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R E V I S T A
DA FACULDADE
DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE
DE LISBOA
AAVNOADCMTCS
Coimbra Editora
2
REVISTA DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Periodicidade semestral
LII — N.<* 1 e 2 - 2011
COMISSÃO DE REDACÇÃO
Presidente - PROF. DOUTOR JORGE MIRANDA
Vice-Presidente - PROF. DOUTOR EDUARDO VERA-CRUZ PINTO
Vogais - PROF. DOUTOR PEDRO ROMANO MARTINEZ
- PROF. DOUTOR LUÍS MORAIS
- PROF. DOUTORA ISABEL ALEXANDRE
- PROF. DOUTOR PEDRO INFANTE MOTA
- MESTRA DINAMENE DE FREITAS
- MESTRE JORGE SILVA SANTOS
PROPRIEDADE E SECRETARIADO
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade
1649-014 Lisboa — Portugal
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3040-574 Coimbra
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Ladeira da Paula, 10
3040-574 Coimbra
ISSN 0870-3116
Depósito Legal n.” 75 611/95
Novembro de 2012
3
Págs.
I^H Doutrina
Carla Amado Gomes — Quatro estratégias para uma incógnita: o risco global no
seu labirinto................................
81
m Trabalhos de alunos
111 Recensões
Thiago André Pierobom de Avila / Marco Scoletta — Gian Luigi Gatta, Abolitio
criminis sucessão de normas “integradoras”: teoria e práxis......................
375
IV Vida universitária
Págs.
Jorge Miranda — Apreciação da dissertação de doutoramento da Mestra Paula
Margarida Cabral dos Santos Veiga, intitulada O Presidente da República
— Contributo para uma compreensão republicana do seu estatuto constitu
cional .................................................... ................................................................ 399
Eduardo Paz Ferreira — Num país onde não querem defender os meus direitos,
eu não quero viver............................................................................................... 409
O “FUNDAMENTO DO DIREITO”:
ENTRE O DIREITO NATURAL E A DIGNIDADE DA PESSOA
SUMÁRIO
Págs.
1. A evolução a partir da sociedade gregária e totalitária primitiva............. 29
2. O individualismo grego, o personalismo cristão e as sequelas de ambos 31
3. A noção de “pessoa”: vicissitudes históricas............................................... 33
4. Análise crítica do jusracionalismo................................................................ 35
5. Análise crítica da “eminente dignidade da pessoa humana”..................... 37
6. A pessoa, como o fundamento bastante do Direito................................... 40
Não teria interesse nesta altura fazer o catálogo das orientações afirmativas
do fundamento do Direito; nem havería tempo para as confrontar entre si
Limitamo-nos a duas orientações que são atuantes nos nossos dias, embora
tenham concretizações históricas muito diferentes. São elas a fundamentação:
— no Direito Natural
— na dignidade da pessoa humana.
o individualismo grego
o personalismo cristão.
Consideremo-los brevemente.
Faz uma excelente sinopse da sucessão das correntes filosóficas, que envolve ainda uma
apreciação crítica de cada, bem como das razões daqueles que as contrariam, A. Castanheira
Neves, em A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global da Filosofia, em
Stvdia luridica. Universidade de Coimbra ! Coimbra Editora, 2003.
[ o "FUNDAMENTO DO DIREITO": ENTRE O DIREITO NATURAL E A DIGNIDADE DA PESSOA 51
1) o “individualismo” grego
A filosofia grega, que continua a ser a base de toda a filosofia ocidental,
não se elevou à percepção da pessoa. Dominou-a uma visão monista da reali
dade, que fazia ver na individualidade uma imperfeição Todavia, contribuiu
para o despontar da categoria pessoa por uma característica original, que abriu
novos horizontes: a curiosidade pelo indivíduo humano. Vamos designá-la
individualismo, à falta de palavra exata. Em Sócrates atinge o ponto mais pro
fundo de penetração no espírito humano, pelo que vamos tomá-lo como para
digmático.
2) O personalismo cristão
A filosofia grega expandiu-se no Oriente próximo por ação de Alexandre
Magno. Consolidou-se depois pela ocupação dos romanos, que a haviam assimi
lado. E nesse ambiente já muito helenizado que surge Cristo. Da sua mensagem
resultava a afirmação da pessoa de modo radicalmente contrastante com a socie
dade ambiente. E efetivamente assim foi entendida, pois foi crucificado.
A assimilação histórica da sua doutrina foi porém muito lenta. O gregarismo
manteve-se como obstáculo durante séculos. Só no final da Idade Média a noção
de pessoa atinge um extraordinário desenvolvimento na filosofia, tendo em São
Tomás de Aquino o seu expoente máximo Não obstante, não se verificou
então o impacto social que lhe deveria corresponder.
O Renascimento trará uma revivescência do individualismo e da atenção grega
pelo homem. Este enquadramento é propício à erupção duma linha subjetivista
na filosofia jurídica, por contraste com o entendimento dominante do Direito
Uma vez que todos concordarão que Jesus Cristo era um verdadeiro homem.
Assim Diogo Costa Gonçalves, Pessoa e Direitos de Personalidade: Fundamentação Onto
lógica da Tutela, Almedina, 2008, 9-12 (10). O livro, que prefaciamos, é aliás um livro muito valioso
dum jovem docente da Faculdade de Direito de Lisboa, sobre a categoria ontológica da Pessoa e o
significado da tutela geral da personalidade outorgada pelo art. 70 do Código Civil português.
Em grande parte, incitado pela necessidade teológica de caracterização e distinção
subsequente da pessoa divina e da humana.
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO
]
Sobre esta, veja-se a nossa Introdução à Ciência do Direito, 3.® ed.. Renovar, 2005,
n.” 96. Os Princípios de Filosofia do Direito de Hegel têm tradução portuguesa.
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO ]
(8)
Introdução cit., n.° 107 II.
[ o "FUNDAMENTO DO DIREITO": ENTRE O DIREITO NATURAL E A DIGNIDADE DA PESSOA 57
Embora Kant, um tanto contraditoriamente, acabe por adotar uma exposição material
própria na “Critica do Juízo”, em que se aproxima afinal muito das posições dos enciclopedistas
franceses, enunciando o modelo de estruturação que propõe para a sociedade.
5« JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO
]
Ora, à dignidade da pessoa foi dado um papel decisivo também para efeitos
do fundamento da ordem jurídica ou, se quisermos, para a fundamentação
das soluções jurídicas. Não há a pretensão, que era própria do Direito Natural,
de traçar um quadro modelar do “Direito que deve ser”, atendendo agora à
dignidade da pessoa humana: o enciclopedismo foi profundamente desmotivador
de novas tentativas nesse sentido. Mas a dignidade da pessoa, sucessivamente
reafirmada, passou a ser invocada como a base das soluções jurídicas em que a
pessoa possa estar implicada.
Este recurso foi sendo cada vez mais ampliado. Ao ponto de a dignidade
da pessoa humana se tomar justificação suficiente para qualquer causa. O seu
campo de incidência ampliou-se. Sem que se sentisse em contrapartida grande
necessidade de demonstrar que a dignidade da pessoa humana implicava efeti
vamente aquela solução. A dignidade, que é um atributo, passou a ser utilizada
como uma substância.
Com isto, a “eminente dignidade da pessoa humana” ganhou o caráter de
tropo retórico. Como resulta da própria expressão utilizada e mil vezes repetida.
Porquê pessoa humana? Que outra pessoa poderia estar em causa? E porquê
qualificar sempre como eminente, quando bem bastaria falar apenas na dignidade
da pessoa?
Mais do que isso. Como a dignidade da pessoa serviu para tudo, passou a
servir também para o seu contrário. Em relação por exemplo a questões sexuais,
que dão um debate muito na moda, posições inteiramente antagônicas escudam-se
igualmente com o fundamento na dignidade da pessoa.
O que nos leva forçosamente a refletir. Há alguma coisa que não está certa
na invocação da dignidade da pessoa. Porque se há que serve para tudo, então
não serve para nada. Acaba por se transformar numa fórmula vazia. A
expressão enfática, a “eminente dignidade da pessoa humana”, corresponde cada
vez menos um conteúdo definido.
Fizemos esta indagação no nosso A dignidade da pessoa e o fundamento
dos direitos humanos í’®>. Verificamos a tendência para substituir conteúdos
precisos por afirmações retóricas. Levando a um extravasar das categorias
invocadas que embotam mesmo o sentido das afirmações feitas.
A pergunta que a nosso ver tem de ser colocada é esta: por que é que a
pessoa é digna?
Daqui resulta que uma certa mecanização da pessoa, escondida sob o manto
pomposo da “eminente dignidade da pessoa humana”, leva muito mais a obnu-
bilar a realidade da pessoa que a trazê-la efetivamente à luz. Ao recurso à
dignidade da pessoa para fundar as mais diversas soluções jurídicas é imputável
afinal este desvio.
Não se pense que com este nosso raciocínio pretendemos pôr em dúvida a
dignidade da pessoa humana. Sobre essa dignidade escrevemos justamente:
“Quem a não proclama? Mas a utilização é tão acrítica e promíscua que a
palavra se desgasta. A dignidade perde o seu fundamento mais sólido e acaba
por representar um conceito vazio. A evolução é perigosíssima, porque sem a
noção substancial de dignidade da pessoa o centro de gravidade da ordem jurí
dica se perde. Não há que prescindir da noção de dignidade da pessoa, há que
lhe restituir o sentido”
Insiste-se pois na pergunta fundamental: por que é que a pessoa é digna?
E a resposta traz a justificação: é digna porque é pessoa. Há que aprofundar
este caminho, para uma sólida fundamentação do Direito.
Juntemos então as duas pontas da nossa análise ~ a do Direito Natural e
a da dignidade da pessoa para encontrar o critério dessa fundamentação.
(13) Veja-se o nosso Prefácio a Diogo Costa Gonçalves, Pessoa cit., 22-23.
[ o "FUNDAMENTO DO DIREITO": ENTRE O DIREITO NATURAL E A DIGNIDADE DA PESSOA 41
da raiz, que poderia sanar o muito de fátuo a que assistimos na nossa situação
contemporânea. Sabendo que nunca se encontra sociedade definitivamente
reconciliada; e que o homem é chamado repetidamente a bater-se por objetivos
e nunca a deliciar-se com os frutos da felicidade conquistada. Há melhor e pior:
bom e definitivo nunca se encontra
Na projeção destes princípios, surge-nos a necessidade de meditar as socie
dades que os homens formam, sempre formaram e sempre formarão. Não são
agremiados quaisquer, muito embora haja vínculos biológicos ou outros que
atraiam as pessoas para os grupos. Na base, o que as carateriza e distingue é
justamente serem sociedades de pessoas. E sendo sociedades de pessoas as suas
relações devem traduzir-se pela consciência da comunhão com os outros, tendo
como alvo o “viver através dos outros” que referimos atrás. Sem angelismo:
não esquecendo todas as sementes do mal e da dissídia que se abrigam no
coração humano. Mas procurando traçar uma ordem social quanto possível
dirigida a levar os membros da comunidade à sua própria realização; e com isto
a contribuir para a sociedade, reduzindo o encrespamento que amarga sempre
as relações humanas.
Surge aqui um aspeto fundamental que não cremos poder omitir: a noção
de bem comum. Exprime tradicionalmente o bem da coletividade e com isto o
bem de todos os que nela estão integrados. A noção é muito mais rica que
outras que também se usam, como interesse coletivo, porque não traduz apenas
interesses, aponta ainda valorativamente para um bem das pessoas que é desta
maneira prosseguido. De fato, está em causa um bem de que cada pessoa é
simultaneamente destinatário e artífice, porque é um bem de que participa e de
que simultaneamente é responsabilizado para com outros. Quer esse bem surja
nas relações interpessoais, quer se manifeste em deveres para com a comunidade
sem referência a pessoas determinadas: é sempre o bem comum que está em
causa, trazendo unidade moral àquele agregado de seres conscientes, autônomos
e responsáveis.
Com isto estamos retificando algumas posições que havíamos tomado.
Desenvolvemos o tema em particular na nossa Introdução à Ciência do Direito.
Não repudiamos propriamente quanto escrevemos, mas cremos que há um ponto
de abordagem mais frutuoso que o então adotado. Que nos afasta simultanea
mente das nuvens que pairam sobre várias escolas de Direito Natural.
Hoje, pensamos que a análise realizada em tomo da pessoa nos dá todo o
apoio de que carecemos para encontrar o fundamento do Direito; A pessoa,
como nos aparece na sua realidade ontológica, é um ser cuja essência e reali-
(14) Ou SÓ O haverá em A Paz Perpétua de Kant, que Goethe considerou mais próprio para
lápide funerária...
[ o "FUNDAMENTO DO DIREITO ": ENTRE O DIREITO NATURAL E A DIGNIDADE DA PESSOA 4.1
(15)
Introdução à Ciência do Direito cit., n.° 105 II.
(16)
Veja-se, daqueles autores, Dignidade (da pessoa) humana, direitos humanos e funda-
mentais e ensino jurídico: algumas aproximações, in “Direitos Humanos e Formação Jurídica”,
coord. Nalini, J.R. / Angélica Carlini, Gen / Forense, 2010, 396 s. (411).