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REVISTA

DE DIREITO CIVIL
Ano I (2016), 4

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REVISTA DE DIREITO CIVIL
Ano I (2016), 4
Diretor: ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

Comissão de redação
António Menezes Cordeiro
Miguel Teixeira de Sousa
Pedro Romano Martinez
Luís Menezes Leitão

Proprietário: Instituto de Direito Privado – Faculdade de Direito de Lisboa


NIPC 513 319 425
Sede e Redação: Faculdade de Direito de Lisboa – Alameda da Universidade – 1649-014 Lisboa
Editora: Edições Almedina, SA
Rua Fernandes Tomás n.os 76, 78, 80
Telef.: 239 851 904 – Fax: 239 851 901
3000-167 Coimbra – Portugal
editora@almedina.net

Publicação: quatro números anuais


Tiragem: 500 exemplares
Assinatura anual € 77,00 (12,5% de desconto sobre o total dos números avulsos)
Número avulso € 22,00

Coordenação e revisão: Veloso da Cunha

Execução gráfica: DPS - Digital Printing Services, Lda.

Depósito legal: 289864/09


N.º de registo na ERC – 126651

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ÍNDICE

DOUTRINA

Prof. Doutor António Menezes Cordeiro


O contrato de agência e a boa-fé . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 795

Francisco G. Prol
Ordre Public et Arbitrabilité . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 807

Luís Vasconcelos Abreu


Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 817

Francisco Aguilar
A ideia de Direito ou uma das ideias de Direito? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 853

Carlos Lacerda Barata


Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 861

Hugo Luz dos Santos


O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau: (breves)
subsídios para o enquadramento jurídico da questão das “outstanding chips” e para a
distribuição dinâmica do ónus da prova: um “admirável mundo novo” no gaming? 921

Tânia de Freitas Andrade


Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor
fidejussório ao fiador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 939

Guilherme Pires Henriques


Do contrato-promessa de doação: um contrato misto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 989

Geovana Mendes Baía Moisés


O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração
tolerada no âmbito do Direito civil português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1007

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Doutrina

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O contrato de agência e a boa-fé *
PROF. DOUTOR ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

Sumário: 1. O Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho. 2. A carga cultural da boa-fé.


3. O papel técnico da boa-fé. 4. Os deveres acessórios 5. O regime dos deveres acessórios.
6. A concretização na agência; deveres do agente. 7. Segue; deveres do principal. 8. Aspetos
do regime.

1. O Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho

I. O contrato de agência dispõe de um regime explícito: o adotado pelo


Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho, com as alterações introduzidas pelo
Decreto-Lei n.º 118/93, de 13 de abril. Este último diploma visou a transpo-
sição da Diretriz 86/653, de 18 de dezembro1. Teve, na base, um anteprojeto
apresentado pelo Prof. Doutor António Pinto Monteiro sendo unanimemente
considerado como um exemplo de elaboração legislativa de alto nível.

II. O regime da agência funciona ainda como uma matriz normativa apli-
cável, diretamente ou por analogia, aos contratos de distribuição, com relevo
para a concessão e a franquia, comportando igualmente elementos úteis para as
relações contratuais duradouras e para a teoria geral da representação. O estudo
aprofundado da agência conduziria a um pequeno tratado de Direito privado.

III.  O Decreto-Lei n.º 178/86 reparte-se por seis capítulos: disposições


gerais (1.º a 5.º), direitos e obrigações das partes (6.º a 20.º), proteção de ter-

*
Em honra do Professor Doutor António Pinto Monteiro.
1
António Pinto Monteiro, Contrato de agência/Anotação ao Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho,
7.ª ed. (2010), 192 pp.; António Menezes Cordeiro, Direito comercial, 4.ª ed. (2016), 776-793.

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ceiros (21.º a 23.º), cessação do contrato (24.º a 36.º), normas de conflitos (37.º
e 38.º) e disposição final (39.º). Nos direitos e obrigações das partes, quer o
agente, quer o principal ficam sujeitos ao princípio da boa-fé. Assim, segundo
o artigo 6.º (princípio geral):

No cumprimento da obrigação de promover a celebração de contratos, e em


todas as demais, o agente deve proceder de boa-fé, competindo-lhe zelar pelos
interesses da outra parte e desenvolver as atividades adequadas à realização plena
do fim contratual.

Por seu turno, dispõe o artigo 12.º (princípio geral):

O agente tem o direito de exigir da outra parte um comportamento segundo


a boa-fé, em ordem à realização plena do fim contratual.

IV. Logo a uma primeira leitura, afigura-se estarmos em face de concreti-


zações do artigo 762.º/2, do Código Civil: o credor e o devedor devem agir de
acordo com a boa-fé. Cumpre, agora, retirar as virtualidades destes dispositivos,
para o contrato de agência.

2. A carga cultural da boa-fé

I. A boa-fé presta-se a desenvolvimentos linguísticos infindáveis. Agir de


boa-fé seria atuar de acordo com as regras da moralidade, da lealdade e do res-
peito pelos outros, com lisura, transparência e honestidade, demonstrando no
plano das intenções uma consideração plena pelos interesses da contraparte e
no do comportamento uma dedicação ao fim do contrato. Além disso, agir de
boa-fé pressupõe abdicar de atuações manifestamente condenáveis, contrárias
aos mais elementares sentimentos ético-jurídicos e opostos ao sentimento de
todos quantos pensem justa e equamente.
Pois bem: estas e outras asserções, perfeitamente inseridas numa conceção
de “politicamente correto”, mais não fazem do que encobrir, sob uma fraseo-
logia acolhedora, uma remissão para o casuísmo do caso concreto. A Ciência
do Direito deve ser mais exigente.

II. A História da boa-fé traduz, no fundo, a evolução do próprio Direito


Ocidental, nos últimos vinte e dois séculos. A fides foi, inicialmente, uma noção
religiosa ligada ao respeito pela palavra dada e ao domínio da confiança. Mais
tarde, reforçada pelo adjetivo bona, a fides foi usada como um instrumento téc-

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nico-jurídico: para apoiar o poder criativo do pretor que, nos iudicia ex bona
fide, criou os ainda hoje principais contratos (compra e venda, locação, fiducia,
sociedade e mandato). Prosseguindo o seu caminho, a bona fides, ainda sob os
romanos, sofreu uma difusão horizontal, sendo desta feita apurada para sustentar
regimes mais favoráveis para pessoas merecidas de proteção. Temos a posse de
boa-fé, como exemplo. Boa-fé passa a exprimir um instituto de tipo subjetivo.

III. Esgotado o seu papel, a boa-fé ficou disponível como referência apra-


zível, miscegenizando-se com noções greco-cristãs: a justiça e a equidade. Fica
disponível como tópico argumentativo.
No período intermédio, a bona fides acolhe a influência germânica, pas-
sando a traduzir a tutela da aparência. O Direito canónico deu-lhe um teor
ético: a boa-fé implica ausência de pecado. Aquando das grandes reformulações
codificadoras, a boa-fé apresenta-se como um grande repositório dos valores
ocidentais, aperfeiçoados ao longo de uma conturbada evolução bimilenária.

3. O papel técnico da boa-fé

I. O papel técnico da boa-fé floresceu fundamentalmente no Direito ale-


mão, sendo acolhido por outros Direitos da família romano-germânica, entre os
quais o Direito lusófono. Com efeito, a boa-fé foi animada não por construções
de tipo teórico ou linguístico, mas pela necessidade prática de encontrar solu-
ções para problemas que não dispunham de expressa consagração legal. Nesse
domínio, teve um papel decisivo a jurisprudência comercial alemã do século
XIX. Com efeito, em todo esse século a economia alemã conheceu uma larga
expansão. Todavia, só em 1861 foi adotado o Código Geral Comercial Ale-
mão. Nessas condições, os tribunais comerciais alemães viram-se obrigados a
resolver pontos importantes com recurso a valores gerais, fazendo apelo, desig-
nadamente, à boa-fé. Como exemplo, recordamos que a aproximação entre a
culpa in contrahendo e a boa-fé foi obra de um grande comercialista: Heinrich
Thöl. O surto de aplicações da boa-fé, tecidas em torno do § 242 do BGB ale-
mão, após 1900, teve como antecedentes imediatos, a jurisprudência comercial
do século XIX: curiosamente, pouco conhecida na própria Alemanha.

II. Ao longo do século XX, a boa-fé foi usada particularmente em quatro ins-
titutos: (a) o abuso do direito; (b) a culpa in contrahendo; (c) os deveres acessórios;
(d) a alteração das circunstâncias. Falamos de institutos complexos, traduzidos
em milhares de decisões. Pergunta-se, todavia, se será possível explicar, numa
breve noção, o efetivo papel da boa-fé em todas essas áreas. Vale a pena tentar.

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III.  A boa-fé consiste num método jurídico-científico que permite, em


cada caso concreto, a aplicação dos valores fundamentais do sistema normativo.
Postulamos que o Direito tenha uma harmonia interna, suscetível de tra-
tar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com
a medida da diferença. A lógica daí derivada exprime-se num conjunto de
valores suscetíveis de ordenação em função de pontos de vista unitários, isto é,
de um sistema interno. A cada problema concreto corresponde uma solução
legítima e justa: legítima por advir de um órgão competente e justa por corres-
ponder às regras aplicáveis, à luz do sistema. Nunca se aplicam artigos sozinhos:
é sempre o ordenamento que opera, em cada situação. A boa-fé assegura essa
comunicação.

IV. Na concretização da boa-fé, trabalhamos com dois subprincípios bási-


cos: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente. A tutela da
confiança protege as pessoas que, por ação da contraparte, tenham sido levadas
a aderir a um certo estado de coisas, real ou suposto e que, nessa base, tenham
efetuado um investimento de confiança. A primazia da materialidade subja-
cente recorda que, no Direito, importam as soluções materiais efetivas e não as
meras conformações formais.

V. Pois bem: os artigos 6.º e 12.º da Lei da Agência inserem-se em toda esta
sequência. E dentro da boa-fé, eles ligam-se, predominantemente, aos deveres
acessórios. Vamos ver.

4. Os deveres acessórios

I.  Os vínculos obrigacionais oferecem ligações abstratas entre as par-


tes. Duplamente irreais: por um lado, esquecem que, quando duas pessoas se
encontram como credor e devedor, o entrecruzamento das esferas é, em regra,
mais intenso do que o expresso pela obrigação linear; por outro, desconsideram
toda a inserção dos sujeitos no meio social. O irrealismo em causa é uma fatali-
dade: limitados pela linguagem, os seres humanos só são capazes de comunicar
e, logo, de raciocinar, em planos bidimensionais muito simples.
A simplificação daí resultante reflete-se no regime aplicável, sendo fonte de
injustiças. Estas são empiricamente percetíveis, pelo que, desde sempre, se pro-
curaram soluções. Tais soluções, como, hoje, é pacífico, passam por uma ideia
simples: quando envolvidas numa relação obrigacional, as partes, para além dos
direitos e deveres inerentes à prestação principal e às prestações secundárias,
resultantes do vínculo, ficam ainda adstritas a uma série de deveres que visam:

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(a) acautelar materialmente o vínculo obrigacional; (b) proteger as partes, nas


suas pessoas e no seu património; (c) proteger terceiros que, com a obrigação,
tenham um especial contacto.

II.  Tais deveres têm base legal e um regime próprio, claramente dife-
renciado do dos deveres de prestar: principal e secundários. São os deveres
acessórios. A doutrina alemã, onde toda esta matéria foi desenvolvida, fala em
Nebenpflichten (deveres laterais), a não confundir com os Nebenleistungspflichten
(deveres de prestar laterais: os “nossos” deveres secundários). Aparecem, tam-
bém, Schutzpflichten (deveres de proteção), Rücksichtspflichten (deveres de consi-
deração) e Sorgfaltsflichten (deveres de cuidado)2.

III. Os deveres acessórios foram ainda impulsionados, para além da discus-


são teorética, por institutos periféricos. Para os presentes propósitos, interessa
apenas aludir a dois grandes temas: a complexidade das obrigações e a violação
positiva do contrato. A ideia de que o vínculo obrigacional seria complexo
impôs-se com o aparecimento, no tocante à natureza de obrigação, das dou-
trinas realistas e, depois, com as teses mistas do débito e da respondência3.
Seguiu-se a fórmula de Siber (a obrigação como organismo), retomada pela
pena de Herholz (relação-quadro) e pela de Larenz (estrutura e processo)4. Está
hoje assente que a relação obrigacional não se esgota na dupla crédito/débito,
antes abrangendo diversas outras realidades. A experimentação, por vezes pos-
sível em Direito, permite confirmá-lo: a simples análise de uma obrigação em
funcionamento documenta a sua complexidade intrínseca.

2
Em especial: Kai Kuhlmann, Leistungspflichten und Schutzpflichten/ein kritischer Vergleich des Leis-
tungsstörungsrechts des BGB mit den Vorschlägen der Schuldrechtskommission (2001), 424 pp.; Wolfgang
Schur, Leistung und Sorgfalt/zugleich ein Beitrag zur Lehre von der Pflicht im Bürgerlichen Recht (2001),
XX + 390 pp. (123 ss. e passim); Hans Christoph Grigoleit, Leistungspflichten und Schutzpflichten,
FS Canaris 1 (2007), 275-306; Dieter Medicus, Zur Anwendbarkeit des Allgemeinen Schuldrechts auf
Schutzpflichten, FS Canaris 1 (2007), 835-855 (837 ss.); Dirk Olzen, no Staudinger II, §§ 241-243
(2009), § 241, Nr. 142 ss. (176 ss.); Harm Peter Westermann, no Erman/BGB, I, 13.ª ed. (2011),
§ 241, Nr. 8 e Nr. 10 ss. (777 ss.); Hans-Peter Mansel, no Jauernig/BGB, 14.ª ed. (2011), § 241,
Nr. 9 ss. (171 ss.); Reiner Schulze, HandKommentar, 7.ª ed. (2012), § 241, Nr. 4 ss. (254 ss.); Peter
Krebs, no NomosKommentar, 2/1, 2.ª ed. (2012), § 241, Nr. 44 ss. (18 ss.); Christian Grüneberg, no
Palandt, 75.ª ed. (2016), § 241 (261-262); Martin Schmidt-Kessel, no PWW/BGB, 7.ª ed. (2012),
§ 241, Nr. 15 ss. (329 ss.); Peter Huber, Der Inhalt des Schuldverhältnisses, no Staudinger/Eckpfeiler
des Zivilrechts (2012-2013), 211-244, Nr. 2-6 (212-213) e passim.
3 Vide o nosso Tratado de Direito civil, VI, 2.ª ed. (2012), 274 ss. e 283 ss..

4 Idem, 299 ss..

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IV. A violação positiva do contrato corresponde a uma descoberta de Her-


mann Staub (1902), que teve largas repercussões, até hoje5. Na origem, temos
uma lacuna do BGB que, de resto, também ocorre no Código Civil português
de 1966. Perante uma obrigação, a lei prevê, grosso modo, dois tipos de violação:
a pura e simples não-execução, no momento indicado, da conduta devida e a
impossibilitação, pelo devedor, daquilo que lhe era exigido. De fora fica uma
terceira hipótese: a de o devedor violar a obrigação (o “contrato”) não por
omissão, direta ou provocada, mas por ação. Teríamos, aí, a “violação posi-
tiva”. Esta poderia ocorrer por diversas vias, incluindo a provocação de danos
na outra parte. Apesar de criticada pela falta de unidade6, a teoria da violação
positiva do contrato teve sucesso na jurisprudência, pela sua maleabilidade e
pela impressividade da própria designação. Logicamente: os deveres acessórios
inscrever-se-iam, com facilidade, no rol das situações cuja inobservância con-
substanciaria a violação positiva.

V. Toda esta caudalosa evolução, espraiada em centenas de publicações e


de decisões judiciais, veio a ser vertida no § 241 do BGB, aquando da reforma
da lei civil alemã de 2001/2002. Foi, a esse preceito emblemático, acrescentado
um n.º 2, segundo o qual: a relação obrigacional pode obrigar, de acordo com o seu
conteúdo, cada parte à consideração pelos direitos, pelos bens jurídicos e pelos interesses da
outra. Trata-se do reconhecimento legal de que, para além do dever de prestar,
existem outros deveres obrigacionais: visam não o “interesse de equivalência”,
prosseguido pelo dever de prestar, mas o “interesse de integridade”, que o
suplanta7. A lei adotou a fórmula “deveres de consideração” (Rücksichtspflichten)
como modo de transcender as múltiplas expressões existentes na doutrina.
Assim8: deveres de proteção (Thiele, Gerhardt, Soergel/Teichmann, Frost,
Medicus, Kress, Jauernig/Mansel, Stoll e Westermann/Bydlinski/Weber);
deveres de cuidado (Larenz, Stürner e Evans-von Krbek); deveres de conduta
ou outros deveres de conduta (Gernhuber, Larenz e Emmerich); deveres de
bom comportamento (Fikentscher); deveres laterais ou acessórios (Esser/Sch-
midt, Enneccerus/Lehmann, Erman/Werner, Kramer, Canaris, Henckel e von
Bar). Resta acrescentar que a diversidade terminológica se manteve, depois da
reforma alemã de 2002, tanto quanto nos é dado ver pelas obras publicadas

5
Hermann Staub, Die positiven Vertragsverletzungen, 26. DJT (1902), 31-56, reedit. 1904 e, depois,
várias vezes republicado.
6 Heinrich Lehmann, Die positiven Vertragsverletzungen, AcP 96 (1905), 60-113 (92) e Ernst Zitel-

mann, Nichterfüllung und Schlechterfüllung, FS P. Krüger (1911), 265-281 (265).


7 Dirk Olzen, no Staudinger Kommentar zum BGB (2015), § 241, Nr. 153 (185).

8 Olzen, idem, Nr. 154, com as fontes.

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depois dessa data. Manteremos o português jurídico “deveres acessórios”, que


tem vindo a ser acolhido generalizadamente pela nossa literatura.

5. O regime dos deveres acessórios

I. Os deveres acessórios distinguem-se claramente do dever de prestar prin-


cipal e dos deveres de prestar secundários, em função do seu escopo. Enquanto
estes visam a satisfação do interesse do credor na prestação, aqueles promovem
o interesse do credor na integralidade da própria prestação e, ainda, na into-
cabilidade dos seus interesses colaterais: património e esferas física e moral.
Neste domínio, parece-nos útil fazer uma bipartição nos deveres acessórios, de
modo a responder à crítica por vezes dirigida à conceção unitária do dever de
proteção, desenvolvida por Canaris: a de que, havendo um contrato, nenhuma
necessidade existe de recorrer à lei, para fundamentar um dever de proteção9.
Assim, distinguimos: (a) um círculo interno, no qual se arrumam os deveres
acessórios que visem o reforço e a substancialização do dever de prestar; temos,
aqui, fundamentalmente, deveres de informação e de lealdade ao contratado;
(b) um círculo externo, que compreende os deveres dirigidos aos interesses
circundantes e colaterais: integridade patrimonial, pessoal e moral; ocorrem
deveres de segurança e de lealdade geral.

II.  Pergunta-se se os deveres acessórios incluídos no círculo interno não


serão, afinal, meros deveres secundários ou, se se preferir, delimitações, ex bona
fide, dos deveres de prestar. Summo rigore, todo o Direito (todo o Universo!)
nada mais é do que um continuum, no qual o ser humano, com as suas limitações
extremas, efetua sondagens pontuais, obtendo aquilo a que chama conheci-
mento. Mas sobre essa humildade de princípio, podemos distinguir: (a) o dever
de prestar tem a configuração que resulte da sua fonte: paradigmaticamente um
contrato; estamos em áreas disponíveis, pelo que faz todo o sentido concretizar
e aplicar a matéria, à luz dos cânones negociais; todavia, a juridicidade e, daí, a
eficácia dos negócios, advêm do exterior, isto é, do Direito objetivo; ora este
não é passivo: tem valores que dão sentido ao seu sistema de reconhecimento
de normas e de situações; daí que resultem, além de limitações à autonomia
privada, complementações “legais” que se impõem a ambas as partes; (b) os
deveres acessórios, ainda quando reforcem e substancializem o dever de prestar,

9 Dieter Medicus, Vertragliche und deliktische Ersatzansprüche


für Schäden aus Sachmängeln, FS
Eduard Kern (1968), 313-334 (327 ss.).

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dão corpo à dimensão axiológica heterónoma do Direito, expressa nas limita-


ções apontadas; complementam e delimitam o pretendido pelas partes.

III. Os regimes dos deveres de prestar e dos deveres acessórios não coinci-
dem. Entre outros aspetos, temos, pelo menos, as seguintes clivagens:
(1) os deveres de prestar fundam-se, paradigmaticamente, na autonomia
privada; os acessórios, na boa-fé; pode haver deveres de prestar não-
-contratuais; seguem, tendencialmente, o mesmo regime, filiando-se,
então, nas normas legais que os imponham;
(2) os deveres de prestar vinculam o devedor; os deveres acessórios adstrin-
gem ambas as partes;
(3) os deveres de prestar visam o “efeito prestação” ou, pelo menos, o
“efeito atuação”, quando este seja o visado; os acessórios dirigem-se
para os efeitos “substancialização” e “integralidade”;
(4) os deveres de prestar são diretamente disponíveis (salvo recaindo em
pontos que o não sejam); os acessórios, enquanto ex lege, operam sem-
pre que se mostrem reunidas as respetivas condições constitutivas;
(5) os deveres de prestar surgem com o negócio e cessam com o cumpri-
mento; os acessórios podem ser pré ou pós-eficazes;
(6) os deveres de prestar cessam quando a respetiva fonte seja declarada nula
ou anulada ou caso haja resolução, revogação, denúncia, oposição à
renovação ou caducidade da prestação principal; os acessórios mantêm-
-se, nessas eventualidades, prosseguindo os seus fins de proteção;
(7) os deveres de prestar adstringem e tutelam as partes; os acessórios podem
tutelar terceiros;
(8) os deveres acessórios, designadamente os que se incluam no círculo
externo, podem constituir-se ou manter-se sem que exista um dever de
prestar; a obrigação subsistirá, então, apenas assente nos deveres acessó-
rios, não requerendo uma prestação principal.

6. A concretização na agência; deveres do agente

I. A jurisprudência nacional manuseia o conceito de boa-fé e as suas con-


cretizações com um grande virtuosismo. Neste momento, ela já ultrapas-
sou a alemã. Trata-se de uma das mais importantes evoluções subsequentes
ao Código Civil de 1966, designadamente a partir de meados da década de
oitenta. Podemos adiantar que raro será o processo que chegue ao seu termo
sem que o tribunal, a pedido ou oficiosamente, proceda a uma ponderação da
decisão, à luz da boa-fé.

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II. No que tange à agência, não encontramos, no acervo das decisões dos
nossos tribunais, aplicações incisivas dos artigos 6.º e 12.º da Lei da Agência.
Deve dizer-se que, em boa parte, isso se deve à excelência do próprio regime
adotado em 1986: os seus meandros, mormente no ponto sensível da denúncia,
estão tão perfeitos que basta aplicar a lei. Assim, esses preceitos são referidos
para reforçar decisões judiciais apoiadas noutros lugares normativos. Um espe-
cial relevo vai para a necessidade de pré-aviso adequado.

III.  Pergunta-se, todavia, se não poderemos ir mais longe e extrapolar


deveres concretos que, com base nos dois referidos preceitos, possam impor-se
seja ao agente, seja ao principal. Vamos ver. Recorrendo, em parte, à doutrina
alemã, podemos apontar os seguintes deveres acessórios, quanto ao agente10:
– o dever de lealdade; para além da não-concorrência e do sigilo, legal-
mente explicitados, fica vedado, ao agente, o aproveitamento de oportu-
nidades do negócio, fora do que o contrato preveja;
– o dever de cuidado: o agente deve agir por forma a não prejudicar a
potencialidade de negócio do principal;
– o dever de guarda: o agente deve resguardar e defender tudo quanto per-
tença ou caiba ao principal;
– o dever de restituição: findo o contrato, cabe ao agente restituir ao prin-
cipal os objetos que tenha à sua guarda e que caibam àquele;
– o ius variandi: em face da evolução do contrato e na impossibilidade de
colher instruções, cabe ao agente, com a necessária pendência, agir de
modo a adaptar a sua conduta à evolução dos acontecimentos;
– o dever de sustar na execução do contrato: caso surjam obstáculos que
o imponham e sempre que se aperceba de que essa execução se torna
contraproducente; será o caso, designadamente, de o agente verificar que
promove contratos perigosos para a saúde ou para o ambiente;
– o dever de tutela do consumidor: o agente deve tomar medidas caso veri-
fique que os contratos a promover se reportem a bens ou a serviços que
não tenham as características anunciadas ou que os negócios são nocivos
para o consumidor;
– o dever de avisar o principal de qualquer circunstância suscetível de o
afetar ou de prejudicar o negócio.

10 Gerrick von Hoyningen-Huene, no Münchener Kommentar zum HGB I, 4.ª ed. (2016), § 86, Nr.

54-57 (1209-1210); Klaus J. Hopt, em Baumbach/Hopt, Handelsgesetzbuch, 37.ª ed. (2016), § 86,
Nr. 40-49 (407-409); Gottfried Löwisch, em Ebenroth/Boujong/Joost/Strohn, Handelsgesetzbuch
1, 3.ª ed. (2014), § 86, Nr. 2 e Nr. 20 ss. (718-719 e 724 ss.); relevamos os deveres acessórios sem
base legal explícita.

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804 António Menezes Cordeiro

Note-se que os deveres de segredo e de não-concorrência resultam dos


artigos 8.º e 9.º da Lei da Agência.

7. Segue; deveres do principal

I. Quanto a deveres acessórios a cargo do principal, apoiados no artigo 12.º


da Lei da Agência, podemos apontar11:
– deveres de lealdade, os quais incluem o dever de sigilo e o de não-con-
corrência, no âmbito do contrato ou à margem do nele acordado; embora
a lei não o explicite quanto ao principal, afigura-se que também ele deve
respeitar os segredos do agente de que tenha conhecimento; além disso,
não pode, no âmbito da agência, concluir novas agências ou negociar, ele
próprio, por conta própria, salvo se essas atuações tivessem sido contra-
tualmente asseguradas;
– deveres de resguardo: o principal deve proteger o agente, logo que tenha
conhecimento de situações perigosas ou inconvenientes, relativamente
aos bens ou serviços a distribuir;
– deveres de promoção: dependendo das circunstâncias, o principal pode
ter o dever de promover o produto que o agente deva distribuir; designa-
damente, ele pode ficar adstrito à divulgação das qualidades do produto a
distribuir;
– dever de proteção: independentemente das explícitas sobre a cessação do
contrato, o agente deve coibir-se de pôr termo à agência em termos que
defrontem a confiança legítima do agente, em especial se lhe tiver dado
azo, por ação ou por omissão.

II. A Lei da Agência optou por enumerar direitos do agente e não, dire-
tamente, deveres do principal. Todavia, não oferece dúvidas retirar, do artigo
13.º, o elenco dos deveres em causa. Pois bem: o artigo 12.º, ao remeter para a
boa-fé, permite o alargamento prudente dos deveres em jogo.

11
Com alguns elementos: Gerrick von Hoyningen-Huene, no Münchener Kommentar cit., I,
4.ª ed., § 86a, Nr. 44-47 (1223-1224); Klaus J. Hopt, em Baumbach/Hopt, Handelsgesetzbuch
cit., 37.ª ed., § 86.ª (410 ss.); Gottfried Löwisch, em Ebenroth e outros, Handelsgesetzbuch cit., 1,
3.ª ed., § 86a, Nr. 34 ss. (752 ss.).

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O contrato de agência e a boa-fé 805

8. Aspetos do regime

I. Os elencos acima alinhados são meramente exemplificativos. No terreno,


será possível apurar a existência eventual de outros deveres. O Direito vigente
dá margem para o intérprete-aplicador, dentro dos parâmetros do sistema, con-
cretizar o rico acervo cultural e científico que se abriga à boa-fé.

II. Os deveres acessórios devem ser cumpridos. Um inadimplemento grave


justifica os remédios habituais: exceção do contrato não-cumprido, resolução
por incumprimento e responsabilidade civil.

III. Além disso, eles podem subsistir perante a invalidação do contrato, ou


mesmo manter-se, em termos pós-eficazes, após a cessação da agência. Admiti-
mos, ainda, que possam ter um efeito de proteção de terceiros. O cliente preju-
dicado pela omissão do cumprimento de um dever acessório de informação do
principal pode demandar diretamente este, em termos obrigacionais.

IV. Finalmente: todas estas regras são aplicáveis, com as adaptações neces-


sárias, diretamente ou por analogia, a outros contratos de distribuição, com
relevo para a concessão e a franquia. Vale o preâmbulo da Lei da Agência, da
pena do Prof. Pinto Monteiro e que tem operado, nos nossos tribunais, como
lei escrita formal. Em boa hora!

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Ordre Public et Arbitrabilité *
1

DR. FRANCISCO G. PROL**


2

Sommaire: I. Ordre Public (OP) et Arbitrabilité: A) L’Arbitrabilité; B. L’Ordre Public:


(i) Concept; (ii) Exemples; (iii) Types de l’OP; C. OP et Loi Impérative; D. Relation
entre Arbitrabilité et Ordre Public: (ii) L’arbitrage national; (iii) Contrôle de l’OP; (iv)
Comment l’OP peut-il conditionner ce qui est arbitrable ou non.

Mesdames, Messieurs, bonjour.

Permettez-moi d’adresser mes premiers mots au Club Espagnol de l’Ar-


bitrage, comme au Comité Français de l’Arbitrage, que je souhaite remer-
cier, avant toute chose, de m’avoir invité à participer cette année à l’initiative
magnifique que sans aucun doute constituent les Regards Croisés.
Quelques mots, en second lieu, adressés à mon aimable auditoire: je vous
prie de m’excuser des “attentats” que je puisse commettre contre la langue de
Racine et de Molière, qui m’est d’ailleurs si chère, car, assistant assidûment aux
réunions des Regards Croisés, je me suis imposé une discipline personnelle
consistant à parler en espagnol lorsque la réunion se tient en Espagne et à fouet-
ter l’audience avec mon français lorsque la réunion se développe en France.

I. Ordre Public (OP) et Arbitrabilité

Pour commencer à traiter l’affaire qui fait l’objet de mon exposé, l’Arbi-
trabilité et l’Ordre Public (OP), il convient de préciser d’abord les termes dont
nous allons parler.

*
Notes pour la conférence donnée lors de la réunion “Regards Croisés” qui, organisée par le
Chapitre Français du Club Espagnol de l’Arbitrage et par l’Association Française de l’Arbitrage,
s’est tenue à Paris le 29 novembre 2013.
** Avocat et Arbitre.

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808 Francisco G. Prol

A) L’Arbitrabilité

Même si le terme d’arbitrabilité n’est pas facile à définir, il me semble pos-


sible de le délimiter. Ainsi, la doctrine espagnole, notamment les commentaires
soulevés par l’article 2 de la Loi relative à l’Arbitrage (LA), considère l’arbi-
trabilité comme la qualité qui s’applique à certaines hypothèses dans lesquelles
les parties peuvent soumettre à une procédure arbitrale la solution de leurs
controverses.
La doctrine espagnole impose trois conditions pour qu’un cas déterminé
puisse être considéré comme arbitrable, à savoir:
– Disponibilité. Les parties doivent jouir du pouvoir de disposition sur les
matières qui font l’objet du litige, au sens de l’article 2 de la LA, selon
lequel “… sont arbitrables les controverses portant sur les matières dont on a la
libre disposition”.
– Patrimonialité ou “Financial Interest”. Les droits individuels ne sont pas
arbitrables. Si j’ai bien compris, en France, au moins en matière d’ar-
bitrage national, l’arbitrage est acceptable “en raison d’une activité profes-
sionnelle”, ce qui semble empêcher, à titre d’exemple et sauf indication
contraire de votre part, la soumission à l’arbitrage des disputes dérivant de
la distribution d’une succession entre les héritiers.
– Absence d’attribution impérative de juridiction. Si la Loi attribue de façon
exclusive à une juridiction spécifique la compétence pour la résolution
d’une controverse déterminée, cette matière est exclue de la volonté des
parties dans ce sens que celles-ci ne peuvent pas soumettre la résolution
de cette controverse à la voie de l’arbitrage.

En ce qui concerne ce que doit être entendu par arbitrabilité dans le champ
d’application de la Convention pour la reconnaissance et l’exécution des sen-
tences arbitrales étrangères (“Convention de New York”) (New York, 1958),
les pays ayant une tradition juridique romaine ou continentale et les pays de
la common law, ayant une tradition juridique anglo-saxonne, se divergent. Le
Droit espagnol penche clairement pour le système de la Civil Law.
Dans les pays régis par la Civil Law, l’arbitrabilité se réfère uniquement à
l’objet matériel de la Convention de New York, et ceci indépendamment de
la discussion sous-jacente sur l’existence d’une arbitrabilité subjective, outre
l’arbitrabilité objective1. Cependant, dans les pays soumis à la Common law l’ar-
bitrabilité est conçue dans un sens plus large. Il s’agit de l’arbitrabilité sensu lato

1
Marta Gonzalo Quiroga, Normes Impératives et Ordre Public dans l’Arbitrage Privé International.

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Ordre Public et Arbitrabilité 809

utilisée pour désigner le champ d’application de la Convention de New York.


Nous l’avons vu plus haut, la seule limite imposée par la Loi espagnole à la
soumission d’une matière à l’arbitrage consiste en la nécessité que cette matière
soit disponible pour les parties.

B. L’Ordre Public

S’agissant de l’Ordre Public (OP), il convient à mon avis d’indiquer


d’abord que cette institution juridique peut avoir une influence définitive sur
la naissance, le développement et la terminaison de la procédure arbitrale à
deux moments différents. D’une part, au moment de l’analyse de la validité
d’une convention d’arbitrage (afin de constater que celle-ci ne contient aucune
matière indisponible pour les parties) et, d’autre part, au moment où les juridic-
tions compétentes contrôlent que la sentence rendue par l’arbitre afin de mettre
fin à la procédure ne contrevient pas aux principes de l’Ordre Public.
Dans cette partie de la réunion, nous allons traiter uniquement des relations
entre l’arbitrabilité et l’Ordre Public à l’heure de décider si la matière soumise
à la décision des arbitres peut être considérée comme inarbitrable du fait de
figurer parmi les cas réservés à l’Ordre Public.

(i) Concept

Il est très difficile, sinon impossible, de préciser de façon exhaustive la signi-


fication du terme de l’Ordre Public. En Espagne (et il me semble qu’en France
également), il n’est pas possible de trouver une liste de matières considérées
comme appartenant à l’OP, ni un texte légal contenant une définition satisfai-
sante de cette institution.
La jurisprudence espagnole a toujours défini de façon vague et générale ce
que doit être entendu par Ordre Public. Aussi, d’après l’arrêt rendu par la Cour
d’appel (“Audiencia Provincial”) de Madrid le 4 mai 2012 (qui sera mentionné
postérieurement pour sa précision dans la définition de la relation entre l’arbi-
trabilité et l’OP), s’appuyant sur plusieurs arrêts2 du Tribunal Constitutionnel
espagnol, “… l’ordre public consiste uniquement et exclusivement en l’ensemble des
principes qui inspirent le système juridique et qui sont absolument obligatoires afin de
maintenir un modèle de société pour une population et une époque déterminées…”.

2
SSTC 11/1987 , 116/1988 y 54/1989.

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810 Francisco G. Prol

Il s’agit évidemment d’une définition volontairement vague et imprécise,


qui parle des principes inspirateurs du système juridique sans les concrétiser et qui
ne permet même pas de se faire une idée des conditions devant être remplies
par un principe déterminé pour être considéré comme un élément inspirateur
du système juridique.
Cependant, deux des éléments de cette définition d’OP méritent à mon
avis d’être remarqués, à savoir:

1. Il est expressément indiqué que le terme d’OP se réfère uniquement et exclusi-


vement, à l’ensemble des principes qui inspirent le système juridique, ce qui veut dire
que seuls ces principes sont inclus dans la notion de l’Ordre Public (en tant
que générateur d’inarbitrabilité), étant considérés comme les fondements du
système, alors que les “émanations” de ces principes, qui forment le corps du
système, n’entreraient pas dans ce concept. A titre d’exemple, les règles impéra-
tives, même faisant partie du système juridique, ne peuvent pas être considérées
comme principes inspirateurs du système juridique.
2. L’analyse des hypothèses susceptibles de constituer des cas d’Ordre Public doit
être effectué prenant en considération les circonstances de temps et de lieu, ce
qui veut dire qu’une hypothèse considérée à un moment donné comme une
matière d’OP peut ne pas l’être à une époque différente. De même, ce qui peut
être considéré comme un cas d’OP dans un pays peut ne pas l’être dans le pays
voisin.

La définition donnée par nos tribunaux à l’OP semble donc ouvrir la porte
à l’acceptation de l’existence d’un OP international ayant les mêmes caractéris-
tiques (et la même difficulté de précision) que l’OP interne.
La frustration que comporte cette imprécision dans la définition du terme
d’OP est telle que certains auteurs ont qualifié cette institution juridique, d’une
part d’exaspérante (car ses éléments sont extrêmement difficiles à préciser),
d’autre part d’indispensable (car la précision de ses limites et de son application
est essentielle pour décider quelles sont les matières qui peuvent être soumises
à la connaissance et à la décision des arbitres).

(ii) Exemples

Comme il est parfois plus clair d’expliquer un concept par un exemple


que de le faire moyennant une définition rigide et hermétique, permettez-moi
d’illustrer le terme d’OP par deux exemples:
a) Divorce: c’est l’exemple que l’université utilisait dans les années 70 pour
que nous étudiants comprenions le concept “évanescent” de l’OP. Le

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Ordre Public et Arbitrabilité 811

régime franquiste refusait systématiquement l’exécution des jugements


de divorce qu’on essayait d’exécuter en Espagne, se basant sur l’idée
que cette exécution contrevenait à l’Ordre Public interne, dans ce sens
qu’elle aurait été incompatible avec les principes généraux inspirant le
système juridique espagnol. A souligner à ce propos que le divorce n’était
pas reconnu en Espagne en l’époque et, par conséquent, l’idée que les
jugements de divorce rendus dans d’autres pays pouvaient prendre effet
dans notre pays était inadmissible.
b) Arbitrage en droit des sociétés: ce second exemple, plus récent, se réfère
aux affaires ayant trait à la vie des sociétés. Lorsqu’il fallait appliquer la
Loi des Sociétés Anonymes (LSA) de 1951, la jurisprudence de la Cour
Suprême (Cour de Cassation), comme d’ailleurs un grand nombre d’au-
teurs, considérait que ces affaires ne pouvaient pas être soumis à la voie
de l’arbitrage, car les dispositions qui régissaient le régime des sociétés
devaient être considérées comme appartenant à l’OP et, par conséquent,
ne pouvaient pas être soumises au pouvoir de disposition des parties (ce
qui leur empêchait de faire recours à la voie arbitrale).
La jurisprudence a évolué ultérieurement et a commencé à accepter
la soumission des conflits des sociétés à l’arbitrage (comme le prouve par
exemple l’arrêt rendu par la Cour de Cassation le 18 avril 1998), basée
sur l’idée que l’OP ne peut pas s’identifier avec les règles impératives.
Cette acceptation a été consacrée d’abord par la nouvelle LSA, ensuite
par la modification de la Loi de l’arbitrage, constatée enfin par la Loi
11/2011, qui contient un régime assez détaillé des dispositions régissant
l’arbitrage en droit des sociétés.
La notion de l’OP a donc évolué (peut être sous l’influence des prin-
cipes “favor arbitrandum” et “présomption d’arbitrabilité”) au fil des
ans et parallèlement à l’évolution de la société espagnole, allant d’une
conception rigide qui empêchait la soumission de certaines affaires à l’ar-
bitrage jusqu’à une interprétation restrictive, tant en ce qui concerne ses
relations avec l’arbitrabilité qu’en ce qui concerne les possibilités d’an-
nulation des sentences arbitrales basée sur l’idée que la matière concer-
née appartient à l’OP.

(iii) Types de l’OP

D’après la doctrine espagnole, il y a trois sortes d’OP, à savoir, l’OP natio-


nal, l’OP international et l’OP transnational.

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812 Francisco G. Prol

– L’OP national: d’un point de vue interne, l’OP peut être considéré
comme “l’ensemble des règles impératives et critères locaux qui, étant au-delà
des limites imposées à la liberté des parties pour la caractérisation du contrat, ne
peuvent être ni modifiés ni abrogés par les parties”. Cette définition envisage
l’OP sous la perspective du droit matériel plutôt que sous l’angle du droit
processuel sous lequel le considèrent d’autres auteurs et la jurisprudence
la plus récente.
– L’OP international: l’OP international, composé essentiellement des
mêmes principes supérieurs que l’OP national, se distingue de ce dernier
par son application, beaucoup plus restreinte en raison des relations privées inter-
nationales, qui nécessitent davantage de liberté et de flexibilité. Comme cet OP
doit être plus flexible que l’OP interne, son appréciation doit être moins
rigoureuse.
– L’OP transnational: cet OP est constitué des principes généralement
reconnus et acceptés dans le cadre des transactions internationales. Alors
que l’OP dit “international” est soumis aux limitations imposées par
l’Etat concerné sur la base de ses intérêts particuliers, l’OP transnational
n’est en fonction des intérêts d’aucun État particulier.

Comme le déclare professeur Gaillard, l’arbitrabilité ou l’inarbitrabilité


d’une controverse internationale dépend essentiellement de la confiance juri-
dique, législative, commerciale, sociale et institutionnelle qu’inspire l’institu-
tion arbitrale. Par conséquent, dans les pays où cette institution ne jouit pas de
la confiance des juridictions chargées, par exemple, de l’exécution des sentences
étrangères, il sera toujours plus facile de vérifier l’application des principes de
l’OP national, plus rigides et inflexibles par définition, que de constater l’appli-
cation des principes inspirateurs de l’OP international (ou transnational).

C. OP et Loi Impérative

Nous l’avons déjà indiqué plus haut, la notion de l’OP s’est parfois confon-
due avec celle de la “disposition impérative”. Cependant, ces deux concepts
ont été distingués depuis bien de temps par le Tribunal de cassation espagnol,
qui a constaté (dans le cadre du droit des sociétés) que “... le caractère impératif
des normes régissant la contestation des décisions des organes des sociétés ne
s’oppose pas au caractère transactionnel, donc dispositif, de ces règles, … de
même l’OP ne peut aucunement être invoqué pour exclure l’ordre arbitral”.
Cela veut dire que, dans le cas particulier de l’arbitrage en droit des socié-
tés, seules les normes configurant la structure institutionnelle des sociétés (à

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Ordre Public et Arbitrabilité 813

titre d’exemple, la reconnaissance de la Société commerciale en tant que sujet


de droit, de même que les conditions propres aux différents types des sociétés)
peuvent être considérées comme des règles d’OP, alors que le reste des normes
relatives aux sociétés doivent être considérées comme des règles impératives,
mais non d’Ordre Public.
Comme la Cour de cassation espagnole l’a également statué à propos des
problèmes dérivant de l’acceptation de l’arbitrage en droit des sociétés, la
convention d’arbitrage ne concerne pas le ius cogens, mais tout simplement la
voie procédurale que les parties peuvent choisir pour la résolution des disputes
dérivant de l’interprétation des normes de l’ius cogens.
De surcroît, d’après le plus haut tribunal espagnol, le fait que les normes
relatives à la contestation des décisions des organes des sociétés puissent être
considérées comme ius cogens n’empêche que ces normes aient un caractère
transactionnel, sans appartenir à l’OP, ce qui permet de soumettre à la voie de
l’arbitrage la résolution des disputes dérivant de leur interprétation.
La jurisprudence est allée plus loin dans certains cas. Ainsi, à titre d’exemple,
le jugement de la Cour d’appel (Audiencia Provincial) de Barcelone, du 16
mars 2005, précise que la limite de l’OP ne peut pas se confondre avec les
normes impératives et ajoute que l’équiparation totale de ces deux notions
impliquerait la nécessité de considérer comme des règles d’OP la totalité des
normes relatives aux sociétés commerciales (ayant un caractère impératif).
Le caractère impératif des normes implique, non l’impossibilité de sou-
mettre à la voie de l’arbitrage les disputes auxquelles ces normes sont appli-
quées, mais l’idée que ni l’arbitre ni le juge ne peuvent s’écarter de l’interpré-
tation correcte de ces normes pour la prise de leurs décisions.
Cependant, c’est la décision de la Cour d’appel (Audiencia Provincial) de
Madrid du 4 mai 2012 qui exprime le mieux l’avis de la jurisprudence espa-
gnole sur les relations entre les normes impératives et l’Ordre Public. Cette
décision traite d’un sujet très délicat, celui de l’application des règles d’arbitrage
au droit de la concurrence, et précise que les disputes dérivant de ces règles
peuvent être soumises à la voie de l’arbitrage, se basant pour cela sur le grand
nombre d’occasions dans lesquelles le Tribunal de justice de l’Union Euro-
péenne a considéré tout à fait normal la soumission à cette voie de questions
régies par les dispositions du droit européen de la concurrence; cas Eco Swiss/
Benetton). “Revenant à nos moutons”, cette décision établit, entre autres, que
la disponibilité est une qualité qui se réfère aux droits subjectifs en conflit, mais
qui ne constitue aucunement une caractéristique des normes appelées éven-
tuellement à régler les conflits pouvant surgir à propos de ces droits.
Somme toute, ce sont les matières, les droits subjectifs en conflit, qui
doivent être disponibles.

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814 Francisco G. Prol

Cette décision recueille en plus l’interprétation de la Cour de cassation


dans son arrêt du 18 avril 1993, mentionné plus haut, selon laquelle la conven-
tion d’arbitrage n’est pas en relation avec le caractère ius cogens des dispositions
juridiques applicables, mais avec la voie procédurale choisie pour la résolution
des disputes.
La décision mentionnée dispose en outre que la notion de l’Ordre Public
n’exclue pas l’arbitrage: “la violation éventuelle de l’Ordre Public par la déci-
sion rendue est une autre question, qui impliquera la nullité de cette décision
en vertu d’une action en annulation”.
En résumé, deux principes sont essentiels selon la jurisprudence espagnole
pour l’étude des relations entre les règles impératives et l’Ordre Public, à savoir:
A) Il ne faut pas confondre la règle impérative avec l’OP (l’arbitre est tenu
d’appliquer correctement la règle impérative, alors que l’OP est consti-
tué d’un ensemble de principes supérieurs dans lesquels sont intégrées
les règles impératives, non à l’inverse).
B) La convention d’arbitrage ne concerne pas les règles impératives appli-
cables. Elle constitue seulement la voie par laquelle sont réglées les
controverses dérivant de ces règles.

D. Relation entre Arbitrabilité et Ordre Public

En ce qui concerne l’influence de l’OP sur l’arbitrabilité d’un cas déter-


miné, il convient de revenir sur ce qui a été exposé plus haut à propos de la
notion de l’OP envisagé d’une perspective internationale ou nationale. Nous
l’avons déjà vu, l’OP international a un caractère plus limité, plus serré que
l’OP national et le principe favor arbitrandum s’applique plus facilement dans le
domaine international. La législation espagnole, pour sa part, semble recueillir
ces principes et faire procéder à leur application.

(i) L’arbitrage international

Afin d’étudier l’influence éventuelle de l’OP sur l’arbitrabilité, il faut


recourir à l’article 9.6 de la Loi d’Arbitrage. Selon cet article, basé sur le prin-
cipe favor arbitrandum propre au droit international privé, une controverse est
susceptible d’arbitrage lorsque sont respectées les conditions imposées par les
normes que les parties ont choisies pour régir la convention d’arbitrage, ou
bien celles imposées par les normes applicables au fond de la controverse ou
par le droit espagnol.

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Ordre Public et Arbitrabilité 815

Par conséquent, la possibilité de soumettre une controverse internationale à


la voie de l’arbitrage en Espagne doit être étudiée, non seulement du point de
vue de la législation espagnole, mais aussi bien de la perspective des lois d’autres
pays susceptibles d’avoir une grande importance décisive pour apprécier l’arbi-
trabilité de la dispute.

(ii) L’arbitrage national

En cas d’arbitrage national, le texte légal auquel il faut recourir pour appré-
cier l’arbitrabilité, c’est l’article 2 de la Loi d’Arbitrage, déjà mentionné, selon
lequel sont arbitrables les disputes portant sur des matières soumises au pouvoir
de disposition des parties.
Pour ce qui est de la relation entre l’OP et l’arbitrabilité, il faut prendre en
considération que la notion de disponibilité à laquelle nous nous référons est
une faculté de disposition relative aux aspects procédurales et non matériels des
relations juridiques. Nous l’avons déjà indiqué, les parties peuvent choisir libre-
ment la procédure à suivre pour la résolution de leurs disputes, alors qu’elles ne
peuvent pas convenir de ne pas appliquer une règle impérative.

(iii) Contrôle de l’OP

Comme nous l’avons déjà dit, l’OP peut avoir une importance décisive sur
la vie de la procédure d’arbitrage à deux moments différents: d’une part, lors
de l’initiation de cette procédure (lorsqu’il faut préciser si l’arbitre peut ou non
connaître de l’affaire soumise à sa considération, ce qui est possible lorsqu’il ne
s’agit pas d’une matière d’OP dont la connaissance lui est interdite) et, d’autre
part, au moment où l’une quelconque des parties entend utiliser les moyens de
recours mis à sa disposition par la Loi (qu’il s’agisse d’un recours proprement
dit ou de l’exercice de l’action en nullité).
Même si nous avons déjà parlé des relations entre l’OP et l’arbitrabilité en
ce qui concerne la possibilité de soumettre une matière donnée à la voie de
l’arbitrage, permettez-moi de mentionner ici brièvement le contrôle de l’adé-
quation de la procédure d’arbitrage à la notion de l’OP.
Le Droit espagnol accorde aux parties la possibilité de demander l’annu-
lation de la sentence arbitrale moyennant l’exercice de l’action en annulation.
À ce propos, je dois avouer qu’en Droit espagnol les parties ne peuvent
pas, à mon avis, convenir de ne pas exercer l’action en annulation, ce qui, par
contre, semble être possible dans d’autres pays. La raison sur laquelle je base

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816 Francisco G. Prol

mon affirmation, c’est que l’impossibilité de demander aux tribunaux judi-


ciaires la révision de la légalité d’une sentence arbitrale pourrait justement vio-
ler les principes de l’OP.
Il semble en effet que le législateur espagnol a toujours voulu que les tri-
bunaux de justice puissent réviser les sentences d’arbitrage, et ceci afin de res-
pecter le mandat constitutionnel en vertu duquel tous les espagnols ont droit à
la prestation de la justice effective.
L’intervention des tribunaux, même s’ils se bornent à exercer leur rôle de
contrôleurs de la légalité de la procédure arbitrale lors de l’exercice de l’action
en nullité, protège les parties contre un mauvais fonctionnement de l’institu-
tion arbitrale.
À certains auteurs qui soutenaient la thèse qu’il n’était pas possible de sou-
mettre à l’arbitrage certains litiges dans lesquels la volonté des parties de suivre
cette voie n’était pas exprimée de façon claire et expresse (se basant sur l’idée
que l’absence d’intervention des tribunaux dans ces cas pourrait être considérée
comme un refus de prestation de justice effective), il a été répondu que les tri-
bunaux peuvent intervenir dans la procédure d’arbitrage, à la demande des par-
ties, pour contrôler l’adéquation de cette procédure à la législation applicable.
Cette intervention, moyennant la connaissance de l’action en nullité, vient
donc atténuer le problème du manque d’intervention des juges dans la procé-
dure arbitrale (du moins dans la première étape de cette procédure).

En guise de conclusion, il m’est à cœur de citer le propos du Professeur


Charles Jarrosson (Les modes alternatifs de règlement des conflits. Présentation générale,
1997) eu égard l’avenir des méthodes de solution alternative des controverses:

«II est encore trop tôt pour savoir si nous vivons une étape importante dans l’histoire du
contentieux, qui verrait naître un nouvel état d’esprit dans le traitement des litiges, favorisant
notamment le désencombrement des tribunaux, ou s’il ne s’agit là que d’une mode passagère,
généralisée par la facilité des transmissions et le goût immodéré des juristes pour les colloques.
Quoi qu’il en soit, la responsabilité des juristes en la matière est grande ; en effet, il leur faut
anticiper les difficultés à venir tout en évitant d’en créer là où il n’y en avait pas vraiment.
L’efficacité des modes alternatifs est tributaire de leur simplicité et de leur souplesse. Laissons
aux stipulations particulières le soin d’affiner les détails de leur fonctionnement en fonction
des circonstances et des besoins.»

Paris, Novembre 2013

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese *
DOUTOR LUÍS VASCONCELOS ABREU
1

“To all readers of these public records: we declare that the learned master
Giovanni de Anglio, physician [medicus], has undertaken the treatment and
medication of Bertholucio, nobleman, son of the late Guidone dei Samaritani,
a citizen of Bologna. Master Giovanni shall pursue such treatment in exchange
for fifty good and sound golden florins, weighed Bologna style, at the terms
and conditions set herein: that said Master Giovanni has promised to treat and
heal Bertholucio from his illness, with the help of medications, waters, and
concoctions that Master Giovanni will buy at his own expense; so that in the
next forty days Bertholucio will be convalescing and improving, to the point
of being again able to partially move his hand, foot, thigh, and leg, to use said
hand to dress himself and put on shoes, and to wash his healthy hand with the
one which is now ill. These terms being met before the end of the forty days,
Bertholucio has promised and agreed to promptly compensate said master
with twenty-five golden florins out of the total amount of fifty, in payment for
the medications already administered and those still needed in order to com-
plete his recovery. Said master has also promised an agreed to treat, medicate,
and completely cure Bertholucio in such a way that he will clearly feel well in
the sick side as in the other one; and once he feels he has recovered his health,

*
Texto correspondente à apresentação da tese de doutoramento em Direito “Para o estudo da
responsabilidade civil contratual médica no direito privado português”, aquando da sua discussão
em provas públicas, no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, no dia 29 de Junho de 2015,
perante um Júri composto pelo Professor Doutor Carlos Manuel Gutierrez Sá da Costa, Professor
associado do ISCTE – IUL, que presidiu, por delegação do Reitor, pelo Professor Doutor André
Gonçalo Dias Pereira, Professor auxiliar da Universidade de Coimbra, arguente, pela Professora
Doutora Paula Lobato de Faria, Professora associada da Escola Nacional de Saúde Pública e Uni-
versidade Nova de Lisboa, arguente, pelo Professor Doutor Vítor Pereira Neves, Professor auxiliar
da Universidade Nova de Lisboa, arguente, pela Professora Doutora Maria Eduarda Barroso Gon-
çalves, Professora catedrática do ISCTE – IUL, e pelo Professor Doutor Manuel Pita, Professor
auxiliar do ISCTE – IUL, orientador e arguente. A tese foi aprovada e encontra-se depositada no
Repositório do ISCTE-IUL, com o identificador http://hdl.handle.net/10071/10007.

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818 Luís Vasconcelos Abreu

Bertholucio has promised to promptly pay, upon request, the balance of the
agreed-upon sum – that is, another twenty-five florins of pure gold according
to standard. Furthermore, Raynerio, son of the late Jacopino de Arzellata and
chaplain of Santa Maria Maggiore, has officially and solemnly declared to Mas-
ter Giovanni that he received in escrow the said fifty florins from Bertholucio,
and has promised to give the master the entire amount as previously establi-
shed, on condition that he [Bertholucio] feels completely cured.”
Incluído em Gianna Pomata, Contracting a cure. Patients, healers and the law in early
modern Bologna, Baltimore e Londres: The John Hopkins University Press, 1998

Resumo: Neste artigo, o A. apresenta a sua tese sobre a responsabilidade civil


contratual médica no direito privado português. Começa por explicitar o objeto
e o propósito da sua investigação, bem como a metodologia utilizada. Faz notar,
logo à partida, o interesse prático e a atualidade do tema. As especificidades da
ciência jurídica são, de seguida, objeto de especial atenção. A referida tese data do
final de 2014, pelo que o A. procurou atualizá-la, à luz dos contributos doutri-
nários e jurisprudenciais entretanto surgidos. Entre outros temas, são analisadas as
relações entre o direito e a medicina, é dada uma breve nota sobre a medicina de
hoje, define-se o atual paradigma da relação médico-doente, com pleno reconhe-
cimento do direito à autodeterminação deste último, por oposição ao paternalismo
médico do passado, e sublinha-se a importância da ética e da deontologia médicas
na determinação do conteúdo da relação contratual entre o profissional e o respe-
tivo doente. É destacado o importante papel do consentimento informado, como
verdadeiro momento de “viragem”, no que se refere ao enquadramento jurídico
da atividade médica, com reflexos no plano da responsabilidade civil. Com efeito,
o A. sustenta ser essa uma importante “chave” para a resolução dos problemas
da responsabilidade civil contratual médica, nomeadamente quanto à questão do
risco, entendimento que já estava presente na doutrina e acabou por ter recente-
mente acolhimento na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. Para além
de procurar demonstrar a necessidade de uma intervenção legislativa, destinada a
clarificar e uniformizar alguns aspetos de regime, sobre os quais existem posições
doutrinárias e jurisprudenciais em sentidos contraditórios, que não se coadunam
com a relevância social da matéria, a tese do A. consiste em sublinhar a especifi-
cidade da responsabilidade civil contratual médica, no que se refere à repartição
do risco através da informação. Como anexo, é disponibilizada uma tradução para
português dos parágrafos 630a a 630h do Código Civil alemão, introduzidos pela
Lei para a Melhoria dos Direitos das Doentes e dos Doentes, de 20 de Fevereiro
de 2013.

Palavras-chave: direito e medicina; direitos dos doentes; consentimento infor-


mado; responsabilidade civil contratual médica; direito português

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 819

Abstract: In this article, the Author explains his thesis about medical contractual
liability under Portuguese private law. He begins by describing the subject and
the purpose of his study, as well as its methodology. The great significance of the
subject is pointed out. Also, the specificities associated with the science of law are
mentioned. The thesis was concluded at the end of 2014, so the Author updated it,
considering the new materials, both from the doctrine and from the jurisprudence,
that have been made available during 2015. Among the topics dealt with, one can
find: the interactions between law and medicine, the diversity and complexity of
the latter nowadays, the new paradigm for the doctor-patient relationship, with
full recognition of the right of self-determination of the patient, as opposed to the
paternalistic approach of the past, and the significance of medical ethics and medi-
cal deontology for the contractual relationship between doctor and patient. As it
is well-know, the doctrine of informed consent represented the most important
change in the way law regulates medicine that occurred in the past decades and
such doctrine is of great significance for the issue of medical liability. The Author
considers informed consent as a relevant “key” to solve medical malpractice claims,
namely on what concerns which party should carry the burden of the risk of the
treatment. This was already mentioned in the doctrine, but only recently did the
Portuguese Supreme Court of Justice adopt the same position. Apart from sugges-
ting the need for some changes in the law, in order to avoid different understan-
dings by the doctrine and the jurisprudence, something that the social relevance of
the subject cannot favor, the Author’s thesis consists of putting in evidence the role
of the exchange of information between the doctor and the patient for a correct
risk distribution between the two parties, a criteria that is almost private of medical
malpractice law. As an annex, the Author makes available a Portuguese translation
of paragraphs 630a to 630h of the German Civil Code, which were introduced in
2013, by the Law for the Improvement of Patients’ Rights.

Keywords: law and medicine; patient’s rights; informed consent; medical mal-
practice law; Portuguese law

1. Quem se propõe elaborar uma tese não pode deixar de ser questionado,
e de se questionar, sobre o objeto e o propósito da sua investigação, bem como
relativamente à metodologia adotada.

(i)

Neste caso, para fundamentar o interesse prático e a atualidade do tema, repor-


to-me à expressão constante do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 42/2005, de
22 de fevereiro, que aprovou os princípios reguladores de instrumentos para a
criação do espaço europeu de ensino superior: é um tema “próximo dos inte-

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820 Luís Vasconcelos Abreu

resses da sociedade”1. O mesmo permite fazer, portanto, a ligação entre a investi-


gação académica e a melhoria da vida em sociedade, no caso contribuindo para
um melhor conhecimento e resposta ao contencioso da responsabilidade civil
contratual médica.

(ii)

Quanto ao objetivo visado, ele foi, como é caraterístico deste tipo de traba-
lhos, o de contribuir para a aquisição de conhecimento num domínio jurídico
delimitado.
No texto da tese, secundei-me de Karl Popper e de Claus-Wilhelm Cana-
ris, sobre a função das teorias jurídicas e o seu caráter científico, atenta a possibilidade
de ser demonstrada a respetiva incorreção.
Pretendo agora penitenciar-me por não ter citado também Baptista
Machado e fazê-lo aqui: “duas funções principais se assinalam à teoria científica:
esclarecer ou explicar certos dados (função esclarecedora ou de relacionamento) e
permitir a prognose ou dedução de proposições sobre dados até ali despercebi-
dos, inarticulados ou sem relevância (função heurística)” (itálicos meus).
Voltando à tese, nela referi a conhecida bipartição de Umberto Eco, quanto
às descobertas científicas em ciências humanas, entre a tese de investigação, com maior
risco, e a tese de compilação, que consiste na análise crítica de toda a literatura
existente sobre o tema, avançando pretender fazer um pouco das duas.
Mas gostaria ainda de aqui retomar as importantes considerações de Baptista
Machado sobre a natureza e o método da ciência jurídica: «a natureza científica de
uma disciplina de pensamento carateriza-se essencialmente pela fecundidade
explicativa (interpretativa ou de relacionamento) e heurística das suas concei-
tuações, e bem assim pela sistematicidade das suas teorias e possibilidades de
controlo racional das suas conclusões. É a Ciência do Direito capaz de incremen-
tar o seu conhecimento em termos de aquisição de conhecimentos novos, em termos de
aprofundamento, inventividade e descoberta? O seu discurso conclusivo vincula ou
é suscetível de vincular em termos racionais – e, consequentemente, tanto as
suas indagações como esse discurso admitem um controle racional suficiente-
mente rigoroso? Assentaremos em que a dogmática jurídica moderna, represen-
tando embora uma forma de pensamento valorativamente orientada, visa tornar
os problemas jurídicos concretos “decidíveis” – mediante a redução das alterna-
tivas de decisão possíveis – num quadro de objetiva racionalidade, já descorti-
nando os princípios jurídicos que estão na base das normas legais e dando-nos em

1
Alexandra Aragão, Breves reflexões em torno da investigação jurídica, BFDUC, vol. LXXXV,
2009, 764-793.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 821

espetáculo racional coerente o jogo desses princípios, já “concretizando” esses


mesmos princípios e normas através de tipologias de casos que exemplificam e
perspetivam as respetivas valorações mediante a referência a pontos de conexão
que são caraterísticas de facto de situações da vida» (itálicos meus).
Noutra passagem: «pode ser-se tentado a negar caráter “científico” à inves-
tigação jurídico-dogmática por duas ordens de razões, entre outras. Porque as
suas “teorias” não revelam aquela autonomia ou liberdade perante o objeto que
é próprio das teorias científicas; e, por outro lado, porque os resultados podem
ser e são muitas vezes incorporados pela regulamentação jurídica positiva (o
que denunciaria o caráter normativo das proposições que os exprimem). Pelo
que os esforços de conceituação e sistematização da dogmática jurídica – deve-
ria concluir-se – apenas teriam um valor didático-expositivo que não virtualiza
a aquisição de conhecimentos novos ou o seu aprofundamento. Embora as
premissas estejam certas, não é de aceitar a conclusão. É verdade que a ciência
jurídica não tem “transcendência teórica” e que o espaço de jogo das suas teorias
é delimitado por funções estranhas a qualquer teoria: as funções do Direito. Mas
é também verdade que aquela ciência transpõe o material jurídico que ela-
bora para um plano de racionalidade e abstração (abstração concretizante) que não
é o mesmo em que esse material é colhido. Por outro lado, como vimos, a
linguagem específica da dogmática jurídica permite abrir “espaços lúdicos” à
indagação, habilitando assim para uma iniciativa em que se joga consciente-
mente com as virtualidades dessa linguagem. É ainda verdade que a ciência
jurídica aparece como uma ciência estranha cujos resultados vêm sendo incor-
porados, pelo menos em parte, no seu objeto (Léon Husson). Porém, isto, que
se explica pelo facto de a ciência jurídica não pertencer ao sistema das ciências
(não ser uma ciência), não permite concluir que ela não opera segundo critérios
“científicos”, isto é, racionalmente controláveis» (itálicos meus).
Em jeito de conclusão: «embora obedeça a uma discursividade científica
(dimensão científica do Direito), a ciência do Direito tem um modo de estar-
-em-relação com a praxis caraterístico e talvez único. O seu discurso veicula
um desígnio organizativo-normativo, não um autónomo desígnio gnoseoló-
gico (explicativo ou de esclarecimento). As questões e problemas que a dog-
mática jurídica visa tornar resolúveis e decidíveis não são questões e proble-
mas originados na sua específica maneira de “inspecionar” e interrogar o seu
objeto (o que por certo significa que a ciência do direito não tem um objeto
formal próprio, como qualquer ciência), mas problemas de efetuação prática,
de “instituição” do Direito em decisões que lhe dão vigência concreta. O que
significa que os problemas principais cuja resolução ela tem que viabilizar não
são problemas gnoseológicos mas problemas de funcionamento ou de operativi-
dade de uma função social: a função social do Direito. Ela dá expressão prática ao

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822 Luís Vasconcelos Abreu

desígnio imanente a tal função social e, portanto, como instrumento que é desse
desígnio, não pode ocupar a posição de espetador que inspeciona esse desígnio
numa atitude teorética ou especulativa. Parte integrante da realidade vital do
Direito, jamais pode, como tal, constituir-se em teoria autónoma e autorrefe-
renciada perante tal realidade. Numa palavra: ela é parte integrante da própria
vida do Direito – e não ciência do Direito. Qualquer ciência pertencente
ao sistema das ciências tem sempre um horizonte de investigação ilimitado,
porque é polarizada por um “transcendental” qualquer, quando mais não seja
pelo desígnio gnoseológico (de explicação ou esclarecimento) impresso no seu
objeto formal. É esse “transcendental” que lhe confere “transcendência teó-
rica”, abre um horizonte ilimitado à sua investigação e garante uma liberdade
particular à teoria em face do seu objeto material (pelo menos enquanto estão
em causa conceitos teoréticos), dado que aquela se afirma na sua autonomia e
obedece à lógica intrínseca do seu sistema próprio. Daí que se possa dizer que
as disciplinas pertencentes ao sistema das ciências se constituem num plano de
racionalidade e abstração tal que situam a realidade por elas estudada (o seu
objeto material) no exterior do sistema teórico de conhecimento que elaboram.
Ao passo que a ciência dogmática do Direito se articula operativamente com este
e se subordina ao desígnio (função) deste. Ora, uma “ciência” que se arti-
cula operativamente com a realidade que racionalmente elabora faz parte inte-
grante dessa realidade. O seu espaço de racionalidade e o seu nível de abstração
são instrumentais, são determinados por exigências funcionais de um subsistema
da realidade social (o Direito)»2 (itálicos meus).

(iii)

Assumidas as especificidades da ciência jurídica, cabe referir, em termos


metodológicos, o problema e a hipótese de investigação3:
(i) o problema foram os cada vez em maior número casos de responsabili-
dade civil contratual médica e a resposta que lhes é dada pelo ordena-
mento jurídico português;
(ii) a hipótese consistiu em pensar que efetivamente se trata de um setor que
tem uma “racionalidade específica”, que justifica “uma metodologia

2
J. Baptista Machado, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, 3.ª reimpressão, Coimbra:
Almedina, 1989, 359-375, 364/365, 366/367 e 369/370.
3 Desenvolvidamente, Clara Pereira Coutinho, Metodologia de investigação em ciências sociais e

humanas: teoria e prática, 2.ª ed., reimpressão, Coimbra: Almedina, 2014.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 823

de resolução dos problemas distinta” (André Dias Pereira)4. A prin-


cipal pista residia no papel do consentimento informado na distribui-
ção do risco e, consequentemente, na resolução de muitas situações de
responsabilidade civil contratual médica. Para além da relevância prá-
tica, sobressaía igualmente o potencial significado teórico, ao nível do
enquadramento dogmático, perante os quadros tradicionais.

A investigação pode ser caraterizada como normativa, respeitando a reali-


dade, que está em formação contínua, quer pela doutrina, quer pela jurispru-
dência. Visava uma avaliação ao nível do conjunto, não, portanto, uma recensão
individualizada de decisões judiciais ou de contributos doutrinários.
Nas palavras de Antoine Leca: “Hélas, il n’est pas possible de fixer dans
le marbre de la loi ce qu’est l’acte ou l’omission que n’aurait pas commise le
bon praticien et a fortiori de donner une définition du bon médecin. Où donc
commencent précisément l’imprudence et la négligence qu’on regarde comme
fautives par définition? D’où le necessaire recours au contexte propre au cas
d’espèce, qui va donner lieu à l’appréciation souveraine des juges du fond”5.
Ou seja, sabia onde ia começar, mas não sabia, à partida, como iria concluir.

2. Para ilustrar esta realidade, refiro que, só em 2015, e ainda o ano vai
a meio, foi publicada a já citada tese de doutoramento do Professor André
Dias Pereira, a Professora Paula Lobato de Faria publicou, em coautoria com
o Professor João Cordeiro, uma apresentação do Serviço Nacional de Saúde,
incluída numa obra especializada publicada em Espanha6, e a Professora Carla
Amado Gomes ocupou-se da responsabilidade civil médica num artigo há pou-
cos dias vindo a público7. Alargando o espectro à análise do contributo da
ciência médica para o direito, aspeto que tratei na primeira parte da tese, há que
referir também a investigação de Ana Sousa e Brito, a qual analisa a relevância
da neurociência para o direito penal8.

4 André Gonçalo Dias Pereira, Direitos do paciente e responsabilidade médica, Coimbra: Coimbra
Editora, 2015.
5 Antoine Leca, Droit de l’exercice médical en clientèle privée, 4.ª ed., Bordéus: Les Études Hospita-

lières, 2013, 11.


6 Paula Lobato De Faria/João V. Cordeiro, El Servicio Nacional de Salud en Portugal: breve pre-

sentación, in Derecho y Salud como realidades interactivas (dir. Jorge Tomillo Urbina/Joaquín
Cayón de las Cuevas), Cizur Menor: Aranzadi, 2015, 951-962.
7 Carla Amado Gomes, With great power comes great responsibility: apontamentos sobre responsabilidade

civil médica e culpa do paciente, O Direito, ano 147.º (2015), I, 33-43.


8 Ana Bárbara Sousa e Brito, A negligência inconsciente: entre a dogmática penal e a neurociência,

Coimbra: Almedina, 2015.

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824 Luís Vasconcelos Abreu

Atendendo agora ao plano da jurisprudência, há que mencionar os seguin-


tes cinco acórdãos9:
(i) Ac. STJ 12-Mar.-2015 (Hélder Roque) (Proc. n.º 1212/08.4TBBCL.
G2.S1): trata-se de um caso de responsabilidade pelo diagnóstico pré-
-natal e o Acórdão em causa veio na sequência do Ac. RGm 19-Jun.-
2012 (Rosa Tching) (Proc. n.º 1212/08.4TBBC1.G1), referenciado na
tese, o qual mandara realizar novo julgamento.

Cabe aqui salientar os seguintes aspetos:


• a afirmação, que não é inteiramente correta, de que “o Direito é a ciên-
cia do mínimo ético, concêntrica com a Moral, mas com um diâmetro
inferior a esta, em que, apenas, alguns dos valores que tutela têm igual
denominador comum com aquele”, mas acompanhada da importante
conclusão de que “o Direito, enquanto ordem normativa reguladora de
interesses sociais conflituantes, não deve servir como escudo de valores
religiosos, morais, filosóficos, éticos ou de costumes”, no caso a propósito
da não denegação do “proclamado exercício da faculdade de interrupção
voluntária da gravidez”;
• o sufragar, pelo STJ, da tese segundo a qual na responsabilidade contratual
a culpa só se presume se a obrigação for de resultado, cabendo ao doente
fazer a prova da culpa no caso de a obrigação ser de meios, como sucede
“na maioria dos contratos de prestação de serviços médicos”, posição
que, em meu entender, merece censura, na medida em que retira ao
lesado, com base numa distinção que a lei não faz, o benefício do regime
mais favorável decorrente da presunção de culpa do artigo 799.º, n.º 1 do
CC;
• a conclusão, sem mais, no sentido de que “uma das exceções, na área da
Ciência Médica, em que se verifica a obrigação de resultado, situa-se no
campo dos exames laboratoriais e radiológicos”, a qual igualmente não se
acompanha, pois importa analisar sempre o caso concreto;
• a afirmação que “ocorre a presunção, a favor do credor da informação
sobre o diagnóstico, do seu não cumprimento pelo médico, que faz parte
dos denominados “deveres laterais do contrato médico”, e pode ser causa
de responsabilidade contratual”, porque “o teria feito comportar-se, de
forma adequada, ou seja, no caso, que os pais teriam optado por abortar,
caso soubessem da deficiência do filho”;

9
Acessíveis através de www.dgsi.pt.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 825

• e ainda: “O nexo de causalidade entre a ausência de comunicação do


resultado de um exame, o que configura erro de diagnóstico, e a deficiên-
cia verificada na criança, que poderia ter culminado na faculdade dos pais
interromperem a gravidez e obstar ao seu nascimento, constitui o pressu-
posto determinante da responsabilidade civil médica em apreço”. “Existe
nexo de causalidade suficiente, ou nexo de causalidade indireto, entre a
vida portadora de deficiência e a correspondente omissão de informação
do médico pelo virtual nascimento do feto com malformação, devido
a inobservância das leges artis, ainda que outros fatores tenham para ela
concorrido, como seja a deficiência congénita”;
• “A comparação, para efeitos de cálculo da compensação, opera não entre
o dano da vida, propriamente dito, mas entre aquele e o dano da defi-
ciência que essa vida comporta, pelo que o valor negativo é atribuído à
vida defeituosa e o valor positivo à vida saudável”. “Nas wrongful birth
actions, são ressarcíveis os danos não patrimoniais e patrimoniais, não se
incluindo, nestes últimos, todos os custos derivados da educação e sus-
tento de uma criança, mas, tão-só, os relacionados com a sua deficiência,
estabelecendo-se uma relação comparativa entre os custos de criar uma
criança, nestas condições, e as despesas inerentes a uma criança normal,
pois que os pais aceitaram, voluntariamente, a gravidez, conformando-se
com os encargos do primeiro tipo, que derivam do preceituado pelo art.
1878.º, n.º 1, do CC”.
No caso, ficou provado que as deformidades já existiam à data das eco-
grafias realizadas precisamente para as detetar, pelo que nelas poderiam
e deveriam ter sido assinaladas. Segundo o STJ, “as ações ou omissões
culposas que podem estar na origem dos danos indemnizáveis decor-
rentes da realização de um diagnóstico pré-natal contendem com a má
execução de uma técnica, com a má interpretação de resultados ou a falta
de comunicação dos resultados aos interessados. A má execução de uma
técnica pode, apenas, dar origem a um falso negativo, escondendo uma
deficiência grave do nascituro ou pode traduzir-se na determinação de
lesões físicas, na grávida ou no feto, ao passo que a má interpretação dos
resultados, tanto pode dar origem a um falso negativo, que vem a nascer
com deficiências graves, como dar origem a um falso positivo, cuja gesta-
ção pode ser interrompida, erradamente”. Os exames foram mal interpre-
tados e o respetivo resultado não foi comunicado aos pais, cuja “adesão
ao prosseguimento da gravidez não foi consequente a um consentimento
esclarecido, dotado de todas as informações relevantes”. Daí a revogação
do Acórdão recorrido e a repristinação da Sentença de primeira instância,
que julgara a ação parcialmente procedente e atribuíra a quantia de 35 mil

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826 Luís Vasconcelos Abreu

euros a cada um dos autores, bem como “a quantia que se vier a liquidar,
no competente incidente de liquidação, quanto às despesas que os autores
AA e BB vão ter de suportar, com a substituição das próteses do filho, até
este atingir os 18 anos de idade”10;

(ii) Ac. RLx 26-Mar.-2015 (Maria José Mouro) (Proc. n.º 273/08.0TVLSB.
L1.-2): estava em causa a responsabilidade quer de um profissional
quer de uma clínica pelo exercício da medicina dentária, concreta-
mente um longo e complexo tratamento a um paciente que sofria de
bruxismo (patologia que se carateriza por uma pressão anormal nos
dentes no período noturno e/ou diurno) e que implicou a colocação
de pontes dentárias. A matéria da informação ao doente foi ponde-
rada, conforme consta dos factos não provados. Assim, não se pro-
vou: (i) a falta de informação sobre a necessidade de, a médio prazo,
serem colocadas novas pontes e implantes; (ii) que o réu médico não
tivesse apresentado as várias alternativas médicas de tratamento, res-
petivas desvantagens e riscos, assim como “a opção de colocação de
implantes que poupariam os dentes sãos sem ter que os desvitalizar”;
e, ainda, (iii) “que o mesmo réu nunca tenha comunicado ao autor as
exigências acrescidas de higiene oral e a necessidade de destartarizações
regulares com os inerentes custos”. No plano do enquadramento dos
factos nos regimes da responsabilidade contratual e/ou extracontra-
tual, o Tribunal da Relação de Lisboa, não obstante haver lamentado
que os elementos de que dispunha não eram abundantes, manteve
o entendimento da primeira instância, no sentido de a responsabili-
dade da clínica ser contratual e a do médico aquiliana. “Nos casos de
contrato de prestação de serviço em que os sujeitos são uma clínica
e o paciente e em que o objetivo exclusivo é a prestação de serviços
médicos/odontológicos, necessariamente executados por um ou mais
médicos/odontologistas, a obrigação de prestação do serviço é assu-

10
O mesmo litígio foi ainda objeto do Ac. n.º 55/2016, de 2 de Fevereiro de 2016, do Tribunal
Constitucional (Teles Pereira) (Proc. n.º 662/15), que decidiu: “Não julgar inconstitucionais
os artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil, interpretados no sentido de abrangerem, nos ter-
mos gerais da responsabilidade civil contratual – no quadro de uma ação designada por nascimento
indevido (por referência ao conceito usualmente identificado pela expressão wrongful birth) -, uma
pretensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, não
atempadamente detetada ou relatada aos mesmos em função de um erro médico, a serem ressar-
cidos (os pais) pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro
das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade
para determinar ou modelar essas opções”.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 827

mida pela clínica, embora haja de ser executada por pessoal habilitado,
sendo aquela responsável, nos termos do n.º 1 do art. 800.º do CC
pelos atos praticados pelas pessoas que utilize para o cumprimento das
suas obrigações”. “Nestes casos, o médico/odontologista não se obriga
diretamente para com o paciente, sem prejuízo de a clínica acionar o
profissional de saúde tendo em conta o contrato que os vincula e da
responsabilidade extracontratual do mesmo profissional de saúde para
com o paciente”. Quanto às questões de fundo: “Tendo o A. confe-
rido à R., através do R., a execução de cuidados de caráter abrangente
referentes à sua saúde oral, a obrigação principal assumida é uma obri-
gação de meios, não estando a R. vinculada a um resultado concreto”;
“Nesse âmbito – da responsabilidade contratual – caberia ao A. alegar
e provar a objetiva desconformidade entre os atos praticados e as legis
artis, assim como o nexo de causalidade entre esses atos e os danos
– para além desses mesmos danos; já quanto à culpa haverá que con-
siderar a presunção de culpa resultante do n.º 1 do art. 799.º do CC
– nada impedindo que isto também suceda na obrigação de meios”;
e, sobretudo, a Relação de Lisboa concluiu pela falta do pressuposto
da ilicitude, comum a ambos os regimes de responsabilidade – “não
resultou concretamente demonstrado que a atividade desenvolvida no
tratamento do A. fosse desnecessária ou inútil, ou que sendo adequada
ou necessária haja sido praticada de forma deficiente ou defeituosa, ou,
ainda, que hajam sido omitidos atos necessários e adequados à situação
clínica do A.. Não se provou que a atividade desenvolvida no tratamento do
A. ocorreu em desconformidade com as legis artis. Não basta, para esse efeito,
haverem-se provado as referidas fraturas das pontes dentárias, desgastes
e fraturas das próteses, bem como as infeções de que o A. sofria e o
aparecimento de um quisto a que o A. foi intervencionado no dia 23
de Agosto de 2006 relacionado com a raiz de um dente que vários anos
antes fora tratado pelo R. J.M.. Na realidade, não sabemos porque é
que essas ocorrências sucederam. Haverá que acrescentar, quanto ao
tratamento efetuado pela 2.ª R. através de O.D., que ele não logrou
resolver a totalidade dos problemas que o A. então apresentava. Toda-
via, também isso, à luz do que viemos expondo, não é suscetível de cara-
terizar, por si só, um incumprimento (ato ilícito) da mesma R..”;
(iii) Ac. STJ 28-Mai.-2015 (Abrantes Geraldes) (Proc. n.º 3129/09.6TBV
CT.G1.S1): o STJ foi chamado a pronunciar-se numa situação em que
se discutiu a eventual violação das leges artis por um médico do trabalho
(1.º Réu). A A. era trabalhadora de uma empresa de trabalho tempo-
rário, que a havia cedido à 2.ª Ré. Esta, por seu turno, contratara com

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828 Luís Vasconcelos Abreu

a sociedade para a qual trabalhava o 1.º Réu o exercício, pela mesma


sociedade, das funções de médico de trabalho na empresa. No dia 27
de Outubro de 2008, a A., enquanto prestava o seu trabalho na 2.ª Ré,
“começou a queixar-se de cefaleia intensa e súbita, sem causa aparente,
e queixou-se ainda de dormência e falta de força no lado direito do
corpo, bem como manifestou dificuldades em falar e perda de equilí-
brio; além disso, a boca da A. ficou torta”. O médico do trabalho exa-
minou a A. no consultório médico existente nas instalações da 2.ª Ré,
assistido por uma enfermeira, e efetuou-lhe os procedimentos básicos
e estandardizados que permitem identificar um acidente vascular cere-
bral (AVC). Seguidamente, mediu a tensão da A. e procedeu à res-
petiva auscultação. Como a A. não manifestou nenhuma dificuldade,
concluiu que se tratava de uma crise de ansiedade, tendo ministrado
um ansiolítico e colocado a A. em repouso e observação no gabinete
médico, por um período de três horas. Decorrida cerca de uma hora,
a A. informou que se sentia melhor e pretendia ir para casa, o que
fez, conduzindo o seu automóvel. Nesse mesmo dia, contudo, veio a
sofrer um AVC. O STJ manifestou o entendimento de que “a atuação
do médico, no âmbito ou fora de um contexto contratual, implica, por
regra, a satisfação de uma obrigação de meios que se traduza em prá-
ticas médicas que, de forma diligente, respeitem as leges artis ajustadas
a cada situação”. O Acórdão enquadrou a responsabilidade do médico
do trabalho no regime da responsabilidade extracontratual, pois não
descortinou qualquer vinculação contratual que a A. pudesse invo-
car em seu benefício, até porque, conforme afirmou, a medicina do
trabalho abarca apenas as questões de saúde dos trabalhadores que são
postas em causa pelas específicas condições de trabalho, o que não era
o caso. Se o enquadramento jurídico efetuado pode eventualmente
ser questionado, nomeadamente à luz da figura do contrato com efi-
cácia de proteção para terceiro, mostra-se pacífica a conclusão de que
não houve erro de diagnóstico e de que foram cumpridos os proce-
dimentos impostos pelas leges artis – “não podemos partir do trágico
acontecimento posterior para sindicar a atuação anterior. Ao invés, a
apreciação dos pressupostos da responsabilidade, como a ilicitude e a
culpa do R. BB, deve ser feita em face dos elementos que estavam
disponíveis na ocasião em que se deu o primeiro evento e em que a A.
foi observada medicamente, em conjugação com as regras que as boas
práticas da atividade médica aconselhavam ou impunham em face de
uma sintomatologia semelhante à que a A. apresentava. Ora, em face
dos sinais que a A. apresentava, não é possível afirmar que lhe viesse

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 829

a suceder um AVC, nem asseverar que se impunha outra atuação de


natureza preventiva mais assertiva do que aquela que o R. adotou”11;
(iv) Ac. STJ 2-Jun.-2015 (Maria Clara Sottomayor) (Proc. n.º
1263/06.3TVPRT.P1.S1): este acórdão do STJ sobre a responsabi-
lidade civil médica irá constituir certamente um marco na nossa juris-
prudência, pela sua qualidade e pela forma como resolveu a questão do
risco, com base precisamente no direito à autodeterminação do doente e na
doutrina do consentimento informado.

A factualidade mais relevante pode ser resumida assim: “A autora apre-


sentava cicatrizes em toda a zona inguinal, que, ao longo dos anos, foram des-
caindo, tornando-se visíveis, desde logo, na época balnear, quando a A. vestia
fato-de-banho”. “As cicatrizes em causa originavam uma aparência desagradá-
vel e causavam à A. grande desconforto a nível físico e psicológico, dado que a
pele visível era a dos grandes lábios vulvares, a qual tinha sido puxada na cirur-
gia”. “Assim, em Março de 2003, a A. consultou o R., especialista em cirurgia
plástica, no sentido de lhe pedir uma opinião sobre a hipótese de “subir” as
cicatrizes, de maneira a que estas não fossem visíveis abaixo da linha do fato-de-
-banho”. “Num primeiro momento, o R. realizaria uma pequena lipoaspiração
à parte interna das coxas, sob anestesia local, para que, com o excesso de pele
daí resultante, se pudesse passar à segunda intervenção”. “Num momento pos-
terior, e através de uma outra cirurgia, o R. “subiria”, então, as cicatrizes, de
modo a ficarem tapadas pelo fato-de-banho”. O médico acabou por “resolver
o problema” na primeira e única operação que realizou, “tendo aproveitado
a cirurgia para injetar na vulva os autoenxertos de gordura, colhidos da face
interna das coxas por lipoaspiração”. “A possibilidade de proceder ao enchi-
mento dos grandes lábios nunca foi discutida entre ambos, o que significa que
a A. nunca foi esclarecida sobre os riscos inerentes a esse procedimento”. A
paciente teve depois fortes dores e uma grave infeção no pós-operatório, pro-
vocadas pelo enchimento que foi realizado. “Anatomicamente, a A. ficou no
mesmo estado em que estava antes da cirurgia”. “A injeção de tecido adiposo
da autora na região vulvar, área de hidrosadenite supurativa crónica, doença
que constitui focos de processos inflamatórios e infeciosos recidivantes, é sus-
cetível de perturbar o equilíbrio dessa área”. “Por isso esta patologia importa

11
O médico havia sido condenado, em primeira instância, no pagamento de 160 mil euros, a
título de indemnização por danos patrimoniais, e de 80 mil euros, por danos não patrimoniais,
tendo sido absolvido do pedido pela Relação. A flagrante divergência de entendimentos entre as
instâncias, numa matéria tão sensível e gravosa para os doentes como para os médicos, justifica
bem a necessidade de uma intervenção legislativa, que clarifique as regras e dê segurança.

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830 Luís Vasconcelos Abreu

um agravamento do risco acrescido à realização de uma vulvoplastia”. A doente


assinou uma “autorização para intervenção cirúrgica ou procedimento espe-
cial”, com o seguinte teor: “Eu AA, autorizo a realização da intervenção cirúr-
gica ou procedimento especial Lipoaspiração das regiões crurais, cuja finali-
dade, natureza, benefícios, alternativas e riscos me foram explicados pelo Dr.
BB”. “Mais declaro autorizar a administração de qualquer tipo de anestesia,
tratamento, medicação ou transfusão, se considerados necessários pelo médico
responsável”. “Também autorizo o médico responsável e seus assistentes a faze-
rem tudo o que for necessário, incluindo operações ou procedimentos diferen-
tes dos acima discriminados, na eventualidade da ocorrência de complicações
no decurso daqueles”.
Decidindo, o STJ afirmou, com base no artigo 5.º da CDHB e no artigo
3.º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que “o
consentimento informado do doente, por força do primado da dignidade da
pessoa humana e da sua autodeterminação, é um requisito essencial da licitude
da intervenção cirúrgica”. O consentimento “tem que ser livre e esclarecido
para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico
será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os
danos derivados da intervenção não autorizada” (itálico meu). “O facto de a cirur-
gia ser medicamente indicada não é suficiente para determinar a sua licitude,
exigindo-se o conhecimento do doente e o esclarecimento sobre a índole,
alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou tratamento”.
Quanto ao documento relativo ao consentimento informado: “foram apenas
a lipoaspiração e a subida das cicatrizes os procedimentos médicos autoriza-
dos pela autora, discutidos com o réu e abrangidos pelo termo de consenti-
mento/autorização”; relativamente à vulvoplastia, “qualquer declaratário nor-
mal entenderia que o termo de consentimento apenas legitimava intervenções
não autorizadas urgentes e imprescindíveis para proteger a saúde da autora e
para fazer face a circunstâncias supervenientes ocorridas durante a operação,
suscetíveis de causar perigo para a saúde ou para a vida da paciente, e que não
eram previsíveis à data em que a declaração de consentimento foi proferida.
No caso concreto, esta intervenção cirúrgica não foi realizada no decurso de
qualquer complicação decorrente da lipoaspiração ou da subida das cicatrizes,
nem poderia sê-lo, porque se trata de uma operação estética, e não da resolução
de qualquer problema de saúde que tivesse surgido durante a operação e que
fosse necessário debelar”.
No que se refere à justificação da atuação do médico através do consenti-
mento presumido, o Acórdão sufragou o entendimento de que “em relação às
operações estéticas reconstrutivas, porque se repercutem na imagem da pessoa
e na relação consigo mesma e com os outros, porque relacionadas com o corpo

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 831

e com a identidade, e, no caso sub judice, com a vida sexual e íntima, não é
possível que se verifiquem os pressupostos do consentimento presumido”. “O
consentimento presumido destina-se a fazer face a situações em que no decurso
de uma operação se verifica um perigo imprevisto para a vida ou para a saúde,
que é preciso resolver de imediato enquanto o/a paciente se encontra ainda em
período de inconsciência e incapaz de prestar consentimento”. “Ora, no caso
sub judice, os factos indiciam de forma inequívoca, que a intervenção cirúr-
gica que não foi objeto de consentimento prévio, não visava evitar qualquer
perigo para a vida, o corpo ou a saúde, nem tinha uma natureza urgente, que
não permitisse adiar a mesma para momento posterior depois da obtenção do
consentimento informado da paciente. De acordo com a lei e com a ética médica, o
médico deve dar prioridade à possibilidade de escolha do paciente face à incomodidade de
se repetir a intervenção” (itálico meu). A aplicação do consentimento presumido
ao caso dos autos colocaria “em perigo o direito da paciente à disposição do
seu corpo”.
Também a defesa do médico com fundamento no consentimento hipoté-
tico claudicou: “estamos perante uma violação grave do dever de informar, uma vez
que se trata de uma operação realizada sem consentimento prévio e não meramente
de um caso de falta de informação (ou de informação insuficiente) acerca dos
riscos de uma operação autorizada. Em consequência, não resta margem para a
possibilidade de demonstração de um consentimento hipotético, ou seja, de um
consentimento que não teria sido recusado, caso o médico tivesse interrogado
a paciente” (itálicos meus). “O ónus da prova do consentimento hipotético,
doutrina oriunda da jurisprudência alemã, pertence ao médico e obedece aos
seguintes requisitos: 1) que tenha sido fornecida ao paciente um mínimo de
informação; 2) que haja a fundada presunção de que o paciente não teria recu-
sado a intervenção se tivesse sido devidamente informado; 3) que a intervenção
fosse: (i) medicamente indicada; (ii) conduzisse a uma melhoria da saúde do
paciente; (iii) visasse afastar um perigo grave; (iv) a recusa do paciente não fosse
objetivamente irrazoável, de acordo com o critério do paciente concreto”.
“Faltam os requisitos do consentimento hipotético, em relação a intervenções
cirúrgicas suscetíveis de causar riscos graves, com dores intensas e incapacidade
para manter relações sexuais, andar e trabalhar, tendo de se concluir que a
autora, se soubesse dos riscos da mesma, teria recusado o consentimento”.
Outras questões abordadas pelo Acórdão, que também merecem que delas
seja aqui dado registo, são as seguintes:
• o problema do cúmulo, ou não, entre as responsabilidades contratual e
extracontratual, tendo o STJ entendido que se estava “perante um con-
curso de responsabilidade civil contratual – incumprimento ou cumpri-

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mento defeituoso de um contrato de prestação de serviços médico-pa-


ciente – e de responsabilidade civil extracontratual, fundada na violação
dos direitos subjetivos da paciente à integridade física e moral, ao livre
desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação”, concluindo,
com base no “princípio da consunção”, que “em matéria de responsa-
bilidade médica, deve aplicar-se o regime da responsabilidade contratual
por ser o mais favorável ao lesado e mais conforme ao princípio geral da
autonomia privada”;
• a afirmação – recorrente em muita doutrina e jurisprudência, quer nacio-
nal quer estrangeira, mas que não subscrevo, como procurei deixar claro
na tese, uma vez que para mim não faz sentido introduzir uma diferencia-
ção tão radical de regime com base na finalidade da intervenção médica,
a qual, aliás, poderá amiúde não ser única ou, pelo menos, não haver um
peso tão díspar de uma finalidade em relação à outra – de que “nas cirur-
gias estéticas, que se destinam a corrigir um determinado defeito físico
ou a melhorar a aparência ou a imagem de uma pessoa, a dimensão do
resultado assume maior relevo nas obrigações contratuais dos médicos do
que nas cirurgias curativas ou assistenciais, típicas obrigações de meios,
sendo também densificados os requisitos de manifestação da vontade dos
pacientes e os deveres de esclarecimento dos médicos”. O STJ acolheu,
assim, a categoria das “obrigações de quase resultado”, dando-lhe relevo
em sede do dever de informação. Na tese, critiquei a criação desta cate-
goria intermédia, à qual a jurisprudência acaba por fazer corresponder o
regime da obrigação de meios; e
• a consideração do dano não patrimonial “em categorias relativas a dife-
rentes e múltiplos aspetos da personalidade e da vida”, assim chegando,
ainda que porventura com alguma sobreposições parciais, “ao significa-
tivo alargamento da compreensão do âmbito dos prejuízos efetivamente
sofridos pelas vítimas de factos geradores de responsabilidade civil”, no
caso da paciente dos autos “danos existenciais, biológicos, sexuais, psico-
lógicos e físicos, resultantes, não só das consequências da operação, mas
também da falta de assistência do réu no período pós-operatório”;
• por fim, o Ac. STJ 16-Jun.-2015 (Mário Mendes) (Proc. n.º 308/09.0TBC
BR.C1.S1): na sequência do recurso de revista excecional interposto do
Ac. RCb 11-Nov.-2014 (Jorge Arcanjo) (Proc. n.º 308/09.0TBCBR.
C1), referenciado na tese, o STJ veio resolver a contenda, mantendo o
Acórdão recorrido. Recorda-se que o caso teve na sua origem uma inter-
venção cirúrgica lombar, que não resultou, e à qual se seguiu uma nova
cirurgia, que também não trouxe melhorias ao doente.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 833

O Acórdão não é isento de crítica, tendo o STJ começado por referir que
uma intervenção médico-cirúrgica, sobretudo de natureza invasiva, como era
o caso, constituía uma violação objetiva do direito à integridade física e moral
do doente, sendo geradora de responsabilidade civil, só se tornando lícita com
o consentimento livre, consciente e esclarecido do lesado, para depois concluir
que:
• “De um modo geral e partindo-se do princípio que qualquer intervenção
cirúrgica tem riscos, compreende a possibilidade de ocorrência de situa-
ções não desejadas ou desejáveis, tem a doutrina e a jurisprudência euro-
peia consagrado um princípio que tem como prévia do consentimento
informado a transmissão de uma informação simples e aproximativa e
sobretudo leal, a qual compreenda os riscos normalmente previsíveis,
salientando-se, porém, que se tem verificado uma maior exigência e rigor
de informação nos casos de intervenções não necessárias”;
• “Atualmente tanto na doutrina como na jurisprudência (tanto nacional
como europeia) vem prevalecendo o entendimento no sentido de que,
em princípio e independentemente de se fazer especial apelo ao princípio
da colaboração processual em matéria de prova, compete ao médico pro-
var que prestou as informações devidas”;
• “Quando se passa do plano da eventual falta de informação sobre os riscos
normais ou previsíveis do ato cirúrgico para um plano de falta de infor-
mação sobre a probabilidade de obtenção do resultado desejado desloca-
-se o núcleo típico do dever de informação prévio à intervenção cirúrgica
enquanto uma intervenção de meios para aquele que deveria ser o núcleo
desse mesmo dever caso estivéssemos no âmbito de uma obrigação de
resultado ou seja o dever de informação deixaria de compreender apenas
a transmissão dos riscos normais ou razoavelmente previsíveis ou mesmo
significativos do tratamento para passar a compreender o risco de não
verificação do resultado normalmente previsível”;
• “Não sendo a medicina uma ciência exata e revestindo o resultado de
uma cirurgia um caráter aleatório, não pode em geral o médico vincular-
-se ao resultado da terapia ou evolução clínica consequente, mostrando-
-se o dever de informação quanto a um resultado, apenas tido como pro-
vável ou altamente provável, devidamente preenchido quando o médico
informa de uma forma leal, e dentro do ética e deontologicamente exi-
gível, que aquele é o meio terapêutico adequado a debelar ou minimizar
os efeitos da situação determinante, fazendo referência às vantagens pro-
váveis daquele tratamento”.

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834 Luís Vasconcelos Abreu

Tudo isto, portanto, em meses. Por isso, uma apresentação da tese que tem
de ser também uma atualização da mesma tese. Certamente que em poucos
domínios do direito será assim. Destaque, sobretudo, para o conteúdo do
penúltimo Acórdão. Ele obriga-me, aliás, a corrigir, desde já, uma ideia que
veiculei na tese, que era a de a problemática da responsabilidade pela informa-
ção estar muito presente na nossa jurisprudência, influenciando o sentido das
decisões, mas não ter sido ainda claramente assumida, porventura com uma
ou outra exceção, como critério determinante e exclusivo para a repartição do risco
associado a uma intervenção médica. Depois do Acórdão em apreço, já não se
pode concluir assim.

3. No âmbito de uma das especialidades por si cultivadas, o direito compa-


rado, o Professor Rodolfo Sacco elaborou o conceito de formante12, muito em
voga na doutrina italiana e mesmo além-fronteiras, o qual pode ser definido
como a base jurídica sobre a qual se desenvolve o ordenamento jurídico de
uma sociedade.
Segundo Rodolfo Sacco, é possível individualizar, no plano jurídico, três
tipos de formante:
– jurisprudenciais, típicos dos países de common law;
– legislativos, nos ordenamentos de civil law;
– doutrinários.

Além disso, estão presentes, no mundo do direito, alguns formante não enun-
ciados, ou melhor, não verbalizados, como o hábito de considerar, nomeadamente
entre os países europeus, outros ordenamentos jurídicos. Com efeito, é uma regra
que, atenta a multiplicidade de casos em que é seguida, nem sequer precisa de
estar expressa.

4. Este olhar para o estrangeiro, ainda que propriamente sem as ferramentas


do direito comparado, permite abrir horizontes e, por isso, procuro fazê-lo
sempre nos trabalhos jurídicos que tenho realizado. Ou seja, apesar de a tese
não incluir um capítulo de direito comparado, a sua elaboração foi acompa-
nhada por um trabalho de atualização e aprofundamento de conhecimentos de
direito estrangeiro, no que se refere à responsabilidade civil médica, de modo a

12
Rodolfo Sacco, Introduzione al diritto comparato, UTET, 1992, Formante, Digesto delle Discipline
Privatistiche, Sezione Civile, VIII, UTET, 1992, 438-442, e Legal Formants: A Dynamic Approach
to Comparative Law, Installment I of II and Installment II of II, The American Journal of Compara-
tive Law, vol 39, respetivamente, n.º 1, Inverno 1991, 1-34, e n.º 2, Primavera 1991, 343-401.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 835

ter bases para uma apreciação crítica das soluções do nosso ordenamento. Pelo
seu maior desenvolvimento, a doutrina, a jurisprudência e a legislação espanho-
las, francesa, italiana e alemã, que foram aquelas que pude considerar com mais
detalhe, e são amiúde citadas pelos especialistas portugueses e também em mui-
tas decisões dos nossos tribunais, facultam importantes pistas de compreensão
e avaliação do direito nacional. No entanto, não tendo incluído na tese, como
referi, um capítulo de direito comparado, julgo que não seria correto fazê-lo
aqui. Limito-me, por isso, a incluir, como anexo, uma proposta de tradução
da recente legislação alemã. Com efeito, como reação a um período histórico
que é bem conhecido e no qual a própria classe médica desempenhou um
papel muito criticável, estou a falar do nacional-socialismo13, o direito alemão
fez um longo caminho no sentido do sucessivo reforço da autodeterminação
do doente, apresentando uma jurisprudência e uma doutrina de primeira linha.
Ora esse caminho culminou na publicação, em 20 de Fevereiro de 2013, da
Gesetz zur Verbesserung der Rechte von Patientinnen und Patienten, a qual intro-
duziu no BGB os novos parágrafos 630a a 630h, com a regulamentação do
denominado Behandlungsvertrag. A legislação em causa, que indiquei na tese
como um modelo a ser tomado em consideração, incorporou, por exemplo na
matéria do consentimento informado, o acervo de conhecimentos que vinha
sendo formulado pela doutrina e pela jurisprudência, e é reconhecida como
de elevada qualidade científica, não obstante algumas críticas, atento o grau de
exigência da doutrina alemã da especialidade e algumas opções tomadas pelo
legislador, em matérias muito específicas.

5. Quanto à estrutura da tese, a mesma encontra-se dividida em quatro partes.


Na primeira, que corresponde à introdução, analisei as relações entre o direito e
a medicina, dei uma breve nota do que é a medicina hoje, na sua diversidade e
complexidade, fazendo referência à denominada medicina baseada na evidência
(MBE), pelo seu significado para a temática da responsabilidade, defini o atual
paradigma da relação médico-doente, por contraposição com o modelo pater-
nalista do passado, referi o papel da ética e da deontologia médicas, e delimitei
o objeto do estudo, traçando o seu plano.

6. Vou então atender um pouco mais à parte inicial. Começando pelas


relações entre o direito e a medicina, trata-se de um tema recorrente na cultura
ocidental. Constitui já um lugar-comum afirmar-se que o progresso da ciência
médica coloca novas questões ao mundo do direito, obrigando, muitas vezes, a

13
Robert Jay Lifton, Ärzte im Dritten Reich, tradução, Estugarda: Klett-Cotta, 1996.

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836 Luís Vasconcelos Abreu

ciência jurídica a rever os seus conceitos e quadros de pensamento tradicionais.


Para além de lançar “pontes” entre os dois saberes, quis sobretudo tornar claro
três aspetos:
(i) que o exercício da medicina não pode hoje, num Estado de direito, ficar
imune a ser sindicado judicialmente;
(ii) que o direito vem influenciando a atividade médica, de que é bom
exemplo a transformação operada pela doutrina do consentimento infor-
mado; e
(iii) que a ciência médica pode e deve contribuir decisivamente para a resolu-
ção dos casos de responsabilidade civil médica, quer dizendo-nos, em
cada momento, aquilo que pode ser considerado como de acordo com
o estado dos conhecimentos científicos, quer mostrando o que confi-
gura uma obrigação de meios ou de resultado, quer, ainda, definindo
o grau de diligência exigível, que muitas vezes não será o do bom
profissional, mas sim o do bom especialista.

Há, portanto, um verdadeiro “casamento”, na feliz expressão de João Vaz


Rodrigues/Guilherme de Oliveira, entre a medicina e o direito14.

7. Considerei também indispensável conhecer a realidade subjacente aos


casos de responsabilidade civil que iriam ser estudados, ou seja, atentar na medi-
cina de hoje. Na sugestiva expressão de um A. brasileiro, “a medicina moderna
tem tentado ir à frente da doença, buscando prevenir os males, antes de precisar
curá-los”15. Para além de tratar, prevenir e prever. A medicina deixou de cuidar
apenas do doente, para se ocupar também da pessoa saudável. É a denominada
“medicina dos 4Ps” (“4P Medicine”): medicina preditiva; medicina preventiva;
medicina participativa; medicina personalizada.
Ainda neste capítulo, dei nota dos três aspetos que, em meu entender, o
jurista deve ter presente relativamente à medicina dos nossos dias, pois têm
reflexos ao nível da responsabilidade civil médica. São eles: (i) a especialização,
(ii) a base científica e (iii) a vertente tecnológica.
A especialização e a subespecialização que a medicina apresenta, justificadas
pela necessidade de assegurar a excelência na prestação profissional, a qual
implica que um determinado tipo de intervenção seja realizado, pelo mesmo

14
João Vaz Rodrigues/Guilherme de Oliveira, Medicina & direito: uma mera relação colorida?,
BOA, n.º 23, Novembro/Dezembro 2002, 8/9.
15 João Monteiro de Castro, Responsabilidade civil do médico, São Paulo: Método, 2005, 82.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 837

profissional, o maior número de vezes possível, não têm paralelo, entre nós, na
especialização que, por exemplo, também já se verifica no mundo do direito.
A especialização médica refletiu-se, entre outros aspetos, na vertente econó-
mica e social ligada ao exercício da profissão, alterando o modo como o mesmo
se processa, seja pela necessidade de o doente recorrer a vários médicos, seja
pela necessidade de assegurar a colaboração entre os mesmos, seja, ainda, pelo
aumento de custos, para o doente, que tudo isso representa, seja, por último,
pela crescente deslocação do doente de casa para o hospital. O que trouxe con-
sigo a necessidade de cultivar o humanismo e a cultura médica, para contrabalançar
a visão menos abrangente do especialista, que ganha em profundidade aquilo
que perde em abrangência16.
O segundo aspeto focado que o jurista não pode ignorar é o de que, não
obstante o risco e a incerteza serem caraterísticas da prática clínica, ela tem
atualmente uma base científica sólida. Pratica-se a denominada medicina baseada
na evidência (MBE). Socorri-me, a este propósito, dos trabalhos do principal
divulgador da MBE entre nós, que é o Professor Vaz Carneiro. O mesmo
define-a como “a utilização conscienciosa, explícita e criteriosa da evidência
científica atualizada na tomada de decisões clínicas referentes ao doente indivi-
dual”17 e afirma que “o papel da ciência na prática clínica é, hoje em dia, abso-
lutamente insubstituível. A publicação permanente de estudos e ensaios clínicos
produz evidência (prova científica) de boa qualidade, sobre a qual é possível o
médico tomar decisões sólidas, mesmo que num contexto de incerteza e risco”.
A discussão em torno da ilicitude do ato médico realizado, bem como a
questão da culpa, passam em muito pela comparação entre o que prescrevia, ou
não, a MBE para a situação em concreto e aquilo que foi realizado.
Por último, mencionei a vertente tecnológica, nomeadamente os exames ou
meios complementares de diagnóstico, cujo pedido de realização, ou não,
pelo médico, pode ser crucial para a resolução de um caso de responsabilidade
civil médica. Conclui sublinhando a dificuldade, nesta sede, em conciliar duas
aspirações contraditórias: por um lado, o crescente normativismo, na área da
saúde, fruto do tecnicismo reinante; pelo outro lado, a necessidade de respei-

16
João Porto, Technique et spécialisation médicale (Avantages et inconvénients), in Der Arzt in der
technischen Welt, IX. Internationaler Kongress Katholischer Ärzte, München, Arzt und Christ
– Sonderband 1961, 85-91.
17 Vaz Carneiro, A medicina baseada na evidência. Uma metodologia científi ca de apoio à decisão clínica,

RFML, série III, vol. 10, n.º 1, Janeiro 2005, 57-70.

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838 Luís Vasconcelos Abreu

tar a humanidade da pessoa. “Humaniser les normes au lieu de normaliser les


humains, tel est le défi à relever”18.

8. Prosseguindo, não podia deixar igualmente de focar o atual paradigma da


relação médico-doente, com pleno reconhecimento do direito à autodeterminação do
paciente, até pelo importante papel do direito no resultado a que se chegou,
embora considere que se trata de um tema já estabilizado, quer na doutrina,
quer na jurisprudência.
A este respeito, trouxe à colação, na tese, o testemunho de um médico,
Idalmiro Rocha Carraça, que, em 1994, “colocava o dedo na ferida”: “cons-
ciente ou inconscientemente todos os médicos utilizam estratégias de poder nas
relações com os seus pacientes”19.
Como é sabido, o modelo do consentimento informado, que se afirmou por
oposição ao paternalismo médico, não é perfeito. A questão é que não se lhe
conhece, até ao presente, melhor alternativa.

9. A terminar a primeira parte da tese, foi abordado o papel da ética e da


deontologia médicas.
Para os efeitos do trabalho, e seguindo Paul Ricoeur, comecei por distin-
guir entre a ética e a moral, fazendo-o da seguinte forma: a ética procura definir
“aquilo que se estima bom”, enquanto a moral trata de “aquilo que se impõe
como obrigatório”. Existe, assim, uma primazia da ética sobre a moral. Quanto
à deontologia, ela pode ser entendida como a moral profissional20.
Seguidamente, sublinhei o papel da deontologia como a verdadeira garan-
tia da independência do médico e procurei mostrar como o conteúdo da relação
contratual entre o médico e o seu doente se encontra marcado pelas regras
deontológicas.
Defendi, a este propósito, a plena eficácia, no plano do direito civil, do
atual CD, enquanto regulamento administrativo, parecendo-me ser essa tam-
bém agora, na sua já citada dissertação de doutoramento, a posição do Professor
André Dias Pereira, que a determinada altura havia defendido opinião diversa,
com a qual entrei em diálogo na tese.

18
Dominique Foldscheid, Conclusion: faut-il normer les normes?, in Normalisation, mondialisation,
humanisation. Trois objectifs en contradiction pour soigner les malades (coord. Jean-Pierre Alix/
Laurent Degos/Dominique Jolly), Paris: Flammarion, 2005, 63-67, 66/67.
19 Idalmiro Rocha Carraça, Omissão e partilha no ato médico, Porto: Laboratórios Bial, 1994, 18.

20 Michel Renaud, na sua declaração de voto no Parecer n.º 32/CNECV/2000 (Parecer sobre

sigilo médico). O A. afirma também a “fundamentação ética” dos deveres e normas de deonto-
logia profissional. O referido Parecer está disponível em www.cnecv.pt.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 839

Mencionei a existência de uma reflexão ética que se vai desdobrando pelas


diferentes especialidades médicas, e, sobretudo, situei-me naquilo que julgo ser
essencial: (i) a deontologia médica faz parte do no nosso direito; (ii) a autonomia do
médico não é apenas técnica e científica, mas também, aliás milenarmente, deon-
tológica (artigo 3.º, n.º 1 do CD).
Nesta linha, dei nota das principais regras constantes do CD que têm efi-
cácia civil e devem ser ponderadas na resolução dos casos de responsabilidade
médica. Recordo algumas:
• o dever de atualização e preparação científica (artigo 9.º do CD);
• o dever de exercer a profissão em condições que assegurem a autonomia técnica,
científica e ética (artigo 33.º, n.º 1 do CD);
• o dever de respeito pelas leges artis: “O médico deve abster-se de quaisquer
atos que não estejam de acordo com as leges artis”; e “excetuam-se os atos
não reconhecidos pelas leges artis, mas sobre os quais se disponha de dados
promissores, em situações em que não haja alternativa, desde que com
consentimento do doente ou do seu representante legal, no caso daquele
o não poder fazer, e ainda os atos que se integram em protocolos de
investigação, cumpridas as regras que condicionam a experimentação em
e com pessoas humanas” (artigo 35.º, n.ºs 1 e 2, respetivamente, do CD);
• o dever de respeito por qualificações e competências, nomeadamente as especia-
lidades, subespecialidades, competências e formações reconhecidas pela
Ordem dos Médicos (artigo 36.º do CD);
• o dever de referenciação (artigo 36.º, n.º 3, e artigo 43.º, n.º 1 do CD);
• o dever de recusa da prática de atos médicos para os quais não tenha capacidade
(artigo 36.º, n.º 5 do CD);
• o direito à objeção de consciência (artigo 37.º do CD);
• o direito à objeção técnica (artigo 38.º do CD);
• o dever de respeito pela pessoa do doente (artigo 39.º do CD);
• o dever de respeito pelo direito de livre escolha do médico que assiste ao
doente (artigo 40.º do CD), na medida em que tal dever, que já foi basilar
no seio da relação médico-doente, ainda mantenha, na atualidade, algum
sentido e conteúdo útil, já que, como bem assinalava o Professor Sérvulo
Correia, em 1971, o seu valor é cada vez mais relativo, ficando muitas
vezes reduzido, seja por fatores económicos, seja devido ao papel das tec-
nologias, “à opção entre tratar-se e não o fazer”21;

21
Sérvulo Correia, O exercício da medicina no âmbito da Segurança Social, Lisboa, 1971 (Separata
de Estudos Sociais e Corporativos, ano VIII, Outubro a Novembro, n.º 32).

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840 Luís Vasconcelos Abreu

• o dever de atestar os estados de saúde ou doença que verificou durante a


prestação do ato médico (artigo 98.º do CD);
• o dever de documentação da atividade, que assume a maior relevância para a
responsabilidade civil (artigo 100.º do CD);
• os deveres perante a comunidade: “ter em consideração as suas responsabili-
dades sociais no exercício do seu direito à independência na orientação
dos cuidados e na escolha da terapêutica, assumindo uma atitude respon-
sável perante os custos globais da saúde”; “prestar os melhores cuidados
possíveis no condicionalismo financeiro existente”; e “conhecer os cus-
tos das terapêuticas que prescreve, devendo optar pelos menos onerosos,
desde que esta atitude não prejudique os interesses do doente” (artigo
111.º do CD);
• por último, os normativos sobre o consentimento informado (arts. 44.º a 50.º
do CD), e os preceitos sobre o dever de segredo médico (arts. 85.º a 93.º do
CD).
Assim, e sem com isso permitir que a deontologia leve a um “julgamento
dos médicos pelos médicos”, procurei, sobremaneira, realçar o importante
papel que a deontologia médica já tem, e pode e deve continuar a ter, na resolu-
ção de casos de responsabilidade civil médica.

10. Na segunda parte da tese, foram referenciados os muitos contributos que,


entre nós, já haviam sido dados para a matéria, quer no âmbito da doutrina
jurídica, quer no da doutrina médica. De todos eles o meu trabalho é tributário.
Seguidamente, dei conta, igualmente com o possível detalhe, da jurisprudência
dos nossos tribunais superiores – Tribunais da Relação e Supremo Tribunal de
Justiça – sobre casos de responsabilidade civil médica em direito privado, no
período de 2000 a 2014, agrupando-a pelas diferentes especialidades médicas
e pelos tipos de eventos mais comuns. Como já dei nota, quer em relação à
doutrina, quer à jurisprudência, privilegiei a visão de conjunto, não, portanto,
a recensão individualizada dos contributos doutrinários e jurisprudenciais.

11. Ao todo, trabalhei com 111 decisões judiciais, sendo 110 de tribunais
superiores. Quanto a contributos doutrinários, a tese, no global, faz menção a
cerca de 264 artigos ou livros. Na doutrina jurídica, iniciei o percurso em Cunha
Gonçalves, o qual, já em 1937 abordou quatro questões que marcaram o estudo
da responsabilidade civil médica durante todo o séc. XX e até ao presente:
(i) a natureza contratual ou extracontratual;
(ii) a caraterização da obrigação assumida pelo médico como sendo de
meios ou de resultado;

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 841

(iii) a imperícia, nomeadamente o erro de diagnóstico e a sua relação com


a culpa;
(iv) a necessidade de ser obtido o consentimento do doente.

Igualmente para ilustrar a argúcia e riqueza de análise dos nossos autores


mais antigos, refiro aqui também o estudo de Silva Carneiro, publicado em
1972, o qual embora não seja um trabalho de direito privado, pois o A. ocu-
pou-se da responsabilidade hospitalar e, nela, sobretudo a dos hospitais do Estado,
abordou a responsabilidade pelo denominado “acidente terapêutico”.
Por ter consubstanciado um momento de “viragem”, no que se refere à
compreensão e ao enquadramento jurídico da atividade médica, com reflexos no
plano da responsabilidade civil, referência para o Professor Guilherme de Oliveira,
cuja obra fez com a medicina começasse a deixar de ser uma “arte silenciosa”.
Uma menção à análise efetuada pelo Professor Carlos Ferreira de Almeida,
seja na distinção entre as várias modalidades de contratos que podem surgir no
exercício em regime jurídico-privado da medicina, seja no aprofundamento, em sede
das obrigações contratuais, da obrigação de tratamento, bem como a caraterização,
que o A. introduziu entre nós, do contrato civil de prestação de serviço médico
como um contrato de particularização sucessiva da prestação caraterística. Esta
ideia pode ser hoje completada à luz do direito à autodeterminação do doente, ou
seja, fazendo com que o papel deste último não seja apenas de cooperação.
No que se refere ao consentimento informado, que é uma importante “chave”
para a resolução dos problemas da responsabilidade civil contratual médica,
temos as monografias de João Vaz Rodrigues e do Professor André Dias Pereira.
Por fim, na impossibilidade de todos aqui nomear, uma referência aos estu-
dos da Professora Paula Lobato de Faria e à tese de doutoramento, recente-
mente publicada, do Professor André Dias Pereira.
Na doutrina médica, menção para os trabalhos precursores do Professor
Oliveira Sá, para o manual de responsabilidade dos médicos do Professor Espe-
rança Pina, que teve várias edições e durante anos foi a principal obra sistemati-
zada sobre a matéria, e, mais recentemente, para os aprofundados estudos sobre
o erro em medicina de José Fragata e Luís Martins.

12. Na terceira parte, fiz um ponto de situação da matéria na atualidade,


no direito português, analisando criticamente os contributos doutrinários e
jurisprudenciais antes referenciados e procurando dar um contributo pessoal.
A terminar, na quarta e última parte, elenquei as principais conclusões do estudo
realizado. Como referi anteriormente, a análise privilegiava a visão de conjunto,
não se tratava de apreciar criticamente decisões judiciais ou contributos dou-
trinários, os quais foram, isso sim, ponderados na medida em que relevavam

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para o tema da tese. Juntando agora os diferentes aspetos, o que é que se pode retirar
ou concluir do trabalho?
1.º – Há atualmente um grande número de especialistas que se dedicam ao
tema da responsabilidade civil médica e a literatura de qualidade neste domínio
produzida é já vasta;
2.º – O número de casos levados a tribunal é também apreciável, nomeada-
mente por comparação com o que sucedia no passado e com aquilo que ainda
se passa no que se refere a qualquer outra profissão que também tenha feito
parte do conjunto tradicionalmente designado como profissões liberais – ex.
médicos, advogados, engenheiros, arquitetos. Com efeito, entre nós, para além
de questões relacionadas com o pagamento de serviços, apenas o exercício
da advocacia vem dando lugar a algum contencioso judicial, mas – durante o
período temporal considerado, ou seja, de 2000 a 2014 – significativamente
mais reduzido do que o da responsabilidade civil médica;
3.º – A doutrina médica e a doutrina jurídica dispõem hoje, portanto, de
elementos da chamada law in action, os quais lhes permitem continuar a desen-
volver os seus estudos. Por exemplo, a propósito de um dos casos de respon-
sabilidade pela utilização de instrumentos perigosos pode discutir-se se não se
deverá evoluir para um regime de responsabilidade objetiva quanto a esse tipo
de situações – no caso, apreciou-se a utilização de um cauterizador elétrico22.
Noutro exemplo, o facto de o Ac. RLx 8-Mai.-2014 (Ana Luísa Geraldes)
ter considerado ser “inaceitável” a conduta da médica obstetra que, sabendo o
resultado do RX e tendo sido ela a fazer a pressão sobre o tórax da parturiente,
omitira o verdadeiro diagnóstico, constitui certamente um ponto de partida
para desenvolver a discussão em torno do dever de o profissional de saúde
revelar os seus erros ao doente;
4.º – Tudo isto não obstante o CC se ter esquecido da pessoa do doente e
não regular especificamente o contrato de prestação de serviços médicos. Para resol-
ver o contencioso que o tem por objeto podem ser convocadas as regras gerais
sobre o incumprimento, o regime do contrato de mandato e, justificando, a
norma do artigo 493.º, n.º 2 do CC, que, em sede de responsabilidade extra-
contratual, trata das atividades perigosas. Aplicam-se-lhe igualmente o Código
Deontológico, a CDHB, a Norma da DGS n.º 015/2013, de 3 de Outubro de
2013, o RJCCG, a legislação de direito do consumo e, sendo o caso, o regime
da responsabilidade decorrente de produtos defeituosos. Acresce a possibilidade
de aplicação, a título subsidiário, de normas do Código Penal, nomeadamente
sobre o consentimento informado;

22
Ac. STJ 18-Fev.-1992 (Rui Brito).

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 843

5.º – Por força do atual CD, a eficácia civil do direito profissional médico é hoje
indiscutível, assegurando, por um lado, ao profissional uma autonomia que não
é só técnica e científica, mas também e, sobretudo, deontológica, assim como,
pelo outro lado, impondo-lhe um conjunto de deveres. O CD marca o conteúdo
da relação entre o médico e o doente, sendo, por outro lado, também hoje um
dado perfeitamente adquirido que a atividade médica não se legitima a si pró-
pria, é o consenso informado do doente que lhe dá legitimidade;
6.º – O princípio da autodeterminação é reconhecido e afirmado pela nossa
jurisprudência, por exemplo na importante matéria da responsabilidade pelo diag-
nóstico pré-natal. Nesta sede, tem sido “aberto a porta”, por parte da doutrina e
por algumas decisões judiciais, para que tenha lugar o ressarcimento dos dife-
rentes danos patrimoniais e não patrimoniais produzidos;
7.º – Por comparação com o que é comum vir referenciado na literatura de
outros países, são sensivelmente as mesmas especialidades – obstetrícia, ortopedia,
cirurgia, incluindo a estética – aquelas que, entre nós, têm dado origem a mais
processos judiciais no âmbito da responsabilidade civil médica.
Nota-se, por outro lado, um contencioso reduzido quanto a infeções noso-
comiais e mais abundante no que se refere aos serviços de urgência.
Fora da cirurgia estética, apenas num caso – Ac. RLx 27-Out.-1998 (Bet-
tencourt Faria) – se discutiu a utilidade do tratamento, com o doente a ques-
tionar a necessidade da intervenção cirúrgica na qual acabou por não lhe ser
colocada uma rede.
Por último, o número de casos catalogados na tese como de responsabilidade
pela informação tem de ser devidamente interpretado, como aí dei nota. Não se
trata de processos que os tribunais tenham resolvido exclusivamente por essa
via, mas sim de casos em que, de uma forma ou de outra, factos e questões
relacionados com a troca de informação entre as partes estiveram presentes e
foram tidos em consideração.
Quando terminei a tese, ainda se podia afirmar que, no nosso país, o con-
sentimento informado estava mais presente ao nível da doutrina do que da juris-
prudência. Hoje, após a publicação do já citado Ac. STJ 2-Jun.-2015 (Maria
Clara Sottomayor) (Proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1) deixou de se poder
concluir assim. Com efeito, nesse Acórdão o STJ resolveu, de forma assumida
e doutrinária, a questão do risco com base precisamente no direito à autodetermi-
nação do doente e na doutrina do consentimento informado;
8.º – Nalgumas situações têm sido proferidas decisões de condenação no
pagamento de vultosas indemnizações, isto é, segundo os nossos padrões, retira-
dos da própria jurisprudência, nomeadamente daquela que se refere à respon-
sabilidade civil do advogado, acima de cem mil euros. Essas decisões, pelo seu
número e pelos montantes arbitrados, se forem amplamente divulgadas junto

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da classe médica, podem até vir a ter impacto ao nível do exercício da própria
profissão, não só no incremento da denominada “medicina defensiva”, o que seria
negativo, mas, pela positiva, na procura da adequada cobertura seguradora, com
maior exigência a esse nível, eventualmente respaldada pela Ordem dos Médi-
cos, e numa maior abertura para a efetiva instituição de mecanismos coletivos
de prevenção de erros e outras formas de melhoria da qualidade da prestação
profissional;
9.º – Mas também pude constatar e registei que a doutrina e a jurisprudên-
cia encontram-se divididas no que respeita à aplicação dos regimes da responsa-
bilidade contratual ou extracontratual e às relações entre os mesmos. Esta divisão é
um fator de incerteza e de insegurança:
• para o doente lesado, porque não sabe se o seu caso vai ser discutido ao
abrigo de um regime em que beneficia de uma presunção legal de culpa
ou se, pelo contrário, terá também de fazer a prova da culpa;
• para o médico, porque não sabe se o prazo de prescrição aplicável é de
apenas três anos ou de vinte anos, o que corresponde, na prática, à neces-
sidade de guardar os registos clínicos pelo referido prazo mais alargado.

O problema não é exclusivo da responsabilidade civil médica, mas assume


aqui especial acuidade e deverá ser equacionado numa qualquer reforma legis-
lativa que venha um dia a ter lugar;
10.º – As mesmas doutrina e jurisprudência encontram-se igualmente divi-
didas quanto à interpretação e ao âmbito de aplicação da presunção legal de culpa
do devedor, consagrada pela norma do artigo 799.º, n.º 1 do CC, que para uns se
deve restringir às obrigações de resultado, enquanto outros defendem a respe-
tiva aplicação quer às obrigações de meios quer de resultado.
Ora, também esta divisão é um fator de incerteza e de insegurança, para ambas
as partes da relação, que não sabem antecipadamente com o que podem contar
relativamente a um aspeto da maior relevância, como é o ónus de prova da
culpa em sede do contencioso da responsabilidade civil contratual médica;
11.º – A jurisprudência (i) aplica pouco a CDHB, (ii) podia igualmente apro-
fundar e desenvolver ainda mais a vertente da ilicitude médica, e (iii) regista um
tratamento, por vezes, indiferenciado da ilicitude e da culpa, o que se traduz
até, na prática, pelo menos nalguns casos, em acabar por resumir a análise dos
processos de responsabilidade médica a uma simplista comparação entre o antes
e o depois da intervenção médica, presumindo-se quer a ilicitude quer a culpa
relativamente à intervenção médica sempre que se registam diferenças entre
aquelas duas situações;

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 845

12.º – Focando agora um aspeto muito concreto, não me parece que tenha
sentido a criação, pela jurisprudência, da categoria da obrigação “de quase resul-
tado”, para depois se lhe aplicar o regime da obrigação de meios, não obstante
alguma maior exigência – que considero muito discutível – em sede de dever
de informação;
13.º – Não se cumpriu ainda aquilo que, no já longínquo ano de 1984,
Figueiredo Dias e Sinde Monteiro vaticinaram, no sentido de os tribunais con-
trolarem o conteúdo das declarações de consentimento informado, aspeto sobrema-
neira importante e no qual alguma jurisprudência não tem sido feliz;
14.º – Passando agora às minhas propostas, defendo a aplicação do regime da
responsabilidade contratual, porque entendo que a distinção entre ambas é, acima
de tudo, de paradigmas e de fundamentos. De paradigmas, porque o médico e
o doente não são um “estranho” um para o outro. De fundamentos, porque,
num caso, está em jogo “a palavra dada” e, no outro, o princípio alterum non
laedere23.
As realidades são substancialmente diversas e a importância do consentimento
informado, no âmbito da responsabilidade médica, justifica plenamente que se
dê primazia ao regime através do qual mais facilmente se poderá tirar partido de
todas as suas potencialidades, que é o da responsabilidade contratual;
15.º – Quanto à também já mencionada questão do âmbito de aplicação
da presunção legal de culpa do devedor (artigo 799.º, n.º 1 do CC), nomeadamente
no que se refere ao entendimento que a mesma só valeria para as obrigações
de resultado, é pacífico que o CC não consagrou qualquer regime especial
de responsabilidade para o profissional liberal. Nem mais gravoso, nem mais
aligeirado. Por isso, em minha opinião, a menos que houvesse uma razão de
fundo nesse sentido, não poderá a distinção de regimes ser introduzida pelo
intérprete, com base numa distinção doutrinária que, entre nós, não tem qual-
quer consagração na lei.
O problema não deve ser resolvido em termos meramente concetuais, de
saber se o contrato acrescenta, ou não, deveres específicos aos deveres gerais
impostos pela lei e pelo CD ao médico. A relação contratual acrescenta muito, no
plano da realidade dos factos, a que o direito não pode ser alheio. Nomeada-
mente, ela dá a possibilidade de, na prática, se extraírem todas as virtualidades
que a doutrina do consentimento informado encerra.
Por outro lado, aplicar sem restrições a presunção legal de culpa é uma
solução equilibrada, já que o devedor adstrito ao cumprimento de um dever espe-
cífico domina o modo como a prestação vai ser realizada, pelo que pode evitar

23 Por todos, Reinhard Zimmermann, The law of obligations: Roman foundations of the civilian tra-

dition, reimpressão, 1992, da 1.ª ed. (1990), Kenwyn: Juta; Munique: Beck, 1993, 902-906, 904.

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846 Luís Vasconcelos Abreu

o incumprimento ou demonstrar que este se ficou a dever a causa externa que


não podia evitar;
16.º – A distinção entre obrigações de meios e de resultado tem dado, ao longo
dos anos, o seu contributo para a matéria da responsabilidade civil médica.
Diria que é um dos nossos “microscópios”. Não conheço nenhum impedi-
mento a que a mesma, eventualmente renovada, possa continuar a servir como
auxiliar na resolução de casos práticos de responsabilidade civil médica. O que
se não deve é absolutizá-la e/ou exigir-lhe que, só por si, a tudo dê solução.
Para além do efeito pedagógico, de chamar à atenção para o facto de o médico, em
regra, não poder garantir a cura (André Dias Pereira), tal distinção continua a
revestir utilidade prática. Num exemplo, ela servirá para reforçar o consentimento
informado, depois de, à luz da mencionada distinção, o mesmo haver sido qua-
lificado como uma obrigação de resultado;
17.º – Boa parte da doutrina e da jurisprudência – e tal não acontece só no
nosso país – defende a distinção entre intervenções voluntárias e terapêuticas como
o ponto central para se definir o objeto do dever de informação, que seria mais
amplo nas primeiras. Ou seja, a referida distinção, pela via do consentimento
informado, acabaria por ter um papel de charneira no plano da responsabilidade
civil.
Diferentemente, proponho que o dever de informação não fique condicio-
nado por uma distinção, que tem a sua utilidade, mas que não pode servir para
tudo resolver. Até porque, em concreto, poderá ser muito difícil concluir com
segurança quanto à predominância da finalidade satisfativa ou terapêutica, ques-
tão complexa, que envolve a vertente psicológica do paciente, ela própria parte
do conceito de saúde na atualidade.
Em meu entender, o doente deve ter a mesma liberdade, garantida por
idêntico nível de informação, nas duas formas de medicina;
18.º – O objetivo de penetrar no âmago da atividade médica. Mais do efetuar
distinções concetuais, o intérprete-aplicador do direito deverá procurar “per-
ceber” o ato médico que tem de analisar, avaliando, por exemplo, o respetivo
grau de dificuldade, a experiência e/ou especialização que são requeridas para a sua
prática. Este tipo de ponderações surgem como mais úteis, porque capazes
de conduzir a uma decisão justa do caso concreto, do que as mencionadas
distinções entre obrigação de meios ou de resultado e intervenção voluntária
ou terapêutica. Há que explorar o tal “casamento” entre a ciência médica e a
ciência jurídica. Na resolução de casos de responsabilidade civil médica, podem
e devem ser utilizados os contributos da doutrina médica – ex. a estruturação
tripartida do ato médico em diagnóstico, tratamento e prognóstico; as catego-
rias do erro médico, da negligência médica e do acidente, bem como o evento
adverso –, desde que devidamente enquadrados no plano do direito – basica-

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 847

mente, a ilicitude, a culpa e o risco. Num exemplo concreto, a definição do


número de ecografias a realizar durante a gravidez, bem como a altura em que
as mesmas deverão ter lugar, deverão ser definidas pela ciência médica, sem
com isso introduzir qualquer forma de insindicabilidade para o juiz, que terá
sempre assegurada a sua liberdade quanto à decisão a tomar;
19.º – Há que continuar a “arrumar a casa”, neste caso a relação jurídica
médico-doente, no plano dogmático. Muito se tem escrito sobre o consentimento
informado. Falta, no entanto, enquadrar devidamente o dever de informação e o
dever de esclarecimento do doente no seio da relação obrigacional e como deveres
principais e não apenas laterais. Isto porque, para o bom desenvolvimento da
relação, desde logo quanto à sucessiva particularização do seu objeto, eles assumem
um papel determinante. Os deveres de informação e de esclarecimento fazem hoje
parte da lex artis;
20.º – Por seu lado, os deveres de informação a cargo do doente também care-
cem de ser chamados para o cerne da relação contratual;
21.º – Os aspetos até aqui referenciados, se outros não houvesse, já evi-
denciavam e justificavam a necessidade de uma intervenção legislativa. É inad-
missível, pelo que representa de incerteza e insegurança jurídicas, que existam
entendimentos jurisprudenciais contraditórios sobre aspetos cruciais do regime
jurídico aplicável, fazendo com que, quer o doente, quer o médico, não sai-
bam, à partida, com o que podem contar. Mas é também criticável que existam
instrumentos normativos distintos e com soluções não inteiramente coinciden-
tes em matéria de consentimento informado. Com a agravante de ser uma sim-
ples Norma da DGS a consagrar as soluções doutrinariamente mais adequadas.
O regime legal carece, portanto, usando terminologia médica, com urgência,
de diagnóstico e tratamento adequados;
22.º – A medicina encerra risco. Mesmo tendo o médico cumprido com as
regras da arte e atuado de forma diligente e cuidadosa, pode surgir um dano
para o doente. A doutrina do consentimento informado permite solucionar o pro-
blema da divisão do risco, em caso de não satisfação do interesse do credor, na
responsabilidade civil contratual médica. Há que dar, pela via legislativa, esse passo
em frente. Se o risco em causa devia ter sido objeto do consentimento infor-
mado e não o foi, pelo menos em termos satisfatórios, ele correrá pelo médico.
Relativamente a riscos que não eram obrigatoriamente objeto do consenti-
mento informado, os mesmos correrão pelo doente, sob pena de, se assim não
fosse, o intérprete estar a implementar uma solução de justiça distributiva, o
que não lhe é legítimo fazer.
O consentimento informado é a chave para a correta distribuição do risco entre
as partes e, por essa via, para a resolução de muitos casos de responsabilidade
civil contratual médica. Por isso, se impõe a aplicação do regime da responsabili-

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848 Luís Vasconcelos Abreu

dade contratual, uma vez que é no seu seio que melhor podem ser exploradas as
potencialidades do consentimento informado;
23.º – Perguntar-me-ão, e com isto concluo: soluções diferenciadas? Autonomia?
Estamos perante um setor do ordenamento que vai fazendo sozinho a sua
“modernização”, dando a doutrina especializada eco dos novos desenvolvimen-
tos que a matéria conhece noutros países, assim como são frequentes as referên-
cias, em decisões judiciais, a doutrina e a jurisprudência estrangeiras.
A repartição do risco através da informação não tem paralelo entre nós e, em mi-
nha opinião, comprova a especificidade da responsabilidade civil contratual médica.
Tal como o médico não deve findar os seus esclarecimentos com pergun-
tas “fechadas”, do tipo “fui claro?” ou “fiz-me compreender?”, também aqui
concluo de maneira “aberta”24, manifestando a minha total disponibilidade para
procurar responder às questões e oferecer os desenvolvimentos que V. Exas.
entenderem adequados nas arguições que se seguem.

ANEXO

Lei para a Melhoria dos Direitos das Doentes e dos Doentes,


de 20 de Fevereiro de 2013

§ 630a
Obrigações gerais do contrato de tratamento

(1) Através do contrato de tratamento, aquele que aceitou tratar medicamente um


doente (prestador de cuidados de saúde), fica obrigado à prestação do tratamento com-
binado; e a outra parte (doente), ao pagamento da remuneração acordada, exceto se a
mesma ficar a cargo de um terceiro.
(2) O tratamento deve ser realizado de acordo com os standards da especiali-
dade existentes e geralmente reconhecidos, na altura do tratamento, salvo acordo em
contrário.

§ 630b
Regras aplicáveis

À relação jurídica de tratamento aplicam-se as disposições que regem as prestações


de serviços, que não constituam contrato de trabalho por conta de outrem, conforme
o § 622, exceto se especificado de outra forma nesta seção.

24
Olivier Hamtat, L’obligation d’information des patients en matière d’actes chirurgicaux, Bordéus: Les
Études Hospitalières, 2010, 77.

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 849

§ 630c
Cooperação entre as partes. Deveres de informação

(1) O prestador de cuidados de saúde e o doente devem trabalhar em conjunto


durante e para a realização do tratamento.
(2) O prestador de cuidados de saúde deve informar o doente, de uma forma com-
preensível, antes de dar início ao tratamento e, se necessário, no decurso do tratamento
explicar-lhe todos os aspetos essenciais, em particular, o diagnóstico, a evolução pro-
vável do seu estado de saúde, a terapêutica e as medidas a adotar antes e depois desta.
Sempre que o prestador de cuidados de saúde tenha conhecimento de circunstâncias
que possam fundamentar a existência de um erro de tratamento, terá de informar o
doente, mediante pedido deste ou para evitar riscos para a saúde do mesmo. Se o pres-
tador de cuidados de saúde ou um dos seus auxiliares, de acordo com a alínea 1 do § 52
do Código de Processo Penal, vier a incorrer em erro de tratamento, as informações,
antes referenciadas, apenas podem constituir prova contra o prestador de cuidados de
saúde ou o seu auxiliar, em processo penal ou contraordenacional, com o consenti-
mento do referido prestador de cuidados de saúde.
(3) Se o prestador de cuidados de saúde tiver conhecimento ou motivos suficientes
para crer que a totalidade dos custos dos cuidados de saúde não poderá ser assegurada
por um terceiro, deve informar o doente, por escrito, dos custos estimados do trata-
mento antes de o iniciar. Outros requisitos de forma impostos por outras disposições
não são afetados.
(4) A informação ao doente não é obrigatória, desde que seja desnecessária devido
a circunstâncias excecionais, especialmente se o tratamento for inadiável ou se o doente
tiver renunciado expressamente à informação.

§ 630d
Consentimento

(1) Antes de executar um procedimento médico, especialmente se este for invasivo


para o corpo ou para a saúde, o prestador de cuidados de saúde deve obter o consenti-
mento do doente. Se o doente estiver incapaz de dar o seu consentimento, deve obter-
-se o consentimento de alguém autorizado para o efeito, exceto se o procedimento em
questão tiver sido aprovado ou proibido através de uma Diretiva Antecipada de Von-
tade, de acordo com a primeira parte da alínea 1 do § 1901a. As exigências aplicáveis
ao consentimento por força de outras disposições não são afetadas. No caso de não se
possível obter, em tempo útil, o consentimento para uma ação urgente, esta deve ser
realizada sem o consentimento, se tal corresponder à vontade presumida do doente.
(2) A eficácia do consentimento requer que o doente ou o seu procurador, quando
aplicável, tenha sido previamente esclarecido, de acordo com as alíneas 1 a 4 do § 630e.
(3) O consentimento pode ser revogado a qualquer momento e por qualquer
motivo, bem como sem necessidade da observância de qualquer requisito de forma.

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850 Luís Vasconcelos Abreu

§ 630e
Deveres de esclarecimento

(1) O prestador de cuidados de saúde é obrigado a informar o doente sobre todas


as circunstâncias essenciais para o consentimento. Isto inclui, em especial, a natureza,
o âmbito, a execução, as consequências esperadas e os riscos do procedimento, bem
como a sua necessidade, a urgência, a adequação e as perspetivas de sucesso relativa-
mente ao diagnóstico ou terapêutica. Ao prestar o esclarecimento, devem também
ser apontadas medidas alternativas sempre que vários métodos igualmente indicados e
possíveis possam conduzir a diferentes efeitos, riscos ou hipóteses de cura.
(2) O esclarecimento deve ser transmitido:
1. Oralmente, pelo prestador de cuidados de saúde ou por uma pessoa com a for-
mação necessária à execução do procedimento; além disso, pode também ser disponi-
bilizada ao doente documentação de referência, por escrito;
2. Em tempo útil, para que o doente possa tomar uma decisão devidamente escla-
recida sobre a prestação do consentimento;
3. De modo a que seja entendido pelo doente.
O doente receberá cópias dos documentos assinados por si relativos ao esclareci-
mento que lhe foi prestado ou ao próprio consentimento.
(3) O esclarecimento do doente não é obrigatório, desde que seja desnecessário
devido a circunstâncias excecionais, especialmente se o tratamento for inadiável ou se
o doente tiver renunciado expressamente ao esclarecimento.
(4) Quando, de acordo com a segunda frase da alínea 1 do § 630d, se obtenha o
consentimento de pessoa legitimada para o efeito, deve a mesma ser esclarecida con-
forme dispõem as anteriores alíneas 1 a 3.
(5) No caso da segunda frase da alínea 1 do § 630d, as circunstâncias essenciais
referidas na alínea 1 do presente parágrafo devem ser também explicadas ao doente,
desde que o seu nível de desenvolvimento e capacidade de entendimento sejam sufi-
cientes para perceber a explicação e desde que esta não colida com os seus interesses.
O disposto pela alínea 3 aplica-se em conformidade.

§ 630f
Documentação do tratamento

(1) O prestador de cuidados de saúde é obrigado a manter um processo clínico


eletrónico ou em papel, para efeitos de documentação do tratamento, em tempo real.
Só serão permitidas correções e alterações de entradas no processo clínico se, ao lado do
conteúdo original, permanecer visível quando foram introduzidas. Isto deve também
ser assegurado no caso dos registos de saúde eletrónicos.
(2) O prestador de cuidados de saúde deve anotar, no processo clínico, as medi-
das significativas, sob um ponto de vista técnico, do tratamento, atuais e futuras, bem
como os respetivos resultados, em particular, a anamnese, os diagnósticos, os exames
e os respetivos resultados, as constatações ou as descobertas, as terapêuticas e os seus

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Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese 851

efeitos, as intervenções e os respetivos efeitos, os consentimentos e os esclarecimentos.


Os relatórios médicos devem ser incorporados no processo clínico.
(3) O prestador de cuidados de saúde deve manter o processo clínico por um
período de dez anos, após a conclusão do tratamento, exceto se, por outras disposições,
forem determinados outros prazos.

§ 630g
Direito de acesso ao processo clínico

(1) Deve ser concedido ao doente o acesso total, imediatamente após solicitação,
ao seu processo clínico, desde que o referido acesso não seja contraindicado a nível
terapêutico ou colida com quaisquer direitos significativos de terceiros. A recusa do
direito de acesso deve ser justificada. O § 811 aplica-se em conformidade.
(2) O doente pode também solicitar cópias eletrónicas do processo clínico. Terá de
reembolsar o prestador de cuidados de saúde pelos respetivos custos.
(3) Em caso de morte do doente, os direitos das alíneas 1 e 2 passam a estar disponí-
veis para os seus herdeiros defenderem os respetivos interesses patrimoniais. O mesmo
se aplica aos parentes próximos do doente, na medida em que pretendam fazer valer
interesses imateriais. Estes direitos são excluídos se o acesso ao processo clínico colidir
com a vontade expressa ou presumida do doente.

§ 630h
Ónus da prova na responsabilidade por erro de tratamento
ou erro de esclarecimento

(1) Presume-se o incumprimento por parte do prestador de cuidados de saúde


sempre que se concretize um risco geral associado ao tratamento que seja totalmente
controlável por aquele e que tenha causado danos à vida, ao corpo ou à saúde do
paciente.
(2) O prestador de cuidados de saúde tem de provar que obteve o consentimento,
de acordo com o § 630d, e prestou os esclarecimentos, em conformidade com os
requisitos do § 630e. No caso de a prestação de esclarecimentos não estar em conformi-
dade com os requisitos do § 630e, o prestador de cuidados de saúde pode alegar que o
doente teria consentido no tratamento, caso houvesse sido adequadamente esclarecido.
(3) Se o prestador de cuidados de saúde não registou no processo clínico uma
medida terapêutica essencial, cuja aplicação se impunha, de acordo com a ciência
médica, ou o respetivo resultado, contrariando o disposto nas alíneas 1 e 2 do § 630f,
ou não conservou o processo clínico, contrariando o disposto na alínea 3 do § 630f,
presume-se que ele não adotou a medida em causa.
(4) Se o prestador de cuidados de saúde não tinha competência para aplicar um
determinado tratamento, presume-se que essa falta de competência foi a causa dos
danos à vida, ao corpo ou à saúde do doente.

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852 Luís Vasconcelos Abreu

(5) Caso se esteja perante um erro grosseiro de tratamento e o mesmo seja ade-
quado a causar danos à vida, ao corpo ou à saúde, tais como aqueles que se verificaram,
presume-se que o referido erro grosseiro foi a causa desses danos. Isto aplica-se também
quando o prestador de cuidados de saúde não adotou ou assegurou a aplicação atem-
pada de uma técnica médica, na medida em que a mesma, com grande probabilidade,
conduziria a um resultado que daria lugar à adoção de outras técnicas médicas, cuja não
aplicação constituiria (ela própria) um erro grosseiro.

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A ideia de Direito ou uma das ideias de Direito?
PROF. DOUTOR FRANCISCO AGUILAR*
1

Sumário: Introdução. A questão: natureza meramente descritiva ou natureza normativa da


ideia de Direito? Conclusões.

Introdução

A questão a que nos propomos responder no presente artigo é muito sim-


ples: qual a natureza jurídica da ideia de Direito? Meramente descritiva do
Direito ou prescritiva do e no Direito? Mera proposição jurídica ou norma
jurídica? Apenas ciência do Direito ou também Direito?

A questão: natureza meramente descritiva ou natureza normativa da


ideia de Direito?

Procuremos responder à pergunta que colocamos.


Ora, uma reposta asséptica diria que tudo “dependerá” da concepção que
se tenha sobre o Direito. Designadamente da questão de saber se se “adopta”
uma perspectiva positivista ou antipositivista sobre o Direito, o que equivale
por dizer de um entendimento do Direito axiologicamente descomprometido
ou axiologicamente comprometido. O que por sua vez terá repercussões a
outros níveis quais sejam o relativo à estanquicidade ou entrelaçibilidade entre
metodologia e filosofia de Direito, os quais se traduzirão implicadamente na
resposta às ideológicas questões relativas ao império da certeza ou ao império da

*
Professor auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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854 Francisco Aguilar

justiça, à tirania ou à democracia e à da posição do intérprete perante os poderes


fáctico, legislativo e jurisdicional.
As “possibilidades” teóricas de resposta podiam ser, então, como intuitiva-
mente se vê, essencialmente duas.
Sob um olhar positivista, o “Direito” é produto da força (do poder fáctico),
o “Direito” é pré-dado e será livremente criador da realidade jurídica, com o
que quem manda, manda e detém um literal poder de vida ou de morte sobre
os subjugados. O que importa é apenas a defesa do egoísmo de ocasião, pelo
que não há, para os verdadeiros positivismos1, espaço para uma verdadeira con-
sideração, sob uma perspectiva de valor, do comum destinatário da norma e,
consequentemente, do Direito. O Direito positivo existe e é valido indepen-
dentemente do seu conteúdo. Para recorrer à fórmula linguística metodológica
positivista, cabe lá tudo. A axiologia é estranha à validade do Direito. Daí a
segurança jurídica e a subsunção metodológica como cristalizadores instrumen-
tos da intangibilidade do poder posto: ai dos vencidos! Termos em que, sendo
o “Direito” um produto da irrestrita vontade humana tudo, mas literalmente
mesmo, mesmo, tudo, poderá valer como concepção de “Direito”. “Direito”,
força, arbítrio e torto são sinónimos. O “bom jurista” é o que serve o poder –
acreditando cegamente na imagem do detentor deste, como se de uma espécie
de grande feiticeiro se tratasse, rectius, nele vendo aquilo que se ver quer, à
semelhança das personagens infantis do feiticeiro de Oz2, ou in totum compreen-
dendo-o, mesmo por detrás do exercício do poder político, ainda que possa,
neste último caso, preferir, não gostando daquilo que intui, não olhá-lo direc-
tamente nos olhos como se (este) da Medusa3 se tratasse –, não questionando o
“Direito” e proclamando, a plenos pulmões, o “dever de obediência” que lhe

1 V. Francisco Aguilar, «Norma jurídica in tempore casus: O caso como fundamento dos (e limite
aos) poderes legislativo e jurisdicional», no prelo.
2
V. L. Frank Baum, The wonderful wizard of Oz, New York, 1996 [a primeira edição norte-ame-
ricana é de 1900], v.g., pp. 102 e ss..
3
Criatura da mitologia grega. O mito tem várias versões e interpretações, da Antiguidade clás-
sica à psiquiatria moderna. Medusa teria sido um monstro feminino com asas, um rosto ater-
rador e com serpentes venenosas vivas em lugar dos cabelos. Em versões posteriores, ainda na
Antiguidade, Medusa foi inicialmente uma mulher lindíssima, tendo sido sacerdotisa de Atena,
mas apesar de esse compromisso com a Deusa grega, permitira a aproximação de Poseidon, com
quem se unira no próprio templo de Atena, tendo, então, esta última, furiosa, destruído a beleza
inconfundível de Medusa, “condenando-a” ao ostracismo: tornou-lhe o rosto horripilante, com
a pele viscosa e verde, raiou-lhe os olhos de sangue e transformou os belos cabelos dourados da
ex-sacerdotisa em serpentes venenosas vivas, amaldiçoando-a, ainda, com a transformação em
pedra de todos aqueles que a olhassem directamente nos olhos. Medusa viria a ser morta, decapi-
tada, por Perseu, que contou com a ajuda proporcionada por vários Deuses, v.g., com um escudo
espelhado da própria Atena.

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A ideia de Direito ou uma das ideias de Direito? 855

deve o intérprete. A “ideia de Direito”, quando exista, não passa de um formal


conceito de “Direito”, que se limita a acriticamente descrever o que resultar da
axiologicamente insindicável vontade posta pelo poder4. A “ideia de Direito”
será, portanto, não mais do que uma proposição jurídica e é, portanto, tal como
o Direito que serve, fungível, livremente cambiável ao sabor do arbítrio do
poder político, porquanto, como vimos, o destinatário da norma deve obede-
cer e ponto final: Vae victis! Ela é, então, seja ela qual for, naturalisticamente/
positivisticamente apurada pela ciência do “Direito” e objecto de asséptica des-
crição jurídica em proposições jurídicas. Mesmo quando pretenda assentar num
pilar pretensamente racial, com distinção “biológica” e “jurídica” no interior
da humanidade comum à espécie5.
O nosso entendimento encontra-se nos antípodas dos pensamentos posi-
tivistas. A materialmente primeva concretização do princípio da justiça – a
igualdade – constitui um incontornável crivo de axiologia, de valor, de moral
nuclear, de juridicidade limitadores dos poderes legislativo e jurisdicional6,
porquanto ela surge internamente na realização do próprio Direito não ape-
nas como axiologia parametrizadora mas também como crivo realizador do
próprio Direito, com o que, em ela, e no Direito onde ela se encontra, se
inquebrantavelmente entrelaçam metodologia e axiologia. Com efeito, pela
nossa parte, defendemos inequivocamente o reconhecimento e a observância
da ideia de Direito, que consiste, na nossa formulação, na igualdade de todos
na indestrinçável humanidade comum7. Inspirados primevamente em Arendt8,
sublinhámos o carácter indestrinçável da humanidade comum, com isso pro-

4 V. Francisco Aguilar, Dos comportamentos ditos neutros na cumplicidade, Lisboa, 2014, § 13.
5 V. Francisco Aguilar, Dos comportamentos..., obra citada, 2014, § 13.
6 V. Francisco Aguilar, Dos comportamentos..., obra citada, 2014, sobretudo a Introdução e §§

13 e 16; Idem, A norma do caso como norma no caso, Sobre a prático-axiológica natureza da intersubjectiva
realização (unitária) do Direito, Coimbra, 2016, sobretudo §§ 2 e 12; Idem, «Norma jurídica in tem-
pore casus..., obra citada, no prelo.
7
V. Francisco Aguilar, Dos comportamentos..., obra citada, 2014, sobretudo a Introdução e §§ 13
e 16; Idem, A norma do caso..., obra citada, 2016, sobretudo §§ 2 e 12.
8
V. Hannah Arendt, «Personal responsability under dictatorship» [1963], Responsability and judg-
ment, New York, 2003, p. 22.
A expressão common humanity que Arendt utiliza designadamente na fonte acabada de citar, foi,
entre nós, acolhida por Luís Pereira Coutinho na sua construção da “igualdade fundamental de
todos na humanidade comum” (Luís Pereira Coutinho, A autoridade moral da Constituição, Da
fundamentação da validade do Direito constitucional, Coimbra, 2009, in passim, apenas como exemplo p.
578) como parametrização – jusnaturalista porque em face da lei natural na construção do Autor
(cfr., por exemplo, Luís Pereira Coutinho, A autoridade moral..., obra citada, 2009, p. 569) – da
participação moral no espaço civilizacional ocidental desse modo fundante da autoridade material
da Constituição (cfr. Luís Pereira Coutinho, A autoridade moral..., obra citada, 2009, in passim).

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856 Francisco Aguilar

curando materialmente blindá-la face a formalistas e contorcionistas circunveni-


res leges9. Escrevemos, no entanto, formulação, porquanto a ideia de Direito,
sendo ontológico-axiológico-imanente, é natureza das coisas, a natureza das
coisas, designadamente comprometida com a irrenunciável aspiração humana à
justiça, que permite estabelecer a ponte entre o valor do ser e o dever ser, e é,
por conseguinte, ela própria, natureza das coisas que, em si mesma, se impõe:
se impõe ao intérprete lato sensu, ao legislador e ao julgador do caso. É que a
ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum é
historicismo, mas não é um historicismo qualquer. É que, sendo o historicismo
que continuamos a respirar por força da greco-cristã herança no ocidente, ela,
constituindo a argamassa que, inquebrantavelmente, une, universalmente, o
império da justiça, moralmente imposto aos homens, na unitária realização do
Direito e da democracia no acesso e no exercício do poder, é perenemente
renovada e renascida, por aberta ao devir histórico: a natureza das coisas da
ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum,
pela sua própria natureza, passe a redundância, compromete o Direito com a
moral nuclear e abre o Direito ao devir e à renovação históricos, pelo que se
pode afirmar que a igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum
é historicismo (perpetuamente) vivo, ela é uma história interminável. Escre-
víamos que essa natureza se impunha ao legislador e ao julgador e isso é assim,
porque é a igualdade (moralmente imposta pela natureza das coisas) que, ao
fundamentar o Direito e a democracia10, ao mesmo tempo os limita, isto é, traça
a fronteira da sua legítima actuação11. Com a ideia (moral) de Direito, axiolo-
gia e metodologia fundem-se na unitária realização do Direito e no exercício
do poder político, os quais, assim, não podem, legitimamente, deixar de ser
senão necessariamente justos12. Pelo que, por outras palavras, por força da fun-
dacional igualdade na humanidade comum, se impõem tanto um “conceito”
material de Direito como um “conceito” material de democracia13 ou, melhor
ainda, a ideia (moral) de Direito é também a ideia (moral) de democracia. Essa
justiça presente na realização do Direito em um método analógico libertador

9
V. Francisco Aguilar, Dos comportamentos..., obra citada, 2014, sobretudo § 13.
10
A axiologia dos dois é precisamente a mesma (v. Francisco Aguilar, A norma do caso..., obra
citada, 2016, § 12).
11 V. Francisco Aguilar, «Norma jurídica in tempore casus..., obra citada, no prelo.

12 V. Francisco Aguilar, Dos comportamentos..., obra citada, 2014, a Introdução; Idem, A norma do

caso..., obra citada, 2016, §§ 7 e 12; Idem, «Norma jurídica in tempore casus..., obra citada, no prelo.
13 Conceito entre aspas, porquanto conceitos não são verdadeiramente (v. Francisco Aguilar,

A norma do caso..., obra citada, 2016, in passim, sobretudo §12), devendo sublinhar-se, portanto, a
sua natureza material, isto é, aberta, e não formal, isto é, fechada.

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A ideia de Direito ou uma das ideias de Direito? 857

do intérprete14 é necessariamente comprometida com a significação material


do caso no seu momento histórico à luz da natureza das coisas, a qual, expri-
mindo o valor intrínseco do caso de acordo com a histórico-cultural apreensão
do significado das situações de vida pelo homem, não é disponível nem pelo
legislador nem pelo julgador. Todas as destrinças que se pretendam fazer terão,
por conseguinte, de ser emanação do comando de diferenciação da própria
igualdade. Com o que encontramos a resposta para a nossa pergunta: a ideia de
Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum, consis-
tindo na natureza das coisas e presidindo ao analógico método de realização do
Direito, é, ela própria, normativa. Com feito, a ideia de Direito da igualdade
de todos na indestrinçável humanidade comum norma por diversas vias, apenas
analiticamente separáveis, a saber, à uma, afina os pólos da interpretação, desig-
nadamente, parametrizando o pólo do programa de norma, com o que isso
implica de impedimento de normação de programas de normas potencialmente
iníquos, e à duas, preside ao processo de realização do Direito, operando a
comparação entre os significados do caso e do programa de norma para chegar
a um resultado de semelhança ou de diferença pela igualdade concretizadora
da justiça imposta, com o que possibilita encontrar respostas principialmente
ilimitadas com o seu software axiológico de semelhança e diferença, seja em face
da semelhança perante o programa de norma respeitante à fonte seja perante
o desdobramento, ainda que de sinal contrário, desse mesmo normativo pro-
grama15, assim comprometendo axiologicamente todo o sistema jurídico.
A ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum
é, portanto, infungível: ela é insubstituível sem prejuízo da incontornável
aspiração dos seus humanos destinatários à justiça na realização do Direito16.
A ideia de Direito não pode axiologicamente corresponder a uma mera descri-
ção valorativamente neutra, pela ciência do Direito, do “Direito” como con-
ceptualização analítico-anatómica da fáctica vontade programaticamente (im)
posta. A posição do intérprete em geral, e do cientista do Direito em particular,
não deve ser, com efeito, a da asséptica aceitação do que é imposto pelo poder
como Direito. O Direito não é já sinónimo de força, não é já nem a prepotente
vontade do legislador nem a idiossincrática subjectiva impressão do julgador,
mas antes o produto da intersubjectiva compreensão dos significados do caso
e do programa de norma que o momento do caso lhes impõe, tanto a um
como a outro: no fundo, um significado de justiça na igualdade concretizado

14
V. Francisco Aguilar, A norma do caso..., obra citada, 2016, Epílogo; Idem, «Norma jurídica
in tempore casus..., obra citada, no prelo.
15 Sobre tudo isto, v. Francisco Aguilar, A norma do caso..., obra citada, 2016, § 12.

16 Sobre esta última, v. Francisco Aguilar, A norma do caso..., obra citada, 2016, Epílogo.

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858 Francisco Aguilar

que por eles não pode ser ultrapassável, sob pena de esse “Direito” Direito
não chegar a ser. Termos em que uma outra concepção material de “Direito”
assente em uma qualquer discriminação na nuclear humanidade comum, v.g.,
a do censitário liberalismo constitucional ou a do racial nacional-socialismo
alemão, deve ser pela ciência jurídica, necessariamente não axiologicamente
cega, denunciada e descrita não como correspondendo ao Direito mas antes e
nos seus antípodas como aquilo que realmente é: a saber, não como ideia de
Direito – em rigor, talvez nem sequer como ideia de não-Direito, porquanto a
ambiguidade de esta última expressão pode pretender designar outras realidades
normativas não jurídicas –, mas como mera demanda, que fracassada deverá
ser, de ideia de Direito, porquanto, na realidade, ela é uma contra-ideia de
Direito17, isto é, uma ideia contra jus ou ideia de torto, porquanto não chegam
os programas normativos referentes aos preceitos em que assenta essa demanda
de normação a normar, atendendo à parametrização axiológica operada pela
(única) ideia (humana) de Direito: a (normativa) igualdade de todos na indes-
trinçável humanidade comum.
Uma última nota, para sublinhar o carácter universal da ideia de Direito
da igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum. É que, não obs-
tante a circunstância da a ideia de Direito ter a sua proveniência regionalmente
recortada (ao mundo greco-romano, inicialmente forjada no eixo Atenas-Je-
rusalém), a verdade é que ela foi facticamente difundida pelo planeta, designa-
damente pela aventura europeia, tendo a força da sua moralidade nucleica, a
igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum, sido decisiva para a
sua assimilação pelos povos da Terra, o que determinou que, sendo o Direito
de qualquer povo necessariamente humano, e não alienígena, a ideia de Direito
da igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum se tenha natural-
mente imposto como a ideia de Direito comum a todos os povos da Huma-
nidade18, isto é, como a ideia de Direito comum à Humanidade. A ideia de
Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum é, em
suma, como ideia de Direito universal, a ideia de Direito da Humanidade.
É por isso que a ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável huma-
nidade comum, constituindo um verdadeiro parâmetro universal de parame-
trização normativa, impede a normação de programas normativos estrangeiros
na ordem jurídica do foro19. E é também por isso que a ideia de Direito da
igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum surge como a ideia
de Direito do próprio Direito internacional (público), devendo ser considerada

17
V. Francisco Aguilar, «Norma jurídica in tempore casus..., obra citada, no prelo.
18
V. Francisco Aguilar, A norma do caso..., obra citada, 2016, § 14.
19 V. Francisco Aguilar, A norma do caso..., obra citada, 2016, § 14.

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A ideia de Direito ou uma das ideias de Direito? 859

integrante do núcleo do jus cogens, podendo a sua manifestação ser encontrada,


v.g., na realização dos julgamentos de Nuremberga (começados em 1946) e no
preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948).

Conclusões

1. A ideia de Direito, para um quadro de pensamento positivista, apenas


poderá ser vista numa perspectiva descritiva, isto é, como mera proposição
jurídica.
2. A ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade
comum é axiologicamente comprometida.
3. A ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade
comum é natureza das coisas e por isso mesmo (pela própria natureza das coi-
sas) imposta: ela é ontológico-axiológico-imanente, pelo que ela é historicismo
vivo, aberto ao devir histórico e como tal perene no Direito e na democracia;
ela é uma história necessariamente interminável.
4. A ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade
comum é o crivo da metodologia.
5. A ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade
comum entrelaça inquebrantavelmente a axiologia na metodologia, limitando
o dever ser pelo valor do ser.
6. A ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade
comum constitui fundamento e limite do/ao Direito e da/à democracia.
7. A ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade
comum é, mais do que descritiva, normativa.
8. A ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade
comum é infungível.
9. Uma outra demanda de “ideia de Direito” alicerçada em uma cisão arbi-
trária na humanidade comum, v.g., em um pilar tributário (v., v.g., o voto
censitário do constitucionalismo liberal) ou em um pilar racial (v., v.g., o nacio-
nal-socialismo alemão), deve ser denunciada e descrita pela ciência do Direito
como, não mais do que a demanda fracassada de construção de uma nova ideia
de Direito, como aquilo que verdadeiramente é: uma contra-ideia de Direito,
uma ideia contra jus, uma ideia de torto, sendo os programas normativos em que
se consubstancie impedidos de normar pela ideia de Direito da igualdade de
todos na indestrinçável humanidade comum.
10. Apesar da proveniência inicialmente regionalmente recortada (ao
mundo greco-romano, tendo sido primevamente forjada no eixo Atenas–Jeru-
salém), a ideia de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humani-

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860 Francisco Aguilar

dade comum é universal. Ela é a ideia de Direito comum a todos os povos da


Humanidade, isto é, ela é a ideia de Direito comum à Humanidade. A ideia
de Direito da igualdade de todos na indestrinçável humanidade comum é, por
isso, a ideia de Direito, tanto no Direito interno, onde parametriza inclusive os
programas normativos estrangeiros, como no Direito internacional.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial *
DR. CARLOS LACERDA BARATA**

Sumário: I – Introdução: 1. Contratação fora do estabelecimento comercial e tutela do


consumidor. II – Contratos celebrados fora do estabelecimento no Direito positivo: 2. Fontes
normativas específicas: 2.1. Antecedentes normativos comunitários e internos; 2.2. O quadro
actual: 2.2.1. Directiva 2011/83/UE, de 25 de Outubro de 2011; 2.2.2. O regime
jurídico português de 2014; 3. Outras fontes. III – Contratos celebrados fora do estabe-
lecimento: conceito e regime: 4. Noção; elementos; 5. Âmbito de aplicação; 6. Deveres de
informação; 7. Forma; 8. Direito de livre desvinculação; 9. Outros aspectos.

I – Introdução

1. Contratação fora do estabelecimento comercial e tutela do consumidor

I. Os processos de contratação que envolvem o consumidor1 justificam a


presença de um conjunto de regras e de princípios tendentes a assegurar, com

*
O presente estudo corresponde, com alguns aditamentos, ao texto base de parte da comunica-
ção do autor, em 18-Fev.-2016, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no âmbito
do XIV Curso pós-graduado de aperfeiçoamento em Direito do Consumo, organizado pelo
IDC – Associação para o Estudo do Direito do Consumo e integrará o volume V dos Estudos de
Direito do Consumo.
** Assistente convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Advogado.

1 O conceito de consumidor não é uniforme, inclusivamente, nas fontes (sobre a heterogenei-

dade do termo consumidor, cfr. Pier Filippo Giuggioli, Il Contratto del Consumatore – Trattato di
Diritto Civile, dir. Rodolfo Sacco, Le Fonti delle Obbligazioni, 4 – UTET, Torino, 2012, 80 ss).
Em termos europeus, a noção de consumidor terá sido positivada, pela primeira vez, na Carta de
Protecção do Consumidor, de 17 de Maio de 1973 (Resolução n.º 543 da Assembleia Consultiva
do Conselho da Europa; cfr. A. (i)), que o definiu como «uma pessoa física ou colectiva a quem são for-
necidos bens e prestados serviços para uso privado». Em Portugal, a primeira noção legal de consumidor
resultou da antiga Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 29/81, de 22 de Agosto), que, no seu

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862 Carlos Lacerda Barata

artigo 2.º, considerava consumidor «todo aquele a quem sejam fornecidos bens ou serviços destinados ao seu
uso privado por pessoa singular ou colectiva que exerça, com carácter profissional, uma actividade económica».
Actualmente, entre nós, a vigente Lei de Defesa do Consumidor (LDC) – Lei n.º 24/96, de 31 de
Julho – no n.º 1 do seu artigo 2.º, define, em termos genéricos, consumidor, do seguinte modo:
«...todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados
a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a
obtenção de benefícios.». Segundo a orientação do Professor António Menezes Cordeiro (Da natu-
reza civil do Direito do Consumo, O Direito, 136.º/IV, 2004, 615 e 637 ss), a noção legal contida na
LDC é indevidamente estreita, pois não haverá qualquer razão para não proteger o consumidor
perante entidades que, fornecendo bens ou serviços, actuem sem carácter profissional ou o façam
sem visar a obtenção de benefícios.
A definição da Lei de Defesa do Consumidor foi incorporada noutros diplomas legais (cfr. Jorge
Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, 17): umas
vezes por simples reprodução, como sucede no artigo 1.º-B/a) do Decreto-Lei n.º 67/2003, de
8 de Abril, relativo à venda de bens de consumo, e, outras vezes, por via de expressa remissão
legal, como ocorre com o artigo 3.º/b) do Decreto-Lei n.º 134/2009, de 2 de Junho, referente ao
regime aplicável aos call centres.
Porém, noutras fontes, para efeitos de aplicação dos respectivos regimes legais, consagram-se defi-
nições de consumidor nem sempre coincidentes (ora mais amplas, ora mais restritas), designada-
mente, em resultado da transposição, para o Direito interno, de diversas Directivas europeias (cfr.,
a este propósito, António Pinto Monteiro, A resposta do ordenamento jurídico português à contratação
bancária pelo consumidor, RLJ 143.º, 2014, 376 ss (377)). Assim, a título indicativo: o Decreto-Lei
n.º 95/2006, de 29 de Maio (alterado pelo Decreto-Lei n.º 134/2009, de 2 de Junho, pela Lei n.º
46/2011, de 24 de Junho, pela Lei n.º 14/2012, de 26 de Março e pelo Decreto-Lei n.º 242/2012,
de 7 de Novembro) – regime jurídico dos contratos à distância relativos a serviços financeiros
celebrados com consumidores –, no artigo 2.º/e), define consumidor como «qualquer pessoa singular
que, nos contratos à distância, actue de acordo com objectivos que não se integrem no âmbito da sua actividade
comercial ou profissional»; o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março (alterado pelo Decreto-Lei
n.º 205/2015, de 23 de Setembro) – regime aplicável às práticas comerciais desleais – determina
que se considera consumidor (artigo 3.º/a)) «(…) qualquer pessoa singular que, nas práticas comerciais
abrangidas pelo presente decreto-lei, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial,
industrial, artesanal ou profissional»; o Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho (alterado, por último,
pelo Decreto-Lei n.º 42-A/2013, de 28 de Março) – regime jurídico dos contratos de crédito a
consumidores – define consumidor (artigo 4.º/1, a)) como «a pessoa singular que, nos negócios jurídicos
abrangidos pelo presente decreto-lei, actua com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profi ssional»; o
Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro (com alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2014, de
28 de Julho) – relativo aos contratos celebrados à distância e aos contratos celebrados fora do esta-
belecimento comercial –, para efeitos de aplicação do correspondente regime, consagra a seguinte
definição de consumidor (3.º/c)): «a pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da
sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional» (anteriormente, quanto à mesma matéria,
no artigo 1.º/3, a), do revogado DL n.º 143/2001, de 26 de Abril, dizia-se: «qualquer pessoa singular
que actue com fins que não pertençam ao âmbito da sua actividade profissional»); a Lei n.º 144/2015, de
8 de Setembro – que estabelece o regime jurídico dos mecanismos de resolução extrajudicial de
litígios de consumo – determina que, para efeitos da sua aplicação, se entende por «consumidor,

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 863

eficácia, a sua protecção2; assim sucede, nomeadamente, quando ele assuma


o papel de adquirente de bens ou de serviços, em virtude da celebração dos
respectivos contratos, tendo como contraparte um fornecedor de bens ou pres-
tador de serviços, que actue no âmbito da sua actividade profissional3.
Isto mesmo se passa, com fundadas razões, em diversas modalidades e esque-
mas de formação contratual; é o caso, designadamente, dos contratos celebrados
fora do estabelecimento comercial (abrangendo os concluídos no domicílio do
consumidor e em situações equiparadas)4.

uma pessoa singular quando atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial,
artesanal ou profissional» (artigo 3.º/c)).
Na doutrina portuguesa, em geral, sobre o conceito de consumidor, vide, especialmente, Carlos
Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, Almedina, Coimbra, 2005, 25 ss e 44 ss – e, anterior-
mente, Os direitos dos consumidores, Almedina, Coimbra, 1982, 203 ss e Negócio jurídico de consumo,
BMJ n.º 347, 1985, 11 ss – João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, Almedina,
Coimbra, 1990, 58 ss, Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo. Reflexão sobre a auto-
nomia privada no Direito do Consumo, Almedina, Coimbra, 2012, 22 ss e Manual de Direito do Con-
sumo, 3.ª ed., cit., 17 ss, Fernando Baptista de Oliveira, O conceito de consumidor. Perspectivas
nacional e comunitária, Almedina, Coimbra, 2009; cfr., também, Paulo Duarte, O conceito jurídico
de consumidor, segundo o art. 2.º/1 da Lei de Defesa do Consumidor, BFDUC, vol. LXXV, 1999, 649 ss.
2 A necessidade de protecção dos consumidores ganhou especial visibilidade a partir da célebre

mensagem do presidente John F. Kennedy, ao Congresso dos Estados Unidos da América, em


15 de Março de 1962, na qual foram, expressamente, reconhecidos diversos direitos fundamen-
tais dos consumidores.
3 Cfr. a defi nição legal de fornecedor de bens ou prestador de serviços constante do artigo 3.º/i) do refe-

rido Decreto-Lei n.º 24/2014: «a pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, num contrato com
um consumidor, atue no âmbito da sua atividade profissional, ou através de outro profissional, que atue em
seu nome ou por sua conta.».
4 Num sentido amplo (que, aqui, não adoptamos), os contratos celebrados fora do estabelecimento

comercial abrangerão, também, os contratos celebrados à distância.


Neste sentido, vide, designadamente, Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consomma-
tion, 9.ª ed., Dalloz, Paris, 2015, 579, Lucía Vázquez-Pastor Jiménez, Principales novidades que
introduce la Ley 3/2014, de 27 de marzo, en el régimen jurídico de los contratos celebrados fuera del estableci-
miento, InDret, n.º 4, 2014, 5 e 7 (acessível em http://www.indret.com/pdf/1089_1.pdf ) e, entre
nós, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral. Negócio jurídico, 4.ª
ed., Almedina, Coimbra, 2014, 350, bem como a sistematização da matéria ensaiada por Pedro
Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial). Contratos, 2.ª ed., Almedina, Coimbra,
2001, 100 ss, que, sob o título genérico “venda celebrada fora do estabelecimento comercial”,
trata, sucessivamente, a venda à distância (101 ss) e a venda ao domicílio (105 ss); de igual modo,
do mesmo Professor, Da Cessação do Contrato, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, 265 ss, 267 ss,
270. No mesmo sentido, vide Elsa Dias Oliveira, A protecção dos consumidores nos contratos celebra-
dos através da internet, Almedina, Coimbra, 2002, 41 (afirmando a aplicabilidade do antigo regime
da compra e venda fora do estabelecimento, constante do Decreto-Lei n.º 272/87, de 3 de Julho,
aos contratos celebrados através da internet).

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864 Carlos Lacerda Barata

Nesta situação, a perspectivação do consumidor como parte mais fraca5 no


processo contratual – logo, merecedora de uma especial tutela, enquanto con-
traente débil, parte numa relação assimétrica6 – resulta, essencialmente, dos
seguintes factores:

O referido sentido amplo é, claramente, adoptado na legislação brasileira: o artigo 49 do Código


de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078, de 11 de Setembro de 1990) determina que «O
consumidor pode desistir do contrato, no prazo de sete dias (…), sempre que a contratação (…)
ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.» (itálico nosso). Cfr.
Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações
contratuais, 4.ª ed., Edit. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, 703 ss; Nelson Nery Júnior, in
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos Autores do Anteprojeto, 6.ª ed., 2.ª reimpr.,
Edit. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2000, 482-483; Alexandre Junqueira Gomide,
Direito de arrependimento nos contratos de consumo, Almedina, 2014, 145 ss.
5 O “elo fraco”, na expressão de José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Alme-

dina, Coimbra, 2009, 326 (cfr., também, 83-84).


6 Entre vários, vide Matteo Magri, Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori dei

locali commerciali, CEDAM, 2011, 25 e 80-81: o Autor distingue a debilidade sócio-económica, que
caracteriza um sujeito ou uma classe de sujeitos e a debilidade contratual, resultante, sobretudo, da
assimetria informativa, independentemente, portanto, de qualquer status sócio-económico. No
tratamento dos contratos celebrados fora do estabelecimento, esta assimetria informativa é fre-
quentemente sublinhada pela doutrina: vide, nomeadamente, Andrea Stazi/Davide Mula, I
contratti negoziati fuori dei locali commerciali ed i contratti a distanza, in Il Diritto dei Consumatori. Profili
applicative e strategie processuali, a cura di Giuseppe Cassano/Marco Eugenio Di Giandomenico,
tomo 1, CEDAM, 2010, 297-298, Luca Di Donna, Obblighi informativi precontrattuali, I – La tutela
del consumatore, Giuffrè, Milano, 2008, 60, Alessandro Barca, Il diritto di recesso nei contratti del
consumatore, Giuffrè, Milano, 2011, 49-50, Alberto Gallarati, Il diritto di ritirare la «parola data»
tra formule e regole: un’indagine di analisi economica del diritto, RDCiv., LI, n.º 4, P.I, 2005, 343 ss (360
ss); em termos não inteiramente coincidentes, identificando, no mesmo domínio contratual, uma
assimetria económico-informativa, Massimiliano Dona, Pubblicità, pratiche commerciali e contratti nel
Codice del Consumo, UTET, Torino, 2008, 112. Ainda sobre o referido desequilíbrio informativo,
considerando, genericamente, os contratos de consumo, vide Enrico Gabrielli, Il consumatore e il
professionista, in Contratto e Contratti. Scritti, UTET, Torino, 2011, 423 ss (444 ss e 453 ss) e Paolo
Gallo, Trattato del Contratto, t. 1, La formazione, UTET, Torino, 2010, 777 (assinalando, como
“inevitável”, a assimetria informativa, na relação profissional – consumidor).
Na doutrina portuguesa, vide, nomeadamente, Carlos Ferreira de Almeida, Negócio jurídico de
consumo, cit., 19 ss e Direito do Consumo, cit., 27-28 e 37 ss, João Calvão da Silva, Responsabilidade
civil do produtor, cit., 27 ss e 54 ss, Elsa Dias Oliveira, A protecção dos consumidores nos contratos cele-
brados através da internet, cit., 24 ss e Jorge Pegado Liz, Introdução ao Direito e à Política do Consumo,
Edit. Notícias, Lisboa, 1999, 220 ss.
Cfr., igualmente, Pier Filippo Giuggioli, Il Contratto del Consumatore, cit., 44-45, referindo a
debilidade e a inferioridade do consumidor, nas relações com o profissional e acentuando que,
nesta óptica, os regimes jurídicos que, em tema de contratos com consumidores, visam a pro-
tecção destes poderão assumir contornos paternalistas. Sobre este “paternalismo”, vide, tam-
bém, Lorenzo Cavaglio, La formazione del contratto. Normative di protezione ed efficienza economica,
Giuffrè, Milano, 2006, em especial, 41 ss, 52 ss, 56 ss e 227 ss.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 865

(i) Em regra, a iniciativa ou o impulso negocial não pertence ao consu-


midor, mas ao vendedor ou fornecedor7: é este que aborda – muitas
vezes, insistentemente8 – o consumidor (que, normalmente, nada soli-
citou), no local onde este se encontre, maxime no domicílio9;
(ii) Existe, em regra, uma menor liberdade de escolha, por parte do consu-
midor, que, apanhado desprevenido10, não tem possibilidade de com-

Entre nós, sobre o chamado paternalismo contratual, vide Hugo Ramos Alves, Sobre o dito
“Paternalismo Contratual”, Estudos do Instituto de Direito do Consumo, IV, IDC/FDUL, Alme-
dina, 2014, 43 ss.
Esta temática é, aliás, central, no que toca ao próprio Direito do consumo: nas palavras de Jean
Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., o coração do Direito do
consumo é constituído por regras de aplicação reservada às relações entre profissionais e consu-
midores e cujo escopo é a protecção dos consumidores (p. 15), dado que os consumidores estão,
naturalmente, em posição de fragilidade perante os profissionais (p. 19).
7 Esta circunstância foi, expressamente, tomada em conta na Directiva 85/577/CEE, do Conse-

lho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores nos contratos negocia-
dos fora dos estabelecimentos comerciais (cfr. o considerando apresentado em quarto lugar) (JO
L 372, de 31-12-1985).
Vide, nomeadamente, Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial). Contratos,
2.ª ed., cit., 101 e 105, apontando – no domínio de vigência do Decreto-Lei n.º 143/2001 – a ine-
xistência de qualquer encomenda ou pedido prévio, por parte do consumidor, como característica
da venda ao domicílio. No mesmo sentido, vide Fernando de Gravato Morais, Contratos de cré-
dito ao consumo, Almedina, Coimbra, 2007, 172-173; Carolina Cunha, Métodos de venda a retalho
fora do estabelecimento: regulamentação jurídica e protecção do consumidor, in Direito Industrial, vol. IV,
2005, 285 ss (292); RP 5-Mai.-2005 (José Ferraz) (proc. n.º 0531983), in http://www.dgsi.pt.
Cfr. também Matteo Magri, Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori dei locali com-
merciali, cit., 85; Enzo Maria Tripodi/Claudio Belli, Codice del Consumo. Commentario del D.Lgs.
6 settembre 2005, n. 206, II ed., Maggioli Edit., 2008, 274 (comentário a cargo de Ettore Bat-
telli); Lucía Vázquez-Pastor Jiménez, Principales novidades que introduce la Ley 3/2014, de 27 de
marzo, en el régimen jurídico de los contratos celebrados fuera del establecimiento, cit., 4-5.
8
Amiúde, com “fastidiosa insistência”, nas palavras de Massimo Cartella, La disciplina dei con-
tratti negoziati fuori dei locali commerciali, Giur. Comm., 19.4, P. I, 1992, 715.
Refira-se que a prática de contactar o consumidor, visitando-o no seu domicílio, ignorando a
sua vontade manifestada em sentido contrário, pode configurar uma prática comercial agressiva
e desleal e, como tal, proibida (artigos 4.º, 6.º/c) e 12.º/b) do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de
Março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 205/2015, de 23 de Setembro).
9 Cfr. Vincenzo Roppo, Il Contratto, 2.ª ed. (Trattato di Diritto Privato, Iudica/Zatti), Giuff rè,

Milano, 2011, 866.


10 Cfr. António Gama Ramos, Contratos de venda ao domicílio. Breve abordagem a uma área conflitual

no domínio dos contratos, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 4, 2002, 251. No mesmo sentido,
vide Gérard Cas/Didier Ferrier, Traité de droit de la consommation, PUF, Paris, 1986, 286.

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866 Carlos Lacerda Barata

parar preços, características do bem objecto do contrato11, condições


contratuais, etc.12;
(iii) O factor surpresa13 provoca (ou agrava) o desequilíbrio entre as partes:
o “encontro imediato” com um profissional de vendas ou de forneci-

11
Entre vários, vide Matteo Magri, Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori dei
locali commerciali, cit., 85, Massimiliano Dona, Pubblicità, pratiche commerciali e contratti nel Codice
del Consumo, cit., 112, Francesco Astone, I contratti negoziati fuori dai locali commerciali, in Trattato
di Diritto Privato Europeo, a cura di Nicolò Lipari, vol. 4.º, Singoli contratti. La responsabilità civile.
Le forme di tutela, 2.ª ed., CEDAM, Padova, 2003, 30 ss (37), Luca Di Donna, Obblighi informativi
precontrattuali, I – La tutela del consumatore, cit., 50, Cláudia Lima Marques, Contratos no Código
de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais, 4.ª ed., cit., 705, José Manuel Lete
del Río/Javier Lete Achirica, Derecho de Obligaciones, vol. II, Contratos, Thomson/Aranzadi,
2006, 219; no mesmo sentido, já nas décadas de 70 e 80, Guido Alpa, Un progetto di direttiva comu-
nitaria in materia di vendite a domicilio, Riv. Soc., 22.º, 1977, 980-981, Raymonde Baillod, Le droit
de repentir, RTDC, 83, n.º 2, 1984, 228-229. Na doutrina portuguesa, vide, designadamente,
Sandra Passinhas, A Directiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro
de 2011, relativa aos direitos dos consumidores: algumas considerações, Estudos de Direito do Consumi-
dor, n.º 9, edição especial, 2015, 93 ss (114).
12 Cfr. o referido considerando 4 da Directiva 85/577/CEE, já citada.

Cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 123 e Jorge Morais
Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento
comercial. Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, Almedina, Coimbra, 2014, 95,
Reinhard Zimmermann, The New German Law of Obligations. Historical and Comparative Perspec-
tives, Oxford University Press, 2005, reprint. 2010, 213 e Gemma Botana García, na sua tese
de doutoramento, Los contratos realizados fuera de los establecimientos mercantiles y la protección de los
consumidores, Bosch, Barcelona, 1994, 34.
13 Vide Christian Alexander, Verbraucherschutzrecht, Beck, München, 2015, 85, Claus-Wilhelm

Canaris, Wandlungen des Schuldvertragsrechts – Tendenzen zu seiner “Materialisierung”, AcP 200, 2000,
273 ss (346-347), Reinhard Zimmermann, The New German Law of Obligations. Historical and
Comparative Perspectives, cit., 213, Paolo Gallo, Trattato del Contratto, t. 1, La formazione, cit., 829,
Rodolfo Sacco, Conclusioni del contratto, RDCiv., XLI, P. II, 1995, 202 ss (207), Vincenzo Roppo,
Il Contratto, 2.ª ed., cit., 866, Massimo Cartella, La disciplina dei contratti negoziati fuori dei locali
commerciali, cit., 715-716, Matteo Magri, Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori
dei locali commerciali, cit., 85, Carlo Pilia, Accordo debole e diritto di recesso, Giuffrè, Milano, 2008,
42, Massimiliano Dona, Pubblicità, pratiche commerciali e contratti nel Codice del Consumo, cit., 112,
Alessandro Barca, Il diritto di recesso nei contratti del consumatore, cit., 50, Luca Di Donna, Obblighi
informativi precontrattuali, I – La tutela del consumatore, cit., 49-50, Ettore Battelli, in Enzo Maria
Tripodi/Claudio Belli, Codice del Consumo. Commentario del D.Lgs. 6 settembre 2005, n. 206,
II ed., cit., 274, Vincenzo Cuffaro (dir.), Codice del Consumo (coord. Angelo Barba/Andrea
Barenghi), 2.ª ed., Giuffrè, Milano, 2008, 247-248, Maria Carla Cherubini, Sul c.d. diritto di
ripensamento, RDCiv. XLV, P. II, 1999, 695 ss (697), Andrea Tucci, Contratti negoziati fuori da locali
commerciali e acessorietà della fideiussione, BBTC, LII/2, P. II, 1999, 132 ss (136, nota 12), Giorgio
De Nova, Il recesso, in Trattato di Diritto Privato, dir. Pietro Rescigno, 10, Obbligazioni e contratti,
t. 2.º, 2.ª ed., UTET, Torino, 1995, rist. 1998, 644-645, Mara Messina, “Libertà di forma” e nuove
forme negoziali, Giappichelli, Torino, 2004, 130 e 134, Francesco Macioce, L’obbligazione e il con-

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 867

mento de serviços – com frequência, especialmente treinado14, hábil15,


experiente na sua “agressividade” e persuasivo16 – acarreta, geralmente,
um menor grau de reflexão, por parte do consumidor;

tratto, Giappichelli, Torino, 2004, 191, Oreste Cagnasso/Gastone Cottino, Contratti commer-
ciali (Trattato di Diritto Commerciale, dir. Gastone Cottino, vol. IX), 2.ª ed., CEDAM, Padova,
2009, 60, Pascal Pichonnaz, La protection du consommateur en droit des contrats: le difficile équilibre
entre cohérence du système contractuel et régime particulier, in Droit de la consommation/Konsumenschutz-
recht/Consumer law. Liber amicorum Bernd Stauder, dir. Luc Thévenoz/Norbert Reich, Nomos/
Schultess, Zürich, 2006, 323 ss (331), Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consomma-
tion, 9.ª ed., cit., 580, Gemma Botana García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos
mercantiles y la protección de los consumidores, cit., 34, Lucía Vázquez-Pastor Jiménez, Principales
novidades que introduce la Ley 3/2014, de 27 de marzo, en el régimen jurídico de los contratos celebrados
fuera del establecimiento, cit., 6-7, Alexandre Junqueira Gomide, Direito de arrependimento nos con-
tratos de consumo, cit., 49, Peter Rott/Evelyne Terryn, in Hans-W Micklitz/Jules Stuyck/
Evelyne Terryn, Cases, Materials and Texts on Consumer Law (coord. Dimitri Droshout), Hart
Publishing, Oxford and Portland, 2010, 245.
Entre nós, realçando também o factor surpresa, vide, nomeadamente, Jorge Sinde Monteiro,
Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Almedina, Coimbra, 1989, 373, Luís A.
Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., Universidade Católica Edit., Lisboa,
2014, 122, Ana Prata, Notas sobre responsabilidade pré-contratual, separata da Revista da Banca n.ºs
16/17, Lisboa, 1991, 128-129 (referindo-se aos “contratos-surpresa”), Fernanda Neves Rebelo,
O direito de livre resolução no quadro geral do regime jurídico da protecção do consumidor – Com as alterações
introduzidas pelo DL n.º 82/2008, de 20 de Maio, Revista Jurídica da Universidade Portucalense, n.º
13, 2008, 41 ss (63) (existe uma primeira versão deste estudo: O direito de livre resolução no quadro
geral do regime jurídico da protecção do consumidor, in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais.
Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, vol. II,
Coimbra Edit., Coimbra, 2007, 571 ss) e O direito à informação do consumidor na contratação à distân-
cia, in Liber Amicorum Mário Frota. A causa dos direitos dos consumidores, Almedina, Coimbra, 2012,
103 ss (112), Fernando Nicolau dos Santos Silva, Dos contratos negociados à distância, RPDC,
n.º 5, 1996, 45, António Gama Ramos, Contratos de venda ao domicílio. Breve abordagem a uma área
conflitual no domínio dos contratos, cit., 252, Teresa Madeira, Contratos ao domicílio e equiparados,
RPDC, n.º 41, 2005, 39 ss (41).
14
Vide Basil Markesinis/Hannes Unberath/Angus Johnston, The German Law of Contract.
A comparative treatise, 2.ª ed., Hart Publishing, Oxford and Portland, 2006, 266; Alexandre
Junqueira Gomide, Direito de arrependimento nos contratos de consumo, cit., 53.
15
Vide Franceso Galgano, Trattato di Diritto Civile, vol. 2.º, 3.ª ed., Wolters Kluwer/CEDAM,
Padova, 2015, 232.
16 Cfr. Giannantonio Benacchio, Diritto Privato della Comunità Europea. Fonti, modelli, regole, 2.ª

ed., CEDAM, Padova, 2001, 312 e Vincenzo Cuffaro (a cura di), Codice del Consumo (coord.
Angelo Barba/Andrea Barenghi), 2.ª ed., cit., 248, referindo a iniciativa negocial agressiva do
profissional; em termos equivalentes, aludindo, também, ao comportamento agressivo da con-
traparte do consumidor, Carlo Pilia, Accordo debole e diritto di recesso, cit., 42; referenciando o
incómodo, sentido pelo consumidor, perante “a dialéctica persuasiva” do comerciante, Gemma
Botana García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos mercantiles y la protección de los
consumidores, cit., 34, acompanhada por Lucía Vázquez-Pastor Jiménez, Principales novidades que

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868 Carlos Lacerda Barata

(iv) A pressão psicológica17, provocada pela presença física do vendedor/


fornecedor, que, amiúde, surge inesperadamente, por exemplo, no
domicílio do consumidor, induzindo-o a adquirir determinado bem
ou serviço, leva muitas vezes – a prática demonstra-o e a doutrina
salienta-o18 – a contratações irreflectidas, não adequadamente ponde-
radas ou não desejadas: muitas vezes, o consumidor, pura e simples-
mente, não consegue dizer não19.

introduce la Ley 3/2014, de 27 de marzo, en el régimen jurídico de los contratos celebrados fuera del estable-
cimiento, cit., 6; no mesmo sentido, Federico Oriana, La legge francese sulla vendita a domicilio e la
protezione del consumatore, RTDPC XXIX, P. II, 1975, 1573 e François Collart Dutilleul/
Philippe Delebecque, Contrats civils et commerciaux, 6.ª ed., Dalloz, Paris, 2002, 94.
17 Cfr. Christian Alexander, Verbraucherschutzrecht, cit., 85.

18 Cfr. João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, cit., 76, nota 3, referenciando as

vendas ao domicílio (e as vendas por correspondência) como “vendas sob alta pressão (high pres-
sure sales)”. A “forte pressão”, exercida pelo vendedor, sobre o consumidor, que acaba por formu-
lar uma “decisão de compra (…) confusa e quase inconsciente”, é sublinhada por Luís Menezes
Leitão, A protecção do consumidor contra as práticas comerciais desleais e agressivas, Estudos de Direito
do Consumidor, n.º 5, 2003,170-171 = O Direito, 134.º-135.º, 2002/2003, 75-76, na sequência
de António Gama Ramos, Contratos de venda ao domicílio. Breve abordagem a uma área conflitual no
domínio dos contratos, cit., 252, enquanto Carlos Ferreira de Almeida, Os direitos dos consumi-
dores, cit., 91, evidencia o “desejo de libertação”, do consumidor, “da insistência dum vendedor
inoportuno e persistente”; a “situação de fragilidade originada pela pressão” a que o consumidor
pode estar sujeito é, também, assinalada em Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo,
cit., 234 e Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 140 (cfr., também, 151), bem como em João
Pedro Pinto-Ferreira/Jorge Morais Carvalho, Os contratos celebrados à distância e fora do esta-
belecimento, in I Congresso de Direito do Consumo (coord. Jorge Morais Carvalho), Almedina,
Coimbra, 2016, 96 (sempre citando Menezes Leitão) e ainda por Alexandra Teixeira de
Sousa, O direito de arrependimento nos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento: algumas
notas, Estudos de Direito do Consumo – Homenagem a Manuel Cabeçadas Ataíde Ferreira, Ed. DECO,
2016, 18 ss (26). No mesmo sentido, entre outros, vide Carlo Pilia, Accordo debole e diritto di
recesso, cit., 41, Rodolfo Sacco, Conclusioni del contratto, cit., 207, Valentina Jacometti, Termi-
nologia giuridica e armonizzazione del Diritto Europeo dei contratti – Ius poenitendi del consumatore nelle
Direttive Comunitarie e nell’ordinamento francese, RDCiv., LIII, n.º 5, P.II, 2007, 561 ss (570) e Lucía
Vázquez-Pastor Jiménez, Principales novidades que introduce la Ley 3/2014, de 27 de marzo, en el
régimen jurídico de los contratos celebrados fuera del establecimiento, cit., 8; cfr., ainda, Matteo Magri,
Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori dei locali commerciali, cit., 28 e 81, que – numa
afirmação, porventura, excessiva – refere a situação de desorientação ou de desambientação, por
parte do consumidor, devida ao lugar onde o contrato é celebrado (v.g. o domicílio).
19 Vide Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 122, apoiado em

Markesinis/Unberath/Johnston, The German Law of Contract. A comparative treatise, 2.ª ed.,


cit., 273.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 869

Todavia, paralelamente, este “tipo” de contratação – há muito utilizado


e sobejamente conhecido na prática comercial20 – envolve inequívocas van-
tagens, inclusivamente, para o próprio consumidor, em especial, no que toca
à celeridade e à comodidade: o consumidor pode adquirir bens ou serviços,
designadamente, no seu próprio domicílio ou local de trabalho, sem os incon-
venientes próprios das deslocações21.

II. Porém, como se disse, a contratação fora do estabelecimento comercial,


representa um claro exemplo da necessidade de acrescida tutela do contraente
mais débil22, já que, reconhecidamente, se trata de uma prática comercial agres-
siva23 (ou, até, insidiosa24).

20 Sem recuar a estádios anteriores, o fenómeno das vendas ao domicílio (e em reuniões), tal como
existe hodiernamente – levadas a cabo de modo estruturado e com base empresarial –, é facil-
mente detectável a partir de meados do século XIX. Alguns exemplos paradigmáticos: em 1851,
nos Estados Unidos, Isaac Singer optou por promover a demonstração do funcionamento de
máquinas de costura, para venda, nos domicílios dos (potenciais) clientes; mais perto do final do
mesmo século, a venda porta-a-porta desenvolveu-se significativamente, com a entrada da Avon
no sector dos perfumes e cosmética e a comercialização, por esse processo, dos respectivos pro-
dutos; mais tarde: a prática da venda de enciclopédias ao domicílio e, já no início do século XX,
a venda domiciliária de pequenos electrodomésticos; seguiram-se as vendas em reuniões, com
apresentação e demonstração do uso de bens, perante um grupo de pessoas reunidas no domicílio
de uma delas, por solicitação do vendedor: caso da Tupperware, marca dos conhecidos recipientes,
inventados, na década de 40, por Earl Tupper; a partir da segunda metade do século XX: desen-
volvimento da prática das vendas ao domicílio, por empresas de comercialização de livros, com
destaque, na Península Ibérica, para o Círculo de Leitores; já no século XXI: a comercialização,
porta-a-porta, de serviços de telecomunicações.
Cfr. Juan B. Mir Piqueras, La venta domiciliaria. Del puerta a puerta a multinível, Ed. Díaz de Santos,
1994, 4 ss, Gemma Botana García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos mercantiles y
la protección de los consumidores, cit., 33, Juan Manuel Badenas Carpio/Carmen Boldó Roda,
Régimen jurídico de la llamada «venta directa». Las ventas domiciliarias y a distancia, tirant lo blanch,
Valencia, 2003, 23 ss; cfr., também, Alexandra Teixeira de Sousa, O direito de arrependimento
nos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento: algumas notas, cit., 25.
21
Neste sentido, vide Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit.,
580 e, mais amplamente, Gemma Botana García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos
mercantiles y la protección de los consumidores, cit., 36.
22 Como sucede, aliás, noutros domínios: v.g. no da contratação com base em cláusulas contratuais

gerais ou no da contratação à distância.


23 Vide, entre vários, Markesinis/Unberath/Johnston, The German Law of Contract. A com-

parative treatise, 2.ª ed., cit., 266, indicando a door-to-door selling como uma técnica de negociação
particularmente agressiva, Federico Oriana, La legge francese sulla vendita a domicilio e la protezione
del consumatore, cit., 1574, assinalando as «agressões» operadas pelas organizações de venda door-
-to-door, Carlo Pilia, Accordo debole e diritto di recesso, cit., 41, Guido Alpa, Un progetto di direttiva
comunitaria in materia di vendite a domicilio, cit., 980, Ettore Battelli, in Enzo Maria Tripodi/

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870 Carlos Lacerda Barata

24 Os tradicionais esquemas de Direito civil – maxime os regimes dos vícios


da vontade, em especial o do erro, simples ou qualificado por dolo (artigos
251.º ss do Código Civil), do negócio usurário (artigos 282.º ss) ou da culpa
in contrahendo (artigo 227.º) – ou (quando aplicável) a tutela conferida pelas
regras que regem a contratação com recurso a cláusulas contratuais gerais25, se
bem que, também, potencialmente aplicáveis, mostram-se incapazes de dar res-
posta (suficientemente) eficaz a novos problemas26, entre os quais se incluem,
precisamente, os suscitados pelos contratos celebrados fora do estabelecimento
comercial, o que explica e justifica plenamente a adopção de regimes norma-

Claudio Belli, Codice del Consumo. Commentario del D.Lgs. 6 settembre 2005, n. 206, II ed., cit.,
274, Francesco Ricci, I beni di consumo e la disciplina delle vendite aggressive, Cacucci Edit., Bari,
2013, 151, Valentina Jacometti, Terminologia giuridica e armonizzazione del Diritto Europeo dei con-
tratti – Ius poenitendi del consumatore nelle Direttive Comunitarie e nell’ordinamento francese, cit., 570,
Gemma Botana García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos mercantiles y la protección
de los consumidores, cit., 32-33, Jean-Pierre Pizzio, Un apport législatif en matière de protection du con-
sentement. La loi du 22 décembre 1972 e la protection du consummateur solicité à domicilie, RTDC, 75, n.º
1, 1976, 66 ss (70-71), Raymonde Baillod, Le droit de repentir, cit., 228, Peter Rott/Evelyne
Terryn, in Hans-W Micklitz/Jules Stuyck/Evelyne Terryn, Cases, Materials and Texts on
Consumer Law, cit., 240, Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O
novo regime das relações contratuais, 4.ª ed., cit., 706. Na doutrina portuguesa, vide, nomeadamente,
Carlos Ferreira de Almeida, Os direitos dos consumidores, cit., 90-91, Luís Menezes Leitão, A
protecção do consumidor contra as práticas comerciais desleais e agressivas, Estudos de Direito do Consu-
midor, n.º 5, cit., 169-170, João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, cit., 76, Jorge
Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 122, Jorge Morais Carvalho/
João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial. Ano-
tação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 94, Arnaldo Filipe Oliveira, Contratos
negociados à distância – Alguns problemas relativos ao regime de protecção dos consumidores, da solicitação e
do consentimento em especial, RPDC, n.º 7, 1996, 69.
Cfr., igualmente, RP 19-Jan.-2010 (Henrique Antunes), CJ XXXV/1, 2010, 185 ss (187).
24
Assim, Roberta Attanasio, in Contratti e tutela dei consumatori, a cura di Fabio Tommasi,
UTET, Torino, 2007, 133 ss, onde os contratos concluídos fora dos locais comerciais (e, depois, os
contratos à distância) são tratados sob o sugestivo título “Le fattispecie contrattuali più insidiose”.
25
Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, com três alterações – Decreto-Lei n.º 220/95, de 31
de Agosto, Decreto-Lei n.º 249/99, de 7 de Julho e Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezem-
bro – a que acresce a Declaração de Rectificação n.º 114-B/95, de 31 de Agosto.
26 Entre os problemas suscitados pelos hodiernos meios e modos de contratação, destacam-se os

resultantes de diferentes fenómenos: a presença do vendedor no domicílio do consumidor-adqui-


rente, a publicidade, o marketing, o efeito apelativo da oferta transmitida por televisão ou mediante
catálogo (endereçado ou não) enviado para a residência do consumidor, a contratação à distância,
incluindo, em especial, a contratação electrónica… Tudo isto (e muito mais) pode gerar vontades
negociais irreflectidas, superficiais e, consequentemente, declarações negociais precipitadas ou,
no limite, não queridas.
No sentido do texto, em geral, na perspectiva dos fundamentos do Direito do consumo, vide Jean
Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 19-20.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 871

tivos especiais – frequentemente, gizados no âmbito do Direito comunitário e


implementados no Direito interno – tendentes à tutela do contraente-consu-
midor, neste esquema de contratação.

III. O contrato celebrado fora do estabelecimento comercial, quanto à sua


constituição, reconduz-se, fundamentalmente, ao modelo paradigmático (pro-
posta+aceitação), acolhido no Código Civil27, embora com particularidades,
decorrentes de circunstâncias ambientais (relativas ao lugar da negociação ou
da celebração)28, que envolvem a formação29 do contrato, tendo como pano de
fundo uma relação de consumo30, o que explica a sua submissão a um conjunto
de regras especiais, que acresce ao regime base de formação31, sem, todavia, o
desvirtuar ou afastar32.

27 O esquema formativo do contrato, reflectido nos artigos 224.º e seguintes (em especial, 228.º
e seguintes) do Código, corresponde, apenas, ao modelo básico (António Menezes Cordeiro,
Tratado de Direito Civil, II, 4.ª ed., cit., 153, 154 e 317) ou clássico (Carlos Ferreira de Almeida,
Contratos I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, reimpr. 2015, 99; M. Januário da Costa Gomes,
Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2012, 44; José Engrácia Antunes, Direito dos Contra-
tos Comerciais, cit., 123 ss).
Efectivamente, são facilmente identificáveis outros modos de formação dos contratos; cfr. Pedro
Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, 422 ss,
Carlos Ferreira de Almeida, Contratos I, 5.ª ed., cit., 97-99, 121 ss e 133 ss, José Engrácia
Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, cit., 132 ss e a muito elucidativa síntese de M. Januário
da Costa Gomes, Contratos Comerciais, cit., 44-46.
28 Cfr. Matteo Magri, Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori dei locali commerciali,

cit., 97.
29 E não o conteúdo negocial. Vide Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, 4.ª ed., Almedina,

Coimbra, 2016, 128 (nota 276).


30 Vide Carlos Ferreira de Almeida, Contratos I, 5.ª ed., cit., 148.

31
Neste sentido – referindo as particularidades, nomeadamente, da formação dos negócios cele-
brados no domicílio (“Haustürgeschäfte”), na sequência dos regimes geral e especiais de forma-
ção dos contratos – Karl Larenz/Manfred Wolf, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 9.
Auflage, Beck, München, 2004, 591; na doutrina portuguesa, explicitamente, Carlos Ferreira
de Almeida, Direito do Consumo, cit., 93.
32
Cfr. António Menezes Cordeiro, Da natureza civil do Direito do Consumo, cit., 618, a propó-
sito das regras legais de defesa dos consumidores, designadamente, em matéria de celebração dos
contratos, sublinhando que tais dispositivos não operam “de modo auto-suficiente”.
Em sentido apenas aparentemente diferente (abrindo a exposição dos “outros sistemas” de forma-
ção do negócio, precisamente, com os contratos celebrados fora do estabelecimento comercial),
vide Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., cit., 121 ss; explica, porém, o
saudoso Professor que a formação do contrato ao domicílio se dá “segundo o sistema proposta-
-aceitação” (122).
Também no sentido de que os contratos de consumo – pela simples circunstância de o serem –
não obedecem a regras de formação diferentes dos demais, vide Christian Larroumet/Sarah

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872 Carlos Lacerda Barata

IV. Por outro lado, o contrato celebrado fora do estabelecimento comer-


cial não constitui, em sentido próprio, um tipo ou subtipo contratual33, mas,
simplesmente, uma (sub-)categoria contratual34. Mais: a sua identificação e a
aplicabilidade das respectivas regras legais, em princípio, não dependem da
consideração do tipo de contrato que, em concreto, esteja em causa, que se
poderá reconduzir às mais diversas espécies (compra e venda, locação, prestação
de serviços, etc.); nesta medida, o quadro legal dos contratos celebrados fora do
estabelecimento corresponde, na expressão de Roppo, a um regime “transtípico
ou metatípico”35.

II – Contratos celebrados fora do estabelecimento no Direito positivo

2. Fontes normativas específicas

2.1. Antecedentes normativos comunitários e internos

I. Na vigência da anterior lei de defesa do consumidor (Lei n.º 29/81, de 22


de Agosto) e perante a necessidade de transposição da Directiva 85/577/CEE,
de 20 de Dezembro de 1985, relativa à protecção dos consumidores (ape-
nas) nos contratos celebrados fora do estabelecimento36, o legislador português

Bros, Les obligations. Le contrat (Traité de Droit Civil, dir. Christian Larroumet, t. 3), 7.ª ed.,
Economica, Paris, 2014, 193.
33 Cfr., no entanto, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, 4.ª ed., cit., 128, que – nomea-

damente, a propósito da venda fora do estabelecimento – se refere aos “critérios de subtipificação


da compra e venda”.
34 Neste sentido, embora com outros exemplos (inteiramente equiparáveis), Carlos Ferreira de

Almeida, Direito do Consumo, cit., 87.


35
Vide Vicenzo Roppo, Il Contratto del Duemila, 2.ª ed., Giappichelli Edit., Torino, 2005, 26. Cfr.
também – com a mesma adjectivação (transtípico), a propósito do regime dos contratos celebrados
fora do estabelecimento – Vincenzo Cuffaro (a cura di), Codice del Consumo (coord. Angelo
Barba/Andrea Barenghi), 2.ª ed., cit., 253 e 254.
36
A Directiva 85/577/CEE, de 20 de Dezembro de 1985 (JO L 372, de 31-12-1985), foi prece-
dida de uma Proposta de Directiva, apresentada ao Conselho, pela Comissão, em 17 de Janeiro
de 1977 (JO C 22, de 29-11-1977) (o texto, em versão italiana, pode, também, ser consultado
no final do citado estudo de Guido Alpa, Un progetto di direttiva comunitaria in materia di vendite a
domicilio, 987-990), depois modificada (JO C 127, de 1-6-1978). Vide Guido Alpa, Un progetto di
direttiva comunitaria in materia di vendite a domicilio, cit., 980 ss (sobre a proposta inicial de Directiva)
e, com desenvolvimento, Gemma Botana García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos
mercantiles y la protección de los consumidores, cit., 55 ss.
A Proposta de 1977 foi claramente inspirada na legislação francesa, aprovada no início da década
de 70: a Lei n.º 72/1137, de 22 de Dezembro de 1972, relativa à protecção dos consumidores em

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 873

tomou a iniciativa de aprovar e fazer publicar o Decreto-Lei n.º 272/87, de 3


de Julho, através do qual foram regulados, no mesmo diploma legal, essencial-

matéria de démarchage/venda ao domicílio (a delimitação era efectuada pelo artigo 1.º, abrangendo
“a contratação no domicílio de uma pessoa física, na sua residência ou no seu lugar de trabalho”
– cfr. Cas/Ferrier, Traité de droit de la consommation, cit., 290; Federico Oriana, La legge fran-
cese sulla vendita a domicilio e la protezione del consumatore, cit., 1574). Porém, mercê da influência
das soluções, entretanto, preparadas no ordenamento alemão, a incidência do modelo francês, no
texto definitivo da Directiva, resultou mais atenuada, sem que, no entanto, tal tenha implicado
modificações substanciais na lei francesa, a qual, mais tarde, em 1993, veio a transitar para o Code
de la Consommation. Vide Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit.,
580, Francesco Astone, I contratti negoziati fuori dai locali commerciali, in Trattato di Diritto Privato
Europeo (Nicolò Lipari), vol. 4.º, 2.ª ed., cit., 36 ss e 40-43, Matteo Magri, Le vendite agressive.
Contratti a distanza e negoziati fuori dei locali commerciali, cit., 86, Guido Alpa, Un progetto di direttiva
comunitaria in materia di vendite a domicilio, cit., 981, Badenas Carpio/Boldó Roda, Régimen jurí-
dico de la llamada «venta directa». Las ventas domiciliarias y a distancia, cit., 47 ss.
Na Alemanha, a transposição desta Directiva foi operada pela HaustürWG (Haustürwiderrufs-
gesetz: Gesetz über den Widerruf von Haustürgeschäften und ähnlichen Geschäften), de 16 de Janeiro
de 1986 (em vigor em 1 de Maio de 1986 – § 9.º/1), precedida de mais de uma década de prepa-
ração e discussão (vide Reinhard Zimmermann, The New German Law of Obligations. Historical
and Comparative Perspectives, cit., 180). A matéria foi, depois, com a reforma de 2001/2002, inte-
grada no BGB: §§ 312 e 312a. Cfr. Carsten Schäfer, in Haas/Medicus/Rolland/Schäfer/
Wendtland, Das neue Schuldrecht, Beck, München, 2002, 366 ss, Stephan Lorenz/Thomas
Riehm, Lehrbuch zum neuen Schuldrecht, Beck, München, 2002, 64 ss, Jürgen Oechsler, Schuld-
recht. Besonderer Teil – Vertragsrecht, Franz Vahlen, München, 2003, 204, Carsten Herresthal,
10 Years after de Reform of the Law of Obligations in Germany – The Position of the Law of Obligations
in German Law, in Reiner Schulze/Fryderyk Zoll, The Law of Obligations in Europe, Sellier
european law publishers, Munich, 2013, 173 ss (195), Michaela Giorgianni, Principi generali sui
contratti e tutela dei consumatori in Italia e in Germania, Giuffrè, Milano, 2009, 33 ss. Entre nós, com
várias indicações, vide António Menezes Cordeiro, A modernização do Direito das Obrigações,
III – A integração da defesa do consumidor, Separata da ROA, 62/III, 2002, 717-719 e, mais recen-
temente, Tratado de Direito Civil, VI, Direito das Obrigações. Introdução. Sistemas e Direito europeu.
Dogmática geral, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, 108-110.
Em Itália, a Directiva 85/577/CEE foi objecto de (tardia) transposição através do DLg. de 15
de Janeiro de 1992, n.º 50, surgido ao abrigo da Lei de 29 de Dezembro de 1990, n.º 428 e que
entrou em vigor em 3 de Março de 1992. Vide Massimo Cartella, La disciplina dei contratti nego-
ziati fuori dei locali commerciali, cit., 715 ss, Rodolfo Sacco, Conclusioni del contratto, cit., 209 ss,
Matteo Magri, Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori dei locali commerciali, cit.,
92 ss, Francesco Astone, I contratti negoziati fuori dai locali commerciali, in Trattato di Diritto Privato
Europeo (Nicolò Lipari), vol. 4.º, 2.ª ed., cit., 46 ss, Marianna Mattei, in Le vendite speciali, a
cura di Gianluca Sicchiero, CEDAM, Padova, 2009, 390 ss, Vincenzo Cuffaro (a cura di),
Codice del Consumo (coord. Angelo Barba/Andrea Barenghi), 2.ª ed., cit., 247 ss, Luca Di
Donna, Obblighi informativi precontrattuali, I – La tutela del consumatore, cit., 59 ss, Giannantonio
Benacchio, Diritto Privato della Comunità Europea. Fonti, modelli, regole, 2.ª ed., cit., 311, Angelo
Luminoso, I contratti tipici e atipici, I (Trattato di Diritto Privato, Iudica/Zatti), Giuffrè, Milano, 1995,

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874 Carlos Lacerda Barata

mente, três aspectos diferentes: vendas ao domicílio, vendas por correspondên-


cia e vendas em cadeia e forçadas37.
As vendas ao domicílio eram objecto do capítulo I do Decreto-Lei de 1987
(1.º a 7.º), enquanto às vendas por correspondência era dedicado o capítulo II,
composto por cinco artigos (8.º a 12.º), ficando o capítulo III reservado para
as vendas em cadeia e as vendas forçadas, bem como para o envio de produtos
não encomendados ou solicitados (13.º a 15.º). O Decreto-Lei n.º 272/87 veio
a ser objecto de alterações pontuais, ditadas pelo Decreto-Lei n.º 243/95, de
13 de Setembro38.

101, Giuseppe Vettori (a cura di), Materiali e commenti sul nuovo Diritto dei Contratti, CEDAM,
Padova, 1999, 217 ss, Gemma Botana García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos
mercantiles y la protección de los consumidores, cit., 120-121.
Sobre as diferenças entre as soluções italiana e alemã, vide Giovanni Gabrielli, L’attuazione in
Germania e in Italia della Direttiva Europea sui contratti negoziati fuori dai locali commerciali, Europa e
diritto privato, n.º 3, 2000, 715 ss.
No ordenamento espanhol, a transposição da Directiva de 1985 foi efectuada com a L. 26/1991,
de 21 de Novembro, sobre contratos celebrados fora dos estabelecimentos mercantis. Vide Gemma
Botana García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos mercantiles y la protección de los con-
sumidores, cit., 173 ss e passim, Badenas Carpio/Boldó Roda, Régimen jurídico de la llamada «venta
directa». Las ventas domiciliarias y a distancia, cit., em especial, 63 ss, Lete del Río/Lete Achirica,
Derecho de Obligaciones, vol. II, Contratos, cit., 219 ss e Larrosa Amante, El derecho de desistimiento
en la contratación de consumo, tesis doctoral, Universidad de Murcia, Faculdade de Derecho, Depar-
tamento de Derecho Civil, Murcia, 2015, 76 ss.
37 Além de Portugal, apenas a Itália – através do referido DLg. n.º 50/1992 – optou por esta solu-

ção: aproveitar a transposição da Directiva comunitária (aliás, em Itália, operada com significativo
atraso, em relação ao termo fi xado no seu artigo 9.º: 23 de Dezembro de 1987), para regular, num
só diploma legal, várias modalidades contratuais: no texto legislativo italiano, a par da contratação
no domicílio, foram contemplados os contratos por correspondência, a contratação por meio de
televisão (“tele-compra”), bem como mediante o uso de instrumentos informáticos e telemáticos.
Porém, diferentemente da solução portuguesa, o legislador italiano, tendencialmente, submeteu
estes vários esquemas de contratação ao mesmo regime que traçou para os contratos celebrados
fora do estabelecimento (cfr. artigo 9 do citado DLg. n.º 50/1992).
Para uma panorâmica geral, acerca das diferentes opções tomadas, pelos diversos Estados-mem-
bros da Comunidade Europeia, na transposição da Directiva 85/577/CEE, vide Gemma Botana
García, Los contratos realizados fuera de los establecimientos mercantiles y la protección de los consumidores,
cit., 119 ss.
38 Uma alteração relevante incidiu sobre a amplitude da exigência de forma escrita para os con-

tratos celebrados no domicílio ou equiparados: na versão originária do Decreto-Lei n.º 272/87,


exigia-se, sob pena de nulidade, documento escrito, assinado pelo consumidor, para os contra-
tos de valor igual ou superior a 9.000$, bastando para os contratos de valor inferior uma nota de
encomenda ou documento equivalente assinado pelo consumidor (artigo 3.º/1, 3 e 4); através da
Portaria n.º 536/91, de 20 de Junho, o valor de 9.000$ foi alterado para 20.000$ (ao abrigo do
artigo 3.º/5, do Decreto-Lei n.º 272/87, que permitia a actualização do valor, por portaria do
Ministro da Indústria e Comércio). Com o Decreto-Lei n.º 243/95, o artigo 3.º/4 passou a reme-

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 875

Nos termos do artigo 1.º/1, considerava-se «venda ao domicílio a modalidade


de distribuição comercial a retalho em que o contrato, tendo por objecto bens ou serviços,
é proposto e concluído no domicílio do consumidor, pelo vendedor ou seus representan-
tes, sem que tenha havido prévio pedido expresso por parte do mesmo consumidor»; o
número 2 da mesma disposição, nas suas três alíneas, procedia à equiparação
de outras situações: vendas no local de trabalho, vendas no domicílio de outro
consumidor, vendas em deslocações organizadas pelo vendedor fora do seu
estabelecimento comercial.

II. Uma década depois, surgiu a Directiva 97/7/CE, do Parlamento e do


Conselho, de 20 de Maio de 1997, relativa à protecção dos consumidores em
matéria de contratos à distância39. Impunha-se nova transposição para os Direi-
tos internos dos Estados-membros40.

ter a fi xação do valor dos contratos, necessariamente reduzidos a escrito, para portaria conjunta
dos Ministros do Comércio e Turismo e do Ambiente e Recursos Naturais; nesta sequência, foi
publicada a Portaria n.º 1300/95, de 31 de Outubro, fixando em 10.000$ o valor a partir do qual
os contratos concluídos no domicílio deveriam ser celebrados por escrito.
39 JO L 144, de 4-6-1997.

Cfr. Ana Maria Guerra Martins, O Direito Comunitário do Consumo. Guia de estudo, Estudos do
Instituto de Direito do Consumo, vol. I, IDC/FDUL, Almedina, Coimbra, 2002, 63 ss (85-86).
40 Na Alemanha, a transposição consumou-se com a Fernabsatzgezetz (FernAbsG), de 27 de Junho

de 2000 – cfr. Christiane Wendhorst, in Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch,


Band 2, Schuldrecht. Allgemeiner Teil, 4. Auflage, Beck, München, 2001, 2117 ss (com o texto da
Directiva – 2129 ss – seguido de detalhados comentários aos seis parágrafos da lei alemã – 2137
ss) e, na doutrina portuguesa, Menezes Cordeiro, A modernização do Direito das Obrigações, III –
A integração da defesa do consumidor, cit., 719-720 e Tratado de Direito Civil, VI, 2.ª ed., cit., 110-111,
com várias indicações – cujo regime essencial (§§ 1.º, 2.º e 3.º) veio, depois, com a reforma de
2001/2002, a constituir os novos §§ 312b, 312c, 312d do BGB (vide Carsten Schäfer, in Haas/
Medicus/Rolland/Schäfer/Wendtland, Das neue Schuldrecht, cit., 358).
Em Itália, a transposição da Directiva 97/7/CE resultou do DLg. de 22 de Maio de 1999, n.º 185
(com início de vigência em 19 de Outubro desse ano). O regime passou, depois, para o Codice del
Consumo (DLg. de 6 de Setembro de 2005, n.º 206, publicado em 8 de Outubro e em vigor em 23
de Outubro do mesmo ano; cfr., para os “contratti negoziati fuori dei locali commerciali”, arti-
gos 45 a 49). Cfr. Matteo Magri, Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori dei locali
commerciali, cit., 96 ss, Paolo Cendon (a cura di), Commentario al Codice Civile, D.Lg. 6 settembre
2005, n. 206 – Codice del Consumo, Giuffrè, Milano, 2010, em especial, 493 ss, Ettore Battelli,
em comentário aos artigos 45 a 49 do Codice, in Enzo Maria Tripodi/Claudio Belli, Codice del
Consumo. Commentario del D.Lgs. 6 settembre 2005, n. 206, II ed., cit., 265 ss, Alessandro Barca,
Il diritto di recesso nei contratti del consumatore, cit., 55 ss, Luca Di Donna, Obblighi informativi precon-
trattuali, I – La tutela del consumatore, cit., 59 ss. Com as alterações introduzidas pelo DLg. de 21 de
Fevereiro de 2014, n.º 21, a matéria foi objecto de uma nova disciplina, com diferente sistemati-
zação legal (cfr. infra n.º 2.2.2.).

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876 Carlos Lacerda Barata

O legislador nacional optou, então, pela seguinte solução, alcançada atra-


vés do Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de Abril41: concentrou, num só
diploma, a regulamentação legal de várias figuras (entre as quais os contratos
à distância – 2.º a 12.º – e os contratos ao domicílio e equiparados – 13.º a
20.º), revogando, expressamente (artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 143/2001),
o Decreto-Lei n.º 272/87.
O Decreto-Lei n.º 143/2001 foi objecto de três alterações42: primeira-
mente, ditadas pelo Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de Março, que consa-
grou um novo regime para as práticas comerciais desleais43; passados menos de
dois meses, o Decreto-Lei n.º 82/2008, de 20 de Maio, veio introduziu novas
modificações em múltiplas disposições do diploma de 200144, o que justificou a
sua republicação em anexo; finalmente, o Decreto-lei n.º 317/2009, de 30 de
Outubro (serviços de pagamento), veio alterar, mais uma vez, o regime insti-
tuído pelo Decreto-Lei n.º 143/200145.

III. Na sua última versão, o Decreto-Lei n.º 143/2001 continha diversas


disposições, especificamente, dedicadas aos contratos negociados fora do esta-
belecimento comercial, que integravam o capítulo III deste diploma legal, cuja
sistemática recordamos:

Cap. III – Contratos ao domicílio e outros equiparados


Artigo 13.º – Noção e âmbito;
Artigo 14.º – Exclusão do âmbito de aplicação;
Artigo 15.º – Identificação do fornecedor ou seus representantes;
Artigo 16.º – Forma, conteúdo e valor do contrato;
Artigo 17.º – Conteúdo dos catálogos e outros suportes publicitários;

A adaptação do Direito espanhol à Directiva 97/7/CE implicou a aprovação e a promulgação da


Lei 47/2002, de 19 de Dezembro, que modificou o regime estabelecido pela anterior Lei 7/1996,
de 15 de Janeiro. (Lei de Ordenação do Comércio Retalhista). Cfr. Badenas Carpio/Boldó
Roda, Régimen jurídico de la llamada «venta directa». Las ventas domiciliarias y a distancia, cit., 139 ss.
Um elucidativo quadro, com indicação dos diplomas internos e respectivas datas de entrada em
vigor, que operaram a transposição da Directiva 97/7/CE, em cada um dos Estados-membros,
pode ser confrontado em Matteo Magri, Le vendite agressive. Contratti a distanza e negoziati fuori
dei locali commerciali, cit., 170-172.
41 Com uma vacatio legis de 30 dias (artigo 38.º), entrou em vigor em 25 de Maio de 2001.

42 Acresce a Declaração de Rectificação n.º 13-C/2001, de 31 de Maio.

43 Este diploma revogou, expressamente (27.º/b)), os artigos 26.º a 29.º do Decreto-Lei n.º 143/2001.

44 Foram atingidos nada menos do que doze artigos (1.º, 6.º, 8.º, 9.º, 14.º, 15.º, 18.º, 19.º, 25.º, 31.º,

32.º e 34.º).
45 Foi revogado o artigo 10.º (pagamento por cartão de crédito ou de débito).

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 877

Artigo 18.º – Direito de resolução;


Artigo 19.º – Efeitos da resolução;
Artigo 20.º – Pagamento antecipado.

Este regime legal foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de


Fevereiro (artigo 34.º), actualmente em vigor.

IV. Entretanto, em 2006, foi apresentado, para debate público, um Ante-


projecto do Código do Consumidor, desde logo acessível46, preparado por uma
Comissão presidida por António Pinto Monteiro.
Os artigos 239.º a 247.º do Anteprojecto do Código (subsecção V, da sec-
ção V – dos contratos em geral – do capítulo IV – dos interesses económicos
– do título II, relativos aos direitos dos consumidores) eram dedicados, precisa-
mente, à matéria dos contratos ao domicílio e outros equiparados.
O Anteprojecto suscitou, naturalmente, vários estudos e reflexões47, mas
não teve sequência.

46 Cfr. Comissão do Código do Consumidor, Código do Consumidor – Anteprojecto, edição do Ins-


tituto do Consumidor, 2006.
A apresentação ocorreu em 15 de Março: uma data simbólica, já que se trata do “Dia Mundial dos
Direitos do Consumidor” – facto, desde logo, sublinhado no início da apresentação do Antepro-
jecto, subscrita pelo Professor Pinto Monteiro, que consta das páginas 3-14 da publicação (cfr.,
de igual modo, o discurso proferido na sessão de apresentação do Anteprojecto: O Anteprojecto do
Código do Consumidor, RLJ 135.º, 2006, 190 ss).
47 Com âmbito genérico, destacamos António Menezes Cordeiro, O anteprojecto de Código do

Consumidor, O Direito, 138.º/IV, 2006, 685 ss e Oliveira Ascensão, Direito Civil e Direito do
Consumidor, Themis, Edição Especial – Código Civil Português. Evolução e perspectivas actuais, 2008,
163 ss, em especial, 169 ss. Acrescem, evidentemente, além dos mencionados na nota anterior,
vários textos de António Pinto Monteiro: nomeadamente, Sobre o Direito do Consumidor em
Portugal e o Anteprojecto do Código do Consumidor, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 7, 2005,
245 ss e Estudos do Instituto de Direito do Consumo, vol. III, IDC/FDUL, Almedina, 2006, 37
ss, Harmonização legislativa e protecção do consumidor (a propósito do anteprojecto do Código do Consumidor
português), Themis, Edição Especial, 2008, cit., 183 ss (= Estudos em honra do Professor Doutor José
de Oliveira Ascensão, coord. A. Menezes Cordeiro/P. Pais de Vasconcelos/P. Costa e Silva,
vol. II, Almedina, Coimbra, 2008, 1447 ss). Merecem ainda especial referência os vários estudos,
com âmbitos sectoriais, reunidos no citado vol. III dos Estudos do Instituto de Direito do Con-
sumo (da autoria de José de Oliveira Ascensão, António Pinto Monteiro, Pedro Romano
Martinez, Luís Menezes Leitão, Dário Moura Vicente, Augusto Silva Dias, Paulo Mota
Pinto, Adelaide Menezes Leitão, Elsa Dias Oliveira e ainda do Centro de Arbitragem de
Confl itos de Consumo de Lisboa).

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878 Carlos Lacerda Barata

2.2. O quadro actual

2.2.1. Directiva 2011/83/UE, de 25 de Outubro de 2011

I. Tendo como principais finalidades a protecção dos consumidores e a


promoção de um verdadeiro mercado interno, procurando um justo equilíbrio
entre um elevado nível de defesa dos consumidores e a competitividade das
empresas, a Directiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho,
de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores48, deter-
minou a revogação49 das duas anteriormente referidas – a Directiva 85/577/
CEE, do Conselho, de 20 de Dezembro de 1985, relativa aos contratos nego-
ciados fora dos estabelecimentos comerciais e a Directiva 97/7/CE, do Parla-
mento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 1997, relativa aos contratos à
distância –50, substituindo-as por uma única, em consonância, aliás, com o
objectivo expressamente declarado51.

II. Relativamente à matéria aqui em apreço, a Directiva visou estabelecer


normas-padrão para os aspectos comuns aos contratos celebrados à distância e
aos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial, afastando-se do
princípio de harmonização mínima subjacente às Directivas anteriores52.
Consequentemente, a Directiva estabeleceu (apenas) tendencialmente
uma harmonização total ou máxima, pelo que, salvo disposição em contrário, os

48 JO L 304, de 22-11-2011.
A designação dada à Directiva – “ Directiva relativa aos direitos dos consumidores” – é, no mínimo,
excessivamente ampla, em função da matéria de que, de facto, se ocupa (que em pouco extravasa os
contratos celebrados fora do estabelecimento e à distância), o que explica o tom crítico de alguns
Autores: vide Christiane Wendehorst, Das neue Gesetz zur Umsetzung der Verbraucherrechterichtli-
nie, NJW 9/2014, 577, assinalando o “nome pomposo” da Directiva; entre nós, utilizando idên-
tica expressão, vide Carlos Ferreira de Almeida, O Futuro do Direito do Consumo, in I Congresso
de Direito do Consumo (coord. Jorge Morais Carvalho), Almedina, Coimbra, 2016, 27 ss (30).
Sobre a Directiva e seus antecedentes, vide Jorge Pegado Liz, A Nova Diretiva sobre Direitos dos
Consumidores, Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, vol. II, n.º 2, 2012, 185 ss.
49 Artigo 31.º da Directiva.

50 Para além disto, alterou duas outras: a Directiva 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de Abril de

1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores e a Directiva
1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, relativa à venda de
bens de consumo – cfr. artigos 32.º e 33.º da Directiva 2011/83/UE.
51 Considerando 2 da Directiva; cfr. Albrecht von Loewenich, Einbeziehung von Finanzdienstleis-

tungen in das Gesetz zur Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie, NJW 20/2014, 1409; Francesco
Ricci, I beni di consumo e la disciplina delle vendite aggressive, cit., 147-148.
52 Cfr. o citado considerando 2 da Directiva.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 879

Estados-membros não podem manter ou consagrar disposições divergentes das


do texto comunitário, ainda que mais favoráveis aos consumidores53: é o que
resulta do artigo 4.º da Directiva, numa solução que, naturalmente, conduz a
uma maior harmonização entre os regimes legais dos vários Estados-membros,
mas que, seguramente, será discutível, nomeadamente, do ponto de vista da
tutela dos consumidores, dado que, em regra54, impede a consagração, em cada
Direito interno, de soluções legislativas de maior protecção55.

53 Cfr. a advertência, neste sentido, de Tobias Brönneke/Klaus Tonner, Das Neue Schuldrecht.
Verbraucherrechtsreform 2014. Internethandel. Widerrufsrechte. Informationspflichten, Nomos, 2014, 5
(logo no prefácio da obra por ambos coordenada); na mesma obra, também sobre a harmoni-
zação, relativamente à Directiva 2011/83, cfr. a Introdução, a cargo de Klaus Tonner (35 ss,
em especial, 36-38); Christian Möller, Die Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie im deutschen
Recht, BB, 24/2014, 1411, Lukas Beck, Die Reform des Verbraucherschutzrechts, Jura, 36/7, 2014,
667 e – em especial, acerca da questão da eventual redução da protecção dos consumidores, em
virtude da harmonização total, e da margem de manobra do legislador interno, na transposição
da Directiva – Klaus Tonner, Die Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie – Auswirkungen der
Vollharmonisierung, VuR, 2014/1, 23 ss (24-25). Ainda sobre a harmonização total, vide Christian
Alexander, Verbraucherschutzrecht, cit., 23 e o Parecer (crítico) de Martin Schmidt-Kessel,
Stellungnahme zum Entwurf eines Gesetzes zur Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie, em especial, 5
ss (acessível em http://www.schmidt-kessel.uni-bayreuth.de/pdf_ordner/Stellungnahme_VRRL.
pdf ). Entre nós, vide Jorge Pegado Liz, A Nova Diretiva sobre Direitos dos Consumidores, Revista
Luso-Brasileira de Direito do Consumo, cit., 206 ss – sublinhando que a Directiva consagra uma
harmonização total “direccionada” – e Sandra Passinhas, A Directiva 2011/83/UE, do Parla-
mento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores: algumas
considerações, cit., 100 ss.
Cfr., ainda, numa perspectiva fortemente crítica, Jérôme Huet, Le scandale de l´harmonisation totale,
Revue des Contrats, 2011/3, 1070 ss.
54
A Directiva ressalva, no seu artigo 4.º, as disposições em sentido diverso nela contidas (cfr., por
exemplo, os artigos 3.º/4 e 7.º/4 in fine), o que justifica referências a uma harmonização plena miti-
gada – cfr. António Pinto Monteiro, O novo regime da contratação à distância. Breve apresentação,
Estudos de Direito do Consumidor, n.º 9, edição especial, 2015, 11 ss (18-19) – ou a uma harmo-
nização total atenuada – cfr. Sandra Passinhas, A Directiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores: algumas considerações, cit.,
108 (citando Eva Domínguez Pérez); cfr., também, Marisa Dinis, Contratos celebrados à distância
e contratos celebrados fora do estabelecimento comercial – Da Diretiva à transposição para o ordenamento jurí-
dico português, RPDC, n.º 77, 2014, 11 ss (15 ss).
55 Cfr., com indicações, Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos cele-

brados à distância e fora do estabelecimento comercial. Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Feve-
reiro, cit., 14 ss; Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 556;
Gianluca Navone, in Giovanni D’Amico (a cura di), La Riforma del Codice del Consumo. Com-
mentario al D.Lgs. 21/2014, Wolters Kluwer/CEDAM, 2015, 149-150.

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2.2.2. O regime jurídico português de 2014

I. A Directiva de 2011 foi objecto de transposição parcial para o Direito


português56 através do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, que revo-
gou o anterior regime, de 2001.

56
Na ordem jurídica alemã, a Directiva 2011/83/UE foi transposta através da VerbrRRL-UG, de
20 de Setembro de 2013 – Gesetz zur Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie und zur Änderung des
Gesetzes zur Regelung der Wohnungsvermittlung – publicada em 27 de Setembro de 2013 e entrada
em vigor em 13 de Junho de 2014 (cfr. Art. 15), que introduziu várias alterações no BGB. Cfr.
Christiane Wendehorst, Das neue Gesetz zur Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie, cit., 577 ss
e no Münchener Kommentar BGB, Band 2, Schuldrecht. Allgemeiner Teil, 7. Auflage, Beck, München,
2015, 1727; Christian Möller, Die Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie im deutschen Recht, cit.,
1411 ss, em especial, 1414 ss, Lukas Beck, Die Reform des Verbraucherschutzrechts, cit., 666 ss, Silke
Bittner/Jochen Clausnitzer/Carsten Föhlisch, Das neue Verbrauchervertragsrecht, Verlag Otto
Schmidt, Köln, 2014, 1 (Clausnitzer), Christian Alexander, Verbraucherschutzrecht, cit., 85.
Entre as diversas alterações ao BGB, realçam-se, apenas quanto à matéria aqui em causa, as relativas
aos (novos) §§ 312 ss – que foram profundamente reformulados, abrangendo, designadamente, o
novo capítulo 2 (§§ 312b-312h), especialmente dedicado aos contratos celebrados fora do estabe-
lecimento e aos contratos à distância (“Außerhalb von Geschäftsräumen geschlossene Verträge
und Fernabsatzverträge”) – e aos §§ 355-361, referentes ao direito de “revogação” nos contratos
de consumo (“Widerrufsrecht bei Verbraucherverträgen”). Relevam, ainda, outras alterações,
relativas aos deveres de informação a prestar ao consumidor: em especial, as respeitantes aos novos
Art. 246 (deveres de informação nos contratos de consumo), Art. 246a (deveres de informação
nos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial e nos contratos à distância, excepto
os relativos a serviços financeiros), Art. 246b (para contratos celebrados fora do estabelecimento
comercial e contratos à distância referentes a serviços financeiros), Art. 246c e Art. 247 EGBGB.
Em Itália, a Directiva foi transposta pelo DLg. de 21 de Fevereiro de 2014, n.º 21 (publicado em
11 de Março de 2014), com entrada em vigor em 13 de Junho de 2014, que alterou o Codice del
Consumo, modificando as Secções I a IV do Capítulo I (agora sob a designação “Dos direitos dos
consumidores nos contratos”), do Título III, da Parte III (artigos 45-67), passando a matéria dos
contratos celebrados fora do estabelecimento a ser tratada, essencialmente, nos artigos 45/1 h)
(definição), 46 (âmbito de aplicação), 47 (exclusões) e 49 e seguintes. Cfr. Vincenzo Cuffaro (a
cura di), Codice del Consumo (coord. Angelo Barba/Andrea Barenghi), 4.ª ed., Giuffrè, Milano,
2015, 332 ss e 392 ss; Giovanni D’Amico (a cura di), La Riforma del Codice del Consumo. Com-
mentario al D.Lgs. 21/2014, cit., em especial, 33 ss, Enzo Maria Tripodi, La vendita fuori dei locali
commerciali ed a distanza. La nuova disciplina del codice del consumo, Altalex, 2014, especialmente, 28 ss.
Em França, a transposição foi operada através da chamada Loi Hamon (Lei n.º 2014-344, de 17 de
Março de 2014), para os artigos L 121-16 a L 121-24 do Code de la consommation, numa secção (2)
designada “contrats conclus à distance et hors établissement”; cfr. Jean Calais-Auloy/Henri
Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 35 e 580 e Natacha Sauphanor-Brouillaud, Droit
de la consommation, Revue de Droit Henri Capitant, 9, 31-Dez.-2015, acessível a partir de http://
www.henricapitantlawreview.fr. A matéria foi objecto de posteriores alterações, resultantes de
diversos diplomas legais: Decreto n.º 2014-1061, de 17 de Setembro de 2014, relativo às obrigações
de informação pré-contratual e contratual aos consumidores e ao direito de “retractação” (“droit

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 881

O diploma apresenta-se estruturado do seguinte modo57:


– Abre com um capítulo I, relativo ao objecto e ao âmbito de aplicação,
fixando, ainda, diversas definições legais, para efeitos de aplicação do
respectivo regime: artigos 1.º a 3.º;
– No capítulo II, os contratos à distância e os contratos celebrados fora do
estabelecimento, pela primeira vez, são regulados, de modo, tendencial-
mente, unitário: artigos 4.º a 21.º. Todavia, este tratamento conjunto
não prejudica a consagração de algumas regras privativas de cada um
destes dois modelos contratuais; quanto aos contratos celebrados fora

de rétractation”), que completou a transposição da Directiva 2011/83/UE; Lei n.º 2014-1545, de


20 de Dezembro de 2014, relativa “à simplificação da vida das empresas”, que alterou, nomeada-
mente, o artigo L 121-21/2.º, relativo ao exercício do direito de livre desvinculação, cujo prazo
passou a contar-se a partir da celebração do contrato (mesmo antes da recepção dos bens, pelo
consumidor) e – tratando-se de contrato tendo por objecto a aquisição ou a transferência de um
bem imóvel, que haja sido precedido de um contrato preliminar ou de uma promessa de venda,
concluído fora do estabelecimento – estabeleceu que o prazo para a rétractation se contasse a partir
da conclusão do contrato preliminar ou da promessa; Lei n.º 2015-990, de 6 de Agosto de 2015 (a
chamada Loi Macron), que introduziu alterações, designadamente, nos artigos L 121-16 e L 121-21
do Code de la consommation. Muito recentemente, o legislador francês procedeu a uma profunda
reforma/recodificação do Code de la consommation, resultante da Ordonnance n.º 2016-301, de 14
de Março de 2016, relativa à parte legislativa do Code, com início de vigência em 1 de Julho de
2016 (36.º da Ordonnance) e do Decreto n.º 2016-884, de 29 de Junho de 2016, relativo à parte
regulamentar do código: a matéria aqui em causa consta, agora, dos artigos L 221-1 ss e (quanto
à parte regulamentar) R 221-1 ss, referentes aos contratos à distância e fora do estabelecimento.
No ordenamento espanhol, o legislador procedeu à transposição da Directiva de 2011 mediante
a publicação da Ley 3/2014, de 27 de Março (publicada em 28 de Março de 2014, entrada em
vigor no dia seguinte, com rectificação publicada em 14 de Maio de 2014), que modificou o
Texto Refundido da Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios y outras leyes comple-
mentarias (aprovado pelo Real Decreto Legislativo 1/2007, de 16 de Novembro) (conhecido pelas
siglas TRLGDCU ou TRLCU ou, ainda, TRDCU); vide Lucía Vázquez-Pastor Jiménez,
Principales novidades que introduce la Ley 3/2014, de 27 de marzo, en el régimen jurídico de los contratos
celebrados fuera del establecimiento, cit., 4 ss; María Teresa Álvarez Moreno, La protección jurídica
del consumidor en la contratación en general (Normas imperativas y pactos al respecto), Edit. Reus, Madrid,
2015, 13-14, Luis María Miranda Serrano, La contratación fuera de los establecimientos mercantiles:
TRDCU y Directiva 2011/83/UE, in Derecho (Privado) de los Consumidores, coord. L. M. Miranda
Serrano/Javier Pagador López, Marcial Pons, 2012, 183 ss, Larrosa Amante, El derecho de
desistimiento en la contratación de consumo, cit., 110 ss; cfr., também, o comentário à Directiva, tendo
presentes as soluções da lei espanhola, publicado sob direcção de Silvia Díaz Alabart e coorde-
nação de Maria Teresa Álvarez Moreno, Contratos a distancia y contratos fuera del establecimiento
mercantil. Comentario a la Directiva 2011/83 (adaptado a la Ley 3/2014, de modificación del TRLCU),
Reus, Madrid, 2014.
57 Cfr., em síntese, António Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 4.ª ed. (com colaboração de

A. Barreto Menezes Cordeiro), Almedina, Coimbra, 2016, 642.

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882 Carlos Lacerda Barata

do estabelecimento, é que sucede, nomeadamente, com os artigos 4.º/4


(em matéria de informação), 9.º (forma), 12.º/5 (devolução do bem na
sequência de desvinculação), 20.º (identificação do fornecedor e repre-
sentantes) e 21.º (conteúdo de catálogos e equiparados)58;
– Seguidamente, o diploma estabelece o regime de outras modalidades
contratuais, designadamente a venda automática e as vendas especiais
esporádicas: capítulo III (22.º-26.º);
– As práticas proibidas – incluindo as vendas ligadas e o fornecimento de
bens não solicitados – são objecto dos artigos 27.º a 29.º, que constituem
o capítulo IV do Decreto-Lei;
– Capítulo V (30.º-32.º): fiscalização, contra-ordenações e sanções;
– O articulado encerra com disposições finais e transitórias (capítulo VI:
33.º-35.º), acrescendo, ainda, dois anexos: um “formulário de informa-
ção sobre o direito de livre resolução” (anexo A) e um outro “modelo
de formulário” para o exercício deste direito (anexo B).

II. O Decreto-Lei n.º 24/2014 entrou em vigor em 13 de Junho de 2014


(artigo 35.º). Porém, passado um escasso mês e meio, sofreu alterações, resul-
tantes da Lei n.º 47/2014, de 28 de Julho (com entrada em vigor no dia seguinte
– artigo 8.º)59.
Quanto aos contratos celebrados fora do estabelecimento, salienta-se o adi-
tamento da alínea n) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 24/2014, resultante da
Lei n.º 47/2014, passando a excluir-se do âmbito de aplicação do diploma os
contratos de aquisição de assinaturas de publicações periódicas, com preço a
pagar pelo consumidor não superior a € 4060.

58 Para os contratos à distância: artigos 5.º (forma), 6.º (confirmação da celebração), 7.º (restrições
à entrega ou ao pagamento na internet), 8.º (restrições à utilização de técnicas de comunicação à
distância), 19.º (execução do contrato celebrado à distância).
59
A versão actual, consolidada, do Decreto-Lei n.º 24/2014 pode ser confrontada em Carlos
Lacerda Barata (org.), Código Civil e legislação complementar, 8.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2016, 621 ss.
Doravante, as referências a preceitos legais, sem outra indicação, reportam-se ao Decreto-Lei n.º
24/2014, de 14 de Fevereiro, com a redacção presentemente em vigor.
60 A Lei n.º 47/2014 implicou várias outras modificações do DL n.º 24/2014, quase todas relativas

ao regime dos contratos celebrados à distância; essencialmente: (i) a introdução de uma restrição
à exigência de documento escrito, assinado pelo consumidor, na contratação por telefone, para
os “casos em que o primeiro contacto telefónico seja efectuado pelo próprio consumidor” (7.º/5, in fine, na
redacção da Lei 47/2014); (ii) uma alteração respeitante aos custos dos serviços que, por solicita-
ção do consumidor, tenham sido já prestados, durante o prazo para o exercício do direito de livre
desvinculação: nos termos da actual redacção do artigo 15.º/5, a) (i), o consumidor não suporta
quaisquer custos se “o prestador do serviço não tiver cumprido o dever de informação pré-contratual previsto
nas alíneas j) ou m) do n.º 1 do artigo 4.º”; (iii) uma alteração formal na letra do artigo 16.º, relativo

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 883

III. Numa apreciação genérica, o regime legal de 2014 – na linha dos que
o antecederam – mostra-se claramente vocacionado para uma cada vez mais
vincada protecção do consumidor.
Por confronto com o anterior, o regime actual apresenta várias diferenças;
considerando os aspectos com incidência nos contratos celebrados fora do esta-
belecimento61, como principais novidades temos:
(i) Abandono da tradicional designação “contratos ao domicílio” (e equi-
parados)62, em favor de uma mais abrangente, procurando fugir a equi-
parações, em razão das situações que são objecto do tecido normativo:

à “resolução automática” dos contratos acessórios (por exemplo: um contrato de seguro relativo a
um bem adquirido à distância), resultante do exercício do direito de livre desvinculação do con-
trato celebrado à distância (na versão originária, ressalvavam-se as situações previstas nos artigos
11.º e 12.º; agora: 12.º/3 e 13.º); (iv) revogação (artigo 6.º da Lei n.º 47/2014) do artigo 18.º do
DL n.º 24/2014, relativo à matéria do pagamento por cartão de crédito ou de débito: o referido
artigo 18.º correspondia ao artigo 10.º do DL n.º 143/2001, que, por sua vez, como referimos,
já fora revogado, com o surgimento do DL n.º 317/2009, relativo aos serviços de pagamento; (v)
uma modificação terminológica: a substituição do termo “leilão/leilões” pela designação “hasta(s)
pública(s)”, fazendo coincidir a terminologia agora utilizada com a da Directiva 2011/83/UE
(cfr. 2.º/13 da Directiva) (cfr. artigos 3.º/j), 4.º/6 e 17.º/1, j)), embora nem sempre do modo mais
rigoroso: com efeito, no confronto com as demais alíneas e por referência ao corpo do artigo
17.º/1 verifica-se, na actual redacção da alínea j), uma evidente falha formal no texto legislativo,
que, descuidadamente, passou a referir-se a «contratos de: (…) celebrados em hasta pública;» (sic).
A mesma lei alterou, também, a Lei de Defesa do Consumidor, cabendo, aí, relevar especial-
mente – também em tema de contratos à distância – os novos artigos 9.º-B (entrega dos bens) e
9.º-C (transferência do risco).
61 Não nos ocupamos aqui do regime privativo dos contratos celebrados à distância, relativa-

mente aos quais o DL n.º 24/2014 também trouxe importantes alterações; a título ilustrativo: (i):
a vinculação do consumidor, nos contratos celebrados por telefone, apenas depois de assinar a
oferta ou enviar o seu consentimento por escrito (5.º/7), em termos que permitem questionar se
tais contratos são, verdadeiramente, celebrados por telefone (vide Jorge Morais Carvalho/João
Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anota-
ção ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 76 e Jorge Morais Carvalho, Manual de
Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 159, considerando que, em rigor, se trata de “contrato celebrado
na sequência de contacto telefónico”); (ii) contratos celebrado através da internet: a obrigação, para
o fornecedor, de que o “botão” que permita concluir a encomenda seja facilmente identificado,
com a expressão «encomenda com a obrigação de pagar» ou equivalente (5.º/4) – uma exigência legal
que, num enorme número de casos, continua a ser ostensivamente desrespeitada no comércio
electrónico! – e a obrigação de indicar, no sítio da internet, de modo claro e legível, até ao início
do processo de encomenda, eventuais restrições (nomeadamente, geográficas) quanto à entrega e
aos meios de pagamento admitidos (7.º).
62 Cfr. o artigo 1.º/1 e 2 e o artigo 13.º/1 e 2 dos revogados DL n.º 272/87 e DL n.º 143/2001.

Aproximadamente com o mesmo sentido, embora para o caso paradigmático da compra e venda,
são também tradicionais as expressões “venda directa” e “venda porta-a-porta”.

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884 Carlos Lacerda Barata

“contratos celebrados fora do estabelecimento comercial”63 (cfr., espe-


cialmente, o artigo 3.º/g) do Decreto-Lei n.º 24/2014);
(ii) Alargamento do âmbito de aplicação (artigo 2.º): o regime legal abrange
agora modelos e espécies contratuais que, antes, se encontravam, expres-
samente, excluídos, como sucede, nomeadamente, com os contratos de
prestação de serviços de alojamento, transporte, restauração ou activi-
dades de lazer, com tempo de execução determinado, em relação aos
quais, tendencialmente, apenas não vigora o chamado direito de livre
resolução (artigo 17.º/1, k))64; a solução é de louvar, pois não se vislum-
bram razões decisivas, justificativas da exclusão dessas hipóteses65;
(iii) Maior amplitude do objecto da informação pré-contratual66 (artigo
4.º), a cargo do fornecedor; como exemplos: a obrigação de infor-
mação respeitante a componentes do preço e encargos (4.º/1, d)), sob
pena de o consumidor ficar exonerado de os suportar (4.º/4); a obri-
gação de informar acerca da existência de depósitos ou outras garantias
financeiras a pagar ou a prestar pelo consumidor (4.º/1, u));

63 Cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 140 e 144.
Na terminologia legal alemã, ocorreu a correspondente substituição de “Haustürgeschaften”
por (com âmbito mais alargado) “außerhalb von Geschäftsräumen geschlossene Verträge”: vide
Christian Möller, Die Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie im deutschen Recht, cit., 1411 e
1414, Peter Bülow/Markus Artz, Verbraucherprivatrecht, 4. Auflage, C. F. Müller, 2014, 90,
Christoph Schärtl, Der verbraucherschützende Widerruf bei außerhalb von Geschäftsräumen geschlossenen
Verträgen und Fernabsatzverträgen, JuS, 2014/7, 577-578 e Silke Bittner, in Bittner/Clausnitzer/
Föhlisch, Das neue Verbrauchervertragsrecht, cit., 29. A respeito da paralela alteração na termi-
nologia francesa (“contrats conclus par démarchage” – “contrats hors établissement”), cfr.
Natacha Sauphanor-Brouillaud, Droit de la consommation, Revue de Droit Henri Capitant,
9, cit..
A actual designação, todavia, não se mostra isenta de reparos (cfr. infra n.º 4).
64
Não são afastadas, do âmbito do direito de livre desvinculação, todas as modalidades dos referi-
dos contratos; fornecimento de alojamento: apenas quando tenha fins não residenciais; transporte:
somente o transporte de coisas.
65
Neste sentido, Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à dis-
tância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 25.
Tais contratos estavam arredados do âmbito de aplicação do DL n.º 143/2001, quanto a múltiplos
e decisivos pontos do seu regime (artigo 3.º/2, b)).
66 Cfr. Mário Frota, Contratos à distância. Regras em vigor a 13 de Junho de 2014, RPDC, n.º 78,

2014, 9 ss (10); Marisa Dinis, Contratos celebrados à distância e contratos celebrados fora do estabeleci-
mento comercial – Da Diretiva à transposição para o ordenamento jurídico português, cit., 31 e O direito à
informação – consequências em caso de preterição dos deveres de informação, Revista Luso-Brasileira de
Direito do Consumo, vol. IV, n.º 16, 2014, 87 ss (101); Mariana Duarte, O novo regime dos con-
tratos celebrados à distância e fora do estabelecimento: reforço da protecção do consumidor?, AB Instantia, ano
II, n.º 3, 2014, 115 ss (116 e 118).

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 885

(iv) Generalização da exigência de forma escrita, que, com o regime actual,


vale para todos os contratos celebrados fora do estabelecimento (9.º);
(v) Novo e mais pormenorizado regime do direito de livre desvinculação,
que apresenta vários aspectos diferentes. Entre outros:
– O dever, para o profissional, de entregar ao consumidor o formulá-
rio para o exercício do direito (4.º/1, j));
– O dever de informar que, em caso de desvinculação, os custos com
a devolução dos bens serão suportados pelo consumidor (4.º/1, l));
– O dever de informar o consumidor de que terá de pagar um valor
proporcional ao serviço prestado, sempre que exerça o direito de
livre desvinculação depois de ter pedido a prestação do serviço,
durante o correspondente período (4.º/1, m));
– Expressa consagração da nulidade de cláusulas contratuais que impo-
nham ao consumidor uma penalização pelo exercício do direito de
livre desvinculação ou estabeleçam a renúncia ao mesmo (11.º/7)67;
– Ausência de qualquer regra de forma, para o exercício do direito de
livre desvinculação68;
– Obrigação de reembolsar o consumidor num prazo (mais) curto: 14
dias, a contar da data em que o profissional é informado do exercício
do direito de livre desvinculação (12.º/1)69;
– A falta de informação ao consumidor, acerca do prazo de 14 dias
para a desvinculação, gera o alargamento desse prazo por mais 12
meses (10.º/2)70;
– Em caso de exercício do direito de livre desvinculação, a devolução
dos bens deve ser efectuada pelo consumidor no prazo de 14 dias, a
contar da data da desvinculação (13.º/1)71.

67 Uma solução legal que é reforçada e alargada (valendo para os demais direitos do consumidor,
consagrados no diploma legal em referência) pelo artigo 29.º do DL n.º 24/2014 (cfr. infra n.º 8).
68 Os artigos 6.º/5 e 18.º/5 (respectivamente, para os contratos celebrados à distância e fora do

estabelecimento) do anterior DL n.º 143/2001 referiam-se ao exercício do direito por carta regis-
tada com aviso de recepção, numa solução que suscitava dúvidas e que era discutida na doutrina
(cfr. infra n.º 8).
69 Anteriormente, o prazo era de 30 dias (8.º/1 do DL n.º 143/2001).

70 No regime anterior (6.º/3 do DL n.º 143/2001), na mesma hipótese, passava-se a um prazo de 3

meses, a contar da recepção dos bens ou, na prestação de serviços, a partir da celebração do con-
trato ou do início da realização da prestação.
71 Para a devolução dos bens, vigorava antes um prazo de 30 dias, a contar da recepção (8.º/3 do

DL n.º 143/2001).

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3. Outras fontes

I. Em matéria de contratos celebrados fora do estabelecimento, o intér-


prete/aplicador ver-se-á, amiúde, confrontado com a necessidade de se socor-
rer de outras fontes, além daquelas que ficaram referidas.

II. Entre as principais fontes, destacamos:


– Em primeiro lugar e como pano de fundo da aplicável legislação ordiná-
ria, a Constituição da República Portuguesa, com especial relevo para o
seu artigo 60.º, relativo aos direitos dos consumidores72;
– A lei de defesa do consumidor: Lei n.º 24/96, de 31 de Julho73;
– Código Civil: em particular, no que toca às regras relativas à declaração
negocial e ao contrato, bem como ao cumprimento e ao incumprimento
das obrigações;
– Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro74: muitos dos contratos cele-
brados, por consumidores, fora do estabelecimento comercial da contra-
parte, são-no com recurso à utilização de cláusulas contratuais gerais75,
cabendo, então, aplicar-lhes (também) o respectivo regime.

III – Contratos celebrados fora do estabelecimento: conceito e regime

4. Noção; elementos

I. A lei define o contrato celebrado fora do estabelecimento comercial nos


seguintes termos (artigo 3.º/g) do Decreto-Lei n.º 24/2014):

O contrato que é celebrado na presença física simultânea do fornecedor de


bens ou do prestador de serviços e do consumidor em local que não seja o estabe-

72 Sobre este preceito constitucional, vide Jorge Miranda, Anotação ao artigo 60.º da Constituição,
no já citado vol. IV dos Estudos do Instituto de Direito do Consumo, 2014, 25 ss e José Carlos
Vieira de Andrade, Os direitos dos consumidores como direitos fundamentais na Constituição portuguesa
de 1976, BFDUC, vol. LXXVIII, 2002, 43 ss, em especial, 49 ss.
73 Alterada, por último, pela Lei n.º 47/2014, de 28 de Julho.

74 Alterado, por último, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17 de Dezembro.

75 Como sublinha Joaquim de Sousa Ribeiro, “os contratos de consumo são a expressão típica

e mais saliente dos processos de massificação contratual (…)” – O problema do contrato. As cláusu-
las contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, Almedina, Coimbra, 1999, 480. No mesmo
sentido, vide Jean Calais-Auloy, L’influence du droit de la consommation sur le droit civil des contrats,
RTDC 93, n.º 2, 1994, 239 ss (245).

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 887

lecimento comercial daquele, incluindo os casos em que é o consumidor a fazer


uma proposta contratual, incluindo os contratos:
i) Celebrados no estabelecimento comercial do profissional ou através de
quaisquer meios de comunicação à distância imediatamente após o consu-
midor ter sido, pessoal e individualmente, contactado num local que não
seja o estabelecimento comercial do fornecedor de bens ou prestador de
serviços;
ii) Celebrados no domicílio do consumidor;
iii) Celebrados no local de trabalho do consumidor;
iv) Celebrados em reuniões em que a oferta de bens ou de serviços seja pro-
movida por demonstração perante um grupo de pessoas reunidas no domi-
cílio de uma delas, a pedido do fornecedor ou do seu representante ou
mandatário;
v) Celebrados durante uma deslocação organizada pelo fornecedor de bens
ou prestador de serviços ou por seu representante ou mandatário, fora do
respectivo estabelecimento comercial;
vi) Celebrados no local indicado pelo fornecedor de bens ou prestador de ser-
viços, a que o consumidor se desloque, por sua conta e risco, na sequência
de uma comunicação comercial feita pelo fornecedor de bens ou prestador
de serviços ou pelo seu representante ou mandatário.
II. Da descrição feita pelo legislador resulta, pois, que se trata de um con-
trato76, que pode ter por objecto o fornecimento de bens ou a prestação de
serviços, formado na presença física, simultânea, de ambos os contraentes, que
deverão ser, necessariamente, um consumidor – uma pessoa singular, que actue
com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial,
artesanal ou profissional77 – e um profissional (fornecedor de bens ou prestador
de serviços78), ocorrendo a sua celebração em local (tendencialmente) diverso
do estabelecimento comercial79 deste.

76 Dentro dos limites gerais, qualquer contrato, típico ou atípico.


77
Artigo 3.º/c) do Decreto-Lei n.º 24/2014. Portanto, para efeitos do regime legal em considera-
ção, o consumidor não poderá, em caso algum, ser uma pessoa colectiva; cfr. RL 27-Set.-2001
(Fernanda Isabel Pereira), CJ XXVI/4, 2001, 107.
78 A pertinente noção legal consta do artigo 3.º/i): a pessoa, singular ou colectiva, pública ou pri-

vada, que, num contrato com um consumidor, actue no âmbito da sua actividade profissional, ou
através de outro profissional, que actue em seu nome ou por sua conta.
Atendendo a que, muitas vezes, na contratação fora do estabelecimento o consumidor terá par-
ticulares dificuldades em conhecer a identidade da contraparte, o artigo 20.º do Decreto-Lei n.º
24/2014 contém regras relativas à identificação do profissional e dos seus colaboradores. Vide Jorge
Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 145. Cfr. infra n.º 9.
79 Para efeitos de aplicação do diploma, o Decreto-Lei n.º 24/2014 defi ne, também, “estabeleci-

mento comercial”: artigo 3.º/h).

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Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 887 10/01/17 11:25


888 Carlos Lacerda Barata

Para o preenchimento da previsão legal, será indiferente que a proposta


contratual seja formulada pelo profissional ou emitida pelo consumidor, já que,
mesmo nesta última hipótese, não ficará afastada a aplicabilidade, ao negócio,
do regime dos contratos celebrados fora do estabelecimento.

III. Por confronto com o anterior regime, de 2001, o corpo da alínea


g) do artigo 3.º traduz um alargamento do âmbito legal, que, actualmente,
abrange, em princípio, os contratos celebrados com consumidores em qualquer
lugar diverso do estabelecimento comercial do profissional: por exemplo, na
via pública80.

IV. Além das hipóteses contidas na descrição genérica do corpo da alínea


g), na extensa noção legal – cuja redacção não é isenta de crítica81 – são abran-
gidas variadas situações, designadamente, identificáveis em função do lugar de
celebração do contrato; tipicamente:
– No domicílio do consumidor (3.º/g), ii)): é a categoria tradicional82, em maté-
ria dos chamados contratos porta-a-porta ou ao domicílio, cujo nomem,
como ficou referido, correspondia à terminologia acolhida pela lei e usada
pela doutrina para identificar a figura, agora consagrada sob a designação
mais ampla “contratos celebrados fora do estabelecimento”. O facto de a
lei se referir ao domicílio não impede que o regime legal se aplique, tam-
bém, em situações paralelas, que, todavia, não se inscrevam no conceito
jurídico de domicílio (artigo 82.º do Código Civil): pense-se em casos de
contratos celebrados na (mera) residência ou até no paradeiro do consu-

80 Esta importante inovação é devidamente salientada por Jorge Morais Carvalho/João Pedro
Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-
-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 40; cfr., igualmente, Jorge Morais Carvalho, Manual de
Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 150. Cfr., também, Alexandra Teixeira de Sousa, O direito de
arrependimento nos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento: algumas notas, cit., 24, assina-
lando o carácter exemplificativo da enumeração legal resultante do artigo 3.º/g).
81
Em especial, pela contradição entre a letra do corpo da alínea g) e a da primeira subalínea: “O
contrato que é celebrado (…) em local que não seja o estabelecimento comercial (…), incluindo
os contratos celebrados no estabelecimento comercial (…)”.
Cfr., ainda, o que adiante referimos, também quanto ao artigo 3.º/g), i) do Decreto-Lei n.º 24/2014.
82 Mereceria, desde logo, por isso, surgir em primeiro lugar, no catálogo das subalíneas do artigo

3.º/g).
Em sentido diferente (defendendo que a definição legal de contrato celebrado fora do estabele-
cimento está “agora devidamente ordenada”), Marisa Dinis, Contratos celebrados à distância e con-
tratos celebrados fora do estabelecimento comercial – Da Diretiva à transposição para o ordenamento jurídico
português, cit., 30.

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Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 888 10/01/17 11:25


Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 889

midor, que, actualmente, se poderão inscrever na fórmula abrangente do


corpo da alínea g)83.
– No local de trabalho do consumidor (3.º/g), iii)): atenta a ratio legis, é de con-
siderar que o preenchimento da previsão legal não pressuporá, necessaria-
mente, a existência de um contrato de trabalho; “local de trabalho” terá
aqui o sentido de local onde o consumidor desempenhe, ainda que esporadica-
mente84, a sua actividade profissional, podendo fazê-lo, aí, a vários títulos;
como exemplos: contrato de trabalho (válido ou, mesmo, inválido) ou
contrato de prestação de serviços, no âmbito do exercício de profissão
liberal85.
– Em reuniões (3.º/g), iv)): está em jogo mais uma situação há muito conhe-
cida e com grande impacto, em que a contratação ocorre num encontro,
no qual determinado bem ou serviço é promovido por demonstração,
perante um grupo de pessoas reunido no domicílio de uma delas, por
solicitação do profissional, do seu representante ou mandatário86.

83 Não acompanhamos, portanto, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed.,
cit., 146 e Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância
e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 39-40,
quando defendem igual posição, mas a propósito da consideração dos contratos celebrados no
domicílio (3.º/g), ii)), citando António Menezes Cordeiro, O Anteprojecto do Código do Consumidor,
cit., 696, que se pronunciou sobre a questão, mas tendo por referência os artigos 239.º e seguintes
do Anteprojecto do Código do Consumidor. O regime jurídico actual, com a formulação abran-
gente vertida no corpo da alínea g), dispensa alargamentos interpretativos da noção de domicílio.
84 Como referem Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 146 e Jorge

Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabe-


lecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 41, por exemplo, a
pessoa que, num determinado dia, se desloca a uma certa Universidade, para aí dar uma aula ou
proferir uma conferência.
85
Vide Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 146-147 e, em ter-
mos equivalentes, Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados
à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro,
cit., 41, que apresentam vários exemplos, alguns dos quais, porém, (dentro da lógica explanada a
propósito do artigo 3.º/g), ii)) supomos que não se inscreverão na alínea g), iii) – por não se recon-
duzirem ao trabalho – mas antes estarão cobertos pela fórmula genérica do corpo da mesma alínea:
será o caso de contratos celebrados, com consumidores, em estabelecimentos de ensino por estes
frequentados (exceptuados, evidentemente, os contratos de fornecimento de bens ou serviços pelo
próprio estabelecimento de ensino ou por entidade que neles opere).
86 O regime anterior (DL n.º 143/2001, artigo 13.º) consagrava, explicitamente, como requisito

a inexistência de um pedido expresso para a deslocação do profissional. Perante a letra do artigo


3.º/g), iv), da lei actual, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 147
e Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do
estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 42, defendem

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890 Carlos Lacerda Barata

– Em deslocações organizadas (3.º/g), v)): estão em causa contratações durante


uma deslocação87 organizada pelo profissional (ou seu representante ou
mandatário), a lugar diferente do estabelecimento comercial, que tem
como escopo (eventualmente, não exclusivo), precisamente, a promoção
de bens ou serviços e a celebração dos respectivos contratos. Trata-se
de uma prática que está (ou esteve, consoante os sectores de actividade)
muito em voga88, particularmente agressiva, na medida em que, de facto,
por esta via, os consumidores – aliciados, pelos mais diversos modos,
a participarem na excursão ou no passeio – ficam, depois, particular-
mente vulneráveis à pressão da contratação, inclusivamente, porque, mui-
tas vezes, não têm, sequer, possibilidade de, por si mesmos, regressar ao
local de partida89.
– Em local indicado pelo fornecedor de bens/prestador de serviços (3.º/g), vi)): nesta
hipótese, o aspecto mais relevante é a circunstância de o contrato ser
celebrado num local onde o consumidor se deslocou, na sequência de
uma “comunicação comercial”90, por parte do profissional (ou do seu

que o regime legal opera mesmo que o contrato venha a ser celebrado com o consumidor que
organizou a reunião. Temos dúvidas de que seja este o sentido da lei.
87 Na versão portuguesa da Directiva 2011/83/UE (artigo 2.º/8), d)), designada por excursão; nas

versões inglesa, francesa e alemã: respectivamente, excursion, excursion, Ausflug; na versão italiana
encontramos uma expressão provavelmente preferível: viaggio promozionale, que surge, igualmente,
no artigo 45/1 h), 4) do Codice del Consumo.
88 Sirva de exemplo, neste domínio, a prática levada a cabo, quase indiscriminadamente, nos meses

de Verão, nos acessos a algumas praias algarvias.


Na literatura germânica, quanto à situação em causa, consagrada no § 312b, 1/4 BGB, são referidas
as “Kaffeefahrten”; cfr. Christian Alexander, Verbraucherschutzrecht, cit., 87.
89
Cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 147-148 e Jorge
Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabele-
cimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 42-43.
90
Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 149-150 (e, perante a legis-
lação anterior, em Os Contratos de Consumo, cit., 251) defende que o contacto deverá ser directo/
específico, considerando que a expressão “comunicação comercial” não tem, na norma em causa,
o sentido genérico de publicidade (cfr., de modo equivalente, Jorge Morais Carvalho/João
Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação
ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 44-45).
Esta interpretação suscita-nos, porém, as maiores dúvidas, perante a redacção, não restritiva, do
artigo 3.º/g), vi) e, em especial, tendo presente o confronto com a letra do artigo 3.º/g), i), onde se
exige – aqui sim – um contacto pessoal e individual.
Sobre esta matéria, com referência a várias decisões jurisprudenciais francesas, vide Marc
Bruschi, em nota a Cass. crim., 4-10-2005, in Revue des Contrats, 2006/2, 362-363; neste aresto,
a Cassation considerou como démarchage a prática de atrair os consumidores, por anúncio publi-

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 891

representante ou mandatário), que o persuade ou, pelo menos, o convida


a aí se dirigir91.
– No estabelecimento comercial, na sequência de contacto em local diverso (3.º/g),
i)): finalmente, considera-se também como celebrado fora do estabeleci-
mento comercial o contrato cuja constituição ocorra no estabelecimento
comercial do profissional (ou através de quaisquer meios de comunicação
à distância), imediatamente após o consumidor ter sido, pessoal e indivi-
dualmente, contactado num local diferente do estabelecimento comercial
do fornecedor de bens ou prestador de serviços92. Exige-se, pois, uma
abordagem, ao consumidor, pessoal e individual, ocorrida fora do estabele-
cimento, não valendo, portanto, para o efeito, as meras práticas gerais de
publicidade93. Trata-se, também, de uma situação que ocorre com alguma
frequência, designadamente, no âmbito de determinadas actividades
comerciais e em certos locais, a que o legislador dá resposta, conferindo, aos
consumidores, a tutela própria das contratações fora do estabelecimento.

citário, não nominativo, enviado por correio para um grande número de destinatários, para se
deslocarem a um local não habitualmente destinado à comercialização dos bens.
91 Vide Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 148 ss e Jorge Morais

Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento


comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 43 ss.
Cfr. RP 29-Jan.-2009 (Marques Pereira), CJ XXXIV/1, 2009, 213 ss: um consumidor foi con-
tactado por um profissional, tendo-lhe sido comunicado que ganhara um prémio e que o poderia
receber num determinado restaurante, ao qual, efectivamente, o consumidor se deslocou, acom-
panhado pela mulher: o prémio entregue consistia num vale de desconto de € 600, na aquisição
de produtos da vendedora, que, de seguida, no restaurante, apresentou um colchão ortopédico,
por si comercializado, tendo convencido o consumidor a adquiri-lo, bem como a recorrer ao cré-
dito, para o efeito; foram celebrados ambos os contratos, mediante a assinatura de um documento,
intitulado “contrato de compra e venda com financiamento”, cujo conteúdo não foi explicado ao
consumidor. RC 18-Mai.-2010 (Isaías Pádua) (proc. n.º 347/08.1TBVIS-A.C1), in http://www.
dgsi.pt: uma consumidora foi contactada telefonicamente, para comparecer, com o cônjuge, para
receber um prémio, num determinado hotel, onde lhes foi apresentado um cartão de crédito;
“pressionados”, acabaram por subscrever os documentos contratuais que lhes foram apresentados.
JP Lx 28-Mar.-2008 (Maria de Ascensão Arriaga) (proc. n.º 687/2007), in http://www.dgsi.
pt: uma consumidora foi abordada, primeiramente, num supermercado, tendo, aí, facultado o
número do seu telefone a uma colaboradora de um profissional; depois, foi contactada telefonica-
mente e convidada a deslocar-se à residência deste, onde veio a celebrar um contrato de prestação
de serviços médicos e um contrato de crédito.
92 No Direito italiano, a mesma hipótese consta do artigo 45/1 h), 3) do Codice del Consumo. Para o

Direito alemão, cfr. § 312b, 1/3 BGB; cfr. Christian Alexander, Verbraucherschutzrecht, cit., 87,
Christiane Wendehorst, Das neue Gesetz zur Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie, cit., 581.
93 Cfr. Silke Bittner, in Bittner/Clausnitzer/Föhlisch, Das neue Verbrauchervertragsrecht, cit.,

30-31.

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Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 891 10/01/17 11:25


892 Carlos Lacerda Barata

A configuração legal emprestada a esta situação parece-nos, porém, muito


discutível: desde logo, dada a circunstância de o legislador abrir o elenco cons-
tante das seis subalíneas do artigo 3.º/g) com esta hipótese, que é, em certa
medida, marginal; por outro lado, na lógica do preceito, é, no mínimo, singular
que, no rol das situações típicas de contratos celebrados fora do estabelecimento,
se inscrevam, em primeiro lugar, contratos celebrados no estabelecimento: razões
bastantes para que a subcategoria em causa (mesmo admitindo dever ser inscrita
entre as demais, que configuram contratos celebrados fora do estabelecimento),
pudesse ter sido relegada para o final do elenco legal.
Em qualquer caso, como bem sublinham Jorge Morais Carvalho/João
Pedro Pinto-Ferreira94, afinal, no conceito legal de contrato celebrado fora do esta-
belecimento incluem-se, também, contratos celebrados no estabelecimento, não sendo,
por isto, o próprio conceito legal isento de reparos95.

V. Assim, como elementos identificativos centrais do contrato celebrado


fora do estabelecimento, temos:
(i) A presença física simultânea do consumidor e do fornecedor de bens ou
prestador de serviços;
(ii) A celebração em local que (tendencialmente96) não corresponde ao
estabelecimento comercial do profissional.

Em juízo, a aplicação do regime legal dependerá, naturalmente, da prova


dos correspondentes factos97.

94
Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014,
de 14 de Fevereiro, cit., 39. Em termos equivalentes, vide Jorge Morais Carvalho, Manual de
Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 144 e João Pedro Pinto-Ferreira/Jorge Morais Carvalho,
Os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento, in I Congresso de Direito do Consumo, cit., 98.
95
A redacção do artigo 3.º/g), i), do Decreto-Lei n.º 24/2014 corresponde, com pequenas dife-
renças, à do artigo 2.º/8), c), da Directiva 2011/83/UE.
Parece-nos que – nestas hipóteses, em que a celebração do contrato ocorre no estabelecimento
comercial – seria preferível diferente solução: a consagração normativa de uma equiparação, evitando
inscrever tais situações no conceito de contrato celebrado fora do estabelecimento.
Com opinião divergente – considerando a actual técnica legislativa “mais simples e precisa” e aplau-
dindo o “melhor (…) nível conceptual” do diploma – vide Mariana Duarte, O novo regime dos
contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento: reforço da protecção do consumidor?, cit., 115 e 117.
96 Cfr. o que ficou dito acerca do artigo 3.º/g) i).

97 Vide RP 5-Mai.-2005 (José Ferraz) (proc. n.º 0531983) – acórdão proferido na vigência do

Decreto-Lei n.º 143/2001 – in http://www.dgsi.pt.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 893

5. Âmbito de aplicação

I. Não obstante o preenchimento dos elementos que compõem o conceito


legal de contrato celebrado fora do estabelecimento comercial, nem a todos os
contratos constituídos nesses termos é aplicável o regime legal consagrado no
Decreto-Lei n.º 24/2014.

II. Com efeito, o artigo 2.º/2 do diploma traça o âmbito de aplicação dos
artigos 4.º a 21.º (tendo em consideração os contratos celebrados fora do esta-
belecimento e os contratos celebrados à distância), excluindo diversos negócios:
contratos relativos a serviços financeiros (a))98; contratos celebrados através de
máquinas distribuidoras automáticas ou estabelecimentos automatizados (b))99;
contratos celebrados com operadores de telecomunicações, relativos à utilização
de cabines telefónicas públicas ou à utilização de uma única ligação telefónica,
de internet ou de telecópia efectuada pelo consumidor (c)); contratos relativos
à construção, à reconversão substancial, à compra e venda ou a outros direitos
respeitantes a imóveis, incluindo o arrendamento100 (d)); contratos referentes a
serviços sociais (e)), a cuidados de saúde (f)) e a jogos de fortuna ou azar (g))101;

98 Os contratos relativos a serviços fi nanceiros, celebrados à distância, com consumidores, estão

sujeitos a um regime especial, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de Maio – que
transpôs, para a ordem jurídica nacional, a Directiva 2002/65/CE, do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 23 de Setembro – alterado pelo Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30 de Outubro, pela
Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho, pela Lei n.º 14/2012, de 26 de Março e pelo Decreto-Lei n.º
242/2012, de 7 de Novembro.
O confronto entre o regime geral dos contratos celebrados à distância e o regime especial dos
contratos relativos a serviços financeiros permite constatar, facilmente, uma ampla zona de sobre-
posição e variadíssimos pontos de convergência, detectando-se poucos aspectos diferenciadores.
Temos, pois, grandes dúvidas acerca da necessidade de autonomização normativa desta matéria:
teria sido bastante a inclusão, no diploma de âmbito geral, das pertinentes regras especiais/excep-
cionais acerca da contratação à distância de serviços financeiros.
Neste sentido, vide João Calvão da Silva, Banca, Bolsa e Seguros, tomo I, 4.ª ed., Almedina,
Coimbra, 2013, 115 ss e 126, considerando a desnecessidade de uma Directiva especial para os
serviços financeiros (no confronto com a Directiva 97/7/CE), atentas as muitas semelhanças de
regulamentação.
99 Os artigos 22.º-24.º do Decreto-Lei n.º 24/2014 tratam das chamadas vendas automáticas.

100 No âmbito dos contratos celebrados fora do estabelecimento, a exclusão do arrendamento já

resultava da legislação anterior (artigo 14.º/a) do revogado Decreto-Lei n.º 143/2001, que afastava,
expressamente, a locação de bens imóveis, diferentemente do que sucedia em relação aos contratos
celebrados à distância, dada a ressalva feita no artigo 3.º/1, d), in fine, do mesmo diploma legal).
101 Na legislação anterior (Decreto-Lei n.º 143/2001), estas três matérias não estavam excluídas.

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894 Carlos Lacerda Barata

contratos relativos a viagens turísticas e organizadas (h))102; contratos celebrados


no âmbito do regime legal do direito real de habitação periódica e de habitação
turística (i))103; contratos relativos a géneros alimentícios, bebidas ou outros
bens para consumo corrente do agregado familiar, entregues fisicamente pelo
fornecedor em deslocações frequentes e regulares ao domicílio, residência ou
local de trabalho do consumidor (j))104; contratos em que intervenha um titular
de cargo público, obrigado por lei à autonomia e à imparcialidade, bem como
ao fornecimento de todas as informações jurídicas necessárias, garantido que o
consumidor apenas celebra o contrato após ponderação e com pleno conhe-
cimento das suas consequências jurídicas (caso paradigmático do notário) (l));
contratos de transporte de passageiros (m))105; contratos celebrados fora do esta-
belecimento comercial, para aquisição de assinaturas de publicações periódicas,
quando o pagamento devido pelo consumidor não exceda € 40 (n))106.

6. Deveres de informação

I. A informação ao consumidor assume um papel absolutamente essen-


cial nos contratos de consumo107, correspondendo, aliás, a um dos temas cen-

102 Submetidas ao regime constante do Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de Maio, alterado, por
último, pelo Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto.
103 Decreto-Lei n.º 275/93, de 5 de Agosto, com várias alterações, a última das quais resultante

do Decreto-Lei n.º 37/2011, de 10 de Março.


104 Para a crítica desta exclusão legal – que corresponde à consagrada no artigo 3.º/3, j) da Direc-

tiva 2011/83/UE – vide Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos


celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de
Fevereiro, cit., 24.
105 A exclusão não abrange, apenas, contratos de transporte de passageiros, celebrados à distância,

por via electrónica, aos quais serão aplicáveis (somente) as regras do artigo 5.º/2, 3 e 4 ex vi 2.º/2, m).
106
Como antes ficou referido, a alínea n) do artigo 2.º/2 foi aditada pela Lei n.º 47/2014, de 28
de Julho.
Cabe recordar que a Directiva 2011/83/UE (artigo 3.º/4) conferiu aos Estados-membros a possibi-
lidade de consagrarem, nos ordenamentos internos, soluções diferentes das da Directiva, quanto a
contratos celebrados fora do estabelecimento comercial, quando o pagamento a efectuar pelo con-
sumidor não exceder € 50 (ou valor inferior a este, determinado em legislação nacional). Diferen-
temente da opção tomada noutros ordenamentos – por exemplo, o italiano: artigo 47/2 do Codice
del Consumo – o legislador português não aproveitou, em termos gerais, esta possibilidade, embora,
com a alínea n), introduzida pela Lei n.º 47/2014, tenha criado uma nova exclusão, que opera em
função do valor e, também, do objecto. Cfr. Paulo Mota Pinto, O novo regime jurídico dos contratos
à distância e dos contratos celebrados fora do estabelecimento comercial, Estudos de Direito do Consumi-
dor, n.º 9, edição especial, 2015, 51 ss (56-57), concluindo pela compatibilidade com a Directiva.
107 Recorrendo às certeiras palavras de Carlos Ferreira de Almeida (Direito do Consumo, cit.,

115), “informação tem sido uma palavra chave e quase mágica” no Direito do consumo.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 895

trais em matéria de protecção dos consumidores108, a par do direito de livre


desvinculação109.
Os contratos celebrados fora do estabelecimento, naturalmente, não fogem
a esta lógica.

II. O artigo 4.º/1, do Decreto-Lei n.º 24/2014, consagra um extenso


elenco de elementos – demasiado extenso!110 – objecto de informação pré-
-contratual (informação prévia, na anterior terminologia legal111), que devem
constar da declaração negocial, por parte do profissional e que integram o pró-

108 Vide Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 55. Entre nós,
cfr., nomeadamente, Carlos Ferreira de Almeida, Os direitos dos consumidores, cit., 179 ss e
Direito do Consumo, cit., 115 ss, Elsa Dias Oliveira, A protecção dos consumidores nos contratos cele-
brados através da internet, cit., 65 ss, Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo, cit., 191 ss.
109 Vide Karl Larenz/Manfred Wolf/Jörg Neuner, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 10.

Auflage, Beck, München, 2012, 145.


110 Embora se compreenda inteiramente o intuito do legislador, será de questionar se não se está

a ir longe demais e se o caminho escolhido não será contraproducente, ao exigir, ao profissio-


nal, que forneça informação sobre um vastíssimo leque de elementos, cuja efectiva prestação (a
ocorrer…) “esmagará” o comum consumidor. Como advertem Philippe Malaurie/Laurent
Aynès/Pierre-Yves Gautier, Droit des Contrats Spéciaux, 8.ª ed., LGDJ, 2016, 124, frequente-
mente, o excesso de informações mata a informação (cfr., em sentido convergente, Reinhard
Zimmermann, The New German Law of Obligations. Historical and Comparative Perspectives, cit., 212).
E, por outro lado, como sucede nos mais variados domínios, muitas vezes, exigir demais resulta
em obter pouco ou nada…
A este propósito, vejam-se, especialmente, as ref lexões do Professor António Menezes
Cordeiro, sob o impressivo título O direito à não-informação, Estudos de Direito do Consumi-
dor, n.º 9, edição especial, 2015, 45 ss, bem como em Direito Bancário, 6.ª ed. (com colaboração
de A. Barreto Menezes Cordeiro), Almedina, Coimbra, 2016, 414-415 e Direito dos Seguros,
2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, 616-617. Cfr., ainda, António Pinto Monteiro, O novo regime
da contratação à distância. Breve apresentação, cit., 16 (admitindo, também, a excessiva extensão dos
deveres de informação).
Para o Direito italiano, evidenciando o amplo elenco de informações exigidas pelo Codice di Con-
sumo (cfr., especialmente, o artigo 49), vide Umberto Breccia, in Vincenzo Roppo, Trattato del
Contratto, I – Formazione (a cura di Carlo Granelli), Giuffrè, Milano, 2006, 552-553.
Também no ordenamento alemão, a lei (cfr. o Art. 246a, § 1 EGBGB) aponta um longo e deta-
lhado catálogo de informações pré-contratuais a prestar ao consumidor, em matéria de contratação
fora do estabelecimento (ou à distância) – cfr. Christian Möller, Die Umsetzung der Verbraucher-
rechterichtlinie im deutschen Recht, cit., 1415. Vide, também, Bittner/Clausnitzer/Föhlisch, Das
neue Verbrauchervertragsrecht, cit., 35 ss, tratando, sucessivamente, as várias informações, agrupadas
em função do seu objecto.
Cfr., igualmente, Herbert Roth, EG-Richtlinien und Bürgerliches Recht, JZ, 54, 1999, 529 ss (533),
que, por referência a diversas Directivas, aponta o “uso inflacionado” de deveres de informação
ao consumidor.
111 Artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de Abril.

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896 Carlos Lacerda Barata

prio contrato celebrado fora do estabelecimento (4.º/3)112, sendo, deste modo,


vertido no contrato o conteúdo das obrigações informativas pré-contratuais113.
Entre as várias menções, encontram-se dados respeitantes aos seguintes
doze aspectos:
– Às partes, mais concretamente, referentes à cabal identificação do forne-
cedor de bens ou prestador do serviço ou do profissional que aja por sua
conta ou em sua representação (4.º/1, a) e b));
– Ao bem ou serviço objecto do contrato (4.º/1, c));
– Ao preço e a custos (4.º/1, d), e), f), g), h));
– À execução do contrato (4.º/1, i));
– Ao direito de livre desvinculação e seus efeitos (4.º/1, j), l), m), n));
– À vigência do contrato e das obrigações do consumidor (4.º/1, p) e t));
– À garantia de conformidade dos bens com o contrato (4.º/1, q));
– À assistência e aos serviços pós-venda e garantias comerciais (4.º/1, r));
– Aos códigos de conduta (4.º/1, s));
– Aos depósitos ou outras garantias financeiras a prestar pelo consumidor
(4.º/1, u));
– Aos conteúdos digitais (4.º/1, v), x));
– Aos meios de resolução extrajudicial de litígios (4.º/1, z)).

III. Coloca-se a questão de saber se estas informações devem, necessaria-


mente, integrar uma proposta contratual, emitida pelo profissional, ou se podem
ser incluídas num mero convite a contratar, por este formulado: segundo o
Professor Jorge Morais Carvalho a ratio do artigo 4.º não permite que o profis-
sional emita uma declaração negocial, que contenha tais informações, mas que
não o vincule (sujeite) à celebração do contrato114. Não nos parece ser a melhor
orientação: não vislumbramos na lei qualquer obstáculo a que o profissional
preste as devidas informações num convite a contratar, dirigido ao consumidor,

112
Acrescenta o n.º 3 do artigo 4.º que o respectivo conteúdo não pode “ser alterado, salvo acordo
expresso das partes em contrário anterior à celebração do contrato”, afastando, assim, a viabilidade
de um acordo tácito nesse sentido (cfr. 217.º do Código Civil).
Sobre o artigo 4.º/3, cfr. Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos cele-
brados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Feve-
reiro, cit., 62-63, que, tendo presente o disposto no artigo 406.º do Código Civil, referem que a
exigência daquela norma “apenas tem autonomia no momento anterior à celebração do contrato”.
113 Vide Ubaldo Perfetti, Il contratto in generale, II – La conclusione del contratto, in Trattato di

Diritto Civile e Commerciale, dir. Cicu/Messineo/Mengoni, contin. Schlesinger, Giuff rè,


Milano, 2016, 6.
114 Cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 151, invocando o

artigo 4.º/3, do qual, porém, não extraímos a mesma conclusão.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 897

bastando, para tanto, que evidencie que não tem, desde logo, uma vontade
firme de contratar; não haverá, então, uma verdadeira proposta contratual, por
parte do fornecedor de bens ou prestador de serviços, cabendo, depois, ao
consumidor emiti-la, se for essa a sua decisão. Esta solução mostra-se, aliás,
em conformidade com o disposto no corpo do artigo 4.º/1, que exige que
as informações sejam prestadas antes da celebração do contrato ou antes de o
consumidor se vincular por uma proposta correspondente115.
IV. Quanto ao tempo e ao modo de cumprimento da obrigação de presta-
ção de informação pré-contratual:
– Exige-se uma comunicação em tempo útil (4.º/1): antes da formação do
contrato ou antes de uma proposta do consumidor e com a antecedência
necessária para que este possa tomar conhecimento das informações;
– A informação deve ser sempre prestada de forma clara e compreensível
(4.º/1)116;
– Algumas das informações podem ser prestadas através do modelo de
informação sobre o direito de livre desvinculação, correspondente ao
anexo A do Decreto-Lei n.º 24/2014 (4.º/2).
Os dois primeiros aspectos devem ser aferidos perante cada caso concreto117,
tendo em conta, designadamente, a extensão do clausulado e a complexidade
do contrato.

115 Em sentido diferente, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit.,
151-152 e Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância
e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 55-56
(cfr., também, 63).
116 No Direito alemão vale idêntica solução, com equivalente formulação, que consta, em geral,

do Art. 246 EGBGB (deveres de informação nos contratos de consumo) e, em particular, do Art.
246a, § 4 (1) (para o qual remete o § 312d BGB) (para os contratos celebrados fora do estabele-
cimento e à distância), que exige que a informação, ao consumidor, seja prestada de modo claro
e compreensível (“in klarer und verständlicher Weise”). O Codice del Consumo (artigo 50/1) deter-
mina que as informações sejam legíveis, apresentadas em linguagem simples e compreensível; cfr.
Gianluca Navone, in Giovanni D’Amico (a cura di), La Riforma del Codice del Consumo. Com-
mentario al D.Lgs. 21/2014, cit., em especial, 157 ss. Também o Code de la Consommation (artigo L.
221-5) obriga a que, nos contratos celebrados fora do estabelecimento (e nos concluídos à distân-
cia), a informação pré-contratual seja transmitida de maneira legível e compreensível.
Entre nós, o artigo 8.º/1 da Lei de Defesa do Consumidor prescreve que a informação transmi-
tida ao consumidor deve ser prestada de “forma clara, objectiva e adequada”. Cfr. Jorge Morais
Carvalho, Os Contratos de Consumo, cit., 191 ss, em especial, 195.
117 Neste sentido, mas apenas quanto ao momento da prestação das informações, Jorge Morais

Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento


comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 62.

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V. Os deveres de informação pré-contratual, especialmente consagrados no


Decreto-Lei n.º 24/2014, acrescem aos que, em geral, decorrem das regras da
boa fé, na formação dos contratos, nos termos consagrados, a propósito da culpa
in contrahendo, no artigo 227.º/1 do Código Civil118.
Tratando-se de um contrato celebrado fora do estabelecimento com base
em cláusulas contratuais gerais, somar-se-ão, ainda, as respectivas exigências
legais relativas à comunicação e às informações (artigos 5.º e 6.º LCCG)119.

VI. No que toca à forma da prestação das informações: numa lógica de


protecção do consumidor120, nos contratos celebrados fora do estabelecimento,
elas devem ser fornecidas em papel, podendo, todavia, ser transmitidas noutro
suporte duradouro121 se o consumidor nisso concordar122. É o que resulta do
n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 24/2014, em decorrência do artigo 7.º/1
da Directiva 2011/83/UE.

118 Em sentido coincidente, embora a propósito dos deveres de informação na contratação à distân-
cia, vide Paulo Mota Pinto, Princípios relativos aos deveres de informação no comércio à distância. Notas
sobre o direito comunitário em vigor, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 5, 2003, 183 ss (187-188).
Sobre a culpa in contrahendo e o artigo 227.º do Código Civil, vide, com múltiplas indicações,
António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, 4.ª ed., cit., 207 ss e 267 ss; cfr., também,
Dário Moura Vicente, Da responsabilidade pré-contratual em Direito internacional privado, Almedina,
Coimbra, 2001, em especial, 262 ss; Ana Prata, Notas sobre responsabilidade pré-contratual, cit.; Eva
Sónia Moreira da Silva, Da responsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação,
Almedina, Coimbra, 2003.
119 Vide António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, 4.ª ed., cit., 426 ss.

120 Neste sentido, Karl Larenz/Manfred Wolf, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 9.

Auflage, cit., 768-769, quanto à exigência de forma escrita na transmissão das detalhadas infor-
mações a prestar ao consumidor. Cfr., igualmente, Paolo Gallo, Trattato del Contratto, t. 1, La
formazione, cit., 777, Vincent Forray, Le consensualisme dans la théorie générale du contrat, LGDJ,
Paris, 2007, 152, Paul-Henri Antonmattei/Jacques Raynard, Droit Civil. Contrats Spéciaux,
2.ª ed., Litec, Paris, 2000, 126, François Collart Dutilleul/Philippe Delebecque, Contrats
civils et commerciaux, cit., 93-94.
121
A definição legal de «suporte duradouro» consta do artigo 3.º/l).
122
Cfr. Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância
e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 64.
Cfr. o Art. 246a, § 4 (2) EGBGB, que acolhe idêntica solução. Cfr. Christian Möller, Die
Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie im deutschen Recht, cit., 1415; Marina Tamm, in Tobias
Brönneke/Klaus Tonner, Das Neue Schuldrecht. Verbraucherrechtsreform 2014. Internethandel.
Widerrufsrechte. Informationspflichten, cit., 109.
Para o Direito italiano, cfr. o artigo 50/1 do Codice del Consumo, que prescreve, também, que as
informações serão prestadas em suporte de papel ou, se o consumidor consentir, noutro suporte
duradouro. Cfr. Gianluca Navone, in Giovanni D’Amico (a cura di), La Riforma del Codice del
Consumo. Commentario al D.Lgs. 21/2014, cit., em especial, 153 ss.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 899

VII. O incumprimento do dever de informação, a cargo do profissional,


acarreta, naturalmente, consequências desfavoráveis para este, inclusivamente,
ao nível contra-ordenacional, com a correspondente aplicação de coimas (cfr.
artigo 31.º/1, b) e 31.º/2, b)).
O não cumprimento do dever de informar, relativamente ao direito de livre
desvinculação (existência, prazo e procedimento para o exercício), incluindo
a falta de entrega do correspondente formulário (4.º/1, j)), tem importantes
repercussões, determinando, designadamente, uma dilatação do prazo para o
respectivo exercício123, por mais um ano (10.º/2).
Por outro lado, nomeadamente, se o fornecedor de bens ou prestador do
serviço não informar, devidamente, quais os encargos e custos suplementares
associados ao contrato ou não informar que, em caso de exercício do direito de
livre desvinculação, os custos da devolução de bens que, pela sua natureza, não
possam ser devolvidos pelo correio normal, correm por conta do consumidor,
a este não poderão ser exigidas as correspondentes quantias (artigo 4.º/4). Na
mesma linha, resulta do artigo 13.º/2, b) que o consumidor não tem o dever de
suportar os custos da devolução do bem, quando não tenha sido previamente
informado, pelo fornecedor do bem, de que deve pagar tais despesas, como
consequência do exercício do direito de livre desvinculação. Significa isto que
– em caso de exercício do direito de livre desvinculação – o fornecedor de bens
ou prestador de serviços pode imputar os custos da devolução dos bens ao con-
sumidor: para tanto, basta que o informe disso mesmo, prévia e devidamente124.
Esta solução legal, que, na prática, poderá ser dissuasora do exercício do
direito de livre desvinculação125, mostra-se, todavia, justa e equilibrada.
Finalmente, ainda quanto às repercussões da falta de informação, quanto
ao direito de livre desvinculação, a lei estabelece que, nessa circunstância, o
consumidor não será responsável pela depreciação do bem que deva devolver, a
que tenha dado azo, em virtude de uma inspecção ou manipulação do mesmo,
porventura, menos cuidada (14.º/3).

VIII. A prova do cumprimento dos deveres de informação pré-contratual


cabe ao fornecedor de bens ou prestador de serviços: artigo 4.º/7 do Decre-

123
Cfr. Paolo Gallo, Trattato del Contratto, t. 1, La formazione, cit., 831; Marisa Dinis, O direito
à informação – consequências em caso de preterição dos deveres de informação, cit., 103-104.
124 Cfr. o que adiante se acrescentará, sobre os deveres de informação relacionados com o direito

de livre desvinculação.
125 Assim, Marcelino Abreu, Contratos à distância e fora do estabelecimento, BOA n.º 112/113, 2014,

45. Cfr. também Mariana Duarte, O novo regime dos contratos celebrados à distância e fora do esta-
belecimento: reforço da protecção do consumidor?, cit., 118, que, por confronto com o regime anterior,
assinala um agravamento da posição do consumidor.

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to-Lei n.º 24/2014, em inteira consonância com o artigo 6.º/9 da Directiva


2011/83/UE126 127.

7. Forma

I. Os contratos celebrados fora do estabelecimento comercial são negócios


formais, que, portanto, escapam ao princípio da consensualidade ou da liber-
dade de forma (artigo 219.º do Código Civil), valendo como expressão do
designado neoformalismo128, que marca o Direito do consumo, em especial, no
âmbito contratual, com a tendência para um certo retorno ao formalismo129

126 E, também, com o regime das cláusulas contratuais gerais, segundo o qual o ónus da prova do
cumprimento do dever/encargo de comunicação adequada e efectiva das cláusulas impende sobre
o seu utilizador (artigo 5.º/3 LCCG). Cfr. M. J. Almeida Costa/A. Menezes Cordeiro, Cláu-
sulas contratuais gerais. Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, Coimbra,
1986, 24-25, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, 4.ª ed., cit., 429-430; cfr.
também Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e
fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 65-66.
127 Nos Direitos italiano e francês vigoram regras equivalentes: cfr., respectivamente, artigo 49/10

do Codice del Consumo e artigo L 221-7 do Code de la Consommation.


128 Vide Pier Filippo Giuggioli, Il Contratto del Consumatore, cit., 133 ss, Paolo Gallo, Trat-

tato del Contratto, t. 1, La formazione, cit., 777, Fabrizio Di Marzio, Introduzione. Verso il nuovo
Diritto dei Contratti, in Il Nuovo Diritto dei Contratti. Problemi e prospettive (a cura di F. Di Marzio),
Giuffrè, Milano, 2004, 13, A. Rosboch, Conclusione del contratto, RDCiv., XLVI, n.º 6, 2000, 899
ss (907), Stefano Pagliantini, La forma del contratto: appunti per una voce, Studi Senesi, CXVI (III,
Serie LIII), fasc. 1, 2004, 115-117.
129 Cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, cit., 88 ss, João Calvão da Silva,

Responsabilidade civil do produtor, cit., 78-79, nota 3, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das
Obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, 283, nota 1, Luís Menezes Leitão, O Direito do
Consumo: autonomização e configuração dogmática, Estudos do Instituto de Direito do Consumo, vol.
I, IDC/FDUL, Almedina, Coimbra, 2002, 11 ss (27) e Direito das Obrigações, vol. I, Introdução. Da
constituição das obrigações, 13.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, 170, Jorge Morais Carvalho, Os
Contratos de Consumo, cit., 117 ss e Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed. cit., 30 ss, Jorge Morais
Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento
comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 75, Mário Frota, Os contra-
tos de consumo – Realidades sóciojurídicas que se perspectivam sob novos influxos, RPDC, n.º 23, 2000, 9
ss (24) = Revista de Direito do Consumidor, ano 10, n.º 37, 2001, 9 ss (22); Jorge Pegado Liz,
Introdução ao Direito e à Política do Consumo, cit., 281, Vincent Forray, Le consensualisme dans la
théorie générale du contrat, cit., 147 e nota 278; cfr. também Hervé Jacquemin, Le formalisme contrac-
tuel. Mécanisme de protection de la partie faible, Larcier, Bruxelles, 2010, 37 ss.
Sobre o tema, em geral, vide Natalino Irti, La rinascita del formalismo ed altri temi, in Studi sul
formalismo negoziale, CEDAM, Padova, 1997, 29 ss.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 901

ou para a reformalização, atentas finalidades, nomeadamente, de protecção do


consumidor130.
Com efeito, os contratos celebrados fora do estabelecimento devem ser
reduzidos a escrito (9.º/1 do Decreto-Lei n.º 24/2014131), sob pena de nulidade
(220.º do Código Civil), a qual, em princípio, ficará submetida ao respectivo
regime, nomeadamente, quanto à legitimidade para a sua invocação (artigo
286.º do Código Civil); ficam, porém, ressalvadas as hipóteses de abuso do
direito, com a consequente inadmissibilidade de exercício, por contrariedade à
boa fé (artigo 334.º do mesmo código)132.

Todavia, a assinalada tendência não encobre uma outra, recente e (paradoxalmente) de sentido
inverso, patente nas várias intervenções legislativas no sentido da desformalização (por exemplo: a
equiparação do documento particular autenticado à escritura pública, quando requerida para efeitos
de validade contratual). Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VII, Direito das
Obrigações. Contratos. Negócios unilaterais, Almedina, Coimbra, 2014 (com reimpressão 2016), 189.
130 Vide António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, 4.ª ed., cit., 168 e 175.

Sobre o novo formalismo de protecção, como modo de equilibrar relações contratuais, em defesa
da parte mais fraca (nomeadamente, o consumidor), especialmente, no que toca à informação,
vide Vincent Forray, Le consensualisme dans la théorie générale du contrat, cit., em especial, 152-153,
Christian Larroumet/Sarah Bros, Les obligations. Le contrat, 7.ª ed., cit., 196 e 558-559, Fabrizio
Di Marzio, Introduzione. Verso il nuovo Diritto dei Contratti, cit., 13, Ezio Guerinoni, Le pratiche
commerciali scorrete. Fattispecie e rimedi, Giuffrè, Milano, 2010, 50-51; cfr., igualmente, Giovanni
Berti de Marinis, La forma del contratto nel sistema di tutela del contraente debole, ESI, Napoli, 2013.
131 Prescreve a norma que “O contrato celebrado fora do estabelecimento comercial é reduzido a

escrito (…)”, numa formulação que, claramente, aponta para a exigência dessa forma especial (cfr.,
entre outros, António Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 4.ª ed., cit., 644 e Luís Menezes
Leitão, Direito das Obrigações, vol. III, Contratos em especial, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, 17).
Não partilhamos, pois, as dúvidas suscitadas por Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-
-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei
n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 86 (que, todavia, acabam por concluir pela consagração, no
artigo 9.º/1, de um requisito de forma escrita).
132
Nomeadamente, quando a preterição da forma legal seja imputável ao fornecedor de bens ou
prestador de serviços, a posterior invocação, por este, da correspondente nulidade poderá inscrever-
-se nos quadros da proibição de abuso do direito, sendo, assim, paralisada, configurando uma situa-
ção de inalegabilidade formal, uma vez verificados os requisitos apontados pela melhor doutrina.
Sobre esta matéria, cfr., em especial, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II,
4.ª ed., cit., 189 ss, maxime 200-201, Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral. Exercício jurídico, 2.ª ed.,
Almedina, Coimbra, 2015, 329 ss, especialmente, 342-343 e Do abuso do direito: estado das questões
e perspectivas, ROA 65/II, 2005, 327 ss (353-355) = ARS IVDICANDI – Estudos em homenagem
ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. II, Coimbra Edit., Coimbra, 2009, 125 ss (148-150).
Com diferente orientação – que, em nossa opinião, carece de base legal – vide Jorge Morais
Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento
comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 86-88 (cfr., também, Jorge
Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 31-32 e 166), que descortinam,

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902 Carlos Lacerda Barata

Ainda nos termos do mesmo artigo 9.º/1, também sob pena de nulidade,
o texto contratual deve conter, “de forma clara e compreensível e na língua
portuguesa”, as informações constantes do artigo 4.º133.

II. Por força do n.º 2 do artigo 9.º, sobre o fornecedor de bens ou presta-
dor de serviços impende o dever de entregar, ao consumidor, uma cópia do
contrato assinado134 ou a “confirmação”135 do contrato em papel (ou, com
a concordância do consumidor, noutro suporte duradouro)136; poderá ainda
acrescer a “confirmação” do consentimento prévio e expresso do consumidor
e o seu reconhecimento, nas hipóteses previstas no artigo 17.º/1, l), relativas à

como consequência da violação do artigo 9.º/1 (e artigo 9.º/2), uma nulidade atípica, não invo-
cável pelo profissional.
No Anteprojecto do Código do Consumidor (artigos 195.º/1, a), b) e c) e 243.º) consagrava-se,
efectivamente, uma invalidade formal mista, presumivelmente imputável ao profissional e apenas
invocável pelo consumidor: uma solução que não tem paralelo no regime em vigor.
133 Recorde-se que no artigo 4.º/1 já se encontra a exigência legal de que as informações sejam

prestadas “de forma clara e compreensível”, ao que o artigo 9.º/1 acrescenta a obrigatoriedade de
uso da língua portuguesa.
No que toca ao objecto negocial, a solução prescrita no artigo 9.º/1 contribuirá, certamente,
para assegurar a sua transparência. Cfr. Joaquim de Sousa Ribeiro, O princípio da transparência no
Direito Europeu dos contratos, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 4, 2002, 137 ss, em especial,
142-143 = Direito dos Contratos. Estudos, Coimbra Edit., 2007, 75 ss, especialmente, 79-81. No
mesmo sentido, vide Paolo Gallo, Trattato del Contratto, t. 1, La formazione, cit., 778 e – refe-
rindo o formalismo negocial (de protecção) como instrumento para garantir a transparência do
contrato, permitindo aceder, em qualquer momento e sem excessivas dificuldades, ao respectivo
conteúdo – Pier Filippo Giuggioli, Il Contratto del Consumatore, cit.,134 e Ezio Guerinoni, Le
pratiche commerciali scorrete. Fattispecie e rimedi, cit., 42 ss.
Noutra vertente, vide Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit.,
55, que sublinham que a informação dos consumidores constitui um factor de transparência do
mercado e, portanto, potenciador da concorrência e, por isto, de desenvolvimento económico;
sobre o tema, com várias indicações, vide, igualmente, Pier Filippo Giuggioli, Il Contratto del
Consumatore, cit., 122 ss.
134
Se dúvidas existissem, fica, assim, claro que, para efeitos do n.º 1 do artigo 9.º, o contrato deve
ser reduzido a escrito e assinado.
135 Não se trata de uma confi rmação proprio sensu, que pressupõe a anulabilidade. Vide António

Menezes Cordeiro, Da Confirmação no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2008 (= Da Confirmação


no Direito Civil, in Centenário do nascimento do Professor Doutor Paulo Cunha. Estudos em homenagem,
Almedina, Coimbra, 2012, 119 ss).
136 Não obstante a lei não o dizer, Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Con-

tratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de
14 de Fevereiro, cit., 88, consideram que o desrespeito por esta formalidade acarreta a nulidade do
contrato. Na jurisprudência, em sentido contrário, vide RL 4-Jun.-2015 (Teresa Prazeres Pais)
(proc. n.º 9807-12.5TBOER.L1-8), in http://www.dgsi.pt.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 903

excepção ao direito de livre desvinculação nos contratos de fornecimento de


conteúdos digitais não disponibilizados em suporte material137.

III. O regime vigente diverge do anterior, perante o qual a exigência de


redução a escrito138 valia, apenas, para contratos de valor igual ou superior a € 60,
devendo o documento contratual ser datado e assinado pelo consumidor, a
quem devia ser entregue uma cópia, assinada pela contraparte; para os demais
contratos, exigia-se, somente, uma nota de encomenda ou documento equiva-
lente, assinado pelo consumidor139.
Hoje, independentemente do valor, o contrato celebrado fora do estabele-
cimento deve ser escrito.

8. Direito de livre desvinculação

I. A atribuição, ao consumidor, de um chamado “direito de livre resolu-


ção” ou “direito de arrependimento” – que vimos designando como direito de
livre desvinculação –, a que corresponderá um “período de reflexão”, constitui
um traço paradigmático dos contratos de consumo140.

137 A violação do artigo 9.º constitui contra-ordenação (31.º/1, b) e 31.º/2, b)).

Cfr. o artigo 7.º/2 da Directiva 2011/83/UE. Para o Direito italiano, cfr. artigo 50/2 do Codice
del Consumo – vide Gianluca Navone, in Giovanni D’Amico (a cura di), La Riforma del Codice
del Consumo. Commentario al D.Lgs. 21/2014, cit., 161 ss.
138 Cfr., nomeadamente, RC 12-Fev.-2008 (Costa Fernandes) (proc. n.º 366/05.6TBTND-A.

C1), in http://www.dgsi.pt.
139 Artigo 16.º/1, 3 e 4 do revogado Decreto-Lei n.º 143/2001, de 26 de Abril. Cfr. Pedro

Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial). Contratos, 2.ª ed., cit., 105; Carvalho
Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., cit., 122; Jorge Morais Carvalho, Manual
de Direito do Consumo, Almedina, 2013, 158 e Os Contratos de Consumo, cit., 243-244; Carolina
Cunha, Métodos de venda a retalho fora do estabelecimento: regulamentação jurídica e protecção do consumi-
dor, cit., 294 e 296. Ainda quanto à exigência de documento escrito, no regime de 2001, vide Luís
Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, Introdução. Da constituição das obrigações, 11.ª ed., Alme-
dina, Coimbra, 2014, 170, nota 393 e vol. III, Contratos em especial, 9.ª ed., Almedina, Coimbra,
2014, 18; Pedro de Albuquerque, Direito das Obrigações. Contratos em especial, vol. I, t. I, Alme-
dina, Coimbra, 2008 (com reimpr. 2015), 81-82; Nuno Pinto Oliveira, Contrato de compra e
venda: noções fundamentais, Almedina, Coimbra, 2007, 30; Eva Sónia Moreira da Silva, Da res-
ponsabilidade pré-contratual por violação dos deveres de informação, cit., 167, nota 403; Teresa Madeira,
Contratos ao domicílio e equiparados, cit., 41.
140 Alguma doutrina refere-se, até, a um “princípio da reflexão”: Mário Frota, Os contratos

de consumo – Realidades sóciojurídicas que se perspectivam sob novos influxos, RPDC, n.º 23, cit., 13
(= Revista de Direito do Consumidor, n.º 37, cit., 12-13).

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904 Carlos Lacerda Barata

Embora não haja norma que genericamente o consagre, o “arrependi-


mento” é admitido em várias situações141: entre nós, designadamente, nos con-
tratos celebrados fora do estabelecimento ou nos contratos celebrados à distân-
cia142, nos contratos de crédito ao consumo143, nos contratos relativos ao direito
real de habitação periódica e ao direito de habitação turística144 ou nos contratos
referentes a viagens organizadas145.
Em causa está a possibilidade de desvinculação unilateral e incondicionada,
ad nutum – portanto, sem necessidade de fundamento ou qualquer justificação
– em ordem à protecção do contraente débil (o consumidor)146, que, assim,
dispõe de um instrumento de tutela particularmente eficaz147, não dependente
da verificação de qualquer vício da vontade148.

141 Inclusivamente fora do espaço europeu: a título ilustrativo, veja-se o artigo 1110 do novo
Código Civil e Comercial argentino (em vigor desde 1 de Janeiro de 2016), que determina que
“nos contratos celebrados fora dos estabelecimentos comerciais e à distância, o consumidor tem
o direito irrenunciável de revogar a aceitação dentro de dez dias contados a partir da celebração
do contrato” (ou da entrega do bem, se a aceitação for posterior a esta); vide Marisa Herrera/
Gustavo Caramelo/Sebastián Picasso (dir.), Código Civil y Comercial de la Nación Comentado,
tomo III, libro 3.º, Art. 724 a 1250, Edit. Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación,
Buenos Aires, 2014, 515 ss.
142 Artigos 10.º e seguintes do citado Decreto-Lei n.º 24/2014, alterado pela referida Lei n.º 47/2014;

o regime dos artigos 10.º e 11.º aplica-se, também, às vendas especiais esporádicas (25.º/2 do mesmo
diploma legal). Cfr., também, o artigo 9.º/7 da Lei de Defesa do Consumidor.
Para os contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros: artigos 19.º e seguintes
do Decreto-Lei n.º 95/2006, de 29 de Maio (alterado, por último, através do Decreto-Lei n.º
242/2012, de 7 de Novembro).
143 Artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho (alterado, por último, pelo Decreto-

-Lei n.º 42-A/2013, de 28 de Março).


144 Incluindo os respectivos contratos-promessa. Cfr. artigos 16.º, 19.º e 49.º do Decreto-Lei n.º

275/93, de 5 de Agosto (alterado por seis vezes, a última das quais pelo Decreto-Lei n.º 245/2015,
de 20 de Outubro).
145
Artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de Maio, com última alteração resultante do
Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto.
146
Vide Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3.ª ed., cit., 78; Carvalho Fernandes,
Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., cit., 123, apontando o direito de “resolução” como “a mais
relevante garantia do consumidor”.
147 Vide Ezio Guerinoni, Le pratiche commerciali scorrete. Fattispecie e rimedi, cit., 69: na medida em

que o direito em causa é imediata e livremente accionável pelo consumidor, o Autor chega a falar,
a este propósito, de auto-tutela.
Cfr. Christian Alexander, Verbraucherschutzrecht, cit., 53, Maria Carla Cherubini, Sul c.d.
diritto di ripensamento, cit., 697-698 e 711 ss e Alexandra Teixeira de Sousa, O direito de arrepen-
dimento nos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento: algumas notas, cit., 18.
Não obstante a grande protecção que, por via da livre desvinculação, é conferida aos consumi-
dores, ao que parece, não será especialmente elevado o número daqueles que, efectivamente,

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 905

148 Trata-se, porém, de um mecanismo verdadeiramente excepcional149, que,


evidentemente, opera como forte restrição da regra pacta sunt servanda e do
princípio da estabilidade contratual150 (cfr. artigo 406.º/1 do Código Civil):
como que se permite, a um dos contraentes, pura e simplesmente, “retirar a
palavra dada”151.

II. Quanto aos contratos celebrados fora do estabelecimento152, o direito


de livre desvinculação é objecto de um correspondente dever de informação, a
cargo do fornecedor ou do prestador de serviços, cuja análise se pode sumariar
nos seguintes pontos essenciais:
(i) O consumidor deve ser informado da existência do direito de se desvin-
cular do contrato, do respectivo prazo e do modo de exercício, devendo
ser-lhe facultado o correspondente formulário (artigo 4.º/1, j) e anexo B
do Decreto-Lei n.º 24/2014);

exercem o correspondente direito. Vide Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consom-


mation, 9.ª ed., cit., 586.
148 Vide Francesco Ricci, I beni di consumo e la disciplina delle vendite aggressive, cit., 145 ss.

149 Cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Presságios sobre o direito do consumo, in Estudos de Direito do

Consumo – Homenagem a Manuel Cabeçadas Ataíde Ferreira, Ed. DECO, 2016, 125 ss (128), que equi-
para a excepcionalidade do “direito de arrependimento” no Direito do consumo à do direito à
greve no Direito do trabalho; M. Januário da Costa Gomes, Assunção fidejussória de dívida. Sobre
o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina, Coimbra, 2000, 751 e 756. No sentido do
texto, cfr., também (embora a propósito do artigo 9.º/7 LDC), Joana Farrajota, A resolução do
contrato sem fundamento, Almedina, 2015, 31.
150 Cfr. Claus-Wilhelm Canaris, Wandlungen des Schuldvertragsrechts – Tendenzen zu seiner “Mate-

rialisierung”, cit., 344; Reinhard Zimmermann, The New German Law of Obligations. Historical
and Comparative Perspectives, cit., 213; Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, cit., 114;
José Carlos Brandão Proença, A desvinculação não motivada nos contratos de consumo: um verdadeiro
direito de resolução?, ROA, 70, I/IV, 2010, 219 ss ( 253) = Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís
Alberto Carvalho Fernandes, vol. II (Direito e Justiça, vol. especial), Universidade Católica Edit.,
Lisboa, 2011, 173 ss (205); Januário Gomes, Sobre o “direito de arrependimento” do adquirente de
direito real de habitação periódica (time-sharing) e a sua articulação com direitos similares noutros contratos
de consumo, RPDC, n.º 3, 1995, 70 ss (79).
Contra: Jean Calais-Auloy, L’influence du droit de la consommation sur le droit civil des contrats, cit., 244.
151 Cfr. Alberto Gallarati, Il diritto di ritirare la «parola data» tra formule e regole: un’indagine di

analisi economica del diritto, cit., passim (em especial, quanto aos contratos celebrados fora do esta-
belecimento: 364-365).
152 E, tendencialmente, quanto aos contratos celebrados à distância, já que o actual regime (arti-

gos 10.º ss) (ao contrário do anterior: Decreto-Lei n.º 143/2001, artigos 6.º-7.º e 18.º-19.º), salvo
aspectos pontuais, é estabelecido, de igual modo e conjuntamente, para ambas as categorias, em
consonância com a Directiva 2011/83/UE (artigos 9.º ss).

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906 Carlos Lacerda Barata

(ii) Para o caso de exercício, o consumidor deve ser informado, sendo caso
disso, de que suportará os custos da devolução do bem e do montante
desses custos, se o bem em causa, pela sua natureza, não puder ser
devolvido por correio normal (4.º/1, l));
(iii) Para a hipótese de o consumidor solicitar que a prestação de serviços se
inicie durante o prazo para o exercício do direito, o profissional deve
informar o consumidor da obrigação de pagar o valor proporcional ao
serviço prestado (4.º/1, m));
(iv) Existe ainda obrigação de informação acerca da própria e excepcional
inexistência do direito de livre desvinculação (cfr. artigo 17.º) e dos
casos em que o consumidor o perde (cfr. artigo 17.º/1, l)) (4.º/1, n));
(v) O dever de informação deve ser cumprido, em tempo útil, antes do
momento da celebração do contrato (4.º/1), nos termos que ficaram
antes indicados, inclusivamente quanto à subsequente integração, dos
respectivos dados, no contrato e aos respectivos aspectos formais, que
jogam como vias de protecção de consumidor153.

III. O “direito de livre resolução” conhece, porém, várias excepções, con-


templadas no artigo 17.º: casos em que, salvo convenção em contrário, o con-
sumidor não poderá, sem fundamento, resolver o contrato154.

IV. Relativamente à forma do exercício do direito pelo consumidor:


No regime legal anterior, previa-se o exercício do direito de livre des-
vinculação por carta registada com aviso de recepção, sem prejuízo de outras
formas de notificação155.

153 Cfr. Mara Messina, “Libertà di forma” e nuove forme negoziali, cit., 135.
154
Para a análise do rol de excepções legais, consagradas na sequência do artigo 16.º da Directiva
2011/83/UE, vide Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 186 ss
e Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do
estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 127 ss.
155
Artigo 18.º/5 do referido Decreto-Lei n.º 143/2001, aplicável aos contratos celebrados fora do
estabelecimento. Sobre esta disposição legal, cfr. Jorge Morais Carvalho, na 1.ª edição do seu
Manual de Direito do Consumo, cit., 160 e Os Contratos de Consumo, cit., 415-416, Carolina Cunha,
Métodos de venda a retalho fora do estabelecimento: regulamentação jurídica e protecção do consumidor, cit.,
300 e, também, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., cit., 123-124, para
quem a norma admitia outras formas de notificação desde que mais solenes. Diferentemente,
quanto aos contratos à distância, a letra do artigo 6.º/5, do mesmo diploma, previa, apenas, a
declaração por carta registada com aviso de recepção, o que suscitava a questão de saber se só por
esta via o direito podia ser validamente exercido. No sentido de que a lei prescrevia “uma forma
especial”, Pedro Romano Martinez, nas primeiras edições da obra Da Cessação do Contrato (1.ª
ed., 2005, 160; 2.ª ed., 2006, 164); em sentido diferente, defendendo que se tratava, apenas, de

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 907

Actualmente, no domínio do Decreto-Lei n.º 24/2014, privilegia-se o


exercício através do preenchimento e do envio do correspondente modelo/
formulário (11.º/1), que deve ser facultado ao consumidor (4.º/1, j), segunda
parte). Todavia, tal não impede que o direito seja exercido por qualquer outra
forma (219.º do Código Civil), que corporize a declaração inequívoca de des-
vinculação156 (artigo 11.º/1), inclusivamente, de modo tácito, maxime mediante
a devolução do bem adquirido (11.º/2); admite-se, também, a transmissão da
declaração de desvinculação por via electrónica, no sítio do profissional na inter-
net, quando ele possibilite tal opção, devendo, neste caso, o fornecedor de bens
ou prestador de serviços acusar, em 24 horas e em suporte duradouro, a recep-
ção da declaração do consumidor (11.º/4)157.

V. O direito de livre desvinculação pode ser exercido dentro do prazo legal


de 14 dias (10.º/1), a contar nos termos gerais (279.º do Código Civil) e, em
regra, a partir da data da celebração do contrato (na prestação de serviços)158
ou da entrega da coisa159 (no caso da compra e venda) – artigo 10.º/1, a) e b)160

uma formalidade ad probationem, que não afastava a hipótese de o consumidor exercer por outras
formas o direito de livre desvinculação de um contrato celebrado à distância, vide Jorge Morais
Carvalho, Manual de Direito do Consumo (1.ª edição: 2013), cit., 135-137 e Os Contratos de Con-
sumo, cit., 397-399; neste mesmo sentido – perante a redacção então em vigor do artigo 16.º/2
do Decreto-Lei n.º 275/93, de 5 de Agosto – Januário Gomes, Sobre o “direito de arrependimento”
do adquirente de direito real de habitação periódica (time-sharing) e a sua articulação com direitos simila-
res noutros contratos de consumo, cit., 74; cfr., também, com solução equivalente, Enrique Rubio
Torrano, Contratación a distancia y protección de los consumidores en el Derecho comunitário; en particular,
el desistimiento negocial del consumidor, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 4, 2002, 59 ss (75).
156 Neste sentido, Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 585.

157 Cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 175.

158
O regime legal anterior era, neste ponto, mais favorável ao consumidor, pois o prazo podia
começar a contar apenas na data do início da prestação de serviços ao consumidor, quando esta
fosse posterior (artigo 18.º/1 do Decreto-Lei n.º 143/2001).
Sobre o início da prestação de serviços, nos respectivos contratos, durante o prazo para exercício
do direito de livre desvinculação, o regime actual estabelece regras especiais e inovadoras: artigo
15.º, que adiante será, novamente, focado, a propósito da imediata eficácia do contrato.
159 A lei usa a expressão “posse física dos bens”.

160 Nas subalíneas da alínea b) são reguladas situações menos frequentes.

Tratando-se de um contrato misto, com elementos da compra e venda e da prestação de serviços,


é de considerar que o prazo se inicia com a entrega da coisa, como defende o Professor Jorge
Morais Carvalho (Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 173), exemplificando com a aqui-
sição de um telemóvel pré-pago.

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908 Carlos Lacerda Barata

– valendo, naturalmente, a entrega ao consumidor (credor), mas também a


realizada a terceiro (que não um transportador) por si indicado161.
O prazo de 14 dias opera como mínimo legal: ele pode ser alargado, por
acordo das partes (10.º/4).
Acresce que, como já se referiu, a falta de informação ao consumidor, quanto
à existência do direito de, livremente, se desvincular do contrato, quanto ao
prazo, quanto ao procedimento para o exercício ou a falta de disponibilização
do formulário para o efeito (4.º/1, j)) tem como consequência um expressivo
alongamento do prazo de 14 dias por mais 12 meses (10.º/2); se, porventura, do
decurso dos 12 meses, a informação em causa for transmitida ao consumidor,
este disporá de 14 dias para se desvincular do contrato, contando-se este prazo
a partir da recepção da informação, tardiamente prestada (10.º/3)162.

VI. A declaração de (livre) “resolução” é uma declaração recipienda163.


Porém, em desvio ao artigo 224.º/1, primeira parte, do Código Civil, opera,
aqui, a teoria da expedição, para efeitos de determinar se o direito foi tempestiva-
mente exercido. Com efeito, a lei estipula que o direito se considera exercido
desde que a declaração seja enviada antes do termo do prazo: artigo 11.º/3 do
Decreto-Lei n.º 24/2014.

VII. O direito de livre desvinculação é um direito irrenunciável164 e de


exercício incondicionável, apresentando-se, assim, como um direito indispo-

161 Neste circunstancialismo, evidentemente, a prestação feita a terceiro liberará o devedor (artigo
770.º/a) do Código Civil).
162 Trata-se de um dever pré-contratual, cuja prestação, na situação em causa, o fornecedor de

bens ou prestador de serviços só virá a realizar na vigência do contrato; ainda assim, a letra do
artigo 10.º/3 refere-se à hipótese de, no decurso dos 12 meses, o profissional “cumprir o dever de
informação pré-contratual”.
Para o Direito alemão, quanto ao regime paralelo ao da lei portuguesa, cfr. o § 356/3 BGB; vide
Christian Alexander, Verbraucherschutzrecht, cit., 93-94; Christoph Schärtl, Der verbraucher-
schützende Widerruf bei außerhalb von Geschäftsräumen geschlossenen Verträgen und Fernabsatzverträgen,
cit., 580; Christiane Wendehorst, Das neue Gesetz zur Umsetzung der Verbraucherrechterichtlinie,
cit., 582. No âmbito do correspondente regime legal francês, vide Jean Calais-Auloy/Henri
Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 585, com referência ao artigo L 121-21/1 do Code de
la consommation (na versão em vigor após 1 de Julho de 2016: artigo L 221-20 do mesmo código).
163 Afi rma o contrário Fernanda Neves Rebelo, O direito de livre resolução no quadro geral do regime

jurídico da protecção do consumidor – Com as alterações introduzidas pelo DL n.º 82/2008, de 20 de Maio,
cit., 66. No sentido do texto, cfr., nomeadamente, Pedro Romano Martinez, Da Cessação do
Contrato, 3.ª ed., cit., 157.
164 Cfr. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., cit., 124, José Carlos

Brandão Proença, A desvinculação não motivada nos contratos de consumo: um verdadeiro direito de

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 909

nível, estando vedada, designadamente, a estipulação de qualquer “preço de


arrependimento”165, por força do disposto no artigo 11.º/7. Uma cláusula em
sentido contrário será nula, operando, então, a redução do contrato166.
O regime do artigo 11.º/7 é dobrado e ampliado pelo disposto no n.º 2
do artigo 29.º, que consagra a (relativa/unilateral) injuntividade das normas do
Decreto-Lei que atribuam direitos ao consumidor: têm-se por não escritas as
cláusulas de renúncia a esses direitos ou que estipulem uma indemnização ou
qualquer penalização pelo seu exercício.
Nada obsta, porém, à validade de estipulações contratuais, que, no con-
fronto com as soluções legais, sejam mais favoráveis ao consumidor, numa
lógica de injuntividade unilateral com função protectora deste167.

VIII. A declaração de desvinculação, válida e eficaz, tem como principal


efeito a extinção do contrato e a inerente liberação das partes, quanto às obriga-
ções contratuais que dele resultavam (11.º/6)168. Tudo provocado por decisão
unilateral e livre, do consumidor, no exercício do correspondente direito.

resolução?, ROA, 70, cit., 242 e Carolina Cunha, Métodos de venda a retalho fora do estabelecimento:
regulamentação jurídica e protecção do consumidor, cit., 301-302. No mesmo sentido, perante a legis-
lação francesa, Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 586,
Christian Larroumet/Sarah Bros, Les obligations. Le contrat, 7.ª ed., cit., 367, Raymonde
Baillod, Le droit de repentir, cit., 240 e, à luz do Direito italiano, Cesare Ruperto (dir.), La
Giurisprudenza sul Codice Civile coordinata con la dottrina, Libro IV, Delle Obbligazioni, Tomo III, a
cura di Renato Sgroi, Giuffrè, Milano, 2005, 1707, Maria Carla Cherubini, Sul c.d. diritto di
ripensamento, cit., 698-699, A. Rosboch, Conclusione del contratto, cit., 905.
165 Cfr., Januário Gomes, Sobre o “direito de arrependimento” do adquirente de direito real de habitação

periódica (time-sharing) e a sua articulação com direitos similares noutros contratos de consumo, cit., 76 e
82 e José Carlos Brandão Proença, A desvinculação não motivada nos contratos de consumo: um ver-
dadeiro direito de resolução?, ROA, 70, cit., 237.
166
Assim, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 5.ª ed., cit., 124 (a propósito do
correspondente artigo 18.º/4 do Decreto-Lei n.º 143/2001, que tomava as cláusulas como não
escritas).
167
Vide Vincenzo Roppo, Il Contratto, 2.ª ed., cit., 867.
168
A este efeito acrescenta o artigo 11.º/6 a extinção de “toda a eficácia da proposta contratual,
quando o consumidor tenha feito tal proposta”. Este segmento decorrerá da transposição do artigo
12.º/b) da Directiva, segundo o qual o exercício do “direito de retractação” leva à “extinção das
obrigações das partes de celebrar o contrato”, “nos casos em que tenha sido apresentada uma
oferta pelo consumidor”. Também no projecto de Código Europeu dos Contratos, da Academia
dos Jusprivatistas Europeus (Pavia), se prevê o correspondente direito do consumidor, cujo exer-
cício terá efeito extintivo do contrato ou da proposta por si efectuada (artigo 159/1, conjugado
com o artigo 9/1).
Porém, à luz do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 24/2014, segundo o qual o direito de livre
desvinculação opera no âmbito de um contrato já celebrado, não se vê qual seja o conteúdo útil

RDC I (2016), 4, 861-919

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910 Carlos Lacerda Barata

Mas da “resolução” resulta, ainda, uma relação de liquidação169 do contrato,


com os respectivos efeitos:
Para o consumidor, avulta a obrigação de restituição do bem, que lhe haja
sido entregue, a qual pressupõe a de o conservar (13.º/3). O consumidor deverá
efectuar a devolução no prazo de 14 dias, a partir da comunicação da “resolu-
ção” do contrato170, caso o fornecedor não se disponibilize para, ele próprio,
levantar o bem objecto da restituição (13.º/1).
Em regra, impende sobre o consumidor o encargo de suportar os custos da
devolução (13.º/2). Apenas excepcionalmente recairá sobre o fornecedor do
bem171:
– Quando haja acordo nesse sentido (13.º/2, a));
– Quando o fornecedor tenha incumprido o correspondente dever pré-
-contratual de informação, nos termos já referidos (13.º/2, b); cfr. artigo
4.º/1, l));
– Quando o bem tenha sido entregue no domicílio do consumidor, no
momento da celebração do contrato172, e não possa, pela sua natureza
ou dimensão, ser devolvido por correio, cabendo, então, ao fornecedor
recolhê-lo, suportando o respectivo custo (12.º/5).

da referida prescrição legal contida no n.º 6 do artigo 11.º; cfr. Jorge Morais Carvalho/João
Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação
ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 107.
169 No sentido em que a expressão é utilizada por José Carlos Brandão Proença, A Resolução

do Contrato no Direito Civil. Do enquadramento e do regime, Coimbra Edit., 1982 (edição 1996), 22 e
160 ss. Ao analisar, especificamente e com profundidade, a livre desvinculação do consumidor,
o ilustre Professor, explicando que o exercício do direito implica uma “liquidação restitutiva”,
identifica, em conclusão, uma “liquidação resolutiva”, “ mais complexa” e “mais intensa” do que
a comum resolução contratual: José Carlos Brandão Proença, A desvinculação não motivada nos
contratos de consumo: um verdadeiro direito de resolução?, ROA, 70, cit., 243 e 269.
170 No domínio do Decreto-Lei n.º 143/2001, vigorava um prazo de 30 dias, a contar da recep-

ção dos bens (19.º/3).


171 Em sentido contrário, afi rmando que, na falta de convenção, o custo da devolução do bem deve

ser suportado pelo profissional, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed.,
cit., 181 e Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e
fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 110 e 114.
172 Ao invés das duas anteriores (comuns aos contratos celebrados fora do estabelecimento e à dis-

tância), está hipótese só vale no âmbito dos contratos celebrados fora do estabelecimento comer-
cial (cfr. 12.º/5).

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 911

IX. O exercício do direito de livre desvinculação não prejudica o direito


do consumidor de inspeccionar e manipular os bens recebidos173, desde que o
faça com o devido cuidado e dentro dos limites habitualmente admitidos em
estabelecimento comercial, sob pena de responder pelos danos causados, nos
termos do artigo 14.º/1 e 2.
Todavia, como vimos antes, nesta matéria, a lei estabelece que “em caso
algum, o consumidor é responsabilizado pela depreciação do bem quando o
fornecedor não o tiver informado do seu direito de livre resolução” (14.º/3),
numa solução normativa que – com a amplitude com que é formulada (“em caso
algum”) – se mostra manifestamente excessiva e desajustada174.

X. Por outro lado, o consumidor tem direito ao reembolso dos valores


que tenha pago, no prazo de 14 dias, a contar da data em que a contraparte
tenha sido informada175 do exercício do direito de livre desvinculação (12.º/1),
devendo a restituição ser efectuada pelo mesmo meio que tenha sido usado,
pelo consumidor, para efectuar o(s) pagamento(s), salvo acordo expresso em
contrário e desde que o consumidor não incorra em custos (12.º/2)176.
Enquanto o consumidor não proceder à devolução do bem, o fornecedor
deste pode, licitamente, não cumprir a sua obrigação de devolução das quantias
pagas: é o que resulta do artigo 12.º/4 (que, na letra, permite, nestas circuns-
tâncias, a “retenção” do reembolso), numa lógica própria da sinalagmaticidade

173 Saliente-se que, em regra, o consumidor é o proprietário da coisa adquirida: artigo 408.º/1
do Código Civil.
174 Admita-se, a título de exemplo, o caso de um consumidor que, não obstante a falta de infor-

mação, pela contraparte, conhece perfeitamente a existência e todos os contornos do seu direito
de livre desvinculação, que acaba por exercer, depois de experimentar a coisa adquirida, danifi-
cando-a, com uma conduta grosseiramente descuidada.
175
Embora para o eficaz exercício do direito de livre desvinculação valha a expedição da corres-
pondente declaração (11.º/3; cfr. supra), para efeitos da obrigação de o profissional restituir os
montantes pagos, releva o momento em que este seja informado, o que implica a recepção ou o
conhecimento da declaração de desvinculação (de acordo com a regra do artigo 224.º/1, primeira
parte, do Código Civil).
Cfr. José Carlos Brandão Proença, A desvinculação não motivada nos contratos de consumo: um
verdadeiro direito de resolução?, ROA, 70, cit., 241. Cfr. também Jorge Morais Carvalho/João
Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação
ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 109, que, todavia, apenas se referem, generica-
mente, ao artigo 224.º do Código Civil (de igual modo: Jorge Morais Carvalho, Manual de
Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 180).
176 Cfr. o considerando 46 da Directiva 2011/83/UE, onde se indica, nomeadamente, que o reem-

bolso não deverá ser feito através de nota de crédito (salvo – numa hipótese pouco comum – se
esta via tiver sido a utilizada pelo consumidor).

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912 Carlos Lacerda Barata

funcional, que justifica o apelo à exceptio non adimpleti contractus (artigo 428.º do
Código Civil), a valer, por extensão legal do regime (artigo 290.º do Código
Civil), para lá do estrito âmbito das relações contratuais sinalagmáticas, abran-
gendo as obrigações recíprocas de restituição, decorrentes da resolução dos
contratos (cfr. 433.º e 289.º ss do Código Civil)177.
Em caso de mora no cumprimento da obrigação de reembolso, o profis-
sional fica obrigado a devolver em dobro a quantia devida, no prazo de 15 dias
úteis. Esta consequência opera à margem do direito do consumidor a indem-
nização pelos danos (patrimoniais ou não patrimoniais) sofridos – artigo 12.º/6
– configurando, assim, uma verdadeira sanção civil178.

XI. A declaração de desvinculação, emita pelo consumidor, relativamente


a um contrato celebrado fora do estabelecimento operará, também, a extinção
dos contratos acessórios179, coligados com o contrato “resolvido”, nos termos

177 Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, Direito das Obrigações. Cumpri-
mento e não-cumprimento. Transmissão. Modificação e extinção, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, 268
e 280, defendendo a aplicabilidade da exceptio a situações de fonte não contratual que impliquem,
contudo, uma sinalagmaticidade funcional. Cfr., também, Inocêncio Galvão Telles, Direito das
Obrigações, 7.ª ed., Coimbra Edit., Coimbra, 1997, 454, nota 1 – admitindo o saudoso Professor
uma “excepção paralela à de não cumprimento do contrato (…) quando surge situação análoga à dos
contratos sinalagmáticos”, nomeadamente, quanto a obrigações recíprocas de restituição decorrentes,
por exemplo, da resolução dos contratos – bem como José de Oliveira Ascensão, Direito Civil.
Teoria Geral, vol. II, Acções e factos jurídicos, 2.ª ed., Coimbra Edit., 2003, 390 e Pedro Romano
Martinez, Direito das Obrigações. Apontamentos, 4.ª ed., AAFDL, Lisboa, 2014, 292.
Sobre o tema, vide, também, José João Abrantes, A excepção de não cumprimento do contrato no
Direito civil português. Conceito e fundamento, Almedina, Coimbra, 1986, com posição (pelo menos,
aparentemente) diferente (cfr. p. 67, nota 46). Cfr. Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-
-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei
n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 111.
178
Cfr., com idêntica solução, o artigo 9.º-B/8 da LDC, bem como o artigo 19.º/2 do revogado
Decreto-Lei n.º 143/2001.
No sentido do texto, considerando que a obrigação de devolução em dobro tem carácter san-
cionatório da mora, RP 27-Abr.-2015 (Carlos Gil) (proc. n.º 4257/13.9TBMTS.P1), in http://
www.dgsi.pt.
Cfr. Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo, cit., 417 e Jorge Morais Carvalho/
João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Ano-
tação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, cit., 112.
179 Considera-se acessório o contrato ao abrigo do qual o consumidor adquire bens ou serviços

no âmbito de um contrato celebrado fora do estabelecimento (ou à distância), quando os bens


ou serviços são fornecidos pelo profissional ou por um terceiro, com base em acordo entre estes
(cfr. artigo 3.º/e)).
Cfr. RL 17-Abr.-2008 (Ezagüy Martins) (proc. 875/2008-2), in http://www.dgsi.pt.

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 913

do artigo 16.º (com expressa ressalva do regime dos contratos de crédito aos
consumidores).
De acordo com a letra da mesma disposição legal, o exercício do “direito
de livre resolução” implica a (impropriamente chamada) “resolução automática”
dos contratos acessórios. Estes cessam, portanto, automaticamente: um modo
de extinção próprio da caducidade dos contratos180.
Esta situação não envolve qualquer obrigação de indemnização ou de paga-
mento de quaisquer encargos, exceptuados os casos previstos nos artigos 12.º/3
e 13.º, por força do citado artigo 16.º181.

XII. A consagração legal do chamado “direito de livre resolução” suscita


várias questões acerca da sua configuração dogmática.
Trata-se de um direito potestativo182, pelo qual o consumidor, por declara-
ção unilateral (e imotivada), põe termo ao contrato.

180 Neste sentido, José Carlos Brandão Proença, A desvinculação não motivada nos contratos de

consumo: um verdadeiro direito de resolução?, ROA, 70, cit., 243-244.


181 Na versão originária, o artigo 16.º ressalvava os “casos previstos nos artigos 11.º e 12.º”, o que

constituía um manifesto lapso, ultrapassado pela actual redacção, dada pela Lei n.º 47/2014, de
28 de Julho.
182 Vide Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, cit., 109; José Carlos Brandão

Proença, A desvinculação não motivada nos contratos de consumo: um verdadeiro direito de resolução?,
ROA, 70, cit., 234, 248 e 257; Januário Gomes, Sobre o “direito de arrependimento” do adquirente
de direito real de habitação periódica (time-sharing) e a sua articulação com direitos similares noutros con-
tratos de consumo, cit., 81 e Assunção fidejussória de dívida. Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como
fiador, cit., 756; José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, cit., 328; Fernando de
Gravato Morais, Contratos de crédito ao consumo, cit., 167; Fernanda Neves Rebelo, O direito
de livre resolução no quadro geral do regime jurídico da protecção do consumidor – Com as alterações introdu-
zidas pelo DL n.º 82/2008, de 20 de Maio, cit., 66; Alexandra Teixeira de Sousa, O direito de
arrependimento nos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento: algumas notas, cit., 29 e 31;
Christian Alexander, Verbraucherschutzrecht, cit., 54; Janko Büsser, Das Widerrufsrecht des
Verbrauchers. Das verbraucherschützende Vertragslösungsrecht im europäischen Vertragsrecht, Peter Lang,
2001, 201 (por referência à maioritária doutrina germânica); Matteo Magri, Le vendite agressive.
Contratti a distanza e negoziati fuori dei locali commerciali, cit., 308; Enrico del Prato, Dieci lezioni
sul contratto, CEDAM, 2011, 76; Valentina Frediani, I danni al consumatore, in I danni da inadem-
pimento, professionisti e consumatori, a cura di Luigi Viola, Halley Edit., 2008, 251; Raymonde
Baillod, Le droit de repentir, cit., 241-242; Patrick Wéry, Droit des obligations, vol. 1, Théorie générale
du contrat, 2.ª ed., Larcier, 2011, 216; Larrosa Amante, El derecho de desistimiento en la contratación
de consumo, cit., 145-146 e 436; Enrique Rubio Torrano, Contratación a distancia y protección de
los consumidores en el Derecho comunitário; en particular, el desistimiento negocial del consumidor, cit., 72;
Lete del Río/Lete Achirica, Derecho de Obligaciones, vol. II, Contratos, cit., 231; Alexandre
Junqueira Gomide, Direito de arrependimento nos contratos de consumo, cit., 55. Na jurisprudência,
vide STJ 28-Abr.-2009 (Fonseca Ramos) (proc. n.º 2/09.1YFLSB), in http://www.dgsi.pt (a
propósito do “direito de arrependimento” no crédito ao consumo).

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914 Carlos Lacerda Barata

O exercício do direito de livre desvinculação opera, pois, como condição


(imprópria) legal e resolutiva183: a ocorrer, conduzirá à cessação da eficácia do
contrato.
Com efeito, em face do regime traçado pelo Decreto-Lei n.º 24/2014, é
de concluir que não se trata de um direito de revogação da declaração negocial
do consumidor, cuja actuação se inseriria na fase de formação do contrato, que,
assim, ficaria suspensa durante o prazo para o exercício do direito184.

183 Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Os Contratos de Consumo, cit., 416 e 453 e Manual de
Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 178. Em termos próximos, vide Pedro Romano Martinez, Da
Cessação do Contrato, 3.ª ed., cit., 270 (considerando que o negócio é celebrado com cláusula reso-
lutiva, em que a resolução tem uma base legal), Januário Gomes, Sobre o “direito de arrependimento”
do adquirente de direito real de habitação periódica (time-sharing) e a sua articulação com direitos similares
noutros contratos de consumo, cit., 85 (referindo a condição resolutiva); cfr., também, Reinhard
Zimmermann, The New German Law of Obligations. Historical and Comparative Perspectives, cit., 214
e – para uma equiparação entre o direito de desvinculação do consumidor e a “condição resolutiva
meramente potestativa e unilateral” – Camilla Ferrari, Ipotesi di qualificazione per il «recesso»
del consumatore, RDCiv., LVI, n.º 1, P. II, 2010, 1 ss, em especial, 22 ss, 33 ss, 38.
184 Perante os dados do Direito francês, parte da doutrina defende que a “retractação” se situa

no período de formação do contrato, que, durante o prazo para o exercício do direito, “não está
definitivamente concluído”, sendo o consentimento manifestado pelo consumidor meramente
“embrionário”, só se completando com o decurso do período de reflexão. Vide Jean Calais-
-Auloy, L’influence du droit de la consommation sur le droit civil des contrats, cit., 244, Jean Calais-
-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 572 e 586, Raymonde Baillod, Le
droit de repentir, cit., 235 ss e 241.
Com orientação contrária, vide, nomeadamente, Dimitri Houtcieff, Droit des contrats, 2.ª ed.,
Larcier, Bruxelles, 2016, 103-104, distinguindo as situações em que o legislador consagra délais
de réflexion, que operam a montante do consentimento – não valendo a aceitação de uma pro-
posta, pelo seu destinatário, antes do decurso de determinado prazo – actuando, portanto, na
fase de formação do contrato, e aquelas em que a lei determina délais de rétractation, que vigoram
a jusante do acordo, já constituído, levando, então, o exercício do correspondente direito à extin-
ção do contrato; segundo Houtcieff, o regime dos contratos celebrados fora do estabelecimento
corresponderá a esta última hipótese. Neste sentido, vide, igualmente, Philippe Malaurie/
Laurent Aynès/Pierre-Yves Gautier, Droit des Contrats Spéciaux, 8.ª ed., cit., 73-75, considerando
a desvinculação do consumidor, no contrato celebrado do estabelecimento, como uma retractação
posterior à formação do contrato e não uma manifestação de uma reflexão prévia.
Sobre o tema, nos quadros do ordenamento francês, cfr. Jean-Pierre Pizzio, Un apport législatif en
matière de protection du consentement. La loi du 22 décembre 1972 e la protection du consummateur solicité
à domicilie, cit., em especial, 80 ss, Stéphane Detraz, Plaidoyer pour une analyse fonctionnelle du droit
de rétractation en droit de la consommation, JurisClasseur, Contrats – Concurrence – Consommation,
n.º 5, Mai 2004, 7 ss (12-13), Valentina Jacometti, Terminologia giuridica e armonizzazione del
Diritto Europeo dei contratti – Ius poenitendi del consumatore nelle Direttive Comunitarie e nell’ordinamento
francese, cit., principalmente, 590 ss, Janko Büsser, Das Widerrufsrecht des Verbrauchers. Das ver-
braucherschützende Vertragslösungsrecht im europäischen Vertragsrecht, cit., 206 ss e, com múltiplas indi-

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 915

Diferentemente, o direito em jogo opera a posteriori185, no âmbito de um


contrato, já constituído e eficaz186, como resulta, inequivocamente das regras
legais em vigor, nomeadamente, do disposto na primeira parte do n.º 6 do

cações, Olivier Penin, La distinction de la formation et de l’exécution du contrat. Contribution à l’étude


du contrat acte de prévision, LGDJ, Paris, 2012, 281 ss.
A contraposição entre prazo de reflexão e prazo de retractação consta, expressamente, do novo artigo
1122 do Código Civil francês, resultante da “Reforma do Direito dos contratos, do regime geral
e da prova das Obrigações”, aprovada pela Ordonnance n.º 2016-131, de 10 de Fevereiro de 2016,
com entrada em vigor em 1 de Outubro de 2016 (artigo 9).
185 Sobre os modelos já experimentados, nas legislações, sobre a matéria – em especial: eficácia

(do contrato) suspensa ou eficácia resolúvel – vide, com várias indicações, Carlos Ferreira de
Almeida, Direito do Consumo, cit., 110 ss. Cfr. também Jorge Morais Carvalho, Os Contratos
de Consumo, cit., 452-453, Alexandre Junqueira Gomide, Direito de arrependimento nos contratos
de consumo, cit., 62 ss e, com várias indicações, Paolo Gallo, Trattato del Contratto, t. 1, La forma-
zione, cit., 831 ss.
186 Cfr. Januário Gomes, Sobre o “direito de arrependimento” do adquirente de direito real de habita-

ção periódica (time-sharing) e a sua articulação com direitos similares noutros contratos de consumo, cit.,
83, Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3.ª ed., cit., 268 (nota 571) e 270, José
Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, cit., 327; cfr., também no mesmo sentido,
Marisa Dinis, Contratos celebrados à distância e contratos celebrados fora do estabelecimento comercial – Da
Diretiva à transposição para o ordenamento jurídico português, cit., 25.
Em sentido concordante, perante o ordenamento italiano, vide Ubaldo Perfetti, Il contratto in
generale, II – La conclusione del contratto, cit., 87-88 e Paolo Gallo, Trattato del Contratto, t. 1, La
formazione, cit., 838. Na doutrina espanhola, vide Gemma Botana García, Los contratos realizados
fuera de los establecimientos mercantiles y la protección de los consumidores, cit., 264, Larrosa Amante,
El derecho de desistimiento en la contratación de consumo, cit., 145-148, 181-182 e 436, Enrique Rubio
Torrano, Contratación a distancia y protección de los consumidores en el Derecho comunitário; en particu-
lar, el desistimiento negocial del consumidor, cit., 72 e Antonio Gálvez Criado, El derecho de desis-
timiento en los contratos indefinidos y en los contratos con consumidores en la Propuesta de Modernización
del Código Civil, in Derecho Privado Europeo y Modernización del Derecho Contractual en España, dir.
Albiez Dohrmann, coord. Palazón Garrido/Méndez Serrano, Atelier, Barcelona, 2011,
534-535 (considerando quer a legislação em vigor, quer a Proposta de Modernização do Código
Civil espanhol). No âmbito do actual regime jurídico alemão, vide Christian Alexander, Ver-
braucherschutzrecht, cit., 55.
No mesmo sentido, vide Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 176
ss, excepto no que toca aos contratos de prestação de serviços. Quanto a estes, considera o Autor
que, por força do artigo 15.º/1 do Decreto-Lei n.º 24/2014, “interpretado a contrario sensu”, os
efeitos do contrato não se produzem de imediato, ficando suspensos durante o decurso do prazo
para o exercício do direito de livre desvinculação (cfr. Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit.,
178-180; cfr., igualmente, Jorge Morais Carvalho/João Pedro Pinto-Ferreira, Contratos
celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial – Anotação ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de
Fevereiro, cit., 120-122). Discordamos deste entendimento: embora dentro do condicionalismo
previsto no n.º 1 do artigo 15.º, o consumidor pode exigir a imediata realização da prestação do
serviço contratado, não podendo a contraparte opor-se a esta pretensão. Ora, o prestador de ser-
viços que, nesta circunstância, durante o “período de reflexão” do consumidor, realize a sua pres-

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916 Carlos Lacerda Barata

artigo 11.º (“O exercício do direito de livre resolução extingue as obrigações de


execução do contrato…”)187. O exercício do direito provocará, pois, a cessação da
relação contratual pré-existente, tipicamente, em termos retroactivos, ou seja,
com a eficácia extintiva, que, em regra, caracteriza a resolução188 (artigos 433.º
e 434.º do Código Civil). Porém, em termos qualificativos, a simples recondu-
ção a esta forma de cessação dos contratos não parece aceitável189.

XIII. Na identificação da natureza da figura190, os aspectos terminológicos


pouco ajudam191: pelo contrário, são desconcertantes. Com efeito, ao direito
em causa as fontes vêm associando as designações mais díspares.

tação, estará a praticar um acto devido, cumprindo (não antecipadamente) a respectiva obrigação
contratual: nesse momento, o contrato existe e já é eficaz.
187 Idêntica orientação foi adoptada – no âmbito dos projectos de Direito europeu dos contratos

– no Draft Common Frame of Reference (DCFR) (“Quadro Comum de Referência), que, no livro
II, capítulo V, contém regras sobre o right of withdrawal, em duas secções, sendo a primeira rela-
tiva ao exercício e aos efeitos do direito (artigos 5:101 – 5:106) e a segunda dedicada aos contratos
celebrados fora do estabelecimento (artigo 5:201) e aos contratos de time-sharing (artigo 5:202);
lê-se no artigo 5:105/(i): «Withdrawal terminates the contractual relationship and the obligations of both
parties under the contract.».
O texto pode ser confrontado em von Bar/Clive/Schulte-Nölke, Principles, Definitions and
Model Rules of European Private Law. Draft Common Frame of Reference (DCFR), Outline Edition,
Sellier european law publishers, Munich, 2009, 201 ss (202).
188 No sentido de que o “direito de arrependimento”, aqui em causa, segue o regime da resolu-

ção, vide Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3.ª ed., cit., 58-59 e 157 e Direito
das Obrigações. Apontamentos, 4.ª ed., cit., 289-290, tratando o “arrependimento” como um tipo
ou modalidade de resolução, a que se aplicam os efeitos desta (291 ss); com muito interesse, cfr.,
também, o já citado estudo de Januário Gomes, Sobre o “direito de arrependimento” do adquirente de
direito real de habitação periódica (time-sharing) e a sua articulação com direitos similares noutros contratos
de consumo, 74 e 83.
Em sentido diferente, não reconduzindo os efeitos do “arrependimento do consumidor” à retroacti-
vidade da “verdadeira resolução contratual”, vide José Carlos Brandão Proença, A desvinculação
não motivada nos contratos de consumo: um verdadeiro direito de resolução?, ROA, 70, cit., em especial, 269.
189
Neste sentido, designadamente, Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3.ª ed.,
cit., 78, utilizando «resolução» (sem prescindir das aspas), Jorge Morais Carvalho, Os Contratos
de Consumo, cit., 456-457 e Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 126, Elsa Dias Oliveira,
A protecção dos consumidores nos contratos celebrados através da internet, cit., 109, Fernanda Neves
Rebelo, O direito de livre resolução no quadro geral do regime jurídico da protecção do consumidor – Com as
alterações introduzidas pelo DL n.º 82/2008, de 20 de Maio, cit., 67 (embora considerando a resolução
como a figura mais próxima: p. 68).
190 Sem prejuízo das obras adiante referidas, vide, especialmente, Januário Gomes, Sobre o “direito

de arrependimento” do adquirente de direito real de habitação periódica (time-sharing) e a sua articulação com
direitos similares noutros contratos de consumo, cit., 70 ss e José Carlos Brandão Proença, A desvin-
culação não motivada nos contratos de consumo: um verdadeiro direito de resolução?, cit., passim.
191 Cfr. Valentina Jacometti, Terminologia giuridica e armonizzazione del Diritto Europeo dei con-

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 917

Num breve apanhado: na Directiva 85/577/CEE: direito de renúncia (5.º,


7.º); no revogado Decreto-Lei n.º 272/87: resolução (3.º/1, g), 4.º/1, 5.º/1) e
direito de desistência (11.º/4, 12.º); no também revogado Decreto-Lei n.º 359/91
(crédito ao consumo): período de reflexão e direito de revogação (8.º); no Decreto-
-Lei n.º 275/93 (direito real de habitação periódica): direito de resolução (16.º,
19.º, 49.º); na Lei n.º 24/96 (LDC): direito de retractação, expressão que, com as
alterações ditadas pela Lei n.º 47/2014, foi substituída por direito de livre resolução
(9.º/7); na Directiva 97/7/CE: direito de rescisão (6.º); no revogado Decreto-Lei
n.º 143/2001: direito de livre resolução (6.º, 7.º, 8.º) e direito de resolução (18.º,
19.º); no Decreto-lei n.º 95/2006 (contratos à distância relativos a serviços
financeiros): direito de livre resolução (19.º ss); no Decreto-Lei n.º 357-D/2007
(contratos de investimento em bens corpóreos): direito de resolução (7.º); no
Decreto-Lei n.º 72/2008 (LCS): livre resolução (118.º); na Directiva 2008/48/
CE (crédito aos consumidores): direito de retractação (14.º); no Decreto-Lei n.º
133/2009 (idem): direito de livre revogação (17.º); no Decreto-Lei n.º 61/2011
(viagens organizadas): direito de rescisão (26.º); na Directiva 2011/83/UE: direito
de livre retractação (9.º ss); no Decreto-Lei n.º 24/2014: direito de livre resolução
(10.º ss).
A terminologia usada no Decreto-Lei n.º 24/2014 – direito de livre resolução
– não é a mais adequada, sendo, em si mesma, enganadora192, devendo, por
isso, ser evitada193: em sentido próprio, a resolução contratual não é livre, mas
condicionada (432.º/1 do Código Civil) e vinculada, à verificação de um fun-
damento, que, em regra, corresponde ao incumprimento definitivo culposo,
imputável à contraparte (801.º do mesmo código). É certo que, em vários
passos, a lei admite o “direito de livre resolução”, mas, quando assim sucede,

tratti – Ius poenitendi del consumatore nelle Direttive Comunitarie e nell’ordinamento francese, cit., 570
ss, 573 ss e 597-598.
192
Veja-se António Pinto Monteiro/Mafalda Miranda Barbosa, Harmonização da linguagem
jurídica ao nível do Direito contratual europeu. Breves notas, Estudos de Direito do Consumidor, n.º 8,
2006/2007, 109 ss (124), que alertam para a circunstância de a expressão “direito de livre resolu-
ção” se prestar a confusões, por contrariar o sentido comum da resolução, que é fundamentada.
193 Em sentido diferente, veja-se Elsa Dias Oliveira, A protecção dos consumidores nos contratos cele-

brados através da internet, cit., 109, considerando a “terminologia interessante e inovadora” e que
“traduz de forma mais fiel a natureza da figura em causa” e Fernanda Neves Rebelo, O direito de
livre resolução no quadro geral do regime jurídico da protecção do consumidor – Com as alterações introduzidas
pelo DL n.º 82/2008, de 20 de Maio, cit., 70, sustentando que a designação direito de livre resolução
foi uma boa escolha do legislador.

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Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 917 10/01/17 11:25


918 Carlos Lacerda Barata

ele opera discricionariamente194, não tendo o consumidor que invocar qualquer


fundamento195.
Por outro lado: o carácter livre e discricionário é típico da revogação con-
tratual, a qual, todavia, em regra, em sentido estrito, é bilateral, circunstância
que desaconselha que, também, a ela se reconduza o direito aqui em causa196.
O “direito de livre resolução” não se inscreve, portanto, em nenhum dos
“clássicos” modos típicos de extinção dos contratos197, considerados, cada um
deles, no sentido mais rigoroso198.

194 Vide Jean Calais-Auloy/Henri Temple, Droit de la consommation, 9.ª ed., cit., 586; Stéphane
Detraz, Plaidoyer pour une analyse fonctionnelle du droit de rétractation en droit de la consommation, cit.,
7 e 11; Larrosa Amante, El derecho de desistimiento en la contratación de consumo, cit., 186; Enrique
Rubio Torrano, Contratación a distancia y protección de los consumidores en el Derecho comunitário;
en particular, el desistimiento negocial del consumidor, cit., 71; na doutrina portuguesa, José Carlos
Brandão Proença, A desvinculação não motivada nos contratos de consumo: um verdadeiro direito de
resolução?, ROA, 70, cit., 257.
195 O termo “livre” realça isto mesmo. Vide Fernando de Gravato Morais, Crédito aos consumi-

dores. Anotação ao Decreto-Lei n.º 133/2009, Almedina, Coimbra, 2009, 79; já em União de contratos
de crédito e de venda para o consumo, Almedina, Coimbra, 2004, 190-191, o mesmo Autor conside-
rou “discutível a qualificação proposta pelo legislador” (do Decreto-Lei n.º 143/2001), ao regular
o direito de “livre resolução”.
196 Com diferente entendimento, preferindo associar a livre resolução à retractação ou à revo-

gação, João Calvão da Silva, Banca, Bolsa e Seguros, tomo I, 4.ª ed., cit., 113 e José Carlos
Brandão Proença, A desvinculação não motivada nos contratos de consumo: um verdadeiro direito de
resolução?, ROA, 70, cit., maxime 260 e 270. Também o Professor António Menezes Cordeiro
se refere à possibilidade de o consumidor revogar o contrato (Direito Comercial, 4.ª ed., cit., 643).
197 Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 3.ª ed., cit., 124-127 e,

já antes, em Os Contratos de Consumo, cit., 455 ss. Este Autor opta por utilizar a expressão “direito
de arrependimento”, terminologia que (de modo muito aproximado) é também bem acolhida por
António Menezes Cordeiro, Da natureza civil do Direito do Consumo, cit., 639 (“direito à reflexão
e ao arrependimento”), A modernização do Direito das Obrigações, III – A integração da defesa do consu-
midor, cit., 718 e Tratado de Direito Civil, VI, 2.ª ed., cit., 110 (“direito de revogação” e “direito ao
arrependimento”) e Direito Comercial, 4.ª ed., cit., 643-644 (“direito ao arrependimento”), bem
como por Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, cit., 100 ss, 105 ss, Luís Menezes
Leitão, A protecção do consumidor contra as práticas comerciais desleais e agressivas, Estudos de Direito
do Consumidor, n.º 5, cit., 166, 167, 172, José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comer-
ciais, cit., 325 ss (utilizando “direito desistência ou de arrependimento”) e Mário Frota, Os con-
tratos de consumo – Realidades sóciojurídicas que se perspectivam sob novos influxos, RPDC, n.º 23, cit.,
23 ss (usando “direito de arrependimento” ou “direito de desistência”, embora em escrito mais
recente privilegie esta última designação – Contratos à distância. Regras em vigor a 13 de Junho de
2014, RPDC, n.º 78, cit., 10, 15 e 16 ss).
Também no sentido do texto, Elsa Dias Oliveira, A protecção dos consumidores nos contratos cele-
brados através da internet, cit., 109, Valentina Jacometti, Terminologia giuridica e armonizzazione del
Diritto Europeo dei contratti – Ius poenitendi del consumatore nelle Direttive Comunitarie e nell’ordinamento
francese, cit., 599, Larrosa Amante, El derecho de desistimiento en la contratación de consumo, cit., 148

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Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial 919

O chamado “direito de livre resolução” constitui, pois, uma causa especí-


fica, sui generis, de cessação do vínculo contratual, que, como tal, justifica uma
designação própria e autónoma das demais. Sugerimos a que temos vindo a
utilizar: direito de livre desvinculação. 198

9. Outros aspectos

I. Com especial relevância para as empresas que recorrem à contratação fora


do estabelecimento comercial, dispondo de serviços de distribuição comercial
ao domicílio, o artigo 20.º/1 do Decreto-Lei n.º 24/2014 consagra um dever
de elaborar e manter actualizada uma lista dos colaboradores que, em nome da
empresa, apresentam propostas, preparam ou concluem contratos no domicílio,
bem como um dever de habilitar esses colaboradores com documentos adequa-
dos à sua completa identificação, que devem ser exibidos perante o consumi-
dor (20.º/3). A relação dos colaboradores e os contratos ao domicílio devem
ser facultados, sempre que solicitados, às entidades competentes (DGAE, AC,
ASAE) (20.º/2). As infracções constituem contra-ordenações, puníveis com
coimas (31.º/1, a) e 31.º/2, a)), podendo acrescer a sanção acessória de perda
de objectos (32.º).

II. A lei regula, também, aspectos de conteúdo dos catálogos ou suportes


equiparados (revistas ou outro meio gráfico ou audiovisual), para os casos em
que o contrato celebrado fora do estabelecimento seja acompanhado ou prece-
dido da sua divulgação, indicando o artigo 21.º/1, em seis alíneas, os elementos
que devem integrar o respectivo conteúdo; determina o n.º 2 do mesmo artigo
que tais exigências não valem para mensagens publicitárias genéricas, que não
traduzam “uma proposta concreta para aquisição de um bem ou a prestação de
um serviço”.

e 435-436 e, perante o artigo 49 do Código brasileiro, Cláudia Lima Marques, Contratos no


Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais, 4.ª ed., cit., 710.
198 A caducidade e a denúncia, evidentemente, estão aqui fora de causa. Sobre os vários modos de

cessação do contrato, veja-se, especialmente, Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Con-


trato, 3.ª ed., cit..

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa
Especial de Macau: (breves) subsídios para o enquadramento
jurídico da questão das “outstanding chips” e para a
distribuição dinâmica do ónus da prova: um “admirável
mundo novo” no gaming?
DR. HUGO LUZ DOS SANTOS*
1

Sumário: I) Breve descrição da problemática das “outstanding chips” nos casinos


da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM); segue, o accrual method, o
matching principle e a current taxation of Outstanding Chips – o settlement entre o IRS
norte-americano e o Eldorado Hotel Associates (Order Adjusting Partnership Income
at 3, Eldorado Hotel Associates v. Comm’r T. C. No. 2862-95 (April 1, 1996). II)
A legitimação jurídico-processual da current taxation of Outstanding Chips: a distribuição
dinâmica do ónus da prova e a teoria das esferas de risco. III) A proporcionalidade (Verhält-
nismä&igkeitsgrundsatz) enquanto forma de legitimação jurídico-constitucional (artigo
6.º e 103.º, da Lei Básica de Macau) da current taxation of Outstanding Chips – a Lei
da Ponderação e Fórmula do Peso (Weight formula); segue, a doutrina norte-americana
do pragmatismo jurídico (legal pragmatism) – brevíssimas notas.

Palavras-chave: outstanding chips; accrual method; matching principle; distribuição dinâ-


mica do ónus da prova; teoria das esferas de risco; current taxation of Outstanding Chips;
proporcionalidade em sentido estrito; Lei da Ponderação; Fórmula do Peso (Weight formula);
pragmatismo jurídico (legal pragmatism); princípio da dignidade da pessoa humana.

Abstract: This scientific article collimates to the analysis of the legal framework
of gaming and betting contracts in Macau, mainly regarding the (pressing) question of
“outstanding chips”. Based on this doctrinal article some ideas to resolve the issue of
“outstanding chips” have been pointed out, recommending in particular the mobi-

*
Magistrado do Ministério Público.

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922 Hugo Luz dos Santos

lization to the legal framework of gaming and betting contracts in casinos of Special
Administrative Region of Macau, of the doctrinal category of dynamic distribution of
the burden of proof and the theory of the risk levels; regarding, specifically, the (candent)
issue of dynamic distribution of the burden of the proof that is imposed on the casinos
of Macau, enacted in the procedure charge of proving that the liquidation of tax revenue
due to the National Treasury of the Special Administrative Region of Macau,
emerging from the quantitative determination of the outstanding chips is excessive and
whether it passes the test of the proportionality (Verhältnismäßigkeitsgrundsatz).

I. Breve descrição da problemática das “outstanding chips” nos casi-


nos da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM); segue,
o accrual method, o matching principle e a current taxation of Outstanding
Chips – o settlement entre o IRS norte-americano e o Eldorado Hotel
Associates (Order Adjusting Partnership Income at 3, Eldorado Hotel Asso-
ciates v. Comm’r T. C. No. 2862-95 (April 1, 1996)*

É bem conhecida, nos Estados Unidos da América, a temática das Outstan-


ding Chips for tax purposes.
Com efeito, essa específica temática foi analisada, muito recentemente, pela
doutrina norte-americana, que aqui acompanharemos de muito perto1.
Refere a aludida doutrina que “the Internal Revenue Service (“IRS”) has sought
ways to increase casinos’ tax liabilities by changing their use of an accouting method that
allows the casinos to exclude from income large ammounts of cash they have on hand
at the end of the year2. These large amounts of cash on hand result from the casinos
exchange of chips for cash3. Casinos’ generally exclude from income the cash they receive
from these transactions by classifying them as an incurrence of a liability as opposed to
an advancement of a receipt4. However, the IRS argues that the casinos’ classification of

*
Este estudo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.
1
John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-
mine Taxability”, in: UNLV Gaming Law Journal, Vol. 5, Spring 2014, (2014), pp. 121-143.
2 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An
Analysis of Critical Federal Tax Issues 11 (1994), pp. 11-18.
3 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An
Analysis of Critical Federal Tax Issues, cit., pp. 17-18.
4 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An
Analysis of Critical Federal Tax Issues, cit., p. 18.

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau… 923

these transactions as liabilities is inappropriate and at least a portion of the cash casi-
nos receive in this Exchange must be included in gross income5”.
Assim sendo, a questão nodal que se coloca é a de saber qual o método de
cálculo das outstandings chips usualmente utilizado pelos casinos para determinar,
para efeitos fiscais, o seu número aproximado.
A este respeito, e continuando a seguir o pensamento da recente dou-
trina norte-americana, cumpre dizer que os “Casinos use the accrual method to
account from income from gaming activities6. Under the accrual method of accounting,
each casino calculates their income from gaming activities as the amount the casino has
won on the patrons’wagering transactions less any amount the casino has lost from similar
transactions”7.
Todavia, a referida doutrina norte-americana, criticando o método de deter-
minação e quantificação das outstanding chips utilizado pelos casinos, no que res-
peita, em concreto, ao accrual method, aduz que “missing from this equation is the
cash the casino receives in exchange for the chips the patrons use to gamble”8.
Porquanto, “instead of counting this cash received as income, casinos record these
transctions on their books as outstanding liabilities”9.
Esta forma de quantificação das outstanding chips, através do accrual method,
em si mesmo tomada, é criticável.
Na medida em que “this approach allows the casinos to exclude the exchange of
cash for chips when patrons receives the chips and when the patron exchanges the chips
back for cash from the income statement”10.

5 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-
mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, I.R.S. Non-Docketed Serv. Adv. Ver. 9274
(Feb. 22, 1990) at 1.
6 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An
Analysis of Critical Federal Tax Issues, cit., p. 18.
7 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An
Analysis of Critical Federal Tax Issues, cit., p. 18.
8 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An
Analysis of Critical Federal Tax Issues, cit., p. 18.
9 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An
Analysis of Critical Federal Tax Issues, cit., p. 18.
10 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 121; no mesmo sentido, Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An
Analysis of Critical Federal Tax Issues, cit., p. 18.

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924 Hugo Luz dos Santos

A significar que “all transactions related to the exchange of cash for chips for cash
are accounted for on the balance sheet as a short-term liability instead of unearned or
prepaid revenue”11.
De outra banda, quiçá para afastar o entono crítico acenado pela referida
doutrina norte-americana, os taxpayres (dentre os quais, os casinos) têm mobi-
lizado o argumento “that the requeriment to recognize income when payment received
violates the generally accepted accouting principle of matching12.
Porquanto, ao abrigo do matching principle, “the payment received is not included
in income until the payee has earned the payment through performing the servisse or
surrendering the good”13.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da
América (Us Supreme Court), tem rejeitado peremptoriamente, desde os finais
dos anos 50 do século XX, a mobilização do matching principle14.
Na verdade, o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América (Us
Supreme Court), no leading case Schlude v. Comm’r, 372 U.S. 128 (1963), embora
reconhecendo algum valor normativo ao matching principle, “it has declined to
allow income deferral unless15 there is a sufficiently determinate showing of the future
expense”16-17.

11 Na doutrina norte-americana, David Hasen, “The Tax Treatment of Advanced Receipts”, in:
Tax Law Review, (2008), 61, pp. 395-401.
12 Na doutrina norte-americana, Nicholas A. Mirkay, “It’s All About Timing: Will Karns

Impact the IRS Battles Over Advance Receipts”, in: Delaware Law Review, (2010), 12, pp. 55-64.
13 Nicholas A. Mirkay, “It’s All About Timing: Will Karns Impact the IRS Battles Over

Advance Receipts”, p. 55.


14 Neste sentido, Auto. Club of Mich v. Comm’r, 353 U.S. 180 (1957); Am. Auto. Ass’n v. United

States (AAA), 367 U. S. 687 (1961) que referem, no que toca ao matching principle, que “this approach
assures that the income is recognized in the same year as the associated expenses”.
15
Nicholas A. Mirkay, “It’s All About Timing: Will Karns Impact the IRS Battles Over Advance
Receipts”, p. 64, nota 98.
16
Us Supreme Court), Schlude v. Comm’r, 372 U.S. 128 (1963), pp. 131-132.
17
Talvez por essa razão, a doutrina norte-americana refira que, tal como Schlude (a dance studio),
“casinos are also accrual-based taxpayers. However, casinos do not account for the outstanding chips in the
same way that the dance studio accounted for their prepayment. When a patron exchanges cash for chips,
the casino classifies the cash as a liability as opposed to unearned or deferred revenue. This is partially due to
the fact that the money received in exchange for chips is “refundable”, which is dissimilar to the prepayments
received under the studio’s contract”, Neste sentido, John Bulloch, “Income or Liability: How Casi-
nos Classification of Outstanding Chips Determine Taxability”, cit., p. 129; no mesmo sentido,
Kevin Mcgeehan, The Gaming Industry: An Analysis of Critical Federal Tax Issues, cit., p. 21. E essa
diferença capital entre o ramo de actividade do Gaming, realizada nos casinos, e os dance studios, foi,
de certa forma, delimitada pelo Us Supreme Court (Schlude), quando afirma que, ao contrário dos
casinos (acrescento nosso), “the taxpayer was a dance studio that received down payments for future lessons.
Though the lessons had an expiration date, the studio din not set up a specific schedule for the completion of

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau… 925

Em face da resistência férrea dos casinos, e de algum insucesso no acolhi-


mento jurisprudencial da reconversão total das outstanding chips em gross income,
o “IRS” – à semelhança do que deverá suceder com a Fazenda Nacional da
Região Administrativa Especial de Macau e com a Fazenda Nacional da Cida-
de-Estado de Singapura18 – pugnou por, de alguma forma, e com o auxílio
prestimoso dos casinos, recuperar algum dinheiro (sob a forma de receita fiscal)
referente às outstanding chips.
É nesta lógica espácio-temporal que surge o Order Adjusting Partnership
Income at 3, Eldorado Hotel Associates v. Comm’r T. C. No. 2862-95 (April 1,
1996), ou mais abreviadamente Eldorado Order.
Este acordo (settlement) consubstanciou-se na posição dogmática do IRS nor-
te-americano no sentido de que “the portion of the outstading chips that will never
be returned to the casino is includible in income”19

each pre-paid lesson. The contracts were also “non-conceleable” that the studio would retain all pre-payments,
i.e., the income, even if the services were never used by the costumer. This accrual-based tax-payer deferred
including the prepayment in income until the payment was earned. To do so, the studio set up a “deferred
income account” with the total amount of the contract price upon the execution of the contract. As the cliente
used the services, the dance studio determined what amount of revenue had been earned by multying the hours
used by the predetermined per hour charge. If no services had been provided during the year, the contract was
deemed in the deferred income account in that taxable year”. Neste sentido, Us Supreme Court), Schlude
v. Comm’r, 372 U.S. 128 (1963), pp. 130-132.
18 A possível legalização do gaming em Singapura “was initially alluded to in 2004, and after a vari-

ous stages of debate and consultation, the Casino Control Act was passed in 2006. Two operators were then
selected, in what was a very competitive process. Resorts World Sentosa (of Genting Berhard, Malaysia) and
the Marina Bay Sands (of Las Vegas Sands, USA) were each granted a license. The Casino Regulatory
Authority, created in 2008 to oversee the gaming industry, has been performing its mission with very high
degree of transparency. Credit for gaming is authorized and legally enforceable. Gaming promoters can be
licensed in Singapore, but there has been some caution in this regard due to concerns such as suitabilility and
money laundering. Measures are in place to discourage Singapore’s citizens and permanente residentes from
gambling. Citizens and permanent residents are required to pay na entry fee of SGD 100 (around 80 $) to
gain acess for a twenty-four hour period oro f SGD 2000 ($ 1600) for a full year. Tourists do not have to
pay to enter the casinos. There is a check of the documents of every single person going in an out of the casinos.
When this measure ws approved it was thought that ir would be suficiente to prevent most Singaporians from
excessive gambling. However, that proved not to be the case and in fact quite many Singaporeans are willing
to pay the entry fee and play. Other restricitive measures are now being considered to try to lower a somehow
unexpected surge of gambling in Singapore. Overall, Singapore developed casinos with very specific tourism,
business and town planning goals at sight. As the revenue to be gained from the industry was not a priority,
the tax levels are relatively low”; Ver Derek da Cunha, “Singapore Places in Bets: Casinos, For-
eign Talent and Remaking a City-State”, in: Straits Times Press, Singapore, (2010), passim; Jorge
Godinho, “Casino Gaming in Macau: Evolution, Regulation and Challenges”, in: UNLV Gam-
ing Law Journal, Vol. 5, Spring 2014, (2014), p. 23.
19 John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Deter-

mine Taxability”, cit., p. 139.

RDC I (2016), 4, 921-938

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926 Hugo Luz dos Santos

A questão axial que, neste eixo temático se coloca, é a de saber, afinal, em


que matizes repousa, concretamente, a fórmula de cálculo que servirá de base à
receita fiscal emergente das outstanding chips.
Neste vector, o Eldorado settlement “requires casinos to compute the taxable por-
tion of their outstanding chips on a year-to-year basis. Casinos are to determine the
amount of each componente of the calculation by a set day, within thirty days after the
end of the taxable year. To compute the taxable portion of their outstandings chips,
casinos are allowed to increase or decrease their income by the increase or decrease in an
“Annual Float amount”20; em caso de excesso do montante de imposto exigível
e devido pelos casinos, a título de outstanding chips o ónus da prova desse excesso
impenderá sobre aqueles (os casinos) pela razão jurídico-processual que a seguir
se exporá.

20 The Adjusted Float is calculated as follows “ 1) Determine the total value of chips and tokens in
active circulation; 2) Subtract the value of chips and tokens in the custody or under the control of
the house as determined in accordance with normal counting procedures (including tokens in the taxpayer’s
slot machines); 3) Subtract the value of outstanding chips and tokens in denomination of $ 100 or more; 4)
Subtract the adjustment for chips and tokens in denomination of less than $ 100 (the “Small Denomination
Adjustment”). The Small Denomination Adjustment may be determined by either of the following alter-
native methodologies: i) The Experience Method (Alternative 1): The Small Denomination Adjustement
shall be determined as the sum of items (a) and (b). a) the value of chips and tokens of denominations of less
than $ 100 in patrons’hands determined by accrual or observable count as the Computation Date; b) the
value of total chips returns in denominations of less than $ 100 over one-week period immediately following
the Computation Date that are received by the taxpayer; c) From Bright Exchange or other clearinghouse
facilities, and d) from other casinos directly; ii) The percentage Method (Alternative 2): The Small Denomi-
nation Adjustement shall be determined as the sum of items (a), (b) and (c) as applied to chips and tokens
(other than souvenir chips and tokens which shall be separately treated under subparagraph H; a) 75 % of
the value of outstanding chips and tokens in denomination of $ 10 or greater but less than $ 100; b) 35 %
of the value of outstanding chips and tokens in denomination of $ 5 or greater but less than $ 10; c) 10 $ of
the value of chips and tokens of denominations of less than $ 5; 5) The amount recorded in gross income is
any excessof current year outstanding chips over the prior year calculation”; Ver Order Adjusting Partnership
Income at 3, Eldorado Hotel Associates v. Comm’r T. C. No. 2862-95 (April 1, 1996), pp. 5-7; John
Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding Chips Determine
Taxability”, cit., p. 140; a significar, em suma, que “The Adjusted Float modifies the casino’s income
by changing the Annual Float. The Annual Float is the diference between the current year’s Adjusted Float
and the Adjusted Float of the taxable year immediately preceeding the current taxable year. If the current
year’s Adjusted Float is greater than the prior year’s Adjusted Float, the Annual Float is positive and the
casino must add the amount to their income. When the current year’s Adjusted Float is less than the prior
year’s Adjusted Float, The Annual Float is negative and the casino deducts that amount from their income”;
neste sentido, John Bulloch, “Income or Liability: How Casinos Classification of Outstanding
Chips Determine Taxability”, cit., p. 141.

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau… 927

II. A legitimação jurídico-processual da current taxation of Outstanding Chips:


a distribuição dinâmica do ónus da prova e a teoria das esferas de risco

Conexa à questão da quantificação do montante concreto de imposto exigível


e devido emergente das outstanding chips, é a questão de se saber sobre quem recai
ónus da prova de que aquele montante de imposto devido pelos casinos da Região
Administrativa Especial de Macau é excessivo.
Todavia, a questão que o Código Civil de Macau não resolve é a formatação
da distribuição do ónus da prova quando, em matéria de direito probatório material,
se faça impender um ónus probatório a uma parte processual ao ponto de a tornar
uma prova diabólica, negativa, e, por isso, impossível, – é aqui que, pensamos,
avulta a (candente) questão da distribuição dinâmica do ónus da prova e da sua
precípua relevância em matéria de Gaming, e, por conseguinte, das outstanding
chips.
Com efeito, fará sentido que, em matéria de ónus da prova, se coloque a
Fazenda Nacional da Região Administrativa Especial de Macau na posição/
necessidade de produzir prova perante o mau funcionamento de um sistema
informático complexo e algorítmico dos casinos de Macau e que, compreensivel-
mente, não domina?
Cremos bem que não.
Na verdade, no plano de direito material, é consabido que a qualificação jurí-
dica de um contrato exige tanto um juízo primário, quanto um juízo secundário,
e, quando entrem em conflito, prevalecerá aquele que encontre predominância
na “ratio juris” e na natureza das coisas, bem como nas consequências concretas que
os respectivos resultados venham a trazer à questão21.
O que significa que, no plano de direito processual, a ordem jurídica estadual
regula um sistema de normas de conduta que tem por função disciplinar a actuação
dos sujeitos processuais mormente no que respeita aos inerentes, e, por vezes,
inevitáveis, conflitos de interesses, introduzindo, para o efeito, notas típicas de
imperatividade e coercibilidade22.
A imperatividade quadra-se com a existência de normas permissivas que, em
lugar de imporem deveres, conferem poderes, públicos ou privados, de actuação,
de cujo exercício pode resultar uma nova pauta de direitos e de deveres.

21 Neste sentido, Oliveira, Madalena Perestrelo de, “A “inexigibilidade” na relação contratual:

interpretação do contrato e heteronomia”, in O Direito, Ano 145.º (2013), Volume III, Director:
Jorge Miranda, Almedina, Coimbra, (2014), p. 539.
22 Sendo esta nota típica geralmente associada às normas jurídicas primárias, neste sentido, na doutrina

alemã, Zippelius, Rechtsphilosophie, Beck, München, 1994, p. 31.

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928 Hugo Luz dos Santos

Assim, as normas imperativas e as normas permissivas são normas primárias de


conduta e estas são aquelas que directamente regulam o jogo dos interesses dos
sujeitos processuais, ordenando ou permitindo comportamentos no âmbito do
direito material23-24.
Ora se assim é, e se, como acima vimos, no âmbito do direito material (o
regime jurídico do Gaming) assiste uma especial protecção do Estado-Colectividade
da Região Administrativa Especial de Macau (que necessita do recebimento completo e
regular dos impostos para face às necessidades colectivas dos seus cidadãos), por que
razão, sendo o direito processual civil instrumental em relação ao direito mate-
rial, se exigiria, àquele, no plano processual, um ónus probatório que, na prática,
esvaziaria aquele escopo protector (Schutzwirkung) que lhe é conferido em sede de
direito material?
Na verdade, o referido escopo protector (Schutzwirkung) do Estado-Colectivi-
dade de Macau encontra, num plano homólogo, expressão prática nos mecanis-
mos simplificadores da actividade probatória do lesado em matéria da responsa-
bilidade civil por acto médico25.
Os referidos mecanismos simplificadores da actividade probatória do lesado
(a Região Administrativa Especial de Macau), consubstanciam-se através da
prova de determinados elementos fácticos – de (mais) fácil demonstração pelo doente
– possibilitam que o juiz se convença, à luz de um raciocínio dedutivo, da reu-
nião dos pressupostos típicos da responsabilidade civil – cuja prova se revela mais
difícil26.

23
Neste sentido, José Lebre de Freitas, “Sobre o conceito de acto processual”, in Estudos em
Homenagem a Miguel Galvão Teles, Volume II, Almedina, Coimbra, (2012), p. 150.
24
Referindo expressamente a relação de instrumentalidade que medeia o direito processual e o direito
material, na doutrina alemã, o notável estudo de Dieter Medicus, “Anspruch und Einrede als
Rückgat einer zivilistischen Lehrmethode”, in Archiv für die civilische Praxis, 174, (1974), p. 316.
25 Desdobrando a actividade médica em obrigações fragmentárias de actividade e obrigações fragmentárias

de resultado, Filipe de Albuquerque de Matos, “Responsabilidade civil médica: breves reflexões


em torno dos respectivos pressupostos”, in Cadernos de Direito Privado (CDP), n.º 43, Abril/Junho
2013, cejur, Coimbra Editora, Coimbra, (2014), p. 69.
26 Neste sentido, Rute Teixeira Pedro, «A dificuldade de demonstração do nexo de causalidade nas acções

relativas à responsabilidade civil do profissional médico – Dos mecanismos jurídicos para uma intervenção pró
damnato», in Revista do CEJ, 1.º Semestre de 2011, Número 15, Dossiê Temático: Crimes contra a
autodeterminação sexual e contra a liberdade sexual com vítimas menores de idade, Almedina,
Coimbra, (2013), p. 28.

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau… 929

Com efeito, trata-se de mecanismos que apresentam uma acentuada afini-


dade com as presunções judiciais27-28-29 que auxiliam o juiz no procedimento com-
plexo – que envolve “uma rede de inferências racionalmente fundada” – de escolha
da “melhor” narração dos factos30.
É neste quadro temático que, em outros ordenamentos jurídicos31, se ins-
creve a importância do recurso às máximas da experiência resultantes da regra
do “id quod plerumque accidit” em Itália32; à prova prima facie ou de primeira apa-
rência (Anscheinbeweis)33-34 na Alemanha; e às presunções “graves, precises et concor-
dantes” (artigo 1353.º, do Code Civil) em França35; ou no artigo 380.º, § 1 do
Código Civil Brasileiro36.

27 Sobre as presunções judiciais, referindo-se expressamente ao seu funcionamento (artigo 351.º, do


Código Civil); Neste sentido, João Calvão da Silva, “As presunções judiciais e os arts. 712.º,
722.º e 729.º do Código de Processo Civil”, in Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano
135.º, 3935, Novembro-Dezembro 2005, Director: Manuel Henrique Mesquita, Coimbra Edi-
tora, Coimbra, (2006), pp. 127-128.
28 Que, como bem refere autorizada doutrina nacional, “não importam uma inversão do ónus da

prova”; Neste sentido, Rita Lynce de Faria, A inversão do ónus da prova no Direito civil português,
Lisboa, Lex, (2001), p. 36.
29 Neste sentido, defendendo, em matéria de prova difícil ou impossível, o recurso a presunções judi-

ciais, o artigo doutrinal de Elizabeth Fernandez, “A prova difícil ou impossível”, in Estudos


em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Comissão Organizadora: Armando Marques
Guedes; Maria Helena Brito; Ana Prata; Rui Pinto Duarte; Mariana França Gouveia, Volume I,
Coimbra Editora, Coimbra, (2013), p. 833.
30 Neste sentido, Rute Teixeira Pedro, «A difi culdade de demonstração do nexo de causalidade nas

acções relativas à responsabilidade civil do profissional médico – Dos mecanismos jurídicos para uma interven-
ção pró damnato», cit., p. 28.
31 Quanto a este aspecto, no âmbito da responsabilidade civil por acto médico, Mafalda Miranda

Barbosa, “A jurisprudência portuguesa em matéria de responsabilidade civil médica: o estado


da arte”, in Cadernos de Direito Privado (CDP), n.º 38, Abril/Junho 2012, cejur, Coimbra Editora,
Coimbra, (2012), pp. 23-24.
32 Neste sentido, por todos, na doutrina italiana, Enrico Quadri, “Profi li della Responsabilitá

Medica com particolare riguardo alla ginecologia ed ostetricia: esperienze recenti e prospettive”,
in RcP, Volume LXIX, (2004), pp. 328-335, também disponível em ssrsn.com (acesso em 11 de
Abril de 2015).
33
Neste sentido, Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações,
Almedina, Coimbra, Colecção Teses, tese de Doutoramento, (1989), p. 247, nota 429.
34 Na doutrina alemã, acerca do cumprimento do ónus da prova na responsabilidade civil, Ute

Graf, Die Beweislast bei Behandlungsfehlern im Arzthaftungsprozess, VVF, München, (2001), pp. 234
e ss.
35 Neste sentido, por todos, na doutrina francesa, Patrice Jourdain, “Responsabilité Civile”, in

Revue Trimestrielle de Droit Civile, Juillet/Septembre 2008, (2008), pp. 492 e ss.
36 Que prevê um afloramento da distribuição dinâmica do ónus da prova, cingindo-a, no entanto, aos

casos de impossibilidade material ou excessiva onerosidade na produção da prova, abrangendo as provas


difíceis e diabólicas; Neste sentido, na doutrina brasileira, Carolina Cristina Miotto, “Onus pro-

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930 Hugo Luz dos Santos

Diferentemente, o Código Civil de Macau, seguindo o exemplo do BGB


(Bürgerliches Gezetzbuch) alemão, preocupa-se em delimitar, em termos ine-
quívocos, a diferença entre facto constitutivo e facto impeditivo (artigo 335.º, n.º 1
e 2, do Código Civil de Macau). De harmonia com a denominada teoria das
normas37-38, que teve em Leo Rosenberg o principal arauto, há que identificar
o que é a regra e o que é a excepção na norma de direito substantivo e esta tarefa
está facilitada quando a excepção é introduzida por palavras como “excepto”,
“salvo se”, “a não ser que”, “mas”, constantes, nomeadamente, e sem preocu-
pação de exaustividade, e.g., no artigo 493.º, n.º 3, artigo 495.º, artigo 498.º,
artigo 502.º, n.º 1, artigo 902.º, n.º 1, artigo 904.º, n.º 1, todos do Código Civil
de Macau.
Assim, à luz da teoria das normas, a identificação dos factos constitutivos e
impeditivos faz-se por interpretação das normas de direito substantivo, nomea-
damente por distinção, no Tatbestand duma norma, entre o que constitui a regra
(facto constitutivo)39 e o que constitui a excepção (facto impeditivo)40; sendo que, na
dúvida, consideram-se os factos como constitutivos do direito (artigo 335.º, n.º 3,
do Código Civil de Macau).
Todavia, à análise da norma de direito substantivo não deve presidir
somente os elementos literais, atenta, as mais das vezes, a falta de clareza da
norma de direito substantivo, sendo essa a razão pela qual a mais autorizada
doutrina processualista propugna o recurso a “elementos racionais”41, cuja acui-
dade, adscrevemos nós, mais se faz sentir em campos temáticos baseados em
conhecimentos privilegiados (i.e., a determinação concreta do quantidade total de

bandi: uma breve análise da distribuição estática e dinâmica do ônus da prova e a incidência nos
sistemas processuais civis português e brasileiro”, in: Scientia Juridica (SI), Tomo LXIII, n.º 336,
Setembro-Dezembro de 2014, Braga, cejur, (2014), pp. 527-528; João Batista Lopes, “Ónus da
prova e teoria das cargas dinâmicas no novo código de processo civil”, in: Revista de Processo, Ano
37, Volume 204, Fevereiro de 2012, (2012), pp. 231-242.
37 Exposta exemplarmente por Leo Rosenberg, Die Beweislast auf der Grundlage der bürgerlichen

Gesetzbuches and der Zivilprozessordnung, 5. Auflage, Beck, München, 1963, pp. 124-168.
38 Na doutrina portuguesa, José Luís Bonifácio Ramos, “O sistema misto de valoração da prova”,

in: Revista O Direito, Ano 146.º, Vol. III, (2014), Director: Jorge Miranda, Almedina, Coimbra,
(2014), p. 572.
39 Neste sentido, Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Almedina,

Coimbra, Colecção Teses, Dissertação de Doutoramento, (2004), p. 275.


40 Neste sentido, José Lebre de Freitas, “O ónus de denunciar o defeito da empreitada no artigo

1225.º, do Código Civil: O Facto e o Direito na interpretação dos documentos”, in Estudos sobre
o Direito Civil e Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, (2010), p. 443.
41 Neste sentido, José Lebre de Freitas, “A propriedade de prédio confi nante na norma do artigo

1380.º, n.º 1, do Código Civil. Facto constitutivo e facto impeditivo”, in Cadernos de Direito Pri-
vado (CDP), n.º 30, Abril/Junho 2010, cejur, Coimbra Editora, Coimbra, (2010), p. 24, nota 14.

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau… 931

outstanding chips que só pelos casinos – e só pelos casinos – pode ser, com um
mínimo de fiabilidade, realizada)42, onde se divisem direitos colectivos (os da
RAEM), cujo ónus probatório, onde a prova se afigure difícil43, ou mesmo impos-
sível44 toldaria, como acima se apontou, o naipe de direitos subjectivos que lhe
foram conferidos pelo direito substantivo.
Por isso se compreende a razão pela qual a doutrina advogue, nos casos de
dificuldade manifesta na prova de determinados factos, a inversão do ónus da prova
(artigo 337.º, n.º 1 e 2, do Código Civil de Macau) ou, pelo menos, uma redis-
tribuição mais equilibrada do ónus da prova45, e, no âmbito desta, a mobilização da
teoria da distribuição dinâmica do ónus da prova.
De acordo com a teoria da distribuição dinâmica do ónus da prova, cujo precur-
sor, no seu desenho actual, foi o processualista argentino Jorge W. Peyrano,
o ónus probatório deveria ser distribuído não por causa da função que os factos
desempenham no processo, mas, antes, em função do conceito de prova mais
fácil, atribuindo-o, especificamente, à parte que está casuisticamente em posição
mais favorável de o demonstrar46.
Deste modo, a concreta distribuição do ónus probatório deve autonomizar-se
da natureza que os factos assumem no desenho processual (factos constitutivos ou
impeditivos) quando e se essa natureza tornar impossível ou difícil a prova desses fac-
tos naturalísticos47.
Como bem afirmam Jorge Morais Carvalho/Micael Teixeira, esta ideia
justifica-se dado que, deste modo, se estimula a efectiva produção de prova e a
procura da verdade material, onerando a parte com maior facilidade probatória, bem
como se promove a igualdade material entre as partes, dando a ambos maior igual-
dade na possibilidade de fazerem valer a posição em juízo. Isto porque a parte
com maior facilidade probatória pode efectivamente demonstrar a versão do facto
que lhe aproveita e a parte contrária, apesar de ter menor facilidade em provar,

42 Neste sentido, elizabeth fernandez, “A prova difícil ou impossível”, in Estudos em Homenagem


ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, cit., pp. 811-813.
43 Procedendo à indicação dos factos difíceis de provar, na doutrina argentina, Jorge W. Peyrano,

“La prueba difícil”, in Debido Proceso-Realidad y debido processo – El debido processo y la prueba, AAVV,
Buenos Aires, (2003), pp. 329-330.
44 Neste sentido, Elizabeth Fernandez, “Desvio de poder: mito ou realidade?”, in Cadernos de Jus-

tiça Administrativa (CJA), n.º 93, Maio/Junho 2012, cejur, Coimbra Editora, Coimbra, (2012), p. 11.
45 Neste sentido, Elizabeth Fernandez, “Desvio de poder: mito ou realidade?”, in Cadernos de

Justiça Administrativa (CJA), cit., p. 25.


46 Neste sentido, micael teixeira, Por uma distribuição dinâmica do ónus da prova, Dissertação de

Mestrado – Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, (2012), pp. 49 e ss.
47 Neste sentido, muito recentemente, Jorge W. Peyrano, “La prueba difícil”, in Civil Procedure

Review, Volume 2, n.º 1, January/April, 2011, (2011), pp. 86-96.

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932 Hugo Luz dos Santos

pode sempre beneficiar de uma decisão de ónus da prova, caso a outra parte não
consiga realizar a prova48.
No caso concreto do gaming e das outstanding chips, a teoria da distribuição
dinâmica do ónus da prova seria aplicada, justamente, do ponto de vista da inad-
missibilidade de ónus da prova a cargo do Estado-Colectividade da Região Admi-
nistrativa Especial de Macau quanto ao excesso do montante de imposto devido
– por exemplo, pela contagem defeituosa (para mais) do número global de outs-
tanding chips – porquanto é o casino (que monitoriza e controla desde os números
de série referentes a um dado lote de fichas (chips) que coloca ou retira de circulação
interna no casino; ao número de outstanding chips em poder material dos patrons
que foram (ou não) trocadas por dinheiro (cash) num dado ano civil/económico)
quem tem maior facilidade em demonstrar a versão factual que lhe aproveita, ou
seja, a de que a liquidação do imposto exigível e devido derivou de um excesso no
que respeita à determinação quantitativa das outstanding chips e que, por isso,
aquele (o montante de imposto devido à Fazenda Nacional da Região Adminis-
trativa Especial de Macau) deve ser reduzido para um montante acuradamente
determinado com recurso a uma nova contagem das outstanding chips.
Esta conclusão é reforçada pela asserção de estar em causa factos pessoais dos
gerentes dos casinos (emergentes dos deveres laterais de protecção do patrimó-
nio da RAEM – através do regular pagamento do imposto devido, e, ainda, do
dever de monitorização do sistema informático de registo e quantificação das outstan-
ding chips que dele se desdobra): este está em melhores condições do que qualquer
outro (incluindo a Fazenda Nacional da RAEM) para os trazer ao processo, na
medida em que são factos pertencentes à sua “esfera de risco”49, entendido como
critério suplementar de distribuição do ónus da prova, ou, melhor dizendo, ao
“círculo de vida” em que o facto se produz50-51: é a consagração da denominada
teoria das esferas de risco52, que preconiza uma ligação umbilical entre o ónus da prova

48 Neste sentido, Jorge Morais Carvalho/Micael Teixeira, “Crédito ao consumo-ónus da


prova da entrega de exemplar do contrato e abuso do direito de invocar a nulidade”, in Cadernos de
Direito Privado (CDP), n.º 42, Abril/Junho 2013, cejur, Coimbra Editora, (2013), Coimbra, p. 47.
49 Neste sentido, José Lebre de Freitas, “A propriedade de prédio confi nante na norma do artigo

1380.º, n.º 1, do Código Civil. Facto constitutivo e facto impeditivo”, cit., p. 22, nota 10.
50 Neste sentido, na doutrina alemã, Baumgärtel, Beweislastpraxis im Privatrecht, Köln, Karl Hey-

mannns Verlag, (1995), p. 218.


51 Neste sentido, na doutrina portuguesa, monograficamente, Pedro Ferreira Múrias, Por uma

distribuição fundamentada do ónus da prova, Dissertação de Mestrado, Lisboa, Lex, (2000), p. 134.
52 Neste sentido, Pedro Ferreira Múrias, Por uma distribuição fundamentada do ónus da prova, cit.,

p. 137.

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau… 933

e a dicotomia obrigações de meios/obrigações de resultado53, e cuja aplicação


poderá ser mobilizada para o âmbito do Gaming54, e, por inerência, para a pro-
blemática das outstanding chips.
Porquanto, por um lado, no plano de direito substantivo, só desse jeito
será possível repor a equivalência subjectiva entre a prestação e a contraprestação con-
tratualmente fixada pelas partes55-56-57, e, por outro lado, no plano de direito
adjectivo, garantir a prossecução do princípio da efectividade58, do dever de verdade
processual59-60, e da justa composição do litígio em prazo razoável 61, enquanto coro-
lários do princípio da celeridade62 e da economia processuais63.

53 Neste sentido, na doutrina alemã, pioneiramente, J. Prölss, Die Beweislastverteilung nach Gefa-
hrenbereichen, VersR, (1964), 33 (A), pp. 901-906.
54 Parecendo expressar a admissibilidade de aplicação da teoria das esferas de risco a outros âmbitos

temáticos, Pedro Múrias/Maria de Lurdes Pereira, “Obrigação de meios, obrigações de resul-


tado e custos de produção”, in Centenário do Nascimento do Professor Doutor Paulo Cunha, Estudos
em Homenagem, Coordenador: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, (2012), p. 1012.
55 Neste sentido, Catarina Monteiro Pires, “A Resolução do contrato por incumprimento e

impossibilidade de restituição em espécie”, in O Direito, Ano 144.º (2012), Volume III, Director:
Jorge Miranda, Almedina, Coimbra, (2013), p. 669.
56 No mesmo sentido, na doutrina alemã, Claus-Willem Canaris, “Aquivalenzvermutung und

Äquivalenzwahrung im Leitstungsstörungsrecht des BGB”, in Festschrift für Herbert Wiedemann,


Beck, München, (2002), pp. 4-5.
57 No mesmo sentido, Catarina Monteiro Pires, “A prestação restitutória em valor na resolu-

ção por incumprimento”, in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Volume II, Almedina,
Coimbra, (2012), p. 703.
58 Neste sentido, miguel mesquita, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno

Processo Civil”, in Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 143.º, 3983, Novembro-Dezem-
bro 2013, Director: António Pinto Monteiro, Coimbra Editora, Coimbra, (2013), p. 143.
59 Neste sentido, José Luís Bonifácio Ramos, “Questões relativas à Reforma do Código de

Processo Civil”, in O Direito, Ano 144.º, 2012, Volume III, Director: Jorge Miranda, Almedina,
Coimbra, (2013), p. 669.
60 Neste sentido, José Luís Bonifácio Ramos, “Desígnios do “novo” Código de Processo Civil”,

in O Direito, Ano 145.º (2013), Volume IV, Director: Jorge Miranda, Almedina, Coimbra, (2014),
p. 814.
61
Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, “Apontamentos sobre o princípio da gestão pro-
cessual no novo Código de Processo Civil”, in Cadernos de Direito Privado (CDP), n.º 43, Julho/
Setembro 2013, cejur, Coimbra Editora, Coimbra, (2013), p. 10.
62 Neste sentido, Isabel Alexandre, “A fase de instrução e os novos meios de prova no Código

de Processo Civil de 2013”, in Revista do Ministério Público (RMP), n.º 134, Ano 34, Abril-Junho
2013, Coimbra Editora, Coimbra, (2013), p. 21.
63 Neste sentido, Carlos Lopes do Rego, “O Princípio do Dispositivo e os Poderes de Con-

volação do Juiz no Momento da Sentença”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de
Freitas, Comissão Organizadora: Armando Marques Guedes; Maria Helena Brito; Ana Prata; Rui
Pinto Duarte; Mariana França Gouveia, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, (2013), p. 833.

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934 Hugo Luz dos Santos

III. A proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsgrundsatz) enquanto forma


de legitimação jurídico-constitucional (artigo 6.º e 103.º, da Lei Básica
de Macau) da current taxation of Outstanding Chips – a Lei da Ponde-
ração e a Fórmula do Peso (Weight Formula); segue, a doutrina norte-
-americana do pragmatismo jurídico (legal pragmatism) – brevíssimas
notas

Como escrevemos noutro local64, o direito à propriedade65 das receitas fiscais


provenientes dos casinos de Macau – que não se confunde com o direito de pro-
priedade privada (artigo 6.º e artigo 103.º, da Lei Básica de Macau), configurado
como um direito subjectivo à manutenção de posições jurídicas subjectivas66 e pres-
suposto na designada garantia de permanência67 – é um direito subjectivo da Fazenda
Nacional da Região Administrativa Especial de Macau, entendido enquanto
um conjunto de expectativas de recebimento regular, completo e atempado das receitas

64 Hugo Luz dos Santos, “O dever de lealdade dos Administradores das Sociedades Comer-
ciais na Região Administrativa Especial de Macau e em Portugal (algumas notas mais ou menos
desenvolvidas)”, in: Revista de Administração Pública de Macau, n.º 108, Macau, China, (2015), em
curso de publicação, passim.
65 Ver, na doutrina norte-americana, sobre as restrições (totais ou parciais) de acesso ao direito de proprie-

dade, Ahsley Mas, “Eminent Domain Law and “Just” Compensation for Diminution of Acess”,
in Cardozo Law Review (CLR), Vol. 36, 371, (2014); Jeremy P. Hopkins, “Just Compensation:
Elementary Principles and Considerations to Ensure Property Owner is Made Whole”, in ALI-
ABA, 53, 117, (2006); ver Philip Nichols et Alii, Nichols on Eminent Domain, § 16. 01, Mathew
Bender, 3rd edition, (2013); Jack R. Sperber, “Just Compensation and the Valuation Concepts
You Need to Know to Measure”, in ALI-ABA, 1, 8-9, (2009); Ver, na jurisprudência norte-ameri-
cana, Wilbert Family Ltd P’ship v Dall. Area Rapid Transit, 371 S.W.D., 3d 506, 510 (Tex. App 2012).
66
Ver, sobre a protecção do direito de propriedade privada à luz do artigo 6.º e 103.º Lei Básica
de Macau, na doutrina macaense, Paulo Cardinal, The Constitucional Layer of Protection of Fun-
damental Rights in the Macau Special Administrative Region, Macau, (2008), p. 257; Paulo Cardi-
nal, “A Lei Básica e o regime jurídico das terras na Região Administrativa Especial de Macau”,
in: Scientia Juridica (SI), Tomo LXIII, n.º 336, Setembro-Dezembro de 2014, Braga, cejur, (2015),
p. 432; à luz da Lei Básica de Hong Kong, ver, Simon Young, “Restricting Basic Law Rights
in Hong Kong”, in: Hong Kong Law Journal, (2004), p. 110; veja-se, ainda na doutrina macaense,
Tong Io Cheng, The Origin of Ownership and the Legitimacy of the Existence and Continuation of the
System: A Civil Law Person’s Interpretation of the Private Property Protection System in the Basic Law of
the Macao SAR, Macau, China, (2009), passim.
67 V., na doutrina portuguesa, monograficamanente, Miguel Nogueira de Brito, A Justificação da

Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Colecção Teses, dissertação de doutoramento,


Almedina, Coimbra, (2012), pp. 734-800.

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau… 935

fiscais emergentes dos casinos de Macau68-69; visto enquanto forma reflexa e


instrumental de redistribuição igualitária da riqueza e, por aí, de satisfação das necessi-
dades colectivas dos cidadãos da Região Administrativa Especial de Macau.
Neste âmbito temático, a questão que se coloca é a de saber se a posi-
ção doutrinal acima preconizada – a distribuição dinâmica do ónus da prova que
impende sobre os casinos de Macau, traduzido no encargo processual de provar
que a liquidação do imposto devido à Fazenda Nacional da Região Administrativa
Especial de Macau, emergente da determinação quantitativa das outstanding chips
é excessivo – passa no teste da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsgrundsatz)70.
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Com efeito, o princípio da proporcionalidade, que nas últimas décadas obteve
assinalável reconhecimento na teoria e na prática do controlo de constitucionalida-
de71/72 consiste em três subprincípios: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade
em sentido estrito. Estas três máximas exprimem a ideia de optimização73-74.
Na verdade, os princípios como mandados de optimização requerem a optimi-
zação relativamente àquilo que seja factual e juridicamente possível75. Os subprincí-

68 V., na doutrina alemã, Markus Appel, Entstehungsschäche und Bestandsstärke des verfassungsrechtli-
chen Eigentums, p. 218.
69 A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem referido, a este res-

peito, que “A expectativa legítima de ver realizada a pretensão merece a protecção do artigo 1.º, do Protocolo
Adicional n.º 1 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (….) e engloba o direito ao respeito dos seus
bens, que não implica somente o respeito pela titularidade do direito de propriedade. Para além disto, ao pro-
prietário é assegurado o exercício das faculdades inerentes a este direito, como sejam as de usar, dispor ou retirar
dela os seus frutos”; na doutrina portuguesa, V. Tiago Macieirinha, “O direito de propriedade na
Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, in: Revista O Direito, Ano 146.º, (2014), I, Alme-
dina, Coimbra, (2014), pp. 76-77; no mesmo sentido, Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem (TEDH), Pressos Compania Naviera S. A., n.º 31; Gratzinger e Gratzingerova, n.º 73, Jantner,
n.º 29-33, Marckx, n.º 63, Kotov, n.º 90, Stran Greek Refineries and Straits Andreadis, n.º 61.
70 Na doutrina alemã, Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, (1985), 6.ª Ed., Frankfurt, Suhrkamp,

(2011), pp. 75-77.


71 Ver, na doutrina norte-americana, Alec Stone/Jud Mathews, “Proportionality Balancing and

Global Constitucionalism”, in: Columbia Journal of Transnational Law, n.º 47, (2008), pp. 72-164.
72
Ver, na doutrina norte-americana, David M. Beatty, The Ultimate Rule of Law, Oxford, Oxford
University Press, (2004), pp. 34-49.
73 Sobre o constitucionalismo norte-americano, ver, na doutrina norte-americana, Louis Seid-

mann, Never Mind the Constitution; On Constitution Disobedience, New York, N.Y., Oxford Uni-
versity, 2012, pp. 12-35.
74 Sobre o constitucionalismo norte-americano, ver, na doutrina norte-americana, Jeremy Wal-

dron, Book Review Never Mind the Constitution; On Constitution Disobedience, in: Harvard Law Review,
Volume 127, (2014), pp. 1151 e ss.
75 Ver Robert Alexy, Theory of Constitutional Rights, Oxford, Oxford University Press, (2002),

pp. 47-49.

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936 Hugo Luz dos Santos

pios da adequação e da necessidade referem-se à optimização quanto às possibilidades


factuais existentes (no caso concreto, cabe perfeitamente na esfera de disponibilidade
fáctica dos casinos a – exacta ou aproximada – determinação quantitativa das outstan-
ding chips para efeitos de liquidação do imposto devido).
O subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito refere-se à optimização
quanto às possibilidades jurídicas existentes (no caso concreto, o regime jurídico do
jogo e aposta e do crédito para jogo estão suficientemente sedimentados no ordena-
mento jurídico da Região Administrativa Especial de Macau).
Por conseguinte, a solução normativa preconizada – a distribuição dinâ-
mica do ónus da prova que impende sobre os casinos de Macau, traduzido no
encargo processual de provar que a liquidação do imposto devido à Fazenda Nacio-
nal da Região Administrativa Especial de Macau, emergente da determinação
quantitativa das outstanding chips é excessivo – passa no teste da proporcionalidade
(Verhältnismässigkeitsgrundsatz).
De tal facto se infere que, a referida solução normativa é adequada (porque não
exclui a adopção de meios que impeçam a realização de pelo menos um princípio);
é necessária (porque os meios acima adoptados atingem o seu objectivo até certo
grau).
A significar, igualmente, que a dita solução normativa está recoberta pelo
manto diáfano da proporcionalidade em sentido estrito. Vejamos em que matizes
repousa essa asserção.
Na verdade, a ponderação é o objecto do terceiro subprincípio da proporciona-
lidade, ou seja, da proporcionalidade em sentido estrito. Este subprincípio exprime,
como acima se acenou, a ponderação sobre as possibilidades jurídicas existentes76.
Corresponde a uma máxima que pode ser designada como “Lei da Ponderação”77.
Esta máxima diz: “Quanto maior for o grau de não realização ou de afectação de um
princípio, maior deve ser a importância da realização do princípio colidente”; e, no
âmbito daquela (a Lei da Ponderação) a “Fórmula do Peso” (Weight Formula) define
o peso específico de cada um dos princípios colidentes78.

76
Em recente publicação portuguesa, Robert Alexy, “Direitos Fundamentais e princípio da
proporcionalidade”, tradução por Paulo Pereira Gouveia, in: Revista O Direito, Ano 146.º, (2014),
IV, Almedina, Coimbra, (2015), p. 821.
77 Robert Alexy, Theory of Constitutional Rights, cit., p. 102.

78 Robert Alexy, “The Weight Formula”, in: Frontiers of Economics Analysis of Law – Studies in the

Philosophy of Law, 3, Cracow, Jagiellonian University Press, (2007), pp. 9-27; Robert Alexy, Theory
of Constitutional Rights, cit., pp. 97-99; na língua alemã, Robert Alexy, “Die Gewichtsformel”,
in: Gedächnisschrift für Jürgen Sonnenschein, Verlag, Köln, (2003), 771-792.

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O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau… 937

No caso concreto, a “Lei da Ponderação” e a “Fórmula do Peso” (apta à sub-


sunção no caso das outstanding chips)79 determinam que o princípio prevalecente (a
sustentabilidade económico-financeira da Fazenda Nacional de Macau e a dignidade
humana dos seus cidadãos, consubstanciada através do recebimento completo dos
impostos devidos pela indústria do jogo) cauciona (e legitima) jurídico-constitu-
cionalmente a solução normativa da distribuição dinâmica do ónus da prova que, no
âmbito do Gaming e das Outstanding Chips, impende sobre os casinos.
Porquanto, nestes casos difíceis (hard cases)80 interessa determinar as consequên-
cias jurídicas da solução normativa daí emergente81, e a forma como os tribunais
devem actuar em face dos hard cases82, que assume, assim, uma importância
precípua do ponto de vista do pragmatismo jurídico (legal pragmatism)83.
Breve, preconiza o pragmatismo jurídico (legal pragmatism), cuja aplicação subs-
crevemos (somente) nos casos difíceis (hard cases), que as consequências e resultados

79 Por essa razão, entende-se que “a Fórmula do Peso está intrinsecamente ligada ao discurso jurídico.
Ela exprime uma forma argumentativa básica do discurso jurídico”; por isso, ela é ligada “à Fórmula da
Subsunção como a única forma argumentativa básica do discurso jurídico”; neste preciso sentido, em lín-
gua inglesa, Robert Alexy, “On Balancing and Subsumption”, in: Ratio Juris, n.º 16, (2003),
pp. 433-448; Robert Alexy, On the Nature of Legal Principles, Archives for Philosophy of Law, vol.
Supl. 119, Franz Steiner & Nomos, (2010), pp. 9-18; Robert Alexy, A Theory of Legal Argumen-
tation, Oxford, Claredon Press, (1989), pp. 221-230; em língua alemã, monograficamente, Ernst-
-Wolfgang Böckenforde, “Grundrechte als Grundsatznormen. Zur Gegenwartige Lage der
Grundrechtesdogmatik”, in: Böckenförde, Staat, Verfassung, Demokratie, Suhrkamp, Frankfurt am
Main, (1991), pp. 188-190; Robert Alexy, Theorie der Juristichen Argumentation, (1978), 6.ª Ed.,
Frankfurt am Main, Suhrkamp, (2008), pp. 273-283.
80 Sobre o tema, na doutrina norte-americana, Ronald Dworkin, Taking rights seriously, (1997),

pp. 81 e ss; Ahron Barak, The Judge in a Democracy, (2006), pp. 13 e ss.
81 O Direito encontra o seu ponto gravitacional na actividade judicial; tudo se resume a saber, portanto,

a forma pela qual o juiz decidirá o caso concreto, uma vez que “It matters how judges decide cases”;
Ver, na doutrina norte-americana, Ronald Dworkin, Law’s Empire, Hart Publishing, London,
(1998) (reimp. da edição de 1986), p. 1; Ronald Dworkin, A Matter of Principle, Clarendon Press,
Oxford, (2001) (reimp. da ed. de 1985), pp. 10 e ss; Ronald Dworkin, Taking rights seriously,
Duckworth Books, London, 2nd edition, (1982), pp. 3 e ss.
82
Para uma panorâmica geral da forma como os juízes pensam, na doutrina norte-americana,
Richard Posner, How judges think, (2008), que refere a p. 13, “que as filosofias judiciais são ou
racionalizações para decisões tomadas por outros fundamentos ou armas retóricas”; com muito interesse,
defendendo no âmbito jurídico-constitucional norte-americano, o minimalismo, Cass Sunstein,
Radicals on Robes, (2005), passim; para uma crítica acerba à posição doutrinal de Cass Sunstein,
v., na doutrina norte-americana, Ronald Dworkin, “Looking for Cass Sunstein”, in: The New
York Review of Books, (2009), 56.
83 Ainda que, muito recentemente, a doutrina norte-americana, se bem que no âmbito do (aceso

e ancestral) debate doutrinal entre HART-DWORKIN, profetize o “fim da jurisprudência”; Scott


Hershovitz, “The End of Jurisprudence”, in: Yale Law Journal, January-February 2015, Volume
124, N.º 4, (2015), (882-1345).

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938 Hugo Luz dos Santos

práticos das decisões judiciais, em relação ao caso concreto como ao sistema como
um todo, devem ser o factor decisivo na actuação dos tribunais84.
No caso concreto, a distribuição dinâmica do ónus da prova que impende sobre
os casinos de Macau, traduzido no encargo processual de provar que a liquidação do
imposto devido à Fazenda Nacional da Região Administrativa Especial de Macau,
emergente da determinação quantitativa das outstanding chips é excessivo; é jurídico-
-constitucionalmente sustentável.
A significar que, em sede do framework originalism85, esse é o original meaning
da norma constitucional que canoniza o princípio da dignidade da pessoa humana
dos cidadãos da Região Administrativa Especial de Macau (artigo 30.º, da Lei
Básica de Macau) – pois é o recebimento completo e regular das receitas fiscais
que a operacionaliza –; na medida em que “the interpreters must be faithful to the
original meaning of the constitutional text and the principles that underlie the text”86;
sendo essa a razão pela qual autorizada doutrina norte – americana refere que
“there are benefits that are hard or impossible to quantify (such as human dignity)”87.

Horta, Faial (Açores, com um relance do olhar para o Pico)


04 de Maio de 2015.

84
Sobre este debate, na doutrina norte-americana, Richard Posner, Law, pragmatism and democ-
racy, (2003), passim; Jules Coleman, The pratice of principle: in defence of a pragmatic approach to legal
theory, (2001), passim.
85 Na doutrina norte-americana, Jack M. Balkin, “Framework Originalism and The Living

Constitution”, Public Law & Legal Theory Research Paper Series, Research Paper n.º 82, in: Yale
Law Journal, February 2008, (2008), p. 4.
86 Jack M. Balkin, “Framework Originalism and The Living Constitution”, cit., p. 4; Jack M.

Balkin, “The New Originalism and The Uses of History”, in: Fordham Law Review, Vol. 82
(2013), p. 647.
87 Na doutrina norte-americana, Cass R. Sunstein, “The Real World of Cost-Benefits Analy-

sis: Thirty-Six Questions (and almost as many answers)”, in: Columbia Law Review, January 2014,
Volume 114, Number 1, (2014), p. 177.

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão
de informações devidas pelo credor fidejussório ao fiador
DR.ª TÂNIA DE FREITAS ANDRADE

Sumário: § 1. Considerações introdutórias: 1.1. Configuração do problema; 1.2. A fiança:


noções gerais; 1.3. Breve análise das posições das partes decorrentes da prestação de fiança.
§ 2. Deveres acessórios de informação do credor fidejussório: 2.1. A boa fé na base da
cominação de deveres acessórios de informação; a tutela da confiança e a materialidade sub-
jacente; 2.2. O princípio da autodeterminação do potencial beneficiário da informação;
2.3. O princípio da liberdade geral de acção do potencial devedor da informação enquanto
contrapeso na cominação do dever; a ponderação; 2.4. Breves conclusões acerca das razões
justificativas dos deveres de informação; 2.5. Necessidade do dever de informação do credor
fidejussório ao fiador e fundamento para a sua imposição. § 3. O exercício abusivo do cré-
dito fidejussório: 3.1. O abuso do direito: considerações gerais; 3.2. As figuras do abuso do
direito; 3.3. O exercício abusivo do crédito fidejussório. Bibliografia.

§ 1. Considerações introdutórias

1.1. Configuração do problema

A relação fidejussória, resultante da celebração da fiança, é aquela que se


estabelece entre duas partes quando uma garante um crédito da contraparte, o
credor fidejussório, sobre terceiro devedor, ocorrendo deste modo a alocação
do risco do incumprimento do crédito garantido. É uma relação que, estando
dependente de outra entre o mesmo credor e o devedor principal, terceiro
à fiança, pode facilmente colocar em situação de especial vulnerabilidade o
fiador, que garante o cumprimento de uma obrigação, uma vez que este não
é parte no contrato que dá origem ao crédito garantido e, desse modo, não
tem conhecimento dos factos e vicissitudes que se vão verificando no seio da
relação base. Embora em certos casos a prestação da fiança possa decorrer de

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940 Tânia de Freitas Andrade

um contrato trilateral, celebrado entre todos os três envolvidos, o fiador conti-


nua a não ser parte na relação que deu origem à obrigação garantida, pelo que
ainda assim se encontra numa situação de precariedade no que diz respeito ao
conhecimento dos factos que se vão verificando a propósito dessa relação ao
longo da execução do contrato. O conhecimento destes factos poderá assumir
importância para o fiador, na medida em que a sua obrigação é definida à luz
da do devedor principal, podendo os acontecimentos que afectem, positiva ou
negativamente, a posição deste ter também relevância na forma como se desen-
volve a posição do fiador. Não tendo ele conhecimento directo e por si próprio
desses factos, levanta-se a questão relativa à cominação de deveres acessórios
de informação em seu benefício, os quais lhe permitiriam aferir a evolução do
risco da fiança e tomar conhecimento, atempado, das vicissitudes que afectem a
relação cuja obrigação garante e que sejam, por isso, idóneas a afectar também
a sua posição, permitindo uma melhor promoção da sua autodeterminação –
estão aqui em causa deveres de informação relativos aos factos que influenciem
a relação principal e o conteúdo da obrigação garantida e que, desse modo,
afectem também a posição do fiador; o devido conhecimento destes factos
permitiria ao fiador tutelar da forma que lhe parecesse mais conveniente a sua
posição e tomar decisões com a adequada consideração de todas as condicio-
nantes relevantes que no caso surjam.
A cominação de deveres de informação em benefício do fiador é contro-
versa, sobretudo tendo em conta as características da relação de fiança, que aca-
bam por ser fundamento para a colocação de entraves, os quais se afiguram ainda
assim ultrapassáveis. Ultrapassados os alegados problemas relativos à estrutura da
fiança, deverá a cominação ser estudada tendo por base as posições em que as
partes se encontram e a regra de conduta segundo a boa fé, por forma a que a
solução encontrada esteja em conformidade com o sistema, já que o dever de
informação é um dever acessório e estes derivam da boa fé. Admitindo-se que
exista um direito do fiador a que lhe sejam prestadas determinadas informações,
também se discute se podem ser obrigados à sua prestação o credor fidejussório
e/ou o devedor principal, tendo em conta as especificidades das relações em
presença e a trilateralidade da fiança, e em que moldes estará cada um obrigado,
sobretudo quando haja concurso entre a cominação a ambos. Naquilo que
releva para a apreciação do exercício do crédito fidejussório, tem importância
aferir a admissibilidade da cominação de tais deveres ao credor fidejussório,
enquanto titular do direito de crédito perante o fiador – este está vinculado
apenas e só perante ele –, já que lhe cabe o exercício do crédito, ainda que a
fiança tenha sido prestada por contrato com o devedor principal. Terá, tam-
bém, interesse paralelo proceder a breves considerações relativas à cominação

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 941

de deveres de informação ao devedor principal, uma vez que poderá influenciar


a cominação do mesmo dever ao credor fidejussório.
Numa primeira fase, importa proceder, então, ao estudo da possibilidade
de cominar deveres de informação ao credor a favor do fiador. Numa fase pos-
terior, cabe estudar que possíveis consequências enfrenta o credor que exerce
o seu direito em violação do dever em causa, nomeadamente averiguar se o
exercício do respectivo crédito pode, ou não, ser considerado abusivo quando
tenha sido, como se disse, previamente incumprido o dever de informação a
que se conclua estar obrigado, omitindo as informações legalmente devidas ao
fiador. Considerar-se o exercício abusivo, no sentido de inadmissível, poderá
ter importantes consequências para as partes, sobretudo no sentido de proteger,
num momento posterior, o fiador das consequências implicadas na violação
do dever de informação, dever este que assume igualmente uma função de
protecção do seu beneficiário – protecção no sentido de promover o conheci-
mento de factos relevantes para que possa mover-se de forma adequada e sem a
ocorrência de vícios na formação da sua vontade. A apreciação da conduta do
credor fidejussório quanto à sua admissibilidade perante a violação de deveres
de informação terá relevância em casos circunscritos e não visa toda e qualquer
hipótese de violação desses deveres; aliás, a violação do dever dará, por si só,
origem a responsabilidade civil, pelo que apenas em casos específicos em que
seja contrário ao sistema permitir o exercício do crédito fidejussório se questio-
nará se esse exercício é, ou não, abusivo.
O presente estudo implica, assim, que sejam abordadas duas grandes temá-
ticas, que acabam por estar interligadas: i) a regra de conduta segundo a boa fé,
da qual resultará, ou não, a cominação do dever de informação, e ii) o abuso do
direito, enquanto exercício inadmissível de posição jurídica por violação dos
limites impostos pela boa fé e segunda via para garantir o respeito pelos valores
que estão na sua base. Deste modo, será possível averiguar a admissibilidade, ou
não, do exercício pelo credor fidejussório, perante o fiador, da posição em que
se encontra, exigindo-lhe o cumprimento da obrigação a que se encontra vin-
culado nos casos em que, estando obrigado a prestar informações que tenham
por objecto factos relevantes relativos à relação principal, não o faça no tempo
devido, tomando o fiador deles conhecimento em momento já inoportuno
para conformar devidamente a sua vontade e as suas decisões, maxime quando é
interpelado para cumprir – atente-se que esta situação poderá ter como resul-
tado uma excessiva oneração ou prejudicialidade para a posição do fiador, com
a qual ele não contava, ou não podia contar, por desconhecer os factos na sua
origem e da qual ele poderia ter-se salvaguardado se o dever tivesse sido pon-
tualmente cumprido, nomeadamente através da limitação do risco assumido ou
da extinção da fiança. Considerando-se abusiva a conduta do credor fidejussó-

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942 Tânia de Freitas Andrade

rio, importa saber quais as consequências daí decorrentes para as partes e como
se articulam as posições de cada um dos envolvidos.
Uma última nota para que fique assente, desde já, que o presente estudo
não se apresenta possível em moldes de estabelecer soluções concretas e gene-
ricamente aplicáveis, tendo em conta o campo em que se insere: por um lado,
as relações fidejussórias podem ser muito diversificadas, pelo que cada caso
apresentará características próprias que importam considerar; por outro lado, no
que respeita à regra de conduta segundo a boa fé, joga-se com situações concre-
tizáveis em cada caso concreto, de modo que é a própria essência dos deveres
acessórios que determina que eles se moldem na base da relação negocial em
causa e em consonância com as necessidades de protecção e prevenção de danos
presentes em cada situação. De igual modo, o abuso do direito apresenta-se
como instituto a ser aplicado in casu e de acordo com as suas configurações
específicas. Assim, o presente estudo pretende apresentar modelos de solução
que se afigurem, em abstracto, válidos e admissíveis, mas cuja aplicação depen-
derá da apreciação e ponderação em cada caso concreto.

1.2. A fiança: noções gerais

A fiança1 é o contrato que dá origem à relação fidejussória e depende da


expressa prestação de fiança, caracterizando-se por um terceiro2, o fiador, assu-
mir o risco do incumprimento de uma obrigação de outrem através da consti-
tuição de uma obrigação perante o credor fidejussório, garantindo, assim, a sua
satisfação, tal como resulta do artigo 627.º CC, e respondendo, nos termos do
artigo 634.º CC, pelas consequências legais e contratuais do incumprimento do
devedor principal. Na medida em que associa à obrigação principal a obrigação
de o fiador realizar aquela aquando do seu incumprimento, esta relação con-

1
Sobre a fiança em geral, cfr., entre outros, J. Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida: Sobre
o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Coimbra: Almedina, 2000; A. Menezes Cordeiro,
Tratado de Direito Civil, vol. X, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 423 e ss.; Pestana de Vasconcelos,
Direito das Garantias, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, pp. 83 e ss.; L. Menezes Leitão, Garan-
tias das Obrigações, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, pp. 105 e ss.; e Almeida Costa, Direito das
Obrigações, 12.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, pp. 888 e ss..
2 Considera-se que o fiador é terceiro face à relação base que deu origem ao crédito cujo cum-

primento é garantido.

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 943

figura a constituição de uma garantia especial3 pessoal4 por intermédio da qual


o fiador se responsabiliza pelo cumprimento da obrigação, podendo ser-lhe
exigido esse cumprimento e respondendo por ela o seu património, nos termos
da regra geral de que pelas obrigações das partes respondem os seus bens – dá
assim origem a um aumento do património responsável perante o credor5, uma
vez que, tanto o fiador, como o devedor principal, estão obrigados e, pelas suas
obrigações, respondem os seus patrimónios. À semelhança do que permite o
artigo 602.º CC quanto à garantia geral das obrigações, deve considerar-se que
também o fiador poderá limitar, nos termos do mesmo artigo, o património
afecto ao cumprimento da obrigação, desde que este não se afigure manifesta-
mente insuficiente perante a prestação devida6.
Constituindo-se na esfera do fiador uma obrigação perante o credor de
cumprir uma obrigação de conteúdo igual àquela a que está adstrito o devedor
principal quando este não a cumpra, podemos questionar se a obrigação do
fiador é autónoma. Atendendo ao regime legal da fiança, previsto nos artigos
627.º e seguintes CC, e às suas características – a acessoriedade e a subsidia-
riedade, a abordar infra –, é de considerar que a obrigação do fiador constitui
uma obrigação própria e diferenciada7 da do devedor principal. Com efeito,
o fiador garante o cumprimento de uma obrigação já existente entre o credor
fidejussório, perante quem se vincula, e o devedor principal, resultante de um
contrato entre estes dois. Assume a obrigação de, verificadas certas circunstân-
cias, nomeadamente o incumprimento pelo devedor, cumprir nos termos em
que este está obrigado ou em termos diversos estipulados pela declaração de

3 Note-se que a regra é que pelas dívidas responde o patrimínio próprio do devedor, constituindo
esse património a garantia geral do cumprimento, nos termos do artigo 601.º CC. Todas as garan-
tias que se lhe venham juntar são, então, garantias especiais.
4 Sobre a distinção entre garantias pessoais e garantias reias, cfr., entre outros, L. Menezes Lei-

tão, Garantias…, pp. 95-96, e Almeida Costa, Direito…, pp. 881-884, tendo presente que na
garantia pessoal há uma pessoa que se vincula ao cumprimento da obrigação, enquanto na garan-
tia real há um bem, do devedor ou de terceiro, que é afecto, preferencialmente, ao cumprimento
de determinada obrigação.
5
Pestana de Vasconcelos, Direito…, p. 85; L. Menezes Leitão, Garantias…, p. 107.
6 Cfr. Almeida Costa, Direito…, p. 846.

7 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. X, pp. 442-444; Pestana de Vasconcelos, Direito…,

p. 85; L. Menezes Leitão, Garantias…, pp. 106-107; e, mais desenvolvidamente, J. Costa Gomes,
Assunção…, pp. 121 e ss., maxime pp. 130 e ss., onde procura delimitar o conteúdo da obrigação
do fiador face à do devedor e nota, numa manifestação desta individualização de prestações, que
o cumprimento da obrigação do fiador não acarreta o cumprimento nem a extinção da obrigação
do devedor, que continua a ela vinculado face àquele, por força da sub-rogação do artigo 644.º
CC, e que o credor, quando exige o cumprimento ao fiador, faz actuar o direito de crédito de
garantia que tem contra ele e não aquele que tem contra o devedor.

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944 Tânia de Freitas Andrade

prestação de fiança, com respeito pelos limites do artigo 631.º CC – assim, além
do devedor principal estar obrigado por via do contrato base, também o fiador
tem um dever de realizar a prestação, o qual resulta da fiança, havendo duas
obrigações distintas8 e com fontes e regimes também, em regra, diversos. O
credor fidejussório é credor de ambas as obrigações e o conteúdo da obrigação
do fiador, que dá origem ao crédito fidejussório, embora seja uma obrigação
própria, depende, então, do conteúdo da obrigação do devedor9, que dá ori-
gem ao crédito principal.
A obrigação do fiador caracteriza-se, assim, pela acessoriedade10, tal como
resulta expressamente do artigo 627.º, n.º 2, CC; esta característica significa que
a obrigação do fiador é moldada à luz da do devedor principal, estando o seu
regime dependente das vicissitudes e do regime definido para a obrigação prin-
cipal e sendo o seu conteúdo definido em relação a esta. A consulta do regime
legal da fiança demonstra exactamente o que se acaba de dizer, nomeadamente
no que diz respeito à forma da constituição, à validade, ao âmbito, aos meios
de defesa de que dispõe o fiador e à extinção11, na medida em que a acesso-
riedade implica o acompanhamento da obrigação fidejussória face à obrigação
garantida12. Outra importante característica é a subsidiariedade13 da fiança em
relação à obrigação principal e esta tem a sua principal manifestação na consa-
gração do benefício da excussão prévia pelos artigos 638.º e 639.º CC – quer
isto dizer que o fiador pode recusar o cumprimento da obrigação quando o
património do devedor principal não tenha sido excutido; quando, tendo-o
sido, o crédito não tenha sido satisfeito por culpa do credor; e quando tenham
sido constituídas garantias reais. O fiador pode renunciar a este benefício nos
termos do artigo 640.º, alínea a), CC e a sua invocação pode ser impedida
nos termos da sua alínea b), afastando então a subsidiariedade característica da

8 Em considerações sobre as garantias pessoais em geral, cfr. J. Costa Gomes, Assunção…, pp.
57 e ss..
9 Almeida Costa, Direito…, p. 889.

10
De resto, é característica das garantias em geral, na medida em que elas são funcionalizadas e
dependentes relativamente à obrigação assegurada. Para mais desenvolvimentos, cfr. Cláudia
Madaleno, A acessoriedade nas garantias das obrigações, Lisboa: FDUL, 2009, maxime, a propósito da
fiança, pp. 139 e ss.; A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. X, pp. 172 e ss.; e J. Costa Gomes,
Assunção…, pp. 106 e ss..
11 Cfr. L. Menezes Leitão, Garantias…, pp. 109-110; Pestana de Vasconcelos, Direito…, pp.

87-88; e A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. X, pp. 440-442.


12 Cláudia Madaleno, A acessoriedade…, p. 155.

13 Para considerações gerais a respeito da subsidiariedade, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…,

vol. X, pp. 184 e ss..

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 945

obrigação do fiador14 e, portanto, um meio de defesa contra a interpelação para


cumprimento do credor fidejussório.
A fiança deve ser prestada por declaração expressa, nos termos do artigo
628.º, n.º 1, CC, devendo esta declaração revestir a forma exigida para a cons-
tituição da obrigação principal – assim, vigorando embora a regra geral da
liberdade de forma do artigo 219.º CC, quando ao contrato base seja imposta
forma especial, essa mesma forma será imposta à fiança, sob pena de nulidade,
nos termos do artigo 220.º CC; a declaração de prestação de fiança tem de ser
sempre expressa. Por outro lado, quando a lei não imponha forma especial
ao contrato, mas essa seja adoptada por convenção das partes, é duvidoso que
a forma convencionada seja imposta à fiança, devendo-se considerar que ela
poderá ser validamente prestada sem a sua observância, uma vez que a con-
venção de adopção de forma especial inter partes não parece dever vincular o
terceiro fiador.
A propósito da forma da declaração da vontade de prestar fiança, discute-se
se esta tem natureza contratual ou se pode, pelo contrário, resultar de negócio
jurídico unilateral15. A posição maioritária vai no sentido da exigência de con-
trato16, o qual poderá ser celebrado entre o fiador e o credor, inclusive sem
conhecimento ou contra a vontade do devedor, conforme resulta do artigo
628.º, n.º 2, CC; entre o fiador e o devedor principal, sendo considerado um
contrato a favor de terceiro; ou entre as três partes, sendo então um contrato
plurilateral. Melhor solução parece resultar da admissibilidade da prestação de
fiança por negócio jurídico unilateral17 fundamentada na ausência de referência
legal à exigência de contrato ou de aceitação pelo credor, ausência que pode ser
conjugada com referências legais das quais se podem retirar indícios da unilate-
ralidade, nomeadamente a desconsideração da vontade do devedor, a renúncia
ao benefício da excussão – sendo a renúncia um acto unilateral –, e até mesmo
a redacção do artigo 628.º, n.º 1, CC18, que aponta também no sentido da
unilateralidade da prestação de fiança.

14 Cfr., entre outros, Pestana de Vasconcelos, Direito…, pp. 88-90, e A. Menezes Cordeiro,
Tratado…, vol. X, pp. 444-445 e 486 e ss..
15 Para mais desenvolvimentos a propósito da discussão, cfr. J. Costa Gomes, Assunção…, pp.

377 e ss..
16 Assim, J. Costa Gomes, Assunção…, pp. 388-389; Pestana de Vasconcelos, Direito…, p. 85;

L. Menezes Leitão, Garantias…, p. 95; e P. Romano Martinez e P. Fuzeta da Ponte, Garan-


tias de Cumprimento, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, p. 90.
17 Na linha de A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. X, pp. 451-454.

18 Os defensores da natureza contratual interpretam este preceito apenas com o sentido de que

somente a declaração do fiador tem de seguir a forma exigida, o mesmo já não se aplicando à
declaração de aceitação da contraparte, que segue a regra da liberdade de forma.

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946 Tânia de Freitas Andrade

1.3. Breve análise das posições das partes decorrentes da prestação de fiança

A prestação de fiança tem também, claramente, consequências ao nível


das posições das partes, enquanto resultado das relações envolvidas; à relação
principal, chamada “relação de valuta”, que resulta da constituíção da obrigação
principal/garantida entre o devedor principal e o credor, junta-se a constituição
da relação de garantia, chamada “relação fidejussória”, que é resultado, preci-
samente, da prestação de fiança e que se estabelece entre o fiador e o credor
fidejussório. A relação de valuta não se encontra directamente ligada à fiança
e assume relevância no seio do concreto contrato celebrado entre as partes e
nos casos de ligação resultante da acessoriedade e dependência entre as obri-
gações. Relevante para o objecto do presente estudo é a relação fidejussória,
da qual resulta o crédito fidejussório, e as posições então constituídas; a relação
de valuta assume importância “marginal”, enquanto relação no seio da qual se
irão desenvolver os factos que poderão dar origem à constituição de deveres de
informação.
É ainda usual a existência de uma terceira relação resultante da ligação entre
o devedor principal e o fiador, na medida em que este é, regra geral, apre-
sentado ao credor para a prestação da fiança pelo devedor. Admitindo-se que
entre eles seja celebrado um contrato em que o fiador se vincule a garantir uma
obrigação perante o credor19 ou um contrato de prestação de fiança a favor do
credor, já que a mesma pode ser celebrada com o devedor, sucede que, maiori-
tariamente, a relação que se estabelece entre estes dois é constituída por acordo
que não assume qualquer vinculatividade jurídica, geralmente decorrente de
uma ligação especial que exista entre eles.
A situação fidejussória engloba, assim, três intervenientes – devedor prin-
cipal, fiador e credor fidejussório – e três relações distintas, ainda que a que se
estabelece entre devedor principal e fiador não seja necessariamente negocial,
estando todos eles interligados; por vezes, viu-se já que pode esta ser uma rela-
ção trilateral resultante de um contrato celebrado entre as três partes. Ressal-
vados devem ficar os casos em que a fiança seja prestada sem o conhecimento
ou contra a vontade do devedor principal, considerando-se que nesses casos
não se estabelece qualquer relação entre o fiador e este último, salvo algumas
situações estabelecidas pelo Código. Já nos casos em que a fiança seja celebrada
com o devedor a favor do credor, é seguro afirmar que se estabelece ainda uma
relação jurídica entre fiador e credor fidejussório, já que este é o beneficiário

19
Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios de informação. Em especial, os deveres de
informação do credor perante o fiador”, in Revista de Direito das Sociedades, A. V (2013), n.º 1/2,
pp. 181-281 (185-187).

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 947

do contrato e o titular do direito de crédito e o fiador está perante ele obrigado


ao cumprimento da prestação – fala-se, aqui, em contrato a favor de terceiro.
Na relação entre devedor principal e fiador, ainda que não haja qualquer
estipulação negocial entre eles, é especialmente importante o regulado pelos
artigos 644.º e seguintes CC. Assim, desde logo a sub-rogação do fiador na
posição do credor, já referida e prevista no artigo 644.º CC, ficando aquele na
mesma posição que cabia ao credor perante o devedor no momento em que
cumpriu a sua obrigação e tendo um crédito contra este na medida do paga-
mento que efectuou, tal como resulta do artigo 593.º, n.º 1, CC – note-se que,
embora cumprindo uma obrigação própria, a posição do fiador é legalmente
equiparada à posição de alguém que cumpre a obrigação de terceiro por força
da garantia do cumprimento, tal como resulta ainda do artigo 592.º, n.º 1,
CC. Outros direitos do fiador contra o devedor, além daqueles que resultam
da sub-rogação, estão dependentes da estipulação pelas partes na eventualidade
de a fiança ser prestada por contrato celebrado entre ambos ou de existir um
outro contrato qualquer nesse sentido20. De resto, os artigos 645.º a 647.º
CC impõem às partes deveres de aviso sobre o cumprimento da prestação e os
meios de defesa de que o devedor dispõe contra o credor e o artigo 648.º CC
regula a admissibilidade do pedido de liberação ou de prestação de caução do
fiador contra o devedor principal21.
Maior relevância assume a relação que se estabelece entre o credor fidejus-
sório e o fiador, porque dela resulta o crédito fidejussório cuja admissibilidade
do exercício se pretende analisar e uma vez que o fiador se obriga perante o
credor, ainda que, eventualmente, seja por contrato celebrado com o devedor
principal, sendo ele o único que lhe pode exigir o cumprimento, enquanto
titular do direito de crédito em questão. Um dos pontos mais relevantes a pro-
pósito desta relação diz respeito ao já abordado benefício da excussão prévia.
Além disso, uma importante chamada de atenção para os meios de defesa de
que o fiador dispõe, uma vez que, nos termos do artigo 637.º CC, além dos
próprios meios de defesa, que dirão respeito a vicissitudes próprias da relação
estabelecida entre eles e da declaração de prestação de fiança, ele poderá opor
ao credor aqueles meios de defesa que, sendo compatíveis com a sua obrigação,

20
Almeida Costa, Direito…, p. 899, e A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. X, p. 492.
21
Para mais desenvolvimentos, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. X, pp. 491 e ss.; L.
Menezes Leitão, Garantias…, pp. 114 e ss.; Almeida Costa, Direito…, pp. 899 e ss.; e Pestana
de Vasconcelos, Direito…, pp. 92 e ss.. Mais desenvolvidamente sobre o direito à liberação, e
atenta a sua importância, cfr. J. Costa Gomes, Assunção…, pp. 835 e ss..

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caibam ao devedor, na medida em que as vicissitudes da relação principal, ten-


dencialmente, influenciam o crédito fidejussório22.

§ 2. Deveres acessórios de informação do credor fidejussório

2.1. A boa fé na base da cominação de deveres acessórios de informação; a tutela


da confiança e a materialidade subjacente

Das relações negociais constituídas entre as partes no exercício da sua auto-


nomia privada23 resulta a assunção de deveres e a correspondente atribuição
de direitos. Nas relações assim constituídas, pelo menos um dos contraentes
está obrigado à realização de uma prestação24 a que o outro tem direito e,
consoante o contrato concretamente celebrado, poderá suceder que ambos
estejam obrigados à realização de prestações mútuas – assim, a obrigação de
realizar determinada prestação constitui um dever da parte vinculada, tendo
a contraparte o direito correspondente ao recebimento dessa prestação, que é
um direito de crédito. No exercício destas posições pelos respectivos titulares
refere o artigo 762.º, n.º 2, CC que «devem as partes proceder de boa fé», seja
no cumprimento da sua obrigação, seja no exercício do direito equivalente.
Questão agora relevante é perceber qual o sentido de “proceder de boa fé”,
enquanto regra de conduta.

22 Para mais desenvolvimentos, cfr. Pestana de Vasconcelos, Direito…, pp. 90 e ss.; A. Mene-
zes Cordeiro, Tratado…, vol. X, pp. 484 e ss.; L. Menezes Leitão, Garantias…, pp. 111 e ss.; e
J. Costa Gomes, Assunção…, pp. 941 e ss..
23
A celebração de negócios jurídicos está na disponibilidade das partes, dentro dos limites legais,
conforme dispõe o artigo 405.º CC. Cai, assim, no âmbito da autonomia privada a decisão de
celebrar um contrato, bem como a inclusão das mais variadas cláusulas, desde que as mesmas ou
os efeitos por elas alcançados não sejam legalmente proibidos – a liberdade contratual abrange a
decisão de contratar e a opção quanto ao conteúdo do contrato. Sobre o princípio da liberdade
contratual, cfr., entre outros, Almeida Costa, Direito…, pp. 228 e ss..
24 As prestações podem ser principais ou secundárias: A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito

Civil, vol. VI, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, pp. 319-320, distingue-as com referência à obri-
gação – assim, a prestação principal será o ponto de vista unitário da obrigação à volta do qual se
ordenam as restantes actuações, correspondentes às prestações secundárias; o conjunto unificado
será a obrigação. As prestações principais e secundárias têm como fonte o contrato e têm subja-
cente a ideia do dever de prestar, tendo sido conhecidas e queridas pelas partes aquando da con-
tratação (cfr., também, pp. 475 e ss.).

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 949

A imposição pelo referido preceito de que as partes se movimentem no


seio negocial de acordo com a regra geral da boa fé25 deve ser entendida como
tendo o objectivo de garantir que, no exercício das suas posições jurídicas con-
tratualmente constituídas, as partes não ajam de modo especialmente prejudicial
entre si, nomeadamente prevenindo que a posição do devedor seja agravada
ou a do credor seja posta em causa26 – facilmente se percebe que a estipula-
ção contratual e a constituição da obrigação e do respectivo direito de crédito
indica o comportamento que deve ser adoptado pelas partes, mas a realização
da prestação pode não ocorrer de modo devido e acarretar danos ou sacrifícios
injustificados para alguma das partes. Assim se compreende que, embora as rela-
ções negociais estejam na disponibilidade das partes e caibam no âmbito da sua
liberdade contratual, o direito não pretenda deixar apenas no critério de cada
contraente o específico modo como ele se irá movimentar e exercer a sua posi-
ção. Por isso, serve-se da boa fé, enquanto regra do sistema, para impor alguns
deveres que, embora limitando a liberdade das partes na sua actuação, visam
tutelar as posições dos sujeitos contratualmente envolvidos, estando então veda-
dos comportamentos que sejam prejudiciais aos efeitos jurídicos pretendidos27
e sendo impostos outros comportamentos que visam uma melhor prossecução
desses mesmos efeitos – tais deveres que são cominados como decorrência da
regra de conduta segundo a boa fé são os deveres acessórios28.

25 A propósito da boa fé, de referir que existem dois conceitos que importam distinguir: i) a boa fé

subjectiva e ii) a boa fé objectiva. A boa fé subjectiva está relacionada com uma situação psicológica
do agente, ou seja, está relacionada com estados relativos à pessoa – tem que ver com o conheci-
mento, ou não, de uma circunstância de facto ou de direito, discutindo-se ainda em que moldes.
A boa fé objectiva surge como algo exterior ao sujeito, que lhe é imposto através de regras, prin-
cípios ou limites, traduzindo uma regra de conduta – está relacionada com uma norma a respeito
das condutas das partes ou dos conteúdos negociais. Aqui relevante é a boa fé objectiva. Sobre a
distinção, cfr., entre outros, A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, pp. 24, 407 e ss., 510 e ss.; Nuno
Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 163-164;
e L. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, pp. 56 e ss..
26
A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, vol. V, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p.
374, considera que a boa fé «surge tão-só como uma via para permitir, ao sistema, reproduzir,
melhorar, corrigir e completar as suas soluções».
27 A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra: Almedina, 2013 (5.ª reimp.), p. 649.

28 Sobre os deveres acessórios em geral, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. VI, pp. 321-323

e 510 e ss.. Estes deveres são impostos pelo direito à relação obrigacional como forma de impor
a prossecução dos valores do sistema e a prevenção de danos nas prestações devidas e nas pessoas
envolvidas e enquanto decorrência da boa fé; complementam, deste modo, os efeitos pretendidos
pelas partes, integrando-se no todo da obrigação através da unificação com os deveres de prestar
e seguindo o seu regime (p. 517). Os deveres acessórios cominados podem ser de três categorias:
de segurança, de lealdade e de informação (p. 322) – cfr., também, A. Menezes Cordeiro, Da
Boa Fé…, pp. 604 e ss..

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950 Tânia de Freitas Andrade

A discussão relativamente à cominação de deveres acessórios às partes pode


ter lugar a propósito das diversas fases negociais que, envolvendo-as enquanto
intervenientes, possam gerar situações dignas de protecção ou situações de
especial desvantagem para uma delas em virtude da posição e do comporta-
mento da outra – discute-se a sua imposição durante a vigência do contrato
e a propósito da sua execução, na sequência do artigo 762.º, n.º 2, CC, mas
também post pactum finitum e envolvendo terceiros à relação que possam estar
obrigados a cumprir tais deveres ou ser deles beneficiários29 e ainda na fase das
negociações, in contrahendo, nos termos do artigo 227.º CC, que impõe especi-
ficamente para esta fase o dever de agir de acordo com a boa fé. Para o estudo
da questão que aqui se pretende levar a cabo assume relevância a cominação de
deveres acessórios na vigência da relação negocial, ou seja, durante a execução
do contrato pelas partes.
Assente fica, assim, que aquela que seja uma “conduta segundo a boa fé”
surge pela via da cominação de determinados deveres acessórios às partes, os
quais deverão ser observados no exercício das respectivas posições contratuais,
prosseguindo a devida execução do contrato sem a ocorrência de danos injus-
tificados para qualquer dos envolvidos. Quer isto dizer que a relação negocial
dá azo a mais do que os deveres correspondentes às prestações principais e
secundárias a que as partes expressa e livremente se obrigaram; a celebração de
um contrato dá origem a situações jurídicas complexas30 em que as partes se

29 Não deverá obstar à cominação de tais deveres após a cessação do contrato ou envolvendo ter-
ceiros o facto de não haver regra nesse sentido, tal como há nos artigos 227.º e 762.º, n.º 2, CC
para a fase de negociações e para a execução do contrato, uma vez que os vectores que preenchem
a “boa fé” são também projectados «na constatação de lacunas e na sua integração onde estes não
encontrarem regulação legal» – Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 193, nota 21.
A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. VI, p. 321, considera que a aplicação da regra de conduta
segundo a boa fé, em geral, para o exercício de quaisquer posições jurídicas fora das previstas nos
artigos 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, CC decorre da regra do artigo 334.º CC, que proíbe a conduta
que desrespeite os limites impostos pela boa fé.
30
Cfr. A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 590, e Tratado…, vol. VI, pp. 319 e ss., que diz que
«não há “obrigações simples”: para executar correctamente aquilo a que se adstringiu, o devedor
deverá sempre proceder a actuações diferenciadas»; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral,
vol. I, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2003 (Reimp.), p. 121; e Nuno Pinto Oliveira, Princípios…,
p. 49, onde caracteriza a relação obrigacional complexa por se concretizar «num conjunto ou num
sistema de direitos subjectivos propriamente ditos e de deveres jurídicos, de direitos potestativos e de estados
de sujeição, de excepções, de ónus e de expectativas jurídicas». L. Menezes Leitão, Direito…, vol. I, pp.
123-126, dá à obrigação um sentido que abrange «o conjunto de situações jurídicas geradas no
âmbito da relação entre o credor e o devedor», abrangendo i) o dever de efectuar a prestação prin-
cipal, ii) o de efectuar as prestações secundárias, iii) os deveres acessórios, iv) sujeições, v) poderes
ou faculdades e vi) excepções.

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 951

encontram colocadas e que vão além das obrigações contratualmente constituí-


das, envolvendo os referidos deveres acessórios. Através da cominação destes
deveres às partes pretende-se que, na pendência da relação contratual – na
execução do contrato –, elas evitem provocar danos mútuos nas suas esferas
pessoais e/ou patrimoniais. Assim, o comportamento dos sujeitos colocados em
situações que implicam um relacionamento específico entre si, como é o caso
das relações negociais, deve respeitar esse conjunto de deveres acessórios que se
reconduzem a uma regra de conduta segundo a boa fé31 e que se concretizam
através de deveres de informação, lealdade e segurança. Podemos considerar,
atendendo ao exposto, que estes deveres se justificam, desde logo, pela relação
de especial proximidade que envolve os intervenientes aquando da celebração
do contrato e na sua pendência – através dos deveres acessórios procura-se
assegurar a devida realização do objecto contratual, conforme a manifestação de
vontade das partes e a sua crença nessa realização, sem que o direito do credor
seja frustrado ou a obrigação do devedor agravada. Do exposto parece resultar
que o sentido da actuação segundo a boa fé imposta pelo artigo 762.º, n.º 2,
CC implica um dever de não prejudicar desproporcionalmente a posição da
contraparte através do exercício da posição de que se é titular, sendo para tanto
cominados os ditos deveres acessórios.
Estando previsto na lei que as partes devem agir de acordo com a boa fé – e
sendo a regra de conduta segundo a boa fé uma imposição do sistema –, parece
que estes deveres têm ainda origem última no contrato que esteja em causa,
sendo o artigo 762.º, n.º 2, CC um meio de normativizá-los no âmbito da boa
fé e o contrato o facto jurídico que lhes dá origem – embora tendo base legal,
a sua fonte última será o contrato; uma vez que o dever de actuação segundo a
boa fé deriva de uma imposição do sistema, os deveres acessórios, independen-
tes da vontade das partes, acabam por ter natureza legal32. Assim, subjacente às
situações em que tais deveres são cominados, temos um relacionamento especí-
fico entre os sujeitos envolvidos e que pressupõe esforços concertados dirigidos
a atingir os objectivos resultantes da situação negocial em que se encontram
– é assim que surgem e se impõem os deveres de lealdade, no sentido de que
as partes não devem assumir comportamentos que contradigam a situação em
que se encontram e livremente se colocaram, e de informação33, no sentido de

31 A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 632.


32
A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, pp. 640 e 646; cfr. também esta última a respeito dos
factos-fonte dos deveres de actuar segundo a boa fé, por esta normativizados.
33 A propósito dos deveres de informação importa notar a distinção feita por Jorge Sinde Mon-

teiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Coimbra: Almedina, 1989, pp.
409 e ss., e Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, pp. 191-193 entre deveres de infor-

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952 Tânia de Freitas Andrade

que não devem ser omitidas ou adulteradas informações idóneas a influenciar a


actividade da contraparte.
A boa fé apresenta-se na origem de uma regra de conduta enquanto regra
geral do sistema; mas, pelo que resulta das normas que expressamente a pre-
vêem, é um conceito indeterminado cujo conteúdo necessita de ser preen-
chido com recurso a outras valorações, das quais serão retirados critérios deci-
sórios para a cominação dos deveres de informação que se tenha por devidos34.
Importa, então, procurar os vectores através dos quais se possa concretizar o
conteúdo da boa fé e apurar a dita regra de conduta. São, desde logo, apre-
sentados dois princípios principais para prosseguir essa concretização e aferir as
condutas impostas pela boa fé: o princípio da tutela da confiança e o princípio
da primazia da materialidade subjacente (também designado princípio da mate-
rialidade da relação jurídica) – a análise dos vectores que permitem apurar cri-
térios para definir a conduta segundo a boa fé e assim fundamentar a cominação
de deveres acessórios a que agora se procede terá especificamente em linha de
conta a cominação de deveres de informação, pois são estes que relevam para
o presente estudo.
O princípio da tutela da confiança será relevante quando haja uma situação
de confiança que mereça a tutela do Direito e que tende a ser identificada pelo
preenchimento de determinados requisitos. No entanto, importa aqui fazer
uma distinção aquando da sua aplicação: sendo, por um lado, utilizado princi-

mação stricto sensu e deveres de esclarecimento. Assim, os primeiros funcionam mediante a soli-
citação pelo seu beneficiário que cria a obrigação na esfera do devedor da informação, sendo que
«o titular de um direito de informação tem uma mera faculdade potestativa que pode exercer
contra o devedor de informação (que até à eficácia desse exercício não é, em rigor, um devedor,
encontrando-se num correlativo estado de sujeição)» (“Deveres acessórios…”, p. 192) e os segundos
implicam uma obrigação de o devedor da informação comunicar os factos em questão esponta-
neamente, pelo que «o direito de esclarecimento surge na esfera do seu titular mal se verifiquem
os seus pressupostos, nos quais não se inclui qualquer exercício potestativo da sua parte» (“Deve-
res acessórios…”, p. 192). Cfr. também a distinção feita por Nuno Pinto Oliveira, Princípios…,
pp. 188-190, onde apresenta três requisitos para os ditos deveres de esclarecimento: i) a assimetria
informacional, ii) a essencialidade da informação, e iii) a exigibilidade da informação resultante
da ponderação de todas as circunstâncias do caso concreto – estes requisitos poderão ser recon-
duzidos aos que serão analisados a propósito da cominação do dever de informação; por outro
lado, considera que o princípio geral a propósito do dever de informação é o de que cada parte
tem o dever de comunicar à outra todos os elementos que lhe tenham sido solicitados. Considere-
-se, assim, a referência a deveres de informação como abrangendo as duas realidades, atendendo
a que a distinção prende-se em grande parte com a força das razões que justificam a imposição
de tais deveres e a consequente restrição da liberdade de agir do devedor da informação, embora
considerando em primeira linha os deveres de esclarecimento, deveres de prestação espontânea.
34 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, pp. 1189 e ss..

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 953

palmente para fundamentar a responsabilização da parte que, estando obrigada a


prestar informações, não as prestou, causando danos ao beneficiário, por outro
lado, e este é o ponto que aqui interessa, o mesmo poderá e deverá ser utilizado
enquanto fundamento para decidir da imposição desse dever de informar – do
que aqui se trata é do fundamento, da razão que justifica tal dever, não ainda
da consequência do seu incumprimento e do fundamento da responsabilização.
São apontados quatro pressupostos35 para aferir a aplicabilidade do princípio:
i) a existência de uma situação de confiança, no caso, na prestação de infor-
mações36; ii) a justificação dessa confiança; iii) um investimento de confiança
sobre a crença criada; e iv) a imputação dessa situação de confiança ao eventual
obrigado. É a respeito destes pressupostos que assume relevância a distinção
entre a fase da cominação dos deveres e a fase da responsabilização pelo seu
incumprimento: estes quatro pressupostos permitem aferir a ilicitude da vio-
lação do dever de informação, sendo depois imposto o preenchimento dos
demais pressupostos da responsabilidade civil, nos termos gerais; a cominação
do dever de informar, por sua vez, dispensará a verificação do terceiro pressu-
posto37, que é indicativo de haver uma posição a proteger e causalidade entre
o facto e o dano a ressarcir38 – o dano poderá relevar, porém, se considerarmos
que a tutela da confiança só se justifica quando a conduta contrária à boa fé
for susceptível de causar danos ao tutelado39. Estes requisitos funcionam num
sistema móvel, de modo que a especial intensidade do preenchimento de um
deles poderá compensar o menor nível de verificação de outro ou até mesmo a

35 Assim, A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 1248; Nuno Pinto Oliveira, Princípios…, p.

178; M. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra: Almedina,


2007 (Reimp.), p. 585; e Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, pp. 197-198.
36 Aferir da existência de uma situação de confiança susceptível de protecção pela imposição de

um dever de informação à contraparte implica questionar se o beneficiário confiou na prestação


dessa informação, já que a confiança «exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos
de actividade ou de crença, a certas representações que tenha por efectivas» – A. Menezes Cor-
deiro, Da Boa Fé…, p. 1234; cfr. também Miguel Britos Bastos, “Deveres acessórios…”, p.
199. Afirma A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 650, que a confiança é «uma ocorrência
potencialmente perigosa», sendo notória a prejudicialidade que o investimento de confiança pode
acarretar para a parte que a formou com base no comportamento daquele com quem se relacione
perante situações em que não tenha havido uma correcta prestação de informações ou em que a
parte que gerou a confiança não aja em conformidade. Através dos deveres acessórios procura-se
assegurar o respeito pela confiança criada.
37 Neste sentido, Nuno M. Pinto Oliveira, Princípios…, pp. 178-179.

38 M. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança…, p. 596.

39 Cfr. João Baptista Machado, “Tutela da Confiança e ‘Venire Contra Factum Proprium’”, in Obra

Dispersa, vol. I, Braga: Scientia Iuridica, 1991, pp. 345-423 (365).

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sua ausência40. Perante a questão da constituição de deveres de informação com


fundamento na tutela da confiança e devido à discussão sobre a adopção de uma
concepção normativa de confiança, é importante saber se há outro princípio
que permita, também, justificar essa cominação, tendo em conta que, por si só,
o princípio da tutela da confiança implica uma restrição da liberdade das partes,
característica do ordenamento contratual41. A confiança será protegida quando
haja norma nesse sentido ou quando, da sua preterição, resulte a violação do
dever de actuar de boa fé42.
Por outro lado, o princípio da primazia da materialidade subjacente visa
prosseguir uma situação de paridade entre as partes, em que elas possam inte-
ragir negocialmente em posições de igualdade e liberdade e tomar decisões de
forma consciente e com conhecimento de todas as informações que possam
relevar na formação da sua vontade. Nesta medida, o princípio da materialidade
procura obter uma melhor regulação das relações materiais que se estabelecem
entre os sujeitos que interagem em situação de pretensa paridade negocial,
visando atingir situações que se considerem de maior justiça e, de certa forma,
afastando alguns formalismos subjacentes às relações em questão e que, a se
manterem, poderiam implicar um comportamento não conforme com a regra
de conduta segundo a boa fé. Assim, este princípio poderá intervir de vários
modos, reforçando a aplicação das normas reguladoras das situações, comple-
mentando essas normas ou corporizando-as43. No âmbito do presente estudo

40 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, pp. 1249 e 1262; M. Carneiro da Frada, Teoria

da Confiança…, p. 586; e Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 199. É de notar que,
por motivos óbvios, a inexistência de uma situação de confiança não poderá ser compensada, não
havendo então cominação do dever de informar. No caso da cominação de deveres de informação
ao credor fidejussório perante o fiador, questão que importa no âmbito do presente estudo, parece
seguro afirmar que, na generalidade dos casos, o credor fidejussório não criou na sua esfera uma
situação de confiança de que lhe seriam prestadas as informações devidas; assim sendo, perante
a inexistência de uma situação de confiança na prestação das informações, a cominação de tais
deveres ao credor estará dependente da verificação de outros princípios que possam justificar a
imposição. O afastamento, à partida, da constituição de uma situação de confiança na esfera do
fiador justifica-se pelas características da fiança e da relação que se estabelece entre as partes, o
que não impede que, num caso concreto, se conclua pela sua existência.
41 Sobre a questão, cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, pp. 200 e ss., e bibliografia

aí citada. Importa também sublinhar, na linha de M. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança…,


pp. 397 e ss., que não existe um dever geral de correspondência à confiança alheia, considerando-o
o Autor, até, inútil, atento o «carácter indiscriminado com que uma adstrição com esse conteúdo
se apresenta» e ainda que seria inconciliável com a liberdade individual.
42 A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, pp. 1247-1248.

43 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 1253, que, naquilo que veremos que nos inte-

ressa, considera que a «complementação de normas, através de deveres de informação e lealdade,


não tem em conta, apenas, as situações particulares visadas, antes introduzindo, nelas, colorações

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assume relevância a vertente complementadora das normas que ocorre pela


cominação de deveres acessórios que visem promover a execução adequada do
contrato e que se integram na relação jurídica constituída entre as partes como
parte do todo negocial que lhes dá origem e cuja ponderação global deve ser
feita.
Traduzida neste princípio, a boa fé parece exprimir uma ideia de busca de
justiça no relacionamento entre as partes sujeita a críticas, tendo em conta que
o sistema contratual não impõe uma situação de igualdade fáctica entre elas
nem visa atingir uma situação de justiça como resultado dos negócios livre e
autonomamente celebrados, além da funcionalização da autodeterminação dos
sujeitos à obtenção da justiça no seio negocial que operaria 44. Esta crítica parece
ultrapassável se se considerar que o princípio da materialidade subjacente não
deve intervir na busca de uma situação totalmente igualitária para as partes45,
mas antes como preenchedor da conduta segundo a boa fé que vise apenas
garantir as condições essenciais às partes para conformarem a sua actuação com
a sua vontade, dispondo, no caso, das informações que se tenha por essenciais
e que numa lógica do sistema sejam consideradas devidas para uma correcta
formação da vontade – o pressuposto essencial para a cominação dos deveres de
informação seria a colmatação de uma situação de extrema disparidade infor-
mativa entre as partes que pudesse viciar a vontade do potencial beneficiário do
dever perante a parte que disponha de uma situação informativa privilegiada,
não necessariamente a busca por um verdadeiro nivelamento informativo. Mais
parece que se pode considerar que a procura de uma situação de maior justiça
ou paridade entre as posições das partes, obtendo assim uma melhor confor-
mação das suas vontades com a realidade, não colide totalmente com o funda-
mento do negócio jurídico – o reconhecimento da possibilidade de os sujei-
tos disporem autonomamente sobre o conteúdo das suas esferas jurídicas e de
conformarem livremente a sua vida46 –, apenas seria uma decorrência da regra

gerais de justiça e equilíbrio que recebe do sistema» e vê subjacente ao princípio da materiali-


dade a função da boa fé de «combate ao formalismo, entendido como submissão rígida dos casos
a decidir às proposições legais tidas por aplicáveis» (p. 1252). Assim se percebe que o princípio
assume um papel importante no afastamento do formalismo com a correspondente valorização
da relação material subjacente à realidade em causa, surgindo como processo que, dos casos em
apreço, retira os traços mais relevantes para facultar modelos de decisão.
44 Para uma visão crítica, cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, pp. 210 e ss..

45 Neste sentido, A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 651, diz que «o Direito não procura

uma igualdade negocial absoluta como regra», mas que o desequilíbrio deve ser esclarecido e a
parte débil deve aceitar, com conhecimento, a desvantagem e as posteriores vicissitudes que afec-
tem as posições dos envolvidos.
46 Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 212.

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de conduta segundo a boa fé, concretizada pelo princípio da materialidade no


sentido de prevenir que a parte mais esclarecida se beneficie dessa vantagem
deixando na ignorância dos factos a parte que deles não conhece nem pode
autonomamente conhecer.
Subjacente à construção que fundamenta a cominação dos deveres de infor-
mação no princípio da materialidade está já uma ideia de prossecução do negó-
cio jurídico e dos actos praticados que estejam com ele relacionados enquanto
verdadeiro exercício de autodeterminação, que só se verificaria quando corres-
pondesse a uma efectiva manifestação da vontade das partes, o que não sucede
quando a disparidade nas posições contratuais seja tal que uma parte consiga,
pela omissão de determinados factos, influenciar o conteúdo negocial e a von-
tade da contraparte. Assim, já neste campo assume importância o princípio
da autodeterminação da parte que desconhece de factos relevantes para a sua
tomada de decisão e que está subjacente à autonomia e liberdade contratual.

2.2. O princípio da autodeterminação do potencial beneficiário da informação

Ao princípio da materialidade subjacente, que visa fundamentar a comina-


ção de deveres acessórios não dependentes da confiança do potencial beneficiá-
rio, parece estar já ligada uma ideia de promoção da autodeterminação deste,
conforme se viu. Ora, funcionando a boa fé com vista à tutela das partes e numa
lógica de sistema aberto e móvel47, diversos princípios podem ser capazes de
fundamentar a cominação de deveres de informação, além dos princípios da
tutela da confiança e da materialidade subjacente, numa ideia de protecção
de eventuais direitos fundamentais em jogo. Nesta linha, surge o princípio da
autodeterminação como razão justificativa para a cominação dos deveres de
informação, que deverá considerar-se um fundamento dos deveres acessórios
em conexão com o princípio da materialidade subjacente.
Esta cominação de deveres de informação fundamentados pelo princípio
da autodeterminação do beneficiário surge em moldes que visam promover
um esclarecido desenvolvimento da vontade negocial deste, que deve dispor
de toda a informação tida por relevante para formar a sua vontade negocial48.
Antes de prosseguir a propósito da autodeterminação enquanto razão justifica-

47
Sobre as características do sistema, cfr. A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, pp. 1258 e ss..
48
Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 214, diz que o conteúdo do princípio da
autodeterminação «tem como condição da sua optimização que a base factual, de que os agentes
disponham para tomarem decisões sobre a prática de actos, integre a totalidade dos factos rele-
vantes para essas decisões».

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tiva da cominação de deveres acessórios de informação, importa apenas notar


que a cominação poderá resultar da aplicação de uma pluralidade de princípios,
ou seja, podemos ter diversos fundamentos para a cominação de deveres de
informação numa mesma situação, sendo embora suficiente para a vinculação
da parte que exista uma razão justificativa49.
O princípio da autodeterminação enquanto razão justificativa da comina-
ção de deveres acessórios advém da necessidade de um fundamento indepen-
dente da situação de confiança do potencial beneficiário e como decorrência,
ao que parece, do afastamento por alguns autores do princípio da materialidade
subjacente – conforme se disse supra, porém, mais correcto será considerar que
ambos os princípios funcionam numa lógica de conexão. O princípio da auto-
determinação surge como fundamento através da verificação de três elementos
essenciais que funcionam em termos de sistema móvel50: i) a relação da infor-
mação com o «círculo funcional»; ii) a carência informativa do beneficiário, afe-
rida pela necessidade da informação para a sua tomada de decisão, tendo maior
peso na cominação do dever quanto mais relevante for a informação em causa;
e iii) a disponibilidade da informação pelo devedor – esta não será um verda-
deiro requisito para a cominação do dever, mas antes um critério que permite
o seu afastamento51 e que tem a ver com a ideia de que seria excessivamente
oneroso e comportaria uma maior restrição da sua liberdade de agir impor à
parte um dever relativo a informação de que não dispõem e que, por isso, teria
de procurar obter. Este terceiro elemento, apresentado directamente para a
cominação de deveres justificados pelo princípio da autodeterminação, deverá
ser considerado enquanto contrapeso para a cominação do dever que funcione
sempre em paralelo com o fundamento que levaria à cominação, numa óptica
de tutela do potencial obrigado e da sua liberdade de agir.
A cominação de deveres de informar com fundamento no princípio da
autodeterminação do potencial beneficiário, gerando uma restrição da liber-
dade geral de acção do potencial obrigado, deve implicar, primeiro, a conside-
ração de critérios que a justifiquem – considere-se que o princípio é aplicável,
na medida em que há uma parte que conforma a sua vontade e toma decisões
e apenas o fará em conformidade através da promoção da sua autodetermina-

49
Neste sentido, Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 221.
50
Stephan Breidenbach, Die Voraussetzungen von Informationspflichten beim Vertragsschluß, Mün-
chen: C. H. Beck, 1996, citado por Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, pp. 216 e ss..
51 Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 218.

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ção –, para, num momento posterior, ser aferida a admissibilidade, ou não, da


restrição operada52.
Enquanto elemento relevante para a cominação, surge a carência informa-
tiva do potencial beneficiário da informação, elemento este que assume especial
relevância se considerarmos que, tendo já ele conhecimento dos factos neces-
sários para a formação da sua vontade53 dentro das exigências do princípio
da autodeterminação, não se justifica a imposição da prestação à contraparte,
pois daqui nenhum benefício resultaria. Também numa perspectiva excludente
deverá ser tida em conta a irrelevância da informação em questão, sendo que
nestes casos, segundo a mesma lógica, não haverá carência informativa no sen-
tido de que não falta ao potencial beneficiário qualquer informação relevante
para a tomada de decisão – portanto, deve ser afastada a cominação do dever de
informação, já que uma informação irrelevante não promove a autodetermi-
nação do agente. A relevância da informação é também importante para aferir
o peso da carência informativa, na medida em que «quanto maior for a impor-
tância do conhecimento de determinada informação, tanto maior será, ceteris
paribus, o peso do princípio da autodeterminação na sua ponderação com a
liberdade do potencial sujeito passivo do dever»54. Portanto, para a cominação
do dever de informação é necessário que o potencial beneficiário esteja numa
situação de carência informativa, no sentido de que não tem, nem pode por si
próprio ter, com razoabilidade, conhecimento da informação em causa, tendo
esta que ser relevante para a tomada de decisão – são, então, apresentados dois
critérios para graduar o peso da carência55: i) a relevância da informação para
o seu potencial beneficiário e ii) a onerosidade da obtenção da informação por
si próprio56.

52 Esta posição é defendida por Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, pp. 222 e ss., que,
afastando a aplicação do princípio da materialidade, apresenta critérios de ponderação para uma jus-
tificação de tais deveres no princípio da autodeterminação do potencial beneficiário, devendo uma
ponderação ser feita nos termos de um sistema móvel e com base em critérios que, não constituindo
um elenco fechado, permitam, in casu, determinar a prevalência de um dos princípios em jogo.
53 Note-se que são equiparáveis as situações em que, não tendo o conhecimento efectivo dos fac-

tos, o potencial beneficiário possa deles conhecer por vias alternativas à prestação da informação
pelo potencial devedor, não devendo, nestes casos, este último sofrer a imposição de deveres para
a comunicação de informações que podem ser obtidas por outras vias, sem especial esforço do
interessado.
54 Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 226.

55 Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 229.

56 A este propósito, defende Eva Sónia Moreira da Silva, As relações entre a responsabilidade pré-

-contratual por informações e os vícios da vontade (erro e dolo): o caso da indução negligente em erro, Coim-
bra: Almedina, 2009, pp. 25 e ss., que o critério passa por um «ónus de autoinformação», consi-
derando que apenas quando o potencial beneficiário tivesse procurado obter a informação por si

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2.3. O princípio da liberdade geral de acção do potencial devedor da informação


enquanto contrapeso na cominação do dever; a ponderação

Tendo sido já referido que a cominação do dever de informação implica


uma restrição da liberdade da parte obrigada, importa saber até que ponto é
admissível essa restrição e em que medida pode a cominação ser afastada, sendo
que quanto maior for a restrição imposta, mais se justifica a não cominação
do dever57. Este é um problema que, abordado a propósito da cominação
do dever de informação com fundamento no princípio da autodeterminação,
levanta-se igualmente quando esteja em causa a aplicação de outro princípio
justificador – qualquer cominação de deveres acabará por ter como consequên-
cia uma restrição da liberdade da parte adstrita à prestação, independentemente
do fundamento daqueles, pelo que o peso desta restrição deverá ser sempre tido
em conta.
Nesta óptica, o elemento a ter em consideração será a disponibilidade da
informação relevante pelo seu potencial devedor58, determinando assim o peso
da restrição da sua posição. Importa, para tal, aferir se o potencial devedor da
informação dispõe dela, se tem conhecimento dos factos a informar à data da
cominação do dever – este conhecimento é relevante se tivermos em conside-
ração que impor o dever de informar sobre factos desconhecidos implica, para
o obrigado, a realização de esforços para a obtenção da informação a prestar e,
assim, cumprir devidamente o seu dever, aumentando o grau de compressão
da sua liberdade, enquanto que o dever de informar sobre factos conhecidos
implica apenas a prestação da informação. No entanto, em situações de especial

próprio é que seria admissível a cominação do dever de informação à outra parte, usando a bitola
do bonus pater familias, em paralelo com o artigo 487.º, n.º 2, CC. Miguel Brito Bastos, “Deve-
res acessórios…”, pp. 228-229, afasta-a, uma vez que está em causa uma bitola de culpa que deve
ser tida em conta para aferir da diligência na prossecução do cumprimento de um dever violado.
Afasta, de resto, o conceito de «ónus de autoinformação» como meio para decidir quais as infor-
mações que deverão ser objecto da cominação de um dever de informar, considerando que o cri-
tério deverá partir da possibilidade do acesso à informação e atribuir-lhe maior ou menor peso
«em função da probabilidade de obtenção dessa informação, bem como do esforço e do custo
necessários» (p. 229). Tudo visto, parece que esta posição é a que melhor se coaduna com toda a
sistemática subjacente, devendo ser sempre conjugada com outro elemento – a disponibilidade,
pelo potencial devedor, da informação devida. Assim, haverá carência informativa relevante para
cominar o dever quando, sendo a informação relevante, a sua obtenção pelo próprio beneficiário
seja demasiado onerosa ou exija um esforço desrazoável da sua parte, considerando que a contra-
parte dispõe da informação em causa.
57 Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 232.

58 A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. VI, p. 516, diz que está vinculada aos deveres de infor-

mação a parte que detém o conhecimento dos factos.

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carência do potencial beneficiário e tendo em conta que o dever, justificado


pela promoção da autodeterminação, visa garantir que o seu beneficiário dispo-
nha da informação necessária para conformar a sua vontade, pode cominar-se
um dever de informação ao sujeito que dos factos a informar não tem, ainda,
conhecimento59; nestes casos, para cumprir o seu dever, o obrigado tem de
obter a informação em causa, o que não constitui uma obrigação sua60, mas
antes uma necessidade de desenvolver comportamentos que estão instrumenta-
lizados, à partida, ao cumprimento de um dever – o de informar. A necessidade
de obter a informação poderá ser excludente do dever de informação, quando
se apresente demasiado onerosa e restritiva para o obrigado, o que funciona
em termos paralelos aos expostos relativamente à obtenção da informação pelo
próprio beneficiário – enquanto, relativamente a este, a excessiva onerosidade
da obtenção da informação por si próprio será factor que apela à cominação do
dever a outrem, no que diz respeito ao potencial devedor, a excessiva onerosi-
dade da obtenção da informação desconhecida para, depois, a prestar será factor
determinante da não cominação61.
A mera apresentação dos elementos a ter em conta para a cominação do
dever de informação não permite daqui retirar um concreto factor de pon-
deração entre a promoção da autodeterminação do potencial beneficiário da
informação e a protecção da liberdade geral de agir do potencial obrigado a
prestar a informação. A resolução de conflitos entre princípios62 e que passa

59 Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 233, nota 121, utiliza esta situação como

argumento para afastar, mais uma vez, a cominação de deveres de informação com base no prin-
cípio da materialidade da regulação jurídica, dizendo que se este visa garantir uma situação de
nivelamento informativo entre as partes, não se poderia admitir a cominação de um dever de
informação cujo objecto é constituído por factos desconhecido do obrigado, pois para garantir esse
nivelamento a parte apenas seria obrigada a informar sobre factos de que conheça – relativamente
a factos desconhecidos por ambas as partes não haveria qualquer desnível.
60
Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 233, nota 122.
61
Pode-se afirmar, a este respeito, que apenas em situações de carência informativa de especial
relevância e em que a obtenção da informação pelo próprio beneficiário não seja possível é que se
poderá partir para a cominação do dever à parte que desconhece os factos a informar. De resto,
sendo possível a obtenção da informação por ambos, só um juízo de ponderação entre a onerosi-
dade da obtenção para cada uma das partes que revele especial prejudicialidade para o seu bene-
ficiário pode justificar a cominação do dever de informação, pois que noutros casos não parece
razoável a restrição imposta ao potencial devedor quando a obtenção pelo próprio beneficiário
seja tão ou menos onerosa.
62 A propósito da distinção entre regras e princípios, cfr. Robert Alexy, “Direitos fundamen-

tais e princípio da proporcionalidade”, in O Direito, A. 146.º (2014), vol. IV, pp. 817-834 (819),
cuja distinção assenta, por um lado, na definitividade das regras enquanto um dos critérios (são
«comandos definitivos») e na sua aplicação por subsunção, sendo que, nestes casos, perante uma
norma válida, deve o agente fazer exactamente o que ela diz, cumprindo-a; caso não o faça, ela é

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por considerar também o peso que assumem os elementos aqui considerados


deverá ser feita por ponderação63 – neste caso, porque ambos são aplicáveis e a
prossecução de um implica o sacrifício do outro, já que «toda a cominação de
deveres restringe a liberdade geral de acção dos respectivos sujeitos passivos»64.
Por forma a determinar o grau adequado de satisfação de cada princípio, a
ponderação deve ser feita por via do princípio da proporcionalidade65 em cada

violada – a norma determina uma regulação conclusiva. O outro critério refere-se à optimização;
considerando os princípios «mandados de optimização», as normas seriam aplicáveis progressiva-
mente, numa medida variável e que deverá procurar a máxima extensão possível de aplicação de
acordo com as possibilidades de facto e de direito. Segundo o Autor, em “Sobre a Estrutura dos
Princípios Jurídicos”, in Revista Internacional de Direito Tributário, vol. III, Belo Horizonte: Jan.-
-Jun. 2005, pp. 153-167 (161), a optimização «requer que sejamos capazes de cumprir uma norma
em maior ou menor extensão» implicando «a consideração de todas as circunstâncias». Também
determinante seria a forma como os conflitos se resolvem – de regras pela determinação de inva-
lidade ou por excepção e de princípios por ponderação – e a lei da ponderação (Robert Alexy,
“Sobre a Estrutura…”, pp. 159-160). Esquematicamente, então, o que ficou dito será representado
da seguinte forma: R = ¬ Optimização; P = Optimização & R = Definitividade; P = ¬ Defini-
tividade (regulação prima facie) – representação de David Duarte, “15 Minutos para 15 Páginas:
duas Dúvidas para um Problema Essencial”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, vol. LXXXVIII, tomo II, Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2012, pp. 527-536 (528-529),
onde apresenta esta posição de Robert Alexy e a afasta, considerando a possibilidade da não
definitividade das regras e demonstrando-a com o exemplo do conflito entre a norma que impõe
que os veículos parem quando o sinal estiver encarnado (N1) e a que proibe os veículos de pararem
perto de instalações militares (N2) (cfr. p. 529) – conclui que N1 e N2 = ¬ Optimização + ¬ Defi-
nitividade (regulação prima facie). Assim, adopta a optimização como critério distintivo e afirma
que a definitividade deve ser usada numa situação relacional entre normas (p. 530). Para David
Duarte, a distinção passa por características estruturais das normas em questão e a optimização
e a tendência para os conflitos são propriedades dos princípios que resultam da sua específica pre-
visão, considerando estar aqui o verdadeiro critério distintivo entre normas e princípios (p. 534).
Cfr., sobre a questão estrutural, David Duarte, “An Experimental Essay on the Antecedent and
Its Formulation”, in i-lex, 16, 2012, pp. 37-60 (www.i-lex.it) (51 e ss.), onde admite que tanto as
regras como os princípios são normas prima facie e podem levar à aplicação de normas de confl ito
ou à ponderação (p. 52) e defende que a distinção resulta do significado da indeterminação na
estrutura da previsão e do que resulta dessa estrutura (p. 54). Cfr., ainda, Rúben Ramião, “A
Teoria dos Princípios”, in O Direito, A. 146.º (2014), vol. IV, pp. 971-1035.
63 Cfr. David Duarte, “15 Minutos…”, pp. 530-532, onde considera que os princípios se apli-

cam por subsunção, de resto, tal como as regras, método através do qual se define os princípios
aplicáveis ao caso e que entram em conflito, sendo este posteriormente resolvido pela ponderação,
uma vez que, tendencialmente, esses conflitos não são resolúveis por normas de conflitos. Robert
Alexy, “Direitos fundamentais…”, p. 819, porém, considera que «a ponderação é a forma espe-
cífica de aplicação dos princípios».
64 Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 196.

65 Diz Rúben Ramião, “O princípio da proporcionalidade como instrumento de protecção jus-

fundamental”, in O Direito, A. 147.º (2015), vol. II, pp. 431-484 (459), que «a ponderação permite

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caso concreto, procurando saber se são mais relevantes as razões justificativas da


promoção da autodeterminação do que as da garantia da liberdade do potencial
obrigado. O princípio da proporcionalidade implica a aplicação dos seus três
sub-princípios66: da adequação, da necessidade e da proporcionalidade stricto
sensu – assim, a restrição imposta ao devedor da informação deverá apresen-
tar-se como adequada, necessária e proporcional ao benefício que, do dever
de informação, resultará para a satisfação da autodeterminação do beneficiário,
tendo em conta o peso da carência informativa deste e o peso do sacrifício
implicado na transmissão da informação pelo seu devedor67.

2.4. Breves conclusões acerca das razões justificativas dos deveres de informação

Exposta, em termos gerais, a problemática da cominação dos deveres aces-


sórios de informação, antes de prosseguir para a cominação específica do dever
ao credor fidejussório importa tecer algumas breves conclusões acerca do que
até então ficou dito.
O dever de informação é um dever acessório cominado por força da impo-
sição de uma regra de conduta segundo a boa fé, que se afigura como regra
geral do sistema. Em sede de obrigações, esta está especificamente prevista nos
artigos 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, CC a propósito da fase de contratação/nego-
ciação e da execução dos contratos já celebrados, respectivamente; contudo, é
geralmente aceite que a mesma se aplica post pactum finitum e que pode mesmo
ser imposta a terceiros ou perante terceiros ao vínculo contratual. Sendo a boa

uma escolha, seja justa ou injusta, mas em Estado de Direito Democrático, a ponderação usa a
proporcionalidade como medida de justeza para que se efectue a escolha».
66
Cfr. Robert Alexy, “Direitos fundamentais…”, p. 819. Nas páginas seguintes, o Autor pro-
cede a breves esclarecimentos sobre cada um dos sub-princípios em questão – em termos muito
gerais: o da adequação «exclui a adopção de meios que impeçam a realização de pelo menos um
princípio, sem promoverem outro princípio ou fim»; o da necessidade exige que, entre dois meios
igualmente adequados para promover um princípio, se adopte o que for menos restritivo do outro;
o da proporcionalidade stricto sensu relaciona-se com a sua “Lei da Ponderação” e exclui uma inter-
ferência intensa num princípio que não seja justificada por equivalente intensidade na promoção
do princípio com que colide. Cfr. também, entre outros, Rúben Ramião, “O princípio…”, pp.
456 e ss., sobre as suas dimensões, acrescentando à necessidade, ponderação e proporcionalidade
stricto sensu a legitimidade, que visa aferir se o fim promovido com a restrição é legítimo, se é legal;
e 458 e ss., a propósito da ponderação.
67 Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 236, onde considera ainda poder con-

correr, com a proporcionalidade, o critério da ingerência quando a carência informativa decorra


da transmissão de informações falsas pelo potencial devedor, que deverá então ser adstrito à repo-
sição da situação anterior.

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fé um conceito vago, há necessidade de o concretizar através de elementos que


possam actuar de forma a aferir o seu conteúdo e assim se determinar o que é
uma conduta de acordo com a boa fé e quando é que são cominados deveres
acessórios, maxime de informação.
Uma primeira via surge através do princípio da tutela da confiança, que
cominaria o dever de informação perante uma situação em que o então bene-
ficiário tivesse confiado que determinada informação lhe seria transmitida por
outrem, havendo justificação para essa sua crença imputável ao eventual obri-
gado – conforme foi já referido, estes pressupostos articulam-se num sistema
móvel, de modo que a maior intensidade de um deles poderá compensar o
menor grau com que se verifica outro. Sendo causa justificativa atendível para
cominar deveres de informação, fica à partida, e de resto como já antes se viu,
afastada a possibilidade de ser fundamento para a cominação do dever de infor-
mação ao credor fidejussório perante o fiador – pelo menos na generalidade
dos casos, a não ser que se verifiquem circunstâncias especiais no caso con-
creto que impliquem uma especial situação de confiança, pois não será comum
haver uma conduta do credor fidejussório capaz de criar a situação de confiança
necessária na esfera do fiador68.
Por outro lado, é possível fundamentar a cominação de deveres de infor-
mação independentemente da confiança – através do princípio da materialidade
subjacente em conexão com o princípio da autodeterminação. Enquanto na
aplicação isolada do princípio da materialidade parece estar subjacente uma pre-
tensão de justiça nas relações entre as partes envolvidas através da prestação, por
uma, de informações desconhecidas pela outra, procurando assim evitar dese-
quilíbrios informativos que possam implicar uma formação da vontade viciada,
a complementariedade do princípio da autodeterminação introduz a ideia de
compensação da carência informativa de uma parte através da cominação do
dever à outra, em situações em que se afigure mais oneroso impor-lhe a obten-
ção da informação por si própria do que a prestação dessa mesma informação a
outrem, ainda que dela não conheça – não estará tanto em causa uma questão
de nivelamento informativo, mas sim de promover a autodeterminação e, por-
tanto, uma correcta formação da vontade. Esta diferença é usada para afastar a
aplicação daquele primeiro princípio, na medida em que, por essa via, apenas
as informações conhecidas pelo potencial devedor seriam objecto do dever69.
Ora, não parece, à partida, que a aceitação do princípio da materialidade como
fundamento dos deveres de informação seja impeditiva da aceitação do prin-

68
Cfr. supra, 2.1.. Também Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 207, afasta a possi-
bilidade de, em geral, haver esta situação de confiança imputável ao credor fidejussório.
69 Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 233, nota 121.

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cípio da autodeterminação na lógica até agora apresentada. Conforme ficou


referido, nada impede a existência de vários fundamentos para a cominação,
tal como poderá haver apenas um, e nada obsta a que, não sendo cominado
o dever pela mera promoção da paridade entre as partes, supostamente visada
pelo princípio da materialidade, não o possa ser pela promoção do exercício
devido da autodeterminação, que parece estar com aquele relacionada. Ade-
mais, tal como relativamente ao princípio da tutela da confiança há uma rela-
ção de alternativa – pode aplicar-se um ou outro –, quando não se aceite a
solução aqui proposta pode, também, aceitar-se que entre estes dois princípios
fundamentadores de deveres independentes da confiança haverá uma aplicação
alternativa, na medida em que, não sendo o primeiro fundamento dos deveres,
passamos ao segundo para averiguar se ele se aplica.
Quando se fala nos princípios justificativos da cominação do dever de
informar enquanto dever acessório, estão em causa princípios concretizadores
do conteúdo da regra de conduta segundo a boa fé. Assim, os princípios da
tutela da confiança e da materialidade subjacente serão os princípios chamados a
actuar num primeiro plano de concretização, podendo depois ser identificados
diversos outros elementos que, complementando-os, sejam aptos a fundamen-
tar a cominação de deveres acessórios no caso concreto.

2.5. Necessidade do dever de informação do credor fidejussório ao fiador e funda-


mento para a sua imposição

No seio da relação fidejussória é possível identificar o fiador como parte


que se encontra em situação de especial precariedade perante o credor fidejus-
sório e o devedor principal relativamente ao conhecimento das vicissitudes que
vão afectando a relação entre estes dois e da evolução do crédito garantido que
vai afectar e definir os termos da sua obrigação caso lhe seja exigido o cumpri-
mento70. Facilmente se compreenderá que esta situação de especial desinfor-
mação ocorre por, regra geral, o fiador não ser parte na relação negocial que
deu origem à obrigação garantida, sendo um terceiro que vem, posteriormente,
garantir por via de um novo contrato o seu cumprimento; embora seja admis-
sível que a fiança seja imediatamente celebrada no momento da constituição
da relação de valuta, através de contrato trilateral, o fiador continua a não ser
parte desta relação, que se estabelece apenas entre o devedor e o credor. Assim

70
Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 253, refere que o fiador se encontra numa
posição de «tendencial défice informativo quanto a factos dos quais depende o conhecimento do
perigo que para ele resulta, a cada momento, da prestação da fiança».

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se consegue perceber que, não sendo parte na relação garantida, o fiador não
se encontra numa posição privilegiada que lhe permita ter conhecimento, por
si próprio, de factos relevantes que vão surgindo com a execução, ou não, do
contrato durante a sua vigência.
O conhecimento acerca das vicissitudes da relação de valuta é importante
para o fiador na medida em que, sendo devedor de uma obrigação acessória à
do devedor principal, está numa posição jurídica que depende da deste e que
evolui consoante a sua evolução, sofrendo a relação fidejussória a projecção
das vicissitudes da relação de valuta – os factos constitutivos, modificativos,
impeditivos e extintivos relacionados com esta projectam-se naquela e afectam
igualmente a posição do fiador. Assim, ao fiador importa tomar conhecimento
dos factos que digam respeito à relação entre o credor e o devedor principal,
por forma a conhecer, durante a vigência de ambas as relações, a medida das
obrigações que possa ser chamado a cumprir e quais as faculdades de que dis-
põe para melhor tutelar a sua posição e, deste modo, proceder a uma adequada
formação da vontade e tomada de decisões.
O facto de o fiador ser terceiro à relação de valuta implica que este não
tenha conhecimento destes factos sem desenvolver específicos esforços nesse
sentido, ficando dependente, ainda assim, da colaboração de terceiros71, ou
sem a comunicação dos mesmos por uma das partes na relação – o credor ou o
devedor principal. Esta prestação de informações relevantes ao fiador não está,
porém, expressamente prevista na lei, pelo que a única via para a cominação
passa pela regra de conduta segundo a boa fé. Tendo sido já afastado o princípio
da tutela da confiança como fundamento para a cominação de deveres de boa
fé ao credor fidejussório72 perante o fiador, resta a via do princípio da materia-
lidade subjacente e do princípio da autodeterminação.
A aceitação da cominação do dever de informação ao credor fidejussó-
rio parece longe de gerar consenso e alguns aspectos contra são rapidamente
apontados. Desde logo, porque apenas o fiador está vinculado a uma obrigação
perante o credor e este tem apenas um crédito que pode exercer e, não estando
obrigado a uma prestação principal, não poderiam ser-lhe cominados deveres
acessórios. Ora, os deveres acessórios não estão necessariamente dependentes da

71
Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 255.
72 Embora a cominação de deveres de informação tanto possa ser feita relativamente ao credor
fidejussório quanto ao devedor principal, no âmbito do presente estudo assume relevância ape-
nas no que diz respeito ao primeiro, uma vez que o objecto prende-se com o exercício abusivo
do crédito fidejussório por violação de deveres de informação e apenas o credor poderá exercer
o crédito, pelo que a violação de deveres de informação pelo devedor não permitiria ao fiador
paralisar o exercício do credor com fundamento no abuso do direito.

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existência de um dever de prestar principal e a regra de conduta segundo a boa


fé, nos termos do artigo 762.º, n.º 2, CC, aplica-se tanto às partes que cum-
prem uma obrigação como às que exercem um direito de crédito73 – o credor
fidejussório, não tendo embora nenhuma obrigação principal, quando exige o
cumprimento do fiador está a exercer o direito correspondente à obrigação do
fiador e, por isso, deve proceder de boa fé nesse exercício, tal como imposto
pelo referido artigo. Ademais, os deveres acessórios promovem o interesse das
partes na devida execução do contrato e concedem-lhes maior tutela pessoal e
patrimonial, assim se distinguindo das prestações principais e secundárias, que
visam prosseguir as concretas prestações que as partes definiram na celebração
do contrato74 – esta característica protectora das partes e dos seus patrimónios,
que está subjacente à cominação de deveres acessórios, e o facto de se imporem
perante situações de relações especiais entre as partes, como as que se verificam
com a celebração contratual, distingue-os das prestações principais e apoia a
possibilidade de serem cominados na ausência destas. Aqui surge também a
ideia de ligação especial utilizada igualmente para fundamentar a imposição de
especiais deveres entre partes com ligações especiais, por se encontrarem numa
relação de maior proximidade face às que se estabelecem em geral entre as
pessoas na sociedade75. Por fim, acrescente-se que, sendo tipicamente gratuita,
a fiança poderá também ser onerosa, admitindo-se a constituição da obrigação
de o credor fidejussório retribuir o fiador, pelo que a fiança é apenas tenden-

73 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 594, onde expressamente admite a cominação ao
credor de deveres acessórios semelhantes aos do devedor e com «um âmbito transcendente em
relação ao mero aceitar da prestação». Também em Tratado…, vol. VI, p. 324, considera que ao
credor são cominados deveres acessórios, devendo ele, no exercício do seu direito, «conter-se nos
limites da boa fé, sob pena de abuso». Ainda no mesmo sentido, J. Costa Gomes, Assunção…, pp.
583 e 588, defende a existência de deveres de protecção baseados na boa fé, mesmo quando não
exista um dever principal de prestar.
74
Cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. VI, p. 511. Nuno Pinto Oliveira, Princípios…, pp.
49-50, diz que os deveres de prestação são os correspondentes à obrigação do contrato, definida
pelas partes no âmbito do princípio da autonomia privada, enquanto que os deveres acessórios de
conduta são «uma complementação do conteúdo obrigacional do contrato fundada no princípio da
boa fé», cumprindo uma função instrumental face àqueles.
75 Cfr. M. Carneiro da Frada, Teoria da Confiança…, pp. 739 e ss., onde é feita uma distrinça entre

as ligações especiais e a responsabilidade pela confiança. A invocação da ligação especial parece


não assumir grande relevância neste contexto, uma vez que serve para fundamentar a sujeição à
regra de conduta segundo a boa fé e, na relação entre credor e fiador, a sujeição resulta directa-
mente do artigo 762.º, n.º 2, CC. Poderá, contudo, assumir importância em situações especiais
– cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 242.

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cialmente gratuita e, portanto, fica na autonomia das partes a estipulação de um


dever principal de prestar do credor76.
Mais se diz que, com a fiança, o fiador assume um risco – o risco da insa-
tisfação do crédito garantido – e que, assumindo-o, seria necessário haver
congruência entre a distribuição contratual do risco e a responsabilidade pela
obtenção de informações, não podendo ser cominados deveres acessórios ao
credor fidejussório, pois a assunção livre e esclarecida do risco resolve o pro-
blema com prejuízo para o fiador77. E, sobretudo, porque estão em causa fac-
tos que relevam para delimitar o próprio crédito fidejussório e que, por força
do regime da fiança, podem permitir que o fiador se desvincule do contrato
ou limite o risco com ele assumido, pelo que não seria razoável impor a sua
comunicação ao credor. Não parece proceder: a cominação do dever de infor-
mação ao credor fidejussório assume aqui uma função que nada tem que ver
com esta alocação do risco na prestação da garantia, a qual decorre das normas
que permitem a diminuição ou extinção da cobertura de risco78; a função
que é atribuída ao dever, no sentido de permitir uma correcta e devida con-
formação da vontade do fiador e uma tomada de decisão informada, naquilo
que diga respeito ao risco característico da prestação de fiança, apenas permi-
tiria ao beneficiário aferir a medida do risco assumido e tomar conhecimento
da concreta posição em que se encontra. Em situações em que, perante os
factos comunicados, o fiador conclua estar numa situação de maior gravidade
do que aquela que prevera no momento da prestação da fiança, poderá então
tomar decisões no sentido de melhor tutelar a sua posição. E aqui, mais uma
vez, entrará o elemento da carência informativa do fiador, na medida em que
ele assumiu um risco e se encontra numa situação de precariedade quanto ao
conhecimento dos factos que podem levar à materialização desse risco, uma vez
que não é parte na relação.
O princípio da materialidade visa promover uma situação de justiça entre
as partes numa relação jurídica, tal como foi desenvolvido supra, cominando
deveres que visem alcançar, ao que parece, uma situação ideal de esclareci-

76
Cfr. J. Costa Gomes, Assunção…, pp. 391 e ss., onde admite que a fiança «tanto pode ser gra-
tuita quanto onerosa», o que não afecta a qualificação do contrato como tal.
77 Cfr. Martin Henssler, Risiko als Vertragsgegenstand, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck),

pp. 343 e ss.. Colocando entraves à cominação dos deveres de informação pré-contratuais, na
medida em que possam prejudicar o interesse do credor fidejussório, após a assunção da fiança
considera que já não haverá uma colisão entre os interesses do credor fidejussório e do fiador, mas
que a limitação do risco é da competência do fiador e, portanto, o credor fidejussório não tem um
dever de o informar sobre o desenvolvimento da situação; o dever só seria cominado em situa-
ções especiais em que fosse claro que o fiador não poderia conhecer determinadas informações.
78 Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 246.

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mento e de conhecimento dos factos relevantes para as suas posições e as toma-


das de decisões. Assim, a aplicação do princípio na relação entre o credor e o
fiador depende de, no caso concreto, se averiguar se existe uma situação de
carência informativa do fiador que o coloque numa posição inferior àquela
em que se encontra o credor e de saber se este está numa situação que permita
a cominação do dever de informar sobre esses factos que o colocam numa
posição superior ou, pelo menos, mais vantajosa – à partida, tal parece ocorrer,
uma vez que ele é parte na relação com o devedor principal e, desse modo,
tem conhecimento dos factos que a vão afectando ao longo da sua vigência e
que possam afectar a posição e as decisões do fiador. Não sendo o princípio da
materialidade, por si só, razão suficiente para a cominação do dever de informa-
ção ao credor fidejussório, é ele complementado pela aplicação do princípio da
autodeterminação do fiador – note-se, uma vez mais, que o princípio da auto-
determinação procura promover a devida tomada de decisão por parte do seu
titular, com pleno conhecimento dos factos condicionantes relativos à situação
em que se encontra, pelo que será sempre aplicável nas relações fidejussórias
caracterizadas pela falta de conhecimento de factos importantes por parte do
fiador. Assim, mais do que procurar uma situação de equilíbrio entre as partes,
a aplicação conjunta dos princípios introduz esta ideia de colocação do fiador
numa situação ideal de esclarecimento sobre os factos capazes de influenciar
a formação da sua vontade e a sua decisão, que está subjacente à função dos
deveres de informação79.
Havendo uma situação de carência informativa do fiador que, associada
ao princípio aplicável, fundamente a cominação de deveres de informação ao
credor fidejussório, levantar-se-á o problema da colisão com a sua liberdade de
agir e, conforme se viu, o problema resolve-se através da ponderação no caso
concreto80, feita com recurso ao princípio da proporcionalidade. Esta pondera-
ção deverá ter lugar, independentemente de ser aplicável apenas o princípio da
materialidade subjacente ou ambos, uma vez que haverá sempre uma restrição
na esfera do credor fidejussório. A ponderação, enquanto meio de resolução de
conflitos entre princípios aplicáveis, deverá então ter lugar nos moldes mencio-
nados. Os elementos da carência informativa e do conhecimento da informação
apresentados deverão ser aqui ponderados com as especificidades apontadas e
com as eventuais especificidades do caso em apreço: por um lado, importa pesar
a carência informativa do fiador e, por outro, aferir da medida do sacrifício
imposto ao credor fidejussório – a solução pela cominação, ou não, de deveres

79
Numa breve referência sobre esta função, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. VI,
pp. 515-516
80 Neste sentido, Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 253.

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de informação deverá afigurar-se adequada, necessária e proporcional no balan-


ceamento entre os elementos em causa e os princípios em conflito.
Um problema que se pode levantar enquanto óbice à cominação de deve-
res de informação ao credor fidejussório tem que ver com a possível cominação
dos mesmos ao devedor principal. Esta cominação, porém, não será possível
nos casos em que a fiança tenha sido prestada sem o conhecimento ou contra
a vontade do devedor principal, casos em que claramente não haverá qualquer
ligação especial que possa fundamentar a cominação de deveres acessórios pela
boa fé e a que, claramente, não será aplicável o artigo 762.º, n.º 2, CC, uma
vez que não se estabelece qualquer relação negocial entre as partes. Nos demais
casos, em que o fiador seja apresentado pelo devedor principal ou em que
até haja um contrato celebrado em que ambos sejam partes, pode discutir-se
a cominação81. Note-se que este problema só se levanta quanto aos factos
relevantes que digam respeito à relação de valuta e envolvendo as suas partes,
ficando de fora os factos exclusivamente relativos às suas esferas pessoais, no
sentido de que o credor não estará, à partida, obrigado a prestar informações
a respeito da esfera exclusiva do devedor e vice-versa – excepciona-se o caso
de o credor fidejussório ter já conhecimento do facto exclusivamente relacio-
nado com o devedor principal que seja objecto do dever de informação a ser
cominado.
Admitindo, sem mais, que se verifica uma situação em que se possa justi-
ficar a adstrição de ambos à prestação da informação, questionar-se-á em que
moldes está o credor fidejussório vinculado com o mesmo dever de informação
que também é cominado ao devedor principal. Ora, parece que, havendo fun-
damento para cominar o mesmo dever a ambos os sujeitos, deverá estabelecer-
-se uma relação de subsidiariedade entre eles, cedendo o dever do credor fide-
jussório perante a cominação ao devedor principal – a ligação que se estabelece
entre este e o fiador, ainda que não constitua nenhum vínculo jurídico, tenderá
a ser de maior especialidade, já que é comum o fiador ser alguém próximo ao
devedor e, assim, estabelecer-se uma relação de maior confiança entre eles. No
entanto, deve considerar-se que o facto de estar o devedor principal obrigado

81Cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 257, que considera que haverá uma ligação
especial também com o devedor principal quando seja prestada fiança a favor do credor, quando
haja um contrato prévio para a prestação da fiança ou um contrato trilaterar: o fiador teria, então,
um canal informativo alternativo contra o devedor principal. Nas páginas seguintes, tece consi-
derações a propósito do problema e de como se articula a cominação de deveres de informação
entre o devedor principal e o credor fidejussório. Sobre a cominação de deveres de informação
ao devedor principal, cfr. também J. Costa Gomes, Assunção…, pp. 578.579, onde considera que
eles abrangem as características da relação de valuta e o estado do seu património e que se mantêm
enquanto subsistir a garantia e «até à liquidação da relação devedor-fiador».

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a prestar a informação apenas afastará o dever do credor quando o devedor


efectivamente cumpra a sua obrigação, já que a simples cominação do dever
de informar não desempenha a finalidade que lhe está subjacente e a carência
informativa só cessa com a efectiva comunicação dos factos relevantes82.

§ 3. O exercício abusivo do crédito fidejussório

3.1. O abuso do direito: considerações gerais

O abuso do direito, previsto no artigo 334.º CC, estatui a ilicitude83 do


exercício de um direito com desrespeito pelos limites da boa fé, dos costumes
ou do fim social ou económico do direito. A concepção de abuso do direito
aqui prevista é objectiva84, no sentido de que os factores em causa não dizem
respeito ao próprio agente, mas antes ao seu comportamento e aos elementos
que o limitam, pelo que não é necessária a consciência do agente de que exce-
deu os limites da boa fé, dos bons costumes e do fim económico e social85 com

82 Neste sentido, cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 259, onde considera
que seria contraditório desvalorizar a carência informativa do fiador que fundamenta o dever de
informação por ele ser titular de um direito de informação perante o devedor, o qual, sem a sua
colaboração, não lhe garante um efectivo acesso à informação.
83 Sobre a questão terminológica e a utilização, pela lei, da expressão “é ilegítimo”, cfr. A. Mene-

zes Cordeiro, Tratado…, vol. V, pp. 269 e ss.; também sobre a noção, cfr. Fernando Cunha de
Sá, Abuso do Direito, Coimbra: Almedina, 1997 (Reimp.), pp. 103 e ss. e 496 e ss., que considera o
abuso do direito ligado à ilicitude da conduta que contradiz o «comportamento normativamente
qualificado como obrigatório» numa situação concreta.
84 Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra

Editora, 1987, p. 298. Em igual sentido, A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 373, onde
considera que os elementos subjectivos poderão, porém, ter relevância para a definição das con-
sequências do abuso que poderão ser as mais variadas. Cfr., também negando a consciência do
exercício abusivo através da negação da exigência de culpa, Fernando Cunha de Sá, Abuso…,
pp. 496 e ss., e Rui Amendoeira, O Abuso do Direito, Lisboa: 1992, p. 29.
85
Para breves considerações sobre estes limites, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, pp.
271-272, e J. Oliveira Ascensão, “O ‘Abuso do Direito’ e o art. 334 do Código Civil: Uma
Recepção Transviada”, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no centenário do
seu nascimento, vol. I, Lisboa: Coimbra Editora, 2006, pp. 607-631 (612-614). Para uma imagem
geral do surgimento da figura e da sua evolução histórica, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…,
vol. V, pp. 273 e ss. e 279 e ss., e Da Boa Fé…, pp. 670 e ss.; em ambas as obras, nas páginas seguin-
tes, é feita referência ao desenvolvimento a propósito de cada figura do abuso. Sobre as diversas
doutrinas do abuso do direito, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, pp. 351 e ss., e Fer-
nando Cunha de Sá, Abuso…, pp. 285 e ss.. J. Oliveira Ascensão, “O ‘Abuso do Direito’…”,
pp. 620 e ss., considera, atenta a exposição das páginas anteriores, que a figura prevista no artigo

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 971

o seu comportamento, basta que os exceda – não será, contudo, irrelevante a


intenção com que o agente actuou, pelo que as suas motivações, que são fac-
tores subjectivos, poderão igualmente relevar e indiciar a prática de um acto
abusivo86. Não parece, porém, que se possa considerar que, quando esteja em
causa a prossecução de um interesse próprio do agente que, não tendo essa
intenção, acaba por prejudicar outrem com a sua conduta, a actuação não seja
abusiva, por não ser dirigida, fundamental ou exclusivamente, à verificação
desse prejuízo87 – daqui que, embora a valoração subjectiva do agente possa
assumir relevância em sede de abuso do direito, os limites e a conduta sejam
analisados objectivamente, relevando o estado subjectivo, em último caso, para
a valoração do abuso e a determinação da respectiva consequência.
À semelhança da regra de conduta segundo a boa fé, o instituto do abuso
do direito visa garantir a prossecução adequada dos objectivos do sistema, des-
prendendo-se da terminologia legalmente adoptada – o que está aqui em causa,
em bom rigor, é um exercício inadmissível de posições jurídicas88, que o é por
violar os limites do Direito, através de um comportamento conforme com as
normas jurídicas reguladoras da posição exercida, mas não com o todo siste-
mático envolvente89. O abuso do direito assume assim especial importância se
considerarmos que assenta essencialmente na boa fé e que, mais uma vez, vem

334.º CC sob a epígrafe “abuso do direito” não consagra, de facto, o abuso e, mais, não prevê
um instituto unitário: estão em causa três institutos distintos que prevêem «modos irregulares
de exercício do direito, mas com natureza, princípios e regimes próprios», o que não favorece a
unificação numa única figura.
86 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 153,

assinala que os factores subjectivos do agente e a sua intenção no exercício poderão ser relevantes
e, portanto, não deverão ser excluídos à partida; segue a mesma posição J. Oliveira Ascensão,
“O ‘Abuso do Direito’…”, p. 623, que afirma serem integrados no âmbito do artigo 334.º CC os
exercícios abusivos por força do fim do agente.
87
Esta parece ser a posição adoptada por J. Oliveira Ascensão, “O ‘Abuso do Direito’…”, pp.
624 e ss., onde considera que há uma proibição de praticar actos cujo fim seja prejudicar outrem,
estando necessariamente implicada uma valoração subjectiva, sendo «o fim do agente que torna
antes de mais o acto reprovável» (p. 625); diz, assim, que o acto será abusivo quando seja funda-
mentalmente movido pela finalidade de causar prejuízo a outrem, considerando que será de afas-
tar «o que for manifestamente prejudicial a outrem, quando isso não acarrete nenhum prejuízo
ao agente» (p. 627).
88 A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 899, acentua a necessidade de utilizar este conceito

de «exercício inadmissível de posições jurídicas» atendendo à insuficiência da expressão «abuso


do direito», que leva a considerar que está em causa apenas o exercício de direitos subjectivos, e
da expressão «abuso de normas», porque apenas reconheceria como abusiva a actuação que fosse
contrária a normas permissivas, atenta a relevância conferida ao binómio «permissão – disfun-
cionalidade sistemática».
89 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 369.

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exprimir a importância de o agente, no exercício da sua posição, respeitar os


limites e as directrizes fundamentais do sistema e resultantes da regra de conduta
segundo a boa fé90.
Através do abuso do direito se denota a relevância que assume no sistema
a boa fé aquando do exercício das posições jurídicas pelos respectivos titulares,
devendo considerar-se que entram aqui em jogo os princípios concretizadores
do seu conteúdo: o princípio da tutela da confiança, o princípio da materiali-
dade subjacente e, no caso, o princípio da autodeterminação enquanto princí-
pio específico para a fundamentação da cominação de deveres de informação ao
fiador; a sua inobservância remete, ou poderá remeter, para uma segunda fase
de promoção da regra de conduta segundo a boa fé91, que se traduz na aplica-
ção da figura do abuso do direito através do enquadramento do exercício numa
das figuras típicas apresentadas ou de um enquadramento atípico que se afigure
necessário no caso em apreço92. Os princípios concretizadores da regra de con-
duta segundo a boa fé serão, então, relevantes para realizar o enquadramento
das condutas que se tenham por abusivas nas figuras típicas apresentadas, de
maneira que a violação do princípio da tutela da confiança vem, em princípio,
dar lugar a situações de venire contra factum proprium, inalegabilidades formais,
suppressio e surrectio, havendo então um exercício das posições em causa com
disfuncionalidade perante o sistema93. Por outro lado, o tu quoque e algumas
situações de inalegabilidades formais e de exercício em desequilíbrio colocam o

90 Norma esta que J. Oliveira Ascensão, “O ‘Abuso do Direito’…”, p. 613, considera «controlar
todo o comportamento humano interactivo», ou seja, o comportamento dos sujeitos em relação.
A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, pp. 680-681, diz que «a admissão do abuso do direito tem
sido fundada na necessidade de respeitar os direitos alheios, na violação, pelo titular exercente, de
normas éticas, na ocorrência, por parte do mesmo titular, de falta e na não consideração do fim
preconizado pela lei, aquando da concessão do direito».
91
A. Menezes Cordeiro, “Do Abuso do Direito: Estado das Questões e Perspectivas”, in Revista
da Ordem dos Advogados, A. 65 (Set. 2005), vol. II, pp. 327-385 (331 e 378-380), alega a nulidade
dos negócios jurídicos violadores dos bons costumes, prevista no artigo 280.º, n.º 1, CC, e que seria
extensível ao exercício das posições jurídicas para afirmar a desnecessidade da previsão do abuso
do direito para os casos da sua violação; também quanto ao fim social e económico do direito,
considera que releva para fins interpretativos das normas instituidoras dos direitos. Deste modo e
atenta a exposição levada a cabo e que se segue a propósito das figuras típicas de abuso, facilmente
se percebe que o abuso do direito se reconduz à concretização, num segundo plano, da regra de
conduta segundo a boa fé. Esta concretização em segundo plano tem mais que ver, por sua vez,
com a tutela da situação jurídica violada pela inobservância da regra de conduta, na medida em que
visa intervir no exercício de uma posição jurídica que se afigura abusivo e contrário ao sistema.
92 Defendendo uma abertura de espírito quanto a esta questão, A. Menezes Cordeiro, Tratado…,

vol. V, p. 372.
93 A. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé…, p. 900.

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 973

problema no respeito, no exercício da posição jurídica em causa, da realidade


material subjacente.
A importância da figura do abuso do direito sai mais reforçada, embora
muitas vezes funcione como cláusula de escape para o enquadramento das mais
diversas situações, se se atentar que é de conhecimento oficioso pelo tribunal94,
que deve proceder à sua aplicação quando verifique que os pressupostos devi-
dos estejam preenchidos.
A figura do abuso do direito não implica, conforme se perceberá, uma
situação de inexistência do direito actuado ou, melhor, da posição jurídica
exercida: o agente que pratica um acto abusivo terá de ser, efectivamente,
titular de uma posição jurídica que, aquando do seu exercício, não respeita
os limites impostos – de resto, como poderia alguém abusar de um direito de
que não dispõe? Mais se diga que não pode, sem mais, ser equiparada a posição
de quem exerce abusivamente a sua posição com a daquele que não está nessa
posição: o exercício abusivo pode implicar a paralisação do exercício naqueles
termos, mas admiti-lo noutros moldes que respeitem os limites em causa.

3.2. As figuras do abuso do direito

O desenvolvimento e aplicação do abuso do direito tem tido lugar atra-


vés da distinção de um conjunto de figuras típicas de exercícios abusivos que
permitem o enquadramento das condutas em questão. A subsunção dos com-
portamentos abusivos nestas figuras depende do preenchimento dos seus pres-
supostos, mas não deve ser excluída a hipótese de surgirem condutas abusivas
que não se enquadrem nestas, admitindo-se o aparecimento de figuras ad hoc,
o que acontecerá quando se esteja perante uma conduta que, não preenchendo
os requisitos para a sua subsunção numa das figuras típicas, uma análise cuidada
dessa situação concreta permita qualificar o exercício de determinada posição
como sendo abusivo. Importa, neste ponto, conhecer as figuras existentes.
Uma primeira figura com que nos deparamos é a exceptio doli, que remete
para um conceito de dolo associado à pretensão de um agente, por sugestões
ou artifícios vedados, prevalecer-se da posição da parte lesada, que pode assim
paralisar esta pretensão. Sendo criticada pela condução a situações de incerteza

94 Ac. TRC 02-12-2008 (Teles Pereira), processo 162/06.3TBVLF.C1, donde resulta: «verifica-

dos tais pressupostos, o abuso do direito é constatado pelo Tribunal, mesmo quando o interessado
não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso». Também,
entre outros: Ac. STJ 12-11-2013 (Nuno Cameira), processo 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1; Ac.
TRLx 04-11-2004 (Urbano Dias), processo 8034/2004-6.

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974 Tânia de Freitas Andrade

e por não apresentar critérios materiais de decisão suficientes, esta é aplicável


quando seja violada a regra de conduta segundo a boa fé, em situação em que
o agente pretenda obter vantagens que não lhe são atribuídas, através de práti-
cas contrárias à boa fé que se traduzem em «interpretações tendenciosas da lei,
utilização de particularidades formais das declarações de vontade ou aproveita-
mento de incompleições em regras jurídicas»95.
A suppressio, por sua vez, é uma figura que tem aplicação quando o agente
seja titular de determinada posição jurídica que, não tendo exercido nas cir-
cunstâncias e dentro do prazo devidos, não a possa mais exercer sem, com isso,
incorrer numa conduta contrária à boa fé. Pelo que parece, qualquer posição
jurídica pode estar sujeita à suppressio, desde que decorrido certo período de
tempo, que dependerá das circunstâncias de cada caso, sem que tenha sido
exercida e havendo indícios objectivos de que não o será – está em causa,
digamos, uma posição que se possa comummente considerar que, decorrido
um período de tempo, não será expectável o seu exercício. No entanto, não
está em causa uma mera questão de decurso do tempo; a suppressio assume uma
função de tutela da confiança do beneficiário que, perante a inacção do titular
da posição – a omissão do exercício da sua posição –, confiou que esta não seria
mais exercida96. Decorrência da suppressio com fundamento na tutela da con-
fiança será o surgimento, pela boa fé, de uma nova posição jurídica – é a figura
da surrectio, pela qual a pessoa beneficiária da suppressio adquire uma posição que
se torna incompatível com o posterior exercício que não era, porém, expec-
tável. Há, assim, duas posições jurídicas que se contrapõem e, ponderando-se,
prevalece a do beneficiário da surrectio97.

95 A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, pp. 271-272. Nas páginas seguintes encontra-se a refe-
rência aos problemas da aplicação da figura no ordenamento jurídico português, nomeadamente
porque: usa um conceito central para cobrir soluções periféricas; funcionaria como «excepção de
Direito material», já que não tem um papel de delimitação e normativização de condutas; e não
existem elementos legais para construir um sistema de excepções materiais.
96
A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 324, sugere um modelo de decisão para protecção
da confiança do beneficiário que se rege pelas seguintes proposições: i) um não-exercício prolon-
gado; ii) uma situação de confiança; iii) uma justificação para essa confiança; iv) um investimento
de confiança; e v) uma imputação dessa confiança ao não-exercente – estes seriam, assim, os
pressupostos para a aplicação da suppressio. João Baptista Machado, “Tutela…”, p. 421, por sua
vez, falando em Verwirkung (figura equivalente no direito alemão) aponta como pressupostos: i)
o titular deixar passar longo tempo sem exercer o seu direito; ii) com base no não-exercício e na
própria conduta do titular, a contraparte criar a convicção, justificada, de que ele já não exercerá
o direito; e iii) com base nessa confiança, a contraparte iniciar actividades que seriam prejudica-
das pelo exercício inesperado do direito, acarretando este maiores desvantagens do que se tivesse
sido exercido atempadamente.
97 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, pp. 324-325.

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 975

Especialmente relevante em matéria de tutela da confiança é o venire contra


factum proprium98, figura que visa tutelar o lesado da conduta daquele que nele
criou a confiança de que agiria, ou não, de determinada forma e, posterior-
mente, frustrou essa confiança adoptando a conduta com que a contraparte
legitimamente não contava99. A aplicação do venire depende da verificação de
um leque de pressupostos100 que são coincidentes com os da aplicação do prin-
cípio da tutela da confiança para efeitos de responsabilização do agente que o
incumpriu; assim: i) a existência de uma situação de confiança quanto à con-
duta do agente e assente na boa fé subjectiva do tutelado; ii) a justificação dessa
confiança, decorrente de elementos objectivos; iii) a imputação da situação de
confiança ao agente, que expressamente ou através do seu comportamento
criou a situação de confiança na contraparte; e iv) um investimento de con-
fiança através do assentar de actividades e que terá de ter na sua base a situação
de confiança justificada e imputável ao agente e cuja frustração implique danos
que não possam de outra forma, que não a consideração da conduta abusiva, ser
supridos/evitados. Parece que a imputação da confiança à parte não depende,
necessariamente, de uma declaração sua no sentido da adopção, ou não101, de
determinado comportamento; bastará, para tanto, que do seu comportamento
seja razoável a criação dessa confiança – é, assim, relevante que se verifiquem
duas condutas contraditórias entre si, incidindo a valoração negativa apenas
sobre a conduta presente, enquanto que a primeira conduta serve apenas de

98 É discutida a dogmática subjacente ao venire contra factum proprium e são apresentadas quatro dou-
trinas: a da boa fé, a da confiança, a do negócio jurídico e a da dissolução do venire. Ora, parece
demasiado impreciso, desde logo, considerar que o venire decorre da simples aplicação da boa fé,
atenta a necessidade já referida de a concretizar. No caso desta figura, facilmente se denota a situação
de confiança implicada na tutela da parte que vê a sua posição prejudicada face à conduta do agente
em contradição com um comportamento anterior, pelo que, à partida, parece legitimo considerar
que, dentro da tutela da boa fé objectiva, o venire visa uma situação última de tutela da confiança.
99
A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 275, fala em «exercício de uma posição jurídica
em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente».
100
Estes mesmo pressupostos são adoptados por A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, pp.
292-293. Em sentido similar, cfr. João Baptista Machado, “Tutela…”, pp. 416 e ss.: atente-se
que, quando fala, no primeiro pressuposto, em «situação objectiva de confiança» (p. 416), parece
estar aqui referida a situação de confiança subjectiva do tutelado acrescida da justificação dessa
confiança em elementos objectivos relaccionados com uma conduta do agente que a criou, neste
último ponto estando, então, o factor objectivo da confiança.
101 Nesta medida, distingue-se o venire positivo, quando a pessoa cria a convicção de que não vai

adoptar certa conduta e, depois, adopta-a, e o venire negativo, que traduz a situação oposta de a
pessoa criar a convicção de que adoptará certa conduta e, depois, nega-a – cfr. A. Menezes Cor-
deiro, Tratado…, vol. V, pp. 280 e ss..

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referência102. Nesta medida, não é exigida a culpa do agente que cria a situação
de confiança, bastará que ele pudesse ter adoptado outra conduta, que pudesse
conhecer que a conduta adoptada cria a confiança e que, desse modo, há uma
limitação futura da sua liberdade de agir103. Adicionalmente a estes pressupos-
tos, deverá verificar-se a ausência de uma razão justificativa para esse compor-
tamento contraditório do agente104 e a boa fé do tutelado, que apenas receberá
a protecção pretendida quando esteja de boa fé e tenham sido verificadas, por
sua parte, as diligências tidas por usuais no agente médio quando colocado em
idêntica posição105.
A inalegabilidade formal é outro tipo de condutas abusivas que se podem
verificar pela contrariedade à boa fé. Sendo a regra geral do artigo 219.º CC
que os negócios jurídicos são consensuais, há casos em que é exigida uma forma
especial da qual depende a sua validade e cujo desrespeito é causa de nulidade
do negócio celebrado, nos termos do artigo 220.º CC. Apesar da norma do
artigo 286.º CC, que permite a alegação da nulidade pelos interessados a todo o
tempo, esta figura das inalegabilidades vem enquadrar como abusiva a conduta
da parte que celebrou um negócio sem observância da forma devida, tendo
conhecimento disso ou até tendo incentivado a contraparte à celebração nesses
moldes, e que, tendo-se prevalecido dele, alega depois a nulidade formal106.
No entanto, a parte não pode, sem mais, valer-se da inalegabilidade formal:
terá que estar numa posição de boa fé subjectiva quanto ao desconhecimento
da necessidade de forma especial – ou seja, terá que ser uma situação em que a
exigência não seja evidente e em que tenha procurado obter informação sobre
a imposição, ou não, de forma; as circunstâncias do caso concreto poderão,
porém, revelar uma situação de confiança acrescida entre as partes que venha
justificar o menor cuidado posto na indagação107. Partindo desta ideia de con-
fiança a tutelar, deverão estar preenchidos os requisitos para a aplicação da
tutela da confiança108 e deverá verificar-se que o investimento de confiança não
pode ser assegurado por outra via que não a manutenção do contrato através da
inalegabilidade da nulidade por falta de forma.

102 No sentido de que o venire envolve uma contradição entre dois comportamentos que se suce-
dem temporalmente, M. Carneiro da Frada, Teoria da Confiaça…, pp. 404 e 410 e ss..
103 Cfr. João Baptista Machado, “Tutela...”, pp. 414-415.

104 A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 275.

105 João Baptista Machado, “Tutela…”, p. 418.

106 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 299.

107 Neste sentido, A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 305.

108 Assim, A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 311, considera que a inalegabilidade requer

uma situação de confiança, a justificação para a confiança, um investimento de confiança e uma


imputação censurável da situação de confiança à parte a responsabilizar.

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O tu quoque surge, por sua vez, traduzido na regra segundo a qual quem
viola uma norma jurídica não pode depois, sem abuso, prevalecer-se da situa-
ção decorrente da violação, exercer a posição que violou ou impor a outrem
que acate a situação violada109. Enquanto que nas últimas figuras referidas há
uma base relacionada com a tutela da confiança, no que diz respeito ao tu
quoque estará antes em causa a regra de conduta segundo a boa fé concretizada
pelo princípio da materialidade subjacente110. Assim é pois choca que uma parte
possa impor a outrem uma posição jurídica que previamente violou, na medida
em que isso seria contrário à regra de conduta segundo a boa fé; e sê-lo-ia,
desde logo, por violar a promoção do exercício informado das respectivas posi-
ções entre as partes em relação que resulta do princípio da primazia da mate-
rialidade subjacente – quem age e assim cria uma situação material contrária à
promovida pelo sistema não pode exercer a sua posição sem que sofra alguma
consequência e, sendo o exercício abusivo, porque violador do limite da boa fé
firmado pelo princípio da materialidade, pode ver o seu exercício restringido
ou até impedido, por forma a recuperar a situação material promovida pelo
sistema e afectada pelo exercício.
O exercício em desequilíbrio, por fim, é outra figura de enquadramento de
actos abusivos que se caracteriza por haver uma desproporção entre o exercício
da posição jurídica em questão e os efeitos que dele derivam. São, então, apre-
sentadas três hipóteses de exercício em desequilíbrio111: i) o exercício danoso
inútil, situação em que o agente actua no exercício do seu direito sem, porém,
dele retirar qualquer benefício e causando prejuízo a outrem; ii) o dolo agit qui
petit quod statim redditurus est, que vem atribuir valoração negativa à conduta do
agente que exige o que tem de restituir de seguida, uma vez que a exigência

109
Cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 327.
110
Neste sentido, A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 337, depois de, nas páginas ante-
riores, proceder a uma breve exposição a respeito das diferentes teorias apresentadas, diz que «a
pessoa que, mesmo fora do caso nuclearmente exemplar do sinalagma, desequilibre, num momento
prévio, a regulação material expressa no seu direito subjectivo, não pode, depois, pretender, como
se nada houvesse ocorrido, exercer a posição que a ordem jurídica lhe conferiu» – embora formal-
mente a situação jurídica permaneça, aparentemente, intocada, materialmente há uma modificação,
assim se podendo considerar que a conduta foi contrária ao princípio da primazia da materiali-
dade subjacente e que, sendo violada a boa fé, o exercício da situação será, à partida, inadmissí-
vel, por exceder os seus limites. Também neste sentido, Nuno Pinto Oliveira, Princípios…, pp.
191-192, considera que, por força do princípio da prioridade da substância, o exercício é abusivo
em três situações, sendo uma delas aquela em que o direito a exercer foi adquirido ilicitamente,
reconduzindo o caso ao tu quoque.
111 A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, pp. 341 e ss..

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é inútil e causa danos à contraparte, que tem de dirigir esforços à entrega112; e


iii) a desproporção entre o benefício do agente e o sacrifício imposto a outrem
através do exercício de poderes, da aplicação de sanções desproporcionais à
falta e do exercício de posições com prejuízo inaceitável para outrem ou sem
consideração por situações especiais113.

3.3. O exercício abusivo do crédito fidejussório

O exercício abusivo do crédito fidejussório diz respeito à situação em que


o credor fidejussório exige o cumprimento da obrigação do fiador – exerce o
seu direito – sem o respeito pelos limites impostos pela boa fé114. Mas não só
o exigir do cumprimento releva para aferir desta inadmissibilidade; todo o seu
comportamento ao longo da vigência do contrato e dentro da relação fidejussó-
ria assume, ou pode assumir, relevância, na medida em que a inadmissibilidade
da conduta abusiva diz respeito ao exercício da posição jurídica do credor fide-
jussório num todo e não apenas ao exercício do direito. Está em causa averiguar
se a forma como se movimentou no seio contratual e exerceu a sua posição
– aquela em que se encontra enquanto credor fidejussório – é, ou não, abusiva
e admissível e se se pautou pelos limites da regra de conduta segundo a boa
fé. O problema suscitado no presente estudo surge nos casos em que o credor
fidejussório, adstrito a deveres acessórios de informação em benefício do fiador
nos moldes estudados, não prestou as informações a cuja comunicação estava
adstrito e que diziam respeito a factos susceptíveis de afectar a posição contra-
tual do fiador, que é garante da obrigação do devedor principal e titular de uma
obrigação que se molda e evolui à semelhança daquela e com a influência das
vicissitudes que a afectem, vindo, posteriormente, a exigir-lhe o cumprimento
da obrigação. Nestes casos, o fiador encontra-se numa situação de défice infor-
mativo, pois não tem conhecimento de todos os factos que se constituíram e
afectaram a relação de valuta e que, deste modo, afectam também a sua posição,
podendo permitir-lhe reagir antes da interpelação para cumprir e assim tutelar

112
A distinção perante o exercício danoso inútil está no facto de implicar uma relação entre as
partes constituída por dois vínculos, sendo que um habilita a exigência pelo agente e o outro
impõe a sua restituição – cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 346. Cfr., também,
Nuno Pinto Oliveira, Princípios…, p. 192.
113 Cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 346.

114 Atenta a exposição já feita, será relevante e, por isso, tido em conta o desrespeito pelos limites

da boa fé, considerando-se esta figura – o abuso do direito – uma espécie de segunda via para a
sua tutela enquanto regra geral do sistema.

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a sua posição – estes factos poderão ser tais que permitam ao fiador libertar-se
da obrigação, daí a importância da sua comunicação.
A questão assim exposta diz respeito ao exercício abusivo devido à violação
dos limites impostos pela boa fé, através da cominação de deveres acessórios,
ao credor fidejussório no exercício da sua posição – estando adstrito a uma
conduta de acordo com a boa fé, na qual se inclui a prestação de informações,
apenas o cumprimento dos deveres acessórios assim impostos equivaleria a um
enquadramento da sua conduta em conformidade com as valorações prossegui-
das pelo sistema115. O comportamento do credor fidejussório que não presta os
deveres de informação devidos é, então, contrário à regra geral da boa fé, por
não corresponder à conduta por ela exigida, e ilícita, pela violação de um dever,
acarretando consequências116. Importa saber, então, se uma das consequências

115 Conforme se disse supra, 2.1., os deveres acessórios são cominados com a função específica de
atribuir uma melhor prossecução dos direitos constituídos pelo contrato e de prevenir danos no
cumprimento das suas prestações pelas partes.
116 O incumprimento do dever acessório de informação, sendo ilícito, só por si já daria lugar a

responsabilização perante o fiador. Pode discutir-se de que responsabilidade se trata: se aquiliana


ou contratual. Pese embora tenham os deveres acessórios uma base legal, eles nascem, em última
análise, do contrato celebrado (tenhamos aqui em consideração, tão-só, os deveres acessórios comi-
nados na execução do contrato, nos termos do artigo 762.º, n.º 2, CC), sem o qual os deveres no
exercício da posição contratual das partes não se imporiam, por não haver lugar a prevenção de
danos que eles visam – cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. VI, p. 511. Percebe-se que a
base legal dos deveres acessórios possa indicar a aplicação da responsabilidade aquiliana, já que não
são propriamente deveres contratuais e estipulados pelas partes no uso da sua autonomia privada,
antes são deveres legalmente impostos – aplicando o regime da responsabilidade do artigo 483.º
CC, cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 270 e ss., onde tece considerações a
propósito da averiguação da culpa; L. Menezes Leitão, Direito…, vol. I, pp. 367 e ss., encaixa a
responsabilidade pela violação dos deveres acessórios na terceira via, considerando tratar-se de
uma «responsabilidade quase-obrigacional». No entanto, parece que essa solução poderia frustrar
o fim último da cominação de deveres acessórios – a protecção do credor do dever, no caso, do
fiador: repare-se que, no seio da responsabilidade aquiliana, cabe ao lesado a prova do acto ilícito
e culposo, enquanto que na responsabilidade contratual a culpa e ilicitude presume-se, nos termos
do artigo 799.º CC, que estabelece aquela que é considerada uma presunção de faute (neste sen-
tido, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. VIII, p. 392; contra, considerando que há apenas
presunção de culpa e fazendo um tratamento unitário dos demais pressupostos da responsabili-
dade, L. Menezes Leitão, Direito…, vol. I, pp. 365-367), tendo então o devedor que provar que o
incumprimento do dever não se deveu a culpa sua. Atendendo a finalidade com que, à partida, são
cominados os deveres acessórios, maxime os de informação, parece demasiado oneroso vir-se exigir
que o lesado com o incumprimento de um dever que visava tutelar a sua posição despreviligiada
se encontre na situação de ter que provar que o incumprimento se deveu a culpa do obrigado. Por
sua vez, não parece já demasiado oneroso para o devedor que incumpriu o dever a atribuição do
ónus de ilidir a presunção de culpa. Considerando que à violação dos deveres acessórios é aplicá-
vel a responsabilidade obrigacional, cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. VI, pp. 514. Por

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da violação do dever acessório na fiança poderá ser a consideração do exercício


do crédito fidejussório abusivo: uma vez que a sua conduta, ao violar o dever
de informação, é contrária à boa fé, poderá considerar-se que a exigência pos-
terior do cumprimento é admissível ou extravasa já os limites impostos?
Em primeiro lugar, importa considerar que a resposta à questão não poderá
ser dada de forma linear, dependendo de uma avaliação in casu que terá em con-
sideração as características específicas de cada relação fidejussória e os demais
elementos circundantes. À partida, e sem tecer mais considerações, apenas
tendo em atenção a violação de um dever acessório imposto pela boa fé que
beneficiaria a contraparte na tutela da sua posição e a posterior interpelação
para esta parte cumprir, parece que o exercício, pelo credor fidejussório dessa
sua posição é inadmissível, porque a violação da regra de conduta segundo a
boa fé implica, sem mais, o desrespeito pelos limites que ao caso são impostos
– considere-se que, estando em causa uma concepção objectiva, não é exigido
o conhecimento do dever ou da carência informativa pelo credor fidejussório,
basta que haja a cominação do dever, que o credor fidejussório esteja adstrito
a prestar a informação omitida ao fiador. Mas a questão vai mais além do que
a mera consideração da existência de um dever de informação violado e da
posterior interpelação para cumprir, na medida em que se trata de uma situação
trilateral e que haverá uma grande heterogeneidade entre os factos que pos-
sam assumir relevância para o fiador e entre as várias situações que se podem
configurar.
Para que se possa falar de abuso do direito nesta situação é essencial consi-
derar a relevância da informação omitida e o impacto dessa omissão na esfera do
fiador perante a posterior interpelação para cumprir a obrigação. A relevância
aqui em questão não corresponde, pelo menos não integralmente, à referida a
propósito das razões justificativas para a cominação do dever de informação,
no sentido de essencialidade da informação para o fiador; com relevância da
informação, nesta fase, pretende-se considerar a sua importância para que o
fiador pudesse ter-se salvaguardado antes da exigência do cumprimento, ou
seja, procura-se saber se as informações omitidas dizem respeito a factos que
afectam directamente a medida da sua obrigação ou que lhe permitiriam dimi-
nuir o risco assumido ou até mesmo desvincular-se da obrigação – a omissão
não assumirá relevância a propósito do abuso quando o fiador ainda possa, no

outro lado, a violação dos deveres acessórios poderá também dar lugar a resolução por justa causa,
tal como refere Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 270, e cuja admissibilidade
na fiança enquanto relação jurídica duradoura é defendida por J. Costa Gomes, Assunção…, pp.
826 e ss., considerando haver justa causa quando o risco para o fiador seja maior e, no caso, tendo
em conta que a relação poderá ter subsistido apenas pelo incumprimento do dever de informar.

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Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor… 981

momento da interpelação para o cumprimento, abrir mão dos meios que o


conhecimento dos factos em questão deixam ao seu dispor, nomeadamente
quando possa ainda extinguir a fiança117.
Assim, consideremos relevantes para a verificação de um exercício abusivo
do crédito fidejussório apenas aquelas informações que digam respeito a factos
susceptíveis de alterar a configuração da obrigação do fiador e o risco por ele
assumido e que permitam, nesse âmbito, a adopção de medidas de protecção
pelo mesmo, inclusive a extinção da fiança, mas quando os poderes atribuídos
por esses factos já não possam ser exercidos no momento em que é interpe-
lado para cumprir. Temos, num primeiro ponto, as mais variadas situações que
afectam a relação de valuta e que se projectam na relação fidejussória, as quais
deverão ser conhecidas pelo fiador para que este possa conformar a sua vontade
e tomar decisões fundamentadamente e no domínio da sua autodeterminação
– estão em causa a comunicação de factos que aumentem o risco do fiador ser
chamado a cumprir, nomeadamente o incumprimento do devedor principal118,
e os diversos factos que possam dar origem a meios de defesa do fiador, à sua
liberação ou à extinção ou modificação da sua obrigação119, desde que não
digam respeito a factos exclusivamente relacionados com o devedor principal
de que o credor fidejussório não conheça, a menos que se verifique a ausência
de um meio alternativo para a obtenção dessa informação e uma situação de

117 Neste sentido, e admitindo a verificação de abuso do direito por violação de deveres acessórios

de informação na relação fidejussória, cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 270.
118 Pensemos no caso de a obrigação do devedor principal resultar de um contrato a prestações

em que a obrigação garantida está fraccionada em diversas parcelas e imaginemos que o devedor
principal incumpre a sua obrigação, não pagando uma ou mais parcelas: esta é uma situação de
um facto que deve ser transmitido ao fiador, uma vez que o incumprimento do devedor reper-
cute os seus efeitos na obrigação do fiador, que, sendo chamado a cumprir, teria de pagar juros de
mora, os quais vão acumulando com o decurso do tempo. Ou seja, não é indiferente para o fiador
tomar conhecimento do incumprimento numa fase inicial ou passado o incumprimento de uma
grande parte da obrigação, pois neste momento os juros acumulados serão, invariavelmente, de
valor superior e a obrigação do fiador será também, consequentemente, de maior valor. Acresce
que com o decurso do tempo aumenta a probabilidade de o património do devedor se dissipar.
Neste exemplo, a informação do incumprimento é relevante, porque afecta amplamente a medida
da obrigação que o fiador terá de cumprir.
119 Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 265, diz que «quando a informação for

necessária para o conhecimento da constituição ou extinção de obrigações garantidas, do valor


destas, dos meios de defesa e dos factos que lhe permitem desvincular-se e o credor fidejussó-
rio tiver conhecimento ou puder facilmente obtê-lo, o credor deve ser vinculado a comunicar».

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extrema carência informativa do fiador que justifique, ainda assim, a cominação


do dever ao credor fidejussório que não conheça esses factos120.
Num outro plano, importa apreciar, então, o impacto que a omissão da
informação relacionada com a posterior interpelação para o cumprimento tem
na esfera do fiador, ou seja, em que medida é afectada a sua posição, tendo em
conta que todos os factos que influenciem a probabilidade de se concretizarem
os riscos assumidos são relevantes para uma tomada de decisão sobre a sua situa-
ção patrimonial e procurando saber se ele ainda pode exercer os poderes resul-
tantes do conhecimento dos factos objecto do dever de informação violado;
em paralelo, assume também relevância o benefício que resulte para o credor
fidejussório do incumprimento do seu dever de informação e a prestação do
fiador – relevante será a alteração material das posições das partes resultante do
incumprimento do dever de informação associado à posterior interpelação ao
fiador para cumprir, alteração essa que não existiria se o dever tivesse sido pon-
tualmente cumprido ou se o fiador ainda puder usar dos poderes constituídos
pelos factos em questão no momento em que é chamado a cumprir. Factor
importante para a apreciação da existência de uma conduta abusiva será então
saber se, tendo sido informado dos factos considerados relevantes e sobre os
quais incidia o dever de informação do credor fidejussório, o fiador poderia
reagir por algum meio, de tal modo que a situação em que estaria seria menos
onerosa do que aquela em que se encontra efectivamente e que já não pode
ser alterada com base nesses factos. Consideremos, a este propósito, o direito
do fiador a exigir a sua liberação ou a prestação de caução contra o devedor
nos casos previstos no artigo 648.º, alínea b) e c), CC121: numa situação, ima-
gine-se, de incumprimento do devedor principal, há uma óbvia verificação do
risco assumido pelo fiador, o do incumprimento da obrigação pelo devedor

120
Considera Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 261, que «se o credor não tiver
qualquer instrumento de informação que lhe permita aceder a essa informação […] e não ocorrer
nenhuma situação que atribua à carência informativa do fiador um peso exorbitante, não serão,
por regra, cominados deveres de informação ao credor fidejussório sobre factos que […] concer-
nam a estados ou comportamentos do devedor principal fora da sua relação com o credor fide-
jussório, como a sua situação patrimonial, a impossibilidade de este ser demandado ou executado
em território português, ou factos como o desemprego, o encarceramento do devedor principal,
que são indiciários de decréscimo futuro do património».
121 As alíneas a), d) e e), porém, não assumem aqui relevância, uma vez que dizem respeito exclu-

sivamente à relação entre devedor principal e fiador e entre credor fidejussório e fiador, pelo que
ele não precisa de ser informado para tomar conhecimento dos factos aí relevantes. De resto, tam-
bém os artigos 437.º, 637.º, 638.º, 639.º e 642.º CC permitem impedir a vinculação à satisfação da
obrigação ou extinguir a cobertuda fidejussória, diminuindo o perigo de o fiador ser chamado a
cumprir – cfr. Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 254.

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principal, que assim se concretiza, o que corresponde a um claro agravamento


do risco da fiança, que é o risco de ser chamado a cumprir a sua obrigação, na
decorrência do incumprimento da obrigação garantida – neste caso, a informa-
ção sobre o incumprimento beneficiaria o fiador e a sua omissão e a posterior
interpelação para cumprir são claramente prejudiciais para a sua posição con-
tratual, já que, tendo tomado conhecimento atempado dos factos relevantes,
poderia ter tomado as medidas necessárias para se proteger do risco de ser
chamado a cumprir ou de não conseguir o cumprimento posterior do devedor
principal; de resto, tenha ou não piorado a situação patrimonial do devedor
principal, será de considerar que o fiador pode pedir a liberação desde que «os
riscos do fiador se tornem bastante mais sérios do que na data em que se obri-
gou»122. Igualmente relevantes serão os factos sobre a diminuição do patrimó-
nio do devedor principal ou o risco da sua insolvência e a colocação na situação
prevista no artigo 640.º, alínea b), CC a que o credor fidejussório possa estar
obrigado a informar, em situações limite, conforme já se referiu, uma vez que
nesses casos haverá um agravamento do risco da fiança. No entanto, esta situa-
ção assumirá relevância a propósito do abuso nos casos em que, tendo havido o
dito agravamento do risco, a situação se tenha restabelecido e o risco tenha sido
revertido para o nível anterior, de que o fiador conhecia antes da interpelação
para cumprir, uma vez que neste caso ele já não poderá exigir a liberação.
Do exposto pode concluir-se que a violação do dever de informação pelo
credor fidejussório poderá implicar benefícios para o próprio perante o cum-
primento do fiador, na medida em que a sua posição de credor fidejussório não
sofre nenhuma alteração negativa, sendo que a prestação que irá receber do
fiador poderá ser superior à que seria caso transmitisse a informação devida123,
além de que poderia até perder a garantia do fiador, caso a informação omitida

122
Vaz Serra, Fiança e figuras análogas, Lisboa: FDL, 1957, p. 300. Também considerando que o
incumprimento de uma obrigação acarreta um agravamento dos riscos da fiança, cfr. J. Costa
Gomes, Assunção…, p. 859.
123
Pensando numa situação em que o facto a ser comunicado é o incumprimento pelo devedor
principal, poderia o fiador, tendo conhecimento disso, decidir reagir de modo a que a obrigação
fosse cumprida ou poderia decidir cumprir ele próprio de modo a que não houvesse lugar a juros
de mora mais elevados. Não será absurdo considerar a hipótese de o credor fidejussório deixar
passar o tempo até à interpelação do fiador para o cumprimento com o intuito de auferir um
maior valor respeitante aos juros, o que configuraria uma situação de claro exercício inadmissí-
vel da posição jurídica. Acrescente-se que em situação de fianças duradouras será extremamente
oneroso impor ao fiador que se procure informar regularmente sobre a evolução da situação no
que respeita ao cumprimento das prestações; por outro lado, será minimamente oneroso impor
ao credor fidejussório que, quando eventualmente interpele o devedor principal para o cumpri-
mento da prestação em falta, o faça com conhecimento do fiador.

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pudesse levar à extinção da fiança. Ora, parece que a situação assim descrita se
enquadraria no exercício de uma posição jurídica – a do credor fidejussório –
que excede os limites da boa fé, na medida em que o agente violou a regra de
conduta segundo a boa fé, que lhe impõe um dever acessório de informação, e
posteriormente exerce o crédito fidejussório numa posição que se afigura mais
benéfica do que aquela em que se encontraria caso tivesse cumprido aquele
dever, situação esta que, materialmente, não é conforme com o sistema, pois
o fiador encontra-se numa situação de desinformação que não lhe permite
uma adequada tomada de decisões e conformação da sua vontade. A situação
encaixa-se perfeitamente, aliás, na modalidade de tu quoque, segundo a qual «a
pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, sem abuso, prevalecer-se
da situação daí decorrente»124. Atente-se, mais uma vez, que toda esta análise a
que aqui se procede em termos amplos e um tanto abstractos dependerá sem-
pre de um estudo em cada caso concreto para averiguar se se aplica, tal como a
cominação do dever de informação também deve ser feita in casu, uma vez que
a grande variedade de relações fidejussórias que se podem estabelecer não per-
mite proceder a uma análise e chegar a conclusões que se tenham por assentes
para todas as situações configuráveis.
Considerando-se o exercício do crédito fidejussório abusivo, qual será a
consequência para o credor? A consequência típica do abuso do direito parece
ser, à primeira vista, a paralisação da pretensão exercida, ou seja, a consequência
para o caso do abuso no exercício da fiança seria a sua paralisação, que implica-
ria a perda da garantia pelo credor fidejussório; mas outras possíveis consequên-
cias são configuráveis, nomeadamente a constituição do direito a indemnização
a favor do fiador125. Não é claro que a paralisação da pretensão seja a solução
mais razoável como solução geral; de facto, podem ser configuradas situações
em que a total paralisação do exercício do crédito fidejussório não se justifique,
nomeadamente nos casos em que a consequência do incumprimento do dever
de informar tenha sido apenas um aumento substancial das importâncias a aufe-
rir pelo credor fidejussório a título de juros de mora. Importa considerar em

124
Também Miguel Brito Bastos, “Deveres acessórios…”, p. 270, nota 220, parece configurar
possível a consideração destas situações como casos de tu quoque.
125 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil…, vol. I, pp. 299-300, apresentam ainda como

possíveis consequências a nulidade nos termos do artigo 294.º CC ou o alargamento do prazo pres-
cricional ou de caducidade, mas parece que no caso da relação fidejussória, em geral, não haverá
lugar a essas consequências. Cfr. A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 327, onde, a pro-
pósito da figura específica do tu quoque, diz que as consequências podem ir «desde o bloqueio do
exercício até à limitação de sanções», e pp. 373-374, onde, em geral, admite como consequências
do exercício abusivo i) a supressão do direito, ii) a cessação do concreto exercício, mantendo-se o
direito, iii) o dever de restituição e iv) o dever de indemnização.

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concreto o que esteja em causa, traçando agora apenas linhas gerais de orienta-
ção. Quando a omissão da informação tenha implicado apenas um aumento do
valor a que o fiador é chamado a cumprir, por força dos juros de mora devidos
ou da aplicação de cláusula penal, não parece razoável impor a paralisação total
do crédito, essa não se afigura como a solução que mais se conforma com o
sistema e com a prossecução, em última instância, dos fins queridos pelas partes
– no caso, o cumprimento da prestação pelo fiador. A solução que se afigura
mais adequada passaria, aí, por uma redução da obrigação a que o fiador se
encontra vinculado, que operaria tendo por base a violação da regra de con-
duta segundo a boa fé, de onde resulta a cominação do dever de informação.
Os moldes desta redução teriam de ser estabelecidos, uma vez mais, in casu, já
que neste âmbito tudo joga com a consideração dos interesses e das posições
jurídicas em jogo numa óptica de ponderação dos danos causados ao fiador
e benefícios obtidos pelo credor. Assim sendo, importa, em primeiro lugar,
averiguar em que momento é cominado o dever de informação – consoante as
circunstâncias do caso, poderá ser logo no incumprimento da primeira presta-
ção ou algumas prestações depois: este momento é determinado na ponderação
sobre a cominação do dever de informar a propósito do elemento da carência
informativa do fiador, mas parece que quando incumprida a terceira prestação
é seguro dizer que há carência informativa relevante e que o credor fidejus-
sório deve informar o fiador, uma vez que com o incumprimento da terceira
prestação podemos deduzir uma intenção de não cumprir ou falta de condições
para cumprir; se houver lugar, por exemplo, a uma declaração séria de não
cumprimento, parece que a cominação do dever será imediata. Não o fazendo
e exigindo o cumprimento apenas após o incumprimento de várias prestações,
parece que aquele é o momento relevante para operar uma paralisação parcial
do seu direito, que operará ao nível da responsabilidade pelo incumprimento;
assim, embora a fiança abranja, ou deva abranger, a responsabilidade pela mora
ou culpa do devedor principal, nos termos do artigo 634.º CC, nos casos em
que a responsabilização se apresente agravada sem o conhecimento do fiador
de que se tinham verificado os factos que lhe dão origem, não poderá o credor
fidejussório beneficiar da total abrangência que se afigure excessiva por um
alargado decurso do tempo, pelo que apenas teria direito aos juros de mora
vencidos até à verificação da sua actuação ilícita, ou seja, até ao incumprimento
do dever de informação a que estava adstrito – a apreciação do momento em
que se considera incumprido o dever de informação deverá ter em conta o
momento da cominação do dever e a consideração de um prazo razoável, aten-
dendo às características do caso concreto.
Esta solução poderá implicar um esvaziamento parcial da finalidade da
fiança enquanto garantia do crédito do devedor principal e figura através da

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qual o fiador assume o risco do incumprimento dessa obrigação. No entanto, é


uma solução que se afigura adequada atendendo à conduta do credor fidejussó-
rio que se conclua ter sido contrária à boa fé e, portanto, abusiva126. Ademais,
é uma solução que prossegue a protecção do fiador, que se encontra numa
situação precária face às partes da relação de valuta cuja obrigação ele garante,
e que consegue conceder ainda um mínimo de tutela face àquela que a regra
de conduta segundo a boa fé e, em concreto, o dever acessório de informação
imponham, sem implicar uma injustificada prejudicialidade para o credor fide-
jussório, que continua a beneficiar do direito de garantia de que é titular. Desta
forma podemos atingir ainda a protecção do fiador contra a tentativa de apro-
veitamento, pelo credor fidejussório, da sua posição, em situações em que este
adie a interpelação para cumprimento da obrigação do fiador com a intenção de,
por essa via, obter maior rendimento no que respeita às consequências da mora.
Nos casos em que a informação omitida fosse de tal forma relevante que a
sua omissão implique para o fiador a perda da possibilidade, ou probabilidade,
de conseguir o cumprimento do devedor principal através da sub-rogação na
posição do credor posterior ao cumprimento, tendo o credor fidejussório vio-
lado o dever de prestar essa informação que lhe permitiria extinguir a fiança,
parece que se justifica uma consequência mais gravosa que possa, até, chegar à
paralisação do exercício da posição do credor fidejussório, numa aplicação mais
gravosa do tu quoque – é certo que não está em causa a constituição ilícita da
posição exercida, mas a manutenção da relação fidejussória é ilícita, na medida
em que só se verificou como decorrência da violação do dever de informação
do credor fidejussório; assim, a parte que, pela violação do dever de informa-
ção, influencia a manutenção da situação jurídica constituída, embora, licita-
mente, não poderá, igualmente, dela beneficiar. Mais uma vez joga-se aqui
com o problema, neste caso ainda mais amplo, da frustração do fim da fiança;
no entanto, esta situação seria a que eventualmente se verificaria caso o fiador
tivesse sido devidamente informado dos factos constitutivos desse poder e os
tivesse querido exercer. Esta não é uma solução que se possa aplicar indiscrimi-
nadamente e sem uma devida ponderação de todos os factos relevantes; apenas
será aplicável nos casos em que se conclua haver efectivamente um exercício
inadmissível da posição jurídica do credor fidejussório e que esta solução seja
a que melhor protege a posição do fiador que viu gravemente afectada a sua

126 Conforme diz A. Menezes Cordeiro, Tratado…, vol. V, p. 327, «fere a sensibilidade […] que

uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir a outrem o seu acatamento»,
pelo que parece que será uma solução conforme com os fins prosseguidos pela regra de conduta
segundo a boa fé reduzir o benefício que advém para o credor fidejussório do incumprimento
dos seus deveres.

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situação, na medida em que seria possível a sua liberação com fundamento nos
factos objecto do dever de informação que não foram comunicados.
A opção pela responsabilidade civil, ao invés da paralisação, total ou parcial,
da pretensão do credor, embora possa admitir-se, uma vez que há a violação de
um dever que dá lugar à responsabilidade contratual, nos termos do aritgo 799.º
CC, não parece a solução mais adequada ou, pelo menos, a mais eficiente. No
caso em que, como decorrência da violação do dever de informar, o fiador se
encontre numa posição mais onerosa face àquela em que estaria se lhe tives-
sem sido comunicados os factos devidos, este sofre um dano na sua esfera que
será, no mínimo, o equivalente à prestação que terá de realizar. Assim, o dano
que o credor fidejussório teria que indemnizar corresponderia, em abstracto, a
essa prestação – verifica-se, nestes casos, que atribuir ainda o direito ao credor
fidejussório de exercer o seu crédito não é a solução mais eficiente, uma vez
que a posterior indemnização por violação do dever de informação traria uma
situação equivalente ou mais gravosa ainda do que a que decorreria da parali-
sação imediata do crédito justificada com a inadmissibilidade do seu exercício,
por ultrapassar os limites da boa fé. Note-se que, também aqui, é fundamental
proceder a uma avaliação casuística e concluir que existe um nexo causal entre
a maior oneração do fiador e a violação do dever acessório de informação
pelo credor fidejussório; se se concluir que essa maior oneração se verificaria
ainda que o dever tivesse sido pontualmente cumprido, não haverá imputação
do dano ao credor fidejussório nem, portanto, exercício abusivo do crédito
fidejussório.

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Do contrato-promessa de doação: um contrato misto *
DR. GUILHERME PIRES HENRIQUES

Sumário: 1. Introdução ao problema: o contrato-promessa de doação: 1.1. Breve intro-


dução ao regime da doação: elementos constitutivos; 1.2. Contrato-promessa: perspetiva
geral: 1.2.1. A prometibilidade. 2. Evolução doutrinária: da imprometibilidade à doação
obrigacional: 2.1. Imprometibilidade do contrato-promessa de doação: 2.1.1. Execução espe-
cífica; 2.1.2. Críticas; 2.2. Uma outra perspetiva: promessa de doação como doação obri-
gacional: 2.2.1. Forma e Direito Comparado; 2.2.2. Execução específica; 2.2.3. Críticas.
3. Jurisprudência. 4. Doutrina da prometibilidade fraca: exposição, acolhimento e acrescento:
4.1. Execução específica. 5. Síntese conclusiva.

1. Introdução ao problema: o contrato-promessa de doação

Ao contrário do que acontece noutras ordens jurídicas1, o Código Civil


Português não admite, pelo menos expressamente, o contrato-promessa de
doação. As perguntas, por isso, suscitam-se: será válido? Sendo válido, será
suscetível de execução específica?
No decorrer desta exposição, apresentar-se-á, desenvolvida e criticamente,
a evolução doutrinária e jurisprudencial quanto ao problema.
Em primeiro lugar, serão apresentados, muito brevemente, os institutos da
doação e do contrato-promessa.

*
O texto que se publica corresponde, no essencial, a um trabalho realizado durante a licenciatura
na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no âmbito da cadeira de Direito dos Contratos
II, sob a regência do Sr. Professor Pedro de Albuquerque. Sublinha-se, aqui, a sua preciosa ajuda
na construção deste artigo: pelo incentivo ao debate durante as aulas e pelas incessantes críticas,
que motivaram o aprofundamento do tema.
1 Como na ordem jurídica alemã (BGB) ou na suíça (Código das obrigações suíço), cujas normas

se explicitarão infra.

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990 Guilherme Pires Henriques

Em seguida, a evolução doutrinária quanto ao tema, bem como as críticas


quanto a cada posição.
Pelo meio, suscitar-se-ão questões quanto ao Direito Comparado e quanto
ao regime – sobretudo, quanto à forma.
No fim, em jeito conclusivo, assumir-se-á uma posição, resultante de uma
adesão (parcial) a uma das posições doutrinárias, com um acrescento próprio.

1.1. Breve introdução ao regime da doação: elementos constitutivos

A doação vem regulada nos artigos 940.º ss do Código Civil2. O artigo


940.º define-a como “o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberali-
dade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um
direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente”.
Através da análise da citada disposição legal, podem ser retiradas algumas
conclusões, cuja apreensão se torna indispensável para o posterior desenvolvi-
mento do tema.
Desde logo, constata-se que, ao contrário do que acontece noutros orde-
namentos jurídicos, a doação é expressamente qualificada como um contrato,
e não como um ato, uma vez que se considera indispensável a expressão da
aceitação do donatário – excecionando-se o caso das doações manuais, previsto
no artigo 945.º, em que a mesma se considera presumida, bem como os casos
das doações puras feitas a incapazes, no âmbito das quais, como estatui o artigo
951.º/2, se dispensa a aceitação.
Para que se esteja perante um contrato de doação, é necessário que se preen-
cham certos requisitos – denominados, normalmente, como elementos consti-
tutivos. São três: i) atribuição patrimonial geradora de enriquecimento para o
donatário; ii) diminuição do património do doador; iii) espírito de liberalidade.
Quanto ao primeiro dos elementos, não se oferecem grandes dificuldades
interpretativas: é, basicamente, necessário que exista um ato atributivo de uma
concreta vantagem patrimonial.
No que toca à diminuição do património do doador, a ideia é precisamente
a oposta. Verifica-se, aqui, uma certa correlatividade com o primeiro elemento:
é necessário que haja, pelo lado do doador, uma real diminuição patrimonial,
causada pela efetivação da doação. Esta conclusão é retirada pela expressão “à
custa do seu património”, usada pela lei.

2
Daqui em diante, sempre que não se referir o contrário, os artigos mencionados correspondem
ao Código Civil Português em vigor.

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Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 990 10/01/17 11:25


Do contrato-promessa de doação: um contrato misto 991

Mais vago e controverso é o terceiro elemento: o espírito de liberalidade.


Para ser possível a sua densificação, é útil que se recorra à contraposição entre
animus solvendi e animus donandi: no primeiro caso, uma qualquer prestação
tem, como base, um dever – por outras palavras: é feita porque é imposta ou
justificada juridicamente; no segundo, o que está em causa é a espontaneidade e
generosidade do ato gratuito do devedor. Muito resumidamente, pode, então,
dizer-se, com Ana Prata3, que liberalidade é noção antinómica com a de dever4.
Como se verá ao longo deste estudo, é exatamente sobre este último requi-
sito que se concentra a discussão em torno da admissibilidade do contrato-pro-
messa de doação.
Constata-se, por último, que a atribuição patrimonial, referida no artigo
940.º, pode consistir numa de três modalidades: disposição de uma coisa, dis-
posição de um direito, ou na assunção de uma obrigação5.

1.2. O contrato-promessa: perspetiva geral

Como ponto de partida para a abordagem do tema, requer-se, igualmente,


uma análise, ainda que muito breve, do regime, bem como do conceito de
contrato-promessa.
O contrato-promessa encontra a sua disciplina legal, quanto ao regime
geral, nos artigos 410.º a 413.º; artigos 441.º e 442.º, quanto à promessa de
compra e venda e sinal; alínea f) do n.º1 do artigo 755.º, no que toca ao direito
de retenção; e artigo 830.º, ligado à execução específica.
Tal como a própria lei o define, o contrato-promessa consiste na “con-
venção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”. Por outras
palavras, pode dizer-se que o objeto do contrato-promessa é a celebração do
contrato-prometido.
Especificidade importante deste contrato é o seu regime quanto ao não
cumprimento. Ora, quando o inadimplemento derive da recusa de celebração
do contrato prometido – ou mesmo de outras causas –, para além do regime
geral do não cumprimento das obrigações (cfr. os artigos 798.º e seguintes),

3
Ana Prata, O contrato-promessa e o seu regime civil (2.ª reimpressão da edição de 1994), 2006, p. 308.
4
Bem se sabe que a densificação dos conceitos de liberalidade e animus donandi não é simples, muito
menos pacífica. Quanto a este aspeto, veja-se, por todos, António Santos Justo, Donatio e ani-
mus donandi, in Boletim da Faculdade de Direito – Estudos em homenagem aos Profs. Drs. M. Paulo de
Mêrea e G. Braga da Cruz, 1982.
5 Ao contrário do que se constatava no Código Civil de 1867, o artigo 940.º do presente Código

insere, no conceito de doação, a modalidade da assunção de uma obrigação: “ (…) ou assume uma
obrigação, em benefício do contraente”. Pormenor cuja (extrema) relevância se abordará infra.

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992 Guilherme Pires Henriques

pode ser-lhe aplicável o regime da execução específica, regulado e previsto no


artigo 830.º6.
Nesta sede, declara a lei que “se alguém se tiver obrigado a celebrar con-
trato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em
contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do
faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.
De outro modo: se o promitente, sendo o contrato-promessa unilateral, ou
qualquer dos promitentes, no caso do contrato-promessa sinalagmático, não
celebrar o negócio definitivo, cabe à outra parte a faculdade de conseguir sen-
tença que substitua a manifestação de vontade do faltoso.

1.2.1. A prometibilidade

Adere-se, nesta exposição, ao neologismo, proposto por Menezes Cor-


deiro, de prometibilidade7.
A prometibilidade designa a qualidade de um determinado contrato poder
ser prometido – ou seja: objeto de contrato-promessa.
Segundo esta ótica, podemos ter uma de três hipóteses:
i) Prometibilidade fraca: contrato suscetível de promessa, mas não pode
ser obtido por execução específica, na base de uma ação do artigo 830.º;
ii) Prometibilidade forte: o contrato pode ser prometido e executado
especificamente;
iii) Imprometibilidade8: o contrato é, atendendo aos valores envolvidos ou
pela presença de regras expressas9, insuscetível de ser prometido.

A questão da qual se ocupa o presente trabalho, consubstancia-se, exata-


mente, em tentar perceber, segundo o sistema normativo e valorativo dado pela
lei civil, em qual destas três modalidades é que se mostra mais adequado inserir
o contrato-promessa de doação10.

6
Artigo que foi reconstituído pelo Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro. Sobre essa alte-
ração, ver, por ex., Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4.ª ed., pp. 272 e ss.
7 Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VII, Direito das Obrigações: Contratos. Negócios

unilaterais (2.ª reimpressão da 1.ª ed. do tomo II da parte II de 2010), 2016, p. 319.
8 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito, op. cit., não utiliza, especificamente, esta palavra; pela

ordem de ideias do citado autor, pensa-se que faz todo o sentido propô-la – também fruto de
um neologismo.
9 Veja-se, por exemplo, o artigo 1591.º. relativo à promessa de casamento.

10 Ver-se-á, contudo, que parte da doutrina parece não olhar para a problemática desta forma.

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Do contrato-promessa de doação: um contrato misto 993

2. Evolução doutrinária: da inadmissibilidade absoluta à doação obri-


gacional

2.1. Imprometibilidade do contrato-promessa de doação

Parte da doutrina, nacional e estrangeira, tem vindo a propugnar pela inad-


missibilidade do contrato-promessa de doação.
O primeiro e principal argumento desta posição assenta no facto de a espon-
taneidade, requerida pelo contrato de doação, ser posta em causa quando se faz
dele objeto de um contrato-promessa. Ficando o promitente doador sujeito à
obrigação de realizar o contrato de doação, assistir-se-á, no cumprimento do
mesmo, não a um animus donandi, mas a um mero animus solvendi.
Não se poderá, segundo estes autores, considerar juridicamente espontâneo
um ato que é praticado como cumprimento de uma obrigação jurídica.
Este argumento levou, durante muito tempo, à rejeição da validade do
contrato-promessa de doação – o caso, sobretudo, da clássica doutrina italiana11.
Em Portugal, esta posição foi assumida por Ascenção Barbosa, chegando
o autor a afirmar que, concluído o contrato-promessa desse tipo, «o futuro
doador não desejaria fazer a doação, mas, receando a coação judicial, acabaria
por realizá-la», demonstrando-se tal realização despida de qualquer espontanei-
dade. O autor acrescenta, sem desenvolver, um argumento de cariz histórico,
referindo que no Direito Romano não podia ter-se como válido o pactum de
donando12-13.
Cunha Gonçalves, por sua vez – também aderindo a esta posição, que
desenvolve ainda sob a vigência do artigo 1453.º do Código de Seabra – acres-
centa mais dois argumentos: por um lado, o contrato-promessa de doação entra
em choque com o requisito da atualidade14, uma vez que, nesse caso, está a
doar-se um bem futuro; por outro, a própria gratuitidade da doação é posta em
causa15.

11
Veja-se, a título exemplificativo, Mario D’Orazi, Della prelazione legale e voluntaria, 1950, p. 194
12
Ascenção Barbosa, Do contrato-promessa, sem edição, 1956, pp. 136 e ss.
13 Referindo também este aspeto histórico, cf. Biondi, Sucesión testamentaria y donación, 1960, pp.

702 e ss.
14 Requisito ainda hoje existente nos quadros do atual Código Civil, com expressão no artigo

942.º/2.
15 Luiz da Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil Português,

IV, 1931, n.º 511, p. 271. O autor parece, aqui, confundir os conceitos de liberalidade e gratuiti-
dade. Confusão que tentará ser esbatida, mais à frente, neste trabalho.

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994 Guilherme Pires Henriques

Quem acolhe todos estes argumentos é Batista Lopes, fundando também a


sua posição na proibição presente no artigo 942.º/116.
Menezes Cordeiro insere-se, igualmente, nesta senda doutrinária. Este
autor defende, portanto, que, de acordo com as modalidades de prometibili-
dade que propõe, o contrato de doação enquadra-se na de imprometibilidade.
Por outras palavras e em síntese: defende, a par dos outros autores supra citados,
que o contrato de doação é insuscetível de ser prometido, não podendo «dar
azo à obrigação de celebrar a doação definitiva»17.
Para além do principal argumento – o da não existência de liberalidade –,
Menezes Cordeiro acrescenta outros, cuja pertinência e particularidade fazem
com que se não possa deixar de os mencionar.
Em primeiro lugar, aborda, como argumento, a natureza do contrato-pro-
messa, explanada no seu próprio regime: tendo em conta os mecanismos ine-
rentes ao sinal e à execução específica (artigos 442.º e 830.º), afigura-se, para o
autor, lógico que o desenho legal foi feito e pensado, pelo legislador, para con-
tratos onerosos e sinalagmáticos. Ora, sendo o regime pensado para esse tipo
de contratos, e sendo o contrato de doação um contrato gratuito, brota dessas
constatações uma incompatibilidade de natureza entre o contrato-promessa e
o de doação.
Por outro lado, constata-se que, tendo a doação uma dogmática própria,
assente na gratuitidade e liberalidade, «torna-se clara a desadaptação do contra-
to-promessa perante a doação».
Como terceiro argumento, não menos pertinente, o autor relembra que o
regime da doação, presente no artigo 947.º, exige, quanto à forma do contrato,
mais do que exige a correspondente promessa. Tais exigências têm, nas suas
palavras, a função de «capacitar o doador da gravidade objetiva da sua atitude».
Pelo que há, também quanto a este aspeto, uma incompatibilidade evidente
entre natureza e regime dos dois contratos.
Concluindo, é clara a sua posição: «a doação, pela sua própria natureza,
não é prometível: nem em sentido forte (execução específica), nem em sentido
fraco (mera obrigação).» A imprometibilidade, em geral, pode resultar de duas
vias: existência de regras expressas que proíbam um determinado contrato de
ser objeto de um contrato-promessa; ou dos «valores em jogo»18.
Ora, é exatamente pela análise dos valores em jogo, que se conclui que a
imprometibilidade é, quanto ao contrato de doação, característica assente.

16
Manuel Baptista Lopes, Das doações, sem edição, 1970, pp. 27 e ss.
17
Menezes Cordeiro, op. cit, p. 326.
18 Quanto a estes argumentos, cf. menezes Cordeiro, op. cit, pp. 324 e 325.

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Do contrato-promessa de doação: um contrato misto 995

Interessa, por último, referir que, quanto ao vício a atribuir a um contra-


to-promessa de doação, parece que Menezes Cordeiro diverge em relação aos
outros autores que também propugnam pela tese da imprometibilidade, no sen-
tido em que, não violando normas imperativas expressas, e tendo o problema
mais a ver com a incongruência dos “valores em jogo”, a promessa de doação
não deve considerar-se nula, mas apenas ineficaz19.

2.1.1. Execução específica

Quanto à possibilidade da execução específica, esta perspetiva doutrinária


rejeita-a, visto que a doação não pode ser, sequer, prometida.
Contudo, Menezes Cordeiro nem por isso deixa de mencionar que a desa-
daptação de regimes nem com a exclusão de execução específica (prometibili-
dade fraca) ficaria sanada uma vez que, em sede de responsabilidade contratual,
a indemnização teria, pelo menos, o valor do bem doado, do qual o donatário
foi privado: «portanto, o bloqueio da execução específica não resolve, uma vez
que, por via indemnizatória, a deslocação gratuita acabaria por se efetivar manu
militari»20.

2.1.2. Críticas

Deve começar por criticar-se o argumento baseado no facto de o con-


trato-promessa pressupor, obrigatoriamente, contratos definitivos, onerosos e
sinalagmáticos. Na verdade, uma análise cuidada do artigo 410.º, que estatui
– note-se (!) – o regime geral do contrato-promessa, faz com se chegue a
uma conclusão contrária: atente-se que o n.º1 define-o como a “convenção
pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”, e não a convenção pela
qual alguém se obriga a celebrar certo contrato oneroso. Acrescente-se, até,
que, pelo contrário, já o n.º 3 do citado artigo, é expressamente previsto para
contratos onerosos: “No caso de promessa respeitante à celebração de contrato
oneroso(…)”.
Por outro lado, sendo a questão abordada em sede de direito civil, é impe-
rioso o princípio, extraído do artigo 405.º, da autonomia privada: norma geral,

19
Cf. toda a posição do autor, aqui explanada, em Menezes Cordeiro, op.cit., pp. 319 e ss e,
especificamente, pp. 320-326.
20 Menezes Cordeiro, op.cit., p.325.

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996 Guilherme Pires Henriques

reportada à liberdade contratual, segundo a qual o que não é proibido é, em


princípio, permitido às partes negociantes.
Diga-se, também, que a alínea c) do artigo 954.º, referente aos efeitos da
doação, corrobora a ideia de que a assunção de uma obrigação não é incompa-
tível com a dogmática da própria doação.
Quanto aos argumentos específicos do “espírito de liberalidade em causa”,
deixar-se-á para o fim, aquando da exposição da posição tomada, a devida crítica.

2.2. Uma outra perspetiva: promessa de doação como doação obrigacional

Cumpre, agora, considerar uma outra perspetiva acerca do problema em


questão.
Impulsionada, em Portugal, principalmente por Vaz Serra21 e Antunes
Varela22, a grande premissa desta visão doutrinária assenta no seguinte: «a pro-
messa de doação23, se for espontânea, não afeta a espontaneidade da doação: tal
promessa é que representa sobretudo a liberalidade».
Para este setor da doutrina, a promessa de doação é admissível na medida
em que, de um ponto de vista positivo, tanto o artigo 940.º, como a alínea c) do
artigo 954.º, a admitem, na modalidade de uma doação obrigacional.
Tomemos, para explicitação desta posição doutrinária, um simples e típico
exemplo: alguém promete doar, a outrem, o seu imóvel. Ora, com esta decla-
ração negocial24, cumpre analisar, não o hipotético preenchimento da previsão
do artigo 410.º, relativo ao contrato-promessa, mas sim o preenchimento da
previsão do artigo 940.º, relativo à doação.
Perguntar-se-á, então, se os elementos constitutivos da doação estarão,
neste caso, preenchidos. Tal como propugnam estes autores, parece que sim,
nos seguintes termos:
i) Enriquecimento do donatário: há, na medida em que o mesmo recebe,
com a promessa, um direito ao crédito;

21 Toda a posição, exposta neste capítulo, em Vaz Serra, Anotação ao Acórdão do STJ de 18-05-
1976, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 110, 1977, pp. 207 e ss.
22 Toda a posição do autor, exposta neste capítulo, em Antunes Varela, Anotação ao Acórdão

18-07-1981, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 116, 1983, pp. 57 e ss.


23 Em sede de análise desta doutrina, usar-se-á à expressão “promessa de doação” em vez de

“contrato-promessa de doação”, uma vez que, como se demonstrará em seguida, parece ser o
mais correto para se compreender a exposição: no fundo, uma promessa de doação é uma doação
obrigacional, não um verdadeiro contrato-promessa.
24 Desde que seja respeitada a forma – tema a ser desenvolvido infra.

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Do contrato-promessa de doação: um contrato misto 997

ii) Empobrecimento do doador: há, pois contraiu, na sua esfera jurídica,


uma obrigação – o que acarreta uma oneração do seu património;
iii) Espírito de liberalidade: como já se explicou, a promessa, em si, não
derivou de qualquer vinculação jurídica, fazendo-a o doador por gene-
rosidade –animus donandi.

Em síntese, o raciocínio que, segundo esta visão, deve ser feito é o seguinte:
dentro do texto e do espírito da lei (n.º 1 do artigo 940.º), pode qualificar-se
como doação o caso de alguém assumir, a título gratuito, a dívida já existente
do devedor, em face de terceiro; igualmente qualificável como doação é o caso
em que alguém assume, a título gratuito, uma obrigação inteiramente nova para
com o outro contraente. Defende Antunes Varela que, para esta segunda ver-
tente, o exemplo típico é, precisamente, o de alguém se obrigar a doar alguma
coisa ou direito ao outro contraente25.
Por esta lógica, deve concluir-se que a lei considerou, assim, a promessa de
doação como verdadeira doação.
Quanto a este aspeto, cumpre mencionar um dado histórico-legislativo
importante: ao contrário do que constava no Código Civil de 1867, o artigo
940.º do presente Código insere, no conceito de doação, a modalidade da
assunção de uma obrigação.
A parte final do artigo 940.º – “(…) ou assume uma obrigação, em benefí-
cio do outro contraente” – serve para explicar e sustentar esta posição. Prome-
ter doar é, portanto, doar, na modalidade de doação obrigacional.
Antunes Varela26, no intuito de explicar, fundamentar e defender a sua
posição, faz um paralelismo, de relevante interesse, com um tipo contratual
tipificado em ordens jurídicas sul-americanas – como é o exemplo da brasileira:
o compromisso de venda.
Ora, no compromisso de venda, o compromitente-vendedor não se limita
a prometer vender, porque quer vender desde logo – embora sem a forma
externa necessária à validade da venda. Compromete-se entretanto a formalizar
a venda, a repetir ou a reproduzir a declaração da mesma, pela forma exigida
pela lei. Com efeito, parece que a situação é comparável com a do promitente
doador, na medida em que doa desde logo, «atribuindo gratuitamente ao pro-
missário, por espírito de liberalidade, um direito de crédito a expensas do seu
património. Ao efetuar posteriormente a transmissão prometida – dizendo, por
via de regra, que doa à outra parte determinada coisa ou direito –, ele de algum

25
Antunes Varela, op.cit., p. 61.
26
Antunes Varela, op.cit., p. 61, nota 2.

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998 Guilherme Pires Henriques

modo se limita também a confirmar, a repetir ou a reproduzir, na forma externa


adequada, a declaração anterior de doar».
Uma questão interessante e de análise obrigatória quanto a esta posição é a
de saber qual a natureza da transmissão posteriormente efetuada, em cumpri-
mento da obrigação contraída ou assumida pelo disponente.
A pergunta que se apraz fazer, neste âmbito, é a seguinte: o cumprimento
da promessa não se consubstancia no animus solvendi, incompatibilizando-se,
dessa forma, com o animus donandi, requerido para a doação?
A resposta é, segundo estes autores, negativa. Para ser compreendida, é
necessário que se chegue a duas conclusões: (i) a transmissão posteriormente
efetuada não é uma segunda doação; (ii) o facto de ser uma atribuição solvendi
causa não faz com que se ponham em causa, por um lado, o espírito de libera-
lidade, por outro, a gratuidade da prestação.
Quanto a estas conclusões, os autores Antunes Varela e Vaz Serra aderem
à dogmatização proposta por von Thur27. No fundo, o facto de a transmissão
posteriormente efetuada (retomando o exemplo: a efetiva transmissão do imó-
vel), apesar de ser uma atribuição solvendi causa, não deixa, por isso, de repre-
sentar uma disposição gratuita, com espírito de liberalidade.
Por um lado, representa uma disposição (ou atribuição) gratuita, visto ser
efetuada sem qualquer correspetivo ou contraprestação por parte do donatá-
rio28. Por outro, não falta à atribuição em causa o requisito de liberalidade,
uma vez que, apesar de não constituir, em si mesma, uma doação, não impede
que integre uma doação, visto que a sua causa (a relação jurídica subjacente)
está na promessa, marcada por esse espírito de liberalidade.
Em suma, e pegando no exemplo da promessa de doação do imóvel: haverá
que distinguir entre a doação do crédito à prestação do imóvel (que constitui a
doação propriamente dita), e a entrega do imóvel em si (que, correspondendo
ao cumprimento do contrato, representa ainda uma atribuição patrimonial
gratuita).
Para finalizar e assegurar a compreensão, cite-se Vaz Serra29, que muito bem
sintetiza a posição da seguinte forma: «Quando a doação não é logo executada,
sendo prometida, a título de doação, uma prestação, um tal contrato, dado que
funda uma obrigação à prestação, é um contrato obrigacional unilateralmente
vinculativo. A doação está aqui já na constituição do crédito; a atribuição sai,

27
Quanto a este ponto, Vaz Serra, op. cit., p. 213.
28
Lembre-se que o conceito de gratuitidade é distinto do de liberalidade: o primeiro, objetivo e eco-
nómico, refere-se à ausência de contraprestação; o segundo, subjetivo e moral, prende-se, como
já se viu, com a atribuição efetuada sem qualquer vínculo jurídico, por mera espontaneidade.
29 Vaz Serra, op. cit., p. 213

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Do contrato-promessa de doação: um contrato misto 999

nessa medida, do património do promitente, fundando uma dívida a cumprir à


custa do seu património. A prestação do objeto prometido não é de novo doa-
ção, mas cumprimento de uma dívida; ela é, todavia, atribuição gratuita porque
a relação jurídica causal em que assenta a sua existência jurídica (no sentido do
direito de enriquecimento) é doação»30.
Constate-se, por último, que alguns dos argumentos apresentados pelo pri-
meiro setor doutrinário, são, desta forma, enfraquecidos: quanto ao espírito
de liberalidade – uma vez que, como já se explicou, está verificado na própria
promessa; quanto à proibição de bens futuros – visto que a promessa não é uma
doação de bens futuros, mas apenas de bens presentes; e, por fim, quanto à
gratuitidade – pela lógica presente no raciocínio de von Thur.

2.2.1. Forma e Direito Comparado

Esta posição – sobretudo por intermédio de Vaz Serra – ganha peso e


importância – tanto teórica quanto prática –, na medida em que aborda duas
questões muito importantes: forma e direito comparado31.
Quanto à forma, defende o citado autor que a promessa de doação é admis-
sível, «desde que nela se observem certas formalidades»32.
Ora, quanto a este aspeto, é necessário distinguir, segundo o autor, as situa-
ções em que a promessa incide sobre coisas imóveis, daquelas em que incide
sobre coisas móveis:
i) Se a promessa de doação tiver por objeto bens imóveis, tem ela de ser
feita por escrito assinado pelo promitente (artigo 410.º/2), dado que
a doação de bens imóveis tem de constar de escritura pública (artigo
947.º/1).
ii) No caso de a doação incidir sobre bens móveis, exigir-se-á, na mesma,
redução a escrito, uma vez que o artigo 947.º/2, não sendo a promessa
acompanhada de tradição da coisa, exige a forma escrita.

30 O autor chega a defi nir, distinguindo, a causa donandi mediata, da causa donandi imediata. Estar-

-se-á, no caso da promessa de doação, perante a primeira vertente, na medida em que existe uma
mediação temporal (iter do cumprimento) que separa a promessa da efetiva prestação.
31 Vaz Serra, op.cit., p. 213.

32 Cfr. Boletim do Ministério da Justiça, n.º 76. Vid. Também, a este respeito, Pires de Lima, nesta

revista, 99.º, pp. 352 ss; Igualmente, no mesmo sentido, Antunes Varela, op. cit., p. 62.

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1000 Guilherme Pires Henriques

Ora, esta inevitável exigência a escrito resulta de um par de argumentos,


capaz de refutar alguns outros mencionados pelo primeiro setor da doutrina –
sobretudo os ligados com a proibição de bens futuros33:
i) O primeiro prende-se com a ponderabilidade exigida para a doação: a
exigência escrita funda-se na circunstância de a doação poder ser peri-
gosa se não houver um facto que chame especialmente a atenção das
partes para a gravidade do ato.
ii) O segundo, algo relacionado com o primeiro, prende-se com o facto
de a forma conseguir fazer distinguir as chamadas promessas quotidianas
– feitas com leviandade, não vinculativas –, das jurídicas, vinculativas.
A forma serve, nesta lógica, como prova de seriedade.

Introduzindo, agora, uma apreciação sobre o direito comparado, diga-se


que a exigência formal é, pela mesma lógica, assegurada nas ordens jurídicas
que expressamente tipificam, validando, a promessa de doação:
i) Alemanha: Parágrafo 518 BGB: “para a validade de um contrato,
mediante o qual uma prestação é prometida a título de doação, é neces-
sária a documentação notarial da promessa […]. A falta de forma é sanada
pela realização da prestação prometida”;
ii) Suíça: artigo 243.º do Código das Obrigações suíço: “a promessa de doar
só é válida se feita por escrito, ou, tendo por objeto um imóvel ou um
direito real imobiliário, por documento autêntico, e, desde que é execu-
tada, é assimilada a uma doação normal”.

2.2.2. Execução específica

Quanto ao problema da possibilidade de execução específica, esta doutrina


acaba por não se pronunciar. O que parece lógico, atendendo ao facto de não
haver, segundo esta visão, um verdadeiro contrato-promessa.
Não prestando, o doador, a coisa – incumprido, dessa forma, o contrato –,
caberá a responsabilidade nos termos gerais (artigos 798.ºss).

2.2.3. Críticas

Cumpre, desde logo, tecer uma crítica – ainda que parcial – quanto à exi-
gência formal desta posição: ainda que se mostrem muito atendíveis os argu-

33
Argumento que tem como base teleológica a ponderabilidade requerida para a doação.

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Do contrato-promessa de doação: um contrato misto 1001

mentos, de cariz teleológico, demonstrados para a exigência formal, não se


mostra razoável recorrer ao regime do contrato-promessa (artigo 410.º),
quando esta posição afasta, sem rodeios, a própria existência de um contra-
to-promessa. No fundo, mostra-se injustificado que se recorra a normas de
regime de um contrato que, supostamente, não está em causa, sem qualquer
justificação lógico-jurídica.
A segunda crítica, no sentido apontado por Larenz34, prende-se com o
facto de esta doutrina acabar por, aceitando a promessa de doação, rejeitar o
contrato-promessa de doação. Ou seja: foge do problema do possível cabi-
mento de uma declaração negocial deste tipo na previsão do artigo 410.º, para
analisar, apenas, o seu cabimento no artigo 940.º35.
Por último, pensa-se que o paralelismo, proposto por Antunes Varela, entre
a promessa de doação e o compromisso de venda demonstra a fragilidade de
toda a posição: com efeito, esta visão parece dispensar a importância da ver-
dadeira intenção do declarante. Isto é: na ordem jurídica portuguesa, como
na alemã, prometer vender é diferente de vender – assim como, pela mesma
lógica, prometer doar é diferente de doar. Uma das funções típicas do contrato-
-promessa é exatamente a função mitigadora – no sentido em que a promessa
traduz uma vinculação enfraquecida, relativamente ao prometido, entreven-
do-se a possibilidade de arrependimento36 – o que parece, desta forma, ser
ignorado pelo autor.

3. Jurisprudência

Quanto à jurisprudência portuguesa, é curioso notar a forte tendência –


pelo menos até ao início da década de 2000 – para o segundo setor da doutrina,
atrás enunciado: promessa de doação como doação obrigacional37.
Foram raras, mas existentes, as vezes em que um tribunal propugnou pela
imprometibilidade – no sentido da primeira doutrina explanada – do contrato-

34 Cf. Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, II – Besonder Teil, 1, 1986, pp. 200 e ss.
35
Ainda que recorram, paradoxalmente, ao regime do contrato-promessa para fundamentarem
a exigência de forma escrita (1.ª crítica).
36 Quanto à função mitigadora do contrato-promessa, cf. Menezes Cordeiro, op cit., pp. 303 e

ss, que aponta o efeito de dilação, a possibilidade de arrependimento, a indecisão quanto a contra-
tar e a regulação parcial como quatro possíveis razões para que se considere o contrato-promessa
como um tipo «mais solto ou lasso do que o provocado pelo definitivo».
37 Vejam-se, neste seguimento, por ordem temporal: STJ-16-Jul.-1981; RLx 14-Out.-1993; STJ

1-Out.-1996; RPt 27-Jun.-2002.

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1002 Guilherme Pires Henriques

-promessa de doação, classificando-o como nulo – e não ineficaz, ao contrário,


por isso, do que defende Menezes Cordeiro38.
Interessante é notar que, nos últimos anos, se tem vindo a assistir a uma
nova tendência jurisprudencial, propugnando por uma posição que defende a
prometibilidade fraca – isto é: suscetibilidade do contrato de doação ser prome-
tido; insusceptibilidade do contrato-promessa ser sujeito a execução específica.
É exatamente esta última doutrina – a da prometibilidade fraca – que se
apresentará em seguida39.
Em suma, analisado o quadro evolutivo da jurisprudência, é possível che-
gar-se a duas principais conclusões:
i) Em nenhuma decisão jurisprudencial se encontra uma condenação de
um promitente doador a uma execução específica;
ii) Os últimos anos têm demonstrado que se assiste, neste momento, a uma
forte tendência para se aceitar a doutrina da prometibilidade fraca.

4. Doutrina da prometibilidade fraca: exposição, acolhimento e


acrescento

A doutrina da prometibilidade fraca é defendida, em Portugal, por Menezes


Leitão40.
Segundo esta visão, o contrato-promessa de doação é válido, mas não é
possível haver execução específica do mesmo.
A princípio, é possível apontar três obstáculos a esta posição:
i) Os argumentos dados, pela primeira doutrina, para a imprometibilidade;
ii) Explicar como podem coexistir, no mesmo negócio jurídico, um con-
trato-promessa de doação e uma doação obrigacional41.
iii) Explicar como é que no segundo momento – celebração da doação
prometida – se compatibiliza o animus donandi com o animus solvendi.

Quanto ao primeiro, cumpre remeter para as críticas, apresentadas supra,


à tese da imprometibilidade. Para além dos argumentos aí apresentados, faz,
agora, sentido mencionar outro: o da existência, noutras ordens jurídicas42 –

38
Como exemplo: STJ 20-Nov.-1986; RLx 19-Fev.-2002.
39
Ver, neste sentido, STJ 21 – Nov.-2002; RLx 25-Jun.-2009.
40 Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. III – Contratos em especial, 11.ª ed., 2016, pp. 191 e ss.

41 É, quanto a este ponto, que se propõe o afloramento da doutrina da prometibilidade fraca.

42 Como já se teve oportunidade de analisar, no capítulo dedicado à questão do Direito Comparado.

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Do contrato-promessa de doação: um contrato misto 1003

com uma dogmática muito semelhante à nossa, como a alemã – da previsão


expressa da validade do contrato-promessa de doação.
No que toca ao segundo obstáculo, cumpre, aqui, apresentar-se o tal
“acrescento” que se propõe.
A argumentação da doutrina em análise tem, a nosso ver, o seguinte pro-
blema: por um lado, diz-se que há, na declaração de promessa de doação, o
preenchimento de todos os elementos constitutivos da doação – parecendo
concordar com as teses que defendem a existência de uma doação obrigacional;
por outro, aceita-se a existência, bem como a validade, do contrato-promessa.
De facto, parece, à primeira vista, incongruente dizer que, por um lado, há
contrato-promessa e, por outro, uma doação obrigacional. Até porque, no que
respeita à forma, Menezes Leitão parece acolher o esquema proposto por Vaz
Serra, explicado supra43.
O defendido, por estes autores, quanto à forma exigível para o contrato
faz todo o sentido: sujeitando o contrato a escrito, assegura-se, por um lado, a
ponderabilidade da doação, por outro, faz com que se cumpra uma das funções
típicas do contrato-promessa: a função mitigadora – uma vez que o artigo 410.º
exige uma forma mais leve que o artigo 947.º.
Ora, a pergunta que se impõe é a seguinte: como fundamentar esta articu-
lação de regimes e qualificações contratuais?
Pensa-se que se está perante um contrato atípico misto, de tipo múltiplo,
de contrato-promessa e contrato de doação, uma vez que há um negócio jurí-
dico que assenta na mistura destes dois tipos contratuais: doação obrigacional e
contrato-promessa de doação.
Os contratos atípicos mistos são construídos através da modificação ou –
como se entende ser o caso do contrato-promessa de doação – da mistura de
tipos contratuais, embora não correspondam a qualquer deles44.
No caso dos contratos mistos de tipo múltiplo, como é o caso, o contrato
não é construído a partir da modificação de um modelo típico, mas da conju-
gação de mais de um tipo, não existindo um tipo contratual de referência que
forneça ao contrato a base da sua disciplina, mas uma pluralidade de tipos45.
Assim, manifesta-se a adesão à tese da combinação de contratos mistos.
Com efeito, o contrato-promessa de doação acaba por encontrar a sua disci-

43
Menezes Leitão, op. cit., p. 193.
44
Neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª ed, 2015, p. 469.
45 Pedro Pais de Vasconcelos, op. cit., p. 471.

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1004 Guilherme Pires Henriques

plina em mais do que um tipo, havendo a combinação de elementos e preceitos


legais de diferentes tipos contratuais previstos na lei46.
A disciplina concreta do contrato em análise será, então, procurada na
combinação de elementos e de preceitos legais originários do contrato-pro-
messa – como, por exemplo, o artigo 410.º, quanto à forma – e, por outro
lado, de preceitos da doação – como, por exemplo, o artigo 970.º, quanto à
revogação da doação por ingratidão do donatário, que poderá abranger o con-
trato-promessa de doação e a própria doação47 –, resolvendo-se, desta maneira,
vários dos problemas suscitados ao longo deste estudo, conseguindo-se uma
congruente e justificada articulação de regimes e, sobretudo, respeitando-se a
verdadeira vontade das partes.
Quanto ao terceiro problema, cumpre apresentar-se três vias argumentati-
vas, cada uma delas capaz de explicar a possibilidade de, no caso, se compati-
bilizar, na celebração do contrato prometido, o animus donandi com o animus
solvendi.
Em primeiro lugar, diga-se, como Menezes Leitão, que, no contrato pro-
metido, não deixa de existir, ex novo, um exercício da autonomia privada, ainda
que em cumprimento da obrigação anterior, pelo que a espontaneidade (animus
donandi), presente no primeiro contrato, é renovada no segundo48.
Por seu lado, Ana Prata, também parece – ainda que com reservas – admi-
tir esta posição, resolvendo este problema dizendo ainda existir um espaço de
liberdade no contrato prometido, estabelecendo uma analogia com a doação
remuneratória, prevista no artigo 941.º49.
Diga-se, como terceiro argumento, que, na verdade, parece que a vontade
de doar, consubstanciada pelo tal espírito de liberalidade, deve persistir até ao
momento em que obtenha a sua plena eficácia jurídica, ou seja, só aquando da
celebração do contrato prometido. Isto é: pensa-se que o animus donandi deve
estar presente durante todo o iter do cumprimento.

46 Pedro Pais de Vasconcelos, op. cit., p. 472. Como principais impulsionadores da teoria da

combinação, aqui explanada, Hoeniger, Die gemischte Vertrage in ihren Grundformen, 1910 e Rume-
lin, Dienstvertrag und Werkvertrag, 1905.
47 Quanto a este ponto, no mesmo sentido mas sem justificar a articulação de regimes, refere

Menezes Leitão, op. cit., p. 193, que, «verificando-se uma situação de ingratidão do donatário,
parece, em face do artigo 970.º, que a revogação poderá abranger, quer o contrato-promessa de
doação, quer a doação realizada em cumprimento daquele».
48 Menezes Leitão, op. cit., p. 193.

49 Ana Prata, op.cit., p. 315.

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Do contrato-promessa de doação: um contrato misto 1005

4.1. Execução específica

Quanto ao problema da execução específica, propugna-se pela sua impos-


sibilidade, por tal se opor à natureza da obrigação assumida (n.º 1 do artigo
830.º)50, uma vez que, como se explicou, tem de estar presente, no segundo
contrato, o espírito de liberalidade. O que não quer dizer que o promitente
donatário fique impune ao violar o princípio pacta sunt servanda: lembre-se,
como já se disse anteriormente, que o incumprimento do contrato-promessa é
sujeito ao regime geral do incumprimento das obrigações, previsto nos artigos
798.º e seguintes.
Como se apontou supra, Menezes Cordeiro manifesta o seu desacordo
com a tese da prometibilidade fraca uma vez que, em sede de responsabili-
dade contratual, a indemnização teria, pelo menos, o valor do bem doado, do
qual o donatário foi privado: «portanto, o bloqueio da execução específica não
resolve, uma vez que, por via indemnizatória, a deslocação gratuita acabaria por
se efetivar manu militari»51.
Deve sublinhar-se, porém, que, de um ponto de vista prático, a verdade
é que a via indemnizatória acaba, pelo menos na maior parte dos casos, por
obstar à transmissão de uma determinada coisa em específico, transmitindo-se
dinheiro em seu lugar. É verdade que haverá, manu militari, uma deslocação
patrimonial da esfera jurídica do promitente incumpridor para a do donatário
lesado. Contudo, essa deslocação é configurada de um modo diverso: a mate-
rialidade, as consequências e o objeto da prestação são diferentes.
Defende-se, assim, a prometibilidade fraca do contrato-promessa de
doação52.

5. Síntese conclusiva

O contrato-promessa de doação é válido. Desde logo, porque, não sendo


expressamente proibido pelo legislador, o princípio da autonomia privada, pre-
visto no artigo 405.º, aponta para a validade dessa estipulação contratual. Para
além disso, a previsão expressa da doação obrigacional por parte do legislador,
no artigo 940.º e na alínea c) do artigo 954.º, enfraquece a ideia de que a natu-

50
Adere-se aqui, à posição defendida por Almeida Costa, op.cit, pp. 55 ss. No mesmo sentido,
Ana Prata, op.cit., p. 315.
51 Menezes Cordeiro, op.cit., p.325

52 Lembre-se que, como se apresentou supra, parece ser esta a tendência mais recente da

jurisprudência.

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1006 Guilherme Pires Henriques

reza e dogmática da doação é incompatível com a assunção de uma obrigação.


Ademais, o facto deste contrato ser expressamente previsto e regulado noutras
ordens jurídicas é, também, um argumento a considerar pelo intérprete.
A articulação dos regimes dos tipos contratuais de contrato-promessa e de
contrato de doação é explicada pelo facto de estarmos na presença de um con-
trato atípico misto, resultando o seu regime de um mesclar entre os dois tipos
contratuais. Dessa forma, pensa-se que se irá ao encontro da vontade das partes
e da justiça contratual. Mais uma vez, assume aqui especial importância o prin-
cípio estatuído no artigo 405.º, e, quanto a este aspeto, o estipulado no seu n.º
2: “As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais
negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.
Sendo válido, considera-se que o contrato-promessa de doação se enquadra
na modalidade de prometibilidade em sentido fraco, no sentido em que não
poderá haver execução específica do mesmo. O n.º 1 do artigo 830.º exclui este
tipo de contratos: a natureza do mesmo é incompatível com a execução especí-
fica na medida em que há um animus donandi inerente a toda a prestação. Como
se explicou, a vontade de doar, consubstanciada pelo tal espírito de liberalidade,
deve persistir até ao momento em que obtenha a sua plena eficácia jurídica, ou
seja, só aquando da celebração do contrato prometido
Com este trabalho visou-se reunir e organizar sistematicamente toda a
evolução doutrinária, bem como jurisprudencial, quanto ao tema. Como plus,
manifestou-se a defesa da existência de um contrato atípico misto, de forma a
ultrapassar algumas das dificuldades detetadas na conjugação dos regimes con-
tratuais em causa. Espera-se que, desta forma, se tenha contribuído, se não para
a evolução, pelo menos para o estudo crítico desta matéria, enriquecendo a
Ciência do Direito Civil.

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros
nos negócios celebrados por procuração tolerada no âmbito
do Direito civil português
DR.ª GEOVANA MENDES BAÍA MOISÉS

SUMÁRIO: Introdução. 1. O Código Civil Português e as procurações tolerada e aparente.


2. Representação aparente no Direito comparado. 3. Respostas do ordenamento jurídico por-
tuguês para tutela de terceiros que contrata com um representante aparente: 3.1. Direito
comercial; 3.2 Direito civil. 4. O abuso do direito e a figura do venire contra factum proprium
como forma de vincular o representado nas relações negociais no âmbito do Direito civil:
4.1. Abuso do direito: breves considerações: 4.1.1. Venire contra factum proprium;
4.1.2. Venire contra factum proprium nas relações negociais com base na representação tole-
rada. 5. Análise de jurisprudência: 5.1. Processo n.º 752-F/1992, da 7.ª Secção do Supremo
Tribunal de Justiça, relator Lopes do Rego. Acórdão de 20/05/15: 5.1.1 Relatório sucinto;
5.1.2 Comentário; 5.2 Processo n.º 3325/06, 1.ª Secção Cível do Tribunal da Rela-
ção de Lisboa, relator Manuel Marques. Acórdão de 11/01/11: 5.2.1 Relatório sucinto;
5.2.2 Comentário. Conclusão.

Introdução

A vinculação do representado aos atos negociais celebrados por meio de


procuração tolerada tem gerado inquietações e discussões no mundo acadêmico.
Parte da doutrina entende que a procuração tolerada não foi consagrada na
legislação portuguesa e, por isso, o representado não poderá se vincular ao negó-
cio jurídico. De outro lado, encontram-se aqueles que entendem que, embora
a procuração tolerada não tenha sido adotada pelo sistema jurídico português,
o representado pode se vincular ao negócio jurídico se demonstrada sua má-fé.
Os Tribunais Portugueses tem reconhecido, de forma tímida, que o com-
portamento do representado pode resultar em sua vinculação ao negócio cele-

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1008 Geovana Mendes Baía Moisés

brado por meio da procuração tolerada e que a negativa de ratificação consti-


tuirá abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium.
O abuso de direito corresponde a um exercício de posições que contrariam
os valores fundamentais do ordenamento jurídico, destacadamente, o princípio
da confiança.
No intuito de contribuir para uma melhor reflexão sobre o tema é que se
realiza este trabalho, com os levantamentos de doutrinas e jurisprudências sobre
o assunto.
Nos primeiros tópicos, procura-se buscar respostas no ordenamento jurí-
dico português, e no direito comparado para a procuração tolerada.
Em seguida, aborda-se o abuso de direito na modalidade do venire contra fac-
tum proprium como forma de vinculação do representado nas relações negociais,
celebrados por meio da procuração tolerada no âmbito do direito civil.
Na sequência, são analisadas duas jurisprudências de relevância para o tema
trabalhado.
Embora o tema seja limitado aos negócios celebrados no âmbito do Direito
Civil torna-se necessário verificar em todo o sistema jurídico, notadamente no
Direito Comercial, quais as vias de tutela para terceiros, em casos similares.
O ponto crucial desse trabalho é compatibilizar o princípio da autonomia
privada, em que ninguém deve ficar vinculado negocialmente contra sua von-
tade, com a boa-fé do terceiro que contrata com o representante, crendo, legiti-
mamente, contratar com alguém que tinha poderes de representação.
Não é pretensão desse trabalho a exposição completa e exaustiva de todas
as questões levantadas.
Trata-se, antes de mais, de saber quais os critérios a serem adotados para
configuração do abuso de direito, já que, de um lado está o terceiro, e de outro,
o representado que manifesta alguma tolerância pela atuação do representante,
e acaba por contribuir para uma situação de aparência.

1. O Código Civil Português e as procurações tolerada e aparente1

No âmbito da representação sem poderes, existe um conjunto de situações,


das quais destacamos a ausência originária de legitimidade representativa, por

1
Para maior estudo sobre o tema Juan B. Jordano Barea. La teoria del heredero aparente y la proteccion
de los terceiros. Instituto Nacional de Estudos Jurídicos. Anuário de Direito Civil, Madrid, 1950.
e António Gordilho. La representacion aparente. Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 1978.

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1009

nulidade ou falta de representação, ou superveniente, por atuação ultra vires ou


desenvolvida após a sua extinção2.
A procuração tolerada ocorre quando alguém invoca poderes de representa-
ção de outrem que, embora não os tenha expressamente concedido, tem conhe-
cimento e tolera essa atuação, permitindo assim, que seja criada uma situação
de aparência de representação e de confiança, por parte de terceiros, na efetiva
vigência dos invocados poderes de representação3.
A procuração aparente acontece quando alguém invoca poderes de repre-
sentação de outrem e afirma atuar em seu nome, sem que o suposto represen-
tado lhe tenha conferido esses poderes e sem que tenha conhecimento de que
assim sucede, embora pudesse e devesse saber que assim sucedia, se tivesse agido
com a diligência devida4.
No Direito Português não são utilizáveis os esquemas da procuração tole-
rada e da procuração aparente5.
O Código Civil optou por tutelar a esfera jurídica do representado, quando
em seu artigo 258.º, dispõe que para se verificar a eficácia do ato, é necessário
que o representante tenha atuado munido de poderes e dentro dos limites desses
poderes.
Tal preceito decorre do princípio da autonomia privada de que ninguém
deve ficar vinculado negocialmente contra a sua vontade.
Ressalta-se que o artigo 266.º protege terceiros perante modificações ou
revogação da procuração de que não tiverem, sem culpa, conhecimento6.

2 Neste sentido Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde. A responsabilidade do “representado” na


representação tolerada. Um problema de representação sem poderes. Lisboa: AAFDL, 2008, p. 18 e Pires
de Lima/Antunes Varela. Código Civil Anotado. 4ª edição, 1987, vol. I, p. 249.
3 António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito civil. Parte Geral, Vol.V. 2012. Coimbra: Editora

Almedina, p. 103, explica que a Procuração tolerada (duldungsvollmacht) ocorre quando alguém
admite que um terceiro se arrogue seu representante. A tutela ocorre por força da confiança, impu-
tada ao representado. Na procuração aparente (Anscheinsvollmacht), “algumas jurisprudências e doutrinas
vão mais longe”. Ocorre quando alguém arroga-se representante de outrem sem conhecimento do
representado. Contudo o representado se tivesse utilizado o cuidado exigível na vigilância de seus
subordinados, poderia (e deveria) prevenir a situação. Como elemento objetivo tem-se a aparência
da representação e como elemento subjetivo a negligência do representado.
4 Pedro Pais de Vasconcelos. Teoria Geral do Direito Civil. Vol II. Coimbra: Editora Almedina,

2002, p. 222.
5 António Menezes de Cordeiro. Tratado de Direito civil. Parte Geral, Vol. V. 2012. Coimbra: Editora

Almedina, p. 104. No mesmo sentido Maria Helena Brito. A representação nos contratos internacionais.
Dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa, 1997, p. 155, que afirma “no Direito Português não há no Código civil qualquer norma relativa a
regulamentação à representação que se fundamente na ideia de aparência”.
6 Idem, p. 102.

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1010 Geovana Mendes Baía Moisés

Menezes Cordeiro7 afirma não ser possível alargar o artigo 266.º aos casos
em que faltem uma procuração, posto que, esta norma se assenta num instru-
mento de representação, efetivamente existente, cuja cessação não foi comuni-
cada ao terceiro. Inexistindo procuração, ou mesmo em situações de tolerância
ou aparência, não se aplica o artigo 266.º.
Observa-se que em matéria de tutela de terceiros em face dos negócios
celebrados por um falsus procurator, a regulamentação do Código Civil fez uma
opção no sentido de excluir quaisquer formas mais amplas de proteção da
confiança de terceiros, sendo natural que se prevaleça a autonomia privada do
representado, não lhe sendo imposta vinculação negocial contra a sua vontade8.
Porém, concordamos com o posicionamento de Paulo Mota Pinto9 de que
não havendo certas formas de proteção, o legislador pode ter querido simples-
mente deixar a porta aberta a um ulterior aperfeiçoamento da tutela do tráfico.

2. Representação aparente no Direito comparado

A ausência de disposição da Legislação Portuguesa sobre a representação


aparente aponta para a necessidade de conhecer nos ordenamentos jurídicos
comparados as respostas para a proteção de terceiros.
Na Alemanha, a jurisprudência dos tribunais superiores fundamentando-se,
sobretudo, nos § 170 a 173 e 242 BGB e no § 56 BGB, visando a tutela de
terceiros, tem admitido dois tipos de poder de representação aparente (Recht-
sscheinsvollmacht). Num primeiro grupo, encontra-se a representação tolerada
(Duldungsvollmacht) em que o representado conhecendo a atuação do represen-
tante a quem não atribuiu poderes, nada faz, de tal modo que, cria, perante a
contraparte de boa-fé, a impressão de que a atuação em seu nome tem, subja-
cente, o poder de representação correspondente.
No segundo grupo, encontra-se a representação aparente (Anscheinsvoll-
macht) em que o representado não conhece a atuação do representante, mas
se usasse de um normal dever de diligência, conheceria tal atuação e deveria

7
Embora o autor se posicione contra a extensão do artigo 266 aos demais casos, acaba por admi-
tir tutela da boa fé de terceiros cf. António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil Português,
I, Parte geral, Tomo III, Coimbra: Almedina, 2001, c.f. 189.
8 Paulo Mota Pinto. Aparência de Poderes de Representação e Tutela de Terceiros. Reflexão a propósito

do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º. 178/86, de 3 de Julho. Boletim da FDUC, 69, G.C. – Gráfica de
Coimbra, Coimbra, 1993, p. 612.
9 Idem, p. 612.

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1011

impedi-la. Apesar da distinção conceitual os tribunais reconhecem a ambos os


tipos de situações os efeitos típicos da representação10.
Em relação à Doutrina, de uma forma geral, os autores mostram-se favorá-
veis a admissibilidade dos efeitos da representação tolerada, divergindo-se ape-
nas quanto ao fundamento jurídico da eficácia.11
Nos casos de representação aparente há uma maior discussão. Alguns autores
recusam a autonomia da figura e entre os que a admitem como instituto autô-
nomo, as opiniões dividem-se não só quanto ao âmbito de matérias em que é
reconhecido, mas também quanto ao seu fundamento, critério de imputação ao
dono do negócio e ainda quanto aos efeitos que lhe são atribuídos.12
No direito suíço tem sido aceita a eficácia da aparência de representa-
ção, sobretudo a partir das disposições dos artigos 33.º, n.º3 e 34.º, n.º 3 OR.
Há uma forte influência germânica nas obras doutrinárias e nas decisões do
Bundesgericht.13
No direito Italiano, a jurisprudência tem dado maior abertura à admissibi-
lidade de eficácia representativa da aparência da representação, e para tal, invoca
os princípios da aparência jurídica, da confiança e da culpa.14
A maioria da doutrina posiciona-se contra a possibilidade de reconhecer
eficácia vinculativa à aparência de representação.15
No direito Francês, tanto a jurisprudência quanto a doutrina têm admitido
uma importante extensão do âmbito dos poderes do mandatário, com base na

10 Maria Helena Brito, op. cit., p. 146-147.


11 Idem, p. 148.
12 Maria Helena de Brito, op. cit., p. 149-150.

13 Idem, p. 151.

14 Idem, p. 152.

15 Dentro da parcela minoritária arrolamos Salvatore Patti. Profili dela tolleranza nel Diritto Privato,

Napoli, 1978 p. 153-154 que entende que a tolerância do representado gera a confiança no ter-
ceiro o que com base no princípio da boa fé, o tolerante ficará responsável pelos efeitos do negócio
jurídico celebrado. Ferrara, Cariota Luigi. Il negozio Giuridico. Napoli: A. Morano Editore. 1940,
p. 700, embora não aceite o princípio da aparência como fundamento de vinculação negocial,
admite com fundamento nos princípios da reponsabilidade e da confiança que o negócio possa ser
relevante e eficaz em relação ao representado, se do seu comportamento possa ser possível deduzir
a vontade de atribuição de poderes representativos, mesmo que da inação, e uma tolerância aos
atos praticados pelo representante. Nas palavras do autor: “il falsus procurator ha tutte le apparenze di
vero procurator? in altri termini, che dire del rappresentante apparente? A nostro avviso, la semplice apparenza
di un potere di rappresentanza non può vincolare il preteso rappresentato, salvo che non is voglia aderire al c.
c. princípio della apparenza, da noi ripudiato. Sicchè, a ragione si esclude che si possa argomentare per la tutle
dell´altro contraente in buona fede dal solo comportamento del mandatario. Necessario è che il dominus abbia
tenuto un comportamento tale da lasciar trarre líllazione che egli ha voluto conferire ad altri un mandato; ocorre,
ma basta un fatto concludente che puó esse considerato como procura (tacita), e basta persino l´inazione e pre-
cisamente il tollerare e tacere da parte di chi sa che altri va compiendo affari in nome di lui.”

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1012 Geovana Mendes Baía Moisés

teoria do mandado aparente. Contudo, é a Jurisprudência quem comandou


a sua evolução. São invocados três fundamentos possíveis para vinculação do
mandante: a culpa (faute) do mandante; a confiança legítima da pessoa que con-
trata com o mandatário; a teoria geral da aparência com base em erro comum.16
A demonstração de como os sistemas jurídicos tratam a questão da repre-
sentação aparente, constitui reforço para que haja tutela de terceiros que con-
tratam com falsus procurator, não só nos casos previstos no ordenamento jurídico
português de modificações ou extinção da procuração, mas para além desses.17

3. Respostas do ordenamento jurídico português para tutela de tercei-


ros que contrata com um representante aparente

Embora não haja um princípio geral de proteção da aparência no orde-


namento jurídico português é necessário buscar respostas, principalmente, no
Direito Comercial e Civil, para a tutela de terceiros de boa fé e, a partir daí,
estabelecer parâmetros para vinculação do representado nos negócios celebra-
dos com a procuração aparente.

3.1. Direito comercial

Há no regime do mandato comercial a tutela das potenciais contrapartes


do falsus procurator no negócio representativo18, como indicam os artigos 249.º e
259.º do Código Comercial e no artigo 23.º do Decreto-Lei 178/86.
O mandato Comercial ocorre quando alguém encarrega outrem de praticar
um ou vários atos de comércio. O artigo 249.º preceitua que o comerciante fica
vinculado pelos atos do gerente comercial e, este, não poderá opor aos terceiros
limitação alguma de poderes, salvo se provar que aqueles tinham conhecimento
dela ao tempo da conclusão do negócio.
Pelo preceito, quando se atribuem aos gerentes poderes de representação
para o exercício de um determinado comércio, esses poderes presumem-se
amplos e abrangentes de qualquer ato objetivamente conexionado com o exer-
cício desse comércio, ficando o proponente vinculado por esses atos, sem poder

16
Maria Helena Brito, op. cit., p. 274.
17
Paulo Mota Pinto, op. cit., p. 626.
18 Paulo Mota pinto, op. cit., p. 609.

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1013

alegar qualquer limitação, salvo o conhecimento da outra parte. Tal preceito


prossegue a segurança no tráfico jurídico comercial.19
Já o artigo 259.º diz respeito às situações em que o comerciante recorre
a funcionários que foram encarregados de vender, além de autorizados para
cobrar o produto dessas vendas, chamados caixeiros.20
O preceito inovador veio estatuído no artigo 23.º do Decreto-Lei 178/86
(Contrato de Agência) pois possibilitou, em certas circunstâncias tornar o negó-
cio eficaz, mesmo quando celebrado por um agente sem poderes de repre-
sentação em nome do principal. Também possibilitou a eficácia liberatória do
devedor em relação ao principal, em certos casos.
Menezes Cordeiro21 ao analisar o artigo 23.º do Decreto Lei 178/86, retira
os seguintes requisitos para configuração da representação aparente: uma atua-
ção em nome alheio, um terceiro de boa-fé, uma confiança justificada para a
qual tenha contribuído o principal.
Embora o Decreto Lei 178/86 tenha sido instituído com o propósito de
aplicação somente no âmbito dos contratos de agência, observa-se que tanto a

19 José de Oliveira Ascensão e Manuel A. Carneiro da Frada. Contrato celebrado por agente de

pessoa colectiva. Representação, responsabilidade e enriquecimento sem causa. RDE 16 a 19,


1990 a 1993, p. 52.
20 Paulo Mota Pinto, op. cit., p. 610, noticia que o artigo 259.º do Código Comercial é quase uma

reprodução do artigo 294.º do Código de Comércio espanhol de 1885, e suscita alguns problemas
de interpretação, sobretudo quanto à sua estatuição, em suas palavras “estabelece-se uma ficção, uma
presunção iuris et de iure, ou tão só iuris tantum? De qualquer modo, e sobretudo se se entender que estamos
perante uma presunção ilidível, este preceito também não parece alargar significativamente a proteção dos tercei-
ros que pagam a um representante, sendo o seu conteúdo sem dúvida menos amplo do que o de uma disposição
como o §56 do Handelsgesetzbuch alemão, do qual resulta, segundo Canaris, uma “procuração aparente por
força de atribuição de uma posição.””
21
António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito civil. Parte Geral, Vol. V. Coimbra: Editora
Almedina, p. 105. Para o autor há uma porta aberta para a procuração aparente, porém somente
para o Direito Comercial. “O particular que contactasse com uma organização comercial em termos que lhe
permitissem esperar, com razoabilidade, a presença de poderes de representação, numa situação também imputável
ao principal, seria protegido, E a proteção natural residiria no surgimento, ex bona fide e com apoio no artigo
23°/1 em causa, de uma procuração aparente. Ficariam ainda abrangidas situações como as dos trabalhado-
res putativos que, sem no contrato de trabalho, representariam as respectivas “entidades patronais”. Assevera
não ser possível em termos substantivos, autonomizar soluções comerciais, no Direito Português
e que a pessoa que contrata com um alegado representante tem no mínimo que ter cautelas de
observar “Compreende-se que a tutela da aparência exija uma prévia procuração, manifestando-se, apenas,
quando sobrevenham modificações ou a extinção (artigo 266). “(p. 106). Diz ser diferente se a situação for
institucional. Ninguém vai num supermercado, invocar perante o empregado do caixa o artigo
266 do Código Civil. Nesses casos compete ao empregador/empresário manter a disciplina na
empresa, assegurando-se da legitimidade dos seus colaboradores, p. 107.

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doutrina22 quanto a jurisprudência23 tem reconhecido a necessidade de alarga-


mento das disposições do Decreto a outros tipos de relações comerciais.
As razões utilizadas pela doutrina para essa extensão são das mais diversas.
Para Oliveira Ascensão e Manuel Frada24, o problema normativo subjacente
do Decreto-Lei 178/86 não se confina ao domínio restrito do contrato de
agência, colocando-se também para tutela de terceiros perante organizações
empresariais, já que a observância efetiva da divisão interna de funções e pode-
res às pessoas nas empresas, não é cognoscível para terceiros. Por essa razão a
solução dada ao contrato de agência deve ser alargada e coerentemente desen-
volvida, de forma a proporcionar a necessária segurança do tráfico jurídico nas
relações comerciais entre as empresas e terceiros.
Pedro de Albuquerque25 sustenta que a existência de uma previsão legal
a consagrar uma situação particular da proteção aparente permite, através do
princípio da igualdade, conferir um impacto significativo ao alargamento da
proteção da aparência. E conclui ser possível alargar a aplicação do artigo 23 do
Dec. 178/86 a todos os contratos de cooperação ou mesmo de gestão26.

22 António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito civil. Parte Geral, Vol. V. op. cit., p.107, fala em
procuração institucional a qual ocorre sempre que uma pessoa de boa fé contratar com uma organi-
zação em cujo nome atua “um agente” em termos tais que, de acordo com os dados sócio-culturais
vigentes e visto a sua inserção orgânica, seja tranquila a existência de poderes de representação.
Nesses casos, conclui tratar-se de alargamento da aplicação do artigo 23/1.º do Decreto-Lei 178/86.
23 Tribunal de Relação de Lisboa recurso n.º 3635/2007-6 de 12/07/2007, que nas palavras da

Relatora Fátima Galante afirmou “A representação aparente não é exclusiva dos contratos de agência e
pode ser aplicável a outros contratos de cooperação ou colaboração. A representação aparente pressupõe uma
relação entre representante aparente e o representado aparente que mereça tutelar as expectativas de terceiros.”
No mesmo sentido, Tribunal de Relação de Lisboa 1636/2003-7, Relator: Pimentel Marcos,
29/04/2003; Tribunal da Relação de Lisboa 07/10/1993 (Colectânea de Jurisprudência, Ano
XVIII, 1993,Tomo IV, 133 a 137) Tribunal da Relação do Porto, de 06/10/1992 (Colectânea de
Jurisprudência, Ano XVII, 1992,Tomo IV, 245 a 251) reconhecendo ser possível a aplicação das
disposições do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 178/86 a todos os contratos de cooperação e colabo-
ração chegando a afirmar ser “uma norma paradigmática dos contratos de cooperação, aplicando-se, assim,
analogicamente, a todos os contratos que revistam tal natureza”.
24
José de Oliveira Ascensão e Manuel A. Carneiro da Frada, op. cit., p. 58.
25 Pedro de Albuquerque, op. cit., p. 1055-1057.

26 O autor ao analisar o artigo 246.º do Código Civil, diz que não constitui óbice ao alargamento,

dentro de certos limites, do regime da representação aparente, nos moldes consagrados no artigo
23.º do Decreto-Lei 178/86, para além do âmbito do Direito Comercial. Utiliza dois argumen-
tos, o primeiro é que de o artigo 23.º do Decreto-Lei 177/86 representa um afastar, no âmbito
do direito comercial da aplicação da regra contida no artigo 246 CC e a concretização da ideia
do risco de organização empresarial. Em suas palavras “Os fatores capazes de levarem o terceiro a ser
naturalmente inclinados a acreditarem na existência de um poder de representação não variam consoante se
esteja no âmbito do direito civil ou num contexto mercantil.” p. 1060-1061.

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Helena Brito27 ao analisar sobre a possibilidade de extensão das disposições


do Decreto-Lei 178/86, afirma que o problema da representação aparente não
é específico ao contrato de agência, e diz que a tutela da aparência jurídica
constitui um problema geral de direito e o instituto da responsabilidade pela
confiança. Defende a aplicação das disposições do Decreto aos contratos de
cooperação ou no âmbito dos contratos de cooperação auxiliar. Chega a afir-
mar sua aplicação ao contrato de trabalho, e, em geral, sempre que se confie a
execução de determinadas tarefas a outrem28.
Nota-se que no ordenamento jurídico português há uma posição majori-
tária, tanto da doutrina quanto da jurisprudência, para o alargamento da aplica-
ção das disposições do contrato de agência a todas as outras relações de direito
comercial.
A justificativa de aplicabilidade da tutela para terceiros nos negócios comer-
ciais celebrados por representante aparente, decorre da dificuldade de um ter-
ceiro conhecer, dentro da organização empresarial, quem tem poderes para prá-
tica de atos jurídicos e quais atos poderão ser praticados pelos representantes.
Nas relações comerciais também há necessidade de uma maior celeridade e
segurança no tráfico jurídico, razão pela qual deve se compensar esse sistema
com uma resposta mais eficaz à tutela de terceiros29.

3.2. Direito civil

No âmbito do Direito Civil, as normas de proteção de terceiro, que contrata


com o representante sem poderes, estão disciplinadas nos artigos 260.º e 266.º
do CC.

27
Helena de Brito, op. cit., p. 166.
28
Apesar de não confirmar a aplicação do Decreto-Lei as relações de Direito Civil, a autora afirma
que não exclui sua aplicação em domínios diferentes dos considerados. Mas ressalta “A relevância da
aparência de representação em situações não abrangidas na previsão legal depende, em cada caso, da verificação
dos requisitos que, em geral se exijam para a responsabilidade pela confiança, com fundamento na proibição
de “venire contra factum proprium”; à situação serão reconhecidos os efeitos mais adequados às circunstâncias
concretas (eficácia do negócio representativo em relação ao “representado” ou pagamento de indemnização à
contraparte pelo pretenso “representado” tendo como objeto ressarcir o interesse contratual negativo ou eventu-
almente, em certos os casos, o interesse contratual positivo” – nota de rodapé 154 – p. 166).
29 José de Oliveira Ascensão e Manuel A. Carneiro da Frada. Contrato celebrado por agente de pessoa

colectiva. Representação, responsabilidade e enriquecimento sem causa. RDE 16 a 19, 1990 a 1993. p. 45.
Para o autores a proteção de terceiros perante a procuração aparente é em razão da necessidade
prática de lançar sobre o detentor da empresa comercial “o risco da organização interna da empresa e
da observância efectiva da divisão interna de funções por parte das pessoas e departamentos de acordo com as
suas instruções”. (p. 57).

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O legislador preocupou-se em disciplinar a justificação dos poderes do


representante no artigo 260.º do Código Civil, cabendo ao terceiro exigir que
o representante faça prova de seus poderes, sob pena de a declaração não pro-
duzir efeitos.
Já o artigo 266.º do Código Civil que contém o título de “proteção de ter-
ceiros”, dispõe sobre a tutela contra as modificações e a extinção da procuração,
sendo estas inoponíveis a terceiros de boa-fé, devendo as modificações e revoga-
ções serem levadas ao conhecimento de terceiros por meios idôneos.
Ressalte-se que a boa-fé é presumida somente para a revogação e modifi-
cações, não para causas extintivas da procuração, cabendo, neste último caso, o
ônus de prova ao terceiro30.
Mas em relação aos casos de nunca ter havido uma representação, o artigo
268.º, n.º 1, constituiria uma vedação da tutela de terceiros?
Paulo Mota Pinto responde, negativamente, e fundamenta a necessidade de
tutelar a boa-fé de terceiros31.
Diante da falta de previsão no tópico relativo às representações para os casos
em que estas nunca ocorreram, a resposta jurídica para a tutela de terceiros de
boa-fé32 que celebrem negócios com o representante aparente, deve ser buscada
no artigo 334.º do Código Civil.

4. O abuso do direito e a figura do venire contra factum proprium como


forma de vincular o representado nas relações negociais no âmbito
do Direito civil

4.1. Abuso do direito: breves considerações

O abuso do direito foi consagrado no ordenamento jurídico português por


influência alemã33 e está previsto no artigo 334.º do Código Civil, que estatui
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites
impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito34.

30
Paulo Mota Pinto, op. cit., p. 606.
31
Paulo Mota Pinto, op. cit., p. 613-616.
32 António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte geral, Tomo III, Coimbra:

Almedina, 2001, p. 189.


33 António Menezes Cordeiro. Da boa fé... op. cit., p. 26.

34 António Menezes Cordeiro. Abuso do abuso do direito: estado das questões e perspectivas. ROA, Ano

65, vol. II, set. 2005. Ao analisar o artigo 334, assevera que o preceito começa por estatuir “é
ilegítimo o exercício” e que a ilegitimidade tem no Direito civil, um sentido técnico; “exprime,
no sujeito exercente, a falta de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de certo direito.” Diz

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Menezes Cordeiro35 assevera que “a boa-fé e os bons costumes impõem, ou


podem impor, limites ao exercício dos direitos e que estes têm, ou podem ter, um fim social
e econômico, o qual, por seu turno limita também, ou pode limitar o seu exercício.”
Para análise da ocorrência do abuso de Direito, deve-se proceder uma pon-
deração material da situação existente na sua globalidade e atentar-se aos fatos
a ela inerentes36.
A figura do abuso do direito comporta várias modalidades, sendo impres-
cindível o exercício do direito para além dos limites impostos pela boa-fé, sendo
um instituto puramente objetivo, que não depende da culpa do agente nem de
qualquer específico elemento subjetivo37.

4.1.1. Venire contra factum proprium

Para configuração do venire contra factum proprium são necessários dois com-
portamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro
(factum proprium) é contrariado pelo segundo38.

que mesmo nos casos em que o sujeito estiver, “legitimado”, não poderia exceder manifesta-
mente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do
direito em causa. Aventa que o legislador pretendia dizer é “ ilícito” ou “não é permitido”. Ao
analisar o preceito que “o titular exceda manifestamente certos limites”, faz uma crítica a expres-
são “manifestamente” dizendo que perante institutos modernos “a adjetivação enérgica não faz
sentido”, tendo a Ciência do Direito que localizar em termos objetivos o seu significado. Quanto
aos “limites impostos pela boa fé” o autor afirma tratar da boa-fé objetiva “Aparentemente, lidamos
com a mesma realidade presente noutros preceitos, com relevo para os artigos 227.º/1, 239.º, 437.º/1 e 762.º/2
(10). Teríamos, então, um apelo aos dados básicos do sistema, concretizados através de princípios mediantes:
a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.” Já “limites impostos pelos bons costu-
mes” direcionam-se para as regras da moral social “os bons costumes prefigurados no artigo 334.º equi-
valerão aos mesmos “bons costumes” presentes no artigo 280.º/1”. Por fim, na análise do “fim social ou
económico do direito” o mestre afirma que “apela a uma interpretação melhorada das normas, que dê
valor à dimensão teleológica. Não exige a ideia de “abuso”. E conclui “que o artigo 334.º não comporta uma
exegese comum. Os seus diversos termos ora devem ser corrigidos pela interpretação, ora soçobram no vazio”.
35 Idem, p. 661.

36 António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005,

Livraria Almedina, Coimbra, 2005, p. 375.


37 Idem, 373.

38 António Menezes Cordeiro. Boa fé..., op. cit., p. 745. Para António Junqueira de Azevedo.

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O venire só é proibido em circunstâncias especiais, prevalecendo o enten-


dimento na doutrina e na jurisprudência que haverá sua ocorrência, quando
confrontar com os princípios da confiança e da boa-fé39.
Menezes Cordeiro40 aponta quatro proposições para tutela da confiança41 e
da boa-fé: 1) Uma situação de confiança conforme com o sistema é traduzida
na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cui-
dado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; 2) Uma justifica-
ção para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de,
em abstrato, provocar uma crença plausível; 3) Um investimento de confiança
consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades
jurídicas sobre a crença consubstanciada; 4) A imputação da situação de con-
fiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal
pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa
ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.”
O autor explica que não há entre estas proposições uma hierarquia, e o
modelo funciona mesmo na falta de alguma delas, “desde que a intensidade
assumida pelas restantes seja tão impressiva que permita, valorativamente, compensar a
falha”42.
O venire contra factum proprium figura-se no exercício de posições jurídicas
contraditórias, ou seja, a conduta posterior contraria a conduta antes assumida
pelo agente. Sua proibição traduz a vocação ética, psicológica e social da regra

Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. Estudos e pareceres de direito privado. São Paulo:
Editora Saraiva, 2004, p. 167, o venire contra factum proprium “traduz o exercício de uma posição jurídica
em contradição com o comportamento anterior; há quebra da regra da boa-fé porque se volta contra as expecta-
tivas criadas — em todos, mas especialmente na parte contrária”.
39 Ao falar sobre o princípio da confiança António Menezes Cordeiro. Boa fé no Direito Civil, op.

cit., p. 1241 afirma que “a aproximação entre confiança e boa fé constitui um passo da Ciência Jurídica que
não mais se pode perder. Mas ele só se torna produtivo quando, à confiança, se empreste um alcance material
que ela, por seu turno, comunique à boa fé.”
40
António Menezes Cordeiro – Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas. ROA, Ano 65,
vol. II, set. 2005.
41
Anderson Schreiber. A proibição de comportamento contraditório. Rio de Janeiro. Renovar, 2005, p.
134 alerta para a necessidade de analisar o caso concreto para constatar a ocorrência da legítima
confiança (2005, p. 134): “A confiança que se perquire aí não é um estado psicológico, subjetivo, daquele
sobre quem repercute o comportamento inicial. Trata-se, antes, de uma adesão ao sentido objetivamente extra-
ído do factum proprium. Somente na análise de cada caso concreto será possível verificar a ocorrência ou não
desta adesão ao comportamento inicial, mas servem de indícios gerais não-cumulativos: (i) a efetivação de gastos
e despesas motivadas pelo factum proprium, (ii) a divulgação pública das expectativas motivadas, (iii) a ado-
ção de medidas ou a abstenção de atos com base no comportamento inicial, (iv) o grau elevado de repercussão
exterior, (v) a ausência de qualquer sugestão de uma futura mudança de comportamento, e assim por diante.”
42 António Menezes Cordeiro – Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas. ROA, Ano 65,

vol. II, set. 2005.

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1019

pacta sunt servanda e vincula uma pessoa à suas atitudes, em particular quando
tenham um beneficiário43.

4.1.2. Venire contra factum proprium nas relações negociais com base na represen-
tação tolerada

Diferentemente das relações comerciais, em que há a necessidade de uma


maior tutela de terceiros em razão das dificuldades em conhecer as divisões
internas e representações comerciais, nas relações negociais, no âmbito do
Direito Civil, é necessário separar as duas figuras de representação aparente tal
como ocorre no sistema Alemão.
Isto porque, no âmbito do Direito Civil, a tutela de terceiro que celebrasse
negócio sob o regime da representação aparente (Anscheinsvollmacht), colocaria
em risco a autonomia privada, em razão de o representado desconhecer a atua-
ção do representante.
O mesmo já não se pode dizer em relação a negócios celebrados sob o crivo
da representação tolerada (Duldungsvollmacht) em que o representado conhe-
cendo a atuação do representante, a quem não atribuiu poderes, nada faz, de tal
modo, que cria perante a contraparte de boa-fé, a impressão de que a atuação
em seu nome tem, subjacente, o poder de representação correspondente.
Paulo Mota Pinto44, Rui Ataíde45, Carneiro da Frada46 e Pedro de Albuquer-
47
que admitem o abuso de direito como tutela de terceiros contra a invocação

43 António Menezes de Direito. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2001,
Coimbra: Almedina, p. 283.
44 Paulo Mota Pinto, op. cit., p. 636.

45 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, op. cit., p. 270-285.

46
Manuel António de Castro Portugal Carneiro da Frada. Teoria da Confiança e Responsabili-
dade civil. Almedina: Coleção Teses, 2004, p. 56 – nota 40 – “note-se por outro lado que a recondução
da procuração aparente ao abuso do direito não permite com facilidade que, internamente, isto é, do ponto de
vista do próprio princípio justificador, se explique o seu não reconhecimento nas relações juscivis (onde se depara
com os obstáculos acima referidos) e a sua admissão tão-só no direito comercial, como é proposto na doutrina
germânica. É certo que os princípios jurídicos não têm por que se manifestar com igual intensidade em todos os
sectores do ordenamento; eles não valem sem excepções ou restrições, e só no jogo de articulação com as demais
normas e princípios desvelam plenamente o seu alcance. Há todavia uma distinção entre admitir determinada
exceção ou desvio a um princípio e aceitar que as limitações de que ele aparentemente padece num concreto
âmbito relevam afinal, pela sua generalidade e justificação material intrínseca, de um princípio constitutivo
distinto (que pode, aliás, por sua vez, sofrer restrições). Em termos práticos, não é indiferente explicar que a
proteção de terceiros que contratam com um falsus procurator pela via da imputação do negócio ao representado
não se aplica, apesar do princípio, (via de regra) em direito civil, ou sustentar que essa proteção se dá em direito
comercial por força de princípios gerais diversos.”
47 Pedro de Albuquerque, op. cit., p. 1075.

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Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 1019 10/01/17 11:25


1020 Geovana Mendes Baía Moisés

do representado que não queira se vincular ao negócio que ele conhecia a atua-
ção do representante, mas não reagiu.
O comportamento contraditório do representado, que conhecia a atuação
do representante e não reagiu, e o pedido da não vinculação perante o negócio,
constituiria o venire contra factum proprium48.
No âmbito da representação tolerada, Rui Ataíde49 ao discorrer sobre a
confiança diz que a omissão, por si só, pode não ser suficiente, carecendo de
outros “ingredientes” que reforcem a respectiva credibilidade.
O comportamento do representado deve ser analisado, de forma global, a
partir das práticas negociais anteriores ou de quaisquer circunstâncias que cer-
tifiquem a inequivocidade da aparência50.
Existindo alguma situação possível de modelar o fato, como confiável, em
seu torno estarão os demais elementos: a justificada situação de confiança, dada
pela boa-fé subjetiva de um terceiro, que, em regra, perante as características do
fato confiável, estará dispensado de particulares deveres de indagação que ao
caso couber51.
A confiança transmitida para o terceiro deve ser em decorrência do com-
portamento do suposto representado, pois o que se espera, é que se fosse uma
representação não autorizada, ele manifestaria a sua oposição. A sua inércia,
mesmo tendo conhecimento da atuação do representante, gera uma confiança
legítima na atribuição da procuração52.
A recusa do representado em ratificar o negócio constituiria um venire contra
factum proprium como assevera Rui Ataíde53.

48 Nesse sentido Paulo Mota Pinto, op. cit., p.636 e António Menezes Cordeiro. António Menezes
Cordeiro. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte geral, Tomo III, Coimbra: Almedina, 2001,
c.f.189.
49 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, op. cit., p. 277, ao falar de “ingredientes” cita

como exemplos: “anteriores atuações dotadas de habilitação ou , mas tarde, ratificadas; antecedentes liga-
ções comerciais inseridas ou não numa relação duradoura de negócios, desenvolvida diretamente ou por meio de
representante/s; a utilidade da iniciativa representativa, determinada objectivamente, segundo a vontade pre-
sumível do dominus, em conformidade com o sentido de condutas anteriores; uma simples atuação prolongada
em articulação com um dos outros fatores.”
50 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, op. cit., p. 276.

51 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, op. cit., p. 277 e 278.

52 Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, op. cit., p. 280.

53 O autor com extrema propriedade explica: “A recusa de ratifi cação do negócio representativo por quem,

v.g., no passado, se serviu desse ou de outros representantes para concluir transações com aquele ou outros ter-
ceiros, ou por quem habituou o meio da especialidade de negociar através daquele ou de diferentes procuradores,
ou ainda, por quem, já antes, pessoalmente ou por intermédio de representante, mantivera relações negociais de
igual ou semelhante teor de negócios representa um venire contra factum proprium, porque contradiz o significado
objetivo da tolerância observada durante a actuação representativa, violando manifestamente os limites impostos

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1021

A conduta do representado em conhecer a falta de poderes e não reagir


gera, no terceiro, a confiança de existência de representação e a expectativa54
de que seu comportamento permanecerá inalterado. Em virtude do compor-
tamento do representado, existe um investimento da confiança por parte do
terceiro, e a recusa de ratificação importa num comportamento contraditório,
quebrando a boa-fé objetiva.
Portanto, o abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium
deve ser a via para impedir que o representado invoque a falta de poderes
de representação, numa situação de confiança, traduzida na boa-fé subjetiva e
ética55, não sendo desarrazoado a vinculação do suposto dominus quando ele,
conscientemente, deu origem a uma situação de aparência56.

5. Análise de jurisprudência

A falta de disciplina do mandato aparente no Código Civil não constituiu


óbice para que a Jurisprudência pátria pudesse ter um avanço nesta matéria57 e
dar soluções mais socialmente adequadas a esses casos58.

pela boa fé ao exercício dos direitos, ao frustrar a legítima confiança da contraparte, depositada inicialmente na
outorga da procuração e, mais tarde, na efectividade da ratificação.” (op. cit., p. 323).
54 Poderia até se dizer que o comportamento do representado gerou uma “expectativa jurídica”.

Sobre o tema Maria Raquel Aleixo Antunes Rei. Da expectativa jurídica. ROA, Ano 54, vol. I,
abril/1994.
55 Pedro de Albuquerque, op. cit., p. 1077. Assevera “que a boa fé deve ser própria da pessoa que sem

ofender deveres de cuidado e de indagação pertinentes no caso, ignore estar a lesar posições alheias; uma justi-
ficação para essa confiança traduzida na presença de elementos objetivos suscetíveis de, em abstrato, originarem
uma crença plausível; um investimento de confiança traduzido num assentar efetivo, por parte do sujeito pro-
tegido, de atividades jurídicas sobre a crença, em termos que desaconselhem ou tornem injusto o seu preterir; e
uma imputação da confiança a pessoa atingida”.
56
Pedro de Albuquerque, op. cit., p. 1077.
57
Embora haja poucos julgados nessa matéria, observa-se que em 1987 e 1991, os tribunais se mani-
festaram contrários a figura do mandado aparente, conforme se verifica nos acórdãos n.º 2273/91
do TRL (Colectânea de Jurisprudência, Ano XVI, 199, Tomo I, 169 a 171) e n.º 25786/91 do TRP
(Colectânea de Jurisprudência, Ano XVI, 1991, Tomo III, 231 a 234). No julgado do Tribunal de
Relação de Coimbra (acórdão n.º 16006/87 de 27.01.1987) foi declarado “que o mandado aparente
não está consagrado na nossa lei” (Colectânea de Jurisprudência, Ano XII, 1987, Tomo I, 40 a 45).
58 Nesse sentido já havia manifestado Humbertus Schwarz. Sobre a evolução do mandato aparente

nos direitos romanísticos. Seu significado para o Direito Português. Revista de Direito e Estudos Sociais.
Ano XIX.1972. p. 99-122. “A escassa disciplina que este instituto teve no Código Civil, não pode ser defi-
nitiva; pelo contrário, deixa a jurisprudência um vasto campo de soluções possíveis, socialmente adequadas.”

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1022 Geovana Mendes Baía Moisés

Percebe-se que a modificação de posicionamento dos Tribunais, deve-se,


em grande parte, à doutrina portuguesa que comandou até aqui a evolução do
mandato aparente.59
Para enriquecer esse trabalho, selecionamos dois julgados dos últimos cinco
anos que reconheceram o mandato tolerado e vincularam o representado ao
negócio celebrado.
Merece destaque, o acórdão mais recente, de 20/05/2015 do Supremo Tri-
bunal de Justiça, que por certo, constituirá um marco para a mudança de posi-
cionamento em relação aos negócios celebrados com a procuração tolerada.

5.1. Processo n.º 752-F/1992.E1,S1 da 7ª Secção do Supremo Tribunal de Jus-


tiça, relator Lopes do Rego. Acórdão de 20/05/15 60

5.1.1. Relatório sucinto

Trata-se de ação interposta pelo Administrador da massa falida em face dos


compradores, empresa de leilões e outros réus, requerendo a declaração de ine-

59 Destacamos Humbertus Schwarz. Sobre a evolução do mandato aparente nos direitos romanísticos.
Seu significado para o Direito Português. Revista de Direito e Estudos Sociais. Ano XIX.1972. Paulo
Mota Pinto. Aparência de Poderes de Representação e Tutela de Terceiros. Reflexão a propósito do artigo
23.º do Decreto-Lei n.º. 178/86, de 3 de Julho. Boletim da FDUC, 69, G.C. – Gráfica de Coimbra,
Coimbra, 1993; Pedro de Albuquerque. A representação voluntária em Direito Civil. Ensaio de recons-
trução dogmática. Colecção Teses, Almedina, Coimbra, 2004. Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas
Ataíde. A responsabilidade do “representado” na representação tolerada. Um problema de representação sem
poderes. Lisboa, AAFDL, 2008. António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil Português, I,
Parte geral, Tomo III, Coimbra: Almedina, 2001, c.f.189, que apontou o abuso de direito como
via para tutela de terceiros “o terceiro que seja colocado numa situação de acreditar, justificada-
mente, na existência duma procuração, poderá ter proteção: sempre que, do conjunto da situação,
resulte que a invocação, pelo “representado”, da falta de procuração constitua abuso de direito,
seja na modalidade do venire contra factum proprium, seja na da surrectio”. Maria Helena Brito.
A representação nos contratos internacionais. Dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas na
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1997, p. 139, nota 154 “A relevância da apa-
rência de representação em situações não abrangidas na previsão legal depende, em cada caso,
da verificação dos requisitos que em geral se exijam para a responsabilidade da confiança, com
fundamento na proibição de “venire contra factum proprium”; à situação serão reconhecidos os
efeitos mais adequados às circunstâncias concretas (eficácia do negócio representativo em relação
ao “representado” ou pagamento de indemnização à contraparte do pretenso “representado”,
tendo como objeto ressarcir o interesse contratual negativo ou eventualmente, em certos casos,
o interesse contratual positivo”.
60 Disponível em: <http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/48

2b0a2eeafc2c3a80257e4b0053c076?OpenDocument>. Acesso em: 01/06/2015.

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1023

ficácia da venda e a restituição do imóvel, fundamentando seu pedido no artigo


268.º do Código Civil, dizendo que a empresa de leilões não tinha poderes de
outorga de escritura de compra e venda.
Os compradores contestaram alegando que o autor tinha conhecimento
de que a empresa de leilões realizava escrituras de compra e venda dos imó-
veis apreendidos para a massa, e que sua atitude configurava venire contra factum
proprium.
Em primeiro grau, a ação foi julgada totalmente improcedente.
Inconformado, o autor interpôs recurso à Relação, que julgou procedente
a ação, revogando a sentença recorrida.
Em sede de recurso de revista, o Supremo Tribunal reconheceu que havia
ilegalidade na outorga da escritura pela entidade coadjuvante do administrador,
pois nos termos do artigo 1248.º do CPC61, ele carecia de poderes representa-
tivos da massa falida.
Porém, imputou ao próprio autor (administrador da massa falida) a ilegali-
dade no ato da venda, tendo sua negligência gerado uma situação de represen-
tação aparente pelo auxiliar que se arvorou encarregado da venda.
Fundamentou não ser proporcional e adequado fazer repercutir todas as
consequências da ilegalidade procedimental cometida, com culpa do adminis-
trador da massa falida, na esfera jurídica dos terceiros adquirentes de boa-fé.
Admitiu também ser possível aplicar no âmbito do Direito Civil, tal qual
ocorre no Direito Comercial, a tutela de terceiros de boa-fé nos casos de repre-
sentação aparente62.
Concluiu que o documento emitido pelo administrador solicitando a rela-
ção de escrituras outorgadas e a justificativa da não outorga das restantes, indi-
cava seu conhecimento, tolerância e consentimento da atuação do auxiliar nas
outorgas de escrituras de venda.

61
Atualmente as disposições sobre a venda de bens da massa falida estão no artigo 141 e seguintes
do CIRE.
62
Nas palavras do Relator Lopes do Rego “A circunstância de a relevância e efeitos da figura da
representação aparente serem menos amplas e intensas no domínio do direito civil, relativamente
ao que ocorre em direito comercial, não significa, porém, que não possam verificar-se situações
excepcionais em que a tutela da fundada confiança do terceiro de boa fé na existência de poderes
representativos de quem outorgou no negócio imponha a vinculação do próprio representado
aos efeitos do acto: tal ocorrerá, nomeadamente quando a desprotecção do terceiro traduzisse
uma insuportável lesão da confiança, incompatível com os ditames da boa fé e com a proscrição
do abuso de direito – decorrente da simultânea existência de uma muito fundada aparência de
poderes representativos e de uma reprovável negligência do representado na criação dessa mesma
aparência fundada”. Disponível em: <http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b
5f003fa814/482b0a2eeafc2c3a80257e4b0053c076?OpenDocument>. Acesso em: 01/06/2015.

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1024 Geovana Mendes Baía Moisés

O Supremo sustentou ainda que, em conformidade com os princípios


da boa-fé, o administrador deveria ficar vinculado aos atos praticados por seu
representante, uma vez que sua atuação negligente justifica o investimento da
confiança do terceiro e que o seu comportamento implicava num venire contra
factum proprium63.

63
Embora extenso, mas de extrema importância, destaco trechos da análise dos requisitos para
configuração do venire contra factum proprium: “foi ele – o administrador da massa falida –  que esco-
lheu e requereu a nomeação nos autos de falência da entidade que outorgou no acto de venda, cumprindo-lhe
naturalmente aferir cuidadosamente da respectiva idoneidade para o exercício das funções que lhe estavam come-
tidas e fiscalizar diligentemente a respectiva actuação (...) saliente-se que se infere claramente da correspondência
trocada entre o administrador e a leiloeira CC que aquele admitia perfeitamente que as escrituras de venda por
negociação particular pudessem ser realizadas por esta sociedade, sem qualquer intervenção pessoal do adminis-
trador: veja-se, nomeadamente, o teor da carta de fls. 178, em que a administrador interpela aquela sociedade
por quotas, solicitando-lhe que informe quais as escrituras entretanto realizadas e intimando-a a explicitar os
motivos da falta de realização das restantes escrituras. Resulta, pois, claramente desse documento que o admi-
nistrador conhecia e estava perfeitamente consciente de que – apesar da falta de poderes do auxiliar – este vinha
outorgando de forma reiterada nos actos de celebração das próprias escrituras de venda, em violação da aludida
norma processual e em indevida (mas por ele tolerada e consentida) substituição do próprio administrador. (...)
finalmente – e em termos de muito substancial relevância para a ponderação dos efeitos a atribuir à situação
de representação aparente culposamente criada – verifica-se que o administrador da falência não teve a menor
atenção ao teor da certidão judicial cuja passagem ele próprio terá requerido (...) expressamente atestava que o
dito auxiliar estava habilitado ao exercício das funções de encarregado da venda, atestando que a dita certidão
se destinava a outorgar a escritura de venda dos prédios a seguir indicados, pela encarregada de venda nomeada
nos autos CC- Agência de Leilões Ltda. Como é evidente, esta manifesta falta de cuidado do representante
legal (...)era susceptível de iludir justificadamente terceiros sobre o âmbito efectivo dos poderes de representação
que nos autos de falência estavam cometidos à CC, criando uma situação de representação aparente da massa
falida por essa sociedade relativamente aos actos de alienação em causa, cujas consequências não podem ser feitas
repercutir exclusivamente sobre os terceiros de boa fé que, nomeadamente, confiaram justificadamente no teor da
dita certidão, solicitada e obtida pelo próprio administrador como instrumento indispensável á feitura dos negócios
de venda dos bens integrados na massa falida. Ou seja: o administrador da falência contribuiu decisivamente
– com a falta de diligência no controlo da fidedignidade da certidão que serviu de suporte à actuação da CC e
do próprio âmbito da actividade que vinha sendo efectivamente desenvolvida por esta entidade , nomeada nos
próprios autos de falência – para a criação de uma justificada aparência de poderes representativos do auxiliar,
decorrentes, desde logo, de se mostrar certificada a qualidade de encarregado da venda – que o habilitava, aos
olhos do outro contraente – de boa fé – à realização da escritura de venda por negociação particular. Tal actua-
ção negligente do administrador da falência – representante institucional e legal da própria massa falida, como
património autónomo – não pode deixar de se repercutir na esfera jurídica da entidade por si legalmente repre-
sentada, vinculada também ela, em conformidade com os princípios da boa fé, a ter de suportar as consequên-
cias do investimento na confiança justificadamente feito pelo outro contraente, em função dos actos e omissões
plenamente imputáveis ao dito representante legal. Na verdade, o terce iro/adquirente de boa fé confiou justifi-
cadamente na legitimação substancial de quem lhe foi apresentado como detentor da qualidade de encarregado
da venda por negociação particular do imóvel, sendo claramente desproporcionado que quem criou a aparência
de poderes representativos para outorgar na venda por negociação particular realizada possa vir ulteriormente
pretender eximir-se à eficácia do negócio, alegando que tal qualidade, apesar de expressamente certificada, se

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1025

5.1.2. Comentários

Da análise do julgado, percebe-se que a decisão do Supremo Tribunal de


Justiça foi a mais justa e certa possível.
Por todos os elementos contidos nos autos, verifica-se que se não houvesse
o reconhecimento da tutela do terceiro, sob a alegação de inexistência de pre-
visão legal, ou completa vedação de reconhecimento do mandado aparente
nas relações negociais civis, haveria uma total inversão do direito à tutela da
confiança e de confiabilidade dos Tribunais, como forma de assegurar a plena
justiça.
No caso em comento, o administrador alegava não ter recebido da empresa
de leilões o valor da venda e pedia a ineficácia desta pela ilegalidade na outorga
da escritura.
Porém, existia prova material nos autos de que o administrador da massa
falida conhecia a atuação da empresa de leilões na outorga da escritura, na
medida em que se cobravam justificativas por não ter sido outorgada a escritura
de venda anterior.
Percebe-se que o comportamento omisso e tolerante do administrador da
massa falida, que conhecia e não se opunha a atuação da empresa leiloeira, pro-
vocou uma confiança dos terceiros adquirentes, da existência de representação.
Os terceiros de boa-fé confiaram justificadamente na legitimação de quem
havia sido encarregado da venda por negociação particular, com pedido do
próprio administrador nos autos da falência.
As atuações anteriores e prolongadas da empresa leiloeira, outorgando escri-
tura, com conhecimento do Administrador da massa e sem qualquer oposição,
levaram terceiros a crer na existência da representação.
O investimento da confiança traduziu-se pelo confiar e acreditar na relação
negocial, com a compra do bem.
A imputação da situação de confiança deve ser atribuída a parte autora, pois
levou a requerida a investir na confiança e confiar justificadamente na existên-
cia da representação.
A decisão do Supremo Tribunal de Justiça em reconhecer a possibilidade de
vinculação do representado em atos praticados por meio da representação apa-

não verificava. E, neste concreto circunstancialismo, traduz efectivamente um reprovável venire contra factum
proprium a pretensão de – eximindo-se à eficácia do negócio realizado – pretender colocar exclusivamente a cargo
do outro contraente de boa fé as consequências desfavoráveis da aparência de poderes representativos, plenamente
imputável a actos e omissões  do representante legal da massa falida”. Disponível em: <http://www.dgsi.
pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/482b0a2eeafc2c3a80257e4b0053c076?Open
Document>. Acesso em: 01/06/2015.

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1026 Geovana Mendes Baía Moisés

rente, constitui um precedente importante e inovador, como meio de assegurar


a tutela da confiança e da boa-fé e de vedar condutas reprováveis como o venire
contra factum proprium.

5.2. Processo n.º 3325/06.8YXLSB.L1-1 1ª Secção Cível do Tribunal da Rela-


ção de Lisboa, relator Manuel Marques. Acórdão de 11/01/11 64

5.2.1. Relatório sucinto

Trata-se de Ação declarativa interposta pela proprietária de um rés-do-chão,


em face da sucessora do inquilino, pedindo a validade da denúncia do contrato
de arrendamento e a condenação da requerida para a entrega do imóvel livre, e
no estado de conservação em que se encontrava na data de arrendamento.
A autora alegou que teria remetido uma carta de denúncia para a ré e que
não tomou conhecimento da oposição que foi dirigida à sociedade que recebia
as rendas.
A ré defendeu-se por exceção, alegando sua ilegitimidade passiva e, em
impugnação, afirmou que seu falecido pai tratava todas as questões com a
Administradora dos Senhorios D. Ltda e que comunicou em 14/11/2005 para
a administradora o falecimento de seu pai e sua intenção na transmissão do
arrendamento. Salientou ainda, que o fato da autora responder em 17/11/2005
e denunciar o contrato e dizer que iria informar a Administradora, fez com que
pressupusesse que a resposta deveria ser endereçada à aludida administradora.
Pediu para ser considerada a proposta de nova renda, que foi endereçada a
administradora em 02/02/2006 e recebida em 06/02/2006, e, reconhecida a
caducidade do direito da autora, por não ter respondido a denúncia.
Aduziu que a invocação do não recebimento da carta de oposição, quando
a mesma foi enviada, por indicação prévia, para a administradora dos senhorios,
constitui abuso de direito nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
Em primeiro grau a ação foi julgada improcedente, e a ré foi absolvida dos
pedidos contra ela formulados.
Inconformada, recorreu à relação que Julgou improcedente o pedido modi-
ficando alguns fundamentos do primeiro grau.
O acórdão considerou que mesmo a autora não tendo outorgado procura-
ção à sua administradora, foi ao longo dos anos tolerando a assunção por aquela,
em face do arrendatário, de poderes de representação para tratar dos assuntos

64 Disponível em: <http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/124c93027b

63538e8025783000564e95?OpenDocument>. Acesso em: 09/02/2015.

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1027

referentes ao arrendado, e, com fundamento nos princípios da boa-fé e da con-


fiança, considerou ser a ré merecedora de tutela jurídica, reconhecendo a efi-
cácia da comunicação de oposição da denúncia em relação à autora nos termos
do artigo 258.º do C.C.

5.2.2. Comentário

O Tribunal de Relação de Lisboa andou bem em reconhecer a validade da


oposição à denúncia, contudo, equivocou-se no fundamento jurídico utilizado
para vincular a autora, artigo 258.º do C.C.
Conforme já se expôs, não há no Código Civil, nas disposições relativas à
representação, qualquer referência à procuração aparente ou tolerada65.
Para a aplicação do artigo 258.º do C.C pressupõe-se a existência de uma
manifestação do representado na outorga de poderes representativos, e a legiti-
mação do representante em agir em nome do representado66.
No caso analisado, não restou provado que a autora (representada) tenha
manifestado a vontade de legitimar (ação) à sociedade para agir em seu nome
em todos os atos relativos ao rés-de-chão.
O que se provou, é que a autora conhecia os atos de representação da
sociedade e tolerou (omissão), sem se opor, criando na requerida a confiança da
existência de poderes de representação67.

65 Cf. nota 6.
66 João Nuno Calvão da Silva. Procuração artigo 116.º do Código do Notariado e artigo 38.º do Decreto-Lei
n.º 76-A/2006, de 29 de Março. ROA, Ano 67, Vol. II, Set. 2007, ao analisar o artigo 258 do C.C.
“Assim, é essencial a existência de legitimação representativa, só podendo o representante actuar em nome do
representado, vinculando-o às consequências jurídicas do acto praticado, se dispuser de poderes para tal. Não
existindo o necessário poder de representação, apenas a ratificação do representado torna o negócio eficaz na
sua esfera jurídica(10). Neste sentido, estabelece o artigo 268.°, n° 1, do CC: “O negócio que uma pessoa,
sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele rati-
ficado.(...) nas situações em que a falta de poderes do representante resulta da falta de uma procuração, porque
este nunca teve legitimação representativa, não é aplicável o artigo 266.° do CC, acima transcrito, nem parece
justificar-se a protecção de terceiro mediante a eficácia do negócio na esfera jurídica do representado.” Nesse
sentido também Pedro de Albuquerque. op. cit., p. 992. “Na verdade, o artigo 258.º estabelece, de
modo aparentemente límpido, como o negócio jurídico realizado pelo representante, em nome do reprsentado,
nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último. Isto a sugerir
imediatamente como na eventualidade de não existir procuração ou de não serem respeitadas as fronteiras ou
restrições do poder de representação, se não é possível vincular o representado.”
67 Nas palavras do julgador: “Deste conjunto de factos deriva que, não obstante não ter outor-

gado procuração à sua administradora, a autora (representada) foi ao longo dos anos tolerando a
assunção por aquela, em face do arrendatário, de poderes de representação para tratar dos assuntos

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1028 Geovana Mendes Baía Moisés

Portanto, o argumento jurídico (artigo 258.º CC) foi equivocado, pois não
é válido para a procuração tolerada. Além disso, como foi reconhecida a necessi-
dade de tutela da requerida para salvaguardar o princípio da confiança e boa-fé,
deveria ter sido reconhecida a figura do abuso de Direito, na modalidade do
venire contra factum proprium para fazer cessar a pretensão da autora de inexistên-
cia de procuração e de invalidade da oposição dirigida à sociedade.
Todos os requisitos para a configuração do venire contra factum proprium esta-
vam presentes no caso em comento.
A autora tinha conhecimento de que a sociedade atuava em seu nome em
assuntos relativos ao rés de chão tanto que, a renda era paga à administradora do
senhorio desde 1994 e todos os assuntos referentes ao arrendado eram tratados
com esta.
A carta que a requerida enviou para a administradora no dia 14/11/2005
comunicando o falecimento de seu pai, por certo chegou ao conhecimento da
autora, que respondeu 3 (três) dias depois denunciando o contrato e propondo
a pagar a indenização legal. Na carta de denúncia, a autora não contestou a qua-
lidade de representante da sociedade e ainda consignou que enviaria a mesma
informação a ela.
Por certo, essas atitudes da autora, em conhecer a atuação da sociedade e
não se opor, criou uma situação de representação aparente, cuja consequência
não pode ficar exclusivamente sobre a requerida de boa-fé.
O comportamento da autora não teria sido contraditório, se logo na denún-
cia, tivesse alertado à requerida da inexistência de poderes de representação da
sociedade.
Contudo, preferiu continuar omissa e tolerante, reforçando a crença da
representação da sociedade, na medida em que informou para a requerida que
a cópia da denúncia também seria enviada à sociedade.
Sua atitude criou, na parte requerida, a confiança de existência de poderes
de representação por parte da sociedade administradora.
Por certo, a requerida quando enviou para a sociedade a oposição à denún-
cia, acreditava estar cientificando a própria autora, e que tal atitude não a lesava
em qualquer direito, já que na primeira carta, o mesmo procedimento foi ado-
tado e nenhuma resistência foi apresentada por parte da autora.

referentes ao arrendado, criando na ré a ideia da existência desses poderes e a convicção de que a


oposição à denúncia do contrato de arrendamento deveria ser dirigida à administradora. De resto,
um declaratário normal extrairia da conduta (inactiva) da autora a ilação de que esta tinha efecti-
vamente conferido procuração à sua administradora para tratar de todos os assuntos referentes ao
arrendado”. Disponível em: <http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/
124c93027b63538e8025783000564e95?OpenDocument>. Acesso em: 09/02/2015.

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O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1029

A justificação da confiança da requerida é plausível e consubstanciada nos


atos omissos e contraditórios da autora.
O investimento da confiança, foi o envio à sociedade de carta de oposição à
denúncia, e sua invalidade, provocaria dano, na medida em que teria que deso-
cupar o imóvel e aceitar a indenização.
Por fim, a imputação da situação de confiança deve ser atribuída à parte
autora, pois levou a requerida a investir na confiança e confiar, justificadamente,
na existência da representação.
A atitude da autora em querer alegar a inexistência de poderes de represen-
tação e de invalidade da oposição apresentada à sociedade, constitui o exercício
abusivo de um direito, na modalidade de venire contra factum proprium, nos
termos do artigo 334.º do Código Civil, por exceder manifestamente os limites
impostos pela boa-fé.
Portanto, o fundamento jurídico para impedir o direito pleiteado pela
autora deveria ter sido o artigo 334.º do Código Civil.

Conclusão

Ao término desta pesquisa, percebe-se que o fundamento jurídico, para


vincular o representado aos atos praticados por representação tolerada, deve ser
o abuso de Direito, previsto no artigo 334.º do Código Civil.
O venire contra factum proprium é a modalidade de abuso de direito em que
incorre o representado que, com sua conduta (factum proprium), cria justifica-
damente no terceiro a confiança de que a ratificação ou validade do negócio
não seria negada. O venire é o ato do representado de invocar a ilegalidade ou
inexistência de representação, destruindo assim, a confiança que a sua anterior
conduta gerou.
Para análise da ocorrência do abuso de Direito deve se proceder a uma
ponderação material da situação existente na sua globalidade e atentar-se aos
fatos68. Este papel cabe essencialmente aos Tribunais, que diante do caso con-
creto, deverá analisar todas as circunstâncias e verificar a necessidade de tutela
de terceiro, que de boa-fé, teve uma justificada confiança na existência da
representação.
O reconhecimento do abuso do direito para tutela de terceiros em negócios
celebrados por meio da representação tolerada deve ser cautelosa e com parci-

68
António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005,
Livraria Almedina, Coimbra, 2005, p. 375.

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1030 Geovana Mendes Baía Moisés

mônia,69 já que, como regra geral, o risco em contratar com um falso represen-
tante deve ser atribuído ao terceiro.
Contudo, em certos casos o terceiro merecerá a proteção jurídica quando o
representado tiver contribuído com a situação enganosa, por meio de sua omis-
são e levado o terceiro a crer na existência da representação.
A aparência de representação não pode ser condição suficiente para vincu-
lação do representado, pois exige-se que este tenha contribuído para fundar a
confiança no terceiro.
É preciso verificar qual foi o comportamento (omissão) juridicamente rele-
vante do representado, que levou o terceiro de boa-fé a ter confiança sobre a
validade da representação.
A solução adequada será analisar o comportamento do representado em
face das ações do representante. A mera omissão, por si só, não pode ser funda-
mento para a criação da confiança. É necessário que os atos do representante
sejam de conhecimento do representado e que o comportamento deste, frente
às atitudes do representante, seja omisso. E mais, que os atos anteriores do repre-
sentado tenham sido desenvolvidos por meio desse “representante aparente”.
Portanto, é necessário avaliar todo o contexto fático, mormente o nexo de
causalidade entre a conduta do representado e a confiança gerada ao terceiro.
Nos dois julgados analisados, já existia uma conduta anterior do represen-
tado que se valia do “representante aparente” para a concretização dos negócios.
Não foi tão somente a omissão fator relevante para justificar a confiança do
terceiro de boa-fé.
Por certo, não se pode criar uma situação desequilibrada, mas em determi-
nados casos, a postura do representado que gerou a situação de aparência, deve
ser menos protegida que o terceiro de boa-fé, cuja confiança seja justificada.

Jurisprudência

STJ, acórdão n.º 752-F/1992.E1,S1 de 20/05/15, Lopes do Rego, disponível em http://


www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/482b0a2eeafc2c3a
80257e4b0053c076?OpenDocument
TRL, n.º 3325/06.8YXLSB.L1-1 de 11/01/11, Relator Manuel Marques, disponível
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b63538e8025783000564e95?OpenDocument

69 António Menezes Cordeiro. Tratado de Direito Civil. Parte Geral, I, Tomo III. Coimbra: Almedina,

p. 189.

RDC I (2016), 4, 1007-1031

Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 1030 10/01/17 11:25


O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração… 1031

TRL, acórdão n.º 3635/2007-6 de 12/07/2007, relatora Fátima Galante, disponível em


http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/880fcf3f083b
05318025735d00556b14?OpenDocument
TRL, acórdão n.º 1636/2003-7, de 29/04/2003, relator Pimentel Marques, disponí-
vel em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/2b323
19df1f267de80256e6e003ebb2a?OpenDocument
TRL, acórdão n.º 00016214/93 de 07/10/1993, Colectânea de Jurisprudência, Ano
XVIII, 1993,Tomo IV, 133 a 137
TRP, acórdão n.º 04095/92 de 05/10/1992, Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII,
1992,Tomo IV, 245 a 251
TRL, acórdão n.º 2273/91 de 28/02/1991, Colectânea de Jurisprudência, Ano XVI,
1991,Tomo I, 169 a 171
TRL, acórdão n.º 25786/91 de 16/05/1991, Colectânea de Jurisprudência, Ano XVI,
1991,Tomo III, 231 a 234
TRC, acórdão n.º 16006/87 de 27.01.1987, Colectânea de Jurisprudência, Ano XII,
1987, Tomo I, 40 a 45

RDC I (2016), 4, 1007-1031

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ÍNDICE DO ANO I (2016)

DOUTRINA

António Menezes Cordeiro


A crise e a alteração de circunstâncias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

António Sampaio Caramelo


Obrigatoriedade da convenção de arbitragem e direito de acesso à justiça . . . . . . . . . . 65

Isabel Alexandre
O tribunal estadual competente, segundo a Lei da Arbitragem Voluntária. . . . . . . . . . 117

Maria Raquel Rei


Notas acerca da penhorabilidade do “passe” do jogador profissional de futebol . . . . . . . 141

Diogo Costa Gonçalves


Dogmáticas de transição e o seu lugar na evolução dos sistemas . . . . . . . . . . . . . . . . 153

Hugo Luz dos Santos


O gaming nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau e a surveillance:
is always someone watching? (Algumas notas a propósito da privacy) . . . . . . . . . . . 183

Lourenço Leiria de Mendonça Noronha dos Santos


A posição jurídica do prejudicado no abuso do direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205

Dário Moura Vicente


A autonomia privada e os seus diferentes signifi cados à luz do Direito comparado . . . 277

António Pedro A. Ferreira


Breve apontamento sobre o contrato de garantia fi nanceira e suas modalidades . . . . . . 307

RDC I (2016), 4, 1033-1036

Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 1033 10/01/17 11:25


1034 Índice do Ano I (2016)

Rui Marques
A propósito da simulação: uma figura do Direito civil emprestada ao Direito tributário 359

Lourenço Leiria de Mendonça Noronha dos Santos


A posição jurídica do prejudicado no abuso do direito [Conclusão] . . . . . . . . . . . . . 377

Daniela Mirante
Da natureza jurídica do contrato celebrado entre o empresário desportivo e o praticante
desportivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419

Francisco da Cunha Matos/Iñaki Carrera


Pode o Tribunal condenar no pagamento de juros de mora se o autor não formulou o
correspondente pedido na petição inicial? – Da relação axiológica entre o Princípio do
Pedido e a função sócio-jurídica da obrigação de indemnizar . . . . . . . . . . . . . . . . . . 437

João Serras de Sousa


A cross default num confronto com a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais: uma ques-
tão de validade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 451

Maria João Amado/Vanessa de Almeida Santos


A desinformação na escolha do regime de bens: da presunção juris tantum quanto à
propriedade dos bens no regime supletivo, na (des)informação na escolha até à separação
total . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 481

Luís Felipe Silva


Oponibilidade do abuso de direito à Administração Pública, sob a perspectiva comparativa
entre os ordenamentos jurídicos português e brasileiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 497

António Pinto Monteiro


O Código Civil de 1966 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 535

António Menezes Cordeiro


Da legitimidade e da legitimação no Direito civil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 539

José Luís Bonifácio Ramos


O direito de preferência sobre bens culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577

Hugo Luz dos Santos


Os contratos de jogo e aposta e o crédito para jogo nos casinos da Região Administrativa
Especial de Macau: contributo para a resolução da questão do “walking” e para a admis-
sibilidade da negative pledge e da equitable lien norte-americanas . . . . . . . . . . . . 611

RDC I (2016), 4, 1033-1036

Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 1034 10/01/17 11:25


Índice do Ano I (2016) 1035

Joana Torres Ereio/Filipa de Aragão Homem


Da aplicação do artigo 830.º do Código Civil na praxis societária − a execução específica
de obrigações sociais e parassociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 639

Artur Flamínio da Silva/António Pedro Pinto Monteiro


Publicidade vs. confidencialidade na arbitragem desportiva transnacional. . . . . . . . . . . 701

Leonor Costa da Silva Catela Teixeira


Perda de Chance: dano autónomo ou mero suprimento do nexo causal? . . . . . . . . . . 723

Paulo Margalho
O abuso do direito no Direito tributário – Dois pesos e duas medidas? A caminhada pelo
deserto doutrinário... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 745

Prof. Doutor António Menezes Cordeiro


O contrato de agência e a boa-fé . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 795

Francisco G. Prol
Ordre Public et Arbitrabilité . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 807

Luís Vasconcelos Abreu


Responsabilidade médica. Apresentação de uma tese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 817

Francisco Aguilar
A ideia de Direito ou uma das ideias de Direito? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 853

Carlos Lacerda Barata


Contratos celebrados fora do estabelecimento comercial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 861

Hugo Luz dos Santos


O jogo e a aposta nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau: (breves)
subsídios para o enquadramento jurídico da questão das “outstanding chips” e para a
distribuição dinâmica do ónus da prova: um “admirável mundo novo” no gaming? 921

Tânia de Freitas Andrade


Exercício abusivo do crédito fidejussório: a omissão de informações devidas pelo credor
fidejussório ao fiador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 939

Guilherme Pires Henriques


Do contrato-promessa de doação: um contrato misto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 989

RDC I (2016), 4, 1033-1036

Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 1035 10/01/17 11:25


1036 Índice do Ano I (2016)

Geovana Mendes Baía Moisés


O abuso de direito como via de tutela de terceiros nos negócios celebrados por procuração
tolerada no âmbito do Direito civil português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1007

JURISPRUDÊNCIA ANOTADA

Aquilino Paulo Antunes


Arbitragem necessária sobre medicamentos vs. direitos de propriedade industrial e acesso à
informação – Anotação ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 30 de
Abril de 2015, processo n.º 12046/15 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251

RECENSÕES

Privatrechtstheorie, Stefan Grundmann, Hans-W. Micklitz e Moritz Renner,


Mohr Siebeck, Tubinga, 2015 (Vols. I e II) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 263

RDC I (2016), 4, 1033-1036

Book Revista de Direito Civil – 4 (2016).indb 1036 10/01/17 11:25


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