vírus. A

brusca alteração na rotina pessoal, coletiva, empresarial e comercial aflorou novas

necessidades e fez transparecer a necessidade de adaptação dos sistemas existentes

e o maior uso dos meios eletrônicos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Devido ao vírus, o governo brasileiro requereu a decretação de estado de

calamidade pública, o que resultou na aprovação do Decreto Legislativo n. 6, de 20

de março de 2020. Foi a primeira vez que o Brasil usou tal medida prevista na

Constituição Federal.

Os efeitos da pandemia de Covid-19 alcançaram todos os aspectos da

sociedade, afetando também o mundo do trabalho e suas relações. A necessidade

do isolamento social, o fechamento das fábricas e comércios e a adaptação do

trabalhador para novos ambientes exigiu medidas governamentais capazes de

garantir segurança e responsabilidade nas relações trabalhistas, bem como a

manutenção das mesmas. Segundo Bento Herculano Duarte Neto:

A enfrentar a pandemia, os governos precisam agir em duas frentes,


que são intrinsecamente relacionadas e igualmente importantes,
contudo, havendo de se ter priorização. A primeira questão é: como
se preservar as vidas; a segunda questão é: como preservar a
sobrevivência dos sobreviventes. Medidas normativas de
emergência naturalmente se impuseram e ainda se impõem
notadamente no campo da máxima preservação da renda e do
emprego, pois sem uma sanidade financeiras as vidas ficam, por
igual, ameaçadas. No Brasil não foi diferente. (DUARTE NETO,
2020, p. 583)

Assim, foram editadas dezenas de Medidas Provisórias, dentre as quais

destaca-se a 936/ 2020, que recentemente foi convertida na Lei n. 14.020, de 6 de

julho de 2020. Tal lei instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego

e da Renda e dispôs sobre medidas complementares para enfrentamento do estado

de calamidade pública.

A referida medida provisória e sua conversão em lei trouxeram pontos

polêmicos ao debate, principalmente quanto aos direitos coletivos do trabalhador e

sua representação nas negociações.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Um dos pontos que gerou opiniões dicotômicas abordados pela medida

provisória e que foi convertido em lei diz respeito a possibilidade, durante o estado

de calamidade, de negociar-se através de acordo individual a redução proporcional

de jornada e de salário dos trabalhadores, bem como a suspensão temporária do

contrato de trabalho. A única menção feita sobre a negociação coletiva da referida

redução ou suspensão diz ser facultativa a sua realização.

Ainda, foi convertido em lei o dispositivo que determina ser necessária apenas

a comunicação dos acordos individuais firmados aos sindicatos, no prazo de até dez

dias corridos, restringindo a atuação do ente sindical.

Importante frisar que antes da conversão da medida provisória em lei, o partido

Rede Sustentabilidade propôs a ação direta de inconstitucionalidade n. 6.363, sob a

alegação de que a supracitada medida provisória viola os artigos 7º, incisos VI, XIII

e XXVI, e 8º, incisos III e VI, da Constituição Federal.

Em sua decisão inicial, o ministro relator, Ricardo Lewandowski trouxe à tona

o debate sobre os perigos que o afastamento das normas constitucionais sobre

representatividade sindical e negociação coletiva representam para a proteção dos

direitos do trabalhador, bem como fez menção às alterações legislativas recentes

ocorridas no ordenamento jurídico interno que esvaziaram a força sindical. Ainda

em seu voto, o ministro destacou a necessidade de respeitar-se o princípio da norma

mais favorável, princípio basilar do direito do trabalho, de forma que seja

resguardado o direito do trabalhador a aderir ao acordo coletivo posterior à

assinatura de acordo individual sempre que lhe for mais vantajoso.

A Suprema Corte fixou seu entendimento como sendo suficiente ser o sindicato

informado sobre a realização do acordo, o qual surte efeito a partir da sua

assinatura, cabendo ao ente sindical manifestar-se caso contrário ao acordo firmado

sendo que, caso não o faça, seu silêncio será considerado como concordância tácita.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Sobre o entendimento do STF quanto à constitucionalidade da medida

provisória, assim entendeu Ney Maranhão e Felipe Prata Mendes:

Do que se depreende, seria uma espécie de reconhecimento de que


apenas se dinamizou – e não se afastou – a técnica constitucional
protetiva mediante a aceitação de que a participação sindical,
apenas nestes específicos tempos de coronavírus, se dê a posteriori
ao invés de a priori (algo como uma dinamização da técnica
protetiva), mantendo-se incólume, nessa leitura, o núcleo daquele
dispositivo constitucional. (MARANHÃO; MENDES, 2020, p. 517)

Restou reconhecida a validade jurídica da medida provisória, mesmo existindo

ainda grande controvérsia sobre a sua constitucionalidade e o que a mesma

representou para o direito do trabalho, em especial para os direitos coletivos.

Em um momento cercado de incertezas e dificuldades, o legislador, com o

amparo do judiciário, optou por privilegiar o individual sobre o coletivo, bem como

realizou exposições críticas e desmerecedoras ao sindicalismo brasileiro, ente

indispensável para a realização de negociações coletivas de trabalho.

2. NEGOCIAÇÃO COLETIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A negociação coletiva está prevista na Constituição Federal, em seu artigo 7º,

segundo o qual, ela deve conter normas e regras que visem a melhora das condições

sociais dos trabalhadores.

Para Amauri Mascaro Nascimento, a negociação coletiva “…é uma forma de

desenvolvimento do poder normativo dos grupos sociais segundo uma concepção

pluralista que não reduz a formação do direito positivo à elaboração estatal…”

(NASCIMENTO, 2003, p. 575). Para o autor, a negociação coletiva representa a

832
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

expressão do princípio da autonomia coletiva dos particulares e da liberdade

sindical.

O entendimento vai de encontro à análise feita por Maurício Godinho Delgado

sobre o tema, posto que, para o autor, a negociação coletiva é um meio de solução

de conflitos coletivos trabalhistas através de uma fórmula democrática de gestão

dos interesses das partes perante assuntos de relevância social (DELGADO, 2015, p.

105).

Ainda, uma concepção de negociação coletiva que demonstra a

indissociabilidade entre a referida e o ente sindical é aquela realizada por Luiz

Carlos Amorim Robortella, segundo o qual, a negociação coletiva é:

…uma metodologia de composição de interesses contrapostos, que


permite a mais ampla participação política, social e econômica dos
sindicatos, em processo de verdadeira co-gestão, bem como sua
apropriação como instrumento da moderna técnica de
gerenciamento e administração empresarial. (ROBORTELLA, 1998,
p. 241)

Apesar da legislação brasileira abordar a negociação coletiva em seu texto

constitucional e também na legislação trabalhista, não trouxe uma definição claro

sobre o que considera ser a negociação coletiva, de forma que tal definição deve ser

extraída das Convenções da OIT ratificadas pelo sobre o tema, como as Convenções

n. 98 e 154.

Para a OIT, a negociação coletiva não é um mero direito coletivo do trabalhador.

A organização deu destaque especial ao tema ao enquadrá-lo como uma das quatro

áreas essenciais da OIT, contidas em sua Declaração de Princípios e Direitos

Fundamentais do Trabalho de 1998.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

As Convenções citadas, n. 98 e 154, são convenções fundamentais da OIT, o que

significa dizer que versam sobre princípios e direitos mínimos e fundamentais dos

trabalhadores e tem peso especial na luta pelo bem-estar social.

A autora Rúbia Zanotelli de Alvarenga (2018, p. 13) ressalta ter a Declaração de

1998 proclamado serem todos os países-membros obrigados a respeitar as

Convenções e princípios previstos em seu texto, independente de terem ratificado

ou não as referidas Convenções. Em complementação, Ana Virgínia Moreira Gomes

(2014) destaca que:

Ao utilizar o rótulo “direitos fundamentais”, a OIT buscou


fortalecer sua regulação no contexto da globalização econômica sem
utilizar de fato nenhum mecanismo de imposição de suas normas.
O uso dos direitos fundamentais revela o contexto no qual se
encontrava a OIT, no qual a própria legitimidade da regulação
trabalhista era colocada em questão por sua falta de eficácia. Ao
declarar serem certos direitos trabalhistas fundamentais, a
Organização tinha como objetivo proteger esses direitos do
questionamento econômico e político enquanto ao mesmo tempo
tornava sua atuação legítima. (GOMES, 2014, p. 19)

A Convenção n. 98 dispõe sobre o direito de sindicalização e negociação

coletiva e estabelece em seu artigo 4º o dever dos Estados-membros de tomar as

medidas necessárias para o fomento e promoção do desenvolvimento e utilização

dos meios de negociação voluntária, para regular, assim, as relações de emprego.

Já a Convenção n. 154, a qual refere-se especificamente ao direito de negociação

coletiva e a necessidade de sua valorização e aplicação trouxe em seu artigo 2º a

definição do que seria essa modalidade negocial:

Para efeito da presente Convenção, a expressão “negociação


coletiva” compreende todas as negociações que tenham lugar entre,
de uma parte, um empregador, um grupo de empregadores ou uma

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

organização ou várias organizações de empregadores, e, de outra


parte, uma ou várias organizações de trabalhadores, com o fim de:
a) Fixar as condições de trabalho e empregou; ou
b) Regular as relações entre empregadores e trabalhadores; ou
c) Regular as relações entre os empregadores ou suas
organizações e uma ou várias organizações de trabalhadores, ou
alcançar todos estes objetivos de uma só vez.

Percebe-se que a negociação coletiva está intrinsicamente ligada ao

sindicalismo e depende de organizações sindicais fortes para proteger e garantir os

direitos trabalhistas. Conforme ressalta Túlio de Oliveira Massoni, os sindicatos não

cuidam apenas dos direitos dos trabalhadores dentro do universo fabril, cuidam de

interesses coletivos mais amplos e “…ocupam um papel quase político perante a

sociedade e o Estado, com poderes, inclusive, para questionar as próprias regras do

jogo até então estabelecidas…”(MASSONI, 2020, p. 165).

A autora, Lorena Vasconcelos Porto (2020, p. 150) explica que a participação

sindical através das negociações coletivas tem o objetivo de equilibrar o poder em

relações que, em regra, são desequilibradas.

Trazendo equidade para a mesa de negociação a partir da representatividade

coletiva, resguarda-se a liberdade contratual ao compensar a hipossuficiência do

trabalhador perante o empregador e possibilitar que seja feita a negociação em

situação paritária.

…os empregados apenas exercem poder caso se organizem – à


semelhança do empregador – como um ser coletivo. Por isso se diz
que o poder sindical é o único apto a contrabalançar a posição de
desigualdade social em que o trabalhador se encontra em face do
empresário. (PORTO, 2020, p. 151)

Pelos motivos expostos, a Constituição Federal prevê a negociação coletiva e a

sua importância social, tendo separado tópicos que não poderiam ser negociados

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

individualmente, como a própria redução de salário, assim como existem direitos

trabalhistas tão fundamentais que a CLT determina não poder serem os mesmos

objeto de nenhum tipo de negociação, nem mesmo coletiva e muito menos

individual.

Isso ocorre porque o acordo individual realizado entre trabalhador e

empregador tem características de imposição, e não negociação. Em um acordo no

qual uma das partes exerce grande poder sobre a outra, aniquilam-se as chances da

parte hipossuficiente de defender seus interesses.

Assim, evidente a necessidade de negociações coletivas e sua proteção pelo

Estado para a garantia de relações trabalhistas saudáveis, com ambientes e

condições de trabalho que possam garantir os direitos e interesses dos trabalhadores

e democratiza as negociações entre os polos da relação trabalhista.

Além disso, tendo em vista que a partir da reforma trabalhista, o artigo 611-A,

da CLT, passou a prever a prevalência da convenção e do acordo coletivo sobre a

lei mesmo que para suprimir direitos legislados, não basta fomentar e aplicar a

negociação coletiva, é necessário que o organismo de representação sindical tenha

força suficiente para amparar os trabalhadores na busca por melhores condições de

trabalho.

3. A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR EM TEMPOS DE PANDEMIA DE

COVID-19

O professor, Hélio Zylberstajn (2020, p. 16) realizou pesquisa sobre a potência

das medidas trabalhistas aplicadas devido à pandemia de Covid-19. Segundo o

mesmo, as referidas medidas representam um maciço aporte de recursos com

capacidade para auxiliar as empresas e manter o emprego formal.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Para o referido autor, “…pouco importa se isso foi conseguido por meio de

acordos individuais ou negociação coletiva…” (ZYLBERSTAJN, 2020, p. 16), para

ele, o que realmente importa é criar mecanismos e alocar recursos para manter o

fluxo de renda, de consumo e o emprego da classe trabalhadora.

No entanto, apesar de serem pontos importantes, não podemos esquecer o que

significa a aplicação do direito e a segurança jurídica necessária para garantir que

além dos postos de trabalho, seja garantida a dignidade humana do trabalhador. Os

operadores do direito têm papel fundamental na garantia dos direitos

fundamentais, uma vez que são vigilantes da Constituição em tempos de crise.

É especialmente em momentos críticos como o presente que não se pode

esquecer a importância dos direitos fundamentais e sociais, principalmente aqueles

previstos na Carta Magna, posto serem imprescindíveis para a superação das

dificuldades e manutenção do mínimo de direitos necessários.

O contexto de fragilização dos direitos sociais, em especial o direito do trabalho,

é o reflexo de um longo processo de desregulamentação que busca reduzir a crença

social sobre a necessidade de proteger-se as relações de trabalho.

Lorena Vasconcelos Porto (2020, p. 161) destaca que as medidas provisórias

adotadas pelo governo no combate aos efeitos da pandemia de Covid-19, em

especial as MP’s n. 927/2020 e 936/2020 aprofundam a fragilização causada pela

reforma trabalhista de 2017, a qual já afetou em muito os direitos coletivos do

trabalho.

Sobre a negociação coletiva, vale lembrar que a reforma trabalhista trouxe

alterações não compatíveis com princípios fundamentais do trabalho, como o

princípio da norma mais favorável e o princípio da vedação ao retrocesso social,

bem como alterações contrárias às Convenções da OIT sobre o tema.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

É o caso, por exemplo, da sobreposição do negociado sobre o legislado,

permitindo que direitos já conquistados sejam suprimidos ou minorados a partir da

utilização de instrumentos de negociação coletiva. Além de contrariar princípios do

direito do trabalho e Convenções da OIT, alterações como a referida ferem a

constituição federal, a qual prevê que as medidas e direitos dos trabalhadores

devem visar garantir sempre a melhoria da condição social do trabalhador.

Ao afastar a necessidade da negociação coletiva durante a pandemia, o

legislador precarizou ainda mais a seara trabalhista, deixando os trabalhadores

expostos aos desejos dos empregadores, sobrepondo o interesse de poucos ao

interesse de muitos.

José Claudio Monteiro de Brito Filho (2020, p. 581), destacou ser injusta a forma

como a medida provisória n. 936/2020 tratou dos sujeitos da relação de trabalho

como se fossem iguais em força, sem considerar a hipossuficiência e fragilidade

econômica do trabalhador perante o empregador, de forma a ser impossível buscar

por justiça social a partir da medida que foi convertida em lei. Nas palavras do

autor:

A MP 936/2020, dessa feita, em relação às disposições que permitem


a redução de salários pela via da contratação individual, contempla
uma dupla injustiça, tanto pela sua inconstitucionalidade, como
pela distribuição desequilibrada dos encargos aos atores sociais,
com prejuízos para os que têm menos. A decisão cautelar na ADI
6.363 – DF, inadvertidamente, tomou igual direção.

Ademais, Bento Herculano Duarte Neto (2020, p. 586) levanta importante

questão ao ressaltar que a Constituição Federal não só destacou a importância da

negociação coletiva, como também estipulou em seu artigo 8º, inciso VI, a

838
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

obrigatoriedade de participação dos sindicatos nas negociações coletivas de

trabalho.

Ao fazer isso, o constituinte prestigiou a proteção coletiva ao direito do

trabalhado através da indisponibilidade de seus entes representativos e meios de

negociação. Evidencia-se a obrigatoriedade do sindicato participar ativamente das

negociações coletivas, e não apenas como mero assistente.

O referido autor (DUARTE NETO, 2020, p. 603) acredita na expectativa de que,

ultrapassado o período emergencial, o qual demandou uma hermenêutica diferente

e voltada para as necessidades do momento, as negociações coletivas voltarão ao

seu lugar de prestígio e valorização no caminho para a garantia do valor social do

trabalho.

Ney Maranhão e Felipe Prata Mendes (2020, p. 514) ressaltam que, nos tempos

de crise, falhas no sistema sindical brasileiro se tornaram mais evidentes. Não basta

garantir-se a negociação coletiva sem que antes seja estruturado um sindicalismo

representativo e forte o suficiente para lutar pelos direitos dos trabalhadores, assim

como não adianta uma reforma trabalhista que privilegia o negociado sobre o

legislado sem antes realizar uma reforma sindical que revise os canais democráticos

de distribuição do poder entre os atores que compõem as negociações coletivas

trabalhistas. Os autores acrescentam ainda que:

…o fato é que os sindicatos continuam, sim, detendo papel


relevante, seja porque assim a Constituição Federal continua a
dizer, seja porque a gravidade dos fatos atuais assim continua a
demandar, cabendo-lhes resgatar não apenas sua
representatividade coletiva, mas sobretudo sua legitimidade social,
atuando célere e proatiavente para inviabilizar instrumentos
coletivos adequados à realidade de cada categoria e setor
empresarial, construindo uma rede jurídica suficientemente segura
e substancialmente mais protetiva em benefício de seus substituídos

839
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e colaborando, assim, para a construção coletiva de um mínimo de


paz social enquanto atravessamos esse deserto tão perigoso e
escaldante. (MARANHÃO; MENDES, 2020, p. 519)

Sobre o tema, a autora Lorena Vasconcelos Porto (2020, p. 164) conclui que as

medidas provisórias adotadas e convertidas em lei, ao afastarem a necessidade de

negociação coletiva para a redução de jornada e salário e suspensão dos contratos

de trabalho violam Convenções da OIT, em especial as Convenções n. 98 e 154, bem

como violam a própria Constituição Federal. Destaca a autora que o processo de

elaboração das medidas provisórias não observou o tripartismo preconizado pela

OIT.

Vale acrescentar que além dos apontamentos feitos pela autora, as medidas

adotadas pelo Brasil não usaram a principal ferramenta apontada pela OIT como

necessária para garantir a proteção dos direitos trabalhistas e manutenção dos

postos de trabalho, ao mesmo tempo em que garante a continuidade das atividades

econômicas e comerciais: o diálogo social.

As medidas adotadas pelo Estado brasileiro no enfrentamento da crise gerada

pela pandemia de Covid-19 afetaram os direitos dos trabalhadores e precarizaram

relações que são desbalanceadas pela sua própria natureza. Além da

inconstitucionalidade verificada, da violação às Convenções fundamentais da OIT,

as quais foram ratificadas pelo Brasil e da não compatibilidade com princípios

fundamentais do direito do trabalho, a sobreposição da proteção individual à

proteção coletiva representa um grande retrocesso na luta pelos direitos sociais.

840
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto vivido hoje, no qual passamos por uma crise gerada pela pandemia

de Covid-19, não apenas evidenciou as falhas e defeitos dos sistemas sociais atuais,

mas principalmente a nossa falta de preparo para lidar com momentos de

emergência, e fez com que os Estados focassem suas políticas e ações na solução dos

principais pontos afetados, como é o caso das relações trabalhistas e manutenção

dos postos de trabalho.

Há um movimento de flexibilização dos direitos negociais e sindicais no Brasil

iniciado muito antes da crise gerada pela pandemia de Covid-19 que influenciou

nas decisões referentes às alterações feitas sobre o tema. Como citado anteriormente,

a reforma trabalhista modificou inúmeros pontos sobre as negociações coletivas e

enfraqueceu os entes sindicais, os quais nunca atingiram seu real objetivo de

garantir melhores condições de trabalho.

Foram as circunstâncias não apenas de crise econômica, mas principalmente

sanitária e de saúde que tornaram necessárias as medidas estatais. O que não se

esperava nesse momento, era a supressão e flexibilização de direitos trabalhistas

conquistados, justificados pelo legislativo e com o apoio do judiciário, pelo

momento único vivido atualmente.

Apesar de existir uma colisão de propósitos entre a urgência da questão e a

obrigação de seguir-se os procedimentos necessários para uma negociação coletiva,

seria menos violento e perigoso, para a segurança jurídica e social do trabalhador,

atualizar as regras negociais, diminuir seus prazos e inserir a utilização dos meios

eletrônicos em seus procedimentos, do que simplesmente a substituir por acordos

individuais que são, na verdade, imposições do polo mais forte das relações laborais

para com os trabalhadores.

841
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Tais medidas suprimiram direitos duramente conquistados e tem potencial

para causar grandes retrocessos no mundo do trabalho, pois não só atingiram

direitos como fomentaram a repulsa pelos movimentos sindicais e coletivos, os

quais são imprescindíveis para a inclusão social.

A violação à autonomia negocial coletiva acentua o cenário no qual

as normas constitucionais que consagram direitos sociais como direitos

fundamentais são transformadas em preceitos meramente pragmáticos e

enunciativos, e a falta de representatividade do trabalhador e a exclusão do

tripartismo prejudicam o debate social, um dos pilares centrais para estabelecer um

ambiente democrático e permitir a aplicação de medidas efetivas e positivas contra

a presente crise.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A RENDA BÁSICA UNIVERSAL COMO INSTRUMENTO DE

CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA

CONTEMPORANEIDADE: JUSTIFICATIVAS POLÍTICO-

JURÍDICAS, LIMITES E POSSIBILIDADES

Fabrício Manoel Oliveira 231


Thaís Costa Teixeira Viana 232

RESUMO
Em virtude da multifacetada crise causada pela COVID-19, inúmeras temáticas têm sido
(re)discutidas no ambiente público ao redor do globo. Dentre os debates, um dos assuntos
que mais chama a atenção envolve a renda básica universal e as tensões que lhe orbitam.
Diante desse cenário, o presente trabalho tem como objetivo central compreender quais são
os fundamentos jurídico-políticos da renda básica universal, bem como seu campo de
possibilidades, investigando se sua implementação (no Brasil), como política social,
efetivaria e conformaria direitos fundamentais constitucionalmente previstos,
especialmente em um contexto de incertezas, como o vivenciado atualmente. Ao final,
conclui-se pela adequabilidade constitucional da renda básica universal, em relação à
efetivação de direitos fundamentais, haja vista tratar-se de política social de ruptura de um
paradigma histórico excludente e socialmente opressivo, com forte potencial
emancipatório, possuindo variados benefícios para a sociedade, tanto econômicos quanto
sociais, sejam subjetivos ou intersubjetivos.

Palavras-Chave: Políticas Sociais; Renda Básica Universal; Distributivismo; Direitos


Fundamentais.

231
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com bolsa CNPq. Integrante do
Grupo de Pesquisa sobre Pessoa, Autonomia e Responsabilidade (GPAR) da UFMG e do Grupo de Pesquisa
sobre Planejamento e Estruturação do Patrimônio Familiar da FDMC. E-mail:
fabriciomanoeloliveira@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4950472427486097.
232
Doutoranda e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), desenvolvendo
pesquisas com ênfase no Direito Processual Coletivo. Professora de Direito Processual Civil e Professora-
Orientadora dos Laboratórios de Prática Jurídica em Arbitragem e em Negociação e Mediação da Faculdade
de Direito Milton Campos (FDMC). Professora dos cursos de graduação em Direito do Centro Universitário
Estácio de Belo Horizonte. Pesquisadora do Programa Universitário de Apoio às Relações de Trabalho e à
Administração da Justiça (Prunart | UFMG), onde exerce a coordenação discente do Grupo de Estudos e
Pesquisa "Litigiosidade Repetitiva, Ações Coletivas e Administração da Justiça". Advogada. E-mail:
thaisctv.adv@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5527042007236355.

845
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
Due to the multifaceted crisis caused by COVID-19, numerous themes are being discussed
in public space around the globe. Among the debates, one of the issues that draws the most
attention involves universal basic income and the tensions that surround it. In view of this,
the present work aims to understand what are the legal-political foundations of universal
basic income, as well as its field of possibilities, investigating whether its implementation
(in Brazil), as a social policy, would effect constitutionally foreseen fundamental rights,
especially in a context of uncertainties, like the current one. In the end, it is concluded that
the constitutional adequacy of the universal basic income, in relation to the realization of
fundamental rights, considering that it is a social policy of rupture of an exclusionary and
socially oppressive historical paradigm, with strong emancipatory potential, with varied
benefits for society, both economic and social, whether subjective or intersubjective.

Key words: Social Policies; Universal Basic Income; Distributivism; Fundamental rights.

INTRODUÇÃO

No final do século XVIII, Thomas Paine, britânico que havia sido

protagonista em três grandes processos revolucionários, quais sejam a Revolução

Norte Americana, em 1776, a Revolução Francesa, em 1789, e a agitação

revolucionária vivenciada pela Inglaterra nos primeiros anos da década de 1790

(KILEY, 1985; LOUNISSI, 2018), escreveu um manifesto que, para além de trazer luz

à desigualdade social e pobreza que afetavam grande parte das nações, propunha

ações afirmativas universais para romper tais barreiras, isto é, políticas de

interferência e modificação do quadro social, dentre as quais se destacava a criação

de um fundo para distribuição de renda quando da maioridade dos cidadãos, isto

para compensar a distribuição desigualitária da propriedade fundiária (PAINE,

2019, p. 776-783). Essa ideia é geralmente apontada pela doutrina como o embrião

da renda básica universal.

Com o desenrolar do tempo, acabou sendo encampada e aprimorada por

diversos políticos, pensadores e autores, tais como Abraham Lincoln, Henry

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

George, Bertrand Russell e Franklin Roosevelt (KLEIN, 2016), chegando a ocupar

grande espaço na academia, e isso tanto em setores da tradição moderna do

pensamento marxista 233 quanto do pensamento liberal clássico 234 , em que pese a

existência de uma (antiga e) complexa discussão sobre os custos e a efetividade de

sua implantação (ZWOLINSKI, 2011, p. 1-12).

Na metade final do século XX e no início do século XXI, contudo, seus traços

ecoaram principalmente (mas não só) em dois autores: Philippe Van Parijs (1994,

2003, 2004, 2014), professor da Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais da

Universidade Católica de Louvain (Bélgica), e Eduardo Matarazzo Suplicy (1994,

1997, 2009, 2011), professor da EAESP/FGV, hoje aposentado.

Se, de fato, como apontado pela literatura, o tema (quase sempre) volta a

ressurgir com maior empolgação em momentos de grave crise econômica ou mesmo

naqueles em que não se vislumbra um horizonte sustentável quanto ao trabalho e

ao desenvolvimento social (SLOMAN, 2018, p. 625-642), com a pandemia

proporcionada pela COVID-19 não poderia ser diferente. Em verdade, tornou-se

inevitável a rediscussão de alguns de seus aspectos, até mesmo porque grande parte

dos países ocidentais realizou a implementação de algum tipo de renda

complementar em benefício de seus cidadãos, ainda que temporária, com viso a lhes

dar sustentação econômica, eis que, na prática, ficaram estes impedidos de laborar

em virtude da pandemia ou mesmo do lockdown estabelecido pelas nações.

233
Para Michael W. Howard (2005, p. 613-631), inexiste incompatibilidade entre o socialismo e o marxismo e
a renda básica universal, bem como a ideia de pleno emprego. Segundo o autor, em realidade, ambas
poderiam se complementar em favorecimento do próprio cidadão, trabalhador.
234
Autores liberais nela enxergaram uma possibilidade efetiva de superação da pobreza, desde que
estabelecida sobre certas bases, e implantada por meio de um imposto de renda negativo. Tal engenho, em
verdade, nada mais era do que uma política social calcada no pagamento, pelo governo, de determinadas
quantias a todos aqueles que ganhassem até um certo limite definido em lei, isso em substituição ao imposto
de renda (TONDANI, 2009, p. 246).

847
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

É nesse cenário, pois, que grassa o presente trabalho, que se justifica ante a

necessidade de se (re)pensarem novas dinâmicas de estruturação e funcionamento

da sociedade contemporânea (ŽIŽEK, 2020, p. 43-47), questão de extrema relevância

e atualidade. Nesse sentido, possui como tema-problema a seguinte questão: a

implementação de uma renda básica universal (no Brasil), como política social,

efetiva(ria) e conforma(ria) direitos fundamentais, especialmente em um contexto

como o vivenciado atualmente? Tem-se como objetivo, portanto, identificar o que é

e quais são os fundamentos jurídico-políticos da renda básica universal e suas

possibilidades, bem como sua adequabilidade ao paradigma constitucional

emancipatório. Para tanto, o trabalho se valerá de uma metodologia descritiva-

exploratória, raciocínio dedutivo e método teórico, sendo em dividido em dois

momentos: no primeiro deles, analisar-se-ão as principais características da renda

básica universal, bem como algumas de suas justificativas político-jurídicas e

experiências pretéritas. No segundo deles, analisar-se-á a adequabilidade da renda

básica universal (como política social) frente aos direitos fundamentais consolidados

no projeto constitucional brasileiro (emancipatório).

1 RENDA BÁSICA UNIVERSAL: CARACTERIZAÇÃO, JUSTIFICATIVAS

POLÍTICO-JURÍDICAS E EXPERIÊNCIAS

A ideia contemporânea que permeia o programa de renda básica universal,

a rigor, envolve garantir um nível mínimo de renda aos cidadãos de uma

determinada comunidade, suprimindo suas necessidades e carências básicas

(FOUKSMAN; KLEIN, 2019, p. 492-498), com viso à maximização do bem-estar

social. De acordo com Philippe Van Parijs (2000, p. 179), pode ser conceituada como

“[...] uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus membros

848
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

individualmente, independentemente de sua situação financeira ou exigência de

trabalho”.

Como um programa de sustentação social amplo, não está adstrito a

entidades pré-determinadas, podendo advir tanto do contingente estatal, quanto

paraestatal ou mesmo supraestatal (PARIJS, 2000, p. 179). Mas, por outro lado, é

indispensável que tenha em seu bojo algum tipo de (i) regularidade temporal, (ii)

horizontalidade, e (iii) não possua condicionantes (PARIJS, 1994, 2003, 2004, 2014).

Quanto ao primeiro aspecto, vincula-se à regularidade e estabilidade necessárias

para o sucesso de qualquer política pública de natureza globalizante, que

geralmente apresenta seus melhores resultados a longo prazo, especialmente em se

tratando de questões econômicas e sociais. Quanto ao segundo aspecto, por um lado

ela impinge a individualização em relação à titularidade do benefício e, por outro,

abrange a universalidade das pessoas de determinada comunidade (PARIJS, 2000,

p. 183-184)235. Quanto ao terceiro aspecto, por fim, reclama como indevida qualquer

exigência ou pressuposto constitutivo. É dizer, em poucas palavras, que é

incondicional (MCKAY, 2007, p. 338-340)236, foge de restrições que maculem sua

universalidade.

Nessa toada, não é despiciendo mencionar que seu principal papel é

fornecer condições de possibilidade, ainda que iniciais, para a manutenção primária e

subsistência em sociedade de uma grande parcela da população. É imprescindível

tanto como um mecanismo que lida com o cenário posto, atuando como um

235
Vale mencionar que, ao contrário do que possa se pensar inicialmente, a renda básica universal não propicia
que os mais ricos fiquem mais ricos. Isso porque ela deve estar vinculada a uma série de outros mecanismos,
inclusive tributários, para que distorções sociais sejam superadas. No fundo, por si só, ela é apenas uma mola
propulsora em direção a um sistema mais distributivista do ponto de justiça social: “Para que a introdução ex
nihilo de uma renda básica proporcione uma vantagem financeira para os pobres, a condição-chave é
simplesmente que, com relação a seus números (não necesariamente a sua renda), os relativamente ricos
deveriam contribuir mais para o seu financiamento do que os relativamente pobres” (PARIJS, 2000, p. 185).
236
Apesar disso, discute-se se crianças, adolescentes (MCKAY, 2007, p. 337-338) ou mesmo estrangeiros
(PARIJS, 2000, p. 182-186) deveriam recebê-la.

849
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

corretivo social pretérito, retificando processos históricos complexos, quanto como

um mecanismo de construção social futura, o qual busca favorecer decisões

emancipatórias subjetivas e a criação de um cenário que propicie maior autonomia

para os sujeitos de direitos. Em ambos os horizontes, portanto, possui como fim

último promover uma melhor (re)distribuição da riqueza dentro do ceio social.

Contudo, para além da ideia de justiça social237, que por si só já seria assaz

para a implementação do referido mecanismo de combate à desigualdade, a

doutrina aponta uma série de possíveis outros efeitos positivos em relação à sua

implementação, sendo o principal deles combate à (extrema) pobreza.

Para Ailsa McKay (2007, p. 338), “a citizens’ basic income would therefore

provide an effective anti-poverty policy framework by securing an income for all

citizens, paid on an individual basis and without reference to patterns of formal

labour market participation”.

Como consabido, a pobreza tem como uma de suas facetas a geração de um

ciclo vicioso do qual é extremamente difícil escapar. Na prática, isso acaba gerando

um grilhão social que se perpetua no tempo através das gerações, tanto sob uma

perspectiva subjetiva, quanto intersubjetiva. No primeiro caso, ela dificulta o

próprio processo de tomada de decisões e planejamento do futuro, já que a

concentração de esforços do sujeito está voltada para a imediaticidade, possuindo

um único objetivo, qual seja alimentar-se, sobreviver àquele dia: “In effect, decision-

making by people in or near poverty can be thought of as like swimming against

the ocean current, while the wealthy are swimming with it ₋ those on low incomes

237
Tida “[…] as a state of affairs (either actual or ideal) in which (a) benefits and burdens in society are dispersed
in accordance with some allocation principle (or set of principles); (b) procedures, norms, and rules that govern
political and other forms of decision making preserve the basic rights, liberties, and entitlements of individuals
and groups; and (c) human beings (and perhaps other species) are treated with dignity and respect not only
by authorities but also by other relevant social actors, including fellow citizens”, um conteúdo realmente justo
e equânime, pilar de uma sociedade democrática (PARIJS, 2009, p. 129-132),

850
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

are exhausting themselves to avoid being dragged out to sea” (GANDY et al, 2016,

p. 14); no segundo caso, tem-se um problema social mais amplo, em que não se

consegue obter crédito, melhoria real das condições de vida, o aprimoramento da

educação e, em última instância, a própria ascensão social. Com efeito, fato é que a

pobreza, rural ou urbana, acaba inviabilizando qualquer tipo de existência digna do

sujeito.

Pode-se dizer, portanto, que enquanto mantido o estado de pobreza, sem a

garantia do mínimo existencial, em déficit se encontra toda a sociedade, responsável,

direta ou indiretamente, pelo bem-estar daqueles que nela se encontram. Daí a

necessidade de discussões acerca de políticas públicas que se proponham a minorar

ou mesmo (tentar) solucionar a questão.

De outra banda, para além da diminuição da extrema pobreza

propriamente dita, em ruptura ao grilhão outrora referido, várias outras

justificativas político-jurídicas acerca da renda básica universal são postas em pauta

pela literatura, como a estabilização social em momentos de recessão (SUPLICY,

1994, 1997, 2009, 2011), o conferimento de “[...] maior poder de barganha [ao

trabalhador], na medida em que poderiam recusar alguma oferta de trabalho que

porventura considerassem ultrajante ou próxima de condições de escravidão”

(SUPLICY, 2009, p. 72), a diminuição do trabalho infantil, vez que se torna

desnecessária a complementação da renda familiar pelo trabalho das crianças. E,

como consequência virtuosa, tem-se que: um “menor número de crianças

oferecendo seus serviços no mercado, permite que os adultos tenham maiores

oportunidades de emprego e também salários mais elevados” (SUPLICY, 1997, p.

86).

Pode-se citar também o favorecimento do empreendedorismo, já que é

possível concentrar esforços e recursos na criação de uma atividade própria,

851
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

notadamente em virtude da segurança proporcionada por um fluxo contínuo de

renda, a contribuição para o aumento da qualidade e quantidade de empregos, já

que, com mais recursos financeiros nas mãos da população, eleva-se a demanda e a

economia se aquece, sendo necessário o aumento da produção e a abertura de novas

vagas (PARIJS, 1994, 2003, 2004, 2014). Além disso, permite-se a diminuição dos

gastos com programas governamentais de proteção ao desempregado ou mesmo

outras espécies de programas, que poderiam ser eliminados a depender da

estratégia e do desenho institucional adotados.

Ademais, aponta-se que a renda básica universal tende a favorecer o

aprimoramento profissional dos cidadãos, possibilitando que as pessoas se

dediquem a cursos e estudos dos mais diversos, os quais antes dificilmente teriam

acesso, além do caráter emancipatório que esse tipo de programa favorece,

prestigiando o poder de autossuficiência das pessoas, sua capacidade deliberativa

e de escolhas, quer dizer, há uma valorização da liberdade do sujeito através da

criação de condições (ainda que mínimas) de possibilidade, não como um ente

isolado, mas como um componente do corpo social, em igualdade para com os

demais. Passa a não ser mais preciso, do ponto de vista econômico, lutar somente

pela sobrevivência, por ter o que comer naquele dia (PARIJS, 1994, 2003, 2004, 2014).

Com a estabilidade por ela proporcionada, pode-se concentrar, pois, em outras

atividades, o que é um ganho inestimável para o sujeito, sob variados prismas.

Pontos positivos como esses vêm sendo observados nos Estados Unidos

com a instituição do Earned Income Tax Credit (EITC) 238 , ou mesmo a partir dos

238
De acordo com Eduardo Matarazzo Suplicy (2011, p. 73), o “[…] Earned Income Tax Credit (EITC), Crédito
Fiscal por Remuneração Recebida, [é] uma forma de imposto de renda negativo que complementa a renda dos
que trabalham, mas não alcança um patamar que lhes permita sair da condição de pobreza. […] Eis como
funciona o EITC hoje nos Estados Unidos. Vou dar dois exemplos: o primeiro, uma pessoa adulta que more só,
mas que tenha uma criança, que trabalhe por um salário mínimo de US$ 7,25 por hora e esteja empregado o
ano inteiro, então recebe US$ 15.080 por ano. Ela tem o direito a um crédito fiscal de US$ 3.121 a mais, e sua
renda anual vai para US$ 18.201, menos encargos sociais, da orden de US$ 1.154. No caso de um casal com

852
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

dividendos coletivos distribuídos no estado do Alasca239 (SUPLICY, 2011, p. 72-81).

Contudo, para além das experiências citadas, existem outros programas parciais

sendo testados ao redor do mundo, como na Finlândia240 e em Macau (China)241, por

duas crianças, se a sua renda anual for positiva, porém inferior ao patamar de US$ 12.970, esse casal tem um
crédito fiscal equivalente a 40% de cada dólar que recebe pelo trabalho no intervalo de zero a US$ 12.970.
Ora, se receber US$ 10 mil, o casal receberá US$ 4 mil a mais. Se conseguir fazer, por exemplo, US$ 18 mil ao
ano, o casal obterá um crédito de US$ 5.160 e a sua renda vai para US$ 23.160, o que significa ultrapassar a
linha oficial de pobreza nos Estados Unidos, que, para uma familia de pai, mãe e duas crianças, está em US$
23 mil anualmente. Se a renda do trabalho do casal continuar a crescer e chegar a US$ 21.970, eles ainda têm
o direito ao crédito fiscal máximo de US$ 5.160. Mas, caso a renda anual do casal continue aumentando na
faixa de US$ 21.970 até o limite de US$ 46.471, o seu crédito fiscal passa a diminuir de 21% para cada dólar
adicional até o patamar de US$ 46.471. Portanto, vai diminuindo à taxa de 21% sobre a diferença entre US$
46.471 e a renda obtida pelo casal. A partir de US$ 46.471, se aumentar a renda, o casal passa a ter obrigações
de pagamento de mais imposto de renda”.
239
“Graças ao dividendo igual pago a todos os seus habitantes, o Alasca, hoje com 700 mil habitantes, tornou-
se o mais igualitário dos 50 estados norte-americanos, com um coeficiente Gini de desigualdade, em 2009, de
apenas 0,402. Esse coeficiente nos Estados Unidos é de 0,469. O mais alto nos Estados Unidos é o do Distrito
de Columbia, onde está Washington, D.C., que é de 0,539, semelhante ao do Brasil, também em 2009. O
sistema instituído, portanto, pelo gobernador Jay Hammond é tão popular que hoje é considerado suicidio
político para qualquer liderança no Alasca propor o seu fim” (SUPLICY, 2011, p. 75). Consoante explicam
Algimantas Laurinavičius e Antanas Laurinavičius (2016, p. 57), Even though dividends received by the state’s
residents do not compare to the ben-efits provided by the concept of basic income (“benefit that ensures the
standard of liv-ing above the poverty line”), however, calculations show that properly invested benefits would
enable the residents of Alaska to accumulate a substantial capital. From 1982 to 2015, each resident of the
state received 40 thousand US dollars (or 30 thousand US dollars during the period of 1995–2015) (see Table
1). By reinvesting the dividends received from the Fund with a 5% annual rate of return, in 2015, residents of
the state of Alaska who turned twenty years old could have accumulated 51 thousand US dollars in their
investment accounts (for comparison, Table 2 shows the amount of capital that could have been accumulated
if the received dividends have been reinvested with a 3%, 5%, 7% return or annually reinvested into the US
stock market).
240
O “Prime Minister Juha Sipilä's Government set customer orientation of services as one of the strategic
objectives of the Governmental Programme. To achieve this goal, Sipilä’s government decided to launch a basic
income experiment during its term. By experimenting with basic income, Sipilä’s government tried to find out
whether the introduction of a basic income could make the social security system in Finland more inclusive
and further increase the labour supply. […] The model chosen for the experiment was a partial basic income
and the amount of basic income was 560 euros per month. This corresponded to the monthly net amount of
the basic unemployment allowance and the labour market subsidy provided by Kela (the Social Insurance
Institution of Finland). Two thousand persons aged 25–58 years who received an unemployment benefit from
Kela in November 2016 were selected for the actual experiment. They were selected through random sampling
without any regional or other emphasis” (KANGAS et al, 2019, p. 6-7).
241
“In 2015, the Government of Macao announced that it would pay 9.000 patacas (around 1.127 US dollars)
to each individual who is a permanent resident of this terri-tory, and 5.400 patacas (around 676 US dollars) to
each non-permanent resident. The only condition is to have a valid Macao resident identification card. This
programme is implemented since 2008. In 2015, 675.696 people received ben-efits (of which 90% received
the full amount of the benefit). In 2014, benefit size was the same, however, that year these benefits were
given to 635 thousand people.Benefits applied in Macao are a small scale basic income programme, similar to
the dividends paid in the state of Alaska (LAURINAVIČIUS; LAURINAVIČIUS, 2016, p. 57-58).

853
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

exemplo242, mas, por não ter o presente trabalho finalidade exaustiva, abre-se mão

de um estudo específico em prol de um sobrevoo geral, com intuito meramente

didático, isto é, de apresentação das justificativas político-jurídicas que sustentam

no ambiente público a ideia da renda básica universal243.

2 DIREITOS HUMANOS COMO PROJETO DE SOCIEDADE, JUSTIÇA

SOCIAL E A RENDA BÁSICA UNIVERSAL COMO INSTRUMENTO DE

CONCRETIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O processo histórico de consolidação do Estado moderno é responsável pela

modificação do ethos da relação entre os cidadãos e o governo. Muda-se, pois, o

242
Ademais, não se pode esquecer que muitos países vem discutindo a questão nos últimos tempos, como é
o caso da Austrália (MAYS, MARSTON, TOMLINSON, 2016; KLEIN, MAYS, DUNLOP, 2019) e da Nova Zelândia
(RANKIN, 2016).
243
Não se desconhece a existência de variadas críticas em relação à ideia da renda básica universal e à sua
aplicabilidade prática (PANKAJ, 2016; CASS, 2016, LAURINAVIČIUS, LAURINAVIČIUS, 2016; DE WISPELAERE,
HALMETOJA, PULKKA, 2018), que suscitam desde a ausência de um conjunto de dados robustos para a extração
de informações e a distorção na interpretação destas, até o desincentivo gerado ao trabalho, a inviabilidade
económica de uma implantação verdadeiramente horizontal, a ausência de factibilidade política e a baixa
efetividade em relação aos fins a que se destina, todavia, ainda que se considere em absoluto todas as críticas,
elas parecem não ser suficientes para derrocar por completo a ideia da renda básica universal. Afinal, pode-se
pensar e debater o modelo de implementação e os contornos práticos, mas não sua axiologia ética subjacente:
a de que se deve garantir a todos dentro da sociedade condições dignas (mínimas) de vida. O igualitarismo e
o (re)distributivismo proposto por tal marcador parecem imprescindíveis para a concretização de uma
sociedade justa em âmbito material, e não somente formal, dentro do sistema capitalista contemporáneo. Nos
dizeres de Jennifer Mays, Greg Marston e John Tomlinson (2016, p. 9-20): “Modern interpretations of the
basic-income proposal represent a progressive alternative relevant to redressing widening global inequities
and poverty driven by neoliberal transformations. […] The right to a decent income and access to resources is
central to living a good life and is especially critical for vulnerable groups such as people in poverty, children
and young people, single parents, and people with disabilities. Much of the debate in this book comes back to
a central moral and ethical question of “What type of society do we want?” Political values and the state of
the public sphere within a single nation will determine how countries respond to this question. Answering this
question will also inevitably be informed by global changes, as no nation is immune to extra-national social,
cultural, and economic forces. Addressing growing economic insecurity through a basic income requires local,
national, and global measures (Standing, 2014). Proposing a new redistributive strategy for the twenty-first
century, one that is based on social citizenship, human rights, and social justice within the ecological limits of
a finite planet is a major public policy challenge. As the chapters in this collection highlight, it is time for bold
thinking and collective action”.

854
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

enfoque acerca da relação pública, sobressaltando-se não mais a tônica de deveres

daqueles perante este, mas sim a dimensão de seus direitos, “[...] em

correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade em

contraposição à concepção organicista tradicional” (BOBBIO, 2004, p. 7). Aflora,

portanto, o direito a se ter direitos, dinâmica que assume diversas facetas ao longo

da história, e didaticamente é dividida pela doutrina em cinco fases, das quais

interessa ao presente estudo a segunda, que envolve direitos sociais, culturais e

econômicos, bem como o alcance positivo do principio da igualdade (WOLKMER,

2002, p. 14-15), haja vista o recorte ora proposto.

De acordo com André de Carvalho Ramos (2018, p. 60-62), a segunda

dimensão histórica reverbera uma maior exigência da atuação do Estado frente aos

problemas sociais, exigindo-se substancialidade e não somente a existência de

garantias formais. É dizer, ganhou nitidez a insuficiência do princípio da liberdade

e do princípio da igualdade frente às complexidades e mazelas sistêmicas, e passou-

se a demandar uma atuação positiva (e não apenas negativa) por parte do governo,

para se efetivar transversalmente direitos e garantias dentro do tecido social.

A par da discussão sobre as diversas denominações que podem ter os

direitos humanos (ALÁRCON, 2002, p. 126-131) e as disputas a respeito de suas

dimensões na atualidade, o presente trabalho se vale da nomenclatura (e tão

somente dela) proposta por Robert Alexy (1999, 2008, 2015), que insinua, pois, que

são os direitos fundamentais componentes positivados por um diploma

constitucional, dos direitos do homem244. Na luta por reconhecimento (HONNETH,

2003), portanto, sobressai o papel desempenhado pelas constituições, fronts em que

244
Quer dizer, os direitos do homem, que primordialmente apenas possuem validez moral e têm por objeto
carências e interesses, passam a também possuir validez jurídico-positiva quando convertidos em direito
positivo através de uma carta constitucional, tornando-se direitos fundamentais. Não perdem, é claro, aquela
(ALEXY, 1999, 2015).

855
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

se destacam direitos fundamentais, e que em última instância acabam sendo locus

de disputa de sentido e conflitos dos mais diversos. É dizer, mais do que um caráter

organizativo dos elementos de Estado (SILVA, 1997, p. 42), passam a prever toda a

dinâmica do conteúdo estrutural dos (diversos tipos de) direitos fundamentais, e

por isso mesmo se entende que devem ser lidas a partir de uma ótica ampliada,

como um sistema aberto de normas jurídicas de conteúdo principiológico e

preceitual (SIQUEIRA CASTRO, 2003, p. 45-59).

Em verdade,

[...] a constituição pós-moderna ampliou ainda mais a noção de


responsabilidade governamental e social e incorporou em seus
regramentos a instabilidade dos sentimentos e dos dramas
humanos, além da dinâmica social, política e econômica da
comunidade nacional, assumindo um papel estruturante das
relações individuais e coletivas (SIQUEIRA CASTRO, 2003, p. 39).

Nessa toada, qualquer tipo deliberação pública 245 não poderá deixar de ter em

mente o paradigma constitucional, em observância aos fins e propósitos traçados nas cartas

constitucionais. Contudo, no âmbito da implementação de políticas sociais246, é ainda mais

claro o dever e a responsabilidade estatal em promover e fomentar o desenvolvimento

social 247 , garantindo a qualidade de vida da população, mormente de sua parcela mais

vulnerável. Afinal,

[...] uma administração pública – informada por uma concepção


crítica de Estado – que considere sua função atender a sociedade
como um todo, não privilegiando os interesses dos grupos
detentores do poder econômico, deve estabelecer como prioritários

245
E, em última análise, privada.
246
“[…] políticas sociais se referem a ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo
Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais visando a diminuição das
desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconómico” (HÖFLING, 2001, p. 32).
247
Não se está a tratar aqui da exibilidade judicial de direitos sociais constitucionalmente previstos. Nesse
sentido, ver: ALEXY (1999, 2008, 2015).

856
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

programas de ação universalizantes, que possibilitem a


incorporação de conquistas sociais pelos grupos e setores
desfavorecidos, visando à reversão do desequilíbrio social
(HÖFLING, 2001, p. 39).

No caso brasileiro, a carta constitucional, espelhando uma (re)conquista de

direitos fundamentais248 (BARROSO, 2006, p. 41), traz em seu bojo um extenso rol

de direitos sociais. A título exemplificativo, pode-se citar a alimentação, a saúde, o

transporte, a educação, a previdência social, a moradia, o trabalho, a proteção à

maternidade e à infância, o lazer e a segurança, e a assistência aos desamparados,

conforme previsão de seu artigo 6º (BRASIL, 1988), menções que, na linha do que

fora exposto, devem ser tidas não como mandados retóricos por parte do corpo

político, mas normativas de comprometimento e engajamento social e político (contínuo),

a serem aprimoradas diariamente, com o fim último de se alcançar uma sociedade

materialmente solidária, quer dizer, fundamentada na justiça social. Trata-se, é

possível dizer, de um projeto de sociedade constitucional eternamente inacabado,

que se aprimora e se reinventa no tempo através de políticas sociais249. Esse é, dentre

outros, o papel do ambiente político.

O Estado social no Brasil aí está para produzir as condições e os


pressupostos reais e fáticos indispensáveis ao exercício dos direitos
fundamentais. Não há para tanto outro caminho senão reconhecer
o estado atual de dependência do indivíduo em relação às
prestações do Estado e fazer com que este último cumpra a tarefa
igualitária e distributiva, sem a qual não haverá democracia nem
liberdade. A importância funcional dos direitos sociais básicos, já
assinalada por inúmeros juristas do Estado social, consiste pois em
realizar a igualdade na Sociedade; ‘igualdade niveladora’, volvida
para situações humanas concretas, operada na esfera fática

248
(Re)conquista por ser um programa democrático, em fuga ao paradigma anterior (BARROSO, 2014).
249
“Mais do que oferecer ‘serviços’ sociais – entre eles a educação – as ações públicas, articuladas com as
demandas da sociedade, devem se voltar para a construção de direitos sociais” (HÖFLING, 2001, p. 40).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

propriamente dita e não em regiões abstratas ou formais de Direito”


(BONAVIDES, 2004, p. 378-379).

Isto não significa, todavia, uma resolução ex ante de todos os problemas da

sociedade. Ao contrário, seria

[...] ingenuidade acreditar que pelo simples fato de o direito à


moradia ter sido inserido expressamente na Constituição, todas as
pessoas no País já terão moradia [...]. É necessária uma política
habitacional condizente [...]. É preciso, pois, uma prática política
correspondente, de compromisso com esses princípios, com essas diretrizes,
esses direitos constitucionais, a fim de se romper reflexivamente com toda
uma tradição anticonstitucional e antidemocrática de exclusão social e
política (CATTONI DE OLIVEIRA, 2007, p. 155) (grifou-se).

Nesse sentido, como política social parece a renda básica universal atender a

essa finalidade constitucional, vez que atua como um mecanismo de compromisso

com a justiça social e concretização de direitos fundamentais sociais, na expressão de

Robert Alexy (2008, p. 499-509). Isso porque se trata de um projeto arquitetado para

romper um paradigma histórico excludente e socialmente opressivo, com forte

potencial emancipatório, possuindo variados benefícios para o corpo comunitário,

como visto. É dizer, in abstrato a renda básica universal efetiva e conforma direitos

fundamentais, parecendo indene a convergência funcional entre ambos,

especialmente em um contexto turbulento como o vivenciado atualmente. Vale

lembrar que, segundo levantamento realizado pelo IBGE (2018), em 2018 cerca de

6,5% da população vivia com rendimento domiciliar per capita abaixo da linha de

pobreza (internacional), com menos de US$ 1,90 por dia, o que significa dizer que,

na prática, 13,5 milhões de pessoas sobreviviam com pouco mais de R$ 6,30 por dia,

o que sequer proporciona a quantidade mínima de calorias exigidas pelo corpo

humano. Ademais, é muito provável que esse percentual tenha subido com o

858
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

espraiamento da pandemia e o agravamento da crise econômica, que afetou grande

parte da população, principalmente a mais vulnerável, o que poderia ser alterado

pela implementação de um programa de ampla sustentação como esse.

Assim, se é o Estado garante de direitos fundamentais sociais e possui em mãos

o dever constitucional de não só empunhar, mas erguer e manejar a espada da

justiça social, não pode de forma sumária simplesmente embanhá-la,

desconectando-se de seu compromisso fundamental. Como dito, haja vista a

finitude dos recursos disponíveis, pode-se discutir os contornos do que ora se

debate, mas não sua imprescindibilidade enquanto instrumento de justiça social e

concretização de direitos fundamentais. Afinal, o que está em jogo são as vidas de

milhares pessoas, centro e fim último do ordenamento (SARMENTO, 2016, p. 74).

A ideia de uma sociedade justa (PARIJS, 2009, p. 129-132), cumpre lembrar, não é

compatível com uma distribuição de riqueza que não impeça que diariamente

milhares de pessoas simplesmente não tenham o que comer, não por falta de

produção, mas por distorções sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, dentre as variadas justificativas político-jurídicas que dão

suporte à renda básica universal, destacam-se o combate à (extrema) pobreza, a

estabilização social em momentos de crise, o conferimento de um maior poder de

barganha ao obreiro, a diminuição do trabalho infantil, o favorecimento do

empreendedorismo, a contribuição para o aumento da qualidade e quantidade de

empregos, a possibilidade de redução dos gastos públicos com outros tipos de

programas sociais, a depender da estratégia e do desenho institucional adotados, o

aprimoramento profissional dos cidadãos e, finalmente, o caráter emancipatório

859
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que esse tipo de programa favorece, prestigiando o poder de autossuficiência das

pessoas.

Em síntese, portanto, seu principal papel é fornecer condições de possibilidade,

ainda que iniciais, para a manutenção primária e subsistência em sociedade de uma

grande parcela da população. É essencial, tanto como um mecanismo que lida com

o cenário posto, atuando como um corretivo social pretérito, retificando processos

históricos complexos, quanto como um mecanismo de construção social futura, Em

ambos os horizontes, cabe rememorar, possui como fim último a promoção de uma

melhor (re)distribuição da riqueza dentro da sociedade, concretizando a justiça

social.

Nesse sentido, pode-se dizer que como política social é constitucionalmente

adequada em relação à efetivação de direitos fundamentais, haja vista tratar-se de

política de ruptura horizontal de um paradigma histórico excludente e socialmente

opressivo, com forte potencial emancipatório, possuindo variados benefícios para a

sociedade, tanto econômicos quanto sociais, sejam subjetivos ou intersubjetivos,

principalmente se implementada em um contexto de incertezas.

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DIREITO À SAÚDE NA GUATEMALA: (DES)CONFIGURAÇÃO

HISTÓRICA E O CONTEXTO DA COVID-19

Cristian David Osorio Figueroa250

RESUMO
Guatemala é um país com profundas iniquidades que dificultam a garantia do direito à
saúde da população. Com a pandemia os sistemas de saúde e os do sistema de proteção
social foram colocados à prova. A análise histórica das políticas de saúde permite
compreender a situação atual que enfrentam os diferentes países e assim, propor soluções.
O presente ensaio possui como objetivo apresentar de forma geral a organização, o
desenvolvimento histórico e o estado atual do sistema de saúde guatemalteco e as
principais medidas para o enfrentamento da pandemia por SARS-CoV-2 na Guatemala. Foi
realizada uma revisão de literatura nas bases de dados LILACS e PUBMED, assim como
literatura cinzenta e relatórios oficiais. Primeiro, descreve-se a configuração do direito à
saúde no país, posteriormente a trajetória histórica das políticas sanitárias e por último, são
enumeradas as principais medidas adotadas durante a pandemia. Conclui-se que existe um
debilitamento histórico do sistema de saúde provocado pela omissão de implementação de
medidas durantes seus primórdios e pelo processo de reforma dos anos 90. Faz-se
imperativo para garantir o direito à saúde a modificação do modelo de atenção e uma
reforma sanitária, não só do setor saúde, com equidade de gênero e pertinência intercultural
para a diminuição das iniquidades em saúde.

Palavras-chave: direito à saúde; Guatemala; SARS-CoV-2; reforma sanitária.

ABSTRACT
Guatemala is a country with profound inequities that make it difficult to guarantee the
population's right to health. With the pandemic, health systems and social protection
systems were put to the test. The historical analysis of health policies allows us to
understand the current situation facing different countries and, therefore, to propose
solutions. This essay aims to present in general the organization, the historical development
and the current state of the Guatemalan health system and the main measures to face the
SARS-CoV-2 pandemic in Guatemala. A literature review was carried out in the LILACS
and PUBMED databases, as well as gray literature and official reports. First, the
configuration of the right to health in the country is described, then the historical trajectory
of health policies and finally, the main measures adopted during the pandemic are listed.

250
Doutorando em Saúde Coletiva pelo ISC/UFBA. Mestre em Saúde Coletiva pela UEFS. Médico e Cirurgião
pela USAC, Guatemala. E-mail: crisgibb@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2374264066338385

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It is concluded that there is a historical weakening of the health system caused by the failure
to implement measures during its beginnings and by the reform process of the 90s. It is
imperative to guarantee the right to health, to modify the model of care and a health reform,
not only in the health sector, with gender equity and that considers the intercultural context
to reduce health inequities.

Keywords: right to health; Guatemala; SARS-CoV-2; health reform.

INTRODUÇÃO

As problemáticas de saúde derivam-se do contexto sociopolítico, econômico e

cultural que incidem nos diferentes padrões de saúde, doença e morte das

populações, por médio de diferentes estratégias. O entendimento abrangente da

saúde provém do conceito de determinação social da saúde, que considera que

devem existir condições sociais, econômicas e culturais que garantam equidade e a

plena oportunidade de viver uma vida saudável. Os países que se apropriaram da

concepção de saúde desde um enfoque positivo com promoção e prevenção como

foco, geralmente possuem um enfoque público e universal.

Países principalmente europeus, que ocupavam as primeiras posições de

sistemas de saúde fortalecidos, após a crise de 2008 decidiram realizar recortes

importantes, aduzindo baixa capacidade do Estado para arcar com os custos,

flexibilizando o mercado laboral, reduzindo equipes de saúde, financiamento,

aumento de espaço à saúde suplementar, entre outras medidas. Na América Latina,

alguns países moldaram seus sistemas de saúde por meio da prestação de serviços

de pacotes básicos derivados da proposta de atenção primaria seletiva, que nasceu

como recomendação para países periféricos em contraposição ao enfoque proposto

na conferência de Alma Ata em 1978, de Atenção Primária Abrangente, entre eles a

Guatemala.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Com a chegada da pandemia por SARS-CoV-2 os sistemas de saúde foram

colocados a prova, mas também os sistemas de proteção social como um todo. Por

isso, as respostas e os resultados dos países para garantir os direitos fundamentais

no contexto da pandemia e as medidas de confinamento físico têm sido

influenciadas pelo modelo de atenção à saúde e de proteção social de forma geral e

fortemente determinadas pelos padrões de determinação social.

Na Guatemala, a resposta à pandemia tem se caracterizado por ser centralizada,

com impossibilidade de espaços para a participação social, e com ausência de uma

estratégia de comunicação efetiva como a população. Existe uma pronta

flexibilização de medidas de isolamento social, apesar da sua baixa capacidade

diagnóstica e de garantia do acesso a serviços de saúde. O discurso oficial encontra-

se fortemente influenciado pelas propostas hospitalares e programas para a

mitigação das consequências com debilidade técnica para sua execução.

Partindo do pressuposto que o sistema de saúde na Guatemala, enfrentou a

pandemia com uma série de problemas crônicos na esfera econômica, política,

sociodemográfica que comprometiam desde antes a garantia do direito à saúde. No

presente ensaio pretende-se apresentar de forma geral a organização, o

desenvolvimento histórico e o estado atual do sistema de saúde guatemalteco para

compreender seus desafios e propor soluções para garantir o direito à saúde para

melhorar a capacidade de resposta diante qualquer contrariedade inclusive a

pandemia por SARS-CoV-2.

Foram revisados estudos publicados nas bases de dados Lilacs e Pubmed para

realizar a descrição histórica do país. Múltiplas estratégias foram testadas obtendo

poucos resultados, por tanto, optou-se por uma estratégia de busca o

suficientemente sensível utilizando os termos livres: ("health system" OR "delivery of

patient care") AND (Guatemala). Critérios de inclusão foram definidos como:

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

abordagem de processos de reforma na Guatemala, política sanitária ou análise do

sistema de saúde; disponibilidade de texto completo; sem restrições de ano ou

idioma. No total, foram revisados os 162 documentos retribuídos da Pubmed, dos

quais 4 cumpriram pelo menos um critério de inclusão. e os 39 da Lilacs.

Algumas limitações na obtenção dos dados oficiais foram encontradas no

decorrer da revisão, por tanto se recorreu à utilização de fontes secundárias, como

relatórios nacionais e documentos de trabalho e literatura cinzenta provenientes de

fontes oficiais, organismos internacionais e organizações de sociedade civil.

Para isso, examina-se inicialmente, dados de contextualização do país.

Posteriormente, abordam-se a organização, o desenvolvimento histórico e o estado

atual do sistema de saúde guatemalteco. Em seguida, mostra-se as diferentes

medidas tomadas para o combate da pandemia na Guatemala e possíveis saídas

como considerações finais.

O DIREITO À SAÚDE NA GUATEMALA

Os marcos normativos sobre os quais são implementadas as políticas ou

programas influenciam as ações e atividades a serem desenvolvidas (ALKIRE;

DENEULIN, 2018) e, no caso da saúde não é a excepção. Pode ser tão amplo que

considere uma acepção positiva da saúde ou tão restrita como atender somente ao

dano de forma reativa. No marco da reforma sanitária brasileira Dallari (1988),

colocava que a garantia do direito à saúde depende do equilíbrio entre a liberdade

e a igualdade e chamava à atenção ao fato de que não basta apenas declarar que

todos têm direito à saúde; é indispensável que a Constituição organize os poderes

do Estado e a vida social de forma a assegurá-lo a cada pessoa.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Reconhece-se que o direito à saúde inclui a disponibilidade, acessibilidade,

aceitabilidade e qualidade, com pertinência intercultural e deve ser sensível às

necessidades de gênero e o ciclo de vida, também considerar as dimensões

individuais, familiares e comunitárias (MORALES; SEMINARIO, 2013). Contudo, o

predomínio de paradigmas biomédicos e restritivos tem se enraizado de forma

profunda em alguns países, realizando políticas focalizadas, verticais e sem

considerar o contexto sociopolítico (DELFINI; REIS, 2012). Para retratar a situação

na Guatemala do direito à saúde, garantido constitucionalmente, inicia-se

apresentando alguns indicadores sociais e de saúde.

No contexto guatemalteco as regiões rurais, com predominância de população

maia, possuem os menores índices de desenvolvimento humano, quando

comparadas com a capital do país. Mostrando iniquidades, que se entrecruzam com

aspectos étnicos e de gênero. A taxa de desnutrição continua a ser das mais altas de

América Latina, conjuntamente com os níveis de pobreza e mortalidade infantil

(FAO et al., 2019; PNUD, 2016, 2019).

Guatemala possui uma série de limitações para garantir ao acesso aos serviços

de saúde, sendo uma delas, o financiamento. O país possui um dos valores mais

baixos de gasto público em saúde da região (1,6% do PIB), e os gastos por

desembolso direto da população aumenta a iniquidade e representa um

componente importante do financiamento com relação ao PIB (INSTITUTO DE

SALUD INCLUYENTE, 2019) .

América Latina possui uma média de 2 profissionais médicos a cada 1000

habitantes, por debaixo do número nos países da OCDE (3,5), a situação da

enfermagem é mais precária ainda com 3 profissionais de enfermagem a cada 1000

habitantes. A Guatemala, conjuntamente com Honduras e Haiti possuem o número

mais baixo da região (0,4 para medicina e 0,1 para enfermagem), no caso do país

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

guatemalteco a concentração desse recurso encontra-se nas grandes capitais,

mostrando inequidades regionais na distribuição (OECD; THE WORLD BANK,

2020).

O debilitamento do sistema de saúde guatemalteco não é novo, de fato, possui

uma forte conexão e construção histórica. A continuação se detalha brevemente

cada período no desenvolvimento das políticas sociais e sanitárias no país.

(DES)CONFIGURAÇÃO HISTÓRICA DO SISTEMA DE SAÚDE NA

GUATEMALA

A configuração do Estado guatemalteco data de 1821 após a sua independência,

processo que não permitiu as liberdades para todos os povos e constitui-se como o

traslado do poder colonial para a oligarquia guatemalteca. As desigualdades

imperantes no país continuaram com a aprovação de leis que legitimavam

condições de trabalho em situação análoga a escravidão. Inclusive a Constituição de

1851 outorgava a condição de cidadão à população masculina, alfabeta e mestiça

(PNUD, 2010).

Com o decorrer do tempo a situação não mudou, com um Estado voltado para

o pagamento da dívida externa e baixa capacidade de investimento social e fortes

limitações sociais, culturais e políticas novamente legitimadas na nova Constituição

de 1857. Com o derrocamento produzido em 1871 instaurou-se o regime liberal,

dada a sua inspiração no positivismo e a doutrina política liberal, sob comando do

Geral Justo Rufino Barrios e Miguel García Granados (PNUD, 2010).

Nesse período conformou-se a o grupo nacional, que consistia em um grupo da

oligarquia, formado com o objetivo de criar oportunidades para consolidar o poder

econômico e principalmente político para garantir a manutenção da sua ideologia

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de domínio por meio da utilização do aparato burocrático. O poder do estado

cafeteiro exercido pela utilização da força violenta, ou não, principalmente sobre a

população indígena que continuava sendo uma característica desde a conformação

do estado e durante o período colonial. Posteriormente, durante o período do estado

autoritário da ditadura (1921-1944), o sistema de saúde tampouco foi fortalecido e

continuava a reproduzir o padrão de racismo existente. A abordagem sanitária com

características higienistas considerava as doenças infecciosas como dos pobres,

principalmente indígenas (PNUD, 2010).

Com as crises internacionais dos anos 1929, começou um período de desgaste

do aparato burocrática que colocava a flor de pele as debilidades da oligarquia no

poder com a implantação de políticas pro-cíclicas. Através de um golpe de estado

em 1944 e a posterior convocatória de eleições democrática, começa o chamado

período democrático desenvolvimentista.

Durante o período democrático começou-se a configurar a participação social e

cidadã, o investimento na área social e o fortalecimento do sistema educativo e de

saúde. Foi criado o Instituto de Seguridade Social e as políticas de reforma agrária

foram colocadas na agenda. No entanto, as estruturas tributárias não foram motivo

de reforma, e o gasto do estado ainda permaneceu baixo. O tempo deste período foi

curto dado que o presidente Jacobo Árbenz Guzmán foi derrocado por um golpe de

estado com apoio da igreja católica, a oligarquia e os Estados Unidos (GLEIJESES,

1989).

De tal forma, iniciou-se um novo período autoritário no qual foram

desmontadas as políticas agrarias e laborais criadas durante o governo democrático

e o baixo gasto social começa a diminuir ainda mais debilitando a estrutura do

Ministério de Saúde e o Instituto de Seguridade Social. O modelo económico que se

consolidou durante esse período foi concentrador e excludente no âmbito social. Os

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

movimentos guerrilheiros foram conformando-se devido à exclusão existente e à

ausência do Estado para o povo. Com isto, o papel do governo concentrou-se na

ofensiva contra insurgente (VERDUGO, 2005).

Para Verdugo (2005), a principal política sanitária da época foi precisamente a

ausência de sequer alguma ação. As principais medidas foram aditivas e

principalmente reativas à pressão da comunidade internacional, principalmente a

Organização Pan-americana da Saúde, Organização Mundial da Saúde, e a Agência

Internacional para o Desenvolvimento dos Estados Unidos. O avanço do

investimento em saúde no país foi direcionado aos chamados polos de

desenvolvimento, que consistiam em uma forma de garantir a presença do Estado por

questões de segurança nacional, restringindo a capacidade de mobilização social na

época da insurgência.

Em 1985, instaurou-se novamente o período democrático. Uma nova

constituição foi promulgada, na qual a saúde começa aparecer como dever do

estado no artigo 93, com ações de prevenção, promoção, recuperação, reabilitação,

coordenação e as complementares para garantir o mais completo bem-estar físico,

mental e social (GUATEMALA, 1985). Contudo, a implantação de medidas

sanitárias não caminhou nesse sentido e a provisão de pacotes básicos de serviços

principalmente materno-infantis continuaram sendo o foco principal.

A coordenação comunitária para a incidência e modificação dos determinantes

sociais da saúde era realizada por meio de voluntariados, com ausência de

investimento em recurso humano. A influência de organismos internacionais como

a OPS/OMS continuava definindo ações específicas reforçando ações parciais,

verticais e focalizadas, por meio do Plano de necessidades prioritárias de saúde para

América Central e Panamá (PSS/CAP). Em 1987, o Banco Mundial começava a

incidir nos países para garantir o financiamento em saúde por meio de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

copagamentos, seguros privados, estímulo do setor de organizações não

governamentais e descentralização dos serviços de saúde (VERDUGO, 2000).

No entanto, não existiram mudanças significativas no gasto social e as

propostas de modernização do aparato estatal receberam fortes críticas do setor

privado organizado o qual dificultou a sua implementação.

No que se refere à política de saúde, tanto o Ministério de Saúde quanto o

Instituto de Seguridade Social não tiveram modificações devido à necessidade de

aumentar o orçamento para viabilizar as propostas, para o qual era preciso realizar

a reforma tributária, que também seria suspendida pela oposição. As políticas

implementadas durante o período democrático caracterizaram-se por ser de curto

prazo, reativas sem um planejamento estratégico e de fortalecimento da capacidade

institucional.

A reforma setorial (1991–1999), colocou na agenda a redução do gasto social em

saúde, o pagamento por serviços a provedores privados que teriam a

responsabilidade de levar pacotes básicos itinerantes de saúde à população

materno-infantil sem considerar as diferenças sociolinguísticas ou de gênero.

Propiciou-se a flexibilização laboral das/os trabalhadoras/es de saúde e modificou-

se um esquema redistributivo e solidário por outro que estratifica às pessoas pela

sua capacidade de pagamento (VERDUGO, 2000).

O tratado de paz assinado em 1996 foi possível devido ao contexto regional de

finalização de períodos de guerra, e consensos importantes sobre as causas

estruturais da guerra como a ausência do estado, iniquidades regionais, falta de

reconhecimento dos povos originários (GRANOVSKY-LARSEN, 2017). Na prática,

a reforma setorial de saúde devia caminhar nesse sentido para combater as causas

as iniquidades, entretanto, o que se materializou com a reforma foi uma diminuição

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

paulatina do gasto e a concentração da distribuição de recursos em departamentos

com altos índices de desenvolvimento humano e menores índices de pobreza.

Posteriormente, começa um período (2000–2009) no qual se deram

modificações para eliminar o copagamento e uma maior presença do Estado. Foram

incorporadas novas modalidades de serviços de saúde como os Centros de Atenção

Permanente (CAP) e os Centros de Atenção Materno Infantil (CAIMI), ambos

voltados para a atenção do parto e, o segundo para atenção de parto cesariano.

Foram aprovadas leis para atenção do HIV, a integração do programa de saúde

reprodutiva e a lei de acesso universal e equitativo a serviços de planificação

familiar. A participação social baseada no voluntariado foi modificada para garantir

a participação como forma de exercício de cidadania e não para a prestação de

serviços de saúde (FLORES, 2008).

Entretanto, na prática, nos últimos anos (2009–2020) tem-se mostrado pouco

interesse em aumentar o gasto em saúde, inversão social ou políticas sociais

(HERNÁNDEZ MACK, 2020). A agenda em saúde tem sido debilitada por

processos de crise política e institucional devido aos casos de corrupção e uma

agenda que continua postergando o social e continua com a lógica de acumulação

de capital de forma que perpetua as iniquidades no país.

POLÍTICAS PARA CONTER A PANDEMIA DA COVID-19 NA GUATEMALA

A resposta para o novo coronavírus está intimamente relacionada com o

desenvolvimento histórico do sistema de saúde na Guatemala que debilitou a

capacidade institucional do Ministério de Saúde, tanto para a execução

orçamentária quanto na falta de capacidade instalada de serviços de saúde e baixa

densidade de recurso humano para atender a população, inclusive antes da crise.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O primeiro caso foi confirmado na Guatemala no dia 13 de março, desde esse

momento começou a implementação de medidas individuais, higienistas e

hospitalocêntricas. No início, as medidas foram legitimadas pela população devido

à rapidez do isolamento social, mas no decorrer do tempo o isolamento demostrou

que a realidade do país, não se compara com a de outros países que tomaram a

mesma decisão (AQUINO et al., 2020). O problema não foi necessariamente o

isolamento social, fechamento completo do transporte público e toque de recolher

parcial, senão a dinâmica social e de pobreza do país com os 60% de trabalhos

informais no nível nacional que sem políticas de proteção social, o ficar em casa

seria impossível para garantir os direitos básicos à essa população.

Por exemplo, os mercados cantonais são estruturas para venda de alimentos,

frutas e verduras nas comunidades, com a ausência de transporte muitas pessoas

caminhavam horas para adquirir alimentos e os preços aumentaram devido à

contratação de serviços particulares, inclusive a ajuda humanitária teve problemas

de mobilização. O decreto de cordões sanitários fechados com uso de estruturas

militares obstaculizou o avanço de alimentos em algumas comunidades indígenas.

A incapacidade das famílias agriculturas para vender seus produtos aumentou a

situação de vulnerabilidade. A insegurança alimentar aumentou, inclusive

quintuplicou na população menor de 5 anos (OCHA, 2020a, 2020b).

Na capital do país o fechamento comercial foi parcial, colocando toque de

recolher em um contexto de abertura do comércio sempre que cumpram com

medidas de proteção. Por exemplo, maquilas, centrais de atendimento, entre outros

continuaram trabalhando toda vez pudessem outorgar a seus trabalhadoras e

trabalhadores de álcool em gel e máscara facial. Inclusive as pessoas que ainda

estavam trabalhando sem acesso a carro, tinham que ocupar uma parte do seu

salário para mobilização diária. Inclusive nas semanas de maior adesão ao

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

isolamento social as ruas encontravam-se igual de movimentas do que antes da

pandemia (SHADMI et al., 2020).

O fortalecimento do sistema de saúde foi planejado como um hospital de

campanha, no entanto, pronto foi demonstrando a sua falta de planejamento,

infraestrutura e os profissionais da saúde expostos sem equipamento de proteção

individual (FLORES, 2020). Apesar da existência de recursos o hospital foi equipado

principalmente com doações de empresas privadas, mostrando como o

filantrocapitalismo sanitário (BIRN; RICHTER, 2016) esteve muito presente para

legitimar a empresa privada, que insidiou na tomada de decisões no governo. No

caso dos testes, o laboratório nacional não foi descentralizado e fortalecido, no lugar

será terceirizada a realização de testes de antígeno, o principal que está sendo

disponibilizado na rede pública de saúde. Este tipo de ações não permitem o

investimento duradouro no sistema de saúde.

Em maio, dois meses do primeiro caso na Guatemala, uma comissão foi criada

com o intuito de apoiar na formulação de medidas (GUATEMALA, 2020), mas as

medidas continuaram sendo as mesmas, e sua conformação não contribuiu na

ampliação do diálogo com a sociedade dada a homogeneidade dos seus integrantes.

A natureza da sua aprovação foi principalmente para legitimar as ações e decisões

de governo sem considerar modificar ou fortalecer o sistema de saúde. A grande

ausente do processo de políticas públicas tem sido a atenção primária em saúde, e

o seu fortalecimento por meio de distribuição de kits com medicamentos, com

inclusão de fármacos com limitada evidência científica (MINISTERIO DE SALUD

PÚBLICA Y ASISTENCIA SOCIAL, 2020; NÓMADA, 2020).

As campanhas de informação foram restritas e a ocorrência de casos foi

divulgada via boletins epidemiológicos divulgados pelo presidente da república,

sem ser possível conhecer a distribuição por renda, etnia ou outras variáveis além

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

do sexo biológico. A culpabilização da sociedade da detecção de novos casos

divulgados pelo presidente foi uma constante, incluindo a população migrante, sem

ser considerada a precarização histórica do sistema e a ausência de planificação

estratégica para fazer frente a qualquer catástrofe sanitária no país.

Restringiu-se a participação social já ausente pela incapacidade da sociedade

civil de acessar dados do sistema de informação que permitisse a fiscalização das

ações governamentais. As diferentes mesas de diálogo para discutir as principais

medidas a serem tomadas, não contemplaram o setor mulheres, povos indígenas,

população com deficiência e LGBTIQ (MATAMOROS, 2020; MONZÓN; PERUCH,

2020).

Os programas de mitigação dos efeitos da pandemia aprovados foram a

suspensão de contratos, o auxílio único ao comércio popular (US$130), o fundo de

créditos de capital de trabalho para empresas afetadas pela crise, bônus salarial para

profissionais da saúde, subsídio parcial ao pagamento de energia elétrica,

ampliação do programa de suporte econômico para idosos, bônus familiar (entrega

de US$130 mensais por três meses), dois programas de ajuda alimentaria direta com

apoio da comunidade internacional e o programa de alimentação escolar que

entrega uma cesta alimentaria com um valor aproximado a US$7.31.

Enquanto estruturas democráticas foram desmanteladas para poupar recursos,

empréstimos milionários foram autorizados pelo Congresso Nacional para

financiar os dez programas de mitigação as consequências da pandemia, mas que

não tiveram efeitos positivos suficientes por causa da debilidade institucional,

ausência de mecanismos claros e falta de comunicação com a população (PARAÍSO

DESIGUAL; PACTO CIUDADANO; OXFAM, 2020), outros programas como o

bônus para profissionais de saúde não foram executados, inclusive os salários

também foram retidos.

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Nas comunidades com cordões sanitários existem perdas de fontes de trabalho,

flexibilização laboral, crise alimentaria, impactos econômicos e sociais severos,

congelamento da economia popular, e sobre-exploração das/os trabalhadoras/es de

serviços (BASILE, 2020), sem políticas de proteção social. Ainda com suas baixas

taxas de realização de testes, a flexibilização das medidas de isolamento social

chegou antes do esperado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A desigualdade e iniquidade são estruturais na Guatemala, desde a

conformação do Estado, o qual não permite a garantia do direito à saúde para toda

a população. A determinação social da saúde denota uma ausência do estado no

investimento para garantir direitos básicos como moradia, alimentação, trabalho,

entre outros, o qual permite padrões de saúde, doença e morte diferenciados entre

áreas rurais e urbanas, periféricas e centrais, os diferentes povos maia, xinka,

garífuna e mestiço.

No trajeto histórico da saúde na Guatemala, é possível identificar a ausência de

implementação de políticas de durante os períodos autoritários e na história recente

do país. O período de reformas e ajuste estrutural parece ser o único projeto de

saúde claro, porém para garantir uma orientação neoliberal. O fortalecimento do

sistema de saúde não tem sido uma prioridade ao longo da história do país. A

realidade no país reflete um histórico de um Estado residual com baixo potencial de

promoção de justiça social baixo a premissa da diminuição do gasto público e uma

debilidade das capacidades estatais para formular e implementar projetos para o

bem-estar da população.

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O Ministério da Saúde não aparece como um ator fundamental para a

organização das respostas a pandemia, a tomada de decisão tem se concentrado no

governo central, sem o consenso da sociedade civil convidada se recolher, no

contexto da pandemia e uma importância superior ao setor privado organizado. As

medidas sanitárias não fortalecem e nem sequer questionam a necessidade de um

planejamento estratégico de longo prazo.

Nesse contexto, parece necessário realizar uma modificação do modelo de

atenção, da definição de saúde, e reivindicar um Estado presente, situação que

deverá ser atravessada pela ideia de uma reforma sanitária para a Guatemala com

equidade de gênero e pertinência intercultural.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

OS IMPACTOS DA PANDEMIA E A PRECARIZAÇÃO DO

TRABALHO DE TRANSEXUAIS E TRAVESTIS

Renan Pereira da Silva de Souza251


Thiago Rodrigues dos Santos Pacheco252

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo tratar da questão da marginalização que mulheres
transexuais, travestis e transgênero vivenciam nos seus espaços sociais, em virtude da
invisibilidade estrutural do Estado, que se agravou ainda mais nesse período de pandemia.
Pretende-se analisar os impactos do COVID-19 na população transexual, considerando que
grande parte da população está tendo que sobreviver com R$ 600,00 (seiscentos reais),
pagos através do auxilio emergencial. Busca-se entender que essa pandemia e
consequentemente o isolamento social é um problema de saúde pública que afeta a toda a
população, em especial a população preta e periférica, e corpos trans, que estão morrendo
vítima de violência doméstica e suscetível a contaminação por conta da prostituição, sua
última fonte de renda.

Palavras Chave: Transexualidade; Empregabilidade; Informalidade; COVID-19;


Marginalização.

RESUME
The present work aims to address the issue of marginalization that transsexual, transvestite
and transgender women experience in their social spaces, due to the structural invisibility
of the State, which worsened even more in this pandemic period. It is intended to analyze
the impacts of COVID-19 on the transsexual population, considering that a large part of the
population is having to survive with R $ 600.00 (six hundred reais), paid through
emergency aid. It seeks to understand that this pandemic and consequently social isolation
is a public health problem that affects the entire population, especially the black and
peripheral population, and trans bodies, who are dying as a victim of domestic violence
and susceptible to contamination due to prostitution, their last source of income.

Keywords: Transsexuality; Employability; Informality; COVID-19; Marginalization.

251
Advogado. Mestrando em Ciências Jurídicas e Sociais no Programa de Pós Graduação em Sociologia e
Direito da UFF (PPGSD/UFF) e membro do grupo de pesquisa Laboratório Empresa e Direitos Humanos (LEDH-
UFF). E-mail: renanpssouza@yahoo.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3927340018219483.
252
Advogado. Especialista em Processo Civil pela UFF. Mestrando em Ciências Jurídicas e Sociais no Programa
de Pós Graduação em Sociologia e Direito da UFF (PPGSD/UFF).E-mail:thiago_pachecoo@hotmail.com. Lattes
http://lattes.cnpq.br/4372685380980627.

884
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

INTRODUÇÃO

O mundo vivencia um período de catástrofe no desenvolvimento sustentável e

na evolução humana por conta do Covid-19, um vírus que teve sua primeira

incidência no continente Asiático que tem causado uma nova forma de repensar as

relações interpessoais em âmbito global. Os impactos que esse novo “agente

microscópico” trouxe para o mundo fez emergir um novo olhar sobre o pensamento

capitalista tanto na questão da produção e gerenciamento do próprio capital, como

na forma de pensar o mercado para além das relações sociais, sobretudo por conta

dos impactos nas relações trabalhistas, principalmente as informais.

Sem dúvidas, o vírus atingiu severamente o emprego informal. Afinal, a

circulação de pessoas, que é vital à informalidade, restou prejudicada com a

implementação do isolamento social. E assim, esses trabalhadores, que não têm

nenhum amparo das legislações trabalhistas, sofrem ao verem suas rendas

despencarem, isso quando não se veem sem meios de subsistência.

Nesse ínterim, a proposta do presente trabalho é fazer uma reflexão, a partir

do livro de Boaventura Sousa Santos “A cruel pedagogia do Vírus”, acerca dos

impactos do COVID-19 na vida de trabalhadores informais, em especial as mulheres

transexuais que carregam como seu marcador social a informalidade como

subsistência.

Dessa forma, o presente trabalho se faz oportuno por se tratar de um tema

atual, que extrapola o campo jurídico e que contribui não somente para avanços

nessa temática, mas também, para subsidiar processos de transformação social em

meio a Pandemia do Covid-19. Afinal, tem como objeto a proteção de um vulnerável

grupo, que diariamente tem sua dignidade humana e seus direitos fundamentais

dilacerados em nossa sociedade.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. A PANDEMIA DO COVID-19 À LUZ DE BOA VENTURA DE SOUSA DIA

Em sua obra A cruel pedagogia do vírus, Boaventura de Sousa Santos, a partir

de um amplo olhar sociológico, se propõe a refletir sobre o cenário do Covid-19 com

o fito de descortinar aspectos não visíveis dessa pandemia, sobretudo do ponto de

vista social.

Além disso, o autor busca demonstrar, também, que o atual cenário é reflexo de

todo um processo histórico, cultural e político anterior, referente ao modo de vida

da humanidade sob os efeitos do capitalismo, bem como do aprofundamento do

neoliberalismo enquanto modelo econômico.

A normalidade da excepção.Desde a década de 1980– à medida que


o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do
capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do sector
financeiro–, o mundo tem vivido em permanente estado de crise.
Uma situação duplamente anómala. Por um lado, a ideia de crise
permanente é um oximoro, já que, no sentido etimológico, a crise é,
por natureza, excepcional e passageira, e constitui a oportunidade
para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas. Por
outro lado, quando a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos
factores que a provocam. Mas quando se torna permanente, a crise
transforma-se na causa que explica tudo o resto. Por exemplo, a
crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas
políticas sociais (saúde, educação, previdência social) ou a
degradação dos salários. E assim obsta a que sepergunte pelas
verdadeiras causas da crise. O objectivo da crise permanente é não
ser resolvida. Mas qual é o objectivo deste objectivo? Basicamente,
são dois: legitimar a escandalosa concentração de riqueza e boicotar
medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe
ecológica.Assim temos vivido nos últimos quarenta anos. Por isso,
a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a
população mundial tem vindo a ser sujeita. Daí a sua específica
periculosidade. Em muitos países, os serviços públicos de saúde
estavam mais bem preparados para enfrentar a pandemia há dez ou
vinte anos do que estão hoje. (SANTOS. 2020, pg. 5-6)

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Observa-se que para o autor a pandemia, apenas descortinou e potencializou o

vírus da desigualdade, que durante anos corroí o nosso tecido social. Nota-se ainda,

que tal vírus sempre teve como pilar de sustentação a consolidação da estrutura

capitalista e o aprofundamento do neoliberalismo. Daí resulta a ideia de

normalidade da excepção

Por fim, no primeiro capítulo, ele argumenta que argumenta que o momento

vivido com a pandemia do coronavírus, dada sua característica de

excepcionalidade, é propício ao surgimento de novos conhecimentos acerca das

instituições que compõem a nossa sociedade. São constatações que, em situação de

‘normalidade’, não se encontrariam tão visíveis aos olhos dos cidadãos, mas se

tornam perceptíveis mediante a uma situação atípica, que acaba por afetar grande

parte da população mundial.

Outro ponto importante salientado pelo autor são os efeitos da quarentena nos

grupos sociais. Segundo ele, os grupos mais vulneráveis, que ao logo dos anos

foram marginalizados, para não dizer esquecidos, são os que mais sentem esses

efeitos:

Qualquer quarentena é sempre discriminatória, mais difícil para uns grupos


sociais do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores,
cuja missão é tornar possível a quarentena ao conjunto da população. Neste
capítulo, porém, analiso outros grupos para os quais a quarentena é
particularmente difícil. São os grupos que têm em comum padecerem de
uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela.
Tais grupos compõem aquilo a que chamo de Sul. Na minha concepção, o
Sul não designa um espaço geográfico. Designa um espaço-tempo político,
social e cultural. É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela
exploração capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual.
Proponho-me analisar a quarentena a partir da perspectiva daqueles e
daquelas que mais têm sofrido com estas formas de dominação e imaginar,
também da sua perspectiva, as mudanças sociais que se impõem depois de

887
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

terminar a quarentena. São muitos esses colectivos sociais. (SANTOS,


2020,pg.15)

Dessa forma, no terceiro capítulo, “A sul da quarentena”, o autor destaca que

as mulheres, os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos, os

trabalhadores da rua, por exemplo, sofrem muito mais com o isolamento social que

outros indivíduos pertencentes a grupos privilegiados sob o ponto de vista

socioeconômico. Ao elencar os grupos das minorias que mais são afetadas,

Boaventura acaba por mostrar que a quarentena acentua, ainda mais, as diferenças

entre as classes sociais, as injustiças, a exclusão e o sofrimento de determinados

grupos.

Em outras palavras, o Covid-19 ao se juntar ao vírus do apartheid social,

potencializou-se e devastou o tecido social de certos grupos, o qual já se encontrava

bastante debilitado em virtude séculos de segregação, marginalização e

invisibilidade, como é o caso das mulheres transexuais.

2. A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DE PESSOAS TRANSEXUAIS NO

PERIODO DE PANDEMIA.

A empregabilidade de pessoas trans no período de pandemia, de uma certa

forma é um dos assuntos mais sensíveis quando estamos lidando um mercado de

trabalho heteronormativo e cis, que por muito tempo determinou a divisão do

trabalho baseado no sexo biológico, e com isso inferiorizando o trabalho feminino.

Quando estamos lidando com pessoas transexuais o nível de exclusão beira a

invisibilidade, uma vez que os espaços de trabalho são negados pela

inconformidade das empresas aceitarem em seu quadro de funcionários pessoas

que se identificam com seu nome social e gênero de acordo com sua construção.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Pretende-se, num primeiro momento fazer uma breve fala sobre o processo de

marginalização que mulheres transexuais, travestis e transgênero vivenciam no

seus espaços sociais, em virtude da invisibilidade do Estado, que sequer garante o

mínimo existencial para essas pessoas, se considerarmos que grande parte da

população está tendo que sobreviver com R$ 600,00 (seiscentos reais), pagos através

do auxilio emergencial; num pais onde o salário mínimo já foi declarado

inconstitucional. Precisamos entender que essa pandemia e consequentemente o

isolamento social (sem criticá-lo) é um problema de saúde pública que afeta a toda

a população, em especial a população preta e periférica, vide os dados do Ministério

da Saúde, onde se concentra o maior número de casos.

Nesse seguimento, o processo de empregabilidade de pessoas transexuais

passa por todo uma luta contra a invisibilidade das empresas, e também vai se

desdobrando no processo de luta pela sobrevivência dessas mulheres que estão nas

ruas se prostituindo, sob condições desumanas e carecendo de saúde pública

adequada.

Antes de discorrer sobre o processo de marginalização de pessoas

transexuais dos espaços de trabalho, precisamos entender quem são esses

indivíduos, e como o reflexo da sociedade hostiliza sua conduta de vida e sua

construção social. Incialmente, é importante entender, que o termo gênero é

construído sob um viés patriarcal de uma ciência limita os corpos, usando como

base a diferença sexual para legitimar o discurso; até porque dentro do campo da

pesquisa medica não tem como afirmar a centralidade nos gêneros masculinos e

femininos (vide pessoas intersexo - uma pessoa que naturalmente, ou seja, sem

qualquer intervenção médica, desenvolve características sexuais parte da definição

típica de sexo masculino e do sexo feminino); tanto que o masculino, quanto

feminino só conseguem encontrar sua inteligibilidade quando referenciado pela

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

diferença sexual, através de um discurso puramente biológico conferindo a

heterossexualidade um regime de poder, tornando desviantes e “não naturais”

todos os processos que fogem dessa “normalidade”.

Nesse sentido, podemos perceber que nosso gênero e sexualidade são

construídos muito antes de nascermos, se considerarmos esse aprisionamento as

normas de gênero; com isso somos apresentados a uma única possibilidade de

construção identitária.

No que se refere a transexualidade, Berenice Bento aponta que:,


“Afirmar que a transexualidade é uma experiencia identitária, que
está relacionada a capacidade dos sujeitos construírem novos
sentidos para o masculino e o feminino, não significa esquecer a dor
e a angustia que marcam as subjetividades daqueles que sentem e
desejam viver experiencias, que lhe são interditas por não terem
comportamento considerados apropriados para seus sexos”.
(BENTO, 2008, pag. 22)

Nessa continuação, a construção da identidade transexual está além da

concepção masculino e feminino, estando condicionado a identificação dos seus

corpos dentro da sociedade, não se limitando a construção primitiva da

heterossexualidade, por isso, que desde o início essas pessoas sofrem violência,

começando no seu ambiente familiar, onde ocorre os primeiros sinais de transfobia

recreativa, e ainda tendo que lidar com as violências mais comuns como a

negligencia familiar, descrédito dos espaços sociais, falta de educação de qualidade

e a exclusão do mercado de trabalho, por conta dos padrões presentes na

sexualidade binária, ocasionando um sentimento de não pertencimento e

impotência, fatores que ajudam no processo de marginalização desses indivíduos.

É importante refletirmos que as desigualdades no Brasil é um fator que

evidencia esse grande número de mortos pelo vírus. Uma matéria do G1, mostrou

890
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que metade da população vive com uma renda média de cerca de R$ 400,00 e em

condições precárias de moradia, sem saneamento básico como esgoto e água

potável. Nosso Sistema Único de Saúde, o SUS, atende mais de 190 milhões de

pessoas, sendo que 80% delas dependem exclusivamente dele para qualquer

atendimento de saúde. Por sua vez, o censo demográfico do IBGE, mostra que 11,4

milhões de pessoas vivem em favelas. Isso corresponde à 6% da população com

grandes chances de contaminação se nada for feito253.

Levando em consideração as reflexões sobre a triste verdade por de trás da

pandemia, chamo atenção para essas mulheres que estão inseridas nesse modelo

patriarcal excludente e que se encontram nas mazelas das desigualdades; essas

mulheres que tem como sobrevivência seus corpos, haja vista que os espaços de

trabalho ainda são negados, que sofrem com a estigma patologizada da sociedade

e que são dentre as minorias, as mais afetadas nesse período de pandemia.

Por conseguinte, há nesse processo de exclusão a questão da falta de políticas

públicas que visa inserir pessoas transexuais, travesti e transgênero no mercado de

trabalho, o que ocasiona grandes desconfortos e exclusão no âmbito social

(violências sociais na construção de identidade e as negações sociais que lhe são

impostas desde muito cedo). É muito difícil para uma mulher transexual se inserir

no mercado de trabalho onde o patriarcado é predominantemente machista e

excludente, e que ainda se faz valer da mulher como algo descartável ou

inferiorizada.

Outro ponto a observar é a política de contratação das empresas que

promovem um recorte sobre modulação dos corpos trans para inserção no mercado

de trabalho, em meio à violência transfobica lastreada por outros marcadores sociais

253
Brasil tem 11,4 milhões morando em favelas e ocupações, diz IBGE. G1, 21/12/2011. Disponível em:
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/12/brasil-tem-114-milhoes-morando-em-favelas-e-ocupacoes-diz-
ibge.html. Acesso em: 25/09/2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que reafirmar a dinâmica do nosso país. Nesse sentido é importante fazer essas

considerações, tendo em vista que algumas transexuais, transgêneros e travestis se

valem da passabilidade (cisplay), 254interpretando conceitos cisgenero para evitar

constrangimentos, discriminação e outros absurdos nos espaços de trabalho (A

passabilidade (de “passar por”) é a característica de sujeitos trans passarem por

sujeitos cis, conseguindo apagar ao máximo marcas do sexo imposto ao seu

nascimento e colocarem em si características sociais do sexo com o qual se

identificam e desejam ser reconhecidos).

Nessa perspectiva, o preconceito já acontece na fase de recrutamento, tendo em

vista a diferença fisionômica em relação aos dados constantes no documento de

identificação. E mesmo quando conseguem emprego, o preconceito não acaba. São

desrespeitadas diariamente em seu trabalho, não são tratadas pelo nome social, e

por vezes patrões “esquecem” e tratam de acordo com o nome biológico.

O reflexo dessa exclusão é a informalidade como forma de sobrevivência e

ocupação dos espaços. Não podemos esquecer que cerca de 90% (relatório ANTRA)

dessas mulheres estão inseridas na prostituição correndo o risco de ser espancada e

morta, sem garantia de nada, e expostas as drogas, colocando o Brasil entre os

primeiros que mais mata transexuais (relatório de 2019). A própria OIT reconhece a

dificuldade do Brasil em empregar pessoas Trans, tendo em vista que essas pessoas

ainda são invisíveis em muitos espaços, e para além disso, a inclusão ainda encontra

barreiras em relação conservadorismo.

254
A passabilidade (de “passar por”) é a característica de sujeitos trans passarem por sujeitos cis, conseguindo
apagar ao máximo marcas do sexo imposto ao seu nascimento e colocarem em si características sociais do
sexo com o qual se identificam e desejam ser reconhecidos. Essa é uma ação que aponta para produção social
do gênero quando tais sujeitos trabalham sua imagem, sua gestualidade, as inflexões de fala, modos de agir e
se apresentar, enfim, uma série de marcadores que imputam a um corpo marcadores de gênero. Disponível
em:
https://www.editorarealize.com.br/revistas/enlacando/trabalhos/TRABALHO_EV072_MD1_SA36_ID649_160
62017182251.pdf

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nesse ponto, a prostituição como forma de sobrevivência torna-se


última ou única escolha de mulheres trans, fugidas de suas casas,
violentadas, e marginalizadas no âmbito da sociedade. Silva, Costa
e Nascimento a definem a prostituição como uma “prática de
comercializar serviços de natureza sexual [...] exercida mediante
negociação direta com o cliente sobre os serviços a serem prestados,
e os preços variam de acordo com a performance do profissional”
(SILVA, COSTA, NASCIMENTO, 2010, p. 110/115)

É importante vislumbrar o cenário atual de governo que adota uma política

anti-genero, antidemocrática, anticientífica, haja vista que essas mulheres carecem

de políticas públicas especificas, porque não são reconhecidas pelo

conservadorismo como pessoas de fato e muito menos de direito (temos políticas

voltadas para os corpos cisgeneros). O Brasil é o país que mais mata travesti e

transexual e também aquele que mais inviabiliza ao acesso à educação, aos espaços

de trabalho, as políticas de saúde.

Nesse momento, precisamos entender sobre os reflexos da transfobia no

brasil, que é uma triste realidade da sociedade, onde temos mulheres cada vez mais

precarizadas, porque os espaços de saúde não estão preparados, e temos uma

população que não tem acesso a esses espaços, impactando no índice de

mortalidade dessas pessoas. Outro ponto importante é a questão do não

reconhecimento do governo em prestar assistência social para essas mulheres, se

consideramos que cerca de 70% delas não conseguiram acessar a renda básica

emergencial, e que tem na prostituição sua fonte de renda, hoje estão sem sua fonte

de renda e sem a ajuda do governo, por conta do isolamento. A ausência de

oportunidades para as transexuais e travesti decorrente da discriminação e

invisibilização, as colocam cada vez mais a margem da sociedade, empurrando-as

para o mundo desumano, inóspito e insalubre da prostituição. É importante

observar que diante do alto número de mulheres transexuais e travesti no mundo

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

do meretrício se faz necessário a implementação de políticas públicas, para que elas

possam ter dignidade, visando fugir na vulnerabilidade social.

Segundo dados do ANTRA (Associação Nacional de Travestis e

Transexuais), houve um aumento de 48% no índice de violência nesse período de

pandemia, em virtude daquelas que continuaram na rua tendo que trabalhar para

ter o que comer dentro de casa. É importante estruturar o pensamento com os cortes

dos governos neoliberais, onde tivemos a PEC 55 (congela gastos com saúde e

educação) que trouxe uma realidade mais cruel para parcela mais pobre e para essas

mulheres que precisam do sistema de saúde, que além de despreparada não dão

conta.

É importante também trazer o conceito de “invisibilidade” que é onde

encontramos essas pessoas, em majoritário pretas, pobres, sem acesso aos serviços

mínimos de governo, e que causa um desespero para nós ativistas que não

conseguimos mapear essas pessoas, para poder ajudar, por conta desse processo de

exclusão. Outro dado importante é sobre as questões de insumos (álcool gel e sabão)

que garantem a segurança para a população, evitando uma possível contaminação.

Esse material que é “básico” para a sociedade está fora do acesso de muitas pessoas

que sequer tem água encanada dentro de casa, e segundo ativistas LGBTQ+, as

mulheres trans estão a frente da campanha de arrecadação para que essas pessoas

tenham acesso. Essas mesmas mulheres que eu volto a falar que tiveram seu

benefício negado, que estão morrendo, seja de covid-19, seja de violência de gênero,

até mesmo de problemas psicológicos causados pela sociedade.

Com o cenário atual da pandemia afetando os espaços de trabalho de

pessoais informais, temos que refletir que grande parte dessas mulheres se

encontram marginalizadas, condicionadas à prostituição ou aos seus empregos

informais. Será que o governo tem feito algo para garantir a subsistência dessas

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mulheres já que essa renda emergencial não tem atendido as necessidades básicas

do trabalhador informal para sua sobrevivência.

“A indicação por parte da OMS para trabalhar em casa e em auto


isolamento é impraticável, porque obriga os trabalhadores a
escolher entre ganhar o pão diário ou ficar em casa e passar fome.
As recomendações da OMS parecem ter sido elaboradas a pensar
numa classe média que é uma pequeníssima fracção da população
mundial. O que significa a quarentena para trabalhadores que
ganham dia-a-dia para viver dia-a-dia? Arriscarão desobedecer à
quarentena para dar de comer à sua família? Como resolverão o
conflito entre o dever de alimentar a família e o dever de proteger
as suas vidas e a vida desta? Morrer de vírus ou morrer de fome, eis
a opção”. (SOUSA, Boaventura, 2020, pag. 38)

O reflexo da pandemia, ao qual descrevia Boa Ventura, encontra seu ápice no

processo de marginalização e separação da sociedade, enquanto há pessoas que

estão em isolamento social, outras precisam sobreviver em meio ao risco de

contaminação, o que nos faz refletir sobre a quem se destina as medidas da OMS.

A Antra lançou em março uma cartilha para orientar travestis e


mulheres trans que atuam na prostituição a se prevenir contra a
Covid-19. O documento conta com cuidados e medidas que podem
ser adotados por quem depende da prostituição, para que as pessoas
não sofram o baque econômico, nem tenham problemas com sua
saúde física e mental durante o isolamento, ofertando dicas de como,
por exemplo, trabalhar de forma virtual em plataformas e sites que
paguem por strip tease e exibição ao vivo on-line, além de evitar
receber clientes em casa, para não contaminar o ambiente pessoal.
(LIMEIRA, Wendel;NUNES, Anne, 2020)

Por fim, a realidade dessa pandemia para essas mulheres se desdobra nas

questões estruturais da sociedade, no sentido delas precisarem reafirmar o gênero,

para depois pensar no acesso as políticas assistenciais voltadas para mulheres cis, o

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que mostra a face desse cenário político, hoje no governo Bolsonaro inviabiliza o

diálogo de promoção de saúde e emprego para a população LGBTQ+.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que se pese o vírus não fazer distinção de pessoas, não levando em

conta marcadores sociais como identidade de gênero e condição financeira, é visível

que determinados atores sociais sofrem muito mais com as consequências e

repercussões do mesmo. O reflexo dessa exclusão é a informalidade como forma

de sobrevivência e ocupação dos espaços. Não podemos esquecer que cerca de 90%

(relatório ANTRA) dessas mulheres esta inseridas na prostituição correndo o risco

de ser espancada e morta, sem garantia de nada, e expostas as drogas, colocando o

Brasil entre os primeiros que mais mata transexuais (relatório de 2019). A própria

OIT reconhece a dificuldade do Brasil em empregar pessoas Trans, tendo em vista

que essas pessoas ainda são invisíveis em muitos espaços, e para além disso, a

inclusão ainda encontra barreiras em relação conservadorismo.

Nesse sentido, é inquestionável que por serem excluídas do mercado de

trabalho formal e por não terem acesso à maior parte das políticas públicas sociais,

os impactos do covid-19 são ainda mais perversos nas mulheres transexuais e

travestis, as quais sobrevivem graças a atividades informais e autônomas. Com o

cenário atual da pandemia afetando os espaços de trabalho de pessoais informais,

temos que refletir que grande parte dessas mulheres se encontram marginalizadas,

condicionadas a prostituição. Será que o governo tem feito algo para garantir a

subsistência dessas mulheres já que essa renda emergencial não tem atendido as

necessidades básicas do trabalhador informal para sua sobrevivência.

896
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Ressalta-se, inclusive, que algumas dessas atividades já eram envoltas de

estigmas e preconceitos como é o caso da prostituição. E assim, por sofrerem um

triplo estigma (o de ser mulher, o da prostituição e o da transexualidade), em tempo

de pandemia essas mulheres tornam-se ainda mais “invisíveis” aos olhos da

sociedade, o que potencializa as consequências e os efeitos do vírus nesses atores

sociais.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

SISTEMA PENITENCIÁRIO E PANDEMIA: EFETIVIDADE DA

RECOMENDAÇÃO Nº 62 DO CONSELHO NACIONAL DE

JUSTIÇA (CNJ) NO SISTEMA CARCERÁRIO NORTE

RIOGRANDENSE

Bruno Felipe Barboza de Paiva255


Francisco Pablo Fernandes de Oliveira256

RESUMO
O presente trabalho tem como problema central a análise das ações, em âmbito nacional e
estadual, para assegurar o direito à saúde das pessoas encarceradas no Estado do Rio
Grande do Norte, demonstrando a atual realidade do sistema prisional norte riograndense,
as principais disposições da Recomendação nº 62, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ,
quanto ao tratamento das pessoas encarceradas, com as consequências geradas pela
pandemia da COVID-19. Este estudo justifica-se, primordialmente, considerando as
condições precárias e as sistemáticas violações de direitos fundamentais das pessoas
privadas de liberdade que acabam por sofrer, ainda mais, com o avanço da pandemia
causada pela COVID-19 no sistema prisional. Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa
qualitativa e quantitativa, tendo por base diplomas legais, posicionamento doutrinário e os
números sobre o impacto da pandemia no espaço carcerário do Rio Grande do Norte. O
trabalho estruturou-se em três partes, sendo a primeira dedicada a feitura de um panorama
sobre o sistema carcerário brasileiro, uma segunda dedicada a abordar linhas gerais sobre
o direito à saúde das pessoas presas e uma terceira e última parte destinada à análise
específica das medidas adotadas pelo Estado brasileiro, com recorte no Rio Grande do
Norte, no tratamento da pandemia da COVID-19 no sistema prisional. Com isto, concluiu-
se que as medidas adotadas para evitar que o novo coronavírus chegasse ao sistema
prisional não foram suficientes, figurando a adoção de políticas públicas de prevenção e
saúde efetivas e a reforma do sistema prisional, como os principais desafios a serem
superados.

255
Mestrando em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido, e-mail:
brunof_barboza@hotmail.com, link para currículo na plataforma Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6334824308322475.
256
Pós-graduando em Direito Constitucional e Tributário pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido e em
Direito Criminal e Processo Penal pela Faculdade Católica do RN, e-mail: oliveira_pablo@outlook.com, link para
currículo na plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/2240567117708064.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Palavras-chave: Sistema penitenciário; Direitos da pessoa presa; Direitos Humanos;


Pandemia; Resolução nº 62.

ABSTRACT
This paper has as its central problem the analysis of national and local level actions to
ensure the right to health of people in prison in the State of Rio Grande do Norte
penitentiary system, demonstrating the current reality of the prison system in Rio Grande
do Norte, the main provisions of Recommendation nº 62, from the National Council of
Justice - CNJ, regarding the treatment of incarcerated people, with the consequences
generated by the COVID-19 pandemic. This study is justified, primarily, considering the
precarious conditions and systematic violations of fundamental rights of persons deprived
of their liberty who end up suffering, even more, with the advance of the pandemic caused
by COVID-19 in the prison system. To this end, a qualitative and quantitative research was
developed, based on legal diplomas, doctrinal positioning and figures on the impact of the
pandemic on the prison space in Rio Grande do Norte. The work was structured in three
parts, the first dedicated to providing an overview of the Brazilian prison system, a second
dedicated to address general guidelines on the right to health of prisoners and a third and
final part aimed at the specific analysis of measures adopted by the Brazilian State, with a
focus on Rio Grande do Norte, in the treatment of the COVID-19 pandemic in the prison
system. With this, it was concluded that the measures adopted to prevent the new
coronavirus from reaching the prison system were not sufficient, figuring the necessity of
effective public health and prevention policies and the reform of the prison system, as the
main challenges to be overcome.

Key-Words: Penitentiary system; Rights of person in prison; Human rights; Pandemic;


Resolution nº 62.

INTRODUÇÃO

Assunto que encontra dificuldade de ser debatido socialmente, todavia que

não pode escapar às esferas de discussão diz respeito a realidade da população

carcerária, no sistema prisional do Rio Grande do Norte, ante os impactos causados

pela pandemia da COVID-19, especialmente no que diz respeito às medidas que

estão sedo implementadas para combater o avanço do vírus nesse ambiente.

900
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Assim, o presente trabalho tem como problema central a análise das ações,

em âmbito nacional e estadual, para assegurar o direito à saúde das pessoas

encarceradas no Estado do Rio Grande do Norte.

Desse modo, tem-se a seguinte hipótese de estudo: a Recomendação nº 62,

do CNJ, é suficiente para barrar a contaminação pelo COVID-19 entre as pessoas

presas em solo potiguar? Para além disso, quais as políticas públicas implementadas

pelo governo estadual para resguardar o direito à dignidade da pessoa humana

nesse ambiente?

Como forma metodológica, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa e

quantitativa, tendo por base diplomas legais, posicionamento doutrinário e os

números prisionais sobre o impacto da pandemia no espaço carcerário do Rio

Grande do Norte.

Os principais objetivos são demonstrar a atual realidade do sistema

prisional norte riograndense, as principais disposições da Recomendação nº 62, do

CNJ, quanto ao tratamento das pessoas encarceradas, especialmente com as

consequências geradas pela pandemia do COVID-19, assim como analisar a

efetividade das medidas adotadas em âmbito estadual

1. SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

O sistema prisional brasileiro, como fato público e notório, encontra-se

colapsado há muitos anos. As pessoas são amontadas em celas minúsculas, com

poucas condições de salubridade, o que acaba gerando fatores determinantes para

a propagação de diversas doenças.

No século XVIII, Cesare Beccaria já apontava:

901
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os castigos têm por finalidade única obstar o culpado de tornar-se


futuramente prejudicial à sociedade e afastar os seus concidadãos
do caminho do crime. (...) É necessário, portanto, escolher os meios
que devem provocar no espírito público a impressão mais eficaz e
mais durável e, igualmente, menos cruel no corpo do culpado. (...)
Qualquer excesso de severidade torna-se supérfula e, portanto,
tirânica. (BECCARIA, 2007, p. 49).

Dentro da atual configuração, todavia, o sistema prisional brasileiro se mostra,

não como espaço de ressocialização do preso, possibilitando a sua reinserção na

sociedade, mas sim locus de incentivo à criminalidade, criando novos infratores,

mais violentos e revoltados.

Nesse sentido, Foucault (2009, p. 222) alerta que “a prisão torna possível, ou

melhor, favorece a organização do meio de delinquentes, solidários entre si,

hierarquizados, pronto para todas as cumplicidades futuras”.

Dentro desse cenário de abandono do poder público, chancelando a derrocada

última do sistema penitenciário brasileiro, a superlotação, a ausência de serviço de

saúde adequado, além de rebeliões e, via de consequência, a impossibilidade de

retorno do preso ao convívio em sociedade, configuram-se como as marcas nefastas

das violações dos direitos mais elementares da população carcerária.

Como consequência dessa realidade, através da Arguição de Descumprimento

de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, o Supremo Tribunal Federal (STF)

reconheceu o chamado “estado de coisas inconstitucional” do sistema penitenciário

brasileiro, que pode melhor ser conceituado como:

(…) uma técnica decisória desenvolvida pela Corte Constitucional


da Colômbia, a partir da decisão SU-559, de 6 de novembro de 1997,
que visa enfrentar situações de violações graves e sistemáticas dos
direitos fundamentais cujas causas sejam de natureza estrutural,
isto é, decorram de falhas estruturais em políticas públicas adotadas

902
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pelo Estado, exigindo uma atuação conjunta de diversas entidades


estatais (GUIMARÃES, 2017, p. 80).

É então dentro de uma realidade que, por si só, é reconhecidamente

considerada incontitucional que o Brasil e, de forma mais específica, o Estado do

Rio Grande do Norte enfrenta uma crise sanitária, de ordem mundial, jamais vista

antes, causada pela disseminação da COVID-19.

2. Direito à saude das pessoas privadas de liberdade

O ambiente carcerário, que já era tão propenso ao desrespeito aos direitos

dos apenados, com o advento da pandemia causada pela COVID-19, passa por um

agravamento involuntário e para o qual não estava preparado, gerando um choque

ainda maior entre o direito de punir e a preservação dos direitos fundamentais dos

encarcerados:

Não se inverte, em hipótese alguma, o eixo que levam justiça penal


e direitos fundamentais a inevitável choque, quando, em verdade,
deveriam juntos caminhar neste processo de evolução e
amadurecimento dos institutos do direito processual penal, que na
maioria das vezes somente na retórica se pode dizer instrumento de
proteção do indivíduo perante o Estado. (SAMPAIO JÚNIOR, 2009,
p. 304).

Para tanto, é preciso destacar a necessidade de observância, em especial, do

resguardo ao direito à saúde dos presos, haja vista que, em razão da existência de

uma doença de tão fácil propagação, como é a COVID-19, o ambiente prisional

acaba sendo uma área de fácil e intensa disseminação da doença, expondo todos

que ali se encontram ao contágio iminente.

Dentro dessa conjuntura:

903
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A superlotação das celas, sua precariedade e insalubridade tornam


as prisões um ambiente propício à proliferação de epidemias e ao
contágio de doenças. Todos esses fatores estruturais, como também
a má-alimentação dos presos, seu sedentarismo, o uso de drogas, a
falta de higiene e toda a lugubridade da prisão fazem com que o
preso que ali adentrou numa condição sadia de lá não saia sem ser
acometido de uma doença ou com sua resistência física e saúde
fragilizadas (ASSIS, 2007, p. 75).

Desse modo, importante destacar que o respeito ao direito à saúde não é

voltado apenas para a prevenção das doenças, envolvendo outros fatores, como um

ambiente saudável apto à promoção da qualidade de vida e capaz de minimizar os

efeitos do adoecimento, caso ocorra (WINTER; GARRIDO, 2017, p. 6).

O direito à saúde da população em privação de liberdade encontra

regulamentação infralegal na Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/1984), figurando

como um dos direitos mais básicos, justamente em razão das condições precárias

dos estabelecimentos prisionais do Brasil.

Através da Portaria Interministerial nº 1.777, de 2003, foi instituído o Plano

Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário – PNSSP, cuja atualização teve por

resultado a elaboração da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas Privadas

de Liberdade no Sistema Prisional – PNAISP, em 2014.

Nesse sentido, válido destacar que uma das diretrizes que regem o PNAISP

é justamente a atenção integral resolutiva, contínua e de qualidade no que diz

respeito às necessidades de saúde das pessoas privadas de liberdade que se

encontram reclusas no sistema prisional, merecendo especial atenção ações

preventivas, sem dispensar os considerados serviços assistenciais.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Noutro passo, de acordo com o sítio eletrônico do Ministério da Saúde 257, a

COVID-19 pode ser descrita como:

(…) uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que


apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas
a quadros respiratórios graves. De acordo com a Organização
Mundial de Saúde (OMS), a maioria dos pacientes com COVID-19
(cerca de 80%) podem ser assintomáticos e cerca de 20% dos casos
podem requerer atendimento hospitalar por apresentarem
dificuldade respiratória e desses casos aproximadamente 5%
podem necessitar de suporte para o tratamento de insuficiência
respiratória (suporte ventilatório).

Assim, ante a configuração mundial de uma pandemia causada pelo vírus

SARS-CoV-2, imperiosa a adoção de medida preventivas relacionadas à saúde

daqueles que se encontram privados de sua liberdade, com vistas a evitar a

disseminação da COVID-19 no sistema penitenciário brasileiro.

Necessário esclarecer que a pandemia da COVID-19 se caracteriza como

uma emergência de saúde pública global, surgida em dezembro de 2019, na China,

tendo rapidamente se espalhado pelo mundo, contabilizando um total de 8.634.087

(oito milhões, seiscentos e trinta e quatro mil, oitocentos e noventa e sete) casos

confirmados da doença e mais de 489.731 (quatrocentas e oitenta e nove mil,

setecentas e trinta e uma) mortes, no mundo todo, com números crescem dia a dia.

3. RESOLUÇÃO N.º 62 E O SISTEMA PRISIONAL NORTE RIOGRANDENSE

Tendo em vista a necessidade de conter a disseminação do novo

coronavírus, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Recomendação nº 62, de

257
O que você precisa saber – o que é Covid-19. Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-
doenca#o-que-e-covid. Acesso em 01 de maio de 2020.

905
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

17 de março de 2020, trouxe diretrizes para os Tribunais e magistrados no sentido

da adoção de medidas protetivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus

no âmbito dos sistemas da justiça penal e socioeducativo.

A Recomendação nº 62 do CNJ, nesse sentido, tem como principal

finalidade proteger a vida e a saúde das pessoas privadas de liberdade e de todos

os agentes públicos que trabalham no sistema de justiça penal, prisional e

socioeducativo.

Com isso, objetiva não só dar continuidade à prestação jurisdicional, mas

também reduzir os fatores que levam a propagação do novo coronavírus, adotando

as medidas sanitárias pertinentes, bem como visando reduzir aglomerações nas

unidades judiciárias, prisionais e socioeducativas.

Afinal, o direito retirado dessas pessoas é apenas o de liberdade, não

podendo haver supressão de outros relativos à sua condição existencial que não

sejam antinômicos entre si. Como bem afirma Bobbio (2004, p. 21) “a ilusão do

fundamento absoluto de alguns direitos estabelecidos foi um obstáculo à introdução

de novos direitos, total ou parcialmente incompatíveis com aqueles”.

Assim, por meio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do

Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas

(DMF/CNJ), o CNJ vem fazendo um acompanhamento do enfrentamento da

pandemia causada pela COVID-19 no sistema prisional e socioeducativo, inclusive

com a elaboração de relatórios regionais apresentados pelos Grupos de

Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMFs).

Dentro desse contexto de disseminação da COVID-19, a principal arma na

luta contra a sua propagação consiste no isolamento social, evitando-se a reunião

de elevado número de pessoas em um mesmo espaço, com vistas a impossibilitar

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que o vírus venha a se propagar entre estas e entre aqueles com quem

eventualmente possam ter contato.

Nesse sentido, a Recomendação em comento instrui magistrados a

adotarem preferencialmente medidas socioeducativas em meio aberto e rever

decisões que determinaram a internação provisória, assim como os orienta a

optarem pela substituição de mediadas socioeducativas de internação e

semiliberdade, por medidas em meio aberto, suspensão ou remissão, com relação a

adolescentes.

No que diz respeito ao sistema prisional, a Recomendação em questão

prevê a possibilidade de se reavaliar prisões provisórias em, dentre outros casos,

estabelecimentos penais cuja ocupação seja superior à sua efetiva capacidade, bem

como em casos de pessoas privadas de liberdade com prisão preventiva decretada

e acima do prazo de noventa dias, relacionadas a crimes sem violência ou grave

ameaça à pessoa.

Ainda, recomenda a concessão de prisão domiciliar em relação a pessoas

presas que cumprem pena em regime aberto ou semiaberto e, prescreve a

possibilidade de suspensão da realização de audiências de custódia.

Antecipa, além do mais, a possibilidade de elaboração e implementação de

plano de contingência que preveja a realização de campanhas informativas sobre a

COVID-19, a triagem de indivíduos no intuito de identificar previamente aqueles

que possam estar contaminados pelo novo coronavírus, além da necessidade de

adoção de medidas de higiene, abastecendo as unidades prisionais de remédios e

fornecendo obrigatoriamente alimentação e itens básicos de higiene, água

ininterrupta ou aumento do seu quantitativo ao limite máximo possível, bem como

a ressalta a importância de se manter equipes médicas em todos os estabelecimentos

penais ou socioeducativos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Noutro passo, instrui que, em caso de pessoas suspeitas ou confirmadas

para a COVID-19, que seja feita a separação daquelas pessoas que apresentaram

sintomas ou tiveram contato próximo com casos suspeitos ou confirmados de

infecção pelo vírus, devendo ser feito o encaminhamento para tratamento em

unidade de saúde de referência caso venha a ter problemas respiratórios,

comunicando ao juízo competente para avaliar a substituição da prisão ou medida

socioeducativa de meio fechado por medida não privativa de liberdade.

Além disso, há a possibilidade de restrição de visitas e destinação de verbas

de penas pecuniárias para a aquisição de equipamentos de limpeza, proteção e

saúde necessários à implementação das ações previstas na Recomendação sob

comento.

Em que pese não se poder aferir acerca da participação doTribunal de

Justiça do Rio Grande do Norte ou dos seus magistrados, certo é que o Governo do

Estado elaborou um Plano de Contingência Estadual Para Infecção Humana pelo

COVID-19, com prescrições específicas para o ambiente prisional estadual.

Referido plano, além de prescrever protocolos básico de higiente e

promoção de ações educativas em saúde para as pessoas privadas de liberdade e

agentes penais, estabelece padrões a serem adotados no intuito de inviabilizar a

disseminação da COVID-19 no sistema prisional local.

Dentre as medidas a serem adotadas, pode-se citar, por exemplo, a

separação, sendo possível, daqueles que se encontram dentro do grupo de risco, ou

seja, pessoas mais propensas a desenvolverem quadros mais graves da doença,

quais sejam: idosos acima de 60 (sessenta) anos, pessoas com tuberculose, doença

pulonar obstrutiva crônica, imunodeprimidos associados ao HIV, obesos, pessoas

com problemas renais, cardiovasculares, diabéticos e hipertensos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Ainda, estabelece o protocolo de uso de máscaras para aqueles que estejam

com suspeita ou venham a ser efetivamente infecctados com o novo coronavírus,

adotando o isolamento por corte e utilizando-se cortinas e/ou biombos e marcações

no piso delimitando a distância mínima de dois metros, caso não seja possível

isolamento em cela individual.

Não obstante referido plano, a Secretaria de Estado da Administração

Penitenciária (SEAP), conforme notícia veiculada na imprensa local 258 , em 12 de

março do corrente ano, também elaborou um Protocolo de Prevenção e Controle de

Enfrentamento a COVID-19 no sistema prisional estadual.

Deste plano, se pode aduzir que, além da afixação de cartazes informativos,

distribuição de máscaras e luvas e adoção de medidas básicas de higiene, bem como

da busca em evitar a entrada de visitantes com sintomas de gripe, foi separado um

pavilhão específico para transferência de internos suspeitos de estarem infectados

com a COVID-19, no Complexo Penal de Alcaçuz.

A fim de analisar a efetividade das medidas supramecionadas, é preciso ter

em mente que, segundo dados do Relatório de Visitas Prisionais de 2019, existe um

total de 10.460 (dez mil, quatrocentos e sessenta) presos custodiados no sistema

penitenciário norte riograndense, o que corresponde a uma taxa de ocupação de

169,48% (cento e sessenta e nove vírgula quarenta e oito por cento), cuju déficit é de

4.288 (quatro mil, duzentas e oitenta e oito) vagas.

Portanto, é dentro da lógica de um sistema declaradamente inconstitucional

e de superlotação que se pretende adotar enquanto medida apta a impedir a

propagação do novo coronavírus o isolamento por corte, valendo-se de cortinas

e/ou biombos e marcações no piso para evitar o contágio entre os presos.

258
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/sistema-prisional-elabora-plano-de-prevena-a-o-ao-coronava-
rus/474419

909
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

De fato, não há como se aferir a efetividade dessa medida, posto que a

realidade não só do sistema carcerário norte riograndensse, mas de todo o Brasil,

como anteriormente mencionado, é de superlotação.

Assim sendo, há de se questionar de que forma será possível estabelecer

distância mínima entre as pessoas privadas de liberdade, bem como a manutenção

de condições mínimas de higiene, quando o ambiente carcerário, por si só e em

tempos não pandêmicos, não oferece tais condições.

Em que pese a existência de pavilhão específico para transferência de presos

suspeito de estarem contaminados ou efetivamente acometidos da COVID-19,

imperioso ater-se até em que medida o isolamento dessas pessoas será possível,

posto que, em condições insalubres tão propícias à disseminação dessa doença, não

se verificar como sustentável, a longo prazo, um único pavilhão para todos os

infectados, caso não se adotem medidas que barrem efetivamente a disseminação

da doença.

Nesse sentido, o cenário pode ser aterrorizante, como explica Sanches et. al.

(2020), ao analisar que “dadas as condições de encarceramento nas prisões

brasileiras, pode-se estimar que um caso contamine até 10 pessoas. Assim, em uma

cela com 150 PPL, 67% deles estarão infectados ao final de 14 dias, e a totalidade,

em 21 dias”.

Como dito anteriormente, outro aspecto que merece relevância, encontra-

se na possibilidade de adoção de medidas de desencarceramento, reavaliando

prisões provisórias em estabelecimentos com capacidade excedida e também em

caso de prisões preventivas decretadas a mais de 90 (noventa) dias, além da

concessão de prisão domiciliar para pessoas que cumprem pena em regime aberto

ou semiaberto.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Todavia, observa-se iniciativa muito tímida na adoção de medidas de

desencarceramento, posto estas somente representam um total de 12% (doze por

cento), no caso de unidades prisionais cuja capacidade encontra-se excedida, com

relação a dados da região nordeste apresentados pelo relatório do Justiça Presente,

conforme mostra a tabela abaixo.

Em que inexitirem dados específicos sobre a adoção de medidas de

desencarceramento relativas à população prisional do Rio Grande do Norte, a

SEAP, por meio de sua Assesoria de Comunicação, informou acerca da aquisição de

novas tornozeleiras eletrônicas, permitindo duplicar a capacidade monitoramento

dos apenados259, bem como evidenciando a possibilidade de se adotar tais medidas,

o que se coaduna com a Recomendação nº 62 do CNJ.

259

http://www.seap.rn.gov.br/Conteudo.asp?TRAN=ITEM&TARG=230834&ACT=&PAGE=0&PARM=&LBL=ACERV
O+DE+MAT%C9RIAS

911
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Conforme esclarece Sanches et. al. (2020):

O desencarceramento é um ponto nodal da resposta à COVID-19.


Entretanto, há um intenso debate sob uma falsa dicotomia: de um
lado, uma concepção de segurança pública vê grande risco em
liberar PPL e, do outro, destacam a percepção do risco de infecção e
de morte por COVID-19 imposto às pessoas encarceradas.

Certo é que a pandemia causada pelo novo coronavírus demanda por

respostas urgentes, principalmente ao considerar as condições precárias e

subumanas constatada no sistema prisional brasileiro.

É essencial, portanto, garantir às pessoas privadas de liberdade o direito à

saúde, posto que, em que pese a pena privativa de liberdade retirar do condenado

alguns dos seus direitos, não lhe retira a dignidade, inerente a pessoa humana.

Marchioni e Bazaglia (2020), ao versarem sobre o assunto em comento,

lecionam que:

A recomendação do CNJ parte das premissas de que o Estado é


garantidor da saúde das pessoas privadas de liberdade, que o
coronavírus se propaga rapidamente em espaços de confinamentos,
e de que o alto índice de transmissibilidade da doença denota um
significativo risco de contágio nos estabelecimentos prisionais.
Fatores estes que colocam em perigo a vida e a saúde dos
custodiados e internados, bem como de todos os agentes públicos e
visitantes dos estabelecimentos prisionais.

Desta feita, há de se ver a possibildiade de desencarceramento não

enquanto risco à segurança pública da população, mas sim como medida de visa

tornar efetivo o direito da pessoa presa de ter a sua saúde resguardade, conforme

preconiza a Lei de Execução Penal e a própria Constituição Federal no art. 5º, inc.

XLIV.

912
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Outro ponto nodal, que não encontra previsão na Recomendação n.º 62,

todavia tem sido adotado largamento em praticamente todo o país, diz respeito ao

regime de visitas, que no Rio Grande do Norte, foram suspensas a partir de 13 de

abril de 2020, com vistas a diminuir a possibilidade de a COVID-19 chegar ao

sistema prisional.

Em razão da suspensão das visitas, e com vistas a amenizar o estresse

causado pelo isolamento, bem como evitar qualquer princípio de rebelião,

mantendo o controle das unidades prisionais, a SEAP tomou a iniciativa de criar o

programa “Cartas que falam: comunicando a vida”, que consiste na elaboração de

cartas por parte dos familiares destinadas aos internos.

Ainda, em 19 de maio de 2020, a SEAP, junto a Ordem dos Advogados do

Brasil (OAB) e a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte (DPE), por

913
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

meio de portaria conjunta, normatizam o atendimento jurídico 260 às pessoas

privadas de liberdade através de sistema de videoconferência.

Noutro passo, em 03 de maio de 2020, da foi publicada portaria conjunta

elaborada pela SEAP e a Secretaria de Estado das Mulheres, da Juventude, da

Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (SEMJIDH), que permitirá a realização de

“visitas” virtuais261 aos custodiados, por sistema de videoconferência, com duração

máxima de 10 (dez minutos) cada.

Por fim, em atenção ao art. 13, da Recomendação nº 62 do CNJ, o Tribunal

de Justiça do Rio Grande do Norte – TJRN, publicou a Portaria Conjunta nº 19/2020-

TJ, em 31 de março de 2020, na qual prevê a transferência de 70% dos recursos

obtidos das penas pecuniárias para a aquisição de materiais e equipamentos

médicos necessários ao combate à pandemia causada pela COVID-19.

Apresentado este panorama de quais medidas têm sido adotadas, no

âmbito do sistema prisional norte riograndense no enfrentamento a propagação da

COVID-19, à luz da Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),

importa, ainda trazer à baila que, o primeiro caso confirmado de infecção causada

pelo novo coronavírus 262 , se deu em 20 de maio de 2020, tendo sido adotada as

medidas de distanciamento do interno, bem como daqueles com quem este teve

contato, apesar de terem testado negativo para o novo coronavírus.

Atualmente, de acordo com dados do Boletim Semanal CNJ COVID-19,

foram registrados 45 (quarenta e cinco) casos de pessoas presas infectadas pela

260

http://www.seap.rn.gov.br/Conteudo.asp?TRAN=ITEM&TARG=231476&ACT=&PAGE=0&PARM=&LBL=ACERV
O+DE+MAT%C9RIAS
261
https://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2020/06/03/presos-do-rn-podem-receber-
televisita-dos-parentes-durante-pandemia-do-coronavirus.ghtml
262

http://www.seap.rn.gov.br/Conteudo.asp?TRAN=ITEM&TARG=231478&ACT=&PAGE=0&PARM=&LBL=ACERV
O+DE+MAT%C9RIAS

914
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

COVID-19 no sistema prisional, além de 28 (vinte e oito) servidores que também

testaram positivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por objetivo entender a realidade dos efeitos

causados pela pandemia do COVID-19 no sistema penitenciário do Rio Grande do

Norte, ambiente este deveras propício para a disseminação de doenças

infectocontagiosas.

Para alcançar o objetivo propugnado, tornou-se necessário uma maior

aproximação com a problemática por meio de pesquisa bibliográfica, documental e

das medidas adotadas pelo Poder Executivo Estadual, tendo-se por base, as

normativas previstas na Recomendação nº 62 do CNJ.

Nesse contexto, constatou-se a elaboração de protocolos de condições

mínimas de prevenção à propagação do novo coronavírus entre a população

prisional, estabelecendo medidas de difícil execução, notadamente ante a

precariedade do ambiente prisional, que impossibilita o efetivo distanciamente

social necessário para barrar a disseminação da COVID-19.

Noutro passo, visualizou-se que, em que pese figurar como possibilidade e,

de fato, exitir capacidade de execução desta ação, medidas de desencarceramento

não têm sido adotadas, ainda que diante das possibilidade aventadas pelo Conselho

Nacional de Justiça, em especial no que concerne ao fato de o sistema norte

riograndense encontrar-se superlotado.

Assim é que se tem a adoção tímida, senão, inexistente, de ações capazes de

evitar a disseminação da COVID-19 no âmbito prisional, limitando-se estas a

915
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

aparecerem apenas formalmente em documentos oficiais, de forma totalmente

dissociada com a realidade do sistema prisional.

Em razão da negligência dos poderes públicos, o sistema prisional do Rio

Grande do Norte encontra-se com 45 (quarenta e cinco) pessoas presas e 28 (vinte

e oito) servidores do sistema de justiça infectadas pela COVID-19, evidenciando a

necessidade de adoção de políticas públicas de prevenção e saúde efetivas, bem

como a improrrogável reforma do sistema prisional, sendo estes os principais

desafios a serem superados, não só agora, mas também em tempos pós-pandêmicos.

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918
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O ROL DAS DISCIPLINAS PROPEDÊUTICAS E SUAS

APROXIMAÇÕES TRANSDISCIPLINARES NO CONTEXTO DA

PANDEMIA DO CORONA VIRUS

Camila Ires Figueredo Barros263


Francisco Ercílio Moura264

Palavras-Chave: Transdisciplinaridade; Propedêutica; Pandemia do Corona Vírus; e


Direito à Educação.

RESUMO
O presente trabalho pretende analisar o modo tradicional adotado para ensinar o Direito e
seu ensino não mais suficiente diante das constantes transformações que exigem um
profissional apto a pensar de modo transdisciplinar. A partir dessa problemática, o trabalho
apresentará a inclusão desses saberes nos currículos dos cursos jurídicos brasileiros desde
a sua criação, em 1827. O texto também irá destacar a relevância dos conteúdos
denominados propedêuticos no processso de formação do bacharel, promovendo uma
visão integrada, critica e reflexiva. Por fim, abordar-se-á algumas alternativas para o
processo de ensino e aprendizagem dos conteúdos propedêuticos, com foco nos direitos
socias à educação.

1 INTRODUÇÃO

Partindo da análise da formação jurídica no século XXI reconhecemos a

importância de refletir sobre o modo como as IES (Instituições de Ensino Superior)

preparam os profissionais de Direito para o labor jurídico. As grades de ensino

263
Camila Ires Figueredo Barros, graduanda em Direito, e-mail:
camilairesfb@gmail.comhttp://lattes.cnpq.br/2991410306737857
264
Professor, Dr. em Ciências Sociais e Sociologia pelas Universidades Nacional Mayor de San Marcos, Lima,
Peru e pela Universidade Federal do Ceará; Professor do Curso de Direito no Centro Universitario Dr. Leão
Sampaio; Professor colaborador do Mestrado Acadêmico em Serviço Social – MASS UECE; membro do CEP da
Unileão; e membro da equipe de revisores da revista Interfase. ercilio@leaosampaio.edu.br
http://lattes.cnpq.br/4390207370465257.

919
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

tradicionalmente centram-se em modelos pedagógicos não tão suficientes para o

conhecimento científico do futuro jurista.

Inicialmente, percebemos a dificuldade de se conceber o conhecimento

transdisciplinar e de forma integrada desde a escola. Evidencia-se desde o ensino

médio e ensino fundamental um modo de conceber o conhecimento pautado em

uma visão disjuntiva do conhecimento, que consiste em uma visão certa e segura.

No campo do Direito ainda percebemos essa deficiência empregada, tendo em vista

que os conteúdos estão direcionados a previsões em manuais ou códigos, sendo

apresentados de maneira sistemática do início ao fim do curso.

Diante dessa formação fragmentada, as faculdades de Direito,

especificamente os discentes e docentes que integram essa estrutura educativa,

tendem a resistir a um modelo transdisciplinar e integrado de construção do

conhecimento científico. Nesse contexto (COSTA, 2013, p. 25 e 26), observamos a

dificuldade das IES, principalmente no âmbito jurídico, em formar profissionais

aptos a atuar em situações de insegurança, risco e contingências, isso porque o

paradigma científico está centrado em ordem e estabilidade.

Ultrapassou-se o tempo no qual a aplicação do direito recai apenas sobre

legislação, reduzindo-se às normas e enunciados normativos. Assim, é preciso

introduzir novos conteúdos que abordem um elenco de saberes introdutórios

necessários para a aprendizagem do conhecimento científico.

Os conteúdos elencados na normativa são Antropologia, Ciência Política,

Economia, Ética, Filosofia, História, Psicologia e Sociologia, como também há

instituições que incluem nesse eixo de disciplinas a Teoria Geral do Direito, Ciência

Política, Hermenêutica Jurídica, etc.

O presente estudo traz como problema a ser estudado: como as disciplinas

propedêuticas, através de uma visão transdisciplinar, representam uma alternativa

920
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

viável para que o bacharel em Direito possa encontrar respostas às demandas de

uma sociedade que constantemente sofre transformações? Partindo dessa

problemática, a tese partirá do princípio de que as disciplinas de caráter

propedêutico são relevantes na formação do bacharel em Direito.

Assim, essa pesquisa está focada em apontar alternativas pedagógicas

possíveis para contribuição nas grades curriculares do curso de Direito, diante de

um contexto de riscos e complexidades. Logo, buscar-se-á abordar historicamente a

inclusão de disciplinas propedêuticas nas grades curriculares dos cursos de Direito

no Brasil; apresentar um comparativo entre paradigmas pedagógicos utilizados no

âmbito jurídico; e, expor um levantamento de alternativas metodológicas para a

formação de profissionais, em especial, de conteúdos propedêuticos. Este

manuscrito, sendo de natureza transdisciplinar, onde será destacado aspectos

históricos, sociológicos, filósofos, hermenêuticos e sua análise será feita com os

dados coletados de alguns documentos jurídicos, tais como: livros, sites, revistas,

artigos científicos e e-books, porém, que contenham dados verídicos para que

possamos constatar, a partir de uma postura propositiva e construtiva, conceitos de

complexidade, risco, paradoxo e contingência.

2 ABORDAGEM TEÓRICA

Os primeiros cursos de Direito brasileiros tinham sede em São Paulo e

Olinda, os mesmos foram criados através da Lei de 11 de agosto de 1827. Segunda

Falcão (1984) , os debates preparatórios sobre os rumos da educação no Brasil

fundamentaram-se em três opções: alfabetização, liceus e cursos jurídicos. A escolha

feita pelos cursos de Direito foi uma opção de cunho político, pois, para a elite

921
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

dirigente, os cursos jurídicos tinham importante papel a desempenhar na estrutura

político-administrativa e ideológica do Estado brasileiro (FALCÃO, 1984, p. 18-8).

Assim, a maioria dos conteúdos abordados em aula tinha caráter material e

a preocupação com a prática profissional aparece apenas no último ano do curso,

realidade essa que podemos enxergar ainda hoje em grande parte dos cursos de

Direito.

Dessa maneira, houve várias outras propostas apresentadas pela Comissão

de Especialistas de Ensino do Direito que demonstravam a importância dos

conteúdos propedêuticos, através de atividades complementares e optativas

relacionadas às novas demandas da sociedade. Apesar de não obterem eficácia, as

reflexões acerca da necessidade de mudar o ensino jurídico foram inúmeras, além

de fator fundamental para a criação da Portaria 1886/94.

A Portaria 1886 trouxe inúmeras transformações como a obrigatoriedade de

apresentação de uma monografia no final do curso, prática de estágio

supervisionado, além de influência a uma educação reflexiva em que os egressos de

Direito são capazes de pensar novas soluções aos problemas que o mundo lhes

apresenta, fugindo da mera tecnicidade.

A Portaria incluiu nas grades curriculares as disciplinas de Filosofia (Geral e

Jurídica), Ética (geral e profissional), Sociologia (geral e jurídica), Economia e

Ciência Política (com Teoria do Estado). Quanto a interdisciplinaridade, prevê que

“as demais matérias e novos direitos serão incluídos nas disciplinas em que se

desdobram o currículo pleno de cada curso, de acordo com as peculiaridades e com

observância de interdisciplinaridade” (art. 6º, parágrafo único) (LIMA, 2005, p. 77).

A adoção de determinadas disciplinas surgiu para que houvesse a reconexão

dos saberes e uma compreensão integrada na área de conhecimento jurídico. A

exemplo temos a interdisciplinaridade que exige uma reflexão acerca de suas

922
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

próprias práticas, além dos docentes necessitarem ultrapassar o dogmatismo em

que estão centrados. A interdisciplinaridade além de promover a interação e

proximidade como diversas áreas de saberes, também oferece uma nova relação

entre o conhecimento e a prática.

A busca por um ponto de vista transdisciplinar permite que se considere uma

realidade multidimensional, estruturada em muitos níveis, substituindo a realidade

do pensamento clássico de um único nível unidimensional (NICOLESCU, 2000, p.

139).

Nesse mesmo contexto se insere a pluridisciplinaridade que diz respeito ao

estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias disciplinas ao

mesmo tempo (NICOLESCU, 2000, p. 14). Assim, o conhecimento do objeto através

da pluridisciplinaridade é uma contribuição de diversas áreas a serviço apenas de

determinada disciplina.

3 CONTEÚDOS PROPEDÊUTICOS E METODOLOGIA DE ENSINO NOS

CURSOS JURÍDICOS BRASILEIROS

3.1 Aspectos Históricos

Os primeiros cursos de Direito brasileiros tinham sede em São Paulo e

Olinda, os mesmos foram criados através da Lei de 11 de agosto de 1827. Segunda

Falcão (1984) , os debates preparatórios sobre os rumos da educação no Brasil

fundamentaram-se em três opções: alfabetização, liceus e cursos jurídicos. A escolha

feita pelos cursos de Direito foi uma opção de cunho político, pois, para a elite

dirigente, os cursos jurídicos tinham importante papel a desempenhar na estrutura

político-administrativa e ideológica do Estado brasileiro (FALCÃO, 1984, p. 18-8).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A faculdade de São Paulo foi instalada no Convento de São Franscisco,

enquanto a de Olinda no Mosteiro de São Bento. Clóvis Bevilaqua expõe que:

[...] antes de criarem os cursos jurídicos de Olinda e S. Paulo, os


nossos patrícios iam à Europa fazer a sua aprendizagem. Mas,
desde que na pátria havia estabelecimentos onde pudessem
estudar, muitos dos que ali se achavam quiseram aproveitar-se
dessa vantagem, sem prejuízo dos exames já concluídos. A esse
desejo atendeu a Lei de 26 de agosto de 1830: 1º, mandando
dispensar dos exames de preparatórios os que os tivessem feito na
Universidade de Coimbra, e os que tivessem cartas de bacharéis em
letras por escola da França; 2º, admitindo à matricula nos cursos
jurídicos os estudantes habilitados a fazer ato na Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, desde que fizessem esse ato
para o qual estavam habilitados e o exame da língua francesa; 3º,
considerando bacharéis formados os cidadãos brasileiros
habilitados a fazer ato do quinto ano na Faculdade de Direito de
Coimbra. As disposições desta lei somente compreendiam os
estudantes brasileiros que regressassem da Universidade de
Coimbra, até à data da sua publicação. (BEVILAQUA, 1977, p. 31)

De acordo com o preâmbulo dos primeiros estatutos acadêmicos, a missão

das escolas de Direito era “formar homens hábeis para serem um dia sábios

magistrados e peritos advogados”, ou ainda “dignos Deputados e Senadores para

ocuparem lugares diplomáticos e mais empregos do Estado”.

Bárbara Silva Costa (2013) discorre acerca da grade curricular de ensino das

primeiras escolas de Direito do Brasil, vejamos:

Durante esse período, os currículos dos dois cursos tinham a mesma


composição. A estrutura curricular era fixa e rígida, não havendo
espaço para qualquer iniciativa de flexibilidade entre as
instituições. O tempo de duração do curso era de cinco anos, e ele
era organizado, no primeiro semestre, com um conteúdo apenas, e
do segundo semestre ao quinto, com duas matérias por ano. Nesse
período, constata-se que os conteúdos de caráter propedêutico na

924
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

matriz curricular dos cursos eram poucos ou quase inexistentes.


(COSTA, 2013, p. 41)

Assim, a maioria dos conteúdos abordados em aula tinha caráter material e

a preocupação com a prática profissional aparece apenas no último ano do curso,

realidade essa que podemos enxergar ainda hoje em grande parte dos cursos de

Direito. Veja:

Cumpre que o estudante veja, além da regra jurídica, a realidade da


tumultuosa vida do advogado, e da equilibrada intervenção do juiz.
A escola de direito, para se não desvirtuar de seus fins, há de ser a
antecâmara dos tribunais. (MACEDONIA, 1927, p. 17)

Desde 1823 as escolas de Direito foram pensadas como uma alternativa para

diminuir a dependência do Brasil em relação a Portugal e “tirar os brasileiros da

penosa necessidade de irem mendigar as luzes nos países remotos” (REALE, 1997,

p. 7). Os cursos jurídicos, portanto, representam um ideal da elite e demonstram

poder para todos que tivessem condições de ingressar neles.

Porta de entrada para a vida política do Brasil, os cursos de Direito


eram estruturas sem as quais o novo país independente não poderia
forjar sua própria concepção de Estado e nem as elites poderiam
legitimar seu papel de “construtores da nação” ou de “país” de um
povo que não teria condições de pensar por si próprio, mas sim que
necessitava das “luzes” que apenas as figuras ilustradas e
conhecedoras do funcionamento jurídico e burocrático do Estado
teriam condição de realizar a partir de sua formação nos cursos
jurídicos. (MENDES, 2019, p. 23)

Mota (2006, p. 249) argumenta que a “criação das escolas de direito, os

homens que a administração do novo Estado necessitava passaram a ser formados

aqui mesmo no Brasil”. No mesmo sentido, Dias compreende que

925
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

[...] essa minoria de letrados, inspirada nos ideais do


despotismo ilustrado do século XVIII, reservava para si a
missão paternalista de modernizar e reformar o arcabouço
político e administrativo do país, sem comprometer a
continuidade social e econômica da sociedade colonial. (DIAS,
2005, p. 128)

Em 1854 as faculdades de Direito adotavam o paradigma positivista da

ciência do Direito, e seu método lógico-formal, centrado no dever ser, produziu uma

visão unidimensional do real e transformou o ensino do Direito em mera descrição

do Direito Positivo em vigor (MELLO, 2007, p. 60).

No Império, segundo Horário Wanderlei Rodrigues, o ensino do Direito

caracterizava-se por:

(a) Ter sido totalmente controlado pelo governo central. Os


cursos, embora localizados nas províncias, foram criados, mantidos
e controlados de forma absolutamente centralizada. Esse controle
abrangia recursos, currículos, metodologia de ensino, nomeação de
lentes e do diretor, definição dos programas de ensino e até de
compêndios adotados; (b) ter sido o jus naturalismo a doutrina
dominante, até o período em que foram introduzidos no Brasil o
evolucionismo e o positivismo, em torno de 1870; (c) ter havido, em
nível de metodologia de ensino, a limitação às aulas- conferência,
no estilo de Coimbra; (d) ter sido o local de comunicação das elites
econômicas, onde elas formavam os seus filhos para ocuparem os
primeiros escalões políticos e administrativos do país; (e) por não
ter acompanhado as mudanças que ocorriam na estrutura social.
(RODRIGUES, 2002, P. 19)

Durante a República, os cursos poderiam ser adotados por faculdades livres

(privadas), porém, precisariam ser supervisionadas pelo governo, isso resultou

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

num aumento do número de cursos no país, não ficando apenas restrito a Olinda e

São Paulo.

Merece destaque nesse contexto histórico a influência do direito positivo no

ensino jurídico brasileiro, essa corrente positivista veio para substituir o jus

naturalismo que era tão presente na estrutura curricular dos cursos. Em

consequência disso, passou-se a adotar concepções do Direito afastada dos valores

religiosos.

Leonel Severo Rocha (1999. P. 193) complementa que o positivismo, que

parecia constituir a força mais organizada no momento da Proclamação da

República, teve de se contentar com uma participação secundária, graças aos

esforços liberais, como Rui Barbosa (vice chefe do Governo Provisório), contrário às

ideias de centralização política e de ditadura científica de Comte (Ibidem, 1999, p.

194).

Já no século XX, entre 1920 e 1934 foram criadas cadeiras de Sociologia nas

escolas de Recife e Distrito Federal, em São Paulo surgiu o curso de Ciências Sociais

(SALDANHA, 1987, p. 90). Adiante, na década de 80, houve um aumento

significativo no número de vagas dos cursos de Direito, motivo esses que chamou

a atenção da Ordem de Advogados do Brasil e do Ministério da Educação. Assim,

o MEC criou a Comissão de Especialistas de Ensino de Direito (CEED), com o

propósito de elaborar uma nova proposta curricular para os cursos jurídicos.

Convém salientar que a proposta nunca foi implementada, mas, a Comissão

propôs a inserção de nove conteúdos de caráter propedêutico na proposta, como

exemplo a inserção de Introdução a Ciência Política e Hermenêutica Jurídica.

Na década de 90, tendo em vista diversos movimentos críticos do Direito e a

atuação da OAB na participação dos debates envolvendo o futuro do ensino jurídico

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

no país, colocou-se em pauta a necessidade de uma formação mais humanista,

crítica e reflexiva por parte dos egressos do ensino superior (COSTA, 2013, p. 56).

Além disso, houve várias outras propostas apresentadas pela Comissão de

Especialistas de Ensino do Direito que demonstravam a importância dos conteúdos

propedêuticos, através de atividades complementares e optativas relacionadas às

novas demandas da sociedade. Apesar de não obterem eficácia, as reflexões acerca

da necessidade de mudar o ensino jurídico foram inúmeras, além de fator

fundamental para a criação da Portaria 1886/94.

Segundo Costa (2013, p.59), “essa portaria objetivava a transformação do

ensino e, consequentemente, dos egressos dos cursos jurídicos”. Trata-se de um fim

pedagógico que tem como meios a implantação de valores sociais, humanos e

políticos no cidadão (BARBOSA, 1942, p. 9). Assim, esse objetivo seria alcançado à

medida que os profissionais formados tivessem maior entendimento dos conteúdos

propedêuticos.

A Portaria 1886 trouxe inúmeras transformações, como a obrigatoriedade de

apresentação de uma monografia no final do curso, prática de estágio

supervisionado, além de influência a uma educação reflexiva em que os egressos de

Direito são capazes de pensar novas soluções aos problemas que o mundo lhes

apresenta, fugindo da mera tecnicidade.

Rodrigues e Junqueiro contribuem ao debater sobre a Portaria que:

Finalmente é necessário lembrar que a edição da Portaria MEC nº


1886/94 foi precedida de uma séria discussão sobre as crises de
problemas do Ensino do Direito, em todos os níveis, e teve como
pressuposto: (a) o rompimento com o positivismo normativista; (b)
a superação da concepção de que só é profissional do Direito aquele
que exerce atividade forense; (c) a negação da autossuficiência do
Direito; (d) a superação da concepção de educação como sala de
aula; (e) a necessidade de um profissional com formação integral

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(interdisciplinar, teórica, crítica, dogmática e prática). As mudanças


por ela introduzidas buscaram, em tese, ser um canal através do
qual se pudesse modificar a própria mentalidade ultrapassada e
rançosa presente hegemonicamente nos Cursos de Direito
nacionais. Ela pressupunha, nesse sentido, uma autocrítica e um
deslocamento que nem todos os partícipes desse ensino estavam
dispostos a dar. Isso fez com que a reforma, em muitos aspectos e
instituições fosse meramente formal e, portanto, efetivamente
inexistente. (RODRIGUES; JUNQUEIRA. 2002, p. 51)

A Portaria incluiu nas grades curriculares as disciplinas de Filosofia (Geral e

Jurídica), Ética (geral e profissional), Sociologia (geral e jurídica), Economia e

Ciência Política (com Teoria do Estado). Quanto a interdisciplinaridade, prevê que

“as demais matérias e novos direitos serão incluídos nas disciplinas em que se

desdobram o currículo pleno de cada curso, de acordo com as peculiaridades e com

observância de interdisciplinaridade” (art. 6º, parágrafo único) (LIMA, 2005, p. 77).

Além da Portaria, cumpre destacar a importância do texto Constitucional

lançado em 1988. A Carta Magna estabeleceu uma nova forma de se pensar o

ordenamento jurídico e exigiu de todos os profissionais do Direito atualização dos

conceitos até então utilizados (COSTA, 2013, p. 63).

O período de 1996 foi marcado pela publicação da LDB (Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional), Lei nº 9.394/96, tendo em vista que ela trouxe nossas

diretrizes curriculares para os cursos de graduação.

Evidencia-se a grande preocupação da LD em proporcionar uma educação

crítica e bastante reflexiva, vejamos algumas passagens do artigo 43 da mesma Lei:

Art. 43: A educação superior tem por finalidade:


I – Estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito
científico e do pensamento reflexivo;
II – Formar diplomados nas diferentes áreas de conhecimento, aptos
para a inserção em setores profissionais e para a participação no

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua


formação contínua;
III – incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica,
visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação
e difusão da cultura, e, desse modo, desenvolver o entendimento
do homem e do meio em que vive;
IV – Promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos
e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar
o saber através do ensino, de publicações ou de outras formas de
comunicação;
V – Suscitar o desejo permanente de aperfeiçoamento cultural e
profissional e possibilitar a correspondente concretização,
integrando os conhecimentos que vão sendo adquiridos numa
estrutura intelectual sistematizadora do conhecimento de cada
geração;
VI – Estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente,
em particular os nacionais e regionais, prestar serviços
especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de
reciprocidade;
VII – Promover a extensão, aberta à participação da população,
visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação
cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na
instituição. ” (grifo nosso)

Assim, podemos enxergar o papel da pesquisa no desenvolvimento da

formação do profissional do Direito.

Aos 29 dias do mês de setembro de 2004, o Conselho Nacional de Educação

instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Direito.

A Resolução nº 9/2004 permanece em vigor até os dias de hoje (COSTA, 2013, P. 70).

Essa Resolução trouxe como objetivos integrar o estudante no campo,

estabelecer as relações do Direito com a outra área de saber, abranger, além do

enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, proporcionar a integração entre

a prática e os conteúdos teóricos, dentre outros objetivos. Tudo isso através de

disciplinas como Antropologia, Filosofia, Economia, Ética, História, Psicologia,

Sociologia etc.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Por fim, observa-se que ao longo da história as disciplinas de caráter

propedêutico sofreram inúmeras mudanças para se chegar ao modelo atual.

Ressalta-se novamente que o profissional do século XXI precisa estar apto para lidar

com problemas que emergem a cada dia que afetam todos os tipos de pessoas,

classes e nacionalidade.

3.2 Da tecnização do saber jurídico ao desafio de uma educação transdisciplinar

Ferraz Júnior conceitua como os problemas da educação jurídica às

concepções teóricas que são utilizadas tradicionalmente adotadas nos ambientes

universitários. De acordo com o seu entendimento:

[...] O primeiro e mais importante deles está na própria concepção


de ensino, que coloca mal o problema do saber especializado,
vendo-o como um tecnicismo neutro, uma arte de saber voltado
para o julgamento, acaba por se reduzir à mera instrumentação
burocrática de uma decisão. Nestes termos a formação do bacharel
é entendida como uma acumulação progressiva de informações,
limitando-se o aprendizado a uma reprodução de teorias que
parecem desvinculadas da prática (embora não o sejam), ao lado de
esquemas prontos de especialidade duvidosa, que vão repercutir na
imagem atual do profissional como um técnico a serviço de técnicos
(FERRAZ JÚNIOR, 1978-1979, p. 70)

Conforme vimos no subcapítulo anterior, o objetivo dos cursos jurídicos

brasileiro, em sua criação, era capacitar os estudantes para atuar nas novas funções

do Estado, aqui podemos enxergar indícios de formação técnica dos profissionais

do Direito.

As áreas de saber estão cada vez mais isoladas uma das outras, havendo

pouca interação. No ensino do Direito, a compartimentalização do conhecimento

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pode ser observada por meio da organização de conteúdo em um número cada vez

maior de disciplina (PAVIANI, 2005, p. 26) que se encontram na estrutura

educacional. Ainda na visão de Jayme Paviani (Ibidem, p. 27), as disciplinas são

sistematizações ou organizações de conhecimento, com finalidades didáticas e

pedagógicas provenientes das ciências. Apesar de dependentes do progresso da

ciência, elas apresentam uma tendência conservadora e uma falsa autonomia. Isso

porque ela se tornou um modelo autossuficiente e distante das concepções de

realidade e de conhecimento científico (COSTA, 2013, p. 84).

Isso pelo fato do parâmetro utilizado para definir a disciplina e a maneira

como ela será ministrada em sala de aula ser constituído por manuais ou códigos.

Assim, Rocha argumenta sobre a importância de o profissional do Direito ter uma

formação crítica que transcenda muito além da mera repetição das codificações

(ROCHA, 2007, p. 12).

Nesse sentido, Faria é claro ao mencionar que:

Em nome de um ensino basicamente profissionalizante, mas,


organizado em total descompasso tanto com as necessidades do
mercado quanto com a própria realidade socioeconômica do país, o
ensino jurídico despreza a discussão relativa à função social das leis
e dos códigos, contentando-se em valorizar somente seus aspectos
técnicos e procedimentais. Sem densidade teórica e sem rigor
lógico-formal, esse tipo de ensino se destaca pelo seu senso comum
normativista, pela reprodução de uma vulgata positivista e pelo
recurso a uma erudição ligeira, retórica, burocrática, sempre
subserviente aos clichês e estereótipos dos manuais (FARIA, 1993,
p. 54)
É preciso, então, revisar projetos pedagógicos dos cursos para que haja uma

modificação desse modelo de ensino.

Após os abusos cometidos pelos regimes autoritários, vários escritores

críticos da área jurídica colocam em xeque uma percepção tradicional do Direito e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

seu ensino. A partir disso, os debates teóricos foram substituindo o lógico-formal

por percepções mais científicas, flexíveis e críticas. O surgimento de movimentos

sociais em prol do processo de redemocratização, surgimento do pluralismo

jurídico, como também o Direito alternativo teve papel importante nesse contexto.

Para Herrera, os docentes pouco se interessam pelo estudo das disciplinas de

Antropologia, Sociologia, Ciência Política, Ética, Economia, Filosofia, História,

Psicologia, dentre outros que compõem o eixo fundamental da formação de

bacharéis em Direito. Segundo o autor, isso se deve ao fato de os professores

conduzirem em sala de aula apenas o saber técnico, devido à falta de condição ou

formação para interligar sua disciplina com os demais eixos (HERRERA, 2011, p.

4088).

Ribeiro Júnior (2001), escreve sobre a importância da formação humanística

para o professor de Direito:

[...] não basta ensinar o Direito, pois aquele que só sabe Direito, nem
o Direito saberá bem! É que o Direito, como ciência humana, social,
exige da parte de quem estuda uma visão ampla de todo o campo
das relações humanas, o que significa dizer, uma sólida formação
humanística (RIBEIRO JÚNIOR, 2001, p. 54).

Umas das formas de incentivar os alunos de Direito a ter uma visão mais

ampla da sociedade, ocorre pelo estudo de conteúdos de caráter propedêutico,

como a Sociologia, Filosofia, dentre outros (CERQUEIRA, 2006, p. 69).

Importante apresentar a percepção de Tagliavani sobre o saber docente. Ele

afirma ser possível identificar as características necessárias para ser um educador e

quais seriam os saberes envolvidos nesse processo. De acordo coma tabela abaixo,

percebe-se a grande relevância dos conteúdos para a formação de um professor:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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Quadro 2 – O saber docente segundo Tagiavini

O saber
docente
O que é necessário para ser educador Saberes envolvidos no processo
Ter uma concepção de mundo Filosofia, Sociologia, História,
Economia

Conhecer a natureza humana Antropologia


Dominar os conteúdos exigidos em uma Currículo
profissão

Saber como se aprende Psicologia e Didática


Saber medir o que foi aprendido Teorias e Técnicas de avaliação
Ter experiência Prática profissional
Fonte: (COSTA, 2013, P. 89)

Há dúvidas quanto a quem seria apto a ministrar as aulas de Sociologia e

Filosofia do Direito. Deveriam ser juristas, sociólogos e filósofos? Faria e

Campilongo afirma ser um problema, de acordo com os autores:

A disciplina é atribuída muitas vezes a professores que ou possuem


conhecimento sociológico (normalmente obtidos fora das
faculdades de Direito), mas poucos conhecem o mundo jurídico, ou
são professores de “Introdução ao Estudo do Direito”, limitando-se
a atuar como meros veiculadores de velhos manuais que repetem o
“senso comum” do “humanismo jurídico” (FARIA, 1991, p. 31)

É inegável que o docente precisa obter de conhecimentos vastos na área, além

de didática para conduzir as aulas. A falta de formação especializada aponta um

grande risco à reprodução de materiais impróprios para o ensino dos conteúdos

propedêuticos.

De acordo com Costa:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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Embora os marcos regulatórios do ensino jurídico refiram a


necessidade de uma visão integrada do Direito, a legislação não
conceitua o termo, deixando tal função para as instituições de
ensino inserirem tal ideia em seus projetos pedagógicos. Em linhas
gerais, pode-se dizer que falar sobre esse tema implica em
reconhecer a necessidade de reconectar disciplinas ou áreas do
saber (COSTA, 2013, P. 91)

4 PARADIGMA TRADICIONAL DE ENSINO DO DIREITO

O ensino jurídico organiza-se em disciplinas devido as formações das

universidades modernos, ao longo do século XIX. Descartes, em seu plano de

pensamento filosófico, discorreu sobre os progressos do conhecimento na

capacidade de separar as dificuldades uma das outras, facilitando a resolução de

problemas de maneira sucessiva e separadamente. Assim, elaborou sua obra

Discurso do Método:

O primeiro era não aceitar jamais alguma coisa como verdadeira


que eu não conhecesse evidentemente como tal: isto é, evitar
cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e nada incluir em
meus julgamentos senão o que se apresentasse de maneira tão clara
e distinta a meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de
colocá-lo em dúvida.
O segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse
em tantas parcelas possíveis e que fossem necessárias para melhor
resolvê-las.
O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando
pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir aos
poucos, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos,
e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem
naturalmente uns aos outros.
E o último, fazer em toda parte enumerações tão completas, e
revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir.
Os longos encadeamentos de razões, todas simples e fáceis, que os
geômetras costumam utilizar para chegar a suas mais difíceis
demonstrações, me haviam feito imaginar que todas as coisas

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passíveis de serem conhecidas pelos homens se seguem umas às


outras do mesmo modo, e contando que nos abstenhamos de aceitar
alguma como verdadeira que não o seja, e que mantenhamos
sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não
pode haver nenhuma tão afastada à qual enfim não se chegue, nem
tão oculta que não se descubra. E não foi muito difícil buscar por
que era preciso começar, pois eu já sabia que era pelas mais simples
e mais fáceis de conhecer; e considerando que, entre todos os que
até agora buscaram a verdade nas ciências, apenas os matemáticos
puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões
certas e evidentes, não duvidei de que não fosse pelas mesmas que
eles examinaram; disso eu não esperava nenhuma outra utilidade
a não ser que elas acostumariam meu espírito a se alimentar de
verdades e a não se contentar com falsas razões. (DESCARTES,
2006, p. 55-56)

Assim, conclui-se que o método é construído a partir da dúvida, da ordem,

da compartimentalização, além de receber forte influência da matemática. O autor

ainda afirma que fora confirmada o desenvolvimento das ciências devido a

separabilidade do conhecimento em disciplinas.

No ensino jurídico é claramente visto as estruturas departamentais, onde há

inúmeras divisões do saber jurídico. O conhecimento é classificado, hierarquizado

e encapsulado sob a forma de disciplina, para que seja consumido com maior

facilidade” (PÔRTO, 2000, p.57).

Não é incomum vermos docentes que criticam os programas de formação

para professores promovidos pela instituição quando envolve a fala de um

profissional de uma área que não seja a sua. É perceptível a resistência de alguns

professores durantes atividades pedagógicas, onde os mesmos utilizam de

discursos que as atividades são distantes da realidade do profissional do Direito.

Costa (2013, p. 253) afirma que atém meados do século XX, o mundo

científico considerava que as ciências eram sustentadas pelos pilares da ordem,

certeza e separabilidade. No campo do Direito, as influências desses postulados são

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evidentes quando compreendidos o significado da lei para o ordenamento jurídico

positivo.

O papel da lei ocupa um lugar de destaque para o Direito, seja para assegurar

a sociedade ou para assegurar os mais “poderosos”. Devido os postulados de

certeza e segurança, a neutralização da lei passa a ser concebida (COSTA, 2013, P.

254), sobre isso, Leonel Severo Rocha apresenta dois pontos de vistas importantes:

[...] a primeira, voltada à constituição de uma episteme, um sistema


lógico- dedutivo de conhecimentos, apto a solucionar as lides
privadas da sociedade; a segunda, político-legislativa, preocupada
com a justificação do ordenamento jurídico, que, por sua vez,
centra-se, fundamentalmente, na elaboração legal, na origem
legítima da lei. De acordo com esse raciocínio, escamoteia-se
qualquer possibilidade de discussão acerca dos aspectos político-
ideológicos da norma jurídica após a sua vigência, quando esta for
considerada legítima em sua gênese. Assim, a lei tem um momento
político – o de sua constituição – mas, a partir de sua vigência, sofre
um processo de neutralização, que coloca em torno da validez
jurídica qualquer questionamento (ROCHA, 1998, p. 54)

Logo, o início do século XX obtém uma percepção dogmático em

consequência de a compreensão dos fenômenos jurídicos basearem-se em conceitos

gerais (como exemplo a tradicional divisão realizada entre Direito Público e

Privado).

Nesse contexto, a elaboração de um sistema jurídico técnico, o direito

positivo controla todas as decisões. Bobbio (1997, p. 119-120) afirma que tal questão

se relaciona com o dogma da completude, surgido no Direito Romano, princípio

que considera o ordenamento jurídico completo para fornecer ao Juiz em cada lide

uma solução sem necessidade de recorrer à equidade. Tal concepção tem se tornado

parte integrante da concepção estatal de direito nos tempos modernos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O Direito Positivo surgiu para resolver os problemas de uma sociedade

indeterminada, onde estaria ligado a uma noção de Estado forte, soberano e norma

jurídica hierarquizada a racionalidade do Direito. Porém, importante salientar que

a ideia de positivismo jurídico ignorou as incertezas, os paradoxos e riscos da

modernidade, trazendo como consequência a incapacidade de pensar sobre a

complexidade diante da realidade social.

Morin afirma que a hiperespecialização (conhecimento incapaz de gerar uma

visão global da realidade), o fechamento e a compartimentação impedem o homem

de contextualizar e globalizar (MORIN, 1999, p. 25).

5 REFLEXÕES SOBRE INTERDISCIPLINARIDADE,

MULTIDISCIPLINARIDADE, PLURISDISCIPLINARIDADE E

TRANSDISCIPLINARIDADE

Para que houvesse a reconexão dos saberes e uma compreensão integrada na área

de conhecimento jurídico, surgiram novas propostas de ensino que se contrapõem ao

modelo universitário que não adota o paradigma da ciência.

Como exemplo, foi adotado a interdisciplinaridade que exige uma reflexão acerca

de suas próprias práticas, além dos docentes necessitarem ultrapassar o dogmatismo em

que estão centrados. A interdisciplinaridade além de promover a interação e proximidade

como diversas áreas de saberes, também oferece uma nova relação entre o conhecimento e

a prática.

De acordo com Ventura, a interdisciplinaridade busca a construção de um

saber próprio graças ao emprego de métodos de diferentes disciplinas para

esclarecer uma situação precisa. Isso significa que a abordagem interdisciplinar não

dispensa o conhecimento das disciplinas (VENTURA, 2006, p. 286).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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Ou seja, a interdisciplinaridade destaca-se pela interação de diversas disciplinas,

onde a comunicação de ideias pode ir bem mais além da integração mútua dos conceitos,

da metodologia, dos procedimentos e dados. Logo, quando o debate é interdisciplinar, todo

saber corresponde às exigências fundamentais do progresso social e humano.

Quanto a multidisciplinaridade, Japiassú conceitua como uma justaposição de duas

ou mais disciplinas, com objetivos múltiplos, sem relações entre elas e nenhuma

coordenação (JAPIASSÚ, 1992, p. 88). Como exemplo, um médico, em geral, é responsável

pela decisão do tratamento, enquanto outros profissionais vão se adequar a demanda do

paciente e as decisões do médico referente a este.

Nesse mesmo contexto se insere a pluridisciplinaridade que diz respeito ao estudo

de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo

(NICOLESCU, 2000, p. 14). Assim, o conhecimento do objeto através da

pluridisciplinaridade é uma contribuição de diversas áreas a serviço apenas de

determinada disciplina.

A transdisciplinaridade observa a totalidade dos saberes. A proposta

transdisciplinar representa uma nova forma de observar e compreender a vida de um modo

mais amplo e distinto do modelo fragmentário da ciência moderna.

A busca por um ponto de vista transdisciplinar permite que se considere uma

realidade multidimensional, estruturada em muitos níveis, substituindo a realidade

do pensamento clássico de um único nível unidimensional (NICOLESCU, 2000, p.

139).

Assim, poder-se-ia dizer que a pluri ou a multidisciplinaridade seria uma

etapa para a interação para a interdisciplinaridade, e essa, por conseguinte, uma

etapa para a transdisciplinaridade (FAZENDA, 1993, p. 40).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Diante dos problemas enfrentados no século XXI, que apresentam uma

complexidade cada vez maior, o conhecimento pautado em diversas áreas do saber,

torna o profissional do Direito capaz de atuar em um contexto paradoxal, repleto

de incertezas e riscos. O indivíduo que se contenta em ser apenas um técnico

renuncia ao raciocínio jurídico crítico e ao seu papel dentro de um contexto social.

Assim, destaca-se o objetivo dos conteúdos propedêuticos na formação de futuros

juristas.

Na ocasião, é importante ressaltar que as escolas jurídicas, por meio de seus

projetos pedagógicos, possuem liberdade para elaborar seus currículos e estratégias

pedagógicas sustentadas na formação de bacharéis criativos para atuar em uma

sociedade complexa (COSTA, 2013, p. 76).

Apesar de não haver modelo de ensino jurídico considerado certo e

adequado, não significa que não seja possível experimentar técnicas pedagógicas

diferenciadas em sala de aula, como exemplo os conteúdos propedêuticos. Um dos

elementos de suma importância é a interação entre docente e discentes.

Destaca-se que não se está declarando inválida a aula expositiva pois a

mesma possui bastante importância na formação do bacharel em Direito, mas, não

precisa ser utilizada como único e principal recurso pedagógico empregado em sala

de aula. Apenas pautamos a necessidade de um novo paradigma pedagógico para

a educação jurídica, com um olhar sistêmico e transdisciplinar dos saberes.

É preciso afirmar que ser professor no século atual é necessária flexibilidade

para lidar com o novo, as inseguranças, incertezas, paradoxos e riscos. Outro

desafio enfrentado pelo docente diz respeito ao ingresso de estudantes no ensino

superior que trazem consigo carências de conhecimentos não supridos nos ensinos

anteriores. Assim, o professor precisa encarar esse problema como sendo seu.

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Além disso, a educação a distância é um fator que exige flexibilidade dos

professores para atuar diante de uma realidade que sofre inúmeras transformações

diárias, como se observa na atualidade por força das políticas de distanciamento

social. Compete as universidades se responsabilizarem para a cobrança de

professores universitários não manterem uma visão dogmática e centrada apenas

em legislações e códigos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A UBERIZAÇÃO ENQUANTO REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

Victor Araújo Presa Rios 265


Fernando Gabriel Lopes Cavalcante 266
Victor Bastos dos Reis Pereira267

RESUMO
A uber alterou o hábito de consumo de serviços de locomoção, no entanto, representa
também uma profunda alteração na estrutura do mercado de trabalho, de forma que o
trabalhador vinculado a uber e demais aplicativos similares da mesma função não são
amparados pela legislação trabalhista. Os motoristas de uber então são submetidos a
jornadas de trabalho excedentes, sem direitos previdenciários e trabalhistas. Partimos da
hipótese preliminar que existe, portanto, uma linha de continuidade entre a uberização e
os outros instrumentos de precarização do trabalho, como por exemplo a terceirização e a
pjotização. Assim, está no cerne da questão para compreensão do fenômeno da uberização
as transformações sociais decorrentes da reestruturação produtiva surgida a partir de
meados da década de 1970. Pretendemos então questionar: qual é o local ocupado pela
uberização no cenário geral de reestruturação produtiva? Justifica-se o presente ensaio em
razão da centralidade cada vez maior que tal modalidade de contratação de serviço vem
ganhando. A metodologia utilizada será qualitativa, a partir da análise bibliográfica de
autores que discutem a reestruturação produtiva e que pontuam o trabalho como fundante
da sociabilidade humana. Estruturamos nossa exposição em: 1) Discutiremos teoricamente
qual o significado da reestruturação produtiva para a estabilização do capitalismo; 2)
Analisaremos quais os elementos característicos do toytotismo; 3) Para assim
desenvolvermos quais as linhas de continuidade e ruptura entre o Toyotismo e a
uberização.

Palavras Chave: Trabalho; Toytotismo; Uberização; Mercadoria; Reestruturação produtiva.

ABSTRACT
Uber has changed the habit of consuming locomotion services, however, it also represents
a profound change in the structure of the labor market, so that workers linked to uber and
other similar applications of the same function are not covered by labor legislation. Uber
drivers are then subjected to excess working hours, without social security and labor rights.

265
Graduando em Direito pela Faculdade Nobre de Feira de Santana, victorios1108@outlook.com e
http://lattes.cnpq.br/4021160593969700.
266
Mestre em Sociologia e Direito pelo PPGSD/UFF, gabrielcavalcanteaadv@gmail.com e
http://lattes.cnpq.br/6747139003815987
267
Graduando em Direito pela Faculdade Nobre de Feira de Santana l, victorbastosrp@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/1988928155559982

946
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

We start from the preliminary hypothesis that there is, therefore, a line of continuity
between uberization and other instruments of job insecurity, such as outsourcing and
pjotization. Thus, at the heart of the question for understanding the phenomenon of
uberization is the social transformations resulting from the productive restructuring that
arose from the mid-1970s. We intend to ask then: what is the place occupied by uberization
in the general scenario of productive restructuring? The present essay is justified due to the
increasing centrality that this type of service contract has been gaining. The methodology
used will be qualitative, based on the bibliographic analysis of authors who discuss
productive restructuring and who point out the work as the foundation of human
sociability. We structured our exhibition in: 1) We will discuss theoretically what is the
meaning of productive restructuring for the stabilization of capitalism; 2) We will analyze
which are the characteristic elements of toytotism; 3) In order to develop the lines of
continuity and rupture between Toyotism and uberization.

Keywords: Work; Toytotism; Uberization; Merchandise; Productive restructuring.

INTRODUÇÃO

A forma como o homem organiza sua produção tem um caráter

predominante sobre todo o tecido social humano. A vida humana tem como

precedente o ato de trabalho, de maneira que a reprodução social do ser humano é

condicionada pela possibilidade de alterar a natureza a fim de satisfazer as carências

humanas, ou seja: pela possibilidade de realizar trabalho. Partimos então da

perspectiva de que o trabalho, tal como qualquer outra categoria social, é

historicamente condicionado e logo sofre efeitos constantes de alterabilidade. As

alterações do trabalho permeiam historicamente o ato de trabalho e a forma como é

organizada a estrutura social que contorna o trabalho. Assim, a alteração do

trabalho como se dava na idade média, com a corveia e os institutos sociais

medievais, deu razão a uma reorganização social específica com o surgimento do

capitalismo e da revolução industrial. De maneira que da pequena indústria

artesanal até a grande indústria com maquinário pesado na fase industrial temos

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

alterações constantes no interior da forma trabalho e nas formas sociais

circundantes.

O termo “reestruturação produtiva” foi utilizado teoricamente para

delimitar as alterações sofridas pelo trabalho e pelas relações trabalho na fase

neoliberal do capitalismo, em que terceirização, flexibilização e precarização das

relações de trabalho tornaram-se processos mais amplos e generalizados de

alteração da atividade de trabalho. No entanto o termo não pode ser encarado como

um termo limitado historicamente ao período neoliberal, de maneira que todas as

vezes que o trabalho alterou-se (ou foi alterado) estruturalmente temos um

rearranjo produtivo. Nesse sentido, do advento do fogo e da roda até a robótica, as

forças produtivas foram alteradas e com tais alterações todas as relações de

produção alteraram-se também profundamente. Aqui é importante colocar em

perspectiva que a grande diferenciação que o capitalismo gerou no trabalho

enquanto categoria social é que com o surgimento do capital é generalizado o

processo de mercadorização do trabalho.

O capitalismo de plataforma significou mudanças sensíveis na maneira como

o ser social é organizado, representando transformações no modo como são

comprados, vendidos e consumidos os produtos do trabalho humano. Dessa forma,

a força de trabalho, comprada e vendida através das plataformas é elemento

condicionado (e condicionador) da estrutura total de trabalho no interior da qual o

trabalho intermediado pelas plataformas é parte integrante. Nessa quadra é

importante denotar que, assim como reestruturações produtivas anteriores

ganharam o nome das empresas símbolo dessas alterações (fordismo e toyotismo)

temos que o processo atual de contratação do trabalho intermediado pelas

plataformas vem sendo denominado uberização.

948
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O presente artigo tem como objeto de análise, por um lado, a averiguação de

qual o local ocupado pela uberização no processo social mais amplo de

reestruturação produtiva, por outro lado pretendemos abordar como se desenvolve

um dos efeitos jurídicos da uberização, qual seja o da desregulação jurídica do

trabalho. O nosso caminho teórico então será desenvolvido a partir do seguinte

processo: 1) Analisaremos quais são as características principais da reestruturação

produtiva toyotista; 2) para que possamos delimitar quais são os pontos de ruptura

e continuidade entre o processo de uberização e o toyotismo, levando em

consideração a localização desses processos no processo histórico de

mercadorização do trabalho; 3) Para que assim possamos estabelecer como se dá o

entrelaçamento entre desregulamentação do trabalho e uberização.

1. FETICHISMO, RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E REESTRUTURAÇÃO

PRODUTIVA

Duas reflexões são centrais para a devida apropriação do processo de

reestruturação produtiva. A partir das mesmas construiremos nosso raciocínio a

respeito do Toyotismo e o local da uberização na reestruturação produtiva.

A primeira reflexão diz respeito às categorias força produtiva e relações de

produção. Em que as forças produtivas equivalem aos meios a partir dos quais o

homem intervém na natureza modificando-a a fim de superar suas necessidades; e

em que as relações de produção são as que se desenvolvem entre os seres humanos

responsáveis pelo ato produtivo a fim de que ele ocorra. Rubin apresenta as duas

conceituações nas seguintes palavras:

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

As atividades de trabalho das pessoas encontram-se num processo


de modificação constante, às vezes mais rápida, outras mais lenta, e
tem um caráter diferente em diferentes períodos históricos. O
processo de modificação e de desenvolvimento da atividade de
trabalho das pessoas compreende dois tipos de modificações: em
primeiro lugar, as modificações nos meios de produção e métodos
técnicos, através dos quais o homem atua sobre a natureza – em
outras palavras, modificações nas forças produtivas da sociedade; em
segundo lugar, correspondentemente a essas modificações,
produzem-se outras em toda a estrutura de relações de produção entre
as pessoas, entre os participantes do processos social de produção
(RUBIN, 1987, p. 13)

Nesse sentido as técnicas e tecnologias produtivas inserem-se no interior das

forças produtivas; ao passo que a hierarquia no trabalho, a forma de contratação, as

normas regulamentadoras das relações de trabalho, a cultura e a organização do

Estado representam relações de produção, desde o nível mais próximo e imediato à

atividade de trabalho até o nível mais longínquo e mediado. Marx enxerga a

existência de contradição entre relações de produção e forças produtivas

entrelaçada à problemática da divisão social do trabalho:

Além do mais, é completamente indiferente o que a consciência


sozinha empreenda, pois de toda essa imundice obtemos apenas
um único resultado: que esses três momentos, a saber, a força de
produção, o estado social e a consciência, podem e devem entrar em
contradição entre si, porque com a divisão do trabalho está dada a
possibilidade, e até a realidade, de que as atividades espiritual e
material – de que a fruição e o trabalho, a produção e o consumo -
caibam a indivíduos diferentes, e a possibilidade de que esses
momentos não entrem em contradição reside somente em que a
divisão do trabalho seja novamente suprassumida [aufgehoben]
(MARX, 2017, P. 36)

A primeira questão que suscitamos é a de que o indivíduo e a consciência

individual aparecem como terceiro elo de uma trilateralidade formada por

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

individuo, relações de produção e forças produtivas. Dessa maneira esses três

momentos conformam uma relação de influência recíproca em que alterando-se um

destes consequentemente altera-se também os outros dois. Assim, a consciência

individual é conformada e formadora das relações de produção e forças produtivas.

Pela lógica correspondente alterando-se as forças produtivas temos alteradas as

relações de produção e as consciências individuais. Em um segundo ponto,

visualizamos que consumo e trabalho formam um circuito integrado, em que é

produzido aquilo que tem finalidades próprias para o consumo, para a fruição,

porém, mesmo havendo uma interdependência entre consumo e produção a partir

do momento em que há a divisão social do trabalho é cada vez mais provável que

sejam ações que apareçam como realizadas separadamente.

Nesse aspecto de interdependência entre consciências individuais, forças

produtivas e relações de produção temos que a reestruturação produtiva de

maneira mais ampla representa a reconfiguração do mundo social humano desde

os meios de trabalho diretos até os mecanismos mais superestruturais de controle

ideológico tais como o Direito, a cultura, o Estado. Devendo então o toyotismo ser

compreendido dentro do cenário geral de transformações ocorridas após a crise do

petróleo ocorrida na década de 70, sendo necessária a afirmação objetiva de quais

os traços estruturais centrais que expressam a reconfiguração no mundo do trabalho

e além dele, o que devemos fazer logo mais adiante.

A segunda reflexão diz respeito ao processo de mercadorização do trabalho, ou

ao processo de produção e reprodução do valor, ou de valorização do valor. Esse

processo tem como expressão uma circularidade que é iniciada com a inversão de

capital em sua forma monetária na produção de um produto mediante a exploração

do trabalho, devendo esse produto ingressar na arena social através do involucro

mercadoria para ser comprada e vendida, consumida, devendo o valor obtido e seu

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

excedente ser reinvestido na reprodução de produtos que passarão pela mesma

processualidade. Nessa processualidade, a existência concreta de uma excedente

deriva da possibilidade de produção de um mais valor derivado da mercadorização

do trabalho, em que o trabalho tornado mercadoria ocupa um espaço social sui

generis, pois, ao mesmo tempo, ocupa o espaço da produção e da circulação das

mercadorias. Com essa sincronia existente da ocupação simultânea do espaço de

circulação e produção das mercadorias o trabalho tornar-se mercadoria significa

concretamente constituir-se como uma mercadoria que produz outras mercadorias,

constituindo-se como invólucro mercadológico que ao ser comprado e vendido

abaixo do valor que produz possibilita a produção do excedente, do mais valor.

A mercadoria cumpre então o papel de invólucro intermediador das relações

sociais e no ponto onde absorve a força de trabalho acaba por ser razão de

submissão das ações subjetivas a uma lógica alheia à vontade consciente dos seres

humanos. A mercadoria tem a especificidade de apagar as relações humanas

ocultadas no processo de produção, sendo essa característica denominada por Marx

como o fetiche da mercadoria, sendo apresentado o fetiche da seguinte maneira:

O caráter misterioso da forma-mercadoria consiste, portanto,


simplesmente no fato de que ela reflete aos homens os
caracteres sociais de seu próprio trabalho como caracteres
objetivos dos próprios produtos do trabalho, como
propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso,
reflete também a relação social dos produtores com o trabalho
total como uma relação social entre os objetos, existente à
margem dos produtores. É por meio desse quiproquó que os
produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sensíveis-
suprassensíveis ou sociais. A impressão luminosa de uma
coisa sobre o nervo óptico não se apresenta, pois, como um
estímulo subjetivo do próprio nervo óptico, mas como forma
objetiva de uma coisa que está fora do olho. No ato de ver,

952
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

porém, a luz de uma coisa, de um objeto externo, é


efetivamente lançada sobre outra coisa, o olho. Trata-se de
uma relação física entre coisas físicas. Já a forma-mercadoria e
a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se
representa não tem, ao contrário, absolutamente nada a ver
com sua natureza física e com as relações materiais
[dinglichen] que dela resultam. É apenas uma relação social
determinada entre os próprios homens que aqui assume, para
eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas.
Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos
refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os
produtos do cérebro humano parecem dotados de vida
própria, como figuras independentes que travam relação
umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam,
no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A
isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do
trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e
que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias
(MARX, 2014, p. 207)

Rubin assim apresenta o fetichismo:

Em que consiste a teoria marxista do fetichismo, segundo as


interpretações geralmente aceitas? Consiste em Marx ter visto
relações humanas por trás de relações entre as coisas,
revelando a ilusão da consciência humana que se origina da
economia mercantil e atribui às coisas características que têm
sua origem nas relações sociais entre as pessoas no processo
de produção (RUBIN, 1987, p. 19)

No entanto, Rubin aponta que esse desenvolvimento não esgota a teoria do

fetichismo, apontando que a mercadorização amparada pela característica do

fetichismo é questão chave para compreender o processo de produção social no

capitalismo. O encadeamento que Rubin faz entrelaça as análises de que na

economia mercantil o que existem são células individuais formalmente

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

independentes da economia nacional encarnadas nas empresas privadas, porém

essas empresas formalmente independentes são materialmente vinculadas e que

essa vinculação material se dá através da troca mediante a mercadoria (RUBIN,

1987, p. 24). Nesse processo, apesar do planejamento produtivo se dar no interior

da empresa as condições materiais para a reprodução do circuito econômico são

externos e o elo material nuclear das relações de produção é em última instância o

processo de mercadorização.

A perspectiva então é que na sociedade mercantil indivíduos isolados estão

conectados uns aos outros por determinadas relações de produção em que as

pessoas ocupam determinados locais sociais em razão da propriedade de

determinadas coisas. As coisas então habilitam as pessoas a ocupar determinado

local social. Tal inversão ocorre a partir do momento em que determinadas relações

de produção conferem uma determinada forma social às coisas – materialização das

relações de produção – e em que a existência de coisas com uma determinada forma

social capacita seu proprietário a ingressar em determinadas relações de produção

– personificação das coisas (RUBIN, 1987, p. 35) A generalização de uma

determinada forma social, entretanto, não é instantânea, dependendo de um longo

processo histórico e social a partir do qual consegue impor um caráter social

diferenciado. Rubin denomina esse processo histórico e social de consolidação das

formas sociais, das relações de produção e das forças produtivas como cristalização:

Á medida que as forças produtivas se desenvolvem, fazem


surgir um determinado tipo de relações de produção entre as
pessoas. Essas relações repetem-se com freqüência, tornam-se
comuns e se difundem num determinado meio social. Esta
"cristalização" de relações de produção entre pessoas leva à
"cristalização" das correspondentes formas sociais entre
coisas. Essa forma social é "agregada", fixada a uma coisa, e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

nela é preservada mesmo quando as relações de produção


entre pessoas se interrompem. Somente a partir desse
momento é possível datar o surgimento dessa "determinada
categoria material como separada das relações de produção
entre as pessoas, entre as quais surgiu e às quais, por sua vez,
afeta (RUBIN, 1987, p. 37)

É então sobre as bases das relações de produção, das forças produtivas e da

intermediação fetichista entre elas que desenvolveremos nossas observações sobre

a reesutruturação produtiva

2. A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA TOYOTISTA

No balanço a respeito da reestruturação produtiva em geral, e da reestruturação

produtiva toyotista em específico, temos como central apontar que novas forças

produtivas conduzem a novas relações de produção, simbolizando aquilo que é

inovador no tecido social no processo de reestruturação capitalista; porém, por

outro lado, existe um núcleo central que é conservado no processo de revolvimento

das relações econômicas que é justamente a mercadorização em si, a produção de

valor através da exploração do trabalho e o controle do circuito social global pelo

processo de valorização do valor. Nessa dialética entre alterações profundas das

forças produtivas e das relações de produção uma tônica essencial é central: a

manutenção da mercadoria como fio condutor da relação entre os homens.

Dessa maneira apontamos os traços centrais da reestruturação produtiva como

alterações profundas entre o modo de desenvolvimento das forças produtivas e das

relações de produção imediatamente anteriores – taylorismo e fordismo - de modo

a conservar o núcleo essencial do processo de produção da mercadoria. Tais

alterações profundas ocorrem justamente em razão da crise do capitalismo ocorrida

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

na década de 70, sendo destacada a relação entre a crise e a reestruturação por

Antunes:

O capital deflagrou, então, várias transformações no próprio


processo produtivo, por meio da constituição das formas de
acumulação flexível, do downsizing, das formas de gestão
organizacional, do avanço tecnológico, dos modelos alternativos ao
binômio taylorismo/fordismo, em que se destaca especialmente o
‘toyotismo’ ou o modelo japonês. Essas transformações, decorrentes
da própria concorrência intercapitalista (num momento de crises e
disputas intensificadas entre os grandes grupos transnacionais e
monopolistas) e, por outro lado, da própria necessidade de
controlar as lutas sociais ciais oriundas do trabalho, acabaram por
suscitar a resposta do capital à sua crise estrutural. (ANTUNES,
2009, p. 49)

Formas de inovadoras de gestão do trabalho e desenvolvimento tecnológico

equivalem, respectivamente, a alterações, por exemplo, de relações de produção e

forças produtivas. Quais são os elementos caracterizadores dessas inovações? Para

Antunes os traços básicos do toyotismo são os de que: 1) a produção passa a ser

vinculada à demanda; 2) o trabalho operário passa a ser desenvolvido em equipe,

com multitarefas, diferente do fordismo que era baseado no parcelamento do

trabalho; 3) a operação simultânea no trabalho de inúmeras máquinas,

caracterizando o processo como flexível; 4) a partir do princípio just in time se tem

o melhor aproveitamento possível do tempo; 5) a circulação das mercadorias

produzidas ocorrem com estoques mínimos, com placas e senhas para a reposição

de peças no estoque; 6) uma estrutura empresarial horizontalizada em oposição a

verticalização da firma fordista, com terceirização da produção para outras

empresas; 7) a organização dos Círculos de Controle de Qualidade, em que os

trabalhadores são instigados a discutir o seu trabalho em equipe; 8) a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

implementação, no Japão, para uma parcela dos trabalhadores, do emprego

vitalício, com ganhos salariais vinculados à produção (ANTUNES, 2009, p. 57)

O que Antunes observa é um circuito de alterações da organizabilidade do

trabalho que é interrelacionado: a vinculação mais estrita entre circulação e

produção de mercadorias significa a prescindibilidade de estoques, um controle

maior sobre a produção mediante placas e sinais e a reorganização da sociabilidade

interna da fábrica. Uma nova sociabilidade interna ao processo fabril representa

uma quebra da organização sindical por duas vias: a primeira em razão da expansão

do relacionamento coletivo entre trabalhadores e empresa em detrimento da

sociabilidade sindical; a segunda pois a terceirização significa concretamente a

fragmentação dos trabalhadores em diversos institutos contratuais e em substratos

hierarquicamente constituídos. Antunes expressão a reestruturação produtiva

toyotista da seguinte forma:

Tentando reter seus traços constitutivos mais gerais, é possível dizer


que o padrão de acumulação flexível articula um conjunto de
elementos de continuidade e de descontinuidade que acabam por
conformar algo relativamente distinto do padrão taylorista/fordista
de acumulação. Ele se fundamenta num padrão produtivo
organizacional e tecnologicamente avançado, resultado da
introdução de técnicas de gestão da força de trabalho próprias da
fase informacional, bem como da introdução ampliada dos
computadores no processo produtivo e de serviços. Desenvolve-se
em uma estrutura produtiva mais flexível, recorrendo
frequentemente à desconcentração produtiva, às empresas
terceirizadas etc. Utiliza-se de novas técnicas de gestão da força de
trabalho, do trabalho em equipe, das ‘células de produção’, dos
‘times de trabalho’, dos grupos ‘semiautônomos’, além de requerer,
ao menos no plano discursivo, o ‘envolvimento participativo’ dos
trabalhadores, em verdade uma participação manipuladora e que
preserva, na essência, as condições do trabalho alienado e
estranhado. O ‘trabalho polivalente’, ‘multifuncional’, ‘qualificado’,
combinado com uma estrutura mais horizontalizada e integrada

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

entre diversas empresas, inclusive nas empresas terceirizadas, tem


como finalidade a redução do tempo de trabalho. (ANTUNES, 2009,
p. 54)

Dessa maneira temos que não só o avanço tecnológico se insere na modificação

das forças produtivas reclamando assim novos arranjos das relações de produção,

como também ocorre um reforço do apagamento fetichista do trabalho. Marx

aponta a suprassunção da divisão do trabalho como elemento chave para a

compreensão de como as relações de produção não entram em confronto com as

forças produtivas, aqui o rearranjo promovido pela terceirização e por outras

técnicas de dominação da força de trabalho são o aprofundamento do apagamento

do trabalho servindo como nexo de estabilização do ser social capitalista. A

terceirização se insere como processo de dupla mercadorização do trabalho, a

primeira em relação à firma intermediadora e a segunda em relação à firma

tomadora do serviço, levando a um duplo apagamento do trabalho e à uma dupla

produção de mais-valia. Por outro lado, temos a complexificação da vinculação

material entre empresas formalmente independentes, com a criação de novas

entidades empresariais destinadas especificamente ao oferecimento de mão de obra

precarizada, gerando uma nova diferenciação no circuito social das relações de

trabalho. A generalização dessa nova maneira de empregabilidade, e por

consequência dessa nova maneira de organização da produção, surtiria impactos

não só sobre a força de trabalho terceirizada, não só sobre a força de trabalho fabril,

mas sobre todas as formas de trabalho.

Castels também realiza elaborações que se relacionam com as alterações

ocorridas no decorrer da década de 70 em diante:

958
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O próprio capitalismo passa por um processo de profunda


reestruturação caracterizado por maior flexibilidade de
gerenciamento; descentralização das empresas e sua organização
em redes tanto internamente quanto em suas relações com outras
empresas; considerável fortalecimento do papel do capital vis-à-vis
o trabalho, com o declínio concomitante da influência dos
movimentos de trabalhadores; individualização e diversificação
cada vez maior das relações de trabalho; incorporação maciça das
mulheres na força de trabalho remunerada, geralmente em
condições discriminatórias; intervenção estatal para desregular os
mercados de forma seletiva e desfazer o estado de bem estar social
com diferentes intensidades e orientações, dependendo da natureza
das forças e instituições políticas de cada sociedade; aumento da
concorrência econômica global em um contexto de progressiva
diferenciação dos cenários geográficos e culturais para a
acumulação e a gestão do capital (CASTELS, 1999, p. 40)

Nesse ponto Castels avança para análises da esfera superestrutural, tais como

a desconstrução do estado de bem-estar social, o que também é analisado ao seu

modo por Antunes em sua obra. O que diferencia em perspectiva analítica a

elaboração desenvolvida por Castels da desenvolvida por Antunes é o enfoque

dado ao elemento tecnológico, em que tecnologia é conceituada como “o uso de

conhecimentos específicos para especificar as vias de se fazerem as coisas de uma

maneira reproduzível” (CASTELS, 1999, 56). Nessa perspectiva o elemento

tecnológico de maneira mais ampla e a tecnologia da informação de forma mais

estrita é apontado como categoria estruturante das novas relações de trabalho e da

reconfiguração social ocorrida desde a década de 70.

As características fundamentais do toytotismo avançam por outros

elementos como a hegemonia do capital financeiro sobre o capital produtivo, a

expansão das privatizações, a expansão do individualismo e de um caldo cultural

que ideologicamente reforça comportamentos e maneiras de pensar que dão

sustentação ao neoliberalismo. Em perspectiva maior temos como base um cenário

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de precarização do trabalho, diminuição do capital público, perda de direitos sociais

que se retroalimenta por todo o tecido social com inúmeros pontos de intersecção.

Esse é o cenário da reestruturação produtiva iniciada na década de 70 e que se

prolongou historicamente nas últimas décadas do século XX.

3. O local do uberismo na reestruturação produtiva

Antes de avançarmos na compreensão de quais os elementos

caracterizadores da Uberização e como ela corresponde ao processo de

reestruturação produtiva iniciado na década de 70, requer necessário apontar

alguns elementos constitutivos já do Toyotismo que são essenciais ao

desenvolvimento da análise. De maneira que nossa questão central no presente

ensaio é justamente a de averiguar se a uberização constitui-se como uma nova

reestruturação produtiva ou se é somente a continuidade da reestruturação

produtiva toyotista.

Em primeira linha é central levantar a observação teórica proposta por

Castels, em que, tratando da revolução tecnológica iniciada ao final da década de

70, o autor afirma: “Pela primeira vez na história, a mente humana é uma força

direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo”

(CASTELS, 1999, p. 69). A partir dessa proposição vislumbramos que já desde o

surgimento do Toyotismo o advento tecnológico e o espaço da produção de

conhecimento ganharam maior centralidade, inserindo-se no circuito capitalista

como força produtiva. Dito de outra maneira, não só instrumentos tecnológicos,

técnicas e métodos produtivos inovadores moldaram a reconfiguração das forças

produtivas, mas também a própria informação tornada mercadoria reordenou as

formas de trabalho. Como exemplo podemos tomar que o que a Uber comercializa

é justamente a informação, de maneira que o algoritmo desenvolvido por ela a

capacita a ordenar, organizar e distribuir informações, vendendo-a tanto ao

960
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

motorista quanto ao passageiro que contratam seu aplicativo, da mesma maneira

servindo para o Airbnb ou outra empresa de compartilhamento.

Outra observação pertinente ao nosso caminho de pesquisa é a de que,

segundo Castels, as tecnologias não se desenvolveram de maneira unilateral, mas

num grande ciclo de reciprocidade em que: “Na verdade, as descobertas

tecnológicas ocorreram em agrupamentos, interagindo entre si num processo de

retorno cada vez maiores” (CASTELS, 1999, p. 73). Tal caminho de desenvolvimento

inicia uma processualidade histórica em que inúmeros produtos tecnológicos

conectam-se em sincronia como, por exemplo, os produtos comercializados pela

Microsoft, Google, os servidores de internet e assim sucessivamente. Sobre essa

dialética entre a mercadorização da informação e um ciclo de reciprocidade

crescente entre os produtos tecnológicos Castels nos traz:

A emergência de um novo paradigma tecnológico organizado em


torno de novas tecnologias da informação, mais flexíveis e
poderosas, possibilita que a própria informação se torne o produto
do processo produtivo. Sendo mais preciso: os produtos das novas
indústrias da informação são dispositivos do processamento de
informações ou o próprio processamento das informações. Ao
transformarem os processos de processamento da informação, as
novas tecnologias da informação agem sobre todos os domínios da
atividade humana e possibilitam o estabelecimento de conexões
infinitas entre diferentes domínios, assim como entre os elementos
e agentes de tais atividades. Surge uma economia em rede
profundamente interdependente que se torna cada vez mais capaz
de aplicar seu progresso em tecnologia, conhecimentos e
administração na própria tecnologia, conhecimentos e
administração. Um círculo tão virtuoso deve conduzir à maior
produtividade e eficiência, considerando as condições corretas de
transformações organizacionais e institucionais igualmente
drásticas” (CASTELS, 1999, p. 120)

961
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A partir da inserção da informação em si como força produtiva, o

pressuposto da revolução tecnológica ocorrida no período toyotista nos traz um

elemento que é basilar para o uberismo, qual seja a constituição da rede

internacional de computadores e com isso a reorganização do ser social também em

rede, atingindo relacionalmente todos os substratos da atividade humana. Nesse

mesmo sentido aponta Slee:

A internet está promovendo um mundo mais promissor, não


apenas por nos fornecer mais informação e aparelhos cada vez
melhores, mas por remodelar a sociedade inteira. Nós agora temos
a tecnologia para resolver os problemas que assolaram a
humanidade por séculos, tornando obsoletas as velhas instituições
e as velhas regras, que são cada vez mais suplantadas pela
computação. (SLEE, 2017, p. 14)

Slee realiza detalhada análise sobre as empresas que atuam hoje sob os mesmos

métodos produtivos, de maneira que as chamadas empresas de compartilhamento

atuam sobre inúmeras atividades da sociabilidade humana, desde o transporte de

pessoas até o consumo de alimentos. Entretanto, um ponto inescapável à

compreensão dessas empresas é a vinculação à tecnologia e, por consequência, a

vinculação à Internet:

Mas os limites da Economia do Compartilhamento não são


arbitrários. Quase todos os membros da Peers, e todos os grupos
mencionados por Botsman e Owyang, são organizações centradas
em tecnologia, e este é o ponto nevrálgico dessa história. Se as
companhias marcadas com o rótulo da Economia do
Compartilhamento definem o termo, então está claro que a internet
é parte fundamental dessa autoidentificação. É a encarnação
comercial da ideia de igualdade progressiva do autor Steven
Johnson. Em seu livro Future Perfect [Perfeito futuro, ainda sem
edição em português], Johnson diz: “Quando existe uma
necessidade não satisfeita na sociedade, nosso primeiro impulso

962
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

deveria ser formar uma rede de iguais para resolver este problema.”
Construir uma “rede de iguais” significa, primeiro e acima de tudo,
construir uma plataforma na internet: um site ou um aplicativo
móvel em que consumidores e fornecedores podem trocar bens e
serviços. (SLEE, 2017, p. 27)

Em um horizonte investigativo histórico temos que a processualidade de

operações em rede, para a inserção da informação como força produtiva tem

começo não com as companhias recentes de economia do compartilhamento como

a Uber. No entanto, ao passo que na década de 70 esse processo surgia de maneira

incipiente, temos uma generalização desse processo no tempo presente, o que nos

remete às elaborações de Rubin sobre a cristalização das formas sociais. Aqui a

relação social se expressa da maneira mais clara possível como uma coisificação, ao

passo que a conexão entre os indivíduos isolados se dá através do microcomputador

ou celular pessoal, através da rede de internet, em que separados por uma tela as

relações econômicas são realizadas. Somente ingressa em determinada relação de

produção quem é detentor de uma coisa propícia para comunicar-se através da

rede, seja o computador ou outro meio de acesso, por outro lado em perspectiva

alienada é dado às coisas a intermediação de relações que são humanas.

Tendo sido colocado um dos pressupostos basilares para a cristalização da

economia do compartilhamento, devemos analisar então quais são os pontos de

ruptura que diferenciam o uberismo do toyotismo.

Em primeiro lugar, a consolidação de técnicas de terceirização derivada do

Toyotismo, com a utilização de contratos diferenciados na mesma firma, o que

significou tanto contratos trabalhistas diferenciados quanto um retorno ao contrato

civil para a contratação de trabalho com a pejotização, é um traço aprofundado com

o uberismo. Slee assim apresenta a questão:

963
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Dinheiro é um dos muitos pontos de discórdia em muitos


empregos, mas a Uber não é apenas mais um empregador. De fato,
não é mesmo um empregador: os motoristas da Uber são
“parceiros”, empresários autoempregados que escolhem trabalhar
na plataforma. O modelo de “microempreendedores” que escolhem
quando trabalhar, de maneira independente, é o que faz da Uber
parte da efervescente Economia do Compartilhamento. O que
parece à primeira vista um modelo leve e flexível de trabalho
transforma-se, nas mãos da Uber, em mais uma maneira de a
companhia se dar bem. (SLEE, 2017, p. 80)

Entretanto, diferentemente das técnicas de terceirização anteriores, aqui o

“contrato” é intermediado pelo produto tecnológico. Não é só que há eliminação de

direitos trabalhistas. Os “colaboradores” da empresa, que no mundo realizam o

trabalho, estão contratando uma mercadoria em forma de informação e se

submetem a essa mercadoria. Se falamos que na terceirização existe uma dupla

mercadorização – uma junto a empresa tomadora e outra junto a empresa

intermediadora de mão de obra – aqui há um processo de inversão fetichista em que

aparentemente não é o trabalhador que está vendendo sua força de trabalho, mas,

do contrário, ele estaria adquirindo um serviço prestado pela empresa e prestando

um serviço a um terceiro.

Em segundo lugar, enquanto nas formas anteriores de exploração do trabalho

a subordinação entre trabalho e capital era mais visível, com ordens expressas dos

patrões, aqui temos maneira de subordinação mais sutis, ao ponto de serem quase

imperceptíveis. O que na Uber aparece como os sistemas de recompensa, em que as

atitudes comportamentais do “colaborador” é ranqueada pelos consumidores do

produto. A respeito das pontuações como forma de controle do trabalho Slee nos

traz os seguintes termos:

964
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Com o tempo, a Uber foi coletando mais e mais dados sobre todos
os aspectos das corridas. Esses dados dão à corporação novas
oportunidades de controlar o comportamento dos motoristas e
formatar a experiência dos consumidores. A Uber sabe que os
passageiros vão aceitar pagar tarifas mais altas quando a bateria do
celular está acabando; sabe que ficaremos mais felizes em pagar
uma tarifa calculada sobre um múltiplo de 2,2 vezes o preço base
do que sobre um múltiplo de 2, porque a falsa precisão do 2,2 nos
remete ao racional cálculo de um algoritmo, ao passo que o número
redondo de 2 nos soa como uma decisão humana para nos roubar
dinheiro.
A Uber tem estudado a psicologia da persuasão e a utiliza para
melhorar suas operações, adotando técnicas de videogames que
mantêm os motoristas nos trilhos. Muitos motoristas estão
convencidos de que o sistema os engana, por exemplo, mostrando
viagens que desaparecem antes que possam aceitá-las, o que faz
com que não consigam atingir os níveis de aceitação necessários
para ganhar um bônus. Ou manipulando o tempo de espera por um
passageiro que ao final cancela, negando o direito à taxa por
desistência. (SLEE, 2017, p. 81)

A princípio o sistema de controle através do sistema de recompensas pode

parecer menos agressivo aos trabalhadores subordinados à empresa. No entanto

acabam por se tornar sistemas hierárquicos disciplinares, com grande centralização

e operado a partir da condensação de informações algoritimizadas. Por outro lado,

o sistema de recompensas tem um duplo efeito: o primeiro de controlar de maneira

fluida o comportamento dos “colaboradores”; o segundo de construir socialmente

a confiança necessária para que os consumidores do serviço final possam se sentir

à vontade para contratá-lo. No processo social de obtenção de serviços através das

redes sociais a relação com estranhos é vital, de maneira que o sistema de

ranqueamento e punições serve como freio social a atitudes que descumprem o

padrão de prestação de serviços. A ampliação do controle social sobre o trabalho

surge justamente como possibilidade decorrente do advento tecnológico, em que a

vigilância

965
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Em um dos galpões da Amazon na Alemanha, por exemplo, a


empresa monitorou xs trabalhadorxs de logística e xs reprimiu por
curtos períodos de inatividade, com os seus “relatórios de
inatividade”. Tecnologias de vigilância e supervisorxs monitoram
até mesmo conversas de dois minutos entre trabalhadorxs e idas ao
banheiro.30 Após dois desvios, pausas de um a nove minutos,
trabalhadorxs podem ser demitidxs. E é claro que isso não está
acontecendo somente nos centros de logística da Amazon na
Alemanha. É a lógica taylorista levada ao extremo que não faz
nenhum sentido para os negócios. É uma absoluta densificação do
trabalho, como diz a professora Ursula Huws. Adicionalmente, a
Suprema Corte dos eua julgou um caso declarando que a revista de
segurança obrigatória de trabalhadorxs não pode ser compensada
como hora extra apesar do fato de xs trabalhadorxs esperarem em
fila por trinta a quarenta minutos todos os dias. A legislação
favorece abertamente as empresas. (SCHOLZ, 2017, p. 45)

Em terceiro lugar, mesmo a processualidade da revolução tecnológica e do

avanço da mercadorização da informação tendo sido iniciada e intensificado ao

final da década de 70, o que diferencia a economia do compartilhamento é a

possibilidade contemporânea do trabalho ser contratado mediante o circuito

tecnológico. Não há notícia de antes dos aplicativos de plataformas da possibilidade

de o trabalho ser produzido e reproduzido de maneira estável subordinado a

circuitos tecnológicos. Por mais que na primeira revolução industrial o homem teve

que se adequar ao tempo da máquina, na uberização a máquina de fato emite

comandos que controlam o homem através dos aplicativos. Aqui a subordinação do

homem à coisa ganha proporções de qualidade distintas e o apagamento fetichista

da realidade passa não só pela alquimia da mercadorização, mas também pelo

fetiche derivado da tecnologia. Nas palavras de Scholz: “Há uma massa de corpos

sem um nome, escondida por trás da tela, exposta a vigilância no ambiente de

trabalho, espoliação da multidão, roubo de salários e softwares proprietários”.

966
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

(SCHOLZ, 2017, p. 24). Nesse sentido, ocultar atrás da tela reforça o apagamento do

trabalho característico do capitalismo introjetando a interface tecnológica como

outro meio fetichista.

É necessário apontar, então, que, na perspectiva da divisão social do trabalho

como suprasunção necessária para o ocultamento das contradições existentes entre

forças produtivas e relações de produção, temos aqui uma tremenda expansão da

divisão do trabalho intermediada pela tecnologia. Se a terceirização clássica diluía

as relações sociais travadas no ambiente de trabalho aqui há a completa eliminação

do próprio ambiente de trabalho. Scholz trata a respeito de uma prática de

fragmentação do trabalho denominada Mechanical Turk, em que tarefas que

aparentemente são realizadas por computadores na verdade estão sendo realizadas

por milhões de trabalhadores que escolhem qual tarefa cumprir:

Desde 2005, a Amazon opera uma intermediação online do trabalho


por meio da Mechanical Turk, onde trabalhadorxs podem se
cadastrar e escolher tarefas de uma longa lista. De forma similar ao
trabalho fragmentado da indústria têxtil, a Mechanical Turk
permite que um projeto seja quebrado em milhares de partes, que
então são distribuídas axs ‘trabalhadorxs da multidão’. Geralmente
com boa escolarização, trabalhadorxs novatxs ganham em torno de
dois a três dólares por hora nesse ambiente. Assim como
trabalhadorxs migrantes, advogadxs ou temporárixs na indústria
alimentícia, elxs trabalham longas horas, são mal remuneradxs e
tratadxs pobremente por chefes virtuais, com pouco ou nenhum
benefício’. (SCHOLZ, 2017, p. 43)

Por outro lado, se a reestruturação produtiva toyotista foi a resposta à crise

do capital na década de 70, a utilização do uberismo como meio de metabolização

do trabalho veio na esteira de respostas do capital à crise de 2008. A avalanche de

trabalhadores precários, informais, desempregados, terceirizados, com salários

mais baixos e sem direitos sociais requisitou a elaboração de novos meios de

967
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

controle sobre o trabalho e a utilização das plataformas como um aspecto dessa

reorganização. Scholz apresenta essa relação com reganismo como outros meios:

A economia do compartilhamento é reaganismo por outros meios.


Dando um passo atrás, sustento que existe uma conexão entre os
efeitos da “economia do compartilhamento” e os choques
deliberados de austeridade que seguiram a crise financeira em 2008.
Xs bilionárixs da tecnologia surfaram na onda, subindo nas costas
daquelxs que estavam procurando por trabalho desesperadamente,
não somente aumentando a desigualdade, mas também
reestruturando a economia de um modo que faz disso uma nova
forma de trabalho, privada de todos os direitos trabalhistas, voltada
à sobrevivência, como dizem, “sustentável” (SCHOLZ, 2017, p. 34)

Por último, em quarto lugar, as empresas de compartilhamento surgiram

imbuídas do propósito “filosófico” de humanizar o consumo, de fazer com o que a

aquisição de produtos servisse a um propósito de integração comunitária. Para

realçar a aparente finalidade de ressignificação do consumo as empresas ditas de

compartilhamento emulam um discurso ideológico em que as próprias

terminologias do circuito econômico são alteradas para ocultar as relações que ali

se desenvolvem. Assim, por exemplo, trabalhadores tornam-se “colaboradores”, o

próprio gruo original de empresas de compartilhamento intitulam-se “movimento”

e (originalmente) o próprio propósito de produção de valor é colocado

ideologicamente como secundário. A princípio é esse o desenvolvimento

ideológico, no entanto em essência o processo se dá de outra forma:

Infelizmente, algo diferente e ao mesmo tempo mais sombrio está


acontecendo: a Economia do Compartilhamento está propagando
um livre mercado inóspito e desregulado em áreas de nossas vidas
que antes estavam protegidas. As companhias dominantes do setor
se tornaram forças grandes e esmagadoras, e, para ganhar dinheiro
e para manter suas marcas, estão desempenhando um papel mais e

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mais invasivo nas trocas que intermedeiam. À medida que a


Economia do Compartilhamento cresce, está remodelando cidades
sem considerar aquilo que as tornava habitáveis. Em vez de trazer
uma nova fase de abertura e confiança pessoal a nossas interações,
está criando uma nova forma de fiscalização, em que os prestadores
de serviços devem viver com medo de ser delatados pelos clientes.
Enquanto o CEO da companhia se refere de maneira benevolente a
suas comunidades de usuários, a realidade tem uma face mais
sombria, definida pelo controle centralizado. Os mercados da
Economia do Compartilhamento estão criando novas e nunca antes
nomeadas formas de consumo. A ideia de “uma graninha extra”
retoma os mesmos argumentos de quarenta anos atrás a respeito do
trabalho feminino, que não era visto como um trabalho “de
verdade”, que demanda um salário mínimo, e portanto não tinha
de ser tratado da mesma forma — ou valer o mesmo — que os
trabalhos masculinos. Em vez de libertar indivíduos para que
tomem controle direto sobre as próprias vidas, muitas companhias
da Economia do Compartilhamento estão dando fortuna a seus
investidores e executivos e criando bons empregos para seus
engenheiros de programação e marqueteiros, graças à remoção de
proteções e garantias conquistadas após décadas de luta social, e
graças à criação de formas de subemprego mais arriscadas e
precárias para aqueles que de fato suam a camisa. (SLEE, 2017, p.
16)

Os quatro elementos aqui destacados ganham contornos que vão desde a

aceleração e aprofundamento dos pressupostos deixados pela reestruturação

produtiva toyotista. Os usos do circuito tecnológico, os rearranjos da categoria

mercadoria e emoluções ideológicos diferenciadas representam inovações que

operam para a manutenção do processo de valorização do valor. As rupturas e

continuidades, inclusive, também acompanharam o troyotismo em relação ao

fordismo. Nesse sentido, a digitalização do trabalho é apontada por Scholz

justamente como ponto de ruptura, para eleo não é uma mera continuação do

capitalismo anterior, havendo descontinuidades notáveis – novas formas de

exploração e concentração da riqueza (SCHOLZ, 2017, p. 25).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tratamos a respeito a respeito de como opera a reestruturação produtiva a

partir de duas reflexões: a primeira sobre a dialética entre relações de produção e

forças produtivas; a segunda sobre o papel do fetichismo da mercadoria. De

maneira a apontar como essas categorias se entrecruzam nos processos de

alterabilidade das relações de trabalho.

Trouxemos quais os fundamentos caracterizadores da reestruturação

produtiva toyotista na visão de dois autores. Em primeira linha Antunes nos ajuda

a compreender como novas formas de domínio do capital sobre o trabalho foram

inauguradas a partir da década de 70; por outro lado Castells imprime o foco de sua

análise na revolução tecnológica também ocorrida no mesmo período. Tanto

redimensionamentos da organizabilidade do trabalho quanto inovações

tecnológicas afetam direta ou indiretamente as relações de produção e as forças

produtivas, de maneira que se inter-relacionam reciprocamente.

Levantamos um traço de continuidade entre o toyotismo e o uberismo, qual seja

a criação e o desenvolvimento da rede e sua generalização cristalizando-se como

força produtiva com cada vez maior centralidade. Por outro lado, descrevemos

quatro pontos de ruptura: 1) A uberização como uma nova forma de

mercadorização do trabalho em há uma inversão fetichista no processo de compra

e venda, sendo que o “colaborador” é quem adquire o produto-algoritimo; 2) o

sistema de raqueamentos como via de comando sobre o trabalho; 3) A tecnologia é

utilizada como intermediador da contratação do trabalho de maneira a submeter o

homem ao aparato tecnológico de maneira distinta da habitual; 4) as empresas de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

compartilhamento utilizam-se de elementos ideológizantes de ressignificação do

trabalho e do consumo.

Nesse sentido, de maneira preliminar, em que pese os traços de continuidades

e rupturas, compreendemos que a estabilização de métodos de contratação do

trabalho mediante aplicativos de compartilhamento representam alterações

significativas tanto nas forças de produção quanto nas relações produtivas,

simbolizante um novo circuito de relações de trabalho que expressam uma nova

reestruturação produtiva.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a


negação do trabalho 2.ed., 10.reimpr. rev. e ampl. São Paulo: Boitempo, 2009.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: volume I. 8ª edição revista e ampliada.


Tradução Roneide Venâncio Majer e Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e
Terra, 1999.

RUBIN, Isaak Ilich. A teoria marxista do valor. Tradução José Bonifácio de S.


Amaral Filho. São Paulo: Polis, 1987.

SCHOLZ, Trebor. Cooperativismo de plataforma. Tradução Rafael Zanata. São


Paulo: Elefante, 2017.

SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. Tradução de João


Peres. São Paulo: Elefante, 2017

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de


produção do capital; tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.

MARX, Karl. Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2017.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ELEMENTOS PARA UMA CRÍTICA DIALÉTICA DO DIREITO DO

TRABALHO BRASILEIRO

Victor Araújo Presa Rios 268


Fernando Gabriel Lopes Cavalcante 269
Victor Bastos dos Reis Pereira270

RESUMO
O presente texto tem como objetivo, a partir do diálogo com autores marxistas que
empreenderam reflexões relacionadas ao Direito, esboçar uma análise a respeito da
estrutura do Direito do Trabalho brasileiro. Para sistematizar toda a relação do Estado
brasileiro com as questões pertinentes à regulação da compra e venda da mercadoria força
de trabalho, o Estado constituiu internamente um núcleo de organização burocrática
apropriada para o desenvolvimento técnico da relação jurídica trabalhista. Não só um corpo
burocrático específico, cristalizado na Justiça do Trabalho, como também sistematizou um
conjunto de técnicas, métodos e atos específicos cristalizando-os no processo trabalhista.
Fazendo isso fez com o que um corpo de especialistas, bem como uma parcela do fundo
público estatal, fosse destinado a realizar no concreto a figura do Estado como terceiro
intermediador dos conflitos originários da negação de direitos trabalhistas. Nossa questão
de partida é apreender como se deu essa sistematização em âmbito nacional. Dessa maneira
temos pela frente o desenvolvimento de um debate amplo a respeito do Direito do Trabalho
brasileiro.

Palavras Chave: Direito do Trabalho; Marxismo; Greve; Negociação Coletiva; CLT.

ABSTRACT
The objective of this text, based on the dialogue with Marxist authors who undertook
reflections related to Law, is to outline an analysis regarding the structure of Brazilian Labor
Law. In order to systematize the entire relationship of the Brazilian State with the issues
pertinent to the regulation of the purchase and sale of labor force merchandise, the State
internally constituted an appropriate bureaucratic organization nucleus for the technical
development of the labor legal relationship. Not only a specific bureaucratic body,
crystallized in the Labor Court, but it also systematized a set of specific techniques, methods

268
Graduando em Direito pela Faculdade Nobre de Feira de Santana, victorios1108@outlook.com e
http://lattes.cnpq.br/4021160593969700.
269
Mestre em Sociologia e Direito pelo PPGSD/UFF, gabrielcavalcanteaadv@gmail.com e
http://lattes.cnpq.br/6747139003815987
270
Graduando em Direito pela Faculdade Nobre de Feira de Santana l, victorbastosrp@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/1988928155559982

972
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

and acts crystallizing them in the labor process. Doing this meant that a body of experts, as
well as a portion of the state public fund, was destined to concretely carry out the figure of
the State as the third intermediary in conflicts arising from the denial of labor rights. Our
starting point is to apprehend how this systematization took place at the national level.
Thus, we are faced with the development of a broad debate regarding Brazilian Labor Law.

Keywords: Labor Law; Marxism; Strike; Collective Bargaining; CLT.

INTRODUÇÃO

O caminho para a construção de uma teoria jurídica com base no

materialismo dialético marxista esbarra em pelo menos um grande obstáculo: por

conta da questão jurídica não ser o objeto de estudo do autor, não há na obra de

Marx uma elaboração teórica consistente a respeito do Direito, quando muito o que

temos são citações esparsas que não conformam um todo articulado. Disso decorre

que a teoria marxista a respeito do Direito é resultado da adequação criativa de

autores que levaram a frente a empreitada de analisar a categoria Direito a partir do

arcabouço teórico deixado pelo Mouro. Tal situação se dá de modo a que se pega

emprestado um determinado aspecto do marxismo, uma determinada formulação

categorial, e este é utilizado como pano de fundo para a elaboração teórica sobre o

Direito. Em grande medida tal itinerário não necessariamente signica adequações

mecânicas, principalmente por conta de que a ortodoxia teórica marxista está

fundamentada no método dialético de análise da realidade, podendo esta ser

instrumentalizada para a elaboração a respeito de qualquer particularidade do todo

social. Longe de representar mecanicismos, a insurgência de tantas e diversas

sinteses teóricas marxistas a respeito do Direito é reflexo da riqueza categorial e da

potencialidade criativa do marxismo. Porém, é necessário cuidado para não cair nos

desvios daqueles que, nas palavras de Roberto Lyra Filho, “mutilam o oscilante

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

corpo de idéias, ora nítidas, ora confusas, e dissipam a riqueza do conjunto, para

reduzi-lo a um sistema que ali não existe” (LYRA, p. 11, 1983)

O presente texto tem como objetivo, a partir do diálogo com autores marxistas

que empreenderam reflexões relacionadas ao Direito, esboçar uma análise a

respeito da estrutura do Direito do Trabalho brasileiro. Para tanto, atravessaremos

o seguinte percurso: 1) Sintetizaremos as principais contribuições teóricas e

divergências existentes nas formas de abordagem do direito pelo marxismo; 2) para

dai estruturarmos uma lógica interna ao Direito do Trabalho em geral, tomando

como objeto o Direito do Trabalho brasileiro.

1. O DIREITO EM PERSPECTIVA DO MATERIALISMO DIALÉTICO

O primeiro passo a ser dado para a elaboração firme de uma abordagem

marxista do direito é o tratamento a partir do método. O método dialético de análise

da realidade é a elaboração segundo a qual a existência precede a consciência,

portanto para pensar o mundo necessariamente deve haver um homem realmente

existente, condicionado socialmente, que elabore tal pensamento. É assim um

movimento de ida e retorno, no qual a consciência humana aproxima-se do todo

real caótico de infinitas determinações e sintetiza deste uma estrutura interna. Onde

as categorias sociais não são vistas senão como compenetrações de contrários,

interrelacionadas pelo todo que as envolve, onde é atividade humana a criadora dos

objetos sociais realmente existentes e onde tudo é aquilo que é, e a negação do seu

contrário ao mesmo tempo. Sendo a consciência humana incapaz de apreender o

real o método dialético consiste no caminho de aproximação em relação à matéria

no qual se parte do mais abstrato para atingir as particularidades mais concretas e

do mais simples para o mais complexo.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

No caso do Direito duas abordagens merecem o devido destaque: a de

Evguiéni Pashukanis e a de Roberto Lyra Filho.

Pashukanis parte do entendimento de que o Direito, antes de ser abstração

normativista, é uma relação social, portanto a expressão normativa e generalista que

aparentemente dá forma ao Direito é meramente reflexo da processualidade

histórica construida pelas relações sociais travadas pelos seres humanos:

Ao aplicar as considerações metodológicas supracitadas à teoria do


direito devemos começar pela análise da forma jurídica em seu
aspecto mais abstrato e puro e passar, depois, pelo caminho de uma
gradual complexidade até a concretização histórica. Por isso, não
devemos perder de vista que o desenvolvimento dialético dos
conceitos corresponde ao desenvolvimento dialético do próprio
processo histórico. A evolução histórica traz em si não apenas uma
modificação no conteúdo das normas jurídicas e uma modificação
das instituições do direito, mas também o desenvolvimento da
forma jurídica como tal. Esta surge em certo estágio da cultura e
permanece por muito tempo em estado embrionário, internamente
pouco se diferenciando e não se separando das esferas adjacentes
(costumes, religião). Em seguida, ao se desenvolver
progressivamente, ela atinge seu máximo florescimento, sua
máxima diferenciação e determinação. Esse estágio superior de
desenvolvimento corresponde a relações economicas e sociais
determinadas. Ao mesmo tempo, caracteriza-se pelo surgimento de
um sistema de conceitos gerais, que reflete teoricamente o sistema
jurídico como um todo acabado (PASHUKANIS, p. 86, 2017)

Lyra Filho compreende que Marx não realiza um tratamento dialético da

categoria Direito, surgindo em alguns momentos de sua obra como mero direito

positivo e em outros momentos como direito de resistência. Nesse sentido não

trabalha Marx a categoria Direito a partir do processo de afirmação, negação e

negação da negação do aspecto jurídico da sociedade. Para Lyra Filho, nos

momentos em que Marx discute o Direito numa perspectiva tão-somente estatal

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

estaria o autor incorrendo em uma aproximação com o positivismo onde somente

haveria Direito dentro do Estado, ao passo que quando apresenta o Direito como

impulso subjetivo para reivindicação justa estaria se aproximando de uma

perspectiva jusnaturalista. Tratando de alguns excertos da Critica ao Programa de

Gotha, assim pontua o autor:

Ainda aqui, Marx apresenta e confunde a afirmação do Direito (sem


lhe dar este nome, que, entretanto, reemerge noutrous escritos da
mesma fase), a negação do Direito (que, para isto, é reduzido, en
passant e arbitrariamente, ao modelo do Direito burguês) a e
negação da negação do Direto ( enquanto é, por fim, o direito
burguês que fica negado e, todavia, apenas a um fim de que
prevaleça uma igualdade jurídica de tratamento, depois de extintas
as desigualdades sociais e absorvidas, como irrelevantes, as
diferenças pessoais – neste caso incorporando, transmudando e
reenquadrando, numa igualdade jurídica mais avançada, a
igualdade mesma, que a burguesia institui em principio, contra os
aristocratas, e destruiu na prática, para manter os seus privilégios
conquistados, como nova classe dominante. Donde um Direito
‘alargado’, para empregar a expressão d’A Sagrada Família). Mas
esta negação da negação permanece um bocado confusa, como
dialética do Direito, devido ao teimoso enfoque, em termos duma
contração positivista (LYRA, p. 85, 1983)

Assim não haveria uma abordagem dialética de tal categoria nos escritos

marxianos, devendo então uma teoria marxista do Direito realizar o resgate da

negação da negação (Aufhebung) para realizar a devida apreensão ontológica da

forma jurídica. O resultado seria a proposição de um conceito de Direito ampliado,

o qual estaria presente tanto no momento positivado – estatal, burguês – quanto no

momento de explosão revindicatória – resultante da luta de classes, um direito dos

dominados – surgindo a negação da negação como um Direito em devenir, imerso

ao processo social: “Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos

de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e

opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas

conquistas” (LYRA, p. 86, 1995).

A unidade entre os dois autores consagra-se no ponto onde buscam, a partir do

método dialético, a razão de existência do Direito na conflitualidade do processo

histórico construido pelas relações humanas.

Mas somente dizer que o método dialético aplicado à teoria jurídica seria um

movimento de ida do Direito em abstrato para as relações jurídicas concretas não é

o suficiente para desenvolver a nossa abordagem. Peter Stuchka enriquece esse

desenvolvimento ao inserir a questão da classe social em seu conceito, citando a

formulação do Comissariado da Justiça da União Soviética, assim ele propõe: “O

Direito é um sistema (ou uma ordem) de relações sociais, que corresponde aos

interesses da classe dominante e que, por isso, é assegurado pelo seu poder

organizado (o Estado)” (STUCHKA, p. 6, 2006). Stuchka se preocupa em

caracterizar classe social como uma categoria relacionada à distribuição dos meios

de produção, e não como a distribuição da renda/produtos como o pretendido por

Karl Kautsky, e avança na mediação aqui proposta de que a forma Direito condiz a

relações entre homens realmente existentes, e não a uma relação abstrata entre

coisas:

En su obra fundamental, El Capital, Marx considera el


processo de cambio de la época capitalista desde un ponto de
vista economómico, como movimento de categorias abstractas
(mercancías, dinero, capital, fuerza de trabajo, tirre, etc.). Pero
desde otro punto de vista no olvida nunca que ninguna de
estas categorías abstractas tiene al mismo tiempo su
personificación, que las relaciones entre cosas son en realidade

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

relaciones entre personas y, precisamente, relaciones de


voluntad que, como tales, son al mismo tiempo relaciones
jurídicas (STUCHKA, p. 108, 1974)

A partir da conclusão de que o Direito surge em decorrência das relações de

classe travadas no seio do todo social, para avançarmos na discussão marxista a

respeito do Direito, é necesário tratarmos daquilo que Marx denominava modo de

produção social. A maneira mais pedagógica – e também esquemática – de

representar aquilo que Marx entendia por modo de produção social é aquela na qual

o todo social é dividido em infraestrutura e superestrutura. A infraestrutura seria o

momento em que os seres humanos reproduzem o aspecto econômico da sociedade,

ao passo que a superestrutura seria o momento no qual se reproduzem, por

exemplo, a política, a cultura, a religião e o Direito. De acordo com a abordagem

marxista a instância econômica do todo social exerceria uma influência

predominante sobre o restante da sociedade. Tal influência não seria unilateral e

sim reciproca, bem como não seria uma influência mecânica, inescapável, mas sim

colocada em uma perspectiva relacional, havendo a potencialidade do individuo

superar as condições objetivas da estrutura econômica. No entanto tal abordagem,

apesar de pedagógica, traz o perigo de o momento superestrutural ser considerado

mero decalque das estruturas econômicas, tal como bem observa Alysson Leandro

Mascaro:

O político se apresenta anelado ao econômico, guardando, nesta


específica união de tipo capitalista, justamente sua unidade. O
emparelhamento estrutural de tais formas – econômica capitalista,
política estatal e jurídica – é, além da demonstração de sua
totalidade, também a afirmação conjugada de seus campos
específicos e necessários de objetivação de relações sociais. A
imagem didática que se faz a partir da leitura de Marx – de que um
nível jurídico e político se levanta a partir do nível economico –

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

nesse sentido é prejudicial ao entendimento, se se tomar o político-


jurídico como um acaso ou acessório do economico. Na verdade, o
político e o jurídico se estabelecem no mesmo todo das relações de
produção, ainda que num entrelaçamento dialético de primazia das
últimas em face das primeiras no que tange ao processo de
constituição da sociabilidade (MASCARO, p. 27, 2016)

O Direito é então uma instância específica do modo de produção social. Porém

essa representação enquanto instância apartada do todo não corresponde

efetivamente ao modo como transcorre a reprodução da forma jurídica no todo

social. A reprodução da forma juirídica se dá entrelaçada a diversos outras

instâncias, tanto de ordem super-estrutural quanto de ordem infra-estrutural.

Assim, seguindo o exemplo de Michel Miaille, quando compramos um livro

jurídico, esse é um ato único, mas ao mesmo tempo é representativo de aspectos

economicos, pois o livro é uma mercadoria, de aspectos políticos, se o ato de compra

denotar uma inclinação maior a determinada orientação política, e de um aspecto

jurídico se o conteúdo do livro servir como doutrina para a atividade prática no

campo jurídico. A realidade social então é um todo único, construído pela atividade

humana, tanto consciente quanto inconsciente, cuja base ontológica é o ser social do

homem, porém esse ser social desdobra-se em diversas formas, desde a forma

mercadoria até a forma jurídica. De acordo com esse entendimento a representação

da sociedade em instâncias é exercício meramente teórico.

O grande problema da categorização de Stuchka é que ao corresponder as

relações jurídicas a um sistema de relações norteados por interesses de classe

assegurados pelo uso de força organizada cristalizada no Estado não distingue o

autor as relações jurídicas das relações sociais em geral. Para a devida diferenciação

entre o Direito e outras categorias sociais, já que também a moral, a cultura, a

ideologia e tantas outras categorias também contém em si uma orientação de classe,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

o desdobramento teórico a respeito do Direito deve enveredar pela abstração em

torno de sua instrumentalidade, de qual função cumpre o Direito. Qual é então a

localização do Direito no interior do modo de produção social capitalista?

Pashukanis desenvolve uma análise na qual a generalização da forma Direito estaria

vinculada à circulação de mercadorias, tal como também à produção de

mercadorias: “do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume a

forma de uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta

como uma cadeira ininterrupta de relações jurídicas” (PASHUKANIS, p. 97, 2017).

O Direito serve então à estabilização da troca de mercadorias através do contrato e

à estabilização da produção mediante o direito de propriedade. O mesmo

desenvolvimento é proposto por Michel Miaille:

Precisamente, fora de qualquer metafísica, sabemos que o modo de


produção capitalista organiza um determinado tipo de relações ao
nivel de produção e da circulação, num processo de troca
generalizada de mercadorias. Ora estas relações são determinantes,
em última instância, uma vez que se estabelecem na ‘esfera
economica’. A aproximação com as relações que estabelece o
sistema jurídico esclarece então a nossa matéria e dá-nos a
explicação do que é realmente o direito. A demonstração pode-se
enunciar assim: a mercadoria na esfera econômica tem o mesmo
papel que a norma na esfera jurídica (MIAILLE, p. 94, 2005)

O segredo para a compreensão da forma Direito está então relacionado à forma

mercadoria, uma relação que é compreendida através do fetiche da mercadoria. O

fetiche é caracterizado por Marx como a capacidade que a mercadoria tem de apagar

o rastro de sua produção, tornando-se tão somente portadora de valor de troca,

anulando assim da consciência humana o dispêndio de trabalho concreto necessário

para a produção da mercadoria. Com esse desdobramento, as relações entre os

homens se tornam relações entre coisas, os homens se encontram e se relacionam na

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

esfera econômica não por conta de características humanas, mas por serem

portadores de objetos a serem trocados em forma de mercadoria. Assim o fetiche é

um processo no qual características humanas são transferidas para objetos

inaminados. Nesse sentido, tal como insurge um fetiche na ordem econômica

através da mercadoria, há também o fetiche da ordem normativa, da maneira como

vemos elaborado por Michel Miaille:

Como efeito, o fetichismo da mercadoria faz esquecer que a


produção e a circulação dos objectos chamados mercadorias
escondem relações sociais entre os individuos. No plano econômico
tudo aparece como colocado sob o signo da matéria e da riqueza: o
económico seria o lugar da produção e da distribuição de riquezas.
Estas seriam extraídas da natureza, para serem objecto de trocas,
mas jamais aparecem realmente as relações entre os homens que
permitem a organização desta produção e desta circulação. Tudo se
passa num mundo totalmente coisificado.
É exatamente o contrário aquilo a que chega a noção de norma. O
fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo
único de direito, faz esquecer que a ciruclação, a troca e as relações
entre pessoas são na realidade relações entre coisas, entre objectos,
que são exactamente os mesmos da produção e da circulação
capitalistas. E, de facto, no mundo do direito tudo parece passar-se
entre pessoas: as que mandam e as que obedecem, as que possuem,
as que trocam, as que dão, etc. Tudo parece ser objetco de decisão,
de vontade, numa palavra, de Razão. Jamais aparece a densidade
de relações que não são queridas, de coisas às quais os homens
estariam ligados, de estruturas constrangedoras mais invisíveis
(MIAILLE, p.94, 2005)

Em síntese, o Direito é uma relação social. Essa relação é atravessada pela

estrutura da sociedade em classes. Assim, o Direito conforma uma instância do

modo de produção social, reflexo relacional da circulação e produção de

mercadorias. Portanto o Direito é momento da superestrutura dialeticamente

inserido nas contingências infraestruturais da instância econômica. Sua função é

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

então agir sobre a forma mercadoria dotando formalmente de características

subjetivas uma relação fetichizada, coisificada, que é a relação mercantil, tanto na

esfera da circulação quanto na esfera da produção.

2. O DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL EM PERSPECTIVA

MATERIALISTA DIALÉTICA

Inicialmente é necessário aproximar a categorização do Direito já feita da

especificidade do Direito do Trabalho. A partir do entendimento de ser o Direito

uma relação social reflexo da forma mercadoria, encontramos que o Direito do

Trabalho é uma forma de regulação da compra e venda de uma mercadoria

específica: a força de trabalho humana.

A capacidade de realizar trabalho como ato de modificação da natureza é

característica imanente do ser genérico do homem, o homem diferencia-se dos

animais por conta da capacidade de realizar trabalho, de transformar o mundo

externo de acordo com um processo de planejamento consciente. No modo de

produção capitalista a realização de trabalho deixa de ser um ato de libertação para

ser um ato de aprisionamento do gênero humano, torna-se trabalho estranhado,

pois o homem passa a realizar trabalho tão-somente como meio para reproduzir sua

própria vida.

No modo de produção capitalista o trabalho é subsumido ao processo social

do capital, pois para que o processo social do capital se reproduza é imprescindível

que ocorra a reprodução da mais-valia. A mais-valia representa a diferença

existente entre a soma de valor do capital constante e do capital variável e o valor

realizado na venda do produto tornado mercadoria. Ao passo que capital constante

é representado por todos os componentes consumidos na produção da mercadoria

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

cujo valor é traduzido diretamente no valor final da mercadoria produzida, capital

variável é a capital representado pelo salário gasto na remuneração do trabalho. É

assim denominado capital variável pois é a fração expansiva do capital, é a parte do

capital que gera mais capital, pois a remuneração do trabalho é dada abaixo do valor

realmente produzido pelo trabalho.

Aqui cabe uma distinção entre o que transcorre com a mais-valia na esfera

da produção e da circulação de mercadorias. Na esfera da produção a mais-valia é

produzida, o trabalho é assim inserido no processo interno da confecção do produto

e alterando a materia originária investe na matéria a expansão de seu valor

objetivamente, dado que valor é igual a tempo de trabalho socialmente necessário.

Porém é na esfera da circulação que a mais-valia produzida será realizada, pois não

adianta ao capitalista expandir a extração de mais-valia se não puder realizar

monetariamente essa mais-valia no mercado para reiniciar o processo de

valorização. Sem essa dialética entre produção e circulação, em que na verdade

representam a dupla face do processo social do capital, o que ocorreria seria a

paralisação do metabolismo capitalista. Nesse aspecto a mercadorização da força de

trabalho é o elo central da metobolização do processo como um todo, pois ao se

tornar mercadoria o trabalho torna-se uma mercadoria sui generis, uma mercadoria

que ao mesmo tempo está inserida no seio da produção e da circulação de

mercadorias, uma mercadoria que cria valor e ao ser remunerada abaixo do valor

produzido pela mesma torna possível a existência do mais-valor.

A relação entre forma e conteúdo ganha proporções centrais para

compreendermos a função do Direito do Trabalho nesse processo. A atividade de

trabalho, de produção de mercadorias, desdobra-se em formas categoriais as mais

diversas ao longo da relação social que é o capital - forma dinheiro, forma

mercadoria, forma salário – ao passo que o conteúdo, a atividade em si, de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

característica mais fluida relaciona-se com as formas cristalizadas a fim de garantir

estabilidade ao processo. A forma jurídica então surge como forma desdobrada do

processo de produção na figura do contrato para garantir que o processo como um

todo seja formalizado, ganhando a atividade de trabalho uma aparente

característica de ato de vontade entre pessoas jurídicas distintas, quando em

verdade é uma atividade fetichizada, uma relação entre os donos dos meios de

produção e os portadores da mercadoria-trabalho.

No caso do Direito do Trabalho brasileiro as especificidades da produção e

circulação de mercadorias no Brasil, enquanto país periférico da América Latina,

condicionam a maneira como se dá a exploração do trabalho. A questão

fundamental para compreender a inserção do Brasil no capitalismo internacional é

a de que coube aos países da região da América Latina o papel de exportadores de

alimentos e matéria prima para os países centrais do capitalismo. Ou seja: a

disjuntiva entre produção e circulação de mercadorias para as atividades

econômicas hegemônicas dos países latinos é uma disjuntiva que transfere o espaço

de realização da mais-valia para fora das fronteiras nacionais. Assim delimita Ruy

Mauro Marini:

A base real sobre a qual se desenvolve são os laços que ligam a


economia latino-americana com a economia capitalista mundial.
Nascida para atender as exigências da circulação capitalista, cujo
eixo de articulação está constituído pelos países industriais, e
centrada portanto sobre o mercado mundial, a produção latino-
americana não depende da capacidade interna de consumo para sua
relização. Opera-se, assim, desde o ponto de vista do país
dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo
do capital – a produção e a circulação de mercadorias -, cujo efeito
é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-
americana a contradição inerente à produção capitalista em geral,
ou seja, a que opõe o capital ao trabalhador enquanto vendedor e
comprador de mercadorias (MARINI, 2011, p. 155)

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A consequência imediata desse processo é que os donos dos meios de

pordução latino-americanos podem exceder a exploração do trabalho além da taxa

de exploração praticada no centro do capitalismo, sem se preocupar

necessariamente com o reflexo da redução da renda do trabalho e a consequente

redução do mercado de consumo interno já que é no exterior onde suas mercadorias

são vendidas:

Na economia exportadora latino-americana, as coisas se dão de


outra maneira. Como a circulação se separa da produção e se efetua
basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual
do trabalhador não interfere na realização do produto, ainda que
determine a taxa de mais-valia. Em consequência, a tendência
natural do sistema será a de explorar ao máximo a força de trabalho
do operário, sem se preocupar em criar as condições para que este
a reponha, sempre e quando seja possível substituí-lo pela
incorporação de novos braços ao processo produtivo (MARINI,
2011, p. 157)

O resultado, portanto, é que o Direito do Trabalho brasileiro se desenvolveu

historicamente com base em uma super-exploração do trabalho, traço constitutivo

portanto da estrutura econômica brasileira que terá, como veremos, repercussões

amplas no sistema jurídico trabalhista.

Não basta, no entanto, somente caracterizar o Direito do Trabalho a partir da

forma como se relaciona com a reprodução do capital, sendo necessário

aprofundarmos a caracterização de suas especificidades internas. Michel Miaille

propõe uma sistematização da instância jurídica em três niveis: o nivel ideológico,

institucional e prático. O nivel ideológico inerente ao Direito, para Miaille,

corresponde à capacidade do Direito “chamar as coisas pelo seu nome”, assim, a

empresa, a propriedade, o contrato, a relação de trabalho, são categorias sociais que

ganham legitimidade formal através do véu jurídico. O nivel institucional tem

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

relação com todo um conjunto de técnicas, métodos, formas e aparelhos que

concretizam a ideologia jurídica, essas instituições não seriam fragmentárias, ao

inverso, “ na realidade, todas essas instituições se articulam umas nas outras num

conjunto mais ou menos coerente, apesar das contradições que ele [o Direito] revela

e tenta ocultar” (MIAILLE, p. 98, 2005). Por fim, o nivel da prática jurídica, designa

“práticas sociais que se desenvolvem sobre dados objectos com vista a produzir

resultados jurídicos” (MIAILLE, p. 101, 2005). Tal perspectiva teórica nos servirá de

apoio para o devido desdobramento do nosso objeto.

Desse modo, denotamos o sentido ideológico do Direito do Trabalho em

duas frentes de reflexão.

A primeira frente de reflexão surge para nós pois o ordenamento jurídico

brasileiro surgido na década de 1930 é originário de um forte período de convulsão

social, sendo decorrente do embate ideológico impulsionado por inúmeras forças

sociais que então disputavam a sociedade brasileira. Não só sua origem é decorrente

do conflito ideológico, como historicamente as modificações, reformas,

transformações, da legislação brasileira trabalhista originaram-se de forte pressão

da disputa entre as classes sociais as quais canalizam sua representação ideológica

de mundo na elaboração de projetos de lei. Assim o surgimento da CLT, a política

de arrocho salarial do regime militar e a recente reforma trabalhista do governo

Temer são exemplos concretos de momentos onde o embate ideológico teve como

centro a formulação jurídica. Para além disso, a própria estrutura do ordenamento

jurídico trabalhista brasileiro, onde o sindicato é parte integrante do Estado, é

fortemente corporativista. Assim, o traço autoritário característico fez com o que ao

longo da história houvesse um forte controle estatal sobre a classe trabalhadora

brasileira, nada mais apropriado para manter estável um sistema econômico

alicerçado na superexploração do trabalho.

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A segunda frente de reflexão encontramos inseridas no corpo do texto da

legislação referente ao trabalho, como vemos na Constituição Federal de 1988 em

seu artigo primeiro onde está escrito que “os valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa” são considerados fundamentos da República. O binômio trabalho/livre

iniciativa desdobra-se no entendimento de que o trabalho não é uma mercadoria e

configura-se através do ordenamento legal. Esse processo de apagamento da

realidade, anulando aparentemente as forças economicas que constrangem o

trabalhador a se vincular à relação de trabalho, tornando esse vinculo e a atividade

de trabalho em si ato de livre vontade, faz com que se dissemine de forma

generalizada em todo o tecido social a reprodução ideologizante de uma concepção

liberal a respeito do trabalho. Se a reserva ideológica do Direito consiste em dizer

as coisas pelo seu nome, aqui consagra-se pela omissão, pelo mecanismo de não

dizer o trabalho pelo seu nome, de não o considerar como aquilo que é, não o

considerar como mercadoria.

No nível institucional o Direito do Trabalho brasileiro desenvolve-se de

forma a concretizar-se, de acordo com o pressuposto por Miaille, como um todo

articulado que guarda uma coerência interna. As instituições inerentes ao Direito

do Trabalho estruturam-se desde as mais simples e particulares até as mais

complexas e abrangentes. Analisaremos assim, para continuarmos desenvolvendo

nossa elaboração, quatro instituições que consideramos centrais para a estruturação

do direito trabalhista: a pessoa jurídica, o contrato individual de trabalho, a

Consolidação das Leis Trabalhistas como principal legislação estatal de regulação

do trabalho, as negociações coletivas do trabalho e a Justiça do trabalho.

Para Pashukanis “toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito

é o átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples e indivisível, que não pode

mais ser descomposto” (PASHUKANIS, p. 117, 2017). A pessoa jurídica como

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

personificação do sujeito de direito no que diz respeito ao Direito do Trabalho

representa a institucionalização primordial da inversão ideológica que o Direito

produz a fim de estabilizar a exploração do trabalho. Assim, o Direito ao instituir a

pessoa jurídica tem o papel de considerar o homem dentro de um jogo de papeis,

determinando quem pode formalmente exercer esta ou aquela função na sociedade,

pois somente através da pessoa jurídica legitimamente competente que o edifício

jurídico pode ser acionado enquanto mecanismo protetivo. Miaille avança na

categorização de Sujeito de Direito ao desenvolê-la tomando como parâmetro o

Sujeito de Direito na relação de trabalho:

Com efeito, o sujeito de direito é sujeito de direitos virtuais,


perfeitamente abstractos: animados apenas pela sua vontade, ele
tem a possibilidade, a liberdade de se obrigar, designadamente de
vender a sua força de trabalho a um outro sujeito de direito. Mas
este acto não é uma renuncia a existir, como se ele entrasse na
escravatura: é um acto livre que ele pode revogar em determinadas
circunstâncias. Só uma ‘pessoa’ pode ser a sede de uma atitude
destas. A noção de sujeito de direito é, pois, absolutamente
indispensável ao funcionamento do modo de produção capitalista.
A troca das mercadorias, que exprime, na realidade, uma relação
social – a relação do proprietário do capital supõe, pois, como
condição do seu funcionamento a ‘atomização’, quer dizer, a
representação ideológica da sociedade como um conjunto de
indivíduos separados e livres. No plano jurídico, esta representação
toma a forma de uma instituição: a do sujeito de direito (MIAILLE,
p. 115, 2005)

Assim, o Sujeito de Direito na relação de trabalho cumpre o papel de opor

patrão e operário de forma a realizar um todo único contraditório. O Direito reveste

as contradições existentes na exploração do trabalho retirando aparentemente a

possibilidade do trabalhador resolver o problema da exploração do trabalho através

do combate político. De acordo com a generalização ideológica liberal o sujeito seria

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

cidadão com aptidões políticas tão-somente a nível de disputa do Estado; o espaço

da fábrica, o ambiente de trabalho, seria o local em que seria o trabalho revestido

pela cobertura formal da legalidade, tendo qualquer conflito que ser resolvido pela

estruturia judiciária estatal. Bernard Edelman sintetiza essa relaçao da seguinte

maneira:

Se, com efeito, o trabalho é profissional, ele evidentemente pertence


à esfere econômica, aos interesses privados, ao direito privado; e
todo mundo sabe que ao ‘privado’ se opõe o ‘público’ ou o geral, ao
singular o universal... Em suma, qualificando o trabalho de
‘profissional’, este é situado do lado do econômico: ao Homem (o
trabalhador) o econômico, ao cidadão a participação política. E
então a burguesia poderá afirmar serenamente que a política se
detém nas portas da fábrica; ela poderá negar à classe operária a
única prática de classe que lhe é própria: a greve, uma vez que essa
é a única prática em que a classe operária organiza a ela mesma, e
para ela mesma, nos locais de produção (EDELMAN, p.49, 2016)

Desse modo, se o trabalhador entender por levar até as últimas consequências

o combate político a fim de ver garantidas as condições de trabalho que considere

politicamente legítimas ele terá que romper com a legalidade que cristaliza a relação

de exploração, terá que romper não só com o capital, mas com toda a relação social

jurídica que legitima a reprodução do capital.

A relação entre dois sujeitos de direito se desdobraria então no contrato de

trabalho. O contrato colocaria em unidade as duas frentes opostas contraditórias

derivadas do capitalista e do trabalhador, o primeiro retirando sua legitimidade

formal para ser sujeito de direito na contratação enquanto empregador do título de

propriedade dos meios de produção e o segundo do ato de vontade de oferecer sua

força de trabalho em troca da remuneração salarial:

989
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Do ponto de vista jurídico, a empresa é um espaço ideológico em


que se encontram e se defrontam direitos: direito de propriedade,
direito contratual, direito do trabalho. A violência tornou-se uma
relação jurídica, a luta de classes tornou-se um conflito de direitos,
e as próprias classes tornaram-se sujeitos de direito, cada uma, por
si própria, detentora de ‘seu’ direito. De um lado, o empregador é
sujeito do direito direito de propriedade; de outro, os operários sao
sujeitos do direito do trabalho. Consequentemente, a relação
capital/trabalho transformou-se numa relação jurídica entre direito
de propriedade e direito do trabalho (EDELMAN, p.72, 2016)

No caso do Direito do Trabalho brasileiro, historicamente o contrato de trabalho

não só significa o vínculo formal entre o trabalhador e o empregador, como também

vínculo de conexão do trabalhador com políticas públicas estatais. A título de

exemplificação, a formalização da contratação significa para o trabalhador tornar-

se segurado do INSS, ter direito a depósitos no Fundo de Garantia por Tempo de

Serviço, ter direito a parcelas mensais de seguro desemprego se esse contrato vier a

ser rompido e assim por diante. Nesse sentido o vínculo contratual do Direito do

Trabalho brasileiro nã1o é um vínculo tão somente bilateral entre empregador e

empregado, mas um vínculo trilateral, entre empregador, empregado e Estado.

Além disso preocupa-se a doutrina justrabalhista em enumerar as características

internas da relação trabalhista para que se configure como relação de emprego,

fracionando a relação de trabalho em subespécies, as quais cada qual dão

legitimidade ao gozo de direitos sociais em graus hierarquicos diferentes.

A regulação legislativa estatal é um traço constitutivo do Direito Trabalhista

brasileiro, tendo por fundamento histórico a inclinação populista do governo

Vargas cuja visão de política de Estado era de viés intervencionista. Nesse sentido

a proteção ao trabalho decorrente de regulação estatal tem como elo central a

Consolidação das Legislações Trabalhistas, que cumpre o papel de ser uma ossatura

legislativa principal que reverbera por toda a estrutura da sociedade brasileira. O

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

surgimento da CLT e sua reprodução histórica desloca o Estado brasileiro, que até

então tratava as questões sociais como questão de polícia, para que este Estado deixe

de ser um Estado tão-somente repressivo para que se torner um Estado que trabalhe

tanto no nível da repressão quanto do consenso. A CLT cumpre o papel de ser uma

alavanca estrutural que rege os fundamentos basilares de todo o mercado de força

de trabalho no país. As palavras de Alysson Mascaro a respeito do papel que

cumpre o Estado na dinâmica da relação capital/trabalho nos faz enxergar em

abstrato o papel que cumpre a CLT no concreto da realidade brasileira enquanto

legislação específica para a regulação do Direito do Trabalho:

O caráter terceiro do Estado em face da própria dinâmica da relação


entre capital e trabalho revela a sua natureza também afirmativa.
Não é apenas um aparato de repressão mas sim de constituição
social. A existência de um nível político apartado dos agentes
econômicos individuais dá a possibilidade de influir na constituição
de subjetividades e lhes atribuir garantias jurídicas e políticas que
corroboram para própria reprodução da circulação mercantil e
produtiva. E, ao contribuir para tornar explorador e explorado
sujeitos de direito, sob um único regime político e um território
unificado normativamente, o Estado constitui ainda
afirmativamente o espaço de uma comunidade, no qual se dá o
amálgama de capitalistas e trabalhadores sob o signo de uma pátria
ou nação. A característicamente atribuída aos estados, de repressão,
como instrumento negativo, realizando a obstacularização das
condutas é definidora, mas não exclusiva do apareto político
moderno. A repressão que é um momento decisivo da natureza
estatal, deve ser compreendida em articulação com o espaço de
afirmação que o Estado engendra no bojo da própria dinâmica de
reprodução do capitalismo (MASCARO, p. 19, 2016)

A regulação estatal consolida a esfera onde serão definidas em quais condições

poderão ser compradas e vendidas a mercadoria força de trabalho. Essa

regulamentação procede um mecanismo de acomodação ideológica tanto dos

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

trabalhadores quanto dos donos dos meios de produção. Em alguma medida pode

a regulamentação restringir o potencial de exploração do trabalho, servindo à

expansão da taxa salarial, ou a garantia de direitos sociais, acima do pretendido por

setores da burguesia tomados de forma isolada. Não se trata, portanto, de uma

cristalização mecânica dos interesses das classes dominantes. Trata-se de estabilizar

a relação capital/trabalho de forma a que o sistema opere o ciclo de produção e

ciculação de mercadorias. Nesse aspecto pode a legislação trabalhista oferecer

entraves aos interesses específicos de burgueses individualizados, mas serve na

outra ponta como vinculo institucional reprodutor da estrutura da sociedade em

classes.

A legislação estatal do Direito do Trabalho ganha contornos ampliados quando

avançamos para compreender o papel institucional das negociaçõe coletivas de

trabalho. Tal como, em termos gramscinianos temos o Estado em sentido restrito e

o Estado ampliado, o primeiro sendo a representação da sociedade política e o

último a representação do Estado como um todo conjugado entre sociedade política

e a sociedade civil que vem entrelaçada a esta:

O fenômeno político no capitalismo se concentra no Estado, mas


não se pode considerar que a estrutura estatal seja limitada apenas
pelos contornos daquilo que estabelece a sua definição jurídica. O
Estado se encontra aglutinado, estrutural, formal e funcionalmente,
a muitas instituições sociais que lhe são íntimas. A alta conexão
entre o Estado e tais instituições permite compreender a política
contemporânea, no tecido social capitalista, como um Estado
ampliado (MASCARO, p. 68, 2016)

As negociações coletivas de trabalho representam um momento do Direito

trabalhista brasileiro no qual o Estado dá legitimidade legal aos acordos firmados

entre representantes sindicais dos patrões e dos trabalhadores. Esse mecanismo de

992
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

produção normativa introduz forças vivas de organização da sociedade civil no

interior da funcionalidade estatal; diga-se sociedade civil pois no caso brasileiro,

mesmo que os sindicatos sejam considerados legalmente como partes integrantes

do Estado e cumpram função de Estado, tem estes o papel de alglutinação e

organização típico de aparelhos individuais de hegemonia da sociedade civil. O

primeiro passo para a concretização desse mecanismo é dotar os sindicatos

(patronais e de trabalhadores) de personalidade jurídica, a partir disso a massa de

trabalhadores da base de uma determinada categoria, representada formalmente

pelo sindicato, torna-se formalmente igual ao punhado de capitalistas que detém os

meios de produção daquele setor econômico. A mesa de negociação de um acordo

coletivo de trabalho ou negociação coletiva de trabalho realiza a redução formal de

uma realidade caótica e perigosa ao sistema – milhões de trabalhadores produzindo

e gerando riquezas para uma parcela ínfima da população que detém os meios de

produção – a uma representação fictícia de uma entidade representativa dos patrões

selar ato de vontade inidividual com uma entidade representativa dos

trabalhadores. Esse mecanismo de formalização opera não somente um efeito

jurídico, mas principalmente guarda uma intencionalidade de controle político:

‘Esqueçamos’ a lei e vejamos as coisas em termos de relações de


classe. O que quer a burguesia? Reinar na classe trabalhadora. Para
tanto, ela pode subverter a organização sindical, fazê-la participar
de seu equilíbrio de poderes, e ela não se priva disso. Mas ela
também pode, ao mesmo tempo, dividir a classe operária, quebrar
sua homogeneidade, suas lutas. Em seu projeto global de
integração, ela sempre guarda para si os meios de ação interna. É
por isso que ela oscila entre dois polos: de um lado, o canto da sereia
da colaboração de classes – pela integração financeira, por exemplo
– de outro lado, a luta no interior dos sindicatos (EDELMAN, p.117,
2016)

993
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A instrumentalidade das negociações coletivas para que os donos dos meios de

produção exerçam controle sobre a classe trabalhadora é cumprida por dois

motivos, e essa dupla motivação entrelaça-se dialeticamente. Primeiramente pois

enquanto a CLT fundamenta as estruturas basilares do mercado de mão de obra,

estruturando a forma de compra e venda em termos gerais, as diversas negociações

coletivas de categorias de trabalhadores fundamentam esferas internas a esse

mercado mais amplo. Assim ocorre um desdobramento abstrato da mercadoria a

ser vendida e comprada, não é assim meramente trabalho em abstratação mais

ampla que passa a ser comprado e vendido e sim trabalho de categorias específicas.

O acordo coletivo de trabalho que regula a categoria dos petroleitos, com salários

diferenciados, jornada diferenciada, tempo de descanso diferenciado e etc, fará com

o que esse ramo de atividade se desloque dos outros tantos ramos de atividades de

trabalho, será criado o mercado para a compra e venda de força de trabalho de

petroleiro, assim como de mecânico, eletricista, metalúrgico, assim por diante. O

segundo motivo, pois, a existência de instrumentos normativos diferentes

regulando categorias de trabalhadores diferentes, sendo estes representados

formalmente por organismos sindicais diferentes, quebra a homogeneidade da

classe trabalhadora. Se assim não fosse, se toda a regulamentação legal do mercado

de trabalho fosse reduzido a um único regulamento estatal, o potencial de unidade

entre as reivindicações da classe trabalhadora seria muito maior.

Para sistematizar toda a relação do Estado brasileiro com as questões

pertinentes à regulação da compra e venda da mercadoria força de trabalho, o

Estado constituiu internamente um núcleo de organização burocrática apropriada

para o desenvolvimento técnico da relação jurídica trabalhista. Não só um corpo

burocrático específico, cristalizado na Justiça do Trabalho, como também

sistematizou um conjunto de técnicas, métodos e atos específicos cristalizando-os

994
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

no processo trabalhista. Fazendo isso fez com o que um corpo de especialistas, bem

como uma parcela do fundo público estatal, fosse destinado a realizar no concreto

a figura do Estado como terceiro intermediador dos conflitos originários da negação

de direitos trabalhistas. No entanto, a maior contribuição funcional da Justiça do

Trabalho é a de retirar o conflito entre patrão e empregado da arena da fábrica, onde

se este se intenssificasse seria resolvido de maneira política, e traduzir este conflito

para dentro do Estado.

Por fim, podemos desdobrar o nível da prática, ou praxis, em duas frentes de

reflexão. A primeira quando pensamos as práticas jurídicas individuais e a segunda

quando pensamos as práticas jurídicas coletivas. As práticas individuais nascem de

uma relação dialética entre a reprodução de uma conduta ilegal por parte do

empregador e a reivindicação subjetiva do trabalhador em face dessa conduta.

Nesse sentido:

“Uma das premissas fundamentais da regulamentação jurídica é,


portanto, o antagonismo dos interesses privados. Isso é, ao mesmo
tempo, uma premissa lógica da forma jurídica e uma causa real do
desenvolvimento da superestrutura jurídica. O comportamento das
pessoas pode ser regulado pelas mais diferentes formas, mas o
momento jurídico dessa regulamentação começa onde têm inicio as
diferenças e oposições de interesses” ( PASHUKANIS, p. 94, 2017)

Nesse caso, apontando Pashukanis, a oposição de interesses como causa inicial

da superestrutura jurídica, não delimitamos tão-somente a procedimentalização

judicial estrita – petição, audiência, recursos e toda a cadeia de atos e técnicas

internas ao judiciário – mas principalmente a resolução subjetiva do trabalhador em

buscar judicializar um conflito.

995
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A grande força de compreensão do Direito Trabalhista ao nível da prática é a

prática coletiva, representada pela luta coletiva dos trabalhadores, em especial

quando decidem pela greve, pela paralisação da produção, e quando a

potencialidade dos trabalhadores se darem conta de que são eles a produzirem o

mundo material que os rodeia é tremendamente maior. É justamente por

compreender este potencial que aos poucos o capital legalizou o Direito de Greve,

padronizando as formas e meios que uma greve pode ser considerada ato legal ou

ilegal. A greve não é um ato jurídico por primazia, é um ato de força política, uma

energia coletiva originada em oposição à exploração do trabalho, aquilo que

Bernard Edelman denomina um poder bruto, elementar, inorganizado, mas é um

ato que o direito de greve tenta jurisdicionar, tornar jurídico, por intenção de

submeter essa energia coletiva controlável.

Desse modo a greve como paralisação da produção é negação de todo o edifício

constitutivo do modo de produção social capitalista, desde o substrato econômico

até o cume superestrutural. Enquanto a crise representa a paralisação da produção

e da circulação de mercadorias de modo inconsciente, por conta das contradições

estruturais internas do sistema, a greve represente uma paralisação que parte

inicialmente da vontade consciente dos trabalhadores. Essa paralisação do mundo

produtivo é reflexo de todos os meios pelos quais a consciência dos trabalhadores

assimila a exploração do trabalho, desde a intensificação do trabalho, a retração

salarial e todas as consequências diretamente economicas da exploração, até o

enxergar ideológico dos trabalhadores sentido através da cristalização jurídica.

Assim, a porta entreaberta pelo contrato de trabalho, ou pela forma como o

trabalhador enxerga a reprodução da exploração através do contra de compra e

996
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

venda de sua força de trabalho, pode significar o caminho pelo qual a consciência

atinge o clarão revelador do mundo de exploração ao qual o trabalho está

submetido.

A greve então tem o potencial de ser impulsionada para a transformação

normativa, para a modificação da forma direito a fim de que esta resguarde uma

maior proteção ao trabalho, tal como também pode ser impulsionada para o

desabamento de todo o edifício constitutivo da exploração do trabalho cujo retrato

normativo é a expressão mais ou menos visível. Na primeira opção o impulso de

poder inorganizado da greve é assimilado por dentro das estruturas internas do

modo de produção social, tendo por conteúdo maiores garantias para a compra e

venda da força de trabalho por meio da forma jurídica, enquanto na segunda opção

a violência do choque entre o poder coletivo originado pela greve e a estrutura

montada em torno das formas políticas e jurídicas de dominação é tamanha que a

totalidade da estrutura, inclusive seu aspecto jurídico, é superada dialeticamente.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o Direito. Porto
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STEDILE, João Pedro. Ruy Mauro Marini: Vida e Obra. São Paulo: Expressão
Popular, 2011, 131-173p.

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MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2016.

MIAILLE, Michel. Introdução Critica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 2005.

PASHUKANIS, Evguiéni Bronislávovich. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São


Paulo: Boitempo, 2017.

STUTCHKA, Piotr I. La función revolucionaria del derecho y del Estado. Barcelona:


Lito-Fisán, 1974.

___________, Piotr I. Direito de classe e revolução socialista. 2006.

998
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume I: Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão: Direitos Civis e Políticos

OMS E OIT NO COMBATE AO CORONAVÍRUS: AÇÕES

CONJUNTAS E DIÁLOGO NORMATIVO COMO

INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO À SAÚDE E SEGURANÇA DOS

PROFISSIONAIS DA SAÚDE EM TEMPOS DE PANDEMIA

Catharina Lopes Scodro271


Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto272

RESUMO
No ano de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o planeta estava
passando por uma pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, gerando uma crise de
saúde pública (acompanhada de profunda crise econômica e social) nos âmbitos
internacional e nacional. Tal emergência sanitária colocou em evidência os profissionais da
saúde, bem como a essencialidade de seu trabalho e sua exposição ao contágio.
Considerando esse cenário, este artigo tem como objetivo analisar quais são as
possibilidades de ações conjuntas e diálogo normativo entre OMS e Organização
Internacional do Trabalho (OIT) no combate ao novo coronavírus com vistas a proteger a
saúde e segurança dos trabalhadores da área da saúde. Para tanto, a pesquisa valeu-se do
método dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfico-documental e foi estruturada em
três capítulos, além de introdução e conclusão: (i) Organização Mundial da Saúde,
international health regulations e saúde e segurança do trabalhador; (ii) os international labour
standards da Organização Internacional do Trabalho e os core labour rights; (iii) saúde e
segurança do trabalhador e as possibilidades de ações conjuntas e diálogo normativo a
partir de colaboração global entre OMS e OIT. Verificou-se que, embora a colaboração
institucional seja possível e que a saúde seja um tema de elevada importância para ambos
organismos internacionais, não foram constatadas iniciativas conjuntas dos organismos
durante a pandemia.

271
Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Bacharel
em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Advogada. E-mail: catharina.scodro@gmail.com.
Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5202927132960365
272
Doutora e Mestra em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
Advogada. Pesquisadora da Escola Superior de Advocacia de São Paulo. Professora de Direito do Trabalho da
Universidade Paulista, da Universidade São Judas Tadeu e da Escola de Direito de São Paulo da Fundação
Getúlio Vargas. Pesquisadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Inocação da FGV Direito SP. E-mail:
olivia.pasqualeto@fgv.br . Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1403687458551003

999
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Palavras-chave: Organização Mundial da Saúde; Organização Internacional do Trabalho;


Saúde e segurança do trabalhador; Direito Internacional do Trabalho; Profissionais da
saúde.

ABSTRACT
In 2020, the World Health Organization (WHO) declared that the planet was experiencing
a pandemic caused by the new coronavirus, generating a public health crisis (accompanied
by a deep economic and social crisis) at the international and national levels. Such sanitary
emergency highlighted health professionals, as well as the essentiality of their work and
their exposure to contagion. Considering this scenario, this article aims to analyze what are
the possibilities for joint actions and normative dialogue between WHO and the
International Labor Organization (ILO) in the fight against the new coronavirus in order to
protect the health and safety of health workers. In order to do so, the research used the
deductive method and the bibliographic-documental research technique and was
structured in three chapters, in addition to the introduction and conclusion: (i) World
Health Organization, international health regulations and health and safety at work; (ii) the
international labor standards of the International Labor Organization and the core labor
rights; (iii) worker health and safety and the possibilities for joint actions and normative
dialogue based on global collaboration between WHO and ILO. It was found that, although
institutional collaboration is possible and health is a topic of high importance for both
international organizations, there was no evidence of joint initiatives by the agencies during
the pandemic.

Key-Words: World Health Organization; International Labour Organization; Occupational


safety and health; International Labour Law; Health professionals.

INTRODUÇÃO

Em 2020, a difusão do Coronavírus possibilitou o reconhecimento das infecções

por COVID-19 como emergência em saúde pública e, posteriormente, como

pandemia, pelo aumento exponencial de casos. Observa-se que a crise sanitária

decorrente do vírus se espraiou à nível global, reclamando a atenção de atores

sociais diversificados em escala local, regional e internacional.

Assim, para além do enfrentamento pelos governos nacionais, os organismos

internacionais atuaram de maneira combativa, preventiva e informativa, com

destaque para os que apresentam maior pertinência temática com as questões

1000
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

relacionadas à saúde. Nesse sentido, a Organização Mundial da Saúde (OMS)

apresentou substancial importância no que concerne ao monitoramento quanto à

difusão do vírus, no apoio técnico aos Estados e na emissão de informativos para

evitar o contágio. Bem como pela possibilidade de, a partir do diálogo

interistitucional, poder promover, junto com outros organismos, diretrizes

conjuntas.

Dentre os organismos que possuem áreas comuns com a OMS, a Organização

internacional do Trabalho (OIT) possui grande relevancia no que tange à promoção

da saúde e segurança dos trabalhadores, a partir dos international labour standards e

das suas funções.

À vista disso, partindo do método dedutivo e da técnica de pesquisa

bibliográfico-documental e reconhecendo o risco ampliado de contaminação por

Coronavírus dos profissionais da saúde, que representam a “linha de frente” do

combate, o estudo se propôs a compreender a possibilidade de colaboração entre a

OMS e a OIT, a partir do diálogo normativo e ações conjuntas, bem como verificar

se, durante a pandemia, houveram ações conjuntas com a finalidade de majorar os

parâmetros de promoção da saúde e segurança dos trabalhadores dos profissionais

de saúde.

1. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, INTERNATIONAL HEALTH

REGULATIONS E SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHADOR

No bojo da Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da

Saúde (OMS) foi criada em 1946 com a finalidade de ser a agência especializada na

temática da saúde, a partir da reunião de experts em saúde pública, conhecidos

como “delegados”. No período de sua concepção, após a II Guerra Mundial, houve

1001
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

grande disseminação e proliferação de doenças, sobretudo infecciosas como varíola,

sarampo e tuberculose (PRENTZAS, 2009, p. 12).

Observou-se, portanto, a compreensão da saúde como questão de relevância

global, de sorte que a preocupação com o espraiamento de doenças e, por

conseguinte, com a implementação de meios integrados e efetivos para controle

transcendeu fronteiras. Nesse sentido, com a OMS, a institucionalização da

preocupação com a segurança da saúde pública internacional tomou forma e passou

a se articular formalmente para responder coletivamente às emergências de saúde

pública, como, por exemplo, às epidemias (WHO, 2007, p. 13).

No ato de criação da Organização, os delegados elaboraram a Constituição

(1946) que definia a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e

social, [qu]e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” e que,

no artigo 1, “o objetivo da Organização Mundial da Saúde (...) será a aquisição, por

todos os povos, do nível de saúde mais elevado que for possível”.

Para a consecução de tal objetivo, a Constituição da Organização definiu, nos

incisos do art. 2, o estabelecimento e a manutenção de colaboração efetiva com as

Nações Unidas e demais organismos (inc. b); o auxílio aos Governos, quando

solicitado, para a melhoria dos serviços de saúde (inc. c); o estímulo e o

aperfeiçoamento dos trabalhos para a eliminação de doenças epidémicas,

endémicas e outras (inc. g); a promoção, em cooperação com outros organismos, o

melhoramento da alimentação, da habitação, do saneamento, do recreio, das

condições econômicas e de trabalho e de outros fatores de higiene do meio ambiente

(inc. i); e, entre outros, a proposição de convenções, acordos e regulamentos e a

elaboração de recomendações pertinentes a assuntos internacionais de saúde, bem

como o desempenho de funções atribuídas à Organização (inc. k).

1002
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Tais instrumentos normativos possuem, como parâmetro, as international health

regulations (IHR) (2005) que, segundo a Organização, constitui um acordo entre os

Estados-Membros para a atuação conjunta em prol da segurança global em saúde.

Para além das regulamentações gerais, os IHR prevê medidas específicas para

serem implementadas em locais com grande potencial de propagação de riscos à

saúde, como os portos e os aeroportos.

Em 2007, a Organização publicou as áreas de trabalho para implementação das

medidas das international health regulations, quais sejam a promoção de parcerias

globais; o fortalecimento dos sistemas nacionais de prevenção, vigilância, controle

e resposta a doenças; o fortalecimento da segurança da saúde pública em viagens e

em transporte; o fortalecimento dos sistemas globais de alerta e resposta da OMS; o

fortalecimento da gestão de riscos específicos; a manutenção de direitos, obrigações

e procedimentos; e a realização de estudos e o monitoramento dos progressos.

Ressalte-se que, no que tange às parcerias globais, as IHR possuíam, como

objetivo, a colaboração da Organização, dos Estados-Membros e de setores

interesados para o fornecimento de apoio técnico e para a mobilização de recursos

para sua implementação efetiva (WHO, 2007, p. 17). Para tanto, a justificativa se

ampara na impossibilidade da OMS garantir, por si só, a segurança da saúde

pública internacional, de sorte que foram elencados “parceiros-chave” para garantir

o apoio, como agências do Sistema da Organização das Nações Unidas; agências de

ajuda internacional; centros colaboradores e redes de excelencia; associações

acadêmicas, profissionais e da indústria; e organizações não-governamentais

(ONGs) e fundações.

Nesse sentido, pela pertinencia temática e interdisciplinariedade das áreas da

saúde, o incentivo ao diálogo institucional possibilita a parceria da OMS e com

outras agências da Organização das Nações Unidas, como a Organização

1003
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Internacional do Trabalho (OIT), a qual, na qualidade de agência especializada na

temática das relações de trabalho.

Ambas as agências operam na melhoria da saúde e segurança dos

trabalhadores, de sorte que a Constituição da Organização Mundial da Saúde

define, como funções, se relacionam à promoção da saúde, a partir da melhoria de

condições relacionadas ao trabalho e à higiene do meio ambiente. Nessa

perspectiva, a Organização reconhece que a “saúde dos trabalhadores é parte

integrante da saúde geral e da vida diária” (WHO, 2012, p. 01) (tradução nossa) e

considera, como elementos determinantes da saúde dos trabalhadores, os “riscos de

doenças e lesões no ambiente ocupacional, fatores sociais e individuais e acesso aos

serviços de saúde” (WHO, [s/a]) (tradução nossa).

Assim, na implementação de programas direcionados à saúde do trabalhador,

sobretudo relacionados à atenção primária para melhoria, a Organização Mundial

da Saúde considera, para além da saúde do trabalhador como integrante da saúde

como um todo, que os sistemas de saúde devem atuar como facilitadores para a

implementação de estratégias locais para atender às necessidades de saúde dos

trabalhadores; no caso de transição dos sistemas para a cobertura universal, os

sistemas de saúde devem incluir primeiramente aqueles em maior risco ou que têm

mais necesidades; no desenvolvimento de políticas sobre a saúde dos trabalhadores,

todas as partes interessadas relevantes devem se envolver; o treinamento em saúde

do trabalhador deve integrar todos os treinamentos profissionais em saúde; e o

empoderamento dos trabalhadores e o encorajamento dos tomadores de decisão são

essenciais para a promoção da saúde e segurança dos trabalhadores (WHO, 2012, p.

01).

À vista disso, a Organização implementou o Plano de Ação Global para a Saúde

do Trabalhador (2008-2017) que possuía, como objetivos, a concepção e

1004
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

implementação de instrumentos relativos à política sobre a saúde do trabalhador; a

proteção e a promoção da saúde no meio ambiente do trabalho; a melhoria do

desempenho e do acesso aos serviços especializados em saúde ocupacional; o

fornecimento e a comunicação de evidências para ação e prática; e, por fim, a

incorporação da saúde do trabalhador nas demais políticas (WHO, 2013, p. 08).

A intenção do Plano, a partir dos seus objetivos, se centrava no estímulo ao

desenvolvimento de políticas públicas, de infraestrutura, de tecnologias e de

parcerias, a fim de fomentar a saúde dos trabalhadores e de promover níveis básicos

de saúde nos locais de trabalho ao redor do mundo (WHO, 2013, p. 08). Novamente,

a Organização Mundial da Saúde reitera a possibilidade de parcerias, as quais se

apresentam factíveis com a Organização Internacional do Trabalho que apresenta

grande relevância na promoção de parâmetros internacionais de direitos

trabalhistas a partir dos international labour standards.

2. OS INTERNATIONAL LABOUR STANDARDS DA ORGANIZAÇÃO

INTERNACIONAL DO TRABALHO E OS CORE LABOUR RIGHTS

Criada em 1919, a partir do Tratado de Versalhes, a Organização Internacional

do Trabalho (OIT) surgiu no seio da Sociedade das Nações273, a fim de regulamentar

as relações de trabalho, posibilitando a “uniformização internacional do Direito do

Trabalho” a partir da “evolução harmônica das normas de proteção ao trabalhador”

e do alcance da “universalização da justiça social e o trabalho digno para todos”

(OLIVEIRA, 2010, p. 71).

273
Posteriormente, com a dissolução da Sociedade das Nações e a criação da Organização das Nações Unidas,
a OIT passou a integrá-la na condição de agência especializada nos assuntos pertinentes às relações de
trabalho.

1005
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nesse sentido, como instrumentos aptos a reconhecer e implementar os direitos

trabalhistas em patamares aceitáveis a nível internacional, a Organização elabora os

international labour standards. Os international labour standards são instrumentos

elaborados a partir da consulta tripartite aos representantes do Governo, das

organizações de empregadores e de trabalhadores, que estabelecem os principios

básicos e os direitos regentes das relações de trabalho.

Segundo Nicolas Valticos (1979), os international labour standards possuem

diferentes propósitos, isto é, argumentos para amparar a sua importância, quais

sejam a competição internacional; a contribuição para a consolidação da Paz; a

Justiça Social; os objetivos sociais e humanos de desenvolvimento económico, a

movimentação internacional de trabalhadores e bens, a consolidação das legislações

trabalhistas nacionais; e a fonte de inspiração para a atuação nacional.

A competição internacional remete, segundo Valticos (1979, p. 21) ao período de

criação da Organização Internacional do Trabalho, a partir do Tratado de Versalhes

que dispôs que “(...) the failure of any nation to adopt humane conditions of labour

is an obstacle in the way of other nations which desire to improve the conditions in

their own countries”, e dos primeiros instrumentos editados. Assim, os international

labour standards foram, na gênese da Organização e da regulamentação internacional

do trabalho, considerados úteis para posibilitar a definição de condições mínimas

de trabalho passíveis de serem observadas por diferentes países para reduzição do

risco de concorrência desleal e facilitação do comércio internacional (VALTICOS,

1979, p. 22).

Ressalte-se que, para o autor, no contexto histórico da criação dos primeiros

international labour standards, o propósito da competição internacional se constituía

argumento relativamente válido, contudo, na atualidade, majoritariamente não

integra a justificativa inicial para a adoção de instrumentos internacionais em

1006
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

matéria de trabalho. O autor ressalva que, a despeito de não mais constituir a

justificativa inicial, “(…) continua a ser verdade que a harmonização da política

social pode ajudar a reduzir as oportunidades de concorrência desleal e, assim,

salvaguardar os mercados mundiais e facilitar a integração económica e a circulação

de capitais, bens e mão de obra” (VALTICOS, 1979, p. 22).

Em relação à contribuição à consolidação da Paz (Mundial), Valticos (1979, p. 22)

considera que o propósito emergiu com o final da I Guerra Mundial e se destacou a

partir do potencial lesivo da injustiça no seio social. Para o autor, a ação contra a

injustiça (social) fortalece a Paz, a partir, por exemplo, da contribuição dos direitos

sindicais para o fortalecimento dos regimes democráticos e, por conseguinte, do

diálogo com a Paz e a Justiça Social (VALTICOS, 1979, p. 21-22).

Apesar de se relacionar com a Paz, a Justiça Social precisa ser individualmente

considerada como propósito para os international labour standards, por possuir

grande influência no desenvolvimento do Direito Internacional do Trabalho. Para o

autor, a noção de Justiça Social está em constante evolução para acompanhar as

mudanças técnicas e sociais constantes nas relações humanas, de sorte que não se

reduz à proteção dos individuos considerados “mais fracos” (VALTICOS, 1979, p.

24).

Já os objetivos sociais e humanos do desenvolvimento econômico remetem à

compreensão, fortalecida sobretudo a partir da crise mundial da década de 1930, de

que as questões sociais não podem ser apartadas das econômicas (VALTICOS, 1979,

p. 25). Observa-se que, para Valticos (1979, p. 25), o Direito Internacional do

Trabalho se propõe a destacar os objetivos sociais e humanos do desenvolvimento,

sobretudo ao considerar que o crescimento econômico por si só não garante, como

consequência automática, o progresso social, de sorte que os international labour

1007
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

standards devem “promover o progresso econômico e social equilibrado”, bem como

contribuir para o desenvolvimento social.

No que tange à movimentação internacional de trabalhadores e de bens, o autor

considera ser o propósito “mais óbvio” dos international labour standards a

regulamentação de questões relevantes à nível internacional, como, por exemplo, a

migração de trabalhadores, as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores

migrantes e o deslocamento de mercadorias em geral, pelo risco à saúde que podem

representar aos trabalhadores e aos consumidores (VALTICOS, 1979, p. 25).

Por fim, os propósitos de consolidação da legislação trabalhista nacional e de

fonte de inspiração para a ação nacional reportam à influência dos international

labour standards n a seara nacional dos Estados-Membros da Organização, de sorte

que podem atuar como “fonte de inspiração para os governos” por constituir

garantia contra retrocessos e pela legitimidade que detém em razão da elaboração

tripartite (VALTICOS, 1979, p. 25).

Os international labour standards, na qualidade de normas internacionais do

trabalho, podem ser editados na forma de Convenções e de Recomendações (ILO,

2019, p. 18). As Convenções possuem natureza jurídica de tratados internacionais –

o que, segundo Guilherme Guimarães Feliciano (2013, p. 162-163), lhes confere a

qualidade de hard law – que devem ser ratificadas pelos Estados-Membros e, por

conseguinte, submetidas à autoridade nacional competente (ILO, 2019, p. 18). Já as

Recomendações não requerem e/ou admitem a figura da ratificação pelos Estados,

de sorte que, com a qualidade de soft law (FELICIANO, 2013, p. 162-163), constituem

“diretrizes não-vinculativas” (ILO, 2019, p. 18), isto é, “mera sinalização de valor

para os Estados-membros” ora antecedendo, ora complementando as Convenções

(FELICIANO, 2013, p. 162-163).

1008
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Para a Organização Internacional do Trabalho, a partir da formalização pela

Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (1998), os

princípios e direitos fundamentais do trabalho se relacionam às matérias de

liberdade sindical e reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva, de

eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório, de abolição

efetiva do trabalho infantil e de eliminação da discriminação em matéria de

emprego e ocupação. À vista disso, os international labour standards relacionados aos

direitos fundamentais edificam os core labour rights da Organização.

Assim, os core labour rights são a essência da Organização Internacional do

Trabalho, assumindo, por conseguinte, centralidade para a elaboração de agendas

e políticas sociais. As Convenções que contemplam os core são as “Convenções

fundamentais”, quais sejam a C087 – Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de

Sindicalização (1948), a C098 – Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva

(1949), a C029 – Trabalho Forçado ou Obrigatório (1930), a C105 – Abolição do Trabalho

Forçado (1957), a C138 – Idade Mínima para Admissão (1973), a C182 – Convenção

sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata para sua

Eliminação (1999), a C100 – Igualdade de Remuneração de Homens e Mulheres

Trabalhadores por Trabalho de Igual Valor (1951) e a C111 – Discriminação em Matéria

de Emprego e Ocupação (1958).

Conjuntamente, no que tange à saúde e segurança do trabalhador, a Declaração

do Centenário da OIT (2019) enunciou que “a segurança e saúde no trabalho é um

princípio e direito fundamental no trabalho, além dos enunciados na Declaração da

OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho (1998)” (II, C). Tal

reconhecimento formal implica na inclusão da saúde e segurança do trabalhador ao

rol dos core labour rights.

1009
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Por ser recente, tal alteração ainda não incitou o reconhecimento das

Convenções fundamentais da OIT sobre o tema, a despeito das especulações

relacionadas, por exemplo, à C155 – Segurança e Saúde dos Trabalhadores (1981).

Ressalte-se que a temática da saúde e segurança do trabalhador, na trajetória da

Organização Internacional do Trabalho, apresenta grande centralidade nos

international labour standards, já que, das 77 convenções atualizadas, 59 se

relacionam, ainda que parcialmente, à matéria (PASQUALETO, 2020, p. 38).

Pela quantidade de instrumentos pertinentes à regulamentação e à promoção

de parâmetros internacionais de direitos relacionados à saúde e segurança do

trabalhador, para a análise das condições de trabalho dos profissionais de saúde,

por exemplo, é necessário considerar, para além da C155, a C149 – Convenção Sobre

o Emprego e Condições de Trabalho e de Vida do Pessoal de Enfermagem (1977), a

C161 – Serviços de Saúde do Trabalho (1985) e a C187 – Convenção Sobre o Marco

Promocional para a Saúde e Segurança no Trabalho (2006).

3. SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHADOR: POSSIBILIDADES DE

AÇÕES CONJUNTAS E DIÁLOGO NORMATIVO A PARTIR DE

COLABORAÇÃO GLOBAL ENTRE OMS E OIT

A Organização Mundial da Saúde e a Organização Internacional do Trabalho,

na qualidade de agências especializadas da Organização das Nações Unidas,

possuem áreas interdisciplinares que possibilitam ações conjuntas e diálogo

normativo como estratégia para a promoção. Dentre as áreas comuns, é possivel

destacar a saúde e segurança do trabalhador que integra a saúde pública e constitui

direito fundamental dos trabalhadores, nos termos da Declaração do Centenário da

OIT.

1010
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Para verificar a possibilidade de parcerias, os instrumentos constitutivos das

Organizações se apresentam como diretrizes gerais, de sorte que os programas

específicos a serem implementados podem esmiuçar, se for o caso, como ocorrerá

tal diálogo.

No que tange à OMS, a Constituição elencou, como função da Organização para

viabilizar a promoção da saúde, a “colaboração efetiva” com as Nações Unidas e

suas agências, bem como com os organismos especializados (artigo 2, b e i). Assim,

a colaboração com organismos internacionais possibilita o diálogo

interinstitucional, como alternativa para garantir o maior nível possível de saúde

pelos grupos e nações, possibilitando conjuntamente a atuação em pautas

transdisciplinares.

Em relação à Organização Internacional do Trabalho, a Declaração de Filadélfia

(1944), instrumento anexo à Constituição (1919), estabelece a “inteira colaboração

da Organização Internacional do Trabalho a todos os organismos internacionais aos

quais possa ser atribuída uma parcela de responsabilidade nesta grande missão,

como na melhoria da saúde, no aperfeiçoamento da educação e do bem-estar de

todos os povos” (IV). Observa-se, portanto, a promessa de colaboração da

Organização com demais organismos na promoção da saúde.

Nesse sentido, por previsão expressa, os instrumentos constitutivos de cada

uma das Organizações presentam como denominador comum a colaboração e

possibilitam, por conseguinte, a cooperação e o diálogo. Assim, é imperioso

verificar a compatibilidade das normas internacionais relacionadas à saúde e

seguranca dos trabalhadores, a fim de analisar a factibilidade da colaboração.

No que tange à OMS, as international health regulations (IHR), constituem

diretrizes gerais relacionadas à saúde, que embasam a elaboração de programas,

por exemplo. Observa-se que a Organização já implementou programas

1011
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

relacionados à saúde do trabalhador, como o o Plano de Ação Global para a Saúde

do Trabalhador (2008-2017) que possuía, nos objetivos, a proteção e a promoção da

saúde no meio ambiente do trabalho.

Já na OIT, a saúde e segurança dos trabalhadores constitui temática central, de

sorte que se relaciona com diferentes international labour standards, que podem se

mais gerais e, por conseguinte, aplicados independente da categoria profissional,

como a C155 – Segurança e Saúde dos Trabalhadores, a C161 – Serviços de Saúde

do Trabalho e a C187 – Sobre o Marco Promocional para a Saúde e Segurança no

Trabalho”, ou podem se mais específicos e variar de acordo com a categoria a que

se direcionam, como a C149 – Sobre o Emprego e Condições de Trabalho e de Vida

do Pessoal de Enfermagem.

Tal instrumento, por se relacionar à saúde do pessoal de enfermagem apresenta

grande relevancia na atualidade, sobretudo em razão do espraiamento do

Coronavírus à nível global. Em 30 de janeito de 2020, a Organização Mundial da

Saúde declarou que o surto de COVID-19 consistia em uma “emergência de saúde

pública de importância universal” (OPAS, 2020). Pelo aumento exponencial de

casos e infecções, posteriormente, em 11 de março de 2020, a OMS caracterizou a

disseminação e infecções por COVID-19 como pandemia (OPAS, 2020).

No cenário pandêmico, a crise sanitária ampliou os riscos para diferentes

categorias profissionais de sorte que os governos, majoritariamente, passaram a

adotar medidas de quarentena e isolamento social e os empregadores, diante da

compatibilidade das atividades, passaram a implementar amplamente o trabalho

remoto. Contudo, as categorias diretamente envolvidas no combate à disseminação

do vírus e ao cuidado de pacientes já contaminados mantiveram a atuação

presencial e, por conseguinte, amplamente expostas aos riscos de infecção.

1012
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nesse sentido, a proteção da saúde e segurança dos profissionais da saúde, na

qualidade de “linha de frente do combate ao Coronavírus”, se apresenta como

urgente, já que, apenas no Brasil, a cada minuto, um profissional da categoria é

infectado por COVID-19 (FOLHA, 2020), de sorte que os mais infectados são os

técnicos de enfermagem, os enfermeiros e os médicos. Conjuntamente, os dados da

Amnesty Internacional (2020), acusam que os países com os maiores índices de

mortes de profissionais da saúde são estados Unidos da Améria, México e Brasil.

Observa-se, portanto, que o cenário da pandemia se apresenta propício ao

diálogo interinstitucional da OMS e da OIT, pela urgência na proteção da saúde e

segurança dos profissionais de saúde. Contudo, não se verificou nenhuma iniciativa

colaborativa oficial entre tais organismos internacionais durante a pandemia de

COVID-19, a despeito de ambas agências terem individualmente se manifestado

por meio de relatórios, publicações com sugestões sobre a higiene do meio ambiente

do trabalho e medidas de prevenção e precaução para dificultar a transmissão do

Coronavírus.

Ressalte-se que já se verificou, em outras situações, iniciativas colaborativas

oficiais que resultaram na publicação das “Diretrizes conjuntas OIT/OMS sobre os

serviços de saúde e a infecção VIH/sida”, em 2008. Entende-se que a publicação

conjunta – ainda que não dotada de caráter cogente – auxiliaria no estabelecimento

de condições de trabalho mais seguras e saudáveis para os trabalhadores, sobretudo

para os profissionais da saúde que pelo risco que o combate à pandemia representa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo sobre a possibilidade de ação conjunta e de diálogo normativo entre

a OIT e a OMS demonstrou que a cooperação entre os dois organismos

1013
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

internacionais está prevista em seus atos constitutivos, além de evidenciar a

existência de diversos instrumentos internacionais dedicados à saúde e segurança

no trabalho (inclusive de profissionais da área da saúde) compatíveis entre si.

Verificou-se que as international health regulations são normas de teor mais

generalista, enquanto os international labour standards têm um caráter mais

específico, ligado à própria história da OIT, que tem nos standards um instrumento

jurídico central e estratégio para promoção de melhores condições de trabalho e

foram criados, inicialmente, de maneira mais direcionada a determinados setores

da economia e, posteriormente, foram sendo ampliados. Em que pese a OIT não ter

incluído a saúde e segurança do trabalhador no seu rol de core labour rights, a saúde

e segurança é um assunto central nas diversos convenções, além de ter sido

declarado como um direito fundamental na Declaração do Centenário da OIT

(2019).

Observou-se, dessa forma, que a saúde e segurança do trabalhador é tema de

interesse de ambos os organismos, de sorte que se vislumbra a possibilidade de

diálogo interistitucional e atuação conjunta, sobretudo em momentos de crise. Tal

cooperação se ampara não apenas no interesse comum, mas especialmente na

previsão existente na Constituição da OMS e na Declaração de Filadélfia da OIT

sobre a possibilidade de ações institucionais conjuntas.

Contudo, embora a OIT e a OMS tenham se manifestado – por meio de

relatórios, publicações com sugestões sobre a higiene do meio ambiente do trabalho

e medidas de prevenção e precaução para dificultar a transmissão do vírus, dentre

outros – não foram verificadas iniciativas colaborativas oficiais entre as duas

organizações durante a pandemia de Covid-19, como já se verificou em outras

situações, como se observa nas “Diretrizes Conjuntas OIT/OMS sobre os Serviços

de Saúde e a Infecção VIH/sida” publicadas em 2008.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nesse sentido, entende-se que uma publicação conjunta – ainda que não dotada

de caráter cogente – auxiliaria no estabelecimento de condições de trabalho mais

seguras e saudáveis para os trabalhadores, sobretudo para os profissionais da saúde

que estão na linha de frente do combate à pandemia.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

APOROFOBIA E PANDEMIA: O ESTADO, OS ULTRA RICOS E A

DIGNIDADE DOS POBRES

Daisy Rafaela da Silva274


Davi Dias Ribeiro Arantes275

O medo do desastre faz com que todos ajam de forma a aumentar o desastre.

(Bertrand Russell)

Palavras-chave: aporofobia; pobreza; desigualdade; ultra ricos; Estado.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho integra parte dos estudos desenvolvidos em conjunto

com o Grupo de Pesquisa “Direitos Sociais, Direitos Fundamentais e Políticas

Públicas” da linha de pesquisa “Direitos sociais, econômicos e culturais”, do

Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo

(UNISAL) - Lorena. Nele objetiva-se analisar a atividade estatal e a caracterização

de rechaço aos pobres por meio de ações/omissões do Estado, desde antes e durante

o momento da atual crise, dilatada em razão do COVID-19, discutindo as

274 Pós-doutorado pela Universidade Nacional de Córdoba (CEA - Centro de Estudos Avançados) Argentina;
Doutora em Direito; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos; Professora Titular do Programa de Mestrado em
Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), de Lorena/ SP e nos Cursos de Graduação em
Direito e Pós-graduação em Direito e Formação Docente; Professora e Pesquisadora do Programa de Mestrado
em Direito do Centro UNISAL de Lorena – SP; Professora Doutora III da EEL USP; Líder do Grupo de Pesquisa
“Direitos Sociais, Direitos Fundamentais e Políticas Públicas” da linha de pesquisa “Direitos sociais, econômicos
e culturais”, do Programa de Mestrado em Direito do UNISAL, Lorena – SP. Email: daisyrafa1@hotmail.com.
Lattes: CV: http://lattes.cnpq.br/9677842625734705
275 Bacharelando em Direito (UNISAL, Lorena – SP); Bolsista PIBIC / CNPq, Integrante do Grupo de Pesquisa
“Direitos Sociais, Direitos Fundamentais e Políticas Públicas” da linha de pesquisa “Direitos sociais, econômicos
e culturais”, do Programa de Mestrado em Direito do UNISAL, Lorena – SP. Email: davidias0102@hotmail.com.
Lattes: CV: http://lattes.cnpq.br/8035910409464339

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

consequências, que as atividades do Estado causarão à população, em detrimento

aos mais pobres e vantagens benéficas ao seleto grupo dos “ultras ricos”, que

concentram grande porcentagem da riqueza nacional e mundial. Utilizando-se de

análise crítica de doutrina, artigos científicos e fatos recentes noticiados pelos

veículos de informação, trata-se de tema de grande relevância.

1. APOROFOBIA: O RECHAÇO AOS POBRES

O pré-conceito como o a própria palavra sugere, trata-se de uma conclusão,

uma formulação de conceito sobre algo, alguém ou determinada situação antes

mesmo de ter contato com o que realmente se trata, pode ocorrer em razão da

religião, cor da pele, nacionalidade, orientação sexual e outras especificidades, e

ainda condições econômicas, voltando-se contra os pobres, que detêm menos poder

diante das decisões tomadas pela sociedade e é julgado equivocadamente e

estigmatizado como o causador dos problemas que envolvem aquela sociedade, o

que serve ainda como “justificativa” para a exclusão e discriminação, de modo geral

o preconceito se volta contra tudo aquilo que é diferente de uma norma

estabelecida, o “outro”. A discriminação por sua vez, é o tratamento diferenciado,

muitas vezes em razão de preconceitos, o que pode levar à intolerância frente ao

outro, resultando em exclusão ou ainda uma inclusão perversa que possui limites

bem determinados e serve para explorar ainda mais aquele que é “diferente”.

Assim, o neologismo “aporofobia” foi elaborado pela filósofa espanhola

Adela Cortina, vocábulo esse que foi eleito a palavra do ano de 2017 pela Fundación

del Español Urgente (FUNDÉU, 2017), tem sua origem no grego άπορος (á-poros),

isso é aquele sem recursos, pobre, e φόβος (fóbos), que significa medo, aversão,

desse modo aporofobia traduz e nomeia o rechaço, aversão, temor e/ou desprezo

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aos pobres (CORTINA, 2017), em razão da situação socioeconômica dessas pessoas,

e nessa relação se envolvem e influenciam diversos fatores não somente os

econômicos, mas também sociais, culturais e outros que constroem a desigualdade,

e que se fazem presentes em nosso cotidiano, como aponta Cortina: “aporofobia es

un atentado diario, casi invisible, contra la dignidad, el bienser y el bienestrar de las

personas concretas hacia las que se dirige.” (2017, p. 15). Por isso, a nomenclatura

se faz importante, pois permite nomear, apontar, identificar e consequentemente

pensar soluções para o rechaço aos pobres, antes não nomeado.

Interessante observar que esse rechaço, o desprezo e chegando até mesmo

a violência física não se dá pelo fato individual, ou seja, no caso da aporofobia o

pobre não sofre violências por ser “ele”, mas por ser “um” pobre, o ódio se alimenta

contra um determinado grupo e não indivíduos que praticaram certas ações, mas

somente por pertencerem aquela “categoria” de pessoas, os indivíduos são

rechaçados.

A aporofobia se soma e intensifica uma série de outras complicações que a

pobreza carrega consigo, pode-se dizer que a pobreza concretiza a violação dos

direitos humanos, negando não somente a individualidade, mas a própria

humanidade, pela falta de moradia, educação, saneamento, segurança social, saúde,

liberdade, acesso à informação, aos benefícios da ciência, trabalho etc. que somados

ao preconceito que sobrem pela situação imposta, a aporofobia, se consolidam

dificultando ainda mais uma pequena ascensão social.

Entretanto, o fenômeno da aporofobia não se manifesta apenas entre

indivíduos em suas condutas particulares, mas também através das atividades de

instituições e Estado, situação que assume características sistêmicas e estruturais,

agindo por meio de políticas (ou omissões) que não apenas excluem, mas pioram a

condição de vida dos mais pobres, restringem e/ou violam, direta ou indiretamente

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a dignidade da pessoa, sua liberdade e outros direitos humanos. De modo que as

medidas aporofóbicas do Estado, ou como nomeamos de aporofobia estatal, seguem

no sentido contrário à proposta firmada no pacto constitucional de 1988, quando no

art. 3º, III estabelece como objetivo da República Federativa do Brasil “erradicar a

pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e insere

como princípio da ordem econômica e financeira, no art. 170, VII, a “redução das

desigualdades regionais e sociais” (BRASIL, 1988), assunto que será abordado de

maneira mais adiante, nesse artigo, em uma seção reservada para a discussão sobre

as ações e omissões do Estado.

2. ULTRA RICOS NA SOCIEDADE DESIGUAL

A aporofobia estatal, porém, não ocorre por acaso tampouco por “capricho”

dos que desprezam os mais pobres, além de prejudica os grupos vulneráveis

economicamente seus mecanismo permitem e produzem uma série privilégios a um

grupo restrito de pessoas, os “super ricos”, e nessa categoria são inclusas cerca de

2.000 pessoas que concentram mais de 60% da riqueza mundial (OXFAM, 2020),

número alarmante quando se considera que a população mundial se aproxima de

8.000.000.000 (oito bilhões) de pessoas, e as desigualdades ficam ainda mais

gritantes ao se fazer o recorte não só dos 1% mais ricos, mas os 0,1% ou ainda 0,01%

da população, em outras palavras, o grupo dos aqui chamados “super ricos”

concentram a maior parte da riqueza mundial, constituindo-se na verdadeira elite

econômica. Jeff Bezos, considerado a pessoa mais ricas do mundo, dono de

empresas como Amazon, denunciada diversas vezes por trabalho análogo ao

escravo e condições impróprias para seus empregados (DESIDÉRIO, 2018;

ROBERTS, 2020), pode se tornar o primeiro trilionário do mundo, o que

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

corresponde a uma cifra com doze zeros, e caso tal fato se concretize, estaremos

diante de um cenário em que uma única pessoa concentra mais riqueza que o

Produto Interno Bruto (PIB) de 179 países juntos, onde vive 43,7% da população

mundial (PASCOWITCH, 2020). Devido a tamanha concentração de renda, nacional

e internacionalmente, o grupo dos “super ricos” exercem poder e influência política,

mudando o rumo de determinadas decisões e afetando a própria democracia.

Se já não fosse desumano ou, no mínimo questionável, a exploração das

pessoas e o cenário onde poucos concentram muita riqueza, frente a isso há pessoas

com fome, sem moradia e com seus direitos mais básicos sendo violados

cotidianamente, cenário que se já era preocupante se agravou ainda mais com a

pandemia do COVID-19, em contraponto a este cenário, o bilionário Jeff Bezos,

somente no começo de 2020 obteve um crescimento de US$ 24 bilhões 276 em sua

conta com o aumento de suas vendas (ALEXANDER; MALONEY; METCALF,

2020), certamente muito distante dos pequenos comerciantes e produtores,

classificados como empresários, mas que tem sua renda afetada pela situação

pandêmica.

Hoje no Brasil o salário mínimo é de R$ 1.039,00 (BRASIL, 2020), o

desemprego marca 13,2% (DURÃO, 2020), e os 1% mais ricos do país (cerca de 2,1

milhões de pessoas) têm, em média, uma renda de R$ 28.659,00 em face a metade

mais pobre da população (aproximadamente 104,7 milhões) que recebem R$ 850,00

em média, o que corresponde a menos de 33 partes dos 1% do topo (VILLAS BÔAS,

2020), o brasileiro mais rico atualmente é o banqueiro Joseph Safra, com uma

fortuna estimada em US$ 19,9 bilhões, seguido por Jorge Paulo Lemann com US$

10,4 bilhões (FORBES, 2020).

276 Aproximadamente R$ 126.621.600.000,00 de acordo com a cotação do dólar em 14 set. 2020,


equivalendo-se a R$ 5,28.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

As recomendações internacionais evidenciam a ideologia de que certas

vidas valem mais que outras quando, por exemplo, testes são recomendados a

população mais pobre, não por causa da saúde dos pobres, mas pela segurança dos

mais ricos (CHADE, 2020), tais medidas são fatos que quando somados geram,

paulatinamente, a normalização de discursos de que vidas idosas (pobres) tem

pouco valor ou ainda que a economia sobressaia a saúde e vidas humanas,

normalizando a violação de direitos humanos para um grupo ainda maior,

incluindo os pobres, que já se vêm habitualmente menosprezados e rechaçados,

principalmente pelos mais ricos, que somente os enxergam como possíveis causas

de problemas e que não possuem nada a oferecer, retirando quaisquer traços de

humanidade.

Assim, o crescimento do desemprego, menor acesso a educação e outros

serviços públicos, falta de moradia etc. geram um cenário sem dúvidas excludente,

mas que permitem maior investimento no setor privado, o enfraquecimento da

mobilização dos trabalhadores e, principalmente, aumento das taxas de lucros dos

“super ricos”, sendo flagrante que os limites morais são descartados e situações

críticas como a pandemia são vistas como oportunidades de maior rendimento,

como aponta Cardoso ao dizer que:

os investidores e os empresários mais astutos sabem disso e


mantêm o sangue frio em meio ao desespero para “comprar ao som
dos canhões (do corona vírus) e vender ao som dos violinos”. Mas
eles veem a crise apenas como oportunidade para melhorar a
posição dos capitais de suas empresas ou fortunas particulares.
(CARDOSO, 2020, p. 241)

Entretanto, essa linha ideológica de pensamento é juridicamente legal,

manobras são feita dentro da lei, influenciadas justamente por esses que visam tão

somente o lucro, e é o que será abordado a seguir.

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3. PANDEMIA E MAL-ESTAR SOCIAL

As consequências das políticas públicas adotadas pelo Estado Brasileiro,

que hoje são sentidas em razão da pandemia, seriam, de forma mais ou menos

intensas, presenciadas independentemente do vírus.

Quando se observa a precária situação do Sistema Único de Saúde, e o

número de desempregados e precarização das condições do trabalhador

(CARBONELL, 2020) temos certo de que a doença não é a única responsável pela

infeliz condição da população brasileira. Entretanto, é importante notar a dilatação

desses sintomas sociais que o COVID-19 dá causa, como a estimativa do secretário

de Política Econômica do Ministério da Economia de que vírus pode ser responsável

por aumentar a pobreza, o desemprego e falência de empresas (CARAM, 2020),

situação crítica anteriormente que agora é aumentada.

Tem-se o mal estar social, quando a pessoa humana não tem condições

mínimas de existência, quando, por exemplo, na situação atual, o direito social

básico à alimentação é impedido pelo alto custo dos mantimentos que compõem as

cestas básicas, como o arroz. Em notícia intitulada “Pobres são os mais afetados pela

inflação, concentrada em alimentos” (2020), apresenta o seguinte cenário:

Após muitos anos controlada, a alta dos preços traz de volta a inflação,

afetando principalmente as famílias mais pobres, de acordo com o Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea):

Concentrada em itens básicos da alimentação, como arroz, feijão,


carne, ovos, leite e farinha de trigo, a inflação acumulada no
primeiro semestre do ano é de 1,15% em domicílios com renda
familiar de até R$ 1.650,50(...). Segundo o estudo, os que os mais
pobres compram ficou mais caro e o que os ricos mais consomem
ficou mais barato.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Os pobres têm maiores gastos, proporcionalmente, e portanto, sob seus

ombros, há o maior peso diante das oscilações econômicas, e numa situação de

pandemia, diante de total insegurança social e todas as implicações desta situação,

as pessoas mais empobrecidas são as maiores vítimas.

Embora exista o “auxílio emergencial” que foi distribuído, causando uma

grande movimentação social, aglomeração em tempo de distanciamento social, nas

portas de agências bancárias, levou pessoas com total insegurança social, pobres e

miseráveis a receberem valores, que não alcança o salário mínimo, que em tese,

deveria garantir o mínimo existencial.

4. O ESTADO DE MAL ESTAR SOCIAL: AÇÕES E OMISSÕES

O Estado, descumpre seu papel quando passa a ser de “Bem estar social” para

o de “Mal estar social”, mostrando-se os retrocessos, que ocorrem com ações do

Poder Executivo, com ênfase no federal e também com ações do Legislativo, na

votação de Emendas Constitucionais e leis infraconstitucionais, modificando,

reduzindo e retirando direitos sociais fundamentais. Os pobres, são as vítimas,

atingidas diretamente em muitas destas perdas de direitos.

Para conter gastos, alteram-se leis reduzindo teto de gastos atingindo

frontalmente a saúde e educação, com a finalidade de “reestruturar” a economia e

aquecer o mercado, e assim, reduzir desemprego, como se fez com a legislação

trabalhista. No mesmo sentido, as alterações das normas da previdência social,

provocando um aumento no número de brasileiros desassistidos socialmente,

aumentam-se a pobreza e a miséria.

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Vê-se que as medidas do Estado têm por objetivo flagrante a manutenção do

status quo dos que estão abastados economicamente, desprezando-se o pobre e o

miserável, assim:

[...] O Estado Social se encontra gravemente enfermo, contudo,


corresponde a uma constatação que já perdeu a muito tempo o
sabor da novidade [...]. É preciso reconhecer que as diversas
manifestações concretas do Estado Social são bastante distintas
entre si, mesmo em se tratando de autênticos Estados Democráticos
de Direito, o que pode ser bem ilustrado com o exemplo da
positivação, ou não, de direitos sociais, mas, em especial se
avaliando-se o regime jurídico de tais direitos, e a sua eficácia social,
precisamente a que mais se ressente em tempos de crise [...] A
redução dos níveis de prestação social em tempos de crise, a
‘flexibilização’ e mesmo supressão de direitos e garantias dos
trabalhadores, o agravamento do desemprego e, portanto, das
condições de acesso à fruição dos demais direitos, desafiam
mecanismos de superação desse quadro e colocam em cheque a
capacidade do Direito e das instituições e procedimentos do
Estado Democrático de Direito de atenderem de modo adequado
às dificuldades e bloquearem o déficit de efetividade dos direitos
fundamentais em geral e dos direitos sociais em particular [...].
(SARLET, 2020, grifo nosso).

A estrutura do Estado de bem estar social está minada, e aquele que é a

representação política do povo, não promove os direitos sociais ao revés, suprime-

os, extingue-os. Zygmunt Bauman e Carlo Bordoni (2016, p. 28) magistralmente

afirmaram que:

A prática do neoliberalismo submete as funções sociais do Estado


ao cálculo econômico: uma prática não usual, que introduziu
critérios de viabilidade nos serviços públicos, como se eles fossem
empresas privadas, para ordenar os campos de educação, saúde,
seguridade social, emprego, pesquisa científica, serviços públicos e
segurança sob uma perspectiva econômica. (BAUMAN; BORDONI,
2016, p. 28).

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Desse modo, o Estado neoliberal, a fim de satisfazer as políticas econômicas,

se abdica dos direitos sociais, e neste sentido:

[...] o neoliberalismo retira a responsabilidade do Estado, fazendo-


o renunciar às suas prerrogativas e avançar na direção de sua
gradual privatização. A perda de poder resulta num
enfraquecimento das políticas econômicas, o que por sua vez se
reflete nos serviços sociais. A crise do Estado se deve à presença
desses dois elementos: incapacidade de tomar decisões concretas
no âmbito econômico e, portanto, a incapacidade de prover
serviços sociais adequados. (BAUMAN; BORDONI, 2016, p. 28,
grifo nosso).

Assim, a perda e retirada de direitos sociais, especialmente no campo do

direito do trabalho e da seguridade social, passa a demonstrar um Estado do tipo

Malfeitor, o que denominamos de “Badfare-State”. (COSTA; SERAU JUNIOR;

SOARES, 2020, p. 365)

Neste momento, há de fato um desmonte e perdas de direitos sociais como:

saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia e tantos outros. Nada tem justifica

plausível, porque de fato, precisa-se de revisão de despesas e contenção nos gastos

públicos. Os direitos sociais são conquistados ao longo da história de povo, e o que

está ocorrendo, atinge frontalmente os mais empobrecidos.

O Estado não pode valer-se da crise, o que agora ficou mais grave, diante da

Pandemia causada pelo COVID 19, para se aproveitar e retroceder nos direitos

sociais, reduzir orçamento a fim de sufocar as políticas públicas violando os direitos

humanos, e atingindo os pobres maciçamente, demonstrando a face do badfare state.

Sobre o cenário atual, Daisy Rafaela, Consuelo Yoshida e Tiago Cappi (2020)

se manifestaram:

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Neste momento, apresenta-se um cenário de maior gravidade


social, econômica e sanitária, que assola o mundo, com a Pandemia
de COVID 19 e tem exigido medidas emergenciais, como garantir
uma renda mínima para trabalhadores autônomos e demais
categorias sem condições de viver minimamente com dignidade,
pacotes de socorro a Estados e Municípios, diante de uma economia
estagnada em virtude do isolamento social proposto como
alternativa para a redução da transmissão do vírus COVID 19. Há
um problema gravíssimo que se apresenta com o iminente colapso
do sistema de saúde público e privado. Diante de uma situação
emergencial, atípica, global, há prejuízos incomensuráveis à vida
humana e também ao sistema econômico mundial. Reitera-se a
preocupação com o futuro, em relação ao tratamento da pobreza e
a miséria. Pensa-se num país Pós-pandemia COVID 19, cientes do
profundo déficit orçamentário público, dos custos para se assegurar
os direitos fundamentais sociais e de todos os efeitos colaterais deste
momento crítico pelo qual a humanidade atravessa.

Tem-se, portanto, políticas públicas que favorecem os ultra ricos, por

exemplo, são a priorização da dívida externa dos países e as medidas de

austeridade, como pode-se observar a Emenda Constitucional nº 95 (BRASIL, 2016)

que congelou os investimentos e despesas por 20 anos em áreas como saúde e

educação; o perdão de dívidas bilionárias adquiridas por grandes empresas e

bancos (FERNANDES, 2019) e incentivos a grandes grupos empresariais, seja por

meio tributário, concessões ou outras formas em que os avanços são pouco ou nada

devolvidos à sociedade como um todo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação entre direitos sociais e economia mostra-se complexa quando se

trata da atuação do Estado pois ele está cada vez mais alinhado às questões de

mercado, em detrimento da vida e dignidade humana.

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Tem-se a desigualdade econômica em que se traz pobres e ricos em distancias

abissais. O pobre além de ter direitos inalcançáveis em sua maioria das vezes, passa

por aporofobia no âmbito público e privado. Não bastasse isto, há a transformação

do Estado antes, de bem-estar social e agora, com suas novas configurações passa a

ser de “mal estar social”.

O Estado, ao ajustar a economia interna, com práticas austeras, afronta a

dignidade de pessoas já em situação de vulnerabilidade social e econômica.

As perdas de direitos em favor do mercado, promove maior exclusão social,

o rechaço ao pobre, a maior vítima.

Estudos indicam que a relação entre ricos e pobres ficou mais distante, isto

porque empobreceu-se mais, por outro lado, os ricos nunca foram tão ricos, e em

situação de crise, muitas riquezas se multiplicaram. A crise epidêmica atinge os

mais vulneráveis socioeconômicos, sendo a aporofobia, flagrante.

A aporofobia Estatal se combate com ações concretas, infelizmente, no

cenário de pandemia, o país perderá muitas vidas, em sua grande maioria, pobres,

desassistidos em diversos aspectos.

O Estado aporofóbico age através de suas políticas e medidas, não bastando

a qualidade de vida dos pobres e sua dignidade afetadas por tais medidas, as

mesmas medidas se movimentam para enriquecer grandes empresas e empresários,

concentrando quantias estratosféricas na mão de um pequeno grupo, os super ricos.

A pandemia, por sua vez, exalta as desigualdades preexistentes, seja por

consequência de medidas anteriores seja por ações/omissões tomadas durante a

crise. As realidades são quase opostas ao observar os impactos que a pandemia gera,

de um lado os bairros mais pobres acabam sendo os mais afetados pela doença, de

outro, super ricos lucram quantias exorbitantes com a mesma situação.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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– Florianópolis: CONPEDI, 2020.

1033
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume I: Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão: Direitos Civis e Políticos

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA GESTANTE E AS

RESTRIÇÕES DA COVID-19

Karine Domingos de Souza 277


Gustavo Paschoal Teixeira de Castro Oliveira 278
Paulo Sérgio Gomes Soares 279

RESUMO
O direito à saúde é um direito fundamental presente na Segunda Dimensão dos Direitos
Fundamentais, posto que está inserido nos direitos sociais. O artigo aborda as contradições
geradas no âmbito dos Direitos Humanos e dos direitos fundamentais da gestante, no que
tange ao direito a acompanhante, conforme previsto pela Lei Federal nº. 11.108, de 07 de
abril de 2005, frente às restrições impostas pelas organizações nacionais e internacionais em
função da COVID-19. Os Direitos Humanos das mulheres precisam ser respeitados, dado
que o direito a presença de acompanhante não é derrogável, e faz parte do bem estar físico
e psíquico da parturiente e do nascituro, mas a pandemia exige que as restrições sanitárias
sejam cumpridas para a manutenção da vida. Em que medida tais restrições podem
representar violações desse direito fundamental? O objetivo do artigo, de um ponto de vista
jurídico, é propor a compatibilização entre os antagonismos, procurando garantir os
direitos da gestante com a manutenção da segurança prevista pelas Organizações de saúde
nacionais e internacionais. Para tanto, apresenta uma pesquisa teórica, apoiada em método
dedutivo e abordagem qualitativa, para expor as implicações da pandemia na saúde da
mulher nessa condição, perpassando os debates sobre o parto humanizado no Brasil. A
contribuição do debate gira em torno do direito fundamental à saúde da parturiente em
tempos de pandemia.

Palavras-Chave: Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Direito da Gestante; Lei do


Acompanhante; COVID-19.

277
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Prestação Jurisdicional e Direitos
Humanos (UFT/ESMAT). E-mail: karine.direito@uft.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7064561946604860.
278
Doutor em Direito. Professor no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Profissional em
Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos (UFT/ESMAT). Bolsista FAPTO. E-mail: paschoal@mail.uft.edu.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7410990226412683.
279
Doutor em Educação. Professor no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Profissional em
Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos (UFT/ESMAT). Bolsista FAPTO. E-mail: psoares@mail.uft.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1365699355771676.

1034
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
The right to health is a fundamental right, present in the Second Dimension of Fundamental
Rights, since it is part of social rights. The article addresses the contradictions generated in
the context of human rights and the fundamental rights of pregnant women, with regard
to the right to accompany, as provided for by Federal Law nº. 11.108, of April 7, 2005, in the
face of restrictions imposed by national and international organizations in accordanlight of
COVID-19. Women's human rights need to be respected, since the right to be accompanied
is not derogable, and is part of the physical and psychic well-being of the parturient and
the unborn child, but the pandemic requires that sanitary restrictions be fulfilled for the
maintenance of life. To what extent can such restrictions represent violations of this
fundamental right? The objective of the article, from a legal point of view, is to propose the
compatibilization between antagonisms, seeking to guarantee the rights of pregnant
women with the maintenance of safety provided for by national and international health
organizations. To this end, it presents a theoretical research, supported by a deductive
method and qualitative approach, to expose the implications of the pandemic in women's
health in this condition, going through the debates about humanized childbirth in Brazil.
The contribution of the debate revolves around the fundamental right to health of the
parturient in times of pandemic.

Keywords: Human Rights; Fundamental rights; Pregnant Woman's Right; Companion's


Law; COVID-19.

INTRODUÇÃO

O direito à saúde está positivado no art. 6º da Constituição Federal de 1988,

em sede de direitos sociais. Assim, se estabelece como direitos sociais fundamentais

a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção

à maternidade e à infância. Em seu art. 196, a Constituição Federal reconhece a

saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais

e econômicas.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), por sua vez, define a saúde como

um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente como a

ausência de doença. Feitas estas considerações, é elementar que a proteção a

maternidade esteja imbuída nas discussões dos direitos relativos à saúde.

1035
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O problema em questão abarca a saúde da mulher no parto e pós-parto em

relação aos cuidados e direitos respaldados legalmente, como o direito a

acompanhante, para a manutenção da saúde física e mental, bem como para os

cuidados básicos. Cabe salientar que, após o parto, a mulher entra em um momento

de regressão para o período pré-gravídico, o puerpério, fase de significativas

modificações tanto físicas quanto emocionais, que não tem um tempo determinado

para terminar. Para fins didáticos, é uma fase que se inicia logo após o parto e vai

até o 10º dia pós-parto; tardio, com início no dia 11º ao 42º dia pós-parto; e remoto

com início 43º dia até um ano pós-parto (BRASIL, 2016). Diante desse quadro, a

saúde da mulher exige cuidados.

Contudo, o mundo está vivendo um momento de emergência de saúde

pública, decorrente da pandemia de COVID-19 e, desde o início do surto, houve

uma grande preocupação diante de sua rápida propagação e impactos no sistema

de saúde. Nesse contexto, a Organização Mundial da Saúde, o Ministério da Saúde

do Brasil, e outras organizações nacionais e internacionais, têm sugerido a aplicação

de planos de contingência semelhantes aos da gripe influenza e suas ferramentas,

devido às semelhanças clínicas e epidemiológicas entre esses vírus respiratórios.

Dentre os planos de contingência, considerando a gravidade da COVID-19,

medidas de contenção foram impostas como, por exemplo, o distanciamento social,

a restrição de circulação pública, a quarentena, o lockdown, o uso obrigatório de

máscara, dentre outras, em diferentes momentos. Tais restrições causaram muitas

situações que exigem uma análise das contradições e do descumprimento da

legalidade, como é o caso em estudo.

De acordo com a Lei Federal nº. 11.108, de 07 de abril de 2005, toda gestante

tem direito a acompanhante, mas, desde a eclosão da pandemia, várias

maternidades têm proibido a presença de acompanhante ou utilizado medidas

1036
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

extremamente restritivas que podem representar violações desse direito

fundamental das mulheres.

A primeira seção do artigo abordou alguns aspectos históricos do parto

humanizado e as resistências a ele, para expor o contexto da instituição da Lei do

Acompanhante. Na segunda seção, o debate girou em torno dos problemas do

descumprimento da legislação por equipes médicas e do desconhecimento e

desinformação das mulheres sobre a Lei do Acompanhante, como fatores que

prejudicam a efetivação desse direito fundamental para a consecução do parto

humanizado.

Para adentrar a seara da legalidade, a terceira seção abordou as

contradições evidenciadas pelo antagonismo entre a lei do acompanhante e as

restrições impostas para evitar a disseminação da COVID-19, como forma de

mostrar os impactos no direito das mulheres, a atuação do legislativo frente as

queixas de violação desse direito e as implicações, de um ponto de vista jurídico, da

compatibilização do antagonismo.

A compatibilização, ainda que mínima, entre a obediência às restrições, a

salvaguarda da saúde coletiva, considerando os argumentos acerca das medidas de

restrição e isolamento social, e os princípios da saúde individual, preconizados pela

humanização do parto e manutenção dos direitos das mulheres, requer uma

adequação do acompanhante aos protocolos de segurança para que se efetive esse

direito fundamental e inviolável, devendo as maternidades e hospitais, públicos e

privados, oferecerem as condições para a efetivação do direito, sem descuidar dos

protocolos que impõem medidas restritivas e sanitárias para impedir o avanço da

doença. Evidentemente, essa compatibilização não elimina as contradições, mas

contribui para o debate acerca dessa temática em tempos de pandemia e esclarecer

a situação, de um ponto de vista jurídico.

1037
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. OS MOVIMENTOS PELA HUMANIZAÇÃO DO PARTO NO BRASIL

A presente seção, que trata do parto humanizado no Brasil, tem por objetivo

contextualizar aspectos relevantes da Lei n°. 11.108/2005, impulsionados por

experiências em vários Estados, desde os anos de 1970, quando surgiram

profissionais de saúde dissidentes, inspirados por práticas tradicionais de parteiras

e índios, como por exemplo, Galba de Araújo, no Ceará, e Moisés Paciornick, no

Paraná, do Hospital Pio X, em Goiás, além do movimento feminista (como o

Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde), a Associação Comunitária Monte Azul,

em São Paulo, os grupos Curumim e Cais do Parto, em Pernambuco e de diferentes

grupos de terapias alternativas, com foco na assistência humanizada da gravidez ao

parto e pós-parto (DINIZ, 2005, p. 631). São grupos e pessoas que trouxeram

experiências e lutas em prol do parto humanizado e que influenciaram na

constituição da lei.

De acordo com Diniz (2005), além das experiências dos grupos

mencionados, a Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento, fundada em

1993, denunciou algumas circunstâncias de violência e constrangimento nas

assistências e condições pouco humanas a que as mulheres e as crianças eram

submetidas neste momento delicado. Condições como imposição de rotinas, a

posição do parto e interferências obstétricas desnecessárias que rompiam com a

naturalidade dos mecanismos fisiológicos, gerando uma patológica intervenção

médica, uma experiência de terror, de impotência, de alienação e de dor. Assim, a

cesárea acabou sendo apontada como a melhor forma de dar à luz, sem medo, risco

e dor.

1038
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Contudo, hoje, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) 280 , em

consonância com a Organização Mundial da Saúde (OMS), adverte:

O parto é um processo fisiológico e natural que pode ser vivenciado


sem complicações pela maioria das mulheres e bebês. Contudo,
estudos mostram que uma proporção substancial de mulheres
grávidas saudáveis sofre pelo menos uma intervenção clínica
durante o parto e o nascimento. Elas também são frequentemente
submetidas a intervenções de rotina desnecessárias e
potencialmente prejudiciais.

Trata-se, portanto, de uma revisão das práticas, de romper com as rotinas

desnecessárias, bem como da defesa da popularização do movimento pela

humanização do parto que, segundo Diniz (2015), aparece como a

necessária redefinição das relações humanas na assistência, como revisão do projeto

de cuidado e da compreensão da condição humana e dos Direitos Humanos das

mulheres.

O termo humanização do parto se refere a uma multiplicidade de


interpretações e a um conjunto amplo de propostas de mudança nas
práticas, trazendo ao cotidiano dos serviços conceitos novos e
desafiadores, às vezes conflitantes. [..] Humanização é também um
termo estratégico, menos acusatório, para dialogar com os
profissionais de saúde sobre a violência institucional. No caso
brasileiro, a obstetrícia parece ter apelo inegável em defesa das
mulheres, que seriam aqui mais beneficiadas, barganhando mais
alívio da dor e mais preservação genital, desde que paguem por
isso: eis o padrão ouro da assistência na prática. (DINIZ, 2005, p.
635).

280
Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5596:oms-
emite-recomendacoes-para-estabelecer-padrao-de-cuidado-para-mulheres-gravidas-e-reduzir-intervencoes-
medicas-
desnecessarias&Itemid=820#:~:text=O%20parto%20%C3%A9%20um%20processo,o%20parto%20e%20o%20
nascimento. Acessado em 15/05/2020.

1039
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Convém lembrar que a primeira maternidade pública “autodefinida” como

humanizada, a romper com as rotinas desnecessárias, surgiu no Rio de Janeiro, em

1994, e recebeu o justo nome de Leila Diniz. Desde então, em 1998, o Ministério da

Saúde implementou de uma série de iniciativas e incentivos ao parto humanizado

com o objetivo de melhorar a qualidade da assistência obstétrica, revalorizar o parto

normal, reduzir as taxas de cesáreas desnecessárias e seus custos para os serviços

públicos de saúde e fortalecer a relação da mãe com seu bebê (BRASIL,1998; 1999).

Com vistas nesses objetivos, é preciso denunciar práticas hospitalares

claramente desatualizadas para promover a humanização e mudar o olhar da

sociedade sobre o parto e os cuidados com a gestante, eliminando o senso comum

que dissemina a falsa ideia de dor e de sofrimento sobre esse momento mágico na

vida das mulheres.

Desde 2005, a Lei n°. 11.108, mais conhecida como Lei do Acompanhante,

entabula que os serviços de saúde maternos permitam a presença de um

acompanhante de livre escolha da mulher durante o parto e no pós-parto. O

acompanhante no parto humanizado é a pessoa que provê o suporte à mulher

durante o processo parturitivo e, de acordo com o contexto assistencial, pode ser

representado por profissionais (enfermeira, parteira), companheiro/familiar ou

amiga da parturiente, doula e mulher leiga.

Para Longo et al (2010), entretanto, o conceito de acompanhante

apresentado pela Política Nacional de Humanização, conhecido como “Humaniza

SUS”, já aponta o acompanhante como o representante da rede social da paciente,

aquele que a acompanha durante toda a permanência no ambiente hospitalar.

Portanto, valendo-se de critérios próprios, a mulher pode escolher e, via de regra,

os acompanhantes são as mães, companheiros, irmãos, amigos próximos, ou seja,

uma figura que a gestante atribua uma sensação de apoio e confiança, e que possa

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

lhe assistir em qualquer dificuldade. Se a equipe médica converge com as práticas

de um parto humanitário, respeitando o plano de parto desejado pela gestante, isso,

atrelada a presença de um ente que lhe confere confiança, só tem a beneficiar o

processo de parturição.

A regulamentação, por conseguinte, seguiu evoluindo para abarcar a

presença do acompanhante nos âmbitos público e privado, e foram formalizadas,

inclusive, através de outros documentos, como, por exemplo, a Portaria n°. 2.418 do

Ministério da Saúde (MS), que passou a autorizar o custeio de despesas com o

acompanhante durante o processo parturitivo, incluindo gastos com refeições,

acomodação e demais acessórios demandados no processo.

Outro importante instrumento normativo é a Resolução da Diretoria

Colegiada n°. 36, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), de 2008,

que dispôs sobre o Regulamento Técnico para Funcionamento dos Serviços de

Atenção Obstétrica e Neonatal, e que também serviu de elemento reafirmador no

que concerne a luta pela preservação do direito da mulher ao acompanhante. Para

tanto, estabeleceu parâmetros para que os serviços assegurassem uma estrutura

física adequada e segura para acompanhantes, dentre outras determinações.

Em 2010, já no âmbito privado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar

(ANSS) estabeleceu, através da Resolução Normativa n°. 211, que os atendimentos

de obstetrícia no setor privado, independente do plano de saúde, deveriam cobrir

todas as despesas com o acompanhante.

O guia prático de assistência ao parto normal para uma Maternidade Segura

apresenta aspectos gerais da assistência ao parto, dentre eles o apoio durante o parto

e a escolha do acompanhante como prática demonstrativa útil, que deve ser

estimulada. Embora esse documento tenha sido distribuído a todos os obstetras

brasileiros no ano de 2000, a divulgação dessas práticas precisa ser intensificada

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

junto à população, para serem conhecidas e utilizadas pelas mulheres, e assim

incentivar o parto normal, contribuindo para a redução de morte materna e neonatal

(OMS, 2017, p. 16,17-28).

No artigo apresentado por Diniz et al (2014, p. S144-S145), que discorreu

sobre a “implementação da presença de acompanhantes durante a internação para

o parto: dados da pesquisa nacional Nascer no Brasil”, evidenciou-se que:

Considerando-se as mulheres que não tiveram um acompanhante


[...], as razões dadas para este fato eram principalmente: o não
cumprimento institucional da legislação, principalmente, ‘nenhum
tipo de acompanhante permitido no hospital’ (52%), e outras formas
de restrições (somente para cesarianas ou para adolescentes, para
acompanhantes mulheres, para aqueles que participaram de um
curso, para aqueles que tivessem pago etc.) Outra causa foi ‘não tem
ninguém para ficar com ela’ (18%), seja porque o parceiro tinha de
ficar com as outras crianças ou por falta de uma rede de apoio social,
ou por causa de ‘internação inesperada para o parto’, em situações
em que a mulher veio sozinha apenas para uma consulta pré-natal
e teve uma indicação imediata para uma cesariana. Algumas
mulheres que foram transferidas de outros serviços relataram
obstáculos de acesso, como ‘a ambulância não permitiu trazer o
acompanhante’. Identificamos frequente falta de informação às
mulheres antes do parto sobre o acompanhante. Elas usaram as
seguintes expressões para afirmar que não foram informadas: ‘não
sabia que era permitido’, ‘não sabia que era permitido em partos
vaginais’, ‘não sabia que era permitido para não-adolescentes’ etc.
Apenas 5,7% das mulheres desacompanhadas (1,4% do total)
disseram que estavam sozinhas porque não queriam ter qualquer
acompanhante (dados não apresentados na tabela). Encontramos
grande variação em termos de implementação de acompanhamento
entre as regiões: 23,1% e 22,6% das mulheres tiveram acompanhante
de acordo com a lei nas regiões Sudeste e Sul (melhores resultados)
e apenas 11,7% no Norte. A Região Centro-oeste teve a pior
situação, com mais de 38,9% das mulheres com nenhum
acompanhante. (Figura 1). [...] As mulheres que com mais
frequência ficaram sem qualquer acompanhante foram as que
tiveram parto vaginal, viviam na Região Centro-oeste, tinham
rendimentos mais baixos, menor escolaridade, eram pretas ou

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pardas, multíparas e usuárias do setor público. A forma de


pagamento para assistência ao parto das mulheres foi fortemente
associada a ter ou não ter qualquer acompanhante: no setor público
29,5% não tiveram qualquer acompanhante, no setor privado
apenas 4,7%. O estado civil das mulheres e o tipo de profissional
não foram estatisticamente diferentes nas chances de ter
acompanhante; a idade materna não foi significativa na análise
bivariada.

No excerto, ficou evidente a desigualdade regional, tendo em vista que o

percentual de desconhecimento da gestante, no que se refere ao seu direito a

acompanhante, é maior na região norte. Essa constatação também aponta para o

problema da desigualdade social, que se reflete na ausência do direito à informação.

Destaca-se que as instituições de saúde que permitem a presença do

acompanhante são as que buscam reduzir intervenções desnecessárias, sem

evidências e não recomendadas pela OMS e que implementaram mudanças

mínimas na ambiência e no mobiliário como, por exemplo, incluir assento para o

acompanhante. Sabidamente, a presença do acompanhante e a adoção de boas

práticas nas instituições contribui com a saúde da mulher. Também há de se

considerar que o profissional de saúde tende a mudar de atitude na presença do

acompanhante, o que pode ser observado nos estudos que mostram que as

mulheres ficam mais satisfeitas com a experiência do parto e com as orientações e

os cuidados recebidos dos profissionais (MONGUILHOTT et al, 2018, p. 8).

Pontua Diniz et al (2014) que, apesar da evolução legislativa, cultural e

social, a presença contínua de um acompanhante durante o parto, na maioria dos

serviços, ainda é um privilégio para as mulheres com maior renda e escolaridade,

de cor branca, pagando pela assistência, e que tiveram uma cesariana. Essa

constatação fortalece os pressupostos de violação dos direitos fundamentais muitas

mulheres “não privilegiadas”, para quem se destinam a cultura tradicional de

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

descaso com o bem-estar, a segurança e o conforto durante o parto. Sobre elas recai,

também, as rotinas desnecessárias e discriminatórias, sobretudo, devido ao

desconhecimento e desinformação acerca dos seus direitos.

2. DESCONHECIMENTO, DESINFORMAÇÃO E DESCUMPRIMENTO DA

LEGISLAÇÃO

A presente seção toca em questões sensíveis, como o desconhecimento e a

desinformação das mulheres acerca dos seus direitos e o descumprimento da

legislação em hospitais e maternidades, situação que tendem a se agravar no

contexto da pandemia com a justificativa de que a lei do acompanhante não deve se

aplicar nesse momento, porque o “direito coletivo à saúde” se sobrepõe ao “direito

individual” de cada pessoa, exigindo uma análise de ponderação de princípios.

Contudo, vale trazer para o debate dois artigos publicados antes da

pandemia, resultados de pesquisas com mulheres grávidas e com agentes de saúde,

que apontaram que essa situação é recorrente em muitas maternidades brasileiras.

Em artigo intitulado “No parto vaginal e na cesariana acompanhante não entra:

discursos de enfermeiras e diretores técnicos”, Brüggemanna et al (2015) mostram

que os motivos das restrições do acompanhante se apoiam nos seguintes discursos:

a sala cirúrgica não é lugar para o acompanhante; na sala de parto acompanhante

não entra; o acompanhante não tem preparo emocional e psicológico; falta de

participação no pré-natal dificulta a entrada do acompanhante; se o acompanhante

não pede, ele não entra, mas se exigir, entra. Para os autores, existe uma postura de

“poder supremo” desses atores pautado em ideias preconcebidas de que o

acompanhante interfere negativamente no processo, mas o problema é que a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

presença do acompanhante exige mudanças, as quais as equipes oferecem

resistência em fazer.

A inserção do acompanhante no processo de nascimento requer


mudanças de atitudes dos profissionais, em especial os que ocupam
cargos de gestão nas instituições de saúde, sejam da área médica ou
de enfermagem. A adoção dessa prática pode contribuir para a
redução de intervenções desnecessárias indutoras das complicações
obstétricas que, por sua vez, estão associadas com a mortalidade
materna no Brasil, que permanece acima da meta estipulada para
2015 pelos ODM (BRÜGGEMANNA, et al, 2015, p. 157).

Como bem avaliam os autores, a mudança nas práticas de atendimento em

prol da humanização do parto e assistência à mulher, em qualquer fase da sua

gestação, pode minimizar a violência e, sobretudo, fazer cumprir rigorosamente o

que prevê a Lei do Acompanhante.

Observa-se que, desde a década de 1990, como resultado do ativismo das

mulheres e da emergência da medicina baseada em evidências, um movimento

mundial começou a documentar os benefícios emocionais e de saúde e alta

satisfação materna, com a presença e apoio contínuo durante o parto. Grupos de

pesquisadores e ativistas, em vários países, organizaram ensaios clínicos para

randomizar mulheres com e sem acompanhantes. Esses estudos e as revisões

sistemáticas decorrentes documentaram os muitos resultados positivos para a

saúde materna e neonatal dessa intervenção simples. Isso levou à recomendação

internacional pela Organização Mundial da Saúde, na década de 1990, de que “o

apoio contínuo durante o trabalho tem benefícios clinicamente significativos para

as mulheres e crianças e nenhum prejuízo conhecido, e que todas as mulheres

devem ter apoio durante o parto e nascimento” (DINIZ et al, 2014, p. S141).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Ponderam Beauchamp e Childress (2002) que a disponibilidade de

informações sobre o parto favorece a compreensão das parturientes em relação aos

seus direitos, fazendo com que se sintam respeitadas. Para tanto, é necessário

profissionais de saúde comprometidos com o processo de cuidar, capazes de

reconhecer o direito das parturientes em expressar suas opiniões e a sua

possibilidade de fazer escolhas, baseadas em seus valores e crenças pessoais.

Para averiguação prática desses pressupostos, uma pesquisa realizada em

quatro hospitais da região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, entre janeiro

e julho de 2014, divulgada no artigo intitulado “O descumprimento da Lei do

Acompanhante como agravo à saúde obstétrica” (RODRIGUES et al, 2017),

identificou com acuidade o desconhecimento de muitas mulheres sobre a Lei do

Acompanhante, assim como de seus direitos. Confirmou, também, que se trata de

uma desinformação que ocorre entre os profissionais de saúde, que negam esse

direito da mulher, como mostra um dos trechos das entrevistas:

[...] como já sou maior de idade não posso ter mais acompanhante.
[...] somente menor de idade pode ter alguém com você. [...] falaram
isso logo quando eu entrei para ser atendida [...]. não deixaram a
minha mãe entrar comigo [...] e como eu não tenho mais direito se
fosse adolescente até eu brigaria para ter, mas fazer o que? [...] (P18);
[...] falavam que eu não podia ter acompanhante, aqui ninguém tem
o acompanhante [...] e as pessoas falaram que não pode e deveriam
deixar uma pessoa ficar, somente menor de idade [...] (P20).
(RODRIGUES et al., 2017, p. 3).

Os autores mencionam que, embora a Lei n°. 11.108/2005 esteja em vigor há

vários anos, sendo o instrumento que institui, no âmbito público e privado, a

modalidade de assistência ao acompanhante, os depoimentos colhidos durante a

pesquisa confirmam a gravosa situação de desinformação quanto a possibilidade

de um acompanhante de livre escolha da mulher durante o período de pré-parto,

1046
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

parto e puerpério imediato. Esclarecem, também, que o acesso à informação deve

ter início já no acompanhamento pré-natal, fazendo com que a mulher seja

informada acerca desses direitos legais e possa tomar uma decisão consciente, caso

necessário.

Conforme entabula Rodrigues et al (2017), no transcorrer do estudo, a

desinformação sobre o direito ao acompanhante sustenta o descumprimento da lei

e impede que a mulher usufrua do seu direito, além de corroborar com uma prática

em que o profissional de saúde perpetua ‘rotinas’ e ‘normas’ implantadas

historicamente, sem atenção ao parto humanizado. Como se lê nos depoimentos:

[...] eu não tive isso, não deixaram o meu marido participar comigo,
e tentei ver isso, mas esse médico não estava deixando. [...] as outras
meninas, os seus esposos estavam junto, não sei porque ele não
deixou ficar e ver o meu parto, achei uma falta de compreensão! [...]
(P03); [...] na sala de parto foi estranho, não deixaram a minha mãe
entrar. [...] o médico disse que não podia entrar na sala. [...] nesse
momento iria ficar sozinha, somente depois iria me ver [...] (P15).
(RODRIGUES et al., 2017, p. 4).

O excerto revela que houve descumprimento da legislação por parte do

médico e a mulher percebeu que outras mulheres, no caso, “os seus esposos estavam

juntos”, mas não fez apelo aos seus direitos por desinformação. A violação dos

direitos se torna ainda mais gravosa quando a mulher sabe dos seus direitos, mas

eles lhes são negados, conforme segue:

[...] mas não consegui [...] (P02); [...] eu briguei com todo mundo
aqui. [...] sei que tem uma lei [...]. Tenho um direito de ter o
acompanhante, chamei a polícia e tudo, mas não consegui
atendimento, pois não tinha espaço suficiente para isso [...] (P19).
[...] pois, quando eles [profissionais] falam que não pode [ter
acompanhante] acho que é normal, nem questiono, e não falo nada,
pois eles entendem disso [...] (P01); [...] já sei como funciona, achei

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

normal, porque eles [profissionais] falam que não pode entrar


ninguém, e temos de respeitar e acatar o que falam para a gente [...]
(P10). [...] achei uma indiferença comigo, um tratamento ruim com
que eles [profissionais] me trataram. Não deixaram a minha mãe
entrar no pré-parto. No parto o médico disse que ninguém vai
entrar, e aqui não pude ficar com ninguém. Me sinto sozinha o
tempo todo, sem ninguém da família [...] me tratou igual a um
cavalo [...] uma situação horrível e desumana, ele me tratando mal
e me desrespeitando o tempo todo [...] (P05);
[...] não dá para dialogar com a médica, uma bruta e grossa, uma
insensível, pois deveria ter deixado a minha mãe entrar nesse
momento. [...] um momento que esperamos e ela não deixou, falou
que não podia e não iria deixar. [...] as enfermeiras, e não tinha
condição mesmo [...] (P09). (RODRIGUES, 2017, p. 5).

De acordo com a exposição dos autores, mesmo a autoridade e o poder

conferidos pela instituição ao profissional de saúde, as mulheres vivenciaram uma

relação de desigualdade na relação de poder, não lhes restando outra opção senão

se submeterem à anulação do seu direito ao acompanhante.

A pesquisa mostrou uma “diferenciação de caráter socialmente

discriminatório, que precisa ser superada pelas instituições, por gestores e

profissionais da saúde, a partir do cumprimento da Lei do Acompanhante em vigor,

bem como da Política de Humanização do Parto e Nascimento” (RODRIGUES et

al., 2017, p. 8). Da mesma forma, revelou que a prevalência das estruturas

tradicionais nas instituições mantém as características distintas da prevista

legalmente.

Frente ao contexto apresentado, a situação pode se agravar durante a

pandemia, já que muitas maternidades se apoiam nos argumentos em prol das

restrições, pressupondo que a reduzida circulação de pessoas na maternidade

diminui o risco de transmissão e de contágio da doença, tanto entre médicos,

enfermeiras e atendentes, quanto entre pacientes. Outro argumento se apoia na

ausência de materiais de proteção para os acompanhantes.

1048
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Enfim, para o Ministério da Saúde do Brasil, grávidas e mulheres que deram

à luz recentemente são mais vulneráveis a infecções em geral e, por isso, estão nos

grupos de risco do vírus da gripe, por exemplo. Mas a lei confere direito ao

acompanhante à gestante. Como resolver o antagonismo, agora, já que não se trata

de uma mera gripe?

3. O DIREITO AO ACOMPANHANTE E AS RESTRIÇÕES DA COVID-19

Desde o início do atual surto de coronavírus (SARS-CoV-2), causador da

COVID-19, houve uma grande preocupação com a possibilidade de uma pandemia,

que se concretizou à medida que a doença se espalhou rapidamente pelo mundo,

causando impactos em todas as esferas da vida.

De acordo com Freitas (2020), não existiam planos estratégicos prontos para

serem aplicados a uma pandemia, pois tudo ainda era novo e, mesmo com as

recomendações da OMS, do Ministério da Saúde do Brasil, do Centers for Disease

Control and Prevention (CDC, EUA) e outras organizações nacionais e internacionais

para o seguimento de protocolos de segurança, houve a aplicação de planos de

contingência de influenza e suas ferramentas, devido às semelhanças clínicas e

epidemiológicas entre esses vírus respiratórios. Mas a situação não é simples e não

se trata de uma mera gripezinha.

No que tange ao parto, tardiamente, o Ministério da Saúde instituiu a

Portaria nº. 2.222/GM/MS, de 25 agosto de 2020, em caráter excepcional e

temporário, com Ações Estratégicas de Apoio à Gestação, Pré-Natal e Puerpério e o

incentivo financeiro federal de custeio, para o enfretamento da Emergência em

Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da pandemia.

Assim, os estabelecimentos de saúde, no acompanhamento da gestante, tiveram de

1049
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

adotar alguns protocolos como o uso de Equipamentos de Proteção Individual

(EPI), disponibilizar materiais higienização das mãos, o distanciamento seguro

entre as pessoas, dentre outros. Contudo, os protocolos se estenderam para

restrições mais severas e afetaram diretamente um direito fundamental das

gestantes em ter um acompanhante, de forma que muito se tem ponderado sobre a

legalidade dessa restrição como uma violação dos Direitos Humanos das mulheres,

tendo em vista, também, a concepção de parto humanizado. Trata-se, portanto, de

um antagonismo que tem gerado contradições.

Nesse sentido, é necessário tecer algumas ponderações de ordem jurídica

entre o direito coletivo à saúde e o direito individual da gestante ao acompanhante.

Não se pode negligenciar nenhumas das perspectivas, porque vivencia-se uma

situação de grave crise sanitária que afeta a saúde pública, exigindo a redução da

presença de pessoas nos atendimentos hospitalares, ao mesmo tempo em que se faz

necessário respaldar a saúde da mulher em seu direito ao parto humanizado com

acompanhante, conforme prevê a lei. A presente seção possui esse objetivo, a saber,

compatibilizar os antagonismos.

No que concerne ao acompanhante, a Fiocruz (2020) 281 disponibilizou a

seguinte nota:

No Brasil, a presença do acompanhante de livre escolha da mulher


durante o parto é lei federal. Deve-se avaliar sua condição de saúde
e a realidade de cada serviço a fim de garantir segurança para a
mulher, seu bebê e para a equipe de saúde. O acompanhante deve
estar assintomático para síndrome gripal e utilizar paramentação
adequada. Apesar de grande preocupação por parte dos
profissionais de saúde quanto aos equipamentos de proteção
individual, a precaução padrão e a correta higienização das mãos
são recomendadas para o atendimento de gestantes assintomáticas.

281
Disponível em: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/atencao-mulher/principais-questoes-sobre-
covid-19-e-o-cuidado-obstetrico/ Acesso em: 15/05/2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A utilização de máscara N95/PFF2 deve ocorrer em casos suspeitos


ou confirmados de COVID-19, onde haja risco de geração de
aerossóis. Durante o trabalho de parto os profissionais de saúde
sempre devem utilizar os EPIs, uma vez que é inviável a utilização
de máscara pela gestante, principalmente durante a fase ativa do
trabalho de parto. Até o momento, não há evidências suficientes
sobre a transmissão vertical. Ainda assim, existe preocupação
quanto ao risco de contaminação do bebê a partir do contato com a
mãe infectada, seja durante os cuidados ou pela proximidade
durante a amamentação.

Em função desse risco de contaminação, a Fiocruz (2020) faz menção a um

guia, lançado pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), que

recomenda não ter acompanhante no parto. Porém, o Colégio Real Inglês (Royal

College of Obstetricians and Gynaecologists) e o próprio Ministério da Saúde brasileiro

se manifestaram a favor da presença do acompanhante, desde que não esteja

sintomático. Sendo assim, a orientação da Fiocruz é a seguinte:

Por sua vez, se o acompanhante estiver assintomático, ele pode


acompanhar a mulher e deve-se seguir as recomendações de
precaução, de higienização das mãos, etc. Vale lembrar que a
escolha e presença do acompanhante no parto e pós parto imediato,
no Brasil, é garantida por uma lei Federal. No caso da presença de
doulas durante a pandemia, precisa-se discutir com as mulheres.
Trata-se de colocar mais uma pessoa na cena do parto no momento
onde a recomendação é de diminuir o fluxo e também os riscos de
contaminação. Há também que se avaliar a ambiência dos serviços
e formas de reduzir os riscos de contágio dos acompanhantes, não
só no momento do parto, mas também no alojamento conjunto
durante o puerpério. A falta de equipamentos de proteção
individual (EPI) pode colocar em risco os profissionais de saúde e
também os acompanhantes. (FIOCRUZ, 2020).

Já a Lei n°. 13.079/20, que preconiza as medidas para enfrentamento da emergência

de saúde pública, de importância internacional em virtude da pandemia, em seu artigo 3º,

1051
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

§ 2º, inciso III, dispõe que a disciplina para os cuidados com a Covid-19 não deve se afastar

dos postulados da dignidade da pessoa humana:

Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de


importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades
poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as
seguintes medidas: § 2º Ficam assegurados às pessoas afetadas
pelas medidas previstas neste artigo: I - o direito de serem
informadas permanentemente sobre o seu estado de saúde e a
assistência à família conforme regulamento; II - o direito de
receberem tratamento gratuito; III - o pleno respeito à dignidade,
aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas,
conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário
Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº. 10.212, de 30 de
janeiro de 2020.

Foi justamente com base neste artigo, e diante do descumprimento latente

das maternidades à legislação, tolhendo indiscriminadamente a presença do

acompanhante, que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo ajuizou uma Ação

Civil Pública em uma das Varas da Fazenda Pública de Mogi das Cruzes (SP), para

obrigar a Santa Casa de Misericórdia a garantir a todas as gestantes o direito a um

acompanhante antes, durante e depois do parto.

O juiz destacou que a Santa Casa não pode inviabilizar o direito da mulher:

“A Lei 13.979/20, não suspendeu a eficácia da Lei 11.108/05, que alterou a Lei do

SUS (Lei 8080/90), ao estabelecer o direito ao acompanhante antes, durante e depois

do parto”. Então, o direito ao acompanhante continua garantido, desde que se

submeta aos procedimentos da nota técnica da Secretaria de Atenção Primária à

Saúde, referente às medidas de prevenção durante a epidemia. (ASCOM/DPE-SP,

2020).

A Câmara Legislativa Federal, através do deputado Ricardo Silva (PSB-SP),

também se manifestou sobre o celeuma, e protocolou o Projeto de Lei n°. 3823/20,

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

que institui normas de caráter transitório e emergencial para a proteção de gestantes

no parto e pós-parto e dos bebês, enquanto durar a emergência de saúde

pública. Conforme a Agência Câmara de Notícias (2020)282:

O parlamentar lembra que o Ministério da Saúde incluiu as


grávidas e as puérperas até duas semanas após o parto entre o
grupo de risco para Covid-19 e publicou um protocolo de manejo
clínico específico para elas. Porém, ainda assim, segundo ele, ‘77%
das mortes de gestantes e puérperas por Covid-19 registradas no
mundo ocorreram no Brasil’. Os dados são de estudo publicado no
periódico médico International Journal of Gynecology and Obstetrics.
Segundo o estudo, o atendimento pré-natal de baixa qualidade, a
falta de recursos para cuidados críticos e de emergência, as
disparidades raciais no acesso aos serviços de maternidade, a
violência obstétrica e as barreiras adicionais colocadas pela
pandemia para o acesso aos cuidados de saúde específicos às
gestantes são citados como motivos para a alta taxa de mortalidade
no Brasil.

O projeto prevê, nesse espeque, várias medidas, como leitos exclusivos, pré-

natal através de telemedicina, licença-maternidade de 180 dias (ao invés de 120), e

quanto ao direito a acompanhante afirma o seguinte:

A proposta permite ainda que seja flexibilizado o direito das


parturientes à presença de acompanhante durante o trabalho de
parto e pós-parto imediato, garantido hoje pela Lei 11.108/05, bem
como o direito à visitação, conforme critérios técnicos previamente
estabelecidos pelo Poder Executivo e pelas unidades hospitalares
públicas e privadas. (Agência Câmara de Notícias, 2020).

Vários outros estados, a exemplo do Mato Grosso do Sul, através da

Associação dos Municípios do Mato Grosso do Sul, publicaram Diretrizes no

282
Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/677456-projeto-preve-medidas-para-protecao-de-
gravidas-parturientes-e-no-pos-parto-durante-pandemia/ Acesso em: 03/08/2020.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

manejo de pacientes gestantes internadas com suspeita ou confirmação de infecção

da COVID-9:

Diante da pandemia do novo Corona vírus (Covid-19), e conforme


determinações da Fundação Municipal de Saúde, as maternidades
da rede municipal passam a adotar as seguintes regras visando a
implementação e reforço das precauções de contato no âmbito de
suas instalações: - Terão direito a acompanhante apenas as
pacientes puérperas (pós-parto normal e pós cesárea), pessoas com
deficiência e pessoas com idade < 18 anos, respeitadas as normas
internas de precauções de contágio; - Não serão permitidos
acompanhantes com idade ≥ 60 anos ou < 18 anos. - Não serão
permitidos acompanhantes com sintomas gripais ou que sejam
contactantes de pessoas com sintomas gripais. - O acompanhante
deve usar máscara cirúrgica durante toda a permanência
hospitalar. - Não haverá troca de acompanhante, poderá ocorrer
mediante comunicação prévia à (ao) enfermeira (o) do plantão. -
Suspender as visitas à todas as pacientes internadas, salvo, no caso
de puérpera, no qual será permitida visita do pai do recém-nascido,
respeitadas as normas internas da instituição. - Distância de 1,5
metros dos leitos de maternidade (MATO GROSSO DO SUL,
Diário Oficial, 2020).

Observa-se, portanto, que alguns estados estão criando mecanismos em

atenção à Lei Federal para garantir o direito ao acompanhante, devendo, também,

romper com a cultura médica de restrição indiscriminada e impedir a violação por

rotinas que transformam a maternidade em um verdadeiro pesadelo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos, ao longo da exposição, que não permitir a presença do

acompanhante no parto e pós-parto é uma prática recorrente em algumas

maternidades, sob o argumento de que o acompanhante é uma “complicação” nesse

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

momento, prevalecendo a autoridade e poder institucional para impedir que a

mulher faça valer esse direito legal, o que pode caracterizar a violação de um direito

fundamental. Há, também, o desconhecimento de muitas mulheres acerca do

direito ao acompanhante de sua escolha. Entretanto, desacatar o previsto na Lei

Federal nº. 11.108 e não garantir esse direito fundamental da gestante pode gerar

sanções.

As condições para a manutenção do parto humanizado incluem o

acompanhante para assegurar à mulher o apoio físico e emocional, promoção da

fisiologia do parto, inibição de intervenções desnecessárias e a própria violência

obstétrica, dentre outras condutas inadequadas e discriminatórias que geram

insegurança. Embora haja avanços garantidos por lei, a resistência precisa ser

rompida.

No atual momento de crise sanitária, a resistência pode acentuar posturas

contraditórias nas equipes médicas que, por sua vez, querem garantir a segurança

e restringir o acesso de pessoas para evitar o contágio da COVID-19. Nesse sentido,

foi mostrado que o direito ao acompanhante não pode ser restringido, mas sim que

sejam criadas as condições, conforme os protocolos de segurança, para a sua

permanência como uma política de saúde universal e equitativa. Para tanto, as

equipes de atendimento precisam estar prontas para atender aos protocolos de

segurança, incluindo os serviços que garantam os direitos das mulheres.

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desnecessarias&Itemid=820#:~:text=O%20parto%20%C3%A9%20um%20processo,o
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1058
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

CRISE, REFORMA E SINDICATO: DE 1920 AO BRASIL

CONTEMPORÂNEO

Mariana de Freitas Barros Souza283


Renan Pereira da Silva de Souza284

RESUMO
O presente trabalho representa um esforço coletivo em contribuir com as reflexões acerca
dos principais atuais desafios colocados para a organização dos trabalhos e o movimento
sindical brasileiro. Para tanto, busca-se conciliar um levantamento bibliográfico com a
narrativa de atores políticos centrais, para apresentar uma perspectiva fora do comum da
literatura sociológica sobre o desenvolvimento das lutas no seio do movimento sindical
brasileiro no período que compreende a década de 1920 até os nossos tempos. Em seguida,
passado o percurso de análise histórica da atual crise do sindicalismo, o trabalho se volta
ao exame do termo de quitação anual de débitos trabalhistas, instrumento inserido pela Lei
n. 13.467/17, a chamada Reforma Trabalhista que, na prática vem representando mais um
entrave a atuação dos sindicatos, hoje. Pretende-se, com isso, evidenciar a
contraditoriedade explicitada na aplicação desse novo dispositivo quando considerada a
lógica protetiva própria a sistemática justrabalhista, criando assim um contributo teórico
para se driblar mais esse ataque que fere de frente e a fundo a autonomia dos sindicatos.

Palavras Chave: novo sindicalismo; sindicatos; reforma trabalhista; termo de quitação; crise
do sindicalismo.

ABSTRACT
This work represents a collective effort to contribute to the reflections about the main
current challenges posed to the organization of work and the Brazilian union movement.
To this end, we seek to reconcile a bibliographic survey with the narrative of central political
actors, to present an out-of-the-ordinary perspective of sociological literature on the
development of struggles within the Brazilian trade union movement in the period between
the 1920s and ours. times. Then, after passing the course of historical analysis of the current
crisis of unionism, the work turns to examining the term of annual discharge of labor debts,

283
Mestranda em Ciências Jurídicas e Sociais no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da UFF
(PPGSD/UFF), membro do Núcleo de Estudos Marxistas da UFF/VR e membro-pesquisadora do grupo
Economia, Poder e Sexualidade (PPGSD/UFF). email: mfbsouza@id.uff.br. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4226227928175779.
284
Advogado. Mestrando em Ciências Jurídicas e Sociais no Programa de Pós Graduação em Sociologia e
Direito da UFF (PPGSD/UFF) e membro do grupo de pesquisa Laboratório Empresa e Direitos Humanos (LEDH-
UFF). e-mail: renanpssouza@yahoo.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3927340018219483.

1059
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

an instrument inserted by Law no. 13,467 / 17, the so-called Labor Reform, which, in
practice, represents yet another obstacle to the work of unions today. It is intended, with
this, to verify the possibility of answers and alternatives within the justrabalistic system to
circumvent this attack that directly and deeply injures the autonomy of the unions.

Keywords: new unionism; unions; labor reform; discharge term; union crisis.

INTRODUÇÃO

A chamada “Reforma Trabalhista” de 2017 trouxe em seu arcabouço uma série

de mudanças substanciais nas relações de trabalho, em especial no que se refere as

garantias e institutos de proteção aos trabalhadores. O intento apresentado pelos

autores das alterações era o de dar maior autonomia ao trabalhador para decidir e

“negociar” sobre o seu contrato de trabalho. Ocorre que as mudanças trazidas,

factualmente, reforçam uma tendência mundial do capitalismo contemporâneo ao

desfavorecer ainda mais a figura do trabalhador na balança laboral, uma vez que

enfraqueceu as bases protetivas do direito trabalhista, sendo esse seu verdadeiro

desígnio.

Entre os principais pontos observados com a reforma podemos destacar a

despadronização da jornada de trabalho, alterações nas normas de saúde e

segurança do trabalhador, fragilização do sindicato com a desobrigação da

contribuição anual descontada em contracheque, bem como o termo de quitação,

que funciona como “bilhete de ouro” para o empregador, afastando a incidência da

justiça de trabalho e do sindicato, esse como fiscal dos excessos do empregador no

que se refere as discussões das verbas rescisórias, problema esse que será tratado

nesse artigo.

O ponto de partida da reflexão que aqui se pretende é o termo de quitação de

débitos trabalhistas inserido pelo art. 507-B da CLT em consonância com a

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revogação do § 1º e 3º do art. 477 da mesma, que passou a desobrigar a empresa de

fazer a homologação do TRCT e do TQRCT junto ao sindicato da categoria ou ao

antigo Ministério do Trabalho (atual secretaria especial do Ministério da Economia),

nos casos de rescisão de contrato firmado por empregado com mais de um ano de

serviço, desobrigando o empregador de reparar o empregado pelos débitos

trabalhistas advindos da relação de emprego.

Para desenhar o que foi o movimento que ascende na década de 1970, optamos

por voltar algumas décadas e buscar na narrativa de atores políticos e na

bibliografia especializada os germes que fundam as bases do movimento sindical

combativo que, em realidade, se reconstrói naquele período. Para tanto, recorremos

aos contributos documentados pela Fundação de Estudos Políticos, Econômicos e

Sociais Dinarco Reis, que entre tantas outras missões, colabora com o resgate da

memória do movimento comunista brasileiro. Desenvolvemos, assim, uma

intersecção entre as narrativas políticas, econômicas e sociológicas sobre esse

processo aliadas ao posterior desenvolvimento de uma análise jurídico-objetiva

acima sinalizada.

Pretende-se, então, contribuir no debate dos impactos da “Reforma

Trabalhista” sobre os sindicatos, num contexto de constantes mudanças vivenciadas

pelo movimento sindical a partir da década de 1970. Para tanto, faz-se necessário

apontar os entender como se deu a reestruturação dos sindicatos no Brasil como

forma de defesa para os trabalhadores frente ao modelo capitalista de dominância

de mercado, que enseja maiores danos a figura do empregado e maior acumulação

de riqueza para os empregadores.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. NOTAS SOBRE A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES E A LUTA

SINDICAL NO BRASIL (1920-2020)

A história da organização dos trabalhadores e trabalhadoras no Brasil e no

mundo é eivada de sangue e suor. Desde as mais pretéritas formas de interação

entre o ser humano e a natureza - aquele com vistas a garantir sua subsistência e

reproduzir sua existência por meio da relação com esta última -, em nossas terras

encontramos os traços da resistência e visualizamos as mais distintas formas de

organização da luta por melhores e mais dignas condições de existência.

Sejam as revoltas dos povos nativos quando da expropriação violenta de suas

terras pelos colonizadores europeus, sejam as revoltas e a organização dos povos

africanos escravizados, bem como as lutas dos camponeses e dos trabalhadores

urbanos assalariados, o histórico de lutas que atravessam o percurso de constituição

da sociedade brasileira como a conhecemos hoje, em sua multiplicidade, nos

mostram a face por vezes ocultada (ou aniquilada) de nossa história.

Para desenvolver uma exposição acerca do movimento que ascende na década

de 70 como o “novo sindicalismo” e os desdobramentos das mobilizações em torno

da articulação e organização de setores da classe trabalhadora brasileira bem como

a atual e pretérita crise do sindicalismo, é necessário que façamos um não tão breve

retorno a um período em que, pode-se dizer, se encontravam os germes da luta dos

trabalhadores urbanos organizados. Vejamos, então.

Aos fins do ano de 1926, fora criado no Rio de Janeiro o chamado Bloco

Operário que, no ano de 1928, foi convertido no Bloco Operário e Camponês.

Naquele período, a ainda débil e em construção indústria brasileira contava com

cerca de 275.512 operários (JÚNIOR, 1978, p. 198) no setor. Desenvolvia-se ali, a

passos lentos, um impulso às atividades industriais no país, por força dos impactos

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da Grande Guerra de 1914-18, ainda sem forças para acompanhar o ritmo da

industrialização capitalista mundial que, naquele momento, desenvolvia-se a todo

vapor. Nesse sentido, o período é caracterizado por Caio Prado Júnior da seguinte

forma:

Quanto ao caráter desta indústria recenseada em 1920, ela se


conserva mais ou menos idêntica à de 1907, tanto no que diz
respeito à sua dispersão como à distribuição percentual da
produção. A modificação mais sensível será a transferência para o
primeiro lugar das indústrias de alimentação, que passam de 26,7%
da produção em 1907, para 40,2% em 1920. Isto se deve ao
aparecimento de uma nova indústria que tomará durante a guerra
grande vulto: a congelação de carnes. Estimulara-a o consumo
crescente dos países beligerantes, e a exportação brasileira de
carnes, nula antes do conflito, sobe em 1918 para 60.509 toneladas
anuais. Esta indústria localiza-se no Rio Grande do Sul, o principal
centro pecuário no país desde o séc. XVIII, e em São Paulo que conta
não somente com seus rebanhos, mas com os do Triângulo Mineiro,
Mato Grosso e também Goiás.

Chegada a este ponto de desenvolvimento, a indústria passara já a


ocupar um lugar de grande relevo na economia do país. Uma boa
parcela dos artigos manufaturados do seu consumo era de
produção interna, dispensando assim importações correspondentes
de artigos estrangeiros. Este será um importante fator, de equilíbrio
das nossas contas externas e da normalidade financeira do país. É
nesta conjuntura, aliás, que repousará em grande parte a indústria:
tornara-se um elemento indispensável ao funcionamento normal da
economia brasileira que já não poderá mais dispensá-la sem um
distúrbio profundo de todo seu equilíbrio. Isto dará à indústria uma
grande segurança; mas terá ao mesmo tempo conseqüências muito
graves. A indústria poderá repousar, e faltar-lhe-á estímulo
suficiente para um apreciável progresso qualitativo. A maior parte
das indústrias brasileiras viverá parasitariamente das elevadas
tarifas alfandegárias e da contínua depreciação cambial. Não terá
havido para elas a luta pela conquista e alargamento de mercados
que constitui o grande estímulo das empresas capitalistas, e o
responsável principal pelo progresso vertiginoso da indústria
moderna. Pode-se dizer que os mercados virão a elas, num apelo à

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produção interna de artigos que a situação financeira do país


impedia que fossem comprados no exterior. Quanto à concorrência
entre os diferentes produtores nacionais, ela sempre será pequena
porque o campo era grande demais, e os recursos deles reduzidos
para empreendimentos de vulto e aspirações de envergadura. Os
industriais brasileiros viverão em família; família pacífica em que
fraternalmente se repartem as oportunidades (JÚNIOR, 1978, p.
198-199).

É nesse contexto em que a indústria brasileira ocupa alguma relevância no

cenário econômico nacional que, no ano de 1928, o Bloco Operário e Camponês

organiza um comício que foi violentamente dissolvido pela polícia, culminando

com a prisão de 100 operários (ROEDEL, Hiran, et al., 2002, p. 130). A década é

marcada por intensas greves no Rio de Janeiro e, no ano de 1929, é criada a

Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil, a CGTB. No entanto, a década

posterior e a política centralizadora voltada a administração dos sindicatos adotada

dali em diante opera grandes transformações em termos de influência no

movimento operário organizado. A forte influência dos imigrantes anarquistas

começa a ser abafada no seio do movimento com forte repressão e perseguição por

parte do governo.

Os comunistas que também estavam inseridos e organizados no movimento

camponês e operário, por sua vez, passaram dali em diante a enfrentar maiores

desafios e maior repressão na mobilização e organização dos trabalhadores. A

influência dos comunistas no seio do movimento operário resultou, entre tantos

feitos, numa greve que durou quase um mês na cidade de São Paulo, em 1932. Em

meio a essa efervescência, no ano de 1935, já sob o governo de Getúlio Vargas, inicia-

se uma forte repressão e perseguição que culminou na edição de uma série de

medidas contra os sindicatos que levou desde a intervenção nestes até a prisão de

sindicalistas (ROEDEL, Hiran, et al., 2002, p. 131).

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No mesmo período, outra medida governamental interfere diretamente no

movimento sindical brasileiro. O Ministério do Trabalho, da Indústria e do

Comércio, criado em novembro de 1930 passa, no ano de 1937, a interferir com mais

intensidade nos sindicatos, medida esta que fraturou ainda mais a independência

organizativa dos trabalhadores. Nesse mesmo período, o governo varguista

dissolve as uniões e federações estaduais que situavam-se no cerne do movimento

sindical da época. Notório, nesse sentido, é o Decreto n. 19.770, de 1931, que já

previa uma série de medidas restritivas285 aos sindicatos. Ou seja, a medida tomada

em 1937, atingiu em cheio e mais ainda o movimento sindical que já se encontrava

sob o forte jugo da repressão varguista.

Em outubro de 1945, após a deposição de Getúlio Vargas pelas Forças

Armadas, José Linhares, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF),

assume a presidência temporariamente transmitindo-a em janeiro do ano seguinte

a Eurico Dutra, um militar, que logo mostrou os fortes traços da repressão e da

perseguição ao movimento de trabalhadores em seu governo, a exemplo da Lei n.

9070/1946, que inviabilizou ainda mais a realização de greves no país. Ainda nessa

conjuntura de reabertura democrática após a ditadura varguista a situação estava

difícil, mas os trabalhadores não recuaram durante o período que registou além de

um aumento no número de trabalhadores sindicalizados, também um aumento no

número de greves realizadas286.

285
Previa o Decreto 19.770, de 1931: o controle financeiro do Ministério do Trabalho sobre os recursos dos
sindicatos, inclusive proibindo a utilização destes recursos em períodos de greve; a participação do Ministério
nas assembleias sindicais; que atividades políticas e ideológicas não poderiam existir por parte dos sindicatos;
veto à filiação de trabalhadores a organizações sindicais internacionais; proibição da sindicalização dos
funcionários públicos; definição do sindicato como órgão de colaboração e cooperação com o Estado;
participação limitada dos operários estrangeiros nos sindicatos. Este era um ponto bastante problemático, já
que boa parte das lideranças sindicais ainda era de origem estrangeira; garantia de sindicato único por
categoria, a chamada unicidade sindical.
286
Nesse sentido, explicita Roedel: Apesar desta orientação, o movimento sindical renasceu. Não só nas
sindicalizações (Em 1945 eram 474.943, e em 1946, 797.691 sindicalizados), como também no aumento das

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Em 1945 é criado, também o Movimento de Unificação dos Trabalhadores

(MUT), sob forte influência e com inserção do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

O MUT tinha por objetivo organizar de forma mais ampla a luta sindical dos

trabalhadores no país. No ano seguinte, realizou-se o Congresso Sindical dos

Trabalhadores do Brasil, contando com a presença de 2.400 delegados, entre eles os

representantes do governo, os ministerialistas, que por fins tiveram pouca

influência no evento dada a influência do movimento comunista (ROEDEL, Hiran,

et al., 2002, p. 132).

No referido Congresso fora aprovada criação da Confederação Geral dos

Trabalhadores do Brasil, a CGTB, hegemonizada pelo MUT em oposição aos

sindicatos “oficiais” liderados pelos ministerialistas e defendendo, também, a mais

ampla união na luta sindical. Além disso, contrariamente a visão tradicional de

organização sindical por categorias, a CGTB defendia a sindicalização por grupos

profissionais. A entidade foi fortemente perseguida pela repressão governamental,

fato que, consequentemente, culminou em seu fim no ano de 1947 (ROEDEL, Hiran,

et al, 2002, p. 133).

Naquele período, a cassação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no

Congresso Nacional atingiu em cheio, novamente, uma boa parcela da organização

dos trabalhadores dada a sua influência no movimento, levando centenas de

lideranças sindicais a clandestinidade. No entanto, a conjuntura levou o movimento

a uma reorganização e, mesmo fragilizados, os trabalhadores ferroviários paulistas

deflagraram uma significativa greve no ano de 1947. A partir dali, ainda na

clandestinidade e sob a constante perseguição e repressão governamental, fora

iniciado um movimento no sentido de fortalecer a organização dos comitês internos

greves. Em fevereiro de 1946, São Paulo conviveu com 100.000 trabalhadores parados e mais de 60 greves
(2002, p. 132).

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de fábrica. Durante o período do governo de Juscelino Kubitschek, a luta se seguiu,

conforme ilustra Roedel (2002):

O PCB definiu uma política centrada na luta de massas. Afirmava


que o aliado fundamental da classe operária era o campesinato. No
movimento operário, o eixo central da política dos comunistas
passou a ser a unidade dos trabalhadores na luta pelos seus
interesses, organizando-os em torno de seus sindicatos.
Defendendo as conquistas da legislação social, mobilizaram os
trabalhadores no sentido de aperfeiçoar a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), lutar pela melhoria do nível de vida e por aumento
de salários. Mobilizaram também os trabalhadores, ampliando suas
reivindicações: pressão para a aprovação da lei que regulava o
direito de greve, e lei orgânica da previdência social, luta pela
modificação da política externa e interna do governo Kubistchek.

No setor sindical, o Partido procurou estabelecer a unidade entre as


diversas correntes que atuavam neste movimento, criando
estratégias para pressionar o Parlamento. Para isso, seria necessário
fortalecer os sindicatos, ampliando seus quadros e realizando
campanhas de sindicalização (ROEDEL, Hiran, et al., 2002, p. 135).

O início da década de 1960 foi marcado por alguns avanços no campo das

lutas sindicais, desde a criação de comissões e comitês nas fábricas até a participação

do movimento de trabalhadores na Confederação Nacional dos Trabalhadores da

Indústria (CNTI). No mesmo período, Roedel (2002) evidencia também a criação de

importantes intersindicais, tais como:

Também foi criado um grande número de intersindicais, tendo à


frente os comunistas: Pacto de Unidade e Ação (PUA), que
congregava ferroviários, portuários e estivadores de todo o Brasil;
Fórum Sindical de Debates (FSD), Pactos Intersindicais (PIS) e a
Comissão Permanente das Organizações Sindicais (CPOS), que
agrupava sindicatos do Distrito Federal.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O ponto máximo da organização do movimento sindical ocorreu em


agosto de 1962, no IV Encontro Sindical Nacional, em São Paulo,
onde foram lançadas as bases para a criação do Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT) com o objetivo de unificar e coordenar as
organizações sindicais e suas lutas e reivindicações no país. Seu
surgimento, fora do controle do Ministério do Trabalho, foi motivo
de preocupação para o governo. O CGT nasceu com o encargo de
realizar uma campanha pelas Reformas de Base. No mês seguinte,
organizou uma greve geral pelas Reformas, transformada em apoio
ao plebiscito sobre o regime parlamentarista. Diante da pressão
popular, o Congresso antecipou o plebiscito de 1965 para 1963
(ROEDEL, Hiran, et al., 2002, p. 136).

O arrefecimento da crise econômica durante o início da década de 1960 refletiu

numa maior efervescência e num maior acirramento dos conflitos de classe no

Brasil. A reorganização da classe que ganhava cada vez mais força impulsionava-se

por, entre tantos elementos, a imensa disparidade de condições, com grande

concentração de capital, rebaixamento salarial e aumento da exploração dos

trabalhadores. Sobre esse período, Edmilson Costa comenta:

A primeira metade da década de 60 marcou um período rico e, ao


mesmo tempo, dramático para a sociedade brasileira. Condensou
um processo de lutas sociais, econômicas e políticas que vinham se
desenvolvendo desde o início da década de 50, com o segundo
período do governos Vargas, e colocou para a sociedade duas
opções estratégicas sobre o futuro do País - o desenvolvimento
independente, com distribuição de renda, baseado nas reformas de
base, e a continuidade e aprofundamento do modelo iniciado no
período Kubitschek.

Como se sabe, a industrialização brasileira, consolidada com o


Plano de Metas, não foi capaz de resolver os graves desequilíbrios
sociais e econômicos da nação. Ou melhor, dedicou-se pouca
atenção às transformações do setor agrário, bem como preocupou-
se apenas de maneira marginal com os problemas sociais e somente
em 1959, com a criação da Sudene, procurou-se dar alguma atenção
aos problemas regionais.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Essa imobilidade estrutural estava em rota de colisão com uma série


de fenômenos importantes que ocorriam naquele período: nas
cidades, os trabalhadores emergiam no cenário político buscando
afirmar-se como agentes autônomos e interlocutores políticos junto
ao governo; no campo, ocorria crescente mobilização dos pequenos
camponeses e trabalhadores rurais na luta pela terra. Fruto da
dinâmica da industrialização, verificara-se expressivo processo de
urbanização, ao mesmo tempo em que cresciam as camadas médias
urbanas (...) Todo esse conjunto de fenômenos e contradições
conflui com intensidade nos primeiros anos da década de 60,
agravado pelo fato de que nesse período se deteriorava o quadro
socioeconômico, registrando-se queda no ritmo de crescimento dos
salários reais e aumento da inflação. A dívida externa passou a
consumir parcela expressiva das exportações e o Fundo Monetário
Internacional pressionava no sentido de se implementar medidas
ortodoxas de política econômica (COSTA, 1997, p. 21-22).

O aprofundamento da crise e o consequente acirramento das disputas de

classe refletiu-se, também, nas disputas ideológicas travadas pelo país que

culminaram numa maior radicalidade e polarização na disputa política do período.

Assim, o conjunto de forças conservadoras que se opunham ao conjunto de medidas

reivindicados pelos defensores da Reforma de Base, tais como a reforma agrária e a

distribuição de renda, tomaram de assalto o aparelho do Estado. Assim, em 1964,

começava uma das piores faces da história do nosso país, o período da ditadura

burgo-militar.

Durante o período, além do aniquilamento da grande maioria das forças de

oposição e do recrudescimento da repressão ao movimento de trabalhadores que

desestabilizou todo o trabalho de base e as articulações que vinham sendo

construídas e fortaleciam-se até então, é importante observar como o Direito fora

mobilizado nos primeiros anos da ditadura. Destaca Costa (1997) que durante o

primeiro governo burgo-militar “entraram em vigor 838 leis, 5.685 decretos-leis, 3

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

atos institucionais, 24 atos complementares, 41 resoluções do Banco Central, 476

regulamentos e 99 circulares do Ministério da Fazenda” (1997, p. 23). Entre as

diversas medidas adotadas no período visando o que chamavam de uma

recuperação estratégica da economia brasileira, Costa (1997) destaca:

Seguindo essa linha estratégica, a partir de 1964 foi tomada uma


série de iniciativas concretas, com o objetivo de fortalecer a taxa de
poupança como condição essencial para a acumulação acelerada do
capital. Entre essas medidas destacavam-se: a) a melhoria da
arrecadação tributária e contenção das despesas correntes do
governo, aumentando significativamente o saldo em conta corrente;
b) os incentivos à poupança pessoal pela multiplicação dos
instrumentos para a sua captação pelo mercado de capitais; c) a
atração de capitais estrangeiros, de empréstimos e de risco, numa
escala sem precedentes; d) a criação de condições de mercado
altamente favoráveis à rentabilidade das empresas; e) a criação de
poupanças institucionais tais como o Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço (FGTS) e o Programa de Integração Social (PIS).
Outro fator importante da chamada restauração econômica seria a
criação de um clima estável, em que tanto o capital nacional quanto
o internacional, este último principalmente, se sentissem
estimulados a realizar inversões dentro de um horizonte
empresarial de longo prazo. Para tanto, era necessário elevado grau
de estabilidade política, certas garantias para os investimentos
estrangeiros e, principalmente, uma taxa de lucro competitiva em
nível internacional.
Nesse sentido, o governo atuou de maneira severa para estabelecer
essas condições. Mediante um conjunto de sucessivas leis
salariais, buscou o barateamento do preço da força de trabalho e,
para se garantir de eventuais surpresas, avocou exclusivamente
para si a regulação capital-trabalho; limitou dramaticamente a
atividade sindical; reformou a lei de remessas de lucros em
benefício do capital estrangeiro; firmou um acordo para garantia
de investimentos estrangeiros; e cerceou as liberdades públicas,
de forma que o capital não tivesse nenhum entrave para
desenvolver sua marcha em busca de valorização (COSTA, 1997,
p. 28-29, grifos nossos).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Todas essas alterações firmaram as bases para o modelo de acumulação

predatória 287
que se aprofunda da década de 1960 em diante. Com o

enfraquecimento da organização de trabalhadores e a aceleração irrestrita do

processo de acumulação de capital no país, forma-se um imenso exército industrial

de reserva que, também, contribuiu para forçar os salários a níveis ainda mais

baixos. É sob esse quadro de precarização e exploração intensificadas que se

estruturam as principais mudanças ocorridas a partir da década seguinte, como

veremos a seguir.

A década de 1970 é marco temporal de muitas contribuições teóricas das

décadas posteriores no campo das ciências sociais e econômicas voltadas ao estudo

do mundo do trabalho e de suas transformações. Não por acaso, é nesse período

que se intensifica no mundo o processo a que a literatura do campo da sociologia288,

da economia 289 , da política 290 , entre outros, comumente caracteriza como um

processo que acarretou mudanças estruturais fundamentais no modo de

funcionamento do capitalismo, em sua forma de acumulação, bem como na forma

de organização e regulação do trabalho.

Em sua obra de três tomos “O Capital” (1867), Karl Marx esboça uma

radiografia do modo de funcionamento do sistema capitalista. À sua época, o

capitalismo em sua forma concorrencial291 se desenvolvia e se fortalecia. Ali, Marx

já sinalizava a tendência do capitalismo de sempre e em última instância extrair a

maior quantidade de mais-valor 292


possível. Quando existem óbices a esse

287
Ver “A acumulação predatória”, em A Política Salarial no Brasil, de Edmilson Costa, 1997, p. 37.
288
Ver “Adeus ao Trabalho?: Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho” (2008),
de Ricardo Antunes.
289
Ver “A Crise Econômica Mundial, a Globalização e o Brasil” (2013), de Edmilson Costa.
290
Ver “Estratégia e Tática da Revolução Socialista no Brasil” (2014), Resolução do XV Congresso Nacional do
Partido Comunista Brasileiro (PCB).
291
Correspondente a segunda fase do capitalismo, também chamada de capitalismo industrial, quando do
advento da Revolução Industrial e seus desdobramentos.
292
Mais-valia; trabalho excedente não remunerado de onde o capitalista extrai os lucros.

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movimento de expropriação, novos mecanismos se desenvolvem a fim de se

restabelecer a rentabilidade do sistema.

Nesse sentido, Costa (2013) chama a atenção para um movimento a nível

mundial que se inicia na década de 1960, que antecede a crise dos anos 1970: o da

queda das taxas de lucro nos países centrais e em especial nos Estados Unidos, fato

que levou o grande capital a se reformular para driblar a crise e recuperar sua alta

rentabilidade. Para isso, Costa sinaliza quais foram os três eixos elementares sob os

quais se deram essas mudanças:

Diante dessa conjuntura, o grande capital realizou um movimento


estratégico para recuperar as taxas de lucro, baseado em três eixos
fundamentais:

a)Parte expressiva dos setores industriais do EUA foi


deslocada para a Ásia, México, América Latina e América Central
em busca de mão de obra barata e um conjunto de outras vantagens
econômicas e institucionais que possibilitassem ao capital operar de
maneira mais vantajosa, de forma a elevar as taxas de lucro. O
grande capital imaginava compensar, do ponto de vista econômico,
uma possível fragilidade manufatureira nos Estados Unidos com as
remessas de lucros e os preços de transferência de suas
transnacionais para o interior dos EUA, além do controle do
comércio mundial e, do ponto de vista político, através da maior
influência estadunidense nas várias regiões do mundo.
b) Os setores mais parasitários do capital que
assumiram o poder nos Estados Unidos e na Inglaterra no final da
década de 1970 buscaram reconfigurar o mundo a partir da criação
de uma nova ordem econômica internacional, tendo como pilares o
monetarismo como forma de organizar a economia e o
neoliberalismo como gestor político do sistema socioeconômico.
Transformaram em política de Estado a ideologia neoliberal: o
mercado como regulador da economia, a desregulamentação, a
liberalização bancária, a livre mobilidade dos capitais pelo mundo,
a retirada do Estado da economia e uma agressiva política de
transferência de bens do Estado para o setor privado, através das
privatizações.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

c) Além dessas mudanças de fundo, o grande capital


estadunidense realizou nas décadas de 1980 e 1990 uma espécie de
fuga para frente, buscando estruturar uma economia de serviços,
baseada na criação da riqueza mediante o extraordinário
desenvolvimento do capital fictício. O objetivo era desenvolver um
sistema financeiro sofisticado e hierarquizado a partir das
instituições estadunidenses, capaz de capturar parte da mais-valia
mundial e estruturar as relações socioeconômicas mundiais a partir
dos interesses dos Estados Unidos. Inovações financeiras e finanças
estruturadas, endividamento generalizado das famílias e expansão
da dívida pública, além de aumento dos gastos na área do complexo
industrial militar, de forma a permitir o desenvolvimento da
política guerreira estadunidense, especialmente após a queda da
União Soviética, foram a tônica da estratégia nos Estados Unidos
(COSTA, 2013, p. 31-33).

Os desdobramentos desse processo levaram a economia estadunidense a um

processo de crise de superacumulação 293


que fez não só os trabalhadores

estadunidenses arcarem com os prejuízos, mas os trabalhadores de todo o mundo

com a intensificação da exploração e constantes ataques a articulação do movimento

sindical. Exemplo disso, é a queda expressiva do número de sindicalizações294 pelo

mundo no mesmo período em que, no Brasil, contrariamente se evidenciava uma

recuperação de fôlego da capacidade interventiva e organizativa do movimento

sindical.

Edmilson Costa (2013) apresenta os três estágios em que se desenvolve uma

crise sistêmica: primeiro, trata-se da crise econômica, fazendo emergir as

contradições inerentes ao capitalismo e descredibilizando e desestruturando as

instituições econômicas, fazendo os gestores do capital recorrerem ao fundo público

293
Ver “A superacumulação como substrato fundamental da crise”, em “As raízes da crise econômica mundial”,
de François Chesnais, em “Dossiê Crise e Desenvolvimento”, Revista Em Pauta: teoria social e realidade
contemporânea, 2013, 11.31.
294
Ver “Dimensões da crise contemporânea do sindicalismo: impasses e desafios”, de Ricardo Antunes, em
“Adeus ao Trabalho? ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho”, 2008, p. 61.

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estatal para se restabelecer. O segundo estágio, destaca, desdobra-se na

intensificação da crise social com aumento do desemprego, queda da renda das

famílias, endividamento e aprofundamento da miséria. Por fim, a crise política, em

que o acirramento dos conflitos de classe leva os trabalhadores a se organizarem de

forma mais intensa e em maior número elevando, também, as medidas repressivas

adotadas pelos Estados (COSTA, 2013, p. 51-52). Importante ponderar que, no

entanto, não existe uma linearidade nesse processo. Em geral, essas fases

desenvolvem-se concomitantemente, respeitando cada uma suas peculiaridades. É

como se olhássemos para diversos aspectos de um mesmo fenômeno.

É a partir da década de 1980, no período de reabertura democrática, que se

fortalece e é forjado no Brasil o movimento que ficou conhecido como “novo

sindicalismo”. Foi partir da onda de greves iniciadas no ABC Paulista, durante o

regime ditatorial-militar, que esse movimento passou a ganhar forças em oposição

às velhas estruturas do sindicalismo “oficial”, o “velho” e cooptado sindicalismo

populista do período pré-64 ou mesmo o sindicalismo de controle do regime

ditatorial em vigência naquele momento (MATTOS, 1998, p. 11). Os “novos

sindicalistas”, tinham um novo desafio pela frente, reorganizar e reestruturar as

bases do sindicalismo combativo que fora aniquilado no regime ditatorial.

É nesse período de ascensão do movimento sindicalista, que nascem as

principais centrais sindicais brasileiras, sendo a Central Única dos Trabalhadores

(CUT) a maior expressão do acúmulo de anos do multiforme movimento de

“oposições sindicais”. Criada em 1983, a CUT representou um novo suspiro na luta

sindical brasileira depois de um longo período de inexistência de centrais desde a

decretação de ilegalidade do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), em 1964

(ANTUNES, 2018, p. 205).

1074
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Num movimento de ascensão e fortalecimento dos movimentos durante a

década de 1980, o movimento sindical brasileiro encontra seu ápice no processo de

construção da reabertura democrática, expressado pela sua ativa participação na

Assembleia Nacional Constituinte na defesa dos interesses dos trabalhadores, da

qual fora fruto a Constituição de 1988. Ainda que limitada em diversos aspectos e

levando-se em conta que se tratavam de demandas que ora dividiam e ora uniam

os trabalhadores, podemos destacar as principais conquistas desse processo como

sendo: “o fim do “estatuto padrão”, o direito de greve, a livre organização sindical

dos funcionários públicos, ainda que tenha preservado a “unicidade sindical”, o

imposto sindical, entre outros elementos restritivos” (ANTUNES, 2018, p. 207).

Fato é que esse processo de ascensão, ao final da década de 1980, já se

encontrava em movimentação contrária, numa resposta reorganizativa do

capitalismo periférico brasileiro às demandas do capitalismo central que, ao

período, já estava diante de um aprofundamento da implementação da agenda

neoliberal pelas principais potências capitalistas do norte. O novo panorama

estabelecido tomou de assalto os anseios do até então crescente novo movimento

sindicalista num movimento que estaria muito longe de se encerrar.

O processo de neoliberalização do Brasil, que se intensifica a partir do ano de

1989, altera substancialmente a dinâmica das relações de trabalho. Durante o longo

período de esfacelamento e de constantes ataques aos direitos arduamente

conquistados em anos de luta, atravessados os governos de Fernando Collor (1990-

1992), do PRN, Itamar Franco (1992-1995), do PMDB, Fernando Henrique Cardoso

(1995-2003), do PSDB, o Brasil teve seu processo de implementação da agenda

política e sócio econômica neoliberal intensificado.

Consequentemente, o país atravessa ciclicamente todos aqueles estágios de

crise já mencionados. Assim, no ano de 2003, assume a presidência Luis Inácio Lula

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da Silva, eleito como o candidato do povo trabalhador, pelo Partido dos

Trabalhadores. As expectativas em torno da eleição de “Lula” eram imensas. No

entanto, o projeto de governo adotado pelo partido logo mostrou a face

“conciliadora” de interesses que defenderiam dali até o governo de Dilma Rousseff

(2011-2016), também eleita pelo Partido dos Trabalhadores. Contudo, o período

representou um verdadeiro suspiro após anos de chumbo e de intensificação

irrestrita da exploração da força de trabalho no país, com consideráveis avanços no

que diz respeito as demandas da classe trabalhadora.

Com a posterior deposição de Rousseff por meio de um golpe parlamentar

levado a cabo pelos seus opositores articulados com setores da burguesia que não

mais tinham interesse nas políticas conciliatórias do governo petista, ocupa o cargo

da presidência interinamente, Michel Temer (MDB). Temer ficou a frente do cargo

até a eleição do atual presidente Jair Messias Bolsonaro, eleito pelo PSL, à época. Do

governo Temer para cá, os ataques a organização dos trabalhadores se

intensificaram.

Exemplo disso é a Lei n. 13.467/17, popularmente conhecida como a Reforma

Trabalhista, com seus mecanismos de desestruturação dos sindicatos, a nova lei

alterou substancial, tática e estrategicamente a atuação sindical no país, instaurando

um cenário de crise e atando o movimento dos trabalhadores a constante posição

de defesa e incapacidade crescente de incorporar a classe trabalhadora, cada vez

mais heterogênea e fragmentada, em suas fileiras. Mais adiante, voltaremos nossa

atenção a esses mecanismos presentes na referida lei.

Contudo, para finalizar esse histórico, se pudermos fazer um breve raio-x no

que diz respeito às condições da classe trabalhadora brasileira, basta que nos atemos

às insistentes alterações realizadas no âmbito legislativo no que diz respeito às

relações de trabalho, as quais computaram, no período de 1990 a 2019, um total de

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

30.900 documentos. Desse, um total de 7.610 documentos diziam respeito a projetos

de lei, projetos de emenda à constituição e projetos de lei complementar, sendo que

5.226 partiram de iniciativa da Câmara dos Deputados, 1.991 partiram do Senado e

84 em iniciativa conjunta das duas casas legislativas (SOUZA, 2019, p. 32).

Todas essas alterações consubstanciam-se e refletem os movimentos de

reorganização da força de trabalho mundo afora na era da desregulamentação, da

flexibilização e da informalidade. Momento esse que colocou a já fragilizada

organização sindical maiores desafios que os que já enfrentava até então. Nesse

sentido, pertinente se faz a leitura de Ricardo Antunes (2005):

Estamos presenciando, em verdade, o desmoronamento do


sindicalismo vertical, herança da fábrica taylorista e fordista, como
consequência da fábrica flexibilizada e informatizada da era da
acumulação flexível, que desconcentra o espaço físico produtivo e
destrói os direitos fundamentais do trabalho. E o desafio hoje é
construir um sindicalismo mais horizontalizado, menos categorial e
mais classista, dotado de uma abrangência maior e que privilegie os
diversos contingentes que compreendem a “classe-que-vive-do-
trabalho”. Um sindicalismo mais capacitado para aglutinar o
conjunto dos trabalhadores. Isso porque a fragmentação,
heterogeneização e complexificação da classe trabalhadora
questionam na raiz o sindicalismo tradicional da indústria fordista
e dificultam enormemente a organização sindical de muitos
segmentos que compreendem o mundo do trabalho (...) Serão
capazes de romper com a enorme barreira que separa os
trabalhadores “estáveis” daqueles trabalhadores em tempo parcial,
precarizados, “terceirizados”, subempregados, vinculados à
economia informal, em significativa expansão no processo
produtivo contemporâneo? Serão capazes de organizar
sindicalmente os desorganizados e com isto reverter as taxas de
dessindicalização, presentes nos principais países capitalistas?
Conseguirão superar o neocorporativismo societal, que defende
exclusivamente suas respectivas categorias profissionais,
abandonando ou diminuindo fortemente seus conteúdos mais
acentuadamente classistas? Tecerão ações mais solidárias, capazes
de aglutinar estes contingentes de trabalhadores praticamente

1077
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

excluídos da representação sindical, auxiliando desse modo no


resgate do sentido do pertencimento de classe? (ANTUNES, 2005,
p. 82-83).

É nesse “mato sem cachorro” em que estamos que o fortalecimento das lutas

populares se faz premente. Nesse sentido se dá a presente reflexão a título de

contribuição ao conjunto das lutas sindicais frente aos grandes desafios que se

colocam. A partir desse ponto, desenvolveremos uma análise sobre o termo anual

de quitação de débitos trabalhistas inseridos pela Lei n. 13.467/2017, a

contrarreforma trabalhista, instrumento jurídico-legislativo que tem servido, na

prática, como mais um entrave a atuação dos sindicatos no Brasil.

2. O TERMO ANUAL DE QUITAÇÃO DE DÉBITOS TRABALHISTAS

A promulgação da Consolidação das Leis Trabalhistas foi um marco no século

XX no Brasil, durante o governo do populista Getúlio Vargas, em 1943. Até aquele

momento, não existia um código específico que regulasse quais eram os direitos dos

trabalhadores, papel este que era desempenhado pelo Código Civil de 1916, que

servia como base para as regulações dos contratos de trabalho, entre outras

provisões. Com ela, cristalizaram-se algumas conquistas do movimento de

trabalhadores, tais como as condições relativas a jornada de trabalho, salário, sobre

participação dos sindicatos nas intersecções entre trabalhador e patrão e a proteção

contra os abusos nos espaços de trabalho.

Posteriormente, outro simbólico avanço na conquista de direitos que aqui

destacamos foi a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que trouxe

um artigo específico aos trabalhadores em seu título “II - Dos Direitos e Garantias

Fundamentais”, onde no art. 7º descreve que:

1078
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Art. 7.º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de


outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV - Salário-mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz
de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para
qualquer fim;
VIII - décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou
no valor da aposentadoria;
XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias
e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários
e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de
trabalho;
XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um
terço a mais do que o salário normal (BRASIL, 1988).

Assim, passaram a ser asseguradas algumas garantias básicas aos

trabalhadores, como o salário mínimo, o auxílio maternidade, as férias

remuneradas, a previdência social, as horas-extra, entre outros benefícios. Também

houve um acréscimo aos direitos dos trabalhadores rurais, assegurando a eles

garantias invioláveis após um longo e árduo período em que a população rural ficou

à mercê da legislação esparsa e dos abusos dos seus empregadores nas fábricas e

campos rurais.

A constituição de 1988 levou ao status de normas fundamentais valores sociais

como a dignidade da pessoa humana e o direito ao trabalho, previstos no texto da

carta cidadã como cláusula pétrea, sendo assim invioláveis e garantindo a proteção

dos cidadãos frente aos arbítrios do Estado. Estabeleceu-se, assim, quais valores

serão considerados invioláveis pelos empregadores no trato das relações de

trabalho e emprego. Nesse sentido, buscou-se um equilíbrio para essas relações,

obrigando o empregador a respeitar os princípios que passaram a reger o

ordenamento jurídico.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Em contrapartida, ao longo da década de 1990 e 2000, essas conquistas foram

sucateadas, como já fora demonstrado anteriormente. Na década de 2010, esse

movimento de desmonte seguiu seu curso e encontrou o ápice de sua materialização

no ano de 2017 com a aprovação da contrarreforma trabalhista que trouxe

mudanças bem significativas para a regulação das relações de trabalho e emprego

no Brasil. A contrarreforma alterou diversos pontos presentes no texto original da

CLT, trazendo mudanças que afetaram substancial e negativamente a relação entre

empregador e empregado, desequilibrando a balança da paridade de condições

jurídicas que se tentava alcançar por meio da sistemática protetiva da legislação

trabalhista.

O novo texto limitou a participação dos sindicatos na proteção dos

trabalhadores, bem como alterou a obrigatoriedade da contribuição sindical,

infligindo a natureza tributária do imposto (art. 149, CF/88), tema sobre o qual não

nos debruçamos nesse trabalho. Como fora dito, o foco principal aqui que é o termo

de quitação anual de débitos trabalhistas, previsto no art. 507-B, da CLT, inserido

pela Lei n. 13.467/2017. Desta feita, o instrumento inserido pela referida lei, fora

apresentado como uma “inovação” ao garantir mais segurança jurídica ao

empregador contra as demandas trabalhistas propostas pelos empregados. No

entanto, o germe dessa suposta fora o antigo art. 233 da CF/88, que já previa algo

similar em relação as obrigações dos empregadores rurais. Nesse sentido, comenta

Gusmão:
Tratava-se da comprovação, pelo empregador rural, perante a Justiça do
Trabalho, de cinco em cinco anos ou em prazo inferior, a critério do
empregador, do cumprimento das suas obrigações trabalhistas com o
empregado rural, na presença deste e do seu representante sindical.
(GUSMÃO, 2017, p.396)
Com isso, o empregador se isentava de qualquer ônus decorrente da obrigação

quitada pelo respectivo período. Contudo, essa quitação não vinculava uma decisão

1080
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

da Justiça do Trabalho podendo o trabalhador, em qualquer hipótese, postular

judicialmente os créditos que entendesse devidos, relativos aos últimos anos. Já a

quitação anual inserida na CLT pela contrarreforma, apresenta algumas diferenças

substanciais se comparada àquela prevista no antigo art. 233, da CRFB/88. Contudo,

as principais mudanças se referem a desnecessidade do sindicato para homologação

do acordo, algo que não existia anteriormente, e com isso, a redação se espreitou

nesse aspecto, vejamos:

Art. 507-B. É facultado a empregados e empregadores, na vigência


ou não do contrato de emprego, firmar o termo de quitação anual
de obrigações trabalhistas, perante o sindicato dos empregados da
categoria. Parágrafo único. O termo discriminará as obrigações de dar
e fazer cumpridas mensalmente e dele constará a quitação anual dada pelo
empregado, com eficácia liberatória das parcelas nele especificadas
(BRASIL, 2017).

Nesse sentido, diferentemente do art. 233 da CF/88, evidenciam-se alguns

elementos trazidos nessa redação nova como, por exemplo, o caráter “facultativo”

da assinatura que, embora seja apenas literalidade da palavra, o artigo deixa claro

a não obrigatoriedade do empregado em assinar o termo caso considere

inadequado. Outro ponto já comentado, diz respeito a desnecessidade de

homologação pelo sindicato, dada a revogação dos §1º e 3º do art. 477, da CLT, pela

mesma lei, passando a desobrigar a presença e homologação do termo pelo

sindicato ou pelo Ministério do Trabalho. O sindicato tem forte papel no controle

das quitações a serem homologadas, podendo até recusar a assinar a homologação

do acordo em caso de vício no conteúdo, controlando os abusos contra essa prática.

Dessa forma, sua autonomia no papel de fiscalizador dos termos fora atingida de

fronte.

1081
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Ainda nesse sentido, o ponto principal e mais problemático desse novo

dispositivo diz respeito a eficácia liberatória das parcelas especificadas no termo,

disposto no parágrafo único do art. 507-B da CLT, de forma a suprimir a

possibilidade de se rediscutir as matérias na justiça trabalhista em virtude da

quitação dada pelo empregado das parcelas já pagas pelo empregador, o que mostra

a clara intenção de se afastar os direitos trabalhistas e o direito constitucional e

fundamental ao acesso a justiça, previsto no art. 5º, XXXV da CF/88.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desregulamentação, destruição, desfazimento, desrespeito, etc. A década do

prefixo de origem latina que remete a separação, afastamento e intensidade,

apresenta-se também como a década da desesperança. Livre do risco de uma

eventual disputa judicial, livre do eventual risco de uma intervenção e de sanções

fiscalizatórias, livre de quaisquer garantias (“custos sociais”) mínimas aos

trabalhadores, o Brasil torna-se cada vez mais o país mais apropriado para o livre

avanço da exploração da mão de obra dos trabalhadores “livres” assalariados,

impedidos de pleitear na Justiça do Trabalho as verbas rescisórias a que teriam

direito, mostrando uma investida substancial dos patrões em um acordo “entre

partes”, se considerarmos que o empregado, na maioria das vezes, não tem

conhecimento exato do quantum devido pelos serviços que prestou em um eventual

TRCT.

Além do caráter inconstitucional do dispositivo analisado, uma vez que as

normas precisam estar em consonância com o ordenamento jurídico constitucional

vigente, o que não é o caso, evidencia-se, também, a contradição que se configura

dentro da própria sistemática principiológica trabalhista que tem na aplicação

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desses novos dispositivos implementados a negação de sua razão de ser, qual seja,

a proteção dos trabalhadores contra o avanço irrestrito da exploração da força de

trabalho, numa renúncia aos parâmetros e condições mínimas de existência. Não

existe hipérbole crítica na era da informalidade e do desfazimento dos últimos laços

de solidariedade que ainda mantém de pé a classe trabalhadora brasileira.

Para os sindicatos, a batalha se intensifica e para os que sempre estiveram em

luta, como fora demonstrado, ela representa apenas mais um capítulo dos muitos

que já se passaram em anos de resistência e compromisso com a classe trabalhadora.

Nesse sentido, a intrínseca contradição das normas trabalhistas que ora existem, ora

garante, ora retiram, ora reprimem e ora protegem explicitam as relações de poder

e as relações econômicas erigidas e mantidas também por essas mesmas normas. O

movimento sindical e o movimento de trabalhadores num geral, ou se armam crítica

e taticamente desse movimento, ou encontrarão seu fim mesmo naquilo que, hoje,

ainda lhes garante a validade e existência: o direito.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O ENSINO JURÍDICO EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS:

CONSIDERAÇÕES AFETAS À NOVA PRÁTICA LABORAL

BRASILEIRA

André Luiz Staack295


Eduardo Correia Gouveia Filho296
Gabriela Rangel da Silva297

RESUMO
Este artigo objetivou identificar possíveis mudanças significativas no ensino jurídico que,
em tempos de coronavírus, motivaram a edificação de uma nova prática laboral brasileira.
Para o alcance do objetivo proposto, o método de abordagem foi o indutivo, sendo o
levantamento de dados realizado através da técnica da pesquisa bibliográfica de fonte
secundária. Nas considerações finais, concluiu-se que várias foram as mudanças
significativas no ensino jurídico, dentre eles uma que tem relação direta com a construção
de uma nova prática laboral brasileira.

Palavras chave: ensino jurídico; coronavírus; nova prática laboral brasileira; teletrabalho.

ABSTRACT
This article aimed to identify possible significant changes in legal education that, in times
of coronavirus, motivated the construction of a new Brazilian labor practice. To achieve the
proposed objective, the method of approach was the inductive one, and the data survey
was carried out using the secondary bibliographic research technique. In the final remarks,
it was concluded that several were the significant changes in legal education, among them
one that is directly related to the construction of a new Brazilian labor practice.

Keywords: legal education; coronavirus; new Brazilian labor practice; teleworking.

295
Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade do Minho. Mestre em Ciência Jurídica pela
Universidade do Vale do Itajaí – Univali. Mestre em Estudios Políticos pela Universidad de Caldas – Ucaldas.
Oficial de Justiça e Avaliador. Professor Universitário. E-mail: staack@tjsc.jus.br. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5640235906331706.
296
Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade do Minho. Mestre em Direitos Humanos na
Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor Universitário. E-mail: eduardocgfilho@gmail.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9254268660807373.
297
Doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Minho. Mestre em Ciência Jurídica pela
Universidade do Vale do Itajaí – Univali. Mestre em Estudios Políticos pela Universidad de Caldas – Ucaldas.
Advogada e Professora Universitária. E-mail: gaberds@gmail.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2058469220386782.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

INTRODUÇÃO

Este artigo visa discorrer sobre possíveis mudanças significativas no ensino

jurídico que, em tempos de coronavírus, motivaram a edificação de uma nova

prática laboral brasileira, cujo foco, no presente texto, será voltado para os docentes

universitários.

A escolha do tema justifica-se, na medida em que, no atual cenário da

pandemia da COVID-19, faz-se necessário compreender os seus efeitos que

repercutem no campo jurídico, mais precisamente na seara laboral, esfera da vida

privada essencial na formatação do conceito de dignidade humana.

Na delimitação do tema, levanta-se o seguinte problema: em tempos de

coronavírus, quais foram as mudanças significativas no ensino jurídico que, por

consequência, deram ensejo a uma nova prática laboral brasileira docente?

Para o equacionamento do problema, levanta-se a seguinte hipótese: em

virtude da pandemia do COVID-19, podem-se destacar as seguintes mudanças:

maior envolvimento do professor e dos alunos com plataformas tecnológicas e

ensino virtual; a necessidade de inovação na forma educar que ensejou um maior

empenho no planejamento de aula; a construção de uma nova prática laboral e, por

consequência, de reformulações nas cláusulas contratuais.

O critério metodológico utilizado para essa investigação e a base lógica do

relato dos resultados apresentados residem no método indutivo. Na fase de

tratamento dos dados, utilizou-se o método cartesiano.

1087
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. A EVOLUÇÃO DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL: CONSIDERAÇÕES

SOBRE OS POSSÍVEIS EFEITOS OCASIONADOS PELA PANDEMIA DO

CORONAVÍRUS

A forma como vivemos (e viveremos nos próximos anos) foi alterada com a

chegada da pandemia do Coronavírus. Do momento que se escreve o presente texto,

em números atualizados, o Brasil já ultrapassa cento e vinte mil mortes pela COVID-

19 (números oficiais) dentre mais de três milhões de infectados, em um cenário

marcado pela presença, em maior ou menor grau do risco, do medo de infecção e

adoecimento.

Por certo, há de se dizer que a pandemia afetou as mais diversas áreas do

viver social. De aspectos macroeconômicos às minúcias da íntima vida familiar,

todos foram atingidos, o que nos chama atenção para o inescapável fato de que a

forma como interpretaremos tudo o que ocorreu/está ocorrendo nos definirá

enquanto civilização.

Para o autor português Boaventura Santos (2020) podemos extrair

inúmeros conhecimentos da pandemia e de tudo o que ela nos acarretou, dentre

eles, pode-se dois: a “necessidade da elasticidade do social”, em que as mudanças

podem e devem ocorrer como única alternativa possível para a sobrevivência de

todos, fazendo “cair por terra” a ideia conservadora de que a sociedade de consumo

não nos daria outra forma de viver e o reconhecimento da fragilidade extrema do

ser humano, posto que nós sempre nos acostumamos a recorrer a uma série de

recursos para minimizar a inafastável margem de insegurança que nos traz a vida

cotidiana e para isso contratamos de psicoterapeutas até empresas de segurança.

É a partir do misto de arrogância e falsa sensação de segurança, que Dunker

(2020) afirma que “não estamos mais acostumados a enfrentar o poder da natureza

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sem que ele esteja combinado com a imprudência, imperícia ou negligência

humana. Quando algo dá errado, nos dirigimos inevitavelmente à busca de

culpados e responsáveis”. Daí um vírus, um ser microscópico, põe em risco essa

sensação de plenitude e autossuficiência, impondo a necessidade de uma

“comunhão planetária298”.

Em toda angústia gerada por esta situação, aprendemos mais sobre “nossos

próprios fantasmas”. Este pequeno vírus veio para sacudir nossas ilusões acerca do

controle que acreditamos ter sobre a natureza, sobre nosso próprio destino e nos

fazer ver, mais uma vez, todo nosso narcisismo se prostrar pequeno e acanhado

diante da destrutiva força da natureza (DUNKER, 2020).

Em um país tão desigual como o Brasil, por certo a pandemia não nos

afetaria de forma igual. Ela é inerentemente discriminatória e está vitimando

prioritariamente certos grupos. Dentre os coletivos sociais que sofrerão com mais

vigor os efeitos deletérios da disseminação da COVID-19, Santos (2020) destaca as

mulheres, que não raro são tidas como “as cuidadoras do mundo” desempenhando,

com maior frequência, papeis como os de enfermeiras e assistentes sociais, servindo,

portanto, para garantir os cuidados dentro de suas famílias e fora delas também,

deixando de respeitar a sua própria quarentena para que os demais indivíduos de

sua comunidade possam respeitar as suas.

Outro grupo especialmente afetado pela pandemia é dos trabalhadores

autônomos e precários, sobretudo porque o país passou por um recente processo de

flexibilizações de direitos trabalhistas, sendo esses trabalhadores precarizados os

primeiros a serem demitidos em contextos de crises econômicas. Há também que se

ressaltar que mesmo a Organização Mundial de Saúde recomendando o home office

298
Aqui, há de se notar que a própria etiologia do termo “pandemia”, usada pela primeira vez por Platão,
advêm de “todo o povo”.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

e o auto isolamento, estas possibilidades não passam de uma utopia para a maior

parte dos trabalhadores que se defrontam, hodiernamente, com a “escolha” de ou

correr risco e contrair o vírus “na rua299” ou ficar em casa protegido da doença e

passando fome300 (SANTOS, 2020).

É sobre trabalho e os trabalhadores no contexto da pandemia do Coronavírus

que este texto se trata. Mais especificamente, de um certo grupo de trabalhadores,

qual seja, o grupo dos docentes de cursos jurídicos 301 . É de extrema relevância

compreender os efeitos que são carreados para a vida destes professores, por isso

que o presente texto tem por objetivo principal apontar as principais mudanças

trazida pela pandemia à prática laboral do professor universitário do curso de

Direito.

O ensino jurídico sofreu inúmeras modificações no Brasil ao longo dos anos

e é sobre elas que as próximas linhas se dedicarão, principalmente, no que tange à

criação dos cursos jurídicos no país no contexto posterior a sua independência.

As primeiras duas Faculdades de Direito do Brasil surgiram nas cidades de

Olinda e São Paulo em 1827 (ano de aprovação de seus decretos de criação) e

receberam notória influência da Faculdade de Direito da Universidade de

299
Dentro desse grupo mais vasto de trabalhadores precários, há este grupo dos trabalhadores da rua, os
informais, os ambulantes, cujo “negócio” está indissociavelmente atrelado à rua. O impedimento ao trabalho
faz com que este trabalhador informal não tenha dinheiro para atender suas necessidades mais essenciais no
caso de ser infectado pelo Coronavírus , como por exemplo a compra de água e sabão para higienizar as mãos
e seus objetos pessoais com a finalidade de se evitar a propagação do contágio entre seus familiares (SANTOS,
2020).
300
O autor Christian Dunker (2020) indica que, se por um lado a biopolítica nos oferta mecanismos para o
controle de certos grupos, entre os quais as escolas e os hospitais, a necropolítica é caracterizada pela
manutenção das situações de miséria e desproteção da população, sendo o que explica, em sua visão, o real
motivo para a demora na tomada de medidas protetivas principalmente direcionadas ao trabalhador informal.
301
É necessário indicar que o trabalho dedica-se a tratar com mais vigor dos docentes vinculados a instituições
de ensino privada, pois são esses que atuam sob o manto do contrato de trabalho regido pela Consolidação
das Leis Trabalhistas e que, por não terem a estabilidade do serviço público, sofrem mais com os dissabores
trazidos por flexibilizações de direitos trabalhistas e, por conta desta sua posição mais fragilizada, estão mais
sujeitos a sofrerem pressões, assédios, observarem sua liberdade de cátedra e autonomia serem
completamente vilipendiadas, enfim, de sofrerem com a degradação de suas condições de trabalho.

1090
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Coimbra 302 . Com esta “filiação” às diretrizes conimbricenses, pode-se dizer que

havia também uma adesão ao iluminismo europeu e à reforma do ensino pombalina

(NEDER, 2007).

A reforma no ensino da Faculdade de Direito de Coimbra (trazida,

sobretudo, pela obra de António Verney) foi decisiva para a formação jurídica

brasileira, por dois motivos primordiais: os juristas que, invariavelmente, seriam os

responsáveis pelas funções jurídicas no Império eram formados na renomada

universidade portuguesa, bem como os métodos de ensino seguidos nas recém-

criadas faculdades de Direito brasileiras foram inspirados no método

conimbricense de ensinar (NEDER, 2007).

A criação destas faculdades refletia uma estratégia de “construção da

nação”, bem como materializava de forma hialina a importância de um

direcionamento do processo de “ideologização” da sociedade através da educação,

como se em um movimento de “formação de uma consciência nacional”. Era notória

uma relação simbiótica entre a Coroa portuguesa e a administração da justiça na

colônia, sobretudo com a magistratura. Os juízes constituíam um segmento

profissional muito poderoso. Chama atenção que vários destes magistrados eram

portugueses, mesmo que suas atuações fossem em território brasileiro, o que

demonstra uma continuidade das estratégias políticas no império brasileiro

(NEDER, 2007).

É neste mesmo sentido que Adorno (1988) aduz que o Estado brasileiro se

fortificou a partir de um Estado de magistrados e outros funcionários públicos com

formação jurídica. Neste contexto, como não poderia deixar de ser, a figura do

302
De acordo com Neder (2007) no decreto de criação das faculdades de Direito, havia 149 referências
explícitas a Coimbra e soa Estatutos da Faculdade de Direito de Coimbra, em 14 sessões realizadas na
Assembleia Constituinte (1823), 24 sessões na Câmara dos Deputados (1826-1827) e mais 11 sessões no
Senado.

1091
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

“bacharel 303 ” é muito bem considerada, pois passa a assumir grandes cargos

estratégicos do governo.

A criação deste segmento especializado e letrado fez com que se pudesse

ser desenvolvida uma “inteligência nacional pautada”, sobretudo, em ideais liberais

(ADORNO, 1988). Neste sentido também está Neder (2008) ao afirmar que “o

liberalismo se tornou uma ideologia necessária e presente na conjuntura da

emancipação política, fato que estava intrinsecamente ligado à criação dos cursos

jurídicos no Brasil”.

Outro aspecto fundamental para a implantação destas Faculdades de

Direito no país foi a sua localização geográfica. A grande discussão envolvendo

onde se estabeleceriam só reforça a ideia da importância que assumia a criação

destas Faculdades enquanto fator de solidificação de um Estado constitucional. É

interessante notar que, em termos práticos, estar longe geograficamente das

Faculdades de Direito seria estar longe da chance de se colocar próximo de cargos

estratégicos dentro do governo (ADORNO, 1988).

As razões surgidas em relação à localização das faculdades de Direito a

serem criadas no país já cristalizavam a presença da ideia de criação de uma

“unidade territorial do império” ligada no ideário da construção da ordem e da

nação (NEDER, 2007).

Para Adorno (1988), o real sentido desta contenda envolvendo quais

cidades abrigariam as faculdades jurídicas estava ligado ao “imperativo político”

303
Quando nos referimos ao bacharel, partimos da conceituação feita por Adorno (1988) para quem o
bacharel, além de ser o “principal intelectual da sociedade brasileira” do século XIX é “um intelectual que se
desenvolveu às expensas de uma vida acadêmica controvertida, agitada e heterogênea, construída nos
interiores dos institutos e associações acadêmicos, que teve no jornalismo seu mais eficaz instrumento de luta
e tornou viável a emergência de uma ética jurídica liberal, defensora das liberdades e da vigília permanente da
sociedade. As Academias de Direito fomentaram um tipo de intelectual produtor de um saber sobre a nação,
saber que se sobrepôs aos temas exclusivamente jurídicos e que avançou sobre outros objetos de saber. Um
intelectual educado e disciplinado, do ponto de vista político e moral, segundo teses e princípios liberais”.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

de se formar quadros para a burocracia estatal e exercer controle sobre o processo

de formação ideológica destes intelectuais que trabalhariam para o Estado.

Como já exposto, as cidades que albergariam estas primeiras faculdades

foram Olinda e São Paulo, tendo as duas Academias guardado relevantes diferenças

entre si. Para Neder (2008), o pensamento jurídico desenvolvido em Olinda poderia

ser caracterizado como autêntica Escola, posto que lá foi desenvolvida uma

expressiva corrente de pensamento responsável por introduzir uma visão

culturalista do Direito, bem como a própria ideia de ciência do Direito.

A Escola de Direito de São Paulo possuía traços mais pragmáticos. Em que

pese estivesse atrelada ao ideário liberal, a escola paulista adaptou, de forma

pragmática, estes pressupostos aos interesses das oligarquias regionais.

É necessário indicar que em ambas as faculdades jurídicas, os postulados

liberais foram utilizados no embate contra o monopólio da metrópole, o que contou

com o engajamento de segmentos ligados, sobretudo, a elite agrária. Desta feita, o

liberalismo foi assumido “com um grande número de restrições” (ou um

“liberalismo preso a uma camisa-de-força”), pois não poderia afrontar os privilégios

dos segmentos sociais da elite, nem poderia afrontar a própria existência da

escravidão (NEDER, 2007).

Assim, Neder (2007) afirma que a formação jurídica paulista guardava mais

relação com os preceitos pombalinos do que liberais, isso além de se perceber certo

pendor ao autoritarismo próprio da Academia paulista.

O ensino jurídico no Brasil admitiu outras faculdades apenas com a

proclamação da República, mais precisamente com a lei Benjamin Constant que

possibilitou a criação de “cursos livres”. Em 1892, na então capital, foi criada a

Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais e a Faculdade Livre de Direito, mais

tarde unidas à Universidade do Rio de Janeiro, cidade que serviu de destino,

1093
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

posteriormente, para diversos juristas formados nas outras duas escolas,

principalmente os que exerciam cargos administrativos do Estado (NEDER, 2007).

Na República Velha, o quadro, em si, não muda muito, tendo o ensino

jurídico continuado restrito às elites e, principalmente, com sua produção

acadêmica/intelectual completamente dissociada da realidade social dos brasileiros.

Com o passar dos anos, sobretudo com o desenvolvimento da internet e a

maior presença de computadores, tablets e smartphones na vida dos brasileiros, se

notou que a utilização das tecnologias foi um mecanismo adotado por vários

professores no sentido de buscar inovações no ensino, tornando-o mais interativo e,

pretensamente, mais estimulante aos alunos. Todavia, esta utilização, apesar de

gradualmente ter se tornado mais presente nas aulas, ainda estava restrita aos

docentes que, não só desejavam fazer uso desses recursos, mas acima de tudo que

dominavam os seus manuseios. Com a pandemia o cenário mudou completamente,

posto que a introdução do uso destas tecnologias se constituiu um imperativo a que

todos os professores tiveram que se curvar, sob pena de não conseguirem mais

desempenhar seu trabalho.

2. UMA REFLEXÃO SOBRE O MODO COGNITIVO E INTERPRETATIVO

DOS DOCENTES/DISCENTES: UMA ANÁLISE FILOSÓFICA À LUZ DO

MOMENTO PANDÊMICO

Com a finalidade de compreendermos as possíveis mudanças ocasionadas

no período de pandemia do Coronavírus no que concerne ao ensino jurídico, vale

trazer à baila alguns aspectos que condicionam a uma reflexão sobre o modo

cognitivo e interpretativo do ser vivente, mais precisamente em razão do tema deste

artigo, dos docentes e discentes. Para tanto, valer-nos-emos da análise de algumas

1094
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

categorias e conceitos que, dentro de seus contextos filosóficos e epistemológicos,

darão sentido à atual realidade laborativa.

Primeiramente, tendo por base os ensinamentos de Paulo Nader (2014), há

que se consignar as três etapas do processo adaptativo do ser humano. Tudo se

inicia com a adaptação interna, também denominada orgânica, na qual “[...] se

processa através dos órgãos do corpo, sem a intervenção do elemento vontade”

(NADER, 2014, p. 17). Nesta etapa, portanto, o ser humano precisa lidar com seus

próprios órgãos, com seu próprio corpo, com sua própria mente, ou seja, com sua

interação orgânica. Com o fito de complementar a obra da natureza, fruto dos

efeitos da adaptação interna, o ser humano decide por suprir suas necessidades com

aquilo que é produzido no mundo externo. Nasce aí a adaptação externa ou também

denominada de extraorgânica (NADER, 2014, p. 17). Nesta fase, o ser, na busca de

prover suas lacunas vitais, tenta encontrar no mundo externo a razão de tudo e de

todos, o preenchimento de suas carências, o elixir para suas mais sagazes privações.

Mas, como já é de conhecimento de todos, o ser humano é um ser social e, portanto,

necessita da convivência e da participação na sociedade para extrair os melhores

proveitos, seja interna ou externamente. Assim arremata Nader (2014, p. 17) sobre

os trabalhos produzidos pela sociedade: “[...] do trabalho que esta produz, o homem

extrai proveitos e se realiza não apenas quando aufere os benefícios que a

coletividade gera, mas principalmente quando se faz presente nos processos

criativos”. Desta imperiosa relação entre o ser humano e a sociedade, nasce a

denominada adaptação social. E é justamente do processo de adaptação social que

nasce o Direito que, substancialmente, “[...] cria a necessidade de o povo adaptar o

seu comportamento aos novos padrões de convivência” (NADER, 2014, p. 18)

Após esta breve passagem pelo processo adaptativo desenhado por Nader

é possível perceber que, diante do tema deste artigo, o que foi estabelecido pelo

1095
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Direito desde o início do processo pandêmico foi, justamente, fruto de uma

remodelação do conceito de adaptação social ou, quiçá, de uma novel interpretação

de tal categoria, tendo em vista que novas regulamentações e modelos jurídicos

foram instituídos a fim de suprir as necessidades hodiernas e, por que não dizer,

emergenciais. Foi, portanto, diante dessa perene obrigatoriedade de adaptação

social que os operadores do Direito, políticos e gestores tiveram que, de maneira

quase que imediata, intentar resolver, ou ao menos encontrar caminhos, para o

então caos social estabelecido. E, por óbvio, não foi diferente com o ensino em todas

as modalidades e esferas, seja em seus aspectos pedagógicos, seja em sua face

laborativa (o que será objeto do próximo capítulo).

Outra categoria que possui uma íntima relação com o momento pandêmico

é a dignidade da pessoa humana. Na concepção de Immanuel Kant (1960, p. 68), a

dignidade humana deve ser compreendida tendo por base o seguinte imperativo

categórico: [...] age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como

na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca

simplesmente como meio.” Diante do exposto, é possível compreender que um ser

digno é tanto aquele que trata o outro como fim, levando em consideração, portanto,

tudo que o define e tudo que o torna feliz em todos os sentidos, como aquele que é

tratado como fim. Ademais, Kant, ao continuar o debate, apõe que é a autonomia o

fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional

(KANT, 1960, p. 78). Assim, na compreensão de KANT, é por meio da autonomia

de vontade, sem interferências externas (inclinações), é que o ser humano,

edificando uma lei universal e prezando os fins, pode, de fato, praticar atos

reconhecidamente morais e dignos.

No que concerne ao atual ensino jurídico, vale salientar que ainda não

estamos a lidar com uma plena autonomia do discente, embora ousamos dizer que

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

já é possível perceber uma nova roupagem na educação de adultos que,

essencialmente, objetiva não apenas formar, mas sim conscientizar criticamente o

futuro bacharel. Isso vem ao encontro do que defendia Paulo Freire, já que este era

inteiramente contrário à manutenção de uma consciência bancária da educação. Nas

palavras de Freire (1979, p. 20-21), na educação bancária “[...] o educando recebe

passivamente os conhecimentos, tornando-se um depósito do educador. Educa-se

para arquivar o que se deposita. Mas o curioso é que o arquivado é o próprio

homem, que perde assim seu poder de criar, se faz menos homem, é uma peça”.

Atualmente, há aqueles educadores que ainda intentam manter-se como o mero

emissor, mas, paulatina e sabiamente, estes estão sendo substituídos por aqueles

que estão a defender uma postura mais ativa do educando e, outrossim, estão a

definir-se não mais como simples emissores, mas sim como facilitadores na

construção crítica do conhecimento. A autonomia, portanto, está ganhando espaço,

e o educando, ao menos a nosso ver, está sim solidificando de maneira mais ativa o

conhecimento, o que, por óbvio, torná-lo-á um ser mais consciente de seu papel na

sociedade.

No que diz respeito ao momento pandêmico, é possível intuir que a

dignidade de nossos discentes não restou substancialmente abalada, tendo em vista

que as faculdades, em tempo recorde, conseguiram achar um meio de manter as

aulas presenciais por meio de plataformas virtuais. Fato é, portanto, que os alunos

não deixaram de compartilhar o conhecimento com o docente e com seus colegas,

nem sequer tiveram prejuízos em sua autonomia, já que o prazo regular de seu

curso não foi estendido, bem como permaneceram estimulados pelos docentes a

contribuir isolada e solidariamente para construção cognitiva. As suas escolhas e

vontades foram, ao menos fundamentalmente, preservadas. É bem verdade que

muitos alunos, por não terem acesso à internet, acabaram privados de uma aula

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

regular, mas, contudo, diante do novo processo pedagógico, mantiveram-se

estimulados pela faculdade para a construção do conhecimento, já que

hodiernamente são os alunos ativamente os maiores responsáveis pela formação de

sua consciência crítica. Não ter uma aula regular, portanto, não deve ser um

impedimento para internalização de todo o conteúdo, nem sequer deve ser razão

para a sua não assimilação, já que, como adrede dito, o aluno é também garantidor

da solidez de sua dignidade.

Dentro da seara filosófica, faz-se mister, outrossim, analisar a relação entre

o direito posto e o direito pressuposto. Nas palavras de Eros Grau (2011, p. 65), “[...]

o direito pressuposto condiciona a elaboração do direito posto (direito positivo),

mas este modifica o direito pressuposto.” É, portanto, justamente daquele direito

previamente criado e vivificado no seio da sociedade que o legislador retira os

motivos e as razões para edificação do direito formal (direito posto). Neste sentido,

arremata Grau (2011, p. 81: “o povo – digo – produz o direito pressuposto; o Estado

produz o direito posto, que conhecemos como direito moderno ou direito formal;

apenas o direito produzido pelo povo é comprometido com a justiça.” Esta simbiose

faz-se necessária e permanente, tendo em vista que é o do clamor do povo e do

direito previamente criado que deve o legislador se valer para que o seu direito

posto se mantenha sólido, válido e eficaz.

No que concerne ao momento pandêmico, é importante ressaltar que

diversas legislações foram instituídas a fim de salvaguardar os direitos do cidadão.

Isso só foi possível em virtude do clamor do social e do caos estabelecido. O povo,

preocupado com a sua situação financeira, viu-se despido de direitos e colocou-se

em uma delicada posição, já que esperavam por medidas governamentais que os

devolvessem a autonomia e, por consequência, lhe restabelecessem a dignidade.

Foi, portanto, das bases desse direito pressuposto que o direito posto foi

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

gradativamente sendo instituído e permanece em frequente evolução com os fins

de manutenção de uma relação social saudável. O campo laboral foi o mais atingido.

Medidas foram tomadas rapidamente, objetivando a preservação da saúde

financeira dos brasileiros. Estas mudanças, em especial àquelas que afetaram o

ensino jurídico, serão abordadas no próximo capítulo.

3. A VIRTUALIZAÇÃO DO ENSINO: OS IMPACTOS DA PANDEMIA DO

CORONAVÍRUS NA PRÁTICA LABORAL DO PROFESSOR.

As medidas de isolamento tomadas pelo governo, a fim de minimizar os

efeitos do contágio pelo vírus COVID-19, afetaram os ramos econômicos,

educacionais e sociais fazendo com que docentes e discentes que estavam

habituados e, sobretudo, preparados para as aulas presenciais tivessem que se

adaptar, do dia para a noite, ao meio virtual.

É bem verdade que já tínhamos um cenário de alteração nos procedimentos

educacionais: de aumento do ensino à distância, de ensino híbrido 304 , de larga

utilização das TIC’s305. Entretanto, esses métodos eram utilizados por aqueles que

se propunham a emprega-los.

Desde a explosão da world wide web na década de 1990, o uso da rede

mundial de computadores estabeleceu novos parâmetros na comunicação, no

trabalho e na educação (CASTELLS, 2003, p. 18). Porém, essas mudanças vinham

acontecendo de forma paulatina.

Acontece que, com a instauração da pandemia, a adequação aos novos

métodos precisava ser rápida e ágil, mesmo para aqueles que não obtinham

304
Mescla de ensino presencial e digital.
305
Tecnologias de informação e comunicação.

1099
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

qualquer conhecimento sobre as metodologias aplicadas ao ensino à distância. Os

contratos de trabalho sofreram alteração unilateral para fins de preservação do

emprego, tendo o empregado que se adaptar de forma célere ou “pedir para sair”

em meio a uma crise sanitária mundial.

O teletrabalho foi a medida adotada pela maioria das escolas, faculdades e

centros educacionais para a continuação das suas atividades, amparados até então

pela MP 927/2020306 que disciplinava um pacote de medidas que possibilitavam a

continuidade das atividades empresariais. Esta modalidade de trabalho foi

estabelecida sob a égide dessa legislação com a conversão automática e unilateral

dos contratos de trabalho presenciais e com flexibilizações dos dispositivos

previstos na CLT sobre teletrabalho.

As medidas sobre teletrabalho aplicadas durante a vigência da MP

continuam válidas e os empregados que estão em teletrabalho poderão assim

continuar até o termino das medidas de isolamento. Entretanto, com a perda da sua

vigência, as regras flexibilizadas da CLT passam a ser novamente aplicadas (Art.

75-A ao 75-E) a essa modalidade, tais como: prazo para a comunicação do

empregado, necessidade de mútuo acordo, necessidade de aditivo contratual,

dentre outras.

Assim, o teletrabalho em tempos de pandemia assumiu feições de home

office (trabalho em domicílio), levando o trabalho para dentro dos lares, sendo

inserido de forma abrupta na dinâmica familiar (FINCATO, 2020).

Embora as formas de ensino já estivessem em plena transformação, nem

todos os profissionais estavam aptos e preparados para os novos mecanismos

306
A MP 927/2020 teve a sua caducidade em 19/07/2020, deixando assim de compor o rol de medidas que
podem ser utilizadas em razão da pandemia.

1100
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

tecnológicos, para a conciliação do convívio familiar e o horário de expediente e,

sobretudo, para a necessária reinvenção em meio à crise.

A falta de conhecimento e manejo dos equipamentos/software fez com que

inúmeras reuniões de planejamento e capacitação fossem realizadas para adequar

as aulas e materiais do modelo presencial para o virtual, fazendo com que o

trabalhador fosse submetido a uma avalanche de informações a fim de entender a

necessidade de ensinar além dos muros das escolas. (SILVA, 2020)

São várias as dificuldades enfrentadas pelos professores, tais como:

conhecer e dominar novas ferramentas e metodologias para adaptar as aulas a um

novo formato, falta de equipamentos e infraestrutura necessária para aulas a

distância (nos seu lares), falta de tempo e preparo das famílias para mediar a

realização de atividades pedagógicas, falta de comprometimento dos alunos com

essa modalidade, uma vez que eles não se comprometeram ao ensino virtual e sim

foram impostos a ele, entre tantas outras questões de natureza prática e formativa

aqui não elencadas. (SILVA, 2020)

A necessidade de adequação a esses problemas fez com que o docente

disponibilizasse mais horas do seu dia em prol do labor, ficando cada vez mais

conectado ao seu trabalho para que assim pudesse realiza-lo, pois não obtinha os

conhecimentos prévios necessários para a concretização do seu serviço.

Ainda que se entenda que as medidas tomadas foram drásticas, pois tinham

como fim a manutenção dos empregos e da renda, e que as flexibilizações trazidas

pelas MP 927/2020 tiveram uma boa intenção, acabaram por vedar a remuneração

excedente do teletrabalhador (professor) justamente no momento em que se

trabalha mais.307

307
Art. 4º, § 5º O tempo de uso de aplicativos e programas de comunicação fora da jornada de trabalho normal
do empregado não constitui tempo à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver
previsão em acordo individual ou coletivo.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

É verdade que, em virtude da profissão, dificilmente, os professores teriam

os tempos dispendidos em reuniões e capacitações remunerados como hora extra,

pois, certamente, os órgãos educacionais entenderiam esses tempos como

atividades extra classe, isto é, inerentes à função docente. Entretanto, o erro dos

“tempos normais” não pode servir de métrica para validar os tempos “anormais”.

Trabalho é trabalho em tempos pandêmicos ou não, devendo ser

remunerado e de preferência não realizado fora das jornadas preestabelecidas para

assim não afetar o direito à desconexão308 do trabalhador.

Ademais, a necessidade de manter os estudantes conectados faz com que os

professores tenham muita dificuldade em se desconectar, pois precisam preparar

um maior número de atividades capazes de fazer com que os alunos permaneçam

estimulados e, consequentemente, ocasiona um maior despendimento de tempo

para esclarecimento de dúvidas. (OLIVEIRA, 2020)

Assim, além dessas questões de natureza prática e formativa, os docentes,

tal qual o restante da população que sofre com sintomas de sobrecarga emocional

em meio a pandemia (dificuldade de se concentrar e executar tarefas simples,

ansiedade, depressão, cansaço/esgotamento físico e mental) sofrem com ansiedade

ante as aulas remotas e sobrecarga de trabalho.

Esses sintomas que são típicos dos momentos de crise também trazem

semelhanças aqueles que são inerentes aos teletrabalhadores não pandêmicos,

ocasionados pelo fator distanciamento. Afinal, há um isolamento do trabalhador,

que por desenvolver as suas funções fora dos estabelecimentos da empresa não

mantem contato com os seus colegas de trabalho e, em âmbito familiar, têm a

necessidade de conciliar casa e trabalho em um mesmo lugar, exigindo um elevado

308
“O direito a desconexão do trabalho consubstancia-se no direito de trabalhar e de, também, desconectar-
se do trabalho ao encerrar sua jornada, fruindo verdadeiramente das horas de lazer” (SOUTO MAIOR, 2003).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

grau de organização e reavaliação do significado pessoal para o tempo, já que as

duas funções passam a coabitar o mesmo espaço com uma, possível, fiscalização 24

horas. (SILVA, 2019, p.85)

A transformação que, indubitavelmente, iria ocorrer aos poucos, aconteceu

de um dia para o outro, sobrecarregando, estressando e desgastando os professores

ao ponto de não se saber como será a reação desse profissional pós pandemia.

De acordo com a pesquisa do Instituto Península (2020), os professores

sofrem com mais demandas e maiores expectativas tanto das instituições de ensino

quanto dos próprios alunos, razão pela qual 53% desses profissionais indicam

estarem muito ou totalmente preocupados com a própria saúde. Afinal, diante do

cenário de mudanças e incertezas, associadas a restrições de mobilidade da

população, sentimentos como medo, ansiedade e insegurança são normais diante

das necessárias mudanças de hábitos309.

Ademais, a MP 927/2020 que acabou por estimular a adoção dessa

modalidade de prestação de serviço durante a pandemia, a partir da simplificação

temporária de seus requisitos formais, certamente, contribuiu para firmar a certeza

da sua viabilidade, já que o setor produtivo avistou uma clara oportunidade de

enxugamento de estrutura e de custos, sem a perda de controle da mão de obra,

sinalizando que passado o isolamento, no que for possível, seguirá a utilizar o

teletrabalho (FINCATO, 2020).

Contudo, faz-se necessário pontuar que o tipo de teletrabalho que foi

implementado não é o adequado, mas sim o que poderia ser feito sob o estigma de

uma emergência de saúde pública. Em outros termos, o que se está fazendo na

grande maioria dos casos é manter o sistema de educação funcionando em meio a

309
Devido a quarentena, 35% dos 2,4 mil docentes entrevistados tiveram que mudar totalmente os seus
hábitos; 41% disseram que mudaram muito e 22% tiveram que mudar um pouco a rotina. Apenas 2% disseram
que não precisaram mudar os hábitos (INSTITUTO PENÍNSULA, 2020).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

uma pandemia, porém, sem qualquer análise das consequências biológicas e

sociológicas do trabalhador.

O teletrabalho não se encaixa para todos os trabalhadores, pois possui

especificidades que devem ser avaliadas pelo profissional e pela própria empresa,

tais como: a mescla dos horários e lugares, a necessidade de autocontrole e

autodiscernimento sobre a sua saúde, a falta de socialização face to face e,

especialmente, o profundo entrelace entre a vida privada e a profissional.

A falta de preparo do trabalhador, pode levar a casos extremos, tal qual o

que ocorreu com a professora argentina que faleceu em meio a uma aula virtual,

pois teve COVID-19, mantinha sintomas leves da doença, mas resolveu continuar

suas atividades como docente, porque estava em casa e não se sentia mal o suficiente

para pedir uma licença (CHAINA, 2020).

Casos como esse sinalizam o despreparo das organizações empresariais e

de ensino para a aplicabilidade da modalidade teletrabalho. Esse tipo contratual

precisa ser implementado após análise do perfil de trabalhador e sob um forte

acompanhamento social da empresa, pois, embora os professores sigam dando

aulas desde suas casas, o que continuam a fazer é trabalho.

E, pior, é trabalho em um contexto de isolamento social, sem garantia de

desconexão, em jornada estendida, seja para capacitação ou para o planejamento de

aulas e, por vezes, com redução salarial, em conformidade com a MP 936/2020,

agora Lei 14020/2020.

Resta claro que as medidas implementadas pelo governo federal a fim de

manter os postos de trabalho e as decisões tomadas pelas escolas, faculdades e

centros educacionais foram feitas sob o enfoque pandêmico, isto é, sem avaliar de

forma adequada as suas consequências e matizes para o trabalhador.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Sucede que não podemos tomar por base a legislação da crise e os modos

aqui aplicados para os tempos pós pandêmicos. A adversidade acelerou a edificação

de uma nova pratica laboral que iria se implementar gradualmente, no entanto, o

fez de forma atrapalhada e sem cuidado com os efeitos psicossociais do trabalhador.

É notório que não temos nenhuma garantia de que se o trabalho a distância

tivesse sido aplicado em menor intensidade e de forma paulatina a modificação do

presencial para o virtual conseguiria melhores implicações com menores custos,

mas, seguramente, teria deixado margem para uma maior discussão dos seus

efeitos.

Com isso, resta claro que a manutenção, dentro do possível, dos empregos

foi alcançada com sucesso. Por outro lado, no que tange à saúde física e mental do

trabalhador, ao direito à desconexão e a aplicabilidade do teletrabalho após a crise

sanitária mundial, o que ficam são novas condições de Unsicherheit, nas palavras de

Bauman (2001, p. 156.), sob a égide da incerteza, insegurança e instabilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia ocasionada pela disseminação do vírus COVID-19

aprofundou uma transformação laboral que já estava em curso e acentuou questões

que já vinham sendo discutidas (direito a hora extra, direito à desconexão,

separação da vida privada e profissional, etc.), adicionando novas questões, tais

como: necessidade do trabalhador se adaptar e especializar na utilização da

tecnologia de comunicação e informação, entre outras.

As medidas de contenção da doença e diminuição do contágio escancaram

uma porta que estava sendo aberta aos poucos, a fim de garantir saídas

emergenciais para a continuação das atividades educacionais. Com o auxílio de

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

equipamentos, software e introdução de novas metodologias apoiadas nas

tecnologias digitais, os professores tiveram as suas salas de aula transformadas do

dia para a noite, obrigando-os a um aprendizado célere e certeiro sobre o manuseio

das TIC’s.

Ocorre que a urgência da transformação pegou vários professores e

estudantes, completamente, despreparados, fazendo com que aqueles tivessem que

buscar capacitação em tempo recorde e esses buscarem recursos necessários para o

acompanhamento das aulas online.

Ademais, de ambos os lados foi/está sendo necessário um grande esforço

para aprender a conciliar a dinâmica familiar com os estudos e o trabalho, pois

tornou-se imperioso um novo rearranjo do tempo, onde a disciplina passa a ser a

chave mestra.

Com isso, sintomas de estresse, esgotamento e depressão passam a fazer

parte desta mudança de hábitos ocasionada pela transformação abrupta do “novo

normal”, conjugados com confinamento familiar, excesso de trabalho/demanda e

pouca remuneração.

Assim, as hipóteses levantadas na introdução restaram confirmadas, tendo

em vista que, efetivamente, os trabalhadores tiveram o seu contrato de trabalho

alterado de forma abrupta, quando ainda não estavam preparados para essa

mudança, sendo necessário um maior envolvimento do professor e do alunos com

plataformas tecnológicas e ensino virtual; com a necessidade de inovação na forma

educar que ensejou um maior empenho no planejamento de aula; com a construção

de uma nova prática laboral e, por consequência, de reformulações nas cláusulas

contratuais de forma unilateral.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

TECNOLOGIA E COVID-19: O DIREITO À DESCONEXÃO EM

TEMPOS PANDÊMICOS

Gabriela Rangel da Silva310


Camila Savaris Cornelius311

RESUMO
O presente trabalho trata sobre a inserção de tecnologia no trabalho e dos seus reflexos em
relação a proteção dos direitos sociais, em especial no que tange ao direito à desconexão. O
objetivo do trabalho é analisar a proteção do direito à desconexão em relação a larga
utilização do teletrabalho em meio a pandemia do Covid-19. O tema se justifica diante da
necessidade de se pensar o uso da tecnologia no trabalho, em meio a uma crise sanitária
mundial, e a proteção do direito à desconexão do trabalhador. O trabalho utilizará o método
indutivo, racionalizado pelas técnicas da pesquisa bibliográfica, do referente, das categorias
básicas e dos conceitos operacionais, quando necessário, será divido em três capítulos: o
primeiro trará a contextualização do Covid-19, o segundo abordará o uso de tecnologia e o
excesso de informação relacionados ao teletrabalho e o último capítulo versará sobre o
direito à desconexão. A partir do exposto o presente trabalho concluirá que há um aumento
ao desrespeito ao direito à desconexão, devido a necessidade de aprendizado das
ferramentas tecnológicas, da falta de preparo dos trabalhadores e do excesso de informação
a que eles estão submetidos. Ainda sugerirá a aplicação da compliance trabalhista a fim de
efetivar o cumprimento do Direito à Desconexão.

Palavras Chave: Tecnologia; Covid-19; Direito à Desconexão; Direitos sociais

ABSTRACT
The present work deals with the insertion of technology at work and its reflexes in relation
to the protection of social rights, especially with regard to the right to disconnect. The
objective of the work is to analyze the protection of the right to disconnect in relation to the
widespread use of telework in the midst of the Covid-19 pandemic. The theme is justified

310
Doutoranda em Ciência Jurídicas Privatísticas na Universidade do Minho - Portugal. Mestre em Ciência
Jurídica pela Universidade Vale do Itajaí (CAPES - Conceito 6). Mestre em Estudos Políticos na Universidad de
Caldas - Colômbia. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade
Católica de Porto Alegre. e-mail: gaberds@gmail.com, currículo lattes:
http://lattes.cnpq.br/2058469220386782.
311
Graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2015). Tem experiência na área de Direito do
Trabalho. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí- UNIVALI, na área de Concentração
em Fundamentos do Direito Positivo, Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Centro
Universitário Curitiba- UNICURITIBA, e-mail: c_savaris@hotmail.com.
http://lattes.cnpq.br/4075995413144897

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

by the need to think about the use of technology at work, in the midst of a global health
crisis, and the protection of the right to disconnect workers. The work will use the inductive
method, rationalized by the techniques of bibliographic research, referent, basic categories
and operational concepts, when necessary, will be divided into three chapters: the first will
bring the contextualization of Covid-19, the second will address the use of technology and
the excess of information related to teleworking and the last chapter will deal with the right
to disconnect. Based on the above, the present work will conclude that there is an increase
in disrespect to the right to disconnect, due to the need to learn technological tools, the lack
of preparation of workers and the excess of information to which they are subjected. It will
also suggest the application of labor compliance in order to enforce compliance with the
Right to Disconnect.

Key-words: Covid-19; Right to Disconnect; Social rights

INTRODUÇÃO

Em virtude da crise sanitária mundial, declarada pela Organização Mundial

da Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, em decorrência da disseminação do vírus

Covid-19, as antigas formas de trabalho presencial foram postas em check do dia

para a noite, em razão da necessidade de isolamento social.

A tecnologia que já vinha sendo, paulatinamente, inserida nos mais

diversos modos de trabalho teve um papel primordial para a continuação e

manutenção do labor, tanto que uma das formas autorizadas pelo governo federal

para a flexibilização de normas trabalhistas foi a possibilidade de prestação de

trabalho na modalidade teletrabalho.

Embora seja louvável a conservação das relações trabalhistas, a tecnologia

alterou significativamente a dinâmica da prestação de trabalho, haja vista que com

o maior acesso às informações, o mercado passou a exigir novos diferenciais,

especialmente no que diz respeito a flexibilidade no atendimento as demandas do

mercado, sendo cada vez mais difícil impor limites a desconexão, que acaba por

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

gerar diversas violações aos direitos fundamentais do empregado, afetando

diretamente sua qualidade de vida.

Pelo exposto, a escolha do tema justifica-se diante da necessidade de refletir

os benefícios e os malefícios do uso da tecnologia, em meio a uma crise sanitária

mundial, e a proteção do direito à desconexão do trabalhador que, apesar de estar

afastado no seu local de trabalho, continua tendo direito ao lazer e ao cumprimento

da jornada de trabalho.

Na elaboração do tema, levanta-se o seguinte problema: ―Em razão do uso

excessivo da tecnologia, da demasiada quantidade de informação e da crise

sanitária em razão do vírus Covid-19, como está a proteção do direito à desconexão

do trabalhador em meio a pandemia?

Para o equacionamento do problema, levanta-se a seguinte hipótese: em

virtude da rapidez com que as medidas foram tomadas e a falta de controle de

jornada, há um aumento ao desrespeito a proteção ao direito à desconexão e,

consequentemente, ao direito ao lazer.

Com relação à metodologia, foi utilizado o método indutivo, racionalizado

pelas técnicas da pesquisa bibliográfica, do referente, das categorias básicas e dos

conceitos operacionais, quando necessário. Outros instrumentos de pesquisa

poderão ser acionados, se necessário, para que o aspecto formal deste estudo se

torne esclarecedor ao leitor.

1111
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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1.CONTEXTUALIZAÇÃO DO COVID - 19: A FLEXIBILIZAÇÃO DOS

DIREITOS SOCIAIS

O novo vírus COVID-19, que teve a sua origem na província chinesa de

Wuhan, faz parte de uma grande família viral, conhecida desde meados dos anos

60, que causam infecções respiratórias em seres humanos e animais. (SOARES, 2020)

Os sintomas comuns de coronavírus humano, normalmente, causam

infecções leves ou moderadas do trato respiratório, com curta duração no

organismo, de 2 a 14 dias. Os vírus são transmitidos pelo ar, por meio de tosse ou

espirro, contato pessoal próximo, como aperto de mão, e o contato com objetos ou

superfícies contaminadas, seguido de contato com a boca ou nariz. (SOARES, 2020)

Em razão dos meios de transmissão e da falta de informação para medidas

eficazes para o seu combate, medidas restritivas de circulação de pessoas e lockdown

de transporte e comércio foram tomadas pelos governos de inúmeros países do

mundo para evitar a propagação do vírus.

No Brasil, desde 04/02/2020, iniciou-se um período de produção abundante

de regras, cuja a base é a Lei 13.979, de 06/02/2020, que estabelece as medidas para

o enfretamento da emergência de saúde pública de importância internacional, em

virtude do surto do coronavírus de 2019, que acabou por gerar impactos nas

relações de emprego, na economia, no dia-a-dia das pessoas e no ordenamento

jurídico brasileiro.

Entretanto, apesar da larga produção legislativa, há de se considerar que as

medidas de isolamento começaram a ser impostas pelas prefeituras e governos

estaduais antes mesmo de possuir os regramentos capaz de regular as novas

relações, como, por exemplo, o que ocorreu no estado de Santa Catarina, onde o

decreto n. 506, de 12/03/2020 estabeleceu a quarentena.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A falta de planejamento para o tratamento da crise sanitária e a estagnação

do meio produtivo fizeram com que os empregadores começassem a pressionar o

governo para soluções jurídicas e legais quanto ao impacto dessa medida nas

relações de emprego, já que sem mão de obra não há capital. (NAHAS; MARTINEZ,

2020, p.1)

A primeira medida provisória que surgiu para regulamentar a situação dos

trabalhadores subordinados foi a MP nº 927 de 22/03/2020, com foco em autorizar

medidas trabalhistas para o enfrentamento dos efeitos econômicos do estado de

calamidade, sendo seguida pela MP nº936 de 01/04/2020, que trata sobre a

instituição do programa emergencial de manutenção do emprego e da renda, além

de dispor sobre medidas trabalhistas complementares para o enfrentamento do

Covid-19.

Tais medidas, embora muito contestadas, foram essenciais para acalmar os

ânimos dos empregadores que não sabiam como proceder em meio a situação de

insegurança jurídica em que estavam submetidos.

As grandes empresas nacionais, para além de reforçar as recomendações

quanto a higiene dos seus funcionários, iniciaram seu planejamento para o manejo

de pessoal, definindo estratégias para lidar com algumas hipóteses já previsíveis,

tais como: adoecimento de colaboradores, adoecimento de pessoa das relações do

empregado, suspensão de atividades na educação infantil e no ensino fundamental

e suspensão dos serviços de transporte. (FINCATO, 2020)

Ocorre que as micro e pequenas empresas não possuem as mesmas

habilidades e possibilidades de manuseio e planejamento de recursos para uma

transformação tão célere. No Brasil, os pequenos negócios empresariais

correspondentes a 37% das empresas no país e as micro e pequenas empresas

respondem por 52% dos trabalhadores com empregos formais, razão pela qual a

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

resposta estatal deveria ser precisa para amenizar os efeitos socioeconômicos das

medidas de combate ao Covid-19. (NAHAS; MARTINEZ, 2020, p.1)

A necessidade de preservação dos postos de trabalho tornou-se realidade

na redação do Art. 3º da MP 927, onde há uma série de opções para que as empresas

possam confrontar a crise, sendo elas: o teletrabalho, a antecipação de férias

individuais, a concessão de férias coletivas, o aproveitamento e antecipação de

feriados, o banco de horas, o direcionamento do trabalhador para qualificação, entre

outras medidas. (BRASIL, 2020)

O que se propôs na MP 927 não foi nenhuma inovação, mas uma

flexibilização de mecanismos jurídicos já existentes durante o estado de calamidade,

razão pela qual importantes juristas brasileiros, a citar: Valdete Souto Severo e Jorge

Souto Maior, falam em precarização da legislação trabalhista em meio a pandemia.

Porém, outros importantes juristas, cite-se Vólia Bonfim Cassar e Maria

Cristina Peduzzi, entendem que as normatizações foram essenciais para a

preservação dos postos de trabalho, da prevalência da saúde pública e da

preservação e função social da empresa.

A despeito de precarizar ou não o que sabemos é que em virtude da

pandemia as empresas necessitavam de novos meios e parâmetros para continuar

funcionando em meio ao isolamento social. Assim, tornou-se imperioso o

remanejamento do meio físico para o digital, de forma que o home office, as

transações/consumo pela internet, o uso de drive-in, entre outros métodos que não

necessitam de interação física, passaram a ser os favoritos para a efetivação da

quarentena.

Vale frisar, que antes mesmo da crise sanitária se instalar no Brasil e no

mundo, já vivíamos uma profunda transformação de paradigmas no que tange ao

trabalho humano em decorrência da Revolução 4.0. Isto é, as inovações tecnológicas

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já estavam ocorrendo em ritmo exponencial, conectando o mundo e combinando

várias tecnologias, levando a uma mudança de paradigmas sem precedentes da

economia, dos negócios, da sociedade e dos indivíduos. (SCHWAB, 2016, p.13)

Com isso, percebe-se que algumas mudanças que seriam paulatinas foram

feitas a fórceps e sob a égide de uma legislação temporária, em razão dos “novos

tempos”.

Ocorre que, para conseguir voltar a “normalidade”, deve-se considerar que

novos hábitos foram forjados em meio a uma modalidade de trabalho excecional,

cunhada em meio a calamidade de saúde pública. Assim, nem tudo que foi

apreendido e modificado poderá ser válido passada esta crise, vide a própria

questão do home office, que embora confundido com o teletrabalho, guarda

peculiaridades normativas distintas que serão esclarecidas no próximo capítulo

deste trabalho.

As medidas adotadas para a preservação do emprego e da renda tiveram

uma tônica especial na autorização dada aos empregadores, na MP 927, de 2020, de

promover a alteração unilateral do regime de trabalho presencial para o digital. O

afastamento do local de serviços, foi, sem sobra de dúvidas, para muitos

trabalhadores, a mais expressiva medida de prevenção dos riscos laborais no

combate ao coronavírus. (NAHAS; MARTINEZ, 2020, p.9)

Ocorre que nem todos os trabalhadores estavam profissionalmente e

psicologicamente preparados para essa nova modalidade de trabalho, que para

além da flexibilização dada pela própria legislação, propiciou uma flexibilização no

núcleo duro dos Direitos Sociais, especialmente, no que tange ao direito a limitação

da jornada de trabalho e ao direito ao lazer.

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2.TECNOLOGIA E EXCESSO DE INFORMAÇÃO: CONSIDERAÇÕES

ACERCA DO TELETRABALHO E DO HOME OFFICE.

A Lei 13.467/17, lei da reforma trabalhista, trouxe a regulamentação do

teletrabalho no ordenamento jurídico brasileiro. A nova disposição normativa está

prevista no Art. 62, inc. II e no capítulo II- A, intitulado “Do teletrabalho”. (BRASIL,

2017)

O caput do Art. 75-B conceitua o teletrabalho como “[...] a prestação de

serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a

utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza,

não se constituam como trabalho externo”. (BRASIL, 2017)

Desde logo, podemos perceber que o teletrabalho não é caracterizado por

trabalho realizado na casa do trabalhador (home office), mas sim por prestação de

serviços realizado na maior parte das vezes fora das dependências do empregador,

presumindo-se em qualquer lugar, inclusive na sede da empresa.

Assim, podemos entender que a MP 927 traz uma distorção na conceituação

do teletrabalho, visto que possibilitou a alteração unilateral da modalidade de

trabalho presencial para o remoto para que o trabalhador possa trabalhar desde a

sua casa em razão da pandemia. Consequentemente, o trabalhador não se tornou

um teletrabalhador, mas sim um trabalhador em home office mantendo todos os seus

direitos trabalhistas, especialmente em relação a limitação de jornada. (CORREIA,

2020, p.3)

Ocorre que o Art. 4º, §1º da MP 927, (BRASIL, 2020), dispôs taxativamente

que:

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[...] considera-se teletrabalho, trabalho remoto ou trabalho a


distância a prestação de serviços preponderante ou totalmente
fora das dependências do empregador, com a utilização de
tecnologias da informação e comunicação que, por sua natureza,
não configurem trabalho externo, aplicável o disposto no inciso
III do caput do art. 62 da Consolidação das Leis do Trabalho,
aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943. (grifo nosso)

Compreende-se, portanto, que o regime de teletrabalho, trabalho remoto ou

trabalho a distância foram equiparados e a partir da sua modificação, que poderá

ocorrer independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, o

trabalhador não mais terá aplicável o capítulo de duração de jornada. (CORREIA,

2020, p.3)

Para deixar ainda mais clara a exclusão do capítulo de duração de jornada

o §5º do Art. 4º prevê que “o tempo de uso de aplicativos e programas de

comunicação fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo

à disposição, regime de prontidão ou de sobreaviso [...]”. (BRASIL, 2020)

Entretanto, algumas ponderações devem ser feitas, afinal, nem todos os

trabalhadores tinham os mecanismos, sabiam as técnicas ou tinham proficiência

para o trabalho remoto, razão pela qual mais horas estão sendo dispendidas para o

labor e, com isso, as bases antes sólidas das relações trabalho passaram a sofrer

modificações e flexibilizações, para dar espaço a esta nova dinâmica trazida pela

tecnologia.

As tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) que mostraram serem

aliadas para a execução e aprimoramento do trabalho, ainda, não são de domínio e

manuseio comum. Se adaptar ao teletrabalho312 não é uma tarefa fácil quando já se

312
A partir desse ponto do texto usará a palavra “teletrabalho” para descrever a modalidade de trabalho em
casa, pois foi assim que foi conceituada na MP 927/2020.

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está predisposto a isso, quando é convocado a mudança pode ser mais difícil ainda.

Afinal, nem todos os trabalhadores conseguem fazer o teletrabalho.

O trabalho realizado dentro de casa já é complexo por si só, em razão de,

via de regra, as pessoas não terem um local ergonomicamente pensado para o

trabalho, de não haver um espaço destinado ao trabalho diferente do de descanso,

dificultando ainda mais o estabelecimento de horários para a prestação do labor

Além disso, soma-se a isso a noção acentuada de urgência advinda do

momento vivido, e a necessidade de estar atualizada a todo momento, submetendo

as pessoas a uma supra-conexão, ou seja, uma conexão para muito além do razoável,

abrindo margem a uma nova preocupação a infodemia

Isto ocorre porque as mudanças trazidas pela tecnologia ultrapassaram os

limites da dinâmica do trabalho, alcançando o indivíduo, vez que com o aumento

do número de informações e acesso facilitado às informações, passou-se a exigir que

o trabalhador estivesse constantemente informado e preparado para receber novas

informações, sob pena de não ser um candidato à altura no mercado de trabalho

atual.

Com isso, verificou-se uma mudança de papéis, qual seja, a tecnologia, que

antes era dominada pelo homem e utilizada para facilitar a desenvoltura do

trabalho, passou a dominar o homem e escravizá-lo, podendo inclusive, com a sua

evolução, tomar o lugar do homem no mercado de trabalho (MAIOR, p.1, 2003).

E, com isso, novas preocupações passaram a surgir, uma vez que diante do

contexto, passou-se a verificar uma invasão do trabalho ao espaço destinado ao

lazer e descanso do empregado e, com isso, uma violação em massa dos direitos

fundamentais.

O teletrabalho, por exemplo, já vinha sendo utilizado antes mesmo da sua

regulamentação pela Lei 13.467/17, razão pela qual este problema de confusão entre

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

os horários de trabalho e os de descanso já ocorria, só que em menor escala, visto

que a grande maioria dos trabalhadores ainda se utilizava do trabalho presencial.

É a partir desta nova realidade que essas quantidades se inverteram, isto é,

a grande maioria dos trabalhadores passaram a realizar o seu trabalho remotamente

e a minoria está realizando trabalho presencial, a exemplo dos profissionais da

saúde.

Com isso, a carga de informação que chega a esses profissionais, pelos

meios digitais, é muito grande tanto no que se refere ao trabalho quanto no que trata

das próprias informações sobre o Covid-19. Afinal, não basta mais os mecanismos/

programas utilizados pela própria empresa, há também o excesso de informação

pelo whatsapp, pelo instagram, pelo messenger, e pelos mecanismos de impressa.

Ademais, adiciona-se a esses pontos a desinformação, que é uma questão

totalmente repugnada pela sociedade atual mas que, dá indícios a novas

preocupações, tais como a complexidade de verificar a veracidade das informações

que chegam ao usuário, visto a dificuldade em identificar suas fontes (RIBEIRO,

2020).

Isso significa que grande parte das informações que chegam aos usuários

acerca do coronavírus são falsas, fazendo com que as pessoas percam a noção do

que realmente acontece na realidade, gerando a ideia de que a disseminação da

doença é progressiva, e que o retorno a condições para além do confinamento estão

cada vez mais distantes.

Neste diapasão, importante destacar a pesquisa realizada pelo Instituto

Reuters junto com a Universidade de Oxford, onde constatou-se de janeiro a março

que há cerca de 900% de desinformação acerca do coronavírus, sendo que 59% trata

de distorção das informações e 38% são informações fabricadas (BRENNEN, 2020).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A questão das “Fake News” possui importância neste diapasão, pois elas

também podem ser fatores precursores ou agravantes de doenças que podem

acometer o empregado, tais como doenças psicológicas (RIBEIRO, 2020).

Isto decorre especialmente porque a escolha do teletrabalho como

alternativa encontrada no contexto vivido, aprisiona a sociedade como um todo, e

a falta de limites ao horário do trabalho, favorecendo a supra- conexão, gera

violação massiva de direitos fundamentais da sociedade, especialmente quando há

a imposição da atualização incessante pela sociedade atual.

Diante disso, fica constatado que há um comprometimento da leitura de

direitos fundamentais ocasionado pela inserção da tecnologia no dia-a-dia da

sociedade, demonstrando a necessidade da imposição de limites.

3.DIREITO À DESCONEXÃO EM TEMPOS PANDÊMICOS

A tecnologia, conforme demonstrado, sempre fora vista como uma ferramenta

essencial para o desenvolver do trabalho, bem como se tornou um aliado ao tempo,

haja vista o tema da sociedade capitalista atual de que “tempo é dinheiro” (SILVA,

2019, p.50).

Assim, diante da facilidade para os trabalhadores no exercer de suas funções,

bem como a garantia ao acesso ilimitado às informações, verificou-se que à medida

que os novos meios de trabalhado surgidos através da tecnologia se inseriam na

vida dos trabalhadores uma invasão do trabalho ao espaço destinado ao descanso e

lazer do empregado aumentava, gerando sob uma perspectiva constitucional a

violação do direito ao lazer, ou seja, à desconexão e, consequentemente, de direitos

fundamentais do trabalhador ligados à ele, haja vista o efeito irradiante que

possuem.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

O direito à desconexão é um direito fundamental perfectibilizado por meio do

direito ao lazer e na duração do trabalho, possuindo, ainda, estreita ligação com o

direito à intimidade e à vida privada (MAIOR, p.1, 2003), atingindo,

consequentemente, o núcleo da Constituição Federal, o direito à vida digna

Porém, a problemática não é tão simples, pois diante das demandas da

sociedade atual, estar desconectado demonstra-se como uma desvantagem e, estar

desinformado e desatualizado é sinônimo de perda de espaço no mercado de

trabalho, pois o acesso à informação se tornou um requisito essencial no mercado

de trabalho conforme levantado por Souto Maior (ALMEIDA, p.38, 2016).

Para além da conexão, as ferramentas tecnológicas proporcionam um maior

controle sobre o empregado, gerando cada vez mais demandas e impossibilitando

a concretização da desconexão dos dois polos da relação de trabalho.

E, ainda que esteja estipulada a jornada de trabalho em diversos dispositivos

da legislação trabalhista, possibilitando a expectativa do empregado por este

período de descanso, no final, a realidade era de uma impossibilidade de se desligar

por completo, seja por conta do whatsapp, e-mail, ou mensagens vindas do trabalho.

Apesar de não haver previsão expressa no ordenamento jurídico em relação à

desconexão, sua proteção pode ser vislumbrada na Constituição Federal, seja no

artigo 7º ou por estar relacionado à saúde, ao lazer, a duração da jornada de

trabalho, vida digna do trabalhador. Ademais, a própria CLT, ao prever em

diversos dispositivos a regulamentação ligada a jornada do trabalhador, tais como

a jornada intrajornada, o pagamento de horas extras, férias entre outros aspectos

ligados a jornada do empregado acaba também por proteger o trabalhador.

A importância da jornada de trabalho razoável através da regulamentação

minuciosa e previsão de penalidades pecuniárias ocorre justamente para preservar

1121
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

o direito à saúde do trabalhador, que teve o pleito de diminuição da jornada de

trabalho como mola propulsora deste ramo jurídico. (ALMEIDA, 2016, p.10).

Nesta seara, importante destacar o papel da jurisprudência, que cumpriu

demonstrar que acompanha as novas demandas e necessidades da sociedade,

prevendo o direito à desconexão de forma expressa em julgados 313 de diversos

tribunais.

Em relação a produtividade e desconexão, importante destacar que a falta de

produtividade não afeta o direito à desconexão do trabalhador, justamente por se

tratar de um direito fundamental ligado à vida digna do empregado, um direito que

não é uma novidade na seara trabalhista, advindo principalmente do direito ao

lazer e da jornada limitada.

Além disso, conforme destaca Gabriela Rangel da Silva (SILVA, 2020, p.59), o

principal objetivo do direito à desconexão é tão somente evitar o trabalho em

excesso, não incentivando o ócio ou a falta de produtividade do empregado.

E, ainda que o teletrabalho, diferente do home-office, não tenha um limite de

jornada (LATYER, 2020), é aconselhável que o empregador tenha o cuidado em pré-

determinar com o empregado uma jornada, bem como tenha um controle quanto a

saúde física e psicológica do empregado submetido a esta modalidade.

Esta obrigação advém especialmente do princípio da proteção, vez que o

empregador é responsável por tomar todas as medidas cabíveis para manter a

integridade física e mental do empregado, conforme previsto inclusive nas normas

regulamentadoras (BISPO, 2020).

313
A jurisprudência predominante entende o desrespeito ao direito à desconexão importa na indenização por
Danos morais conforme julgados: DANO MORAL - DIREITO FUNDAMENTAL AO LAZER - DIREITO À DESCONEXÃO
DO TRABALHO - Certo é que o dano moral existencial exige a prova de uma sequência de atos que cause a
violação de qualquer um dos direitos fundamentais do indivíduo, comprometendo seu projeto de vida pessoal
e a possibilidade da vida em sociedade. Todavia, não havendo prova quanto a ocorrência de qualquer violação
aos direitos da personalidade do autor, não merece acolhida o pedido de danos morais (TRT-3 - RO:
00108256720185030097 0010825-67.2018.5.03.0097, Relator: Marcio Flavio Salem Vidigal, Oitava Turma);

1122
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Ou seja, todas estas previsões demonstram de forma direta e indireta que o

empregado deve ter um tempo destinado ao descanso, protegendo o empregado de

desenvolver diversas doenças advindas dessa demanda incessante de trabalho.

As jornadas exaustivas, além de diminuir a produtividade, podem colocar em

risco à saúde física e mental do empregado, podendo inclusive acarretar em

diversas doenças, tais como a Síndrome de Burnout, caracterizada pelo

esgotamento profissional (PRADO, 2020).

Nesse ponto, é possível demonstrar que a desconexão não é um problema

limitado ao teletrabalho, pelo contrário, ele está ligado a todas as modalidades de

trabalho. Inclusive, é possível verificar que há uma severidade advinda das normas

trabalhista quando se trata de jornada excessiva quando da regulamentação das

horas extras e do sobreaviso.

Além disso, a ideia que prevalece é a de que o respeito aos direitos do

empregado no exercício de suas funções nas dependências da empresa deveria

permanecer os mesmos em casos de teletrabalho, ainda que em tempos pandêmicos,

especialmente no que tange à vida privada do empregado e ao salário (DAVID,

2020).

Inclusive, mudanças neste quadro demonstra evidente retrocesso social quanto

as conquistas trabalhistas, pois além de violar expressamente direitos e garantias

fundamentais da Carta Magna de 88, demonstram um controle da tecnologia sobre

a atividade humana, não utilizada mais para facilitar o trabalho, mas para

escravizar, haja vista as inúmeras demandas advindas dessa supra-conexão e, pior,

sendo amplamente aceito por esta sociedade o trabalho em demasia, demonstrando

que só importa a produção.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Em tempos pandêmicos, medidas governamentais são voltadas a dois

objetivos: proteção da saúde e integridade física da sociedade e, soluções para a

economia não estancar.

E, para possibilitar isto, a solução encontrada foi de isolamento social e a

continuidade dos trabalhos através do teletrabalho, demonstrando que este excesso

de trabalho, principal característica da sociedade contemporânea, se mostra ainda

mais evidenciada em tempos pandêmicos.

Isso ocorre principalmente porque a preocupação com o desemprego resta

potencializada, pois a disponibilidade e, consequentemente, a desconexão acabam

se tornando requisito fundamental para a manutenção do emprego.

Neste período, restam prejudicadas as atividades dos órgãos fiscalizatórios,

seja por receio de que haja contaminação ou pela limitação da atividade destes

órgãos por medidas governamentais, contribuindo para que este abuso com relação

as demandas vindas da empresa e repasse de trabalho em excesso aos funcionários

ocorra sem nenhum impedimento.

Isso demonstra que as ações governamentais, ainda que bem intencionadas,

expõe os trabalhadores a outros tipos de violação em meio a pandemia, inclusive

atingindo o direito à saúde, visto que, a razoável duração do trabalho tem intrínseca

relação à saúde do trabalhador, muito embora a reforma trabalhista discorde disso.

Além disso, há ocorrência de flexibilizações e até mesmo confusão de institutos

jurídicos como a questão já abordada do home office e do teletrabalho, evidenciando

retrocesso de direitos sociais durante este período.

É bem verdade que as consequências desse contexto passam a ser notadas pelas

próprias empresas através de faltas recorrentes dos funcionários, perda de

produtividade, rotatividade em demasia, e problemas interpessoais, demonstrando

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

a necessidade de iniciativas diferenciadas a serem buscadas pela própria empresa.

(PINHEIRO, 2020, p.71)

Como sugestão para uma melhor efetivação da legislação, o presente trabalho

sugere a aplicação do instituto da compliance a fim de minimizar os efeitos negativos

advindos da pandemia nas relações de trabalho, de forma a minimizar o retrocesso

dos direitos sociais.

Assim, o que num primeiro momento era para possibilitar que as empresas

pudessem participar de licitações com o Poder Público, conforme previsto na Lei

13.303/16, também mostrou ser eficaz para a própria atividade da empresa,

demonstrando que a partir do compliance, a cultura organizacional da empresa pode

ser transformada.

Nesse diapasão, cumpre destacar as ferramentas que o compliance envolve,

quais sejam: Código de Conduta, Regulamento Interno, Canal de Denúncias e,

treinamentos. Destaca-se aqui a importância de realizar um diagnóstico na empresa

em um primeiro momento, através da auditoria, para identificar quais são os

problemas da empresa, para posteriormente analisar qual ou quais ferramentas são

ideais para a empresa em questão, sendo, portanto, algo totalmente personalizado.

A ideia aqui não é falar de cada uma das ferramentas de modo específico e

detalhado, mas sim demonstrar que através delas a empresa pode, além de

transformar as relações, construir uma imagem diferenciada perante a sociedade.

Afinal, é a partir do compliance que se pode ver a importância da gestão de

pessoas para a atividade empresarial, haja vista que é com os problemas no

relacionamento entre gestores e funcionários, ou ainda, entre funcionários que as

ações trabalhistas surgem. (GIEMEREK, 2015)

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Assim, a utilização do compliance proporcionará transparência e previsibilidade

na relação laboral, de forma a propiciar a realização da correta jornada de trabalho

em cada empresa, podendo ser parcial, integral, 12x36, entre outras modalidades, e

acima de tudo propor mecanismos hábeis para o seu efetivo cumprimento. Um

exemplo claro da efetividade deste mecanismo está no controle de whatsapp, quando

a empresa se compromete e solicita que o empregado fique indisponível após o

termino da jornada de trabalho para o recebimento de mensagens, sendo possível

recebe-las somente no início da jornada seguinte (AHAD, 2019).

O mesmo raciocínio pode ser colocado em prática com relação ao e-mail, vez

que o empregado somente poderá acessá-lo na jornada de trabalho e dentro das

instalações da empresa e, por fim, realizar o logoff do empregado do sistema da

empresa ao final da jornada de trabalho, possibilitando que haja a usufruição à

desconexão.

Com isso, resta claro que o problema da desconexão do trabalhador foi

acentuado durante crise sanitária mundial, declarada pela Organização Mundial da

Saúde (OMS), em 11 de março de 2020, pois na busca do isolamento social e proteção

do contra o Covid-19 os empregados foram expostos à um excesso de trabalho que

acabou por flagelar o direito à desconexão.

Além disso, a falta de controle de jornada, a necessidade de aprender a

manusear novos mecanismos e o excesso de informação contribuíram

flagrantemente a falta de lazer daqueles que já estão em quarentena e

impossibilitados de usufruir do seu direito de ir e vir. Em virtude disso, o presente

trabalho apresenta a utilização do instituto da compliance trabalhista como uma

medida hábil a ser aplicada a fim de conquistar a desconexão, bem como uma forma

de fazer com que o empregado e o empregador compreendam a necessidade de se

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desconectar, possibilitando assim que a empresa garanta dignidade do trabalhador

mesmo em tempos pandêmicos cumprindo a sua função social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É notório que o trabalho e a tecnologia sempre tiveram uma estreita relação,

dado que, não é de se admirar, que o grande marco do Direito do Trabalho mundial

é a 1ª Revolução Industrial com o surgimento da máquina à vapor.

Ocorre que, com o aprimoramento e desenvolvimento tecnológico, o

trabalho sofreu inúmeras mudanças durante a passagem dos séculos, impondo

adaptações do trabalhador as novas tecnologias.

Essas significativas transformações nas relações de trabalho não mudaram,

somente, os modos e meios de labor, mas sim o tempo de trabalho que passou a se

alargar progressivamente, aproximando-se das jornadas vividas em meio a, já

mencionada, 1ª Revolução Industrial, trazendo à baila a necessidade,

contemporânea, de se desconectar em meio a eterna conexão das redes.

Apesar dessas alterações já estarem acontecendo a algum tempo, a

modificação do regime de trabalho presencial para o teletrabalho, como modo de

preservação de empregos em meio a pandemia, deixou latente o desrespeito ao

direito à desconexão. O excesso de informação, a necessidade de comunicação

sempre urgente, a falta de controle de jornada e o despreparo dos profissionais,

somados a flexibilização das novas normativas, alargaram o franco ataque ao lazer

e aos limites de jornada, flagelando os direitos sociais.

Nesse sentir, a presente pesquisa confirma a hipótese aventada de que há

um aumento de desproteção ao direto à desconexão, uma vez o direito ao lazer e ao

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

limite da jornada foram, também, flexibilizados em detrimento a manutenção dos

empregos.

Além disso, a pesquisa sugere a implementação do instituto da compliance

no direito do trabalho a fim de propiciar uma maior transparência e previsibilidade

na relação laboral. Dessa maneira, tanto a empresa quanto o trabalhador poderiam

monitorar, de forma efetiva o seu comportamento em relação a duração da jornada,

efetivando o Direito à Desconexão.

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1130
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

UMA REFLEXÃO SOBRE OS EFEITOS DA PANDEMIA NAS

RELAÇÕES CONTRATUAIS DE LOCAÇÃO

Celia Barbosa Abreu314


Alexander Seixas da Costa 315
João Pedro Schuab Stangari Silva316

RESUMO
A pandemia da Covid-19 causou milhares de mortes em nível planetário. Além disso,
impactou em diversas relações contratuais, dentre elas a de locação. Desta forma, este artigo
objetiva estudar os efeitos da pandemia no contrato de locação de imóveis, em virtude da
grande relevância que este contrato apresenta na sociedade, seja para constituir uma
moradia ou realizar atividade econômica. Empregar-se-á a metodologia bibliográfica, eis
que se trata de nova temática no campo doutrinário. O trabalho divide-se em três partes:
no primeiro momento, uma abordagem sobre a relevância do contrato, em seguida,
especificar-se-á o contrato de locação e, finalmente, os efeitos do Covid-19 nas relações
locatícias, ponderando a existência de locação residencial e não residencial. Defender-se-á
que um acordo inicial entre as partes e a compreensão dos princípios contratuais
representariam um possível caminho para solucionar as lides decorrentes de um
desequilíbrio contratual superveniente em razão desta pandemia.

Palavras-chave: contrato; funcionalização; equilíbrio; revisão; pandemia.

ABSTRACT
The Covid-19 pandemic caused thousands of deaths worldwide. In addition, it had an
impact on several contractual relationships, including leasing. In this way, this article aims
to study the effects of the pandemic on the real estate lease, due to the great relevance that
this contract presents in society, whether to build a house or carry out economic activity.
Bibliographic methodology will be used, since this is a new theme in the doctrinal field. The
work is divided into three parts: first, an approach on the relevance of the contract, then the

314
Pós-Doutora, Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ.
Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Direitos, Instituições e Negócios/UFF. Professora
Associada de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
celiababreu@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/8015623070536170.
315
Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense e da Faculdade Cenecista de Rio das Ostras.
Professor de história no Colégio Municipal Elza Ibrahim. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Direitos, Instituições e Negócios. E-mail: alexandermpt@yahoo.com.br. Currículo lattes:
http://lattes.cnpq.br/1342995859695951.
316
Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense. E-mail:
joaopedroschuab@gmail.com. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/9032655751013575.

1131
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

lease agreement will be specified and, finally, the effects of Covid-19 on tenancy relations,
considering the existence residential and non-residential lease. It will be argued that an
initial agreement between the parties and an understanding of contractual principles would
represent a possible way to resolve disputes arising from a supervening contractual
imbalance due to this pandemic.

Keywords: contract; functionalization; balance; review; pandemic.

INTRODUÇÃO

A pandemia da Covid-19 impactou a vida de milhares de pessoas em todo

o planeta Terra, atingindo cidadãos de diversas nacionalidades e crenças.

Infelizmente, muitas pessoas perderam a vida por conta do novo coronavírus, em

especial na realidade brasileira, em que os números só perdem para os EUA. Dentre

os diversos efeitos desta pandemia, este estudo abordará os aspectos jurídicos nos

contratos de locação.

A locação consiste em contrato oneroso pelo qual é cedido ao locatário o uso

da coisa, conforme a sua destinação, residencial ou não. Assim, consiste em

importante figura contratual que permite o desenvolvimento da pessoa; para aquele

que aluga um imóvel para morar com sua família, representa o espaço em que tem

o seu descanso; por outro lado, a locação pode servir para explorar uma atividade

econômica, e desta forma, colocar produtos no mercado e gerar empregos.

A primeira etapa deste trabalho objetiva apresentar uma visão do contrato

e sua relevância, destacando a Lei de Liberdade Econômica e os princípios

contratuais. Em seguida, faz-se uma breve análise do contrato de locação,

apontando suas espécies e por último a discussão sobre os efeitos na pandemia na

locação residencial e não residencial. A metodologia empregada foi a leitura

bibliográfica sobre questões atinentes ao tema.

1132
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1. O CONTRATO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Das lições de Orlando Gomes, é possível extrair que várias foram as causas

que contribuíram para a modificação da noção de contrato. Assim, por exemplo, o

fato de que foi desacreditada a ideologia segundo a qual a igualdade formal dos

indivíduos seria capaz de assegurar o equilíbrio entre os contratantes,

independentemente de sua condição social. Além disso, passaram a ser frequentes

os cortes sobre a liberdade de contratar e o conteúdo da relação contratual, diante

da interferência do Estado na vida econômica. Sem mencionar o surgimento de nova

técnica de contratação, visível nos contratos de massa, num fenômeno chamado de

despersonalização (GOMES, 2019, p. 7).

Estas transformações atingiram o regime legal e a interpretação do contrato,

segundo o autor:

Importantes e abundantes leis dispensaram especial proteção a


determinadas categorias de pessoas para compensar juridicamente
a debilidade da posição contratual de seus componentes e eliminar
o desequilíbrio. Desenvolveu-se uma legislação de apoio a essas
categorias, com estímulo à sua organização. Determinado a dirigir
a economia, o Estado ditou normas impondo o conteúdo de certos
contratos, proibindo a introdução de certas cláusulas, e exigindo,
para se formar, sua autorização, atribuindo a obrigação de contratar
a uma das partes potenciais e mandando inserir na relação
inteiramente disposições legais ou regulamentares (GOMES, 2019,
p. 7).

Neste cenário, apareceram figuras anômalas, tais como a do contrato, cujo

conteúdo é imperativamente alterado por lei superveniente, ou daquele em que

uma das partes foi obrigada a contratar, ou do contrato que tem fonte legal, ou

mesmo o que, embora não concluído, produz efeitos em função de mandamento

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

judicial (ex. adjudicação compulsória). Fala-se numa dissociação da relação

contratual do acordo de vontade, tal qual se dá na prorrogação legal das locações

(GOMES, 2019, p.8).

Se nos moldes clássicos a maior preocupação com os contratos dizia

respeito ao significado das normas sobre o acordo de vontades, nos moldes

contemporâneos, em que os contratos se celebram em série, “a preocupação é com

a defesa dos aderentes (contrato de adesão), mediante normas legais que proíbam

cláusulas iníquas, até porque as regras sobre a declaração de vontade e os vícios do

consentimento quase não se aplicam”. Portanto, a mais relevante consequência das

referidas transformações é “a mudança nas preocupações do legislador quanto à

rigidez do contrato” (GOMES, 2019, p.8).

1.1. A relevância do contrato

Para termos uma ideia acerca da importância dos contratos, vale a

referência à nova colocação de Orlando Gomes, ao dizer que a “vida econômica

desdobra-se através de uma imensa rede de contratos que a ordem jurídica oferece

aos sujeitos do direito para que regulem com segurança seus interesses” (GOMES,

2019, p.18). Indo além, o contrato é tido como merecedor de tutela e relevante não

só porque atende aos interesses individuais dos contratantes, porém também

“porque se vislumbra em cada contrato um fim socialmente útil que deverá ser

igualmente atendido” (SCHREIBER, 2020, p. 257).

Uma outra questão que serve para sinalizar a relevância dos contratos

decorre do fato de que, no direito civil, estes estão presentes não apenas no direito

das obrigações, mas ainda no direito da empresa, no direito das coisas, no direito

de família, bem como no direito das sucessões. Mais do que isso, “ultrapassa[m] o

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

âmbito do direito civil, sendo expressivo o número de contratos de direito público

hoje celebrado” (GONÇALVES, 2020, p. 26).

Embora visto por muitos como “o instituto mais importante de todo o

Direito Civil e do próprio Direito Privado”, tanto no Brasil quanto no Direito

Comparado, passou a ser enunciada a ocorrência de uma suposta crise dos contratos

(TARTUCE, 2020, p. 5-8). Isto porque, percebeu-se o desnivelamento econômico ao

qual o contrato é capaz de conduzir as partes, daí decorrendo a necessidade do

Estado nele intervir, num movimento denominado dirigismo contratual ou

intervenção do Estado na vida do contrato, conflitando com as noções tradicionais

da autonomia da vontade.

Com isso, ganharam extensão e intensidade as normas de ordem pública,

levando alguns juristas a anunciarem a própria morte dos contratos.

Contrariamente a isto, entretanto, identificando este movimento contratual como

uma mera fase de transformação do instituto, salienta Caio Mário da Silva Pereira:

Há, porém, um desvio de perspectiva. Não é o fim do contrato,


porém um capítulo novo de sua evolução, já que, através de sua
longa vida, tem ele passado por numerosas vicissitudes. Esta a fase
atual. Outras ainda hão de vir, sem que o jurista de hoje possa
indicar o seu rumo ou a sua tônica, se o dirigismo exacerbar-se-á
mais ainda, ou se o princípio da autonomia da vontade, como que
num movimento pendular, retomará posição antiga,
reconquistando terreno perdido (PEREIRA, 2020, p. 26-27).

Corroborando para este debate, a doutrina chama a atenção para a recente

Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) e sua tendência no sentido da volta

do liberalismo. Apesar dela, contudo, afirma seria um grave erro “aceitar e

compreender o contrato com sua estrutura clássica, concebido sob a égide do pacta

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

sunt servanda puro e simples, com a impossibilidade de revisão das cláusulas e do

seu conteúdo” (TARTUCE, 2020, p.7-8).

Afinal, como leciona Orlando Gomes e veremos a seguir, o direito

contratual se pauta inicialmente em quatro princípios, sendo eles: o da autonomia

da vontade; o do consensualismo; o da força obrigatória; o da boa-fé. Os três

primeiros podendo ser identificados como princípios tradicionais, ao passo que o

último, não obstante previsto como fonte interpretativa dos contratos mercantis no

art 131, I do Código Comercial de 1850, só ganhou relevo e novas funções

praticamente após a sua previsão no Código Civil de 2002. Ao lado da boa-fé, dois

outros princípios assumiram destaque na nova codificação civil, quais sejam o do

equilíbrio econômico do contrato e o da função social deste (GOMES, 2019, p. 21).

1.2. Os princípios contratuais

Conforme escritos de Caio Mário, o princípio da autonomia da vontade

pode genericamente ser enunciado como “a faculdade que têm as pessoas de

concluir livremente os seus contratos.” Em meio a esta estão inclusas: a faculdade

de contratar ou não; a escolha do outro contratante e o tipo de negócio a efetuar

(típico ou atípico (art 425); a liberdade de escolha do conteúdo do contrato (exceto

no contrato de adesão, arts 423 e 424, CC). Este princípio não é absoluto, devendo

observância às normas de ordem pública, além de sujeitar-se ao dirigismo

contratual, que, como antes visto, é a intervenção do Estado na economia do

contrato (PEREIRA, 2020, p. 21).

Ainda na esteira dos ensinamentos do referido civilista, sobre o princípio

do consensualismo, a seu turno, interessa afirmar que prevaleceu em todo o século

XIX e também no século XX. De acordo com este princípio, “o contrato nasce do

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consenso puro dos interessados, uma vez que é a vontade a entidade geradora.

Somente por exceção conservou algumas hipóteses de contratos reais e formais,

para cuja celebração exigiu a traditio da coisa e a observância de formalidades.” Mais

modernamente, entretanto, alguns contratos passaram a exigir maior segurança e,

por essa razão, foram atrelados ao formalismo (PEREIRA, 2020, p. 19).

Acerca do princípio da obrigatoriedade cabe escrever que significa que o

contrato obriga os contratantes, consistindo na irreversibilidade da palavra

empenhada. O ordenamento jurídico oferece a cada um a liberdade contratual, isto

é, a possibilidade de contratar ou não, e confere-lhe a liberdade de escolher os

termos da avença, de acordo com as suas preferências. “Concluída a convenção,

recebe da ordem jurídica o condão de sujeitar, em definitivo, os agentes”. Assim

sendo, “Lícito não lhes é arrependerem-se; lícito não é revogá-lo senão por

consentimento mútuo; lícito não é ao juiz alterá-lo ainda que a pretexto de tornar as

condições mais humanas para os contratantes.” Tal qual o primeiro princípio

mencionado, entretanto, não é um princípio absoluto, sujeitando-se às normas de

ordem pública (PEREIRA, 2020, p. 14).

Ultrapassados os princípios tradicionais, cumpre comentar a respeito dos

chamados novos princípios, começando pelo princípio da boa-fé. Referido

princípio, em realidade, como lembram Gustavo Tepedino et al., apareceu no

ordenamento jurídico como cláusula geral após a sua positivação no Código de

Defesa do Consumidor, onde surgiu como princípio da Política Nacional das

Relações de Consumo, integrando o rol dos direitos básicos do consumidor, bem

como aparecendo enquanto causa de nulidade de práticas abusivas. Sendo assim,

passou a impor às partes o “dever de colaborarem mutuamente para a consecução

dos fins perseguidos com a celebração do contrato”. Ademais, seguindo autores

estrangeiros, à ela foi atribuída tríplice função: (I) interpretativa (art 113); (II) função

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

restritiva do uso abusivo de direitos (art 187); função criadora de direitos (art 422).

Quanto à segunda função doutrinariamente foram criadas figuras parcelares como

venire contra factum proprium, supressio, surrectio e tu quoque (TEPEDINO; KONDER;

BANDEIRA, 2020, p.42-48).

Tepedino et al., para explicar o princípio da função social do contrato,

esclarecem que os interesses individuais dos titulares da atividade econômica

apenas são merecedores da tutela da ordem jurídica quando socialmente relevantes

Especificamente com relação à nova redação introduzida pela Lei de Liberdade

Econômica (Lei 13.874/19) ao art 421, escrevem que em nada contribuiu para a

objetivação da função social do contrato. O legislador se limitou a substituir

“liberdade de contratar” por “liberdade contratual”, suprimindo “a sua qualificação

não apenas como limite, mas como razão da liberdade de contratar”, acrescentando

“desnecessário parágrafo único em que preconiza o princípio da intervenção

mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”. A supressão, no entender dos

autores, se afigura inócua, na medida em que a funcionalização da liberdade

contratual é “decorrência da sistemática constitucional”, de forma que a função

social continuará a atuar não somente como limite externo, como também como

limite interno dessa liberdade. Criticam outrossim o parágrafo único do dispositivo,

visto que inspirado “superada concepção de liberdade exercida no vazio, sem

reconhecer que a intervenção estatal, quando cabível é requisito e não obstáculo ao

exercício da genuína liberdade.” (TEPEDINO; KONDER; BANDEIRA, 2020, p.49-

52).

No que tange ao princípio do equilíbrio contratual, dizem Tepedino et al.

que a “opção constitucional pelo objetivo de construir uma sociedade livre, justa e

solidária (art 3o, I), projeta-se, enfim, no atendimento a imperativos de justiça e

proporcionalidade no âmbito do direito contratual”. A partir desta e de outras

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

considerações, frisam que dito princípio garante a correspectividade entre as

prestações, via institutos tais como a lesão, a revisão judicial e a onerosidade

excessiva. Afora isso, o princípio funciona como relevante vetor hermenêutico em

outras hipóteses, assim como o controle de cláusulas leoninas e abusivas, a redução

equitativa da cláusula penal e outras situações não previstas pelo legislador

(TEPEDINO; KONDER; BANDEIRA, 2020, p.52-53).

2. O CONTRATO DE LOCAÇÃO

2.1. Aspectos gerais

Um dos contratos mais comuns no nosso cotidiano é a locação. Trata-se de uma

forma contratual pelo qual o locatário tem o direito de usar determinado bem, por

certo lapso temporal, mediante uma contraprestação, sendo de grande importância

quando não se tem recursos para adquirir um bem ou, ainda, não se entende

necessário adquiri-lo; basta imaginar o aluguel de um automóvel em cidade

vizinha, em passeio, a locação por temporada etc.

A locação consiste, pois, no contrato em que uma parte cede a terceiro o uso e

fruição da coisa infungível, mediante remuneração, como prevê o artigo 565 do

Código Civil (CC). Apesar do Código Civil trazer o conceito da locação e discipliná-

la do referido dispositivo até o artigo 578, importa dizer, desde logo, que a

codificação versa somente sobre a locação de coisas, ficando a locação de prédios

urbanos a cargo da Lei do Inquilinato (Lei 8245/91) e rurais do Estatuto da Terra

(Lei 4504/64).

Na locação, opera-se a transferência da posse ao locatário, que figura,

portanto, como possuidor direto do bem, e pode, portanto, defender a posse do bem

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locado pelos interditos possessórios. Os elementos essenciais da locação são: objeto,

preço, consentimento e prazo (NEVES, 2016, p. 152). O objeto deve ser devidamente

identificado, de bem inconsumível, e que, na locação do bem principal pressupõe o

acessório; o preço, que se fundamenta na contraprestação pela utilização do bem e

assim, a remuneração, designada de aluguel, se justifica tendo em vista que é

contrato oneroso; o preço, via de regra determinado, mas sendo admitida a

possibilidade de ficar determinável. Além disso, é fundamental que exista o

consentimento entre as partes envolvidas e, em relação ao prazo, deve-se atentar

que não existe locação eterna, e desta forma, as partes tem liberdade para fixar, a

qualquer momento, o termo final, e caso não exista, poderá ser extinto a qualquer

instante, de acordo com a vontade de cada contratante (NEVES, 2016, p. 153-154).

A locação é um contrato sinalagmático, que envolve obrigações tanto ao

locador, quanto ao locatário, e se, por um lado, incumbe ao locador conceder o uso

pacífico do bem para ser locado, por outro, o locatário tem o dever de pagar o

aluguel, pois caso contrário configuraria um comodato ou outro contrato atípico.

Por fim, é um contrato que, em geral, se constitui ao longo de um tempo, sendo

designado de trato sucessivo, e desta forma, sua execução se prolonga ao longo de

um tempo, pode ser ainda, de forma diferida, quando existe um hiato entre a

formação do contrato e a sua execução. Tanto no contrato de execução continuada,

quanto diferida, é possível, o que ficou verificado na situação da pandemia da

COVID-19, em que muitos locatários ficam impedidos de explorar sua atividade

comercial, e ainda, em razão do desemprego, a dificuldade em efetuar o pagamento

dos aluguéis.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

2.2. Espécies

Ao tratarmos da locação, é importante observar que seu objeto é bem amplo, e

por isto, o primeiro passo consiste numa breve apresentação de suas espécies, a fim

de que seja devidamente compreendido o tópico de nosso estudo. Neste sentido,

primeiramente assinalamos a locação de bens móveis e imóveis, e desde já,

informando ao leitor que a primeira espécie não será alvo de estudo.

Assim sendo, a primeira delimitação consiste em que o objeto deste trabalho

recairá sobre as locações de bens imóveis urbanos, o que não significa dizer que a

pandemia não tenha causado efeitos na locação de bens móveis, como por exemplo,

academias que alugaram seus aparelhos diante do fechamento de seus

estabelecimentos por conta da quarentena317. É possível apontar outros exemplos

ainda, como a locação de automóveis e de equipamentos empregados na construção

civil, que, em alguns estados foi tratada como atividade essencial, e em outros não,

seguindo a decisão do STF na ADI 6341 que reconheceu a legitimidade concorrente

dos entes federativos. Neste caso, em particular, registra-se que, nas hipóteses em

que a construção civil não foi tratada enquanto atividade essencial, fato que ensejou

as construtoras vieram a pleitear a isenção de pagamento do aluguel dos

equipamentos às respectivas locadoras sob o fundamento de caso fortuito e força

maior. Esta tese, entretanto, vem sendo refutada para defender que se trata de

onerosidade excessiva, possibilitando uma revisão do contrato, de forma amigável,

ou judicial, ou a resilição, tendo como norte a conservação do contrato, com

destaque para o dever de renegociar (PEGHINI; LEAL, 2020).

317
TEIXEIRA, Cristiane. Academias alugam equipamentos para sobreviver à crise do coronavírus. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/mpme/2020/04/academias-alugam-equipamentos-para-sobreviver-a-
crise-do-coronavirus.shtml. Acessado em: 05/08/20.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Dentro de locação de bens imóveis, é importante apontar um balizamento, no

sentido de que o estudo em questão será referente aos efeitos da pandemia na

locação de imóveis urbanos, e não os rurais, o que não significa que a pandemia não

tenha provocado efeitos em contratos agrários. Neste particular, vale relembrar que

a Lei 4504/64 rege as relações sobre os bens imóveis rurais, já a Lei 8245/91

regulamenta o uso de locação de imóveis urbanos. Recorde-se também que o critério

do que seja imóvel urbano e rural não decorre da localização do bem, e sim da sua

destinação pelo locatário, se orientada para uma atividade agrícola, ou pecuária,

será rural; ao revés, se o objetivo for exemplificativamente moradia, será urbano.

Entretanto, em algumas situações, a distinção não é tão fácil, como na situação em

que o locatário adquire o bem para residência, mas planta uma horta; nesta situação

avaliar-se-á a predominância da utilização, a fim de que seja regido pelo Estatuto

da Terra ou pela Lei do Inquilinato (SOUZA, 2017, p. 16). Ainda em relação à

distinção entre imóvel rural e urbano, ressalta a doutrina a posição de que seja

avaliada a vontade das partes conforme o princípio da boa-fé objetiva e função

social do contrato, tendo em vista que o Estatuto da Terra apresenta normas

cogentes com o propósito de proteger o trabalhador e a Lei de Locações confere

maior destaque à autonomia privada (MELO, 2019, p. 474).

Ademais, destaca-se que a própria Lei 8245/91, em seu artigo 1º, parágrafo

único, excepciona modalidades de locações que não serão regidas por esta Lei, como

por exemplo, a locação em apart-hotel. Desta forma, é possível afirmar que estamos

diante de um microssistema jurídico, que apresenta regulamentação específica, e é

dotado de grande relevância, visto que toca questões constitucionais, em específico,

o direito à moradia, que representa um direito social.

Além das locações previstas pela Lei de Locações, analisar-se-ão os efeitos da

pandemia em locações não residenciais, tendo em vista que estão diretamente

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

voltadas às atividades comerciais, que envolvem a circulação de bens, e estão

relacionadas à livre iniciativa, que também representa um direito constitucional no

âmbito da ordem econômica e social. Ainda neste aspecto, o foco será a locação em

shopping center. Por oportuno, cumpre frisar que a divisão feita neste trabalho

apresenta um cunho didático, a fim de melhor compreender o tema, sem prejuízo

de outras possíveis classificações para o estudo dos efeitos da pandemia no contrato

de locação.318

3. A COVID-19 E SEUS REFLEXOS NO CONTRATO DE LOCAÇÃO

3.1. Questões preliminares

O ano de 2020 ficará marcado na história por conta da pandemia decorrente do

novo coronavírus que atingiu o planeta Terra, causando diversos impactos na

economia mundial e milhares de mortes; o Brasil, por exemplo, ultrapassou a marca

dos 100.000 mortos em agosto, o que revela o grande potencial destrutivo deste

vírus. Além disso, a determinação de fechamento das atividades comerciais em

razão de uma política de isolamento social, a fim de diminuir, ou ao menos reduzir

a propagação do vírus, resultou no encerramento de muitos estabelecimentos

empresariais.

O contrato de locação foi também duramente atingido por conta da Covid-19:

pela falta de emprego e interrupção de atividades comerciais, a renda de muitas

pessoas diminuiu e, diante disso, surgiu a indagação a respeito da aplicabilidade de

318
Desta forma, destacamos a classificação feita por Ermiro Ferreira Neto, em live realizada no dia 15 de maio
de 2020, na palestra: Covid-19 e as soluções para os contratos de locação, no item. 5.2. Revisão à luz da
diversidade de modelos de negócio na locação A. Locação residencial B. Locação não-residencial de escritório
ou salas comerciais C. Locação não-residencial de ponto comercial D. Locação em shopping center.

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princípios contratuais, a fim de resolver a situação de grande inadimplemento.

Antes propriamente de discutir a questão principiológica, defende-se que as partes

devem, no primeiro momento, buscar um acordo a fim de que seja mantido o

contrato de locação. Por evidente, que não se está defendendo a manutenção de um

contrato a todo custo, e claro, que pode ser extinto a qualquer momento, mas não

contra a vontade do locatário e em função da pandemia. Portanto, o primeiro passo,

e neste aspecto, tal orientação deve ser aplicada a qualquer espécie de locação,

reside em verificar a viabilidade de uma autocomposição entre os contratantes,

inclusive para fugir de uma lógica orientada para o litígio.

Por força do princípio da obrigatoriedade dos contratos, o seu cumprimento é

fundamental para manter a confiança e a segurança legitimamente esperadas na

relação contratual. No entanto, em contratos de longa duração, alguns fatores

poderão interferir no equilíbrio das prestações e cabe as partes o dever de informar

e de transparência, relacionado à boa-fé objetiva e neste aspecto, esclarecer se

poderão cumprir ou não com as obrigações, apresentando um plano de pagamento,

diluindo as parcelas no futuro (TARTUCE, 2020, online).

Os argumentos empregados para que haja uma resolução ou revisão contratual

na locação diante da pandemia são os mais variados possíveis. O primeiro deles

consiste na questão do caso fortuito e força maior. A este respeito, é importante

observar que não se pode enquadrar, de forma imperativa, a Covid-19 em fortuito,

e sim verificar em cada contrato em questão, na sua individualidade, entendendo

que, tanto a extinção quanto a revisão, configuram situações que devem ser

empregadas em último caso diante a cooperação e lealdade do artigo 422 do CC e

do princípio da solidariedade social (SCHREIBER, 2020, online). Ainda sobre este

tema, tem-se que, em verdade, o fortuito representa uma exclusão da

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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responsabilidade civil, mesmo quando o devedor comete ilícito, o que não se

configura neste caso (SOUZA; SILVA, 2020, online).

Aponta-se ainda, como justificativa para a modificação contratual,

exemplificativamente, as seguintes questões: a teoria da imprevisão e onerosidade

excessiva; a impossibilidade da prestação (ainda que sem culpa da parte); a exceção

do contrato não cumprido, tanto no artigo 476, quanto no 477, todos do Código Civil

e, por fim, a frustação do fim da causa do contrato. Por outro lado, indicam-se como

elementos que justificam a manutenção contratual em tempos de pandemia o

princípio da boa-fé objetiva, a força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda),

a função social do contrato, o princípio da intervenção mínima do Estado e os

mecanismos processuais de tutela específica nas obrigações de dar e fazer.

(TARTUCE, 2020, online).

Além disso, antes de invocar qualquer fundamento para a extinção ou revisão

contratual tem se defendido o dever de renegociar. A este respeito, pondera Mello

que a recusa indevida na renegociação configura ato ilícito e que, poderia

estabelecer, por disposição legal que o dever de renegociação também configura

requisito nas ações revisionais de obrigação, além daqueles já previstos pelo artigo

330 §§ 2º e 3º do CPC (MELLO, 2020, online).

Destacam-se, ainda, dois projetos de lei que buscaram regulamentar a

situação da locação na pandemia; um de iniciativa do Senador Antonio Anastasia

(PL 1179/20) que previa a proibição de liminares em ação de despejo com

fundamento no artigo 59 da Lei 8245/91; tal preceito, todavia, foi vetado na Lei

14010/20 que instituiu o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações

jurídicas de Direito Privado (RJET). Ademais, o projeto de lei 1112/20, de autoria

dos deputados Marcelo Freixo e Túlio Gadelha, em que se prevê a suspensão dos

mandados de despejos de imóveis de locações por força do descumprimento do

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

previsto no artigo 23, I e XII da Lei de Locações, a isenção de multas por contratos

rescindidos por força maior, em virtude da pandemia, e ainda, estabelece

desconto de 30% sobre aluguel no valor de até R$ 5000,00, salvo se o locatário

mantiver uma renda mensal per capita superior a R$ 10.000,00. No artigo 5 o § 4o

deste projeto de lei, afirma-se, textualmente, que a pandemia configura caso de

força maior e o referido desconto serve para manter o equilíbrio contratual. 319 Este

projeto encontra-se apensado à outro PL 936/20 e foi publicado no Diário da

Câmara dos Deputados. 320

Sobre o referido veto do Executivo no PL 1179/2020, a mais autorizada

doutrina o aponta como equivocado, eis que a previsão de não concessão de

liminares para desocupação de imóveis, nas ações propostas a partir de 20 de março

de 2020 até 30 de outubro de 2020 (ocasião do término do RJET), ao contrário do que

se podia pensar, não resguardava somente os interesses do locatário, mas também

os do locador. Afinal, o pagamento dos alugueis e outros encargos contratuais, salvo

determinação judicial contrária, continuava a ser exigível. Além disso, o erro, entre

outras razões, notar-se-ia também porque:

... o deferimento da liminar durante o período de pandemia,


sobretudo nos contratos de locação residencial, poderá acarretar
graves e irreversíveis danos aos inquilinos: primeiro, por talvez não
ter um lugar para onde ir e firmar sua residência; e segundo, há os
riscos sanitários de ter que abandonar sua casa e ter que fazer uma
mudança neste dramático momento. Pensa-se, pois, que nessa

319
Desta forma, descrevemos o dispositivo: § 4º O desconto previsto neste artigo incide automaticamente
sobre os contratos de locação residencial firmados antes da presente Lei, caracterizando-se a pandemia do
Coronavírus como motivo de força maior e situação emergencial que justifica o presente desconto a fim de
preservar o equilíbrio da relação contratual. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=AA7FCD0E5A885E59B6748EC7
D8978F3B.proposicoesWebExterno2?codteor=1870957&filename=PL+1112/2020. Acessado em: 25/08/20.
320
BRASIL. Diário da Câmara dos Deputados. ANO LXXV Nº 102, QUINTA-FEIRA, 25 DE JUNHO DE 2020, p. 476-
477.

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ponderação deve prevalecer o direito de moradia em detrimento do


direito de propriedade.
No caso das locações empresariais a questão também é sensível e
deve ser vista sob a ótica da preservação da empresa. O despejo do
locatário certamente levará ao fim da própria atividade do locatário,
uma vez que não conseguirá, no presente estado de crise, encontrar
outro imóvel para se estabelecer, o que poderá acarretar sua
falência, contrariando, assim, inequivocamente o princípio da
preservação da empresa... (GAMA; NEVES, 2020, p. 106-107)

A proibição de concessão de liminares prevista no projeto de lei 1179/20

assegurava um interesse social, no tocante a evitar situações de pessoas que

buscassem abrigo nas ruas das cidades, aumentando ainda mais o quadro de

exclusão e desigualdade social. Tratava-se de identificar que o contrato de locação

tem repercussão para além do que foi convencionado entre as partes, mas também

um aspecto social.

A compreensão do princípio do equilíbrio contratual também pode ser

empregada na discussão sobre a repercussão da pandemia no contrato de locação,

e neste caso, defender-se-á que poderá ser empregado tanto na locação residencial

quanto na não residencial. O referido princípio objetiva concretizar prestações

justas e adequadas em todas etapas do contrato, sem eliminar ou reduzir a

liberdade contratual (ROCHA, 2018, p. 55). Ademais, este princípio se pauta por

três aspectos: a liberdade das partes, a existência de cláusulas abusivas e ainda se

o acordo teve um desequilíbrio patológico, que se origina de fato superveniente

e imprevisível (ZANETTI, 2012, p.172).

Ao analisar, efetivamente, os critérios para a aplicação do princípio do

equilíbrio contratual, Zanetti aponta que a avaliação do desequilíbrio das

prestações deve ser analisada examinando a relação jurídica em concreto e, dentre

os critérios para se aferir o desequilíbrio, ou não, a avaliação da natureza e da

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

finalidade do contrato, e desta forma, justifica-se uma intervenção judicial, a fim

de que as convenções contratuais estejam em conformidade da causa do negócio

(ZANETTI, 2012, p. 232).

Entretanto, não basta apenas observar o princípio do equilíbrio

contratual, mas verificar, em conjunto, o princípio da boa-fé objetiva; assim, ainda

que exista um desequilíbrio, há de se verificar até que ponto o locatário poderia

arcar com o custo da locação. Portanto, em contrato de locação onde o locatário

mantém preservado seu emprego, ou mesmo que desempregado, consegue

realizar atividades que permitem o pagamento, e ainda que sem trabalho possua

reservas econômicas suficientes para efetuar o pagamento dos encargos locatícios

não há que se falar em revisão. Este raciocínio também se aplica às locações não

residenciais, quando se percebe que a atividade econômica está sendo realizada

por outros meios, como no sistema de entregas (delivery), ou quando a empresa

tem condições de arcar com o custo. Neste caso, o ônus da prova será do locatário:

pelo dever anexo de lealdade, deverá provar que, para além do desequilíbrio, não

tem condições de arcar com o valor do aluguel sem prejuízo de seu sustento ou

da sua atividade econômica.

3.2. Reflexos da Covid-19 na Locação residencial e não residencial

Em relação às locações residenciais, de um lado, tem-se em vista que sua

finalidade é assegurar a moradia. Não se pode, de outro, alegar simplesmente o não

pagamento dos aluguéis, eis que em muitos casos o locador depende deles para seu

sustento e de sua família. Assim, um possível caminho é que os contratantes façam

uma avaliação do provável tempo de recuperação da condição anterior

(considerando até mesmo que a flexibilização das regras de confinamento não

significa uma retomada da economia) e estabeleçam um plano individualizado de

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

pagamentos e diluição de eventual desconto concedido, refutando a ideia de um

desconto único para toda e qualquer locação residencial (LOBO; DIAS, 2020, p.121).

Aduza-se também que se entende na doutrina que o desemprego do locatário

ou a hipótese de redução da jornada de trabalho com redução de remuneração o

que se tem é a ocorrência de questão subjetiva ao devedor. Logo, nem um caso, nem

o outro não dá causa por si só ao não pagamento ou redução de aluguéis na locação

para moradia, pois não altera a base objetiva do negócio jurídico, não atingindo o

sinalagma contratual (SIMÃO, 2020, online).

Gama e Neves, por sua vez, afirmam que inexiste uma resposta certa ou

absoluta sobre esta questão. Assim, exemplificam ter sido salutar a não manutenção,

no PL 1179/20, da regra que dava ao locatário o direito potestativo de suspender o

pagamento dos aluguéis. Segundo os autores, a situação deve ser analisada de

forma casuísta, consideradas as circunstâncias particulares de cada caso concreto,

ficando o Judiciário incumbido de, em vista das provas produzidas, decidir

favoravelmente ou não pela revisão (GAMA; NEVES, 2020, p. 96).

Afirmam ainda os referidos autores que a suspensão é medida drástica,

somente admissível se comprovada a total impossibilidade de pagamento dos

aluguéis pelo locatário, bem como a possibilidade de subsistência do locador e de

sua família, ainda que sem o recebimento da contraprestação. Mas, também se

comprovado que o locatário terá condições de adimplir com suas obrigações

futuramente. Outra medida lhes parece, porém, melhor, qual seja a da redução

proporcional do valor do aluguel “em patamares que seja possível assegurar,

minimamente, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato”. Todavia, o

“percentual dessa redução, deverá ser observado, no caso concreto, qual é o

montante mais justo e adequado em cada situação”. Mas, se, de todo modo, o

pagamento dos aluguéis, mesmo cumulativamente para o futuro, não for possível,

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

embora drástica, a medida cabível será a da resolução por onerosidade excessiva,

não se podendo, porém, exigir do locatário o pagamento da multa por devolução

antecipada do imóvel (GAMA; NEVES, 2020, p. 97-98).

No que se refere à locação não-residencial, o seu fundamento é de outra

natureza, pois aqui, em regra, os riscos do negócio são atribuídos ao locatário, que

irá explorar uma atividade e seu sucesso ou não dependerá apenas do seu

desempenho pessoal, mas de outros fatores, como por exemplo, a própria

localização do estabelecimento. A locação não-residencial pode ser identificada em

diversos casos, mas para este trabalho restringir-se-á ao caso da locação em shopping

center.

A este respeito, sustenta parte da doutrina que o fechamento do

empreendimento por força de determinação do Estado implica em que o lojista não

deveria pagar o total dos aluguéis e outras despesas, durante o momento em que o

local está fechado ao público, em virtude de uma distribuição ilegal e desleal de

riscos, em conflito ao que prescreve o artigo 421-A, II do Código Civil, além de

ofender o sinalagma contratual, boa-fé objetiva e o próprio artigo 22, II da Lei

8245/91. Entretanto, pondera-se que, no caso dos estabelecimentos dos shoppings

que estejam de alguma forma realizando suas atividades, como por ex., os serviços

de entrega de alimentos e mercadorias por delivery, tal raciocínio não prospera, eis

que a situação se inverte, pois é possível que neste caso os lucros do lojista sejam até

superiores ao tempo em que não havia sido determinada a política de isolamento

social (AZEVEDO, 2020, online).

Argumenta-se ainda na doutrina que a situação da pandemia provocou

uma situação similar à deterioração inimputável da coisa, prevista nos termos do

artigo 567 do Código Civil. Esta, entretanto, por se tratar de uma deterioração

temporária, em princípio, não ensejaria a resolução contratual. Contudo, isto seria

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

possível quando tal quadro se mantém ao longo de um tempo, ao ponto de não

restar mais interesse no negócio, por parte do locatário. Diante do quadro de

deterioração das faculdades deste último, tem-se que seja autorizado a pleitear a

redução proporcional do valor do aluguel, ainda que não passado o prazo de 03

anos previsto no artigo 19 da Lei de Locações, visto que aos contratos de locação

comercial se aplica subsidiariamente o Código Civil. O pagamento de algum valor

de aluguel, todavia, é obrigatório em virtude do locatário permanecer com a posse

do imóvel e dos gastos que permanecem com a manutenção do shopping center,

como por exemplo a segurança e limpeza (TERRA, 2020, online).

Outra tese na doutrina é a de que o contrato de locação de shopping center é

atípico misto, pois o sinalagma contratual não se resume apenas à transmissão da

posse do bem ao locatário, seguida do pagamento do aluguel, mas também a

manutenção do próprio shopping e despesas arcadas pelo empreendedor, que

devem ser rateadas pela taxa condominial. Desta maneira, defende-se que, diante

da pandemia atual, cabe o pagamento de um aluguel mínimo para que não haja

uma transferência de riscos para o empreendedor, sendo possível, todavia, em

situações pontuais, o diferimento do pagamento deste aluguel. (SIMÃO, 2020,

online).

Ainda em relação à locação em shopping center, recebem destaque o fundo de

promoção e as despesas condominiais. Em relação àquele, entende-se no sentido

da possibilidade de diferimento do seu pagamento parcial ou sua redução; no

entanto, não cabendo falar em qualquer forma de não pagamento ou postergação

integral, pois corresponde a despesas de caráter obrigatório, necessárias à

manutenção do shopping center. Relativamente às despesas condominiais, com ou

sem pandemia, compreende-se não se diferem, não se adiam, nem se protraem,

sob pena do empreendedor atrasar o salário de seus empregados, não pagar a

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

água e a luz das áreas comuns, ou mesmo, ficar sem segurança (SIMÃO, 2020,

online).

Gama e Neves escrevem que o fechamento das lojas em shopping centers

por determinação do Poder Público configura fato do príncipe, do qual resultam

efeitos dos quais os lojistas empresários não podem se desvencilhar, quedando

atingidos os contratos de locação de imóveis não-residenciais sitos dentro destes

centros empresariais. Para esta situação, entendem os autores que a suspensão do

pagamento dos aluguéis não se afigura como a medida jurídica e economicamente

mais adequada. Em lugar disso, sustentam que o caminho mais adequado passa

pela necessidade de negociação entre as partes, por meio da qual os empresários

“estudarão medidas que mantenham o equilíbrio da relação, sem que um deles

tenha que suportar, sozinho, todos os ônus”. Se, por outro lado, as partes não

chegarem a um consenso, afirmam os autores que só restará recorrer à adoção das

medidas judiciais para a revisão do contrato, com apoio na teoria da imprevisão

ou da onerosidade excessiva, tendo em vista a “inequívoca afetação das medidas

governamentais sobre as bases econômicas dos contratos”. Ao final, contudo, se

verificada que, em virtude do desequilíbrio econômico das prestações, ocorre a

impossibilidade de cumprimento do contrato, a única alternativa restante será a

resolução por onerosidade excessiva, não respondendo o locatário por perdas e

danos e encargos oriundos da extinção contratual (GAMA; NEVES, 2020, p. 98-

103).

CONCLUSÃO

Não se tem uma única resposta para combater todos os malefícios

provocados pela pandemia. Não restam dúvidas de que, do ponto de vista do Poder

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Público, será necessário e urgente adotar politicas que assegurem a todas as pessoas

o direito a uma higienização adequada. Por outro lado, os estabelecimentos

comerciais deverão estar mais atentos à importância aos cuidados higiênicos na

prestação de seus serviços, até para que prestem um serviço adequado.

No que tange ao contrato de locação, em virtude de sua relevância na sociedade,

é preciso buscar “saídas” para o efeito da Covid-19 nas relações locatícias. Assim

sendo, em princípio, acreditamos que o dever de renegociar seja o primeiro passo

para solucionar o problema. Ambos contratantes deveriam dialogar e, pautados

pela função social do contrato e pela boa-fé objetiva, verificar o que seria possível e

viável realizar, a fim de manter o contrato, desde que, efetivamente, seja do interesse

de ambos, ponderando ainda a aplicabilidade do princípio do equilíbrio contratual,

em virtude da desproporcionalidade superveniente das prestações. Na

eventualidade de não haver um consenso, a situação será levada ao Judiciário que,

casuisticamente, deverá encontrar a melhor solução para o caso concreto.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

INSANIDADE MENTAL E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS

HUMANOS: REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO

Sarah Borges Vasconcelos321


Karla de Souza Oliveira322
Mariane Morato Fonseca Stival323

RESUMO
O presente artigo tem por objetivo falar a respeito da insanidade mental e sua relação com
os direitos humanos, sob o enfoque do ordenamento jurídico brasileiro. A metodologia
utilizada foi a compilação bibliográfica, com a exposição de diversas obras e artigos
científicos sobre o tema. A pesquisa divide-se didaticamente em dois tópicos. O primeiro
tópico intitula-se saúde mental e os direitos humanos, discute acerca da classificação dos
direitos humanos, as diferenças entre direitos humanos e direitos fundamentais, a evolução
histórica normativa da doença mental e a análise da Lei nº 10.216/2001. Em seguida, o
segundo tópico denominado internação e seus reflexos na aplicação prática, ocupa-se da
contemplação no que tange aos manicômios judiciários, a recuperação do doente mental,
sua reinserção na sociedade e no tocante ao movimento da Luta Antimanicomial. Por fim,
concluir a relevância desse tema tanto para o mundo jurídico bem como para a sociedade
no geral.

Palavras-chave: Insanidade Mental; Direitos Humanos; Saúde Mental; Manicômios; Luta


Antimanicomial.

321
Bacharelanda do curso de Direito pelo Centro Universitário UniEvangélica. E-mail:
sarahbborgesvasconcelos@hotmail.com
322
Mestre no Programa stricto senso em Ciências Ambientais (UniEvangélica). Professora do Curso de Direito
da UniEvangélica e Católica de Anápolis. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Direito da UniEvangélica –
NPDU e orientadora do NTC. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Goiás – UFG
e em Ciências Penais pela UNIDERP. Advogada. E-mail: karla.oliveira@docente.unievangelica.edu.br.
http://lattes.cnpq.br/0805678957370865.
³ Mariane Morato Fonseca Stival.
323
Doutora em Direito pelo Centro Universitário de Brasília e Universidade de Paris (PhD). Pós Doutora.
Professora na Unievangélica. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Universidade
de São Paulo-USP. Membro da Academia Brasileira de Direito Internacional. E-mail:
marianemoratostival@hotmail.com. http://lattes.cnpq.br/8426566355669182.

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

ABSTRACT
This article aims to talk about mental insanity and your relation to human rights, under the
focus of the Brazilian legal system. The methodology used was the bibliographic
compilation, with the exhibition of several works and scientific articles on the subject. The
work is didactically divided into two chapters. The first chapter is entitled mental health
and human rights, discusses the classification of human rights, the differences between
human rights and fundamental rights, the historical normative evolution of mental illness
and the analysis of Law nº. 10.216/2001. Then, the second chapter, called hospitalization
and its effects on practical application, deals with contemplation with regard to judicial
asylums, the recovery of the mentally ill, their reintegration into society and the movement
of the Anti-Asylum Fight. Finally, conclude the relevance of this theme both for the legal
world as well as for society in general.

Keywords: Mental Insanity; Human Rights; Mental Health; Asylums; Anti-Asylum Fight.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como objetivo central analisar a insanidade mental

e sua relação com os direitos humanos. Além disso, discutir a respeito dos reflexos

deste instituto perante o ordenamento jurídico brasileiro. Traz à luz a problemática

acerca da inércia quanto ao debate desse tema e quanto aos tratamentos e reinserção

das pessoas portadoras de deficiência na sociedade.

Merece destaque a metodologia qualitativa utilizada para essa pesquisa.

Além da compilação bibliográfica e o uso de artigos científicos acerca da temática.

Verificou-se a imprescindibilidade de dedicar-se a outras áreas do conhecimento,

como a psicologia e psiquiatria. Imergindo-se nas ciências biológicas e

comportamentais, trouxe uma maior compreensão sobre o tema.

O primeiro tópico desta pesquisa preocupa-se em relacionar a saúde mental

com os direitos humanos e observar seu caráter inviolável. Primeiramente, busca

conceituar e classificar os direitos humanos como um todo, bem como diferenciar

direitos humanos de direitos fundamentais, termos que erroneamente são vistos

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

como meros sinônimos. Em seguida, discorrer acerca da evolução histórica das

normas referentes à esse grupo de pessoas. Em conclusão, refletir sobre a Lei nº

10.216/2001 que trata especificamente dos direitos dos portadores de doenças

mentais.

O segundo e último tópico, dedica-se a relatar como funciona a internação

dos doentes mentais e quais são seus efeitos práticos. Primeiramente, faz-se

necessário aprofundar-se no que tange aos manicômios judiciários. Em seguida,

verifica-se como se dá a recuperação do doente mental e discute-se a respeito de sua

volta à sociedade. E, por último, merece destaque o estudo quanto ao Movimento

Antimanicomial, símbolo da Reforma Psiquiátrica no Brasil.

Vale ressaltar que esse conteúdo possui relevância do âmbito social, cultural

e político. Socialmente, o valor do tema encontra-se no que tange a preocupação de

resguardar uma parcela da sociedade que reside em esquecimento. Ainda hoje,

existe a cultura de segregação dos doentes mentais e, tratar cada vez mais sobre esse

assunto, diminuiria essa perpetuação. E, por fim, sob o enfoque político, a pesquisa

visa uma maior participação estatal por intermédio de políticas públicas.

I- SAÚDE MENTAL E OS DIREITOS HUMANOS

1.1 Classificação dos direitos humanos

Os direitos humanos são classificados como direitos básicos que devem ser

garantidos a todos. Entretanto, apesar de serem considerados direitos de todos os

indivíduos, houve um desenvolvimento progressivo para que fossem considerados

invioláveis. Desde a Antiguidade até os dias atuais, houve a preocupação em

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

positivar e garantir o cumprimento desses direitos. Desta forma, cabe ressaltar a

evolução histórica dos direitos humanos.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), “direitos humanos são

garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou

omissões dos governos que atentem contra a dignidade humana”. Os direitos

humanos são direitos naturais, portanto devem ser assegurados a todo e qualquer

indivíduo. Também consistem em direitos universais, sendo assim não há critérios

para sua titularidade, estendendo-se a todos, independentemente da cor, raça, etnia,

orientação sexual ou posicionamento político (ONU,1948, online).

Tratando-se de direitos básicos do homem, os direitos humanos são

produtos de uma evolução histórica que se adaptava às necessidades específicas de

cada época. Durante todo percurso da humanidade houve a preocupação em

proteger os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, a fim de resguardar

os homens de todo abuso cometido pelo poder do Estado. Portanto, a Declaração

Universal dos Direitos Humanos em vigor atualmente sofreu várias influências ao

longo da história.

Na Antiguidade não havia um conjunto de normas que regulasse a

convivência entre os homens, então cada pessoa protegia seus bens e seus direitos

da forma como lhe eram possíveis. Como uma civilização nem sempre tende a

conviver em perfeita harmonia, logo surgiram conflitos e também a impossibilidade

de controlar todos os danos causados. Foi assim que houve a necessidade de

elaborar regras gerais que disciplinavam as condutas dos indivíduos. Dessa forma,

foi criado a Lei das XII Tábuas, conhecido como o Código de Hamurabi,

inicialmente recebeu esse nome por ter sido esculpida em doze tábuas de madeira

e expostas diante de todo povo romano (LIMA, 2015).

1160
Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Nota-se que o Código de Hamurabi apesar de positivar os direitos dos

homens, estes ainda estavam sujeitos a vontade de um soberano. Havia a

supremacia daquele que detinha o poder, inclusive em relação a criação e efetivação

dos direitos humanos. O soberano não estava submetido ao cumprimento das leis

que ele mesmo havia elaborado. Surgiu, consequentemente, a necessidade de

limitar os poderes do soberano em relação aos direitos humanos.

Afirma-se que, “foi na Idade Média, em 1215 o primeiro avanço para limitar

o poder de um soberano sobre a população”. O rei João da Inglaterra havia violado

uma série de leis e costumes presentes no país, sendo assim seus súditos o forçaram

a assinar a Carta Magna. Nela estava previsto o direito da igreja estar livre da

influência do governo, o direito à propriedade privada, a proteção contra a cobrança

de impostos abusivos, o princípio do devido processo legal, o princípio da boa-fé e

a igualdade de todos perante a lei. É considerado um documento de grande

importância na história da democracia e na luta para preservar os direitos humanos

(ALMEIDA; APOLINARIO, 2009, p. 84).

Igualmente na Inglaterra houve o registro da Declaração de Direitos de

1689, o Bill of Rights, a petição de direitos. Foi um documento elaborado pelo

parlamento inglês e imposta aos soberanos, declarava as liberdades civis dos

súditos e impunha um controle sobre as atitudes dos reis.

Desse modo, é visto como um dos pilares do sistema constitucional do

Reino Unido. Trazia em seu conteúdo quatro principais garantias:

Nenhum tributo poderia ser cobrado sem o consentimento do


parlamento; nenhum súdito poderia sem encarcerado sem motivo
justificado; nenhum soldado poderia ser aquartelado nas casas dos
cidadãos; a lei marcial não poderia ser usada em tempos de paz
(LIMA, 2015, online).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A próxima carta dos direitos humanos teve sua origem em meio a

Revolução Americana. As treze colônias dos Estados Unidos eram subordinadas a

Grã Bretanha, entretanto o governo britânico se afundou em grandes dívidas. O

parlamento inglês aprovou uma série de medidas para aumentar a receita fiscal das

colônias, gerando uma revolta no povo americano. Os representantes das treze

colônias concordavam que os impostos cobrados estavam sendo abusivos e

decidiram por tornarem-se independentes da Grã-Bretanha. Para oficializar esse ato

foi feito a Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776, por Thomas

Jefferson (PIOVESAN, 2006).

Após a independência dos Estados Unidos houve a necessidade de elaborar

uma constituição. “Foi criada em 1787, sendo considerada a primeira constituição

nacional ainda em vigor, afirmando-se como um documento de referência em todo

mundo ocidental”. Dentre os direitos elencados na constituição, destaca-se a

limitação dos poderes do governo a fim de proteger os direitos dos cidadãos, a

declaração da liberdade de expressão, de escolha religiosa, direito à liberdade, à

vida, à propriedade privada e o impedimento de castigos cruéis (LEITE, 2014, p.

147).

E por fim, a última carta de declaração dos direitos humanos anterior a atual

é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Surgiu na França após a

Revolução Francesa que aboliu a monarquia absolutista e estabeleceu a república

francesa. A declaração afirma que os direitos humanos são direitos naturais e que

sua limitação é a não violação do direito de outro homem. Dessa forma, enxerga a

lei como uma expressão de vontade geral, que tem como objetivo promover a

igualdade de direitos (PIOVESAN, 2006).

Com o final da Segunda Guerra Mundial, foi criada a Organização das

Nações Unidas (ONU), cujo principal objetivo seria a manutenção da paz entre os

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

países e também prevenir futuras guerras. “Em 1948 foi elaborada a Declaração dos

Direitos Humanos, por representantes de diferentes regiões do mundo, e foi

traduzida pra mais de quinhentos idiomas”. Tornou-se uma inspiração para criação

de constituições de Estados e democracias recentes. Estabelece a proteção dos

direitos humanos em âmbito universal e internacional (LEITE, 2014).

Portanto, percebe-se ao longo da história o esforço contra a discriminação e

a opressão. A positivação dos direitos humanos é uma forma de proteger direitos

básicos inerentes ao homem. Tem como objetivo promover um ideal de paz e justiça,

impedindo que os direitos fundamentais sejam desrespeitados e garantindo a

supremacia dos direitos humanos em relação ao poder do Estado e de todos os

governantes.

1.2 Diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais

Conceituar direitos humanos e direitos fundamentais exige certa reflexão.

É comum definí-los como sinônimos, mas na realidade são conceitos

complementares. Sob o ponto de vista geral, ambos estão relacionados ao conjunto

de normas que visam a proteção da dignidade da pessoa humana. Em relação a

distinção desses dois institutos é possível destacar a fonte pela qual emanam e

também a forma como procede a sua titularidade.

Direitos humanos são aqueles inerentes à pessoa humana, não importando

sua raça, nacionalidade, gênero, crença ou orientação sexual. Sua origem tem berço

na Antiguidade, onde por meio da vida em sociedade foi observado a necessidade

de proteger os direitos básicos do ser humano. Tratando-se de direitos básicos são,

portanto, direitos universais, intransferíveis e inalienáveis. Todos têm a titularidade

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

desses direitos, sendo imprescindível a sua proteção. De acordo com Joaquin

Herrera Flores:

Constituem algo mais que o conjunto de normais formais que os


reconhecem ou os garantem a um nível nacional ou internacional,
formando parte da tendência humana ancestral por construir e
assegurar as condições sociais, políticas, econômicas e culturais que
permitam aos seres humanos perseverar na luta por dignidade
(2005, p. 89).

Os direitos humanos precisam de uma proteção universal para evitar

qualquer violação por parte dos Estados, cuja jurisdição fica limitada à esfera

internacional. Uma vez desrespeitados os direitos humanos, o Estado poderá

responsabilizar-se internacionalmente. Logo, qualquer indivíduo pode reivindicar

direito violado cuja garantia esteja expressa em tratado internacional assinado pelo

Estado em que vive, não sendo preciso nenhum outro requisito. É indispensável a

supremacia dos direitos humanos diante de qualquer controle, abandono ou abuso

estatal, visto que devem ser garantidos acima de qualquer coisa (PIOVESAN, 2006).

Em vista disso, a sua titularidade não prevê requisitos, todas as pessoas são

titulares dos direitos humanos. Não há, portanto, uma relativização, são

considerados absolutos e sua garantia e proteção também devem ser absolutas. Em

relação a sua fonte, eles emanam da Declaração dos Direitos Humanos elaborada

pela Organização das Nações Humanas (ONU). Sendo assim, estão firmados em

tratados internacionais, que atingem a todos os países-membros que prestam um

compromisso para protegê-los (BOBBIO, 1992).

Em contrapartida, os direitos fundamentais são aqueles positivados em

Cartas Magnas, sendo protegidos pela esfera interna de cada Estado. São direitos

garantidos e limitados à vigência da norma constituinte, podendo ser prescritíveis.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

A proteção é a encargo do próprio Estado que deve repreender qualquer desvio dos

ordenamentos previstos em suas Constituições. Os direitos fundamentais

compreendem a materialização dos direitos humanos em cada país (MORAES,

2003).

Isto posto, os direitos fundamentais têm como fonte a norma constitucional

de cada país. São direitos humanos positivados por cada Carta Magna constituída.

Sendo assim, os titulares são os cidadãos de cada país onde a constituição encontra-

se em vigência, sendo dever do Estado garantir o cumprimento dos direitos

fundamentais. À vista disso, segue o entendimento de Valério de Oliveira Mazzuoli

em relação a diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais:

No que tange à proteção dos direitos das pessoas, tem-se que os


direitos humanos (internacionais) são mais amplos que os direitos
fundamentais (internos). Estes últimos, sendo positivados nos
ordenamentos jurídicos internos, não têm um campo de aplicação
tão extenso quanto o dos direitos humanos, ainda mais quando se
leva em conta que nem todos os direitos fundamentais previstos nos
textos constitucionais contemporâneos são exercitáveis por todas as
pessoas indistintamente (2014, p. 245).

Portanto, fica evidente que direitos humanos e direitos fundamentais

possuem suas diferenças. Direitos humanos são direitos básicos, considerados

invioláveis e garantidos a todos os indivíduos em âmbito internacional. Em

contrapartida, direitos fundamentais são mais específicos e previstos na norma

constitucional de cada país, possuem proteção interna e são restritos aos seus

habitantes. Todavia, apesar de existirem diferenças entre eles, ambos devem ser

protegidos e assegurados aos cidadãos.

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

1.3 Evolução histórica normativa

Faz-se necessário relatar a evolução legislativa dos direitos dos doentes

mentais uma vez que se trata de direitos humanos fundamentais, porém nem

sempre observados e pontuados na história brasileira. O objetivo portanto, além da

imersão no conhecimento do ordenamento jurídico, é também uma análise crítica

acerca do abandono estatal em relação a esse grupo minoritário de pessoas.

O primeiro registro legislativo realizado no Brasil foi feito por João Carlos

Teixeira Brandão. “Principal figura da psiquiatria inicial brasileira e responsável

pela primeira lei abrangente da assistência aos alienados, o Decreto nº 1.132, de 22

de dezembro de 1903”. O anseio do legislador era colocar a doença mental em pauta

no Estado, para que os acalentados dessa doença pudessem receber a atenção que

tanto precisavam. Buscava não só a assistência, mas também a proteção individual

dessas pessoas, de suas liberdades, patrimônios e direitos. Desta forma, fica

evidente a semelhança entre esta lei e a vigente nos dias atuais, ambas com o caráter

protecionista e com foco na garantia dos direitos fundamentais (BOBBIO, 1992).

Após a Lei Teixeira Brandão destaca-se um período de maior intervenção

estatal no que concerne à saúde mental da população. O marco legislativo foi o

Decreto nº 3.987, de 2 de janeiro de 1920. Por meio deste decreto foi criado o

Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), subordinado ao ministro da

Justiça e Negócios Interiores. Com o surgimento deste departamento o Estado

passou a ter o direito de intervir sobre a sociedade para formatar suas ações

sanitárias, possibilitando inclusive a intervenção policial. A partir de então, a

preocupação estatal com objetivos de higiene e precaução passaram a sobrepor-se

aos direitos individuais (VENTURA, 2012).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Com o fim da Segunda Guerra Mundial houveram mudanças no âmbito

político e social. O Brasil começou a viver um período de abertura política e

otimismo institucional, entretanto houve uma redução da autonomia legislativa da

saúde mental. Não há, neste período, nenhuma norma jurídica específica de saúde

mental, seja em termos de assistência ou de proteção aos indivíduos portadores de

enfermidades mentais. Mesmo com uma menor autonomia jurídica, a progressão

da saúde mental não foi paralisada. O registro legislativo desta época foi o Decreto

nº 49.974, de 21 de janeiro de 1961. Sendo este o decreto que regulamentou o Código

Nacional de Saúde (COSTA, 2007).

Por volta de 1970, o contexto histórico brasileiro era de combate ao Estado

totalitário. No âmbito da saúde, surgiram críticas às políticas de saúde do país, o

que deu início ao movimento da Reforma Sanitária. Esta buscava o enfrentamento

da questão da saúde em todas as suas dimensões. Ao longo desse processo,

começaram a surgir denúncias contra o abandono, as violências e maus-tratos a que

estavam submetidos os pacientes internados nos hospitais psiquiátricos. Em 1978,

formou-se o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Sendo que

mais tarde se transformaria no movimento da Luta Antimanicomial, o mais

importante movimento social pela Reforma Psiquiátrica (VENTURA, 2012).

As Constituições brasileiras anteriores não fizeram referência à saúde

mental ou aos direitos dos portadores das enfermidades mentais. Somente com a

Constituição de 1988 que o tema recebeu seu espaço na Carta Magna. Com a

inserção do direito à saúde na Constituição, configurou-se como um direito

fundamental. A seção II do Título VIII, da ordem social, é dedicado à saúde,

englobando do artigo 196 ao 200. A Constituição Federal de 1988 também classificou

o direito à saúde como direito social em seu artigo 6º:

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,


a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988, online).
Com a previsão constitucional a saúde mental passou a ser um tema

discutido. Ao passo que os direitos dos enfermos mentais fossem desrespeitados,

surgia uma maior cobrança quanto ao Estado. As pessoas buscavam por

tratamentos dignos, a inclusão do doente mental na sociedade e também uma

abordagem sem discriminação e preconceito. Esse contexto deu início ao anseio por

uma reforma psiquiátrica, que tinha como objetivo a humanização dos tratamentos

aos doentes mentais, principalmente a substituição da internação manicomial por

outras medidas que não restringissem a liberdade do doente (BRITO, 2014).

Um dos símbolos deste momento histórico foi o Projeto de Lei nº 3.657/89,

apresentado pelo deputado Paulo Delgado. O projeto contava com três artigos, cujo

conteúdo era deter a expansão dos leitos manicomiais, promover um novo tipo de

cuidado, criar uma nova rede de serviços, e proporcionar o fim das internações

anônimas. Porém, o referido projeto de lei enfrentou dificuldades no Senado

Federal, tendo sido aprovado somente em 2001. Apesar disso, após a apresentação

do projeto em 1989, houve uma intensificação da discussão sobre o tema em todo o

país. Desta forma, suscitou a elaboração e aprovação de leis estaduais que tratavam

sobre o assunto, além de portarias por parte do Ministério da Saúde e uma resolução

acerca da proteção dos doentes mentais pelo Conselho Federal de Medicina (BRITO,

2004).

O Projeto de Lei de 1989 passou por mudanças para ser aprovado. A maior

delas é a manutenção do modelo hospitalar, extinguindo totalmente seu caráter

antimanicomial. O projeto então passou a ser denominado Lei nº 10.216, que entrou

em vigor em 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde

mental. Essa lei federal representa um avanço para o processo da Reforma

Psiquiátrica e para o reconhecimento dos portadores de transtornos mentais como

cidadãos de direitos (DELMANTO, 2010).

Sendo assim, é notório o abandono legislativo quanto ao tema abordado. As

Constituições Federais, um instrumento tão importante da lei, antes de 1988 sequer

mencionaram o direito à saúde mental. E mesmo com todo esforço dos legisladores

para criação de uma lei específica que amparasse os doentes mentais, somente em

2001 que o objetivo fora alcançado. Portanto, é de extrema importância a abordagem

histórica legislativa para que se entenda a luta a respeito da consolidação e garantia

dos direitos das pessoas portadoras de enfermidade mental.

1.4 Análise da Lei nº 10.216/2001

A Lei supra é considerada um marco para o ordenamento jurídico

brasileiro. É conhecida como a lei da reforma psiquiátrica porque em virtude dela

houveram grandes mudanças no campo da saúde mental, bem como a proteção

específica dos direitos dos portadores de doenças mentais. Após sua entrada em

vigor, houve uma maior preocupação quanto ao cuidado com o bem-estar psíquico.

Portanto, tornou-se um assunto difundido entre as várias áreas da saúde, campos

jurídicos e entre a população em geral.

O maior marco a ser creditado à essa lei foi a necessidade de preservar a

dignidade humana dos enfermos mentais. Reconheceu os doentes mentais como

cidadãos, procurou elencar todos os seus direitos e prerrogativas, devendo estes

serem protegidos e resguardados. Trouxe também a responsabilização do Estado

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

para desenvolver políticas públicas que atendam esses doentes, bem como a devida

participação da família e da sociedade (BRITO, 2014).

Além da ênfase pessoal dos doentes mentais, também vale ressaltar a

atenção imposta quanto aos tratamentos destinados a essas enfermidades. Buscou

trazer limitações para a internação psiquiátrica que até então era vista como o único

tratamento possível, e com a nova lei tornou-se uma opção apenas quando todos os

recursos extra-hospitalares estiverem sido esgotados. Da mesma forma, houve o

cuidado em determinar que os tratamentos devem visar a reinserção do doente na

família, no trabalho e na comunidade.

A lei regulamentou direitos e práticas que eram de extrema necessidade e

igualmente apresentou inovações no campo da saúde mental. Primeiramente,

elencou outras medidas de tratamento alternativas a internação. As mais

reconhecidas são as residências terapêuticas, cujo objetivo é a promoção da saúde

mental sem intervenções invasivas e de forma natural. Houve a criação dos CAPS

que são os centros de atenção psicossocial, que servem como refúgio para aqueles

que não sabem onde procurar atendimento psiquiátrico (VENTURA, 2012).

Outra mudança envolve o aperfeiçoamento das internações, que devem

ser encaradas como última instância e que serão submetidas ao controle dessa lei.

Foi vedado a internação de doentes mentais em estabelecimentos que não possuem

recursos para garantir a preservação de seus direitos, como por exemplo os asilos.

Do mesmo modo que tornou-se imprescindível a assistência integral aos portadores

de doenças mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos,

ocupacionais e de lazer (BRASIL, 2001).

E por fim, a última renovação promovida por essa lei encontra-se na

finalidade principal e permanente do tratamento, a reinserção social do doente

mental em seu meio. É garantido a todos os portadores de doença mental

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

informações completas sobre sua enfermidade e tratamento, desta forma

conseguem entender a importância do cuidado da saúde mental. Prevê a

participação da família e da população em seu tratamento com o objetivo de

garantir o acolhimento do doente mental na sociedade.

Deste modo, a lei da reforma psiquiátrica realmente foi palco de grandes

transformações no âmbito da saúde mental e na vida de todos os portadores de

doenças mentais. Uma vez reconhecido o doente mental como cidadão de direitos,

contribui para que seja extinto o entendimento de segregação que os cercam.

Portanto, faz-se necessário analisar essa lei, visto que trouxe grandes mudanças

para o ordenamento jurídico bem como para a vida de milhares de pessoas

excluídas ao longo dos anos.

II- INTERNAÇÃO E SEUS REFLEXOS NA APLICAÇÃO PRÁTICA

2.1 Recuperação do doente mental e sua reinserção na sociedade

O objetivo central da internação do doente mental nos hospitais

psiquiátricos deveria ser sua recuperação e possibilidade de volta a sociedade.

Todavia, será visto que esse objetivo caiu em esquecimento, dando lugar à

tratamentos desumanos e considerados mais práticos. A partir do momento em que

a vida humana é colocada em depreciação, desperta em outras pessoas o sentimento

revigorante por mudanças. Foi exatamente isso que aconteceu com a evolução do

tratamento psiquiátrico. As novas formas de recuperação do doente mental e anseio

pela sua reinserção no convívio social, trouxeram consigo o início da revolução pela

reforma psiquiátrica.

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Desde o surgimento do primeiro hospital psiquiátrico, o hospital de Dom

Pedro II, no Rio de Janeiro, ficava evidente o caráter hediondo dos tratamentos.

Medidas como eletrochoques, camisas de força, isolamento e até lobotomias eram

utilizadas de forma habitual entre os pacientes. Não havia uma divisão entre eles

por tipo de enfermidade, muito menos por sexo dos internos. Durante os primeiros

meses de funcionamento, houveram muitas mortes devido as condições insalubres

e precárias dos estabelecimentos que abrigavam os doentes mentais. Surgiram

denúncias contra essas condições pelos membros da sociedade de medicina do Rio

de Janeiro. Desta forma, nasciam as primeiras indignações quanto às formas de

tratamento dos enfermos mentais (FONSECA, 2011).

Ainda no hospital de Dom Pedro II emerge a primeira figura da reforma

psiquiátrica no Brasil, Nise da Silveira. Trata-se de uma médica alagoana que de

prontidão negou-se a dar seguimento aos tratamentos desumanos que aconteciam

no estabelecimento. Desta forma, impuseram a ela uma transferência à seção de

terapia ocupacional do hospital, uma área completamente desprezada e com

recursos mínimos. Contudo, Nise enxergou nesse departamento a possibilidade de

revolucionar a forma de lidar com as doenças mentais. A pintura foi sua grande

arma e considerava ser uma forma do doente mental expressar-se por meio da arte

(LUCHMANN, 2007).

Os trabalhos produzidos pelos doentes mentais foram reunidos no Museu

de Imagens do Inconsciente, que ganhou uma projeção internacional. “Alguns dos

quadros foram levados para o II Congresso Internacional de Psiquiatria em 1957, na

cidade de Zurique, na Suíça”. A exposição foi inaugurada pelo próprio Carl Gustav

Jung, um dos maiores nomes no estudo da psique humana. Nise também propunha

a interação dos internos com os animais, que segundo ela desenvolvia a noção de

cuidado e responsabilidade nos doentes mentais (BERNARDO, 2018, online).

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Em 1956, Nise fundou a Casa das Palmeiras, o primeiro passo na luta contra

os manicômios. Tratava-se de um centro terapêutico que auxiliava os doentes

mentais na sua reinserção na vida em sociedade. Nise era uma mulher à frente de

seu tempo, além disso possuía uma sensibilidade ímpar e humanizou a forma como

os doentes mentais eram tratados. Ela faleceu em 1999 aos 94 anos, hoje é

considerada o primeiro grande símbolo da Luta Antimanicomial (DULCE, 2018).

Um momento trágico para a história da psiquiatria brasileira aconteceu no

Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. “O hospital psiquiátrico contava

com mais de 5 mil pacientes, porém estima-se que 70% dos internos não

apresentavam registros de doença mental”. Todos aqueles considerados fora dos

padrões eram internados, como por exemplo homossexuais, mães solteiras, negros,

índios, ativistas políticos e dependentes químicos. Haviam tratamentos desumanos,

com abusos físicos e psicológicos. As camas do internos eram de capim, tomavam

banho por ducha escocesa, eram eletrocutados caso se comportassem mal, também

existiam muitos casos de estupro e os corpos eram vendidos para faculdades de

medicina (BARANYI, 2018, online).

Toda desumanidade fez com que o hospital fosse comparado aos campos

de concentração nazista. “Estima-se que cerca de 60 mil vidas foram perdidas no

Hospital Colônia, que teve suas atividades encerradas somente em 1980”. Em 1996,

um dos pavilhões foi transformado em um museu para manter viva essa lamentável

memória da história brasileira. Hoje, restam menos de duzentos sobreviventes da

tragédia. A história inspirou uma jornalista e escritora brasileira, Daniela Arbex, a

produzir a obra “O Holocausto Brasileiro”. Desta forma, os maus tratos e a

desumanidade sofrida por essas pessoas tornaram-se de conhecimento de todos

(COSTA, 2007).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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Sendo assim, conclui-se que os tratamentos clássicos não contribuíam para

a recuperação do doente mental e nem mesmo para sua volta à sociedade. Com base

na ineficiência destes tratamentos e a indignação pelas mazelas sofridas nesses

estabelecimentos, surgiu o movimento da Luta Antimanicomial. Com a

promulgação da Lei nº 10.216 de 2001, os hospitais psiquiátricos estão sendo

substituídos por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Em vez de serem

internados por tempo indeterminado e de permanecerem isolados, os pacientes

recebem atendimento humanizado em regime diário com equipes

multidisciplinares formadas por médicos, enfermeiros, psicólogos, entre outros

profissionais.

2.2 Luta Antimanicomial

A ruptura com o modelo manicomial significa muito mais que o fim dos

hospitais psiquiátricos. O movimento busca pela ruptura da cultura de exclusão dos

doentes mentais, da noção de invalidez e incapacidade que os cercam. Apesar de

estar presente durante toda história da psiquiatria brasileira, os ideais do

Movimento Antimanicomial somente teve destaque em 2001, com a aprovação da

Lei nº 10.216, analisada no primeiro capítulo dessa pesquisa. Nota-se a dificuldade

do movimento para ganhar espaço, sendo considerada uma verdadeira luta. Porém,

atualmente suas convicções vêm conquistando cada vez mais lugar.

No Brasil, as primeiras manifestações no campo da saúde mental surgiram

no contexto do regime militar. Em 1976, houve a constituição do Movimento dos

Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), movimento este que assume papel

relevante nas denúncias e reinvindicações da área psiquiátrica. As reivindicações

giravam em torno de aumento salarial, redução do turno de trabalho, melhores

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Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

condições de assistência à população, humanização dos serviços e críticas à

cronificação dos manicômios e ao uso de tratamentos de tortura (LUCHMANN,

2007).

Com a criação do MTSM surgiu espaço para discussão e produção de

pensamento crítico a respeito do assunto saúde mental. Por esse motivo, fez-se

necessário a realização de congressos para que houvesse um local destinado a essas

discussões. “Destaca-se o II Congresso Nacional do MTSM, que ocorreu em 1987,

em Bauru no estado de São Paulo, conhecido como Manifesto de Bauru”. Nesse

congresso, registrou-se a presença de associações de usuários e familiares que

passaram a participar das discussões. A partir deste manifesto, tornou-se um

movimento mais amplo, afirmando um laço social entre os profissionais com a

sociedade para o enfrentamento da questão da loucura e suas formas de tratamento.

Após esse marco, realizou-se a fundação do Movimento Antimanicomial, e o MTSM

passou a ser denominado Movimento Nacional da Luta Antimanicomial

(LOBOSQUE, 1997, p. 152).

Com o intuito de acabar com os manicômios, o projeto de reforma

psiquiátrica no Brasil visa substituir, aos poucos, o tratamento dado até então por

serviços comunitários. O paciente seria encorajado a um exercício maior de

cidadania, fortalecendo seus vínculos familiares e sociais e nunca sendo isolado

destes. A partir da reforma, o Estado não poderia construir e nem mesmo contratar

serviços de hospitais psiquiátricos. Em substituição às internações, os pacientes

teriam acesso a atendimentos psicológicos, atividades alternativas de lazer, e

tratamentos menos invasivos do que aqueles que eram dados. A família teria papel

fundamental na recuperação do paciente, sendo a principal responsável por ele

(BERNARDO, 2018).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
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Os ideais da reforma psiquiátrica no Brasil deram origem à Lei nº 10.216 de

2001, analisada de forma específica no primeiro capítulo dessa pesquisa. Após a

entrada em vigência desta lei, o assunto saúde mental tornou-se mais discutido no

país. Apesar de não ter extinto totalmente o modelo manicomial, limitou a sua

utilização, quebrando o caráter compulsório que o acompanhava. Além disso,

trouxe diversos outros benefícios nos tratamentos dos doentes mentais brasileiros,

bem como uma proteção de suas garantias individuais. Portanto, é considerada um

grande avanço para a luta pelos direitos dos portadores de doenças mentais.

Atualmente no Brasil, somente permite-se a internação como recurso

temporário e necessário. Uma vez observada a recuperação do paciente, este será

encaminhado para casa e a partir de então seguirá com o tratamento nos CAPS.

Esses centros de atenção psicossociais são a principal referência no tratamento dos

doentes mentais hoje em dia. Contam com atendimentos individuais e em grupos,

atendimentos aos familiares, visitas domiciliares e atividades comunitárias.

Possuem características acolhedoras aos doentes mentais, para que estes sintam-se

como parte da sociedade. Então, os CAPS destituíram a noção de segregação

advinda da doença mental, assim como introduziu no país a preocupação por

tratamentos alternativos e um olhar mais humanitário.

Merece destaque também as outras melhorias alcançadas pela Reforma

Psiquiátrica brasileira. Além de ter direito ao tratamento que melhor se encaixa em

suas necessidades e o menos invasivo possível, os doentes mentais possuem o

direito de ter os tratamentos disponibilizados pelo sistema único de saúde. Assim

como ter acesso ao maior número de informações médicas e esclarecimentos a

respeito de sua condição e sigilo no que tange às suas informações pessoais. Outro

aspecto importante é a garantia de um tratamento que vise a sua reinserção na

família, no trabalho e na comunidade (BRASIL, 2001).

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

Desta forma, é importante ressaltar que a reforma psiquiátrica no Brasil teve

início nos anos 70 e até hoje não foi finalizada. Apesar de ser um movimento

complexo e de ter alcançado grandes evoluções, ainda há muito o que se fazer

quando o assunto é a saúde mental. Infelizmente, o receio em relação aos cuidados

psiquiátricos persistem, e pode haver resistência em relação aos tratamentos

humanitários. Portanto, torna-se necessário compreender as doenças mentais como

um modo alternativo de enxergar e estar no mundo, modo este que precisa de

atenção especial e não de punição ou isolamento social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme exposto nesta pesquisa, direito à saúde mental classifica-se como

um direito humano bem como um direito fundamental. Apesar de estar positivado

em tratados internacionais e em constituições internas dos países, percebeu-se a

dificuldade em assegurar e proteger esse direito. Além disso, no que tange aos

doentes mentais, ficou evidenciado relevante segregação e abandono social sofridos

por eles. Em consonância a isso, nota-se a necessidade de expor e discutir sobre esse

tema.

Inicialmente, por meio de uma conceituação mais profunda sobre os

direitos humanos, verificou-se o quanto direitos básicos como o direito à saúde,

embora mínimos ao ser humano, ainda sim percorreram um longo caminho para

serem garantidos, trajeto este que deve continuar sendo percorrido. Observou-se

que a evolução histórica a respeito de normas que resguardam os doentes mentais

foi indubitavelmente lenta e omissa. Ainda que atualmente a legislação brasileira

aborde temas envolvendo os doentes mentais, faz-se necessário mais atenção do

legislador no que concerne a evolução destes institutos, assim como abordagens

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Anais do VI Seminário Internacional sobre Direitos Humanos Fundamentais
Volume II: Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão: Direitos Sociais, Econômicos & Culturais

mais modernas. Por fim, notou-se também que a promulgação de uma lei específica

que trata sobre os direitos dos doentes mentais deve ser vista como uma conquista

para o ordenamento jurídico brasileiro.

Finalmente, no segundo tópico ficou observado o caráter indiferente,

ineficaz e violento dos manicômios. Averiguou-se que a internação compulsória do

doente mental não contribui para sua recuperação e nem mesmo para sua volta a

vida em comunidade. À vista disso, surgiu a ânsia por uma reformulação da

psiquiatria brasileira objetivando mudanças no molde clássico existente até então.

Nasceu desta forma o movimento da Luta Antimanicomial, que defende a extinção

dos manicômios bem como o fim da cultura de discriminação contra os enfermos

mentais.

Sendo assim, pode concluir-se que é imprescindível discutir sobre esse

tema, assim como estudar a respeito de um movimento que luta sobre esses ideais.

Logo, ficou evidente a relevância do assunto tanto para o mundo atual, onde a saúde

mental é um termo tão propagado, como também para a sociedade futura com o

propósito de evitar prolongar uma atitude inerte quanto à violação de direitos

básicos. Embora o Brasil tenha começado a dar mais atenção aos doentes mentais

como cidadãos de direito, ainda há um extenso percurso a ser trilhado.

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