setembro de 2015
“O Novo Processo Civil” consiste num conjunto de Cadernos
que o CEJ preparou com o objetivo de fornecer à comunidade
jurídica um conjunto de elementos de trabalho que pudessem
facilitar a abordagem e o estudo do Código de Processo Civil
vigente desde 1 de setembro de 2013.
Com uma vertente essencialmente prática e vocacionada para
os profissionais do Direito pretende ser um contributo para a
necessária reflexão sobre as novas soluções normativas.
O compêndio passa agora a comportar cinco Cadernos (I –
correspondente à estrutura das Jornadas do Processo Civil do
CEJ, de abril de 2013, acrescido de outros textos, originais ou
produzidos noutras conferências; II – textos de doutrina que
acompanharam o processo legislativo com o intuito de permitir
a compreensão da evolução normativa e o porquê das opções
tomadas; III – trabalhos e estudos sobre o novo CPC dos
Auditores de Justiça do 30º Curso – sob a orientação dos
docentes do CEJ – elaborados em 2013; IV – textos sobre os
impactos do Novo CPC no Processo do Trabalho; V – textos e
jurisprudência).
Nos dias 23 e 24 de janeiro de 2014, decorreram as segundas
Jornadas de Processo Civil do CEJ, nas quais se apreciou o
impacto da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil,
fazendo-se o ponto da situação da reforma e aprofundando-se
a discussão das alterações mais relevantes.
Dois anos volvidos sobre a entrada em vigor Código de
Processo Civil de 2013, torna-se patente a necessidade de
trazer a lume os textos produzidos nas Jornadas de Processo
Civil de 2014, juntando uma resenha jurisprudencial de
acórdãos do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal de
Justiça e dos Tribunais das Relações de Lisboa, Porto, Coimbra,
Guimarães e Évora, já sobre o NCPC.
Com este último caderno, o CEJ completa o projeto relativo ao
novo processo civil esperando ter atingido os objetivos
propostos.
Ficha Técnica
Nome:
Caderno V – O Novo Processo Civil – Textos e Jurisprudência (Jornadas de Processo Civil–
janeiro 2014 e Jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o novo CPC)
Categoria:
Caderno Especial – O Novo Processo Civil
Colaboração:
Núcleo de Apoio Documental e Informação Jurídica do Tribunal Constitucional
Gabinete dos Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça – Assessoria Cível
Intervenientes:
João Correia (Advogado e Coordenador da Comissão de Reforma do Processo Civil)
Susana Videira (Diretora-Geral da Política de Justiça e Professora da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa)
Ana Isabel de Azeredo Coelho* (Juíza de Direito, Auxiliar do Tribunal da Relação de
Lisboa)
Margarida Paz (Procuradora da República e Docente do CEJ)
Isabel Maria Alexandre (Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)
Carlos Lopes do Rego (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e Membro da
Comissão de Reforma do Processo Civil)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça)
Salazar Casanova (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça)
Elizabeth Fernandez (Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho e
Advogada)
Paulo Ramos de Faria* (Juiz de Direito dos Juízos Cíveis do Porto)
António Santos Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e
*
À data da sua intervenção.
Membro da Comissão de Reforma do Processo Civil)
Manuel Tomé Soares Gomes* (Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa)
Rui Pinto (Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)
Henrique Araújo (Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto)
Revisão final:
Edgar Taborda Lopes (Coordenador do Departamento da Formação do CEJ, Juiz de
Direito)
Joana Caldeira (Técnica Superior do Departamento da Formação)
AUTOR(ES) – Título [Em linha]. a ed. Edição. Local de edição: Editor, ano de
edição.
[Consult. Data de consulta]. Disponível na internet:<URL:>. ISBN.
Exemplo:
Direito Bancário [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2015.
[Consult. 12 mar. 2015].
Disponível na
internet:<URL:http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Direito_Bancario.pdf.
ISBN 978-972-9122-98-9.
ÍNDICE
Versão 1 20/10/2015
Notas:
Foi respeitada a opção dos autores na utilização ou não do novo Acordo Ortográfico.
Para a visualização correta dos e-books recomenda-se a utilização do programa Adobe
Acrobat Reader.
Para visionar a videogravação de comunicações deve possuir os seguintes requisitos de
software: Internet Explorer 9 ou posterior; Chrome; Firefox ou Safari e o Flash Media
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Ponto da situação da Reforma do Processo Civil.
A metamorfose comportamental
[João Correia]
Ponto da situação da Reforma do Processo Civil. A metamorfose comportamental
Sumário:
I – As questões que o novo CPC suscita imediatamente:
a) As normas transitórias;
b) Conteúdo e significado dos Art.os 3.º, 5.º e 6.º
II – O desafio à cultura instalada. As diversas abordagens
III – Os institutos de difícil absorção. Exemplos:
O activismo judiciário;
A gestão processual;
A tramitação da Acção Declarativa
IV – As consequências relacionais
V – O Centro de Estudos Judiciários e a Ordem dos Advogados
A formação inicial e a formação contínua
VI – O Ministério da Justiça
VII – Os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público
VIII – A Organização Judiciária
IX – A perspectiva a curto e médio alcance
15
Videogravação da comunicação
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Tendências do Processo Civil: desformalização e
simplificação
Senhoras e Senhores,
Começo por manifestar a minha satisfação por estar presente nestas Jornadas de
Processo Civil, agradecendo ao Centro de Estudos Judiciários e, em particular, ao seu Diretor –
Professor Pedro Barbas Homem – o convite que me foi dirigido.
Num espaço e num tempo em que a realidade política e económica precede, tantas vezes,
o movimento das ideias e os conceitos de liberdade, de solidariedade e de justiça social
sobrevivem enfraquecidos pelo desenvolvimento das leis do mercado, o novo Leviatã que
deixa a democracia sem meios para garantir, de forma eficiente, o seu poder de limitação do
arbítrio, é urgente – diria mesmo, é inadiável – recuperar a discussão, o diálogo, o
pensamento, como hoje e amanhã, nestas jornadas, iremos fazer.
A Europa está, como é por todos reconhecido, a atravessar uma dura experiência na sua
vida social. A situação histórica do nosso tempo, que já alguém caracterizou como uma
angustiosa exasperação, acompanhada de profunda desespiritualização, obriga a pensar em
Justiça e no aprofundamento da democracia de direitos fundamentais.
Internamente, a crise financeira também ajuda a colocar Justiça [e a apologia da sua
reforma] na ordem do dia.
Mas, para além do seu lado mais sombrio, a situação financeira do país também oferece
uma janela de oportunidade quase única em que se reúnem os elementos económicos,
culturais e políticos para ousar pensar os problemas estruturais da Justiça portuguesa,
reinventando, a este nível, o modelo de relação entre o Cidadão e o Estado.
Por consequência, a Justiça não é apenas um tema para o decisor político e para o
legislador. É um concurso a que todos somos convocados, particularmente os Juízes, os
Magistrados do Ministério Público, os Advogados e os demais profissionais da área forense,
porque melhor do que ninguém têm consciência da necessidade de encontrar soluções para os
problemas estruturais e conjunturais do sistema de Justiça português.
Entre esses problemas, conta-se o da morosidade e o da excessiva pendência, não raro
consequências de uma enorme complexidade das soluções jurídicas gizadas.
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
Por isso, nos últimos anos, e especialmente a partir de 2011, pelas vicissitudes que todos
conhecemos, temos assistido, em Portugal, a um enorme esforço de simplificação e de
desformalização de muitos dos institutos jurídicos, com especial enfoque no âmbito do
processo civil, que, como é sabido, foi objeto de uma profunda reordenação traduzida na
aprovação do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho,
entrado em vigor no passado dia 1 de setembro de 2013.
Com efeito, uma das maiores exigências – e mesmo urgências – da sociedade portuguesa
é, precisamente, a de ter um sistema de Justiça mais justo, mas também mais célere e mais
eficaz, que afaste, pelo seu próprio desempenho, a imagem generalizada, e nem sempre
equitativa, de que o funcionamento da Justiça é um obstáculo à vida das pessoas e das
empresas.
O Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica
assinado a 17 de maio de 2011 entre Portugal e a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu
e o Fundo Monetário Internacional, no que concerne ao sistema judicial, previu um vasto
conjunto de medidas destinadas a melhorar o funcionamento do sistema judicial e a aumentar
a eficiência desse mesmo sistema.
O Plano de reformas que foi estabelecido para a Justiça teve como desígnio,
reiteradamente afirmado pelo decisor político, não apenas melhorar a prestação e a
administração da justiça, mas também fazê-la mais simples e entendível pelo cidadão, mais
transparente e mais dotada de instrumentos que permitam que se gere uma verdadeira
cultura de prestação de contas no sistema judiciário.
Não obstante, importa recordar que estas reformas surgem num contexto muito
específico, já que, no âmbito da execução do memorandum de entendimento antes referido, o
Governo assumiu fortes compromissos estruturais na área da Justiça, que passam por alterar a
organização judiciária, intervir por forma a reduzir a pendência processual em atraso, em
especial na área da Execuções, e promover a revisão do Processo Civil.
Na vertente do processo civil, a que nos ocupa nesta intervenção, identificavam-se
dificuldades na valoração da materialidade das causas e eram possíveis arrastamentos legais –
eventualmente não legítimos - dos pleitos.
Nesta medida, a reforma do processo civil, cujo texto, por opção política, acabou por se
reconverter num código novo, para benefício dos utilizadores, veio introduzir medidas que
visam quer a celeridade processual e a definição concreta, numa fase inicial tanto quanto
possível, dos momentos mais relevantes no processo, quer um maior poder de intervenção do
juiz.
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
Uma das matérias do novo CPC que pode suscitar mais discussões jurisprudenciais e
doutrinárias, até porque o próprio Código parece dar uma larga margem para interpretação
deste conceito, é o dos temas de prova.
Não procuro antecipar um tema, que vai ser objeto de oportuna discussão amanhã, mas
parece-me importante referir que o referido conceito, ao abandonar uma visão rígida da
alegação e prova dos factos, ainda sob influência do conceito dos “quesitos”, em prol de uma
visão mais ampla e ágil, pode contribuir, em função do modo como se concretizar esse
conceito a nível jurisprudencial e doutrinário, para decisões materialmente mais justas (sendo
a justeza das decisões o grande objetivo pretendido atingir com esta alteração), mas pode
contribuir também, e em simultâneo, para a simplificação e agilização processual.
Outro dos aspetos em que a nova disciplina da ação declarativa pretendeu simplificar e
desformalizar procedimentos tem a ver com a nova regulação da audiência prévia.
Essa preocupação é evidente na alínea e), do n.º 1, do artigo 591.º, quando determina
que um dos objetivos da audiência prévia é “(d)eterminar, após debate, a adequação formal, a
simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo
547.º” do novo Código de Processo Civil.
Mas essa preocupação também está presente quando, na alínea g), do mesmo número, se
prevê igualmente como fim da audiência prévia “(p)rogramar, após audição dos mandatários,
os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração
e designar as respetivas datas”.
Trata-se de uma medida de calendarização da audiência final (anterior audiência de
julgamento) que, acreditamos, contribuirá para uma melhor gestão do processo por parte não
só do tribunal mas também das partes, permitindo-lhes conhecer melhor e por isso prever
melhor o desenrolar do processo, antecipando constrangimentos que poderão surgir numa
fase posterior, e com isso evitando-os, nomeadamente através do recurso a mecanismos de
simplificação ou agilização processual que sejam considerados adequados.
Para além disso, esta calendarização permitirá convocar outros intervenientes
(nomeadamente testemunhas e peritos) apenas para o dia e para a hora em que de facto têm
que intervir no processo, podendo assim contribuir para reduzir o número de situações em
que ocorrem deslocações inúteis aos tribunais.
Nesta breve resenha das medidas de simplificação introduzidas pelo novo Código de
Processo Civil, uma referência é, ainda, devida ao regime da prova testemunhal e ao facto de a
regra geral passar a ser a apresentação das testemunhas pela parte, procedendo o tribunal à
sua notificação apenas nos casos em que tal seja requerido. Criam-se assim condições para
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
Senhoras e Senhores,
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
Os números, pela sua simplicidade, falam por si: trata-se de um instituto que,
seguramente, permitirá recuperar muito mais facilmente créditos devidos aos credores, com a
inerente redução de custos derivada de todo o processado se efetivar por via eletrónica, o
que, obviamente, conduz a uma simplificação de procedimentos e a uma desformalização
ímpares neste domínio.
Outra das áreas em que a simplificação e a desformalização do processo civil mais se fez
sentir com a reforma resultante do novo processo civil prendeu-se com a forma de instauração
da ação executiva e a desnecessidade que passou a existir de se intentar uma nova ação
executiva quando já tenha sido instaurada ação declarativa com o intuito de se fazer
reconhecer um qualquer direito e este haja sido declarado pelo tribunal através de sentença.
Nestas situações, deixa de ser necessário propor-se ação para tornar efetivo o que o
tribunal já declarou, tramitando a execução nos autos em que correu a ação declarativa.
Este mecanismo, agora regulado no artigo 85.º, do novo CPC, é o elo de ligação que
muitos reclamavam faltar entre a declaração de um direito e a sua execução, e que agora o
Legislador consagrou, para evitar a ocorrência de atos inúteis nos processos, que, já tendo sido
praticados na fase declaratória, não carecem de ser repetidos na fase executiva.
Também com o intuito de simplificar e clarificar procedimentos e a marcha processual da
ação executiva, merece realce a reintrodução na ordem jurídica interna da clara destrinça
entre a forma sumária e a ordinária nas execuções para pagamento de quantia certa, prevista
no artigo 550.º, do novo CPC, tendo-se visado pôr fim a uma aparente simplificação da forma
do processo executivo que não passava disso mesmo: uma aparência simplificadora.
Se à luz do anterior regime, que propalava só existir uma única forma de ação executiva,
toda a marcha processual era uma espécie de “caixinha de surpresas”, que variava mediante
diversos circunstancialismos, o que complicava de sobremaneira a compreensão da marcha do
processo, a lei passa agora a marcar claramente quais são os passos a observar em cada uma
das referidas formas processuais, afirmando a que títulos executivos fortes corresponde uma
forma de ação mais simplificada e vice-versa.
Um outro formalismo combatido pelo novo CPC é a existência na ordem jurídica de ações
executivas ainda vivas que, na verdade o já não deveriam estar, pois que ou já produziram os
seus efeitos e os credores encontram-se a receber regularmente as importâncias que servem
para pagamento do que lhes é devido ou não são justificáveis porque os executados não
dispõem de bens para que a satisfação dos créditos dos exequentes se possa efetivar.
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
Assim, o Legislador cuidou de clarificar que seja pela inexistência de bens do executado,
seja pelo facto de estarem em curso penhoras atinentes a rendimentos periódicos, o novo
Código de Processo Civil, mantendo as causas de extinção da execução vigentes no regime
anterior, acrescentou três novas situações, que vêm, precisamente, permitir a redução das
pendências nos tribunais cíveis, fazendo face a estas situações que aumentavam de forma
injustificada a pendência nos tribunais.
Com efeito, o artigo 849.º, do novo Código de Processo Civil, relativo à extinção da
execução, acrescenta às causas de extinção da ação executiva as seguintes situações:
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
A não exequibilidade de documentos particulares incute, claro está, uma maior segurança
jurídica nas ações executivas, evitando oposições para discussão do documento particular e da
relação subjacente ao mesmo.
Os documentos particulares que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer
obrigação, para valerem como título executivo, deverão ser exarados ou autenticados por
notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, a bem da certeza e
da segurança jurídicas.
Por outro lado, ao abrigo do novo Código de Processo Civil e com o especial intuito de
simplificar a muitos o acesso ao sistema de justiça, os particulares podem agora recorrer aos
funcionários judiciais para cobrarem dívidas não profissionais até aos dez mil euros.
Tratando-se de trabalhadores, essa possibilidade alarga-se às execuções destinadas à
cobrança de créditos laborais até trinta mil euros.
Regista-se, pois, que o Legislador, a par de preocupações de simplificação e de
desformalização processual, não esqueceu, como, de resto, se impõe, que é necessário
reforçar os mecanismos de acesso ao direito e à justiça.
Senhoras e Senhores,
Após este excurso, já longo, sobre algumas das medidas que me parecem mais relevantes
no que tange à simplificação e desformalização no âmbito do processo civil, foco central desta
intervenção, não posso deixar de assinalar que o esforço simplificador não se limitou ao direito
processual civil, havendo, noutras áreas do sistema de justiça, afloramentos claros destas
tendências.
O novo processo especial de revitalização, um procedimento simples e altamente
desformalizado criado pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, que alterou o Código da Insolvência
e da Recuperação de Empresas, que tem provado contribuir para a recuperação de um
número significativo de empregos e de empresas e a reforma em curso do Código do
Procedimento Administrativo (CPA), com o objetivo de modernizar o funcionamento da
Administração no seu relacionamento com os cidadãos e assim conseguir que a Administração
Pública portuguesa, com total transparência e isenção, se paute por critérios de eficiência,
celeridade e economicidade, pondo-se termo à morosidade que desincentiva tantas vezes os
nossos agentes económicos ao investimento são, apenas, dois exemplos de áreas em que se
adotaram ou procuram adotar procedimentos simplificadores.
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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação
Muito obrigada!
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Videogravação da comunicação
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Dever de gestão processual. A gestão do processo e a
gestão dos processos
RESUMO
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Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
As competências de gestão processual do juiz presidente têm a sua fonte nos critérios que
enformam a gestão do processo, o que determina a centralidade das competências dos juízes
em exercício de funções jurisdicionais. As competências do juiz presidente surgem como mero
facilitador organizacional.
Descrevendo a experiência concreta da comarca da Grande Lisboa Noroeste, a mesma é
considerada apenas ao nível da própria comarca, prescindindo da interação com órgãos
externos, e isola um aspeto crítico da qualidade do sistema – a duração do processo.
Baseando-se no exercício colegial das competências dos juízes com funções de gestão e dos
juízes com funções jurisdicionais, e intervém a diversos níveis de organização do trabalho e das
tarefas, no pressuposto da unidade do tribunal/organização e da instrumentalidade das
funções administrativas face à função jurisdicional.
A dimensão e assunto central não permitem abordar senão indiretamente as
condicionantes organizacionais e processuais que se refletem negativamente no exercício de
uma efetiva gestão processual, desde o modo de organização do sistema judiciário macro, à
indefinição de lideranças, à vetustez das estruturas ou à inexistência de um sistema de
informação para a gestão, mas esses fatores são essenciais.
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Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
I de 2013-07-03; Lei n.º 62/2013. DR 163 SÉRIE I de 2013-08-26; Portaria n.º 280/2013. DR 163 SÉRIE I de
2013-08-26; Resolução do Conselho de Ministros n.º 91/2013. DR 248 SÉRIE I de 2013-12-23.
2
Sobre várias definições de gestão processual ver (Alexandre, 2013).
37
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
A atual preocupação com a gestão processual nos Judiciários corresponde a uma nova
maneira de perspetivar a “eterna” preocupação: a qualidade da decisão judicial3.
Parafraseando (Frydman, 2007, p. 19) dir-se-ia que a questão da qualidade da decisão
judicial primeiro confinada à legalidade da decisão ou à sua proporcionalidade, sindicável pelo
sistema de recursos, prosseguiu com a consideração da argumentação como lugar de
legitimidade, vincando a necessidade de fundamentação, para desembocar na exigência do
processo equitativo e justo decidido em prazo razoável (e previsível) que é ainda
procedimental/processual mas é também, muito, organizacional.
Percurso que passa, assim, da sindicância da legalidade estrita para a da legitimidade
argumentativa e do processo à organização4.
O lugar da gestão processual – exigência de processo equitativo e justo decidido em prazo
razoável, previsível5 e com eficiência – convoca aquelas duas grandes áreas de densificação do
dever de gestão processual – a da gestão do processo e a da gestão dos processos.
Áreas que têm em comum a utilização de instrumentos de organização eficiente dos
recursos disponíveis em ordem à prossecução de uma finalidade.
3
(Jean, 2007, p. 30) refere os diversos níveis em que essa preocupação de espelha atualmente: a qualidade
dos sistemas judiciários, a qualidade dos processos judiciais e a qualidade da decisão judicial.
4
Cf. (Frydman, 2007, p. 19): «L’hypothèse que je développerai est celle d’un glissement progressif, dans la
théorie et dans la pratique contemporaines, d’une conception substantielle vers une conception procédurale
et à présent managériale de la qualité des décisions de justice, qui s’accompagne, sur le plan du contrôle,
d’une multiplication des modalités et des instances qui s’empilent en quelque sorte les unes sur les autres.
Pour le montrer, nous distinguerons cinq stades successifs au fil d’un parcours à marche forcée de l’histoire
des idées et des pratiques judiciaires. Nous partirons du contrôle de légalité classiquement confié à la Cour
de cassation (1) pour envisager ensuite le contrôle marginal de proportionnalité, caractéristique de la
jurisprudence sociologique (2). Nous verrons comment ce premier mouvement en amène d’autres, d’abord, à
la suite du tournant argumentatif, le développement du contrôle de motivation (3), puis, à la faveur du
tournant procédural, le contrôle du respect des guaranties du procès équitable, sous la haute autorité de la
Cour européenne des Droits de l’Homme (4) et enfin le contrôle de qualité proprement dit portant sur
l’administration et le fonctionnement de la justice (5)».
5
A CEPEJ vem insistindo nesta dimensão “temporal” do processo que é a previsibilidade da sua duração e o
conhecimento de tal pelas partes que é também compromisso do sistema. Cf. CEPEJ (2004) 19
(www.coe.int/CEPEJ).
38
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
39
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
O que era potenciado por uma manifesta deficiência de informação quando o acervo
processual fosse de dimensão (no meu tribunal de ingresso os processos pendentes cabiam
em quatro mal cheias prateleiras de menos de um metro, o que constituía informação
manifestamente digerível por um juiz, mas não é sempre assim…), falta de informação
impeditiva de uma gestão digna desse nome.
A descrição caricatural passa-se no horizonte após a reforma da organização judiciária de
1987, com a constituição de uma autonomia hierárquica e inspetiva das secretarias, a
dissociação da avaliação de desempenho por corporações profissionais e não por organização
tribunal, acompanhada do aumento da litigância já referida e o consequente aumento
exponencial do número de processos pendentes nos tribunais.
As reformas organizativas subsequentes continuam a tentar contrariar esta tendência
(Mendes, 2010, p. 109 e ss) numa deriva inovatória/revogatória que ainda não cessou. As leis
processuais caminham, com idêntico propósito, para o paradigma do juiz ativo, efetivo gestor
do processo, embora com hesitações e contradições manifestas que mereceriam alguma
atenção6.
É esta procura do juiz ativo que expressam as normas do artigo 265.º-A, do CPC na
redação de 95/96 (CPC 95), do artigo 2.º do Decreto-Lei 108/2006 (RPCE) e do artigo 6.º do
CPC na redação da Lei 41/2013 (CPC 2013, constituindo afinal um elemento da política pública
de justiça.
Como referia o preâmbulo do Decreto-Lei 108/20067:
«Este regime confere ao juiz um papel determinante, aprofundando a conceção sobre a
atuação do magistrado judicial no processo civil declarativo enquanto responsável pela direção
do processo e, como tal, pela sua agilização. Mitiga-se o formalismo processual civil, dirigindo
o juiz para uma visão crítica das regras».
O atual artigo 6.º do CPC é herdeiro desta visão reportando-se à gestão de cada processo
pelo juiz que dele é titular, tanto genericamente, em termos de atitude do juiz perante o
6
A questão desenrola-se nas páginas da Revista Julgar, sendo amplamente debatida por (Gouveia, 2007) e
(Mendonça, 2007), retomada por (Matos, 2007).
7
Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional 132/2010: «Ou seja, pretendeu-se criar uma forma de processo
única sujeita ao princípio da gestão, aplicável a todos os tribunais cíveis a que não caiba regime especial.
Trata-se de uma tramitação flexível que funciona como uma espécie de paradigma e que não deve
prejudicar o dever de gestão processual. Esta tramitação única será tendencialmente aplicável aos processos
a que actualmente se aplica a forma de processo declarativo comum, consequentemente o elemento
relevante para o mencionado Decreto-Lei é a forma de processo e não a competência do tribunal».
40
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
8
Cf. (Alexandre, 2013) e (Faria, s.d.) CEJ.
9
Norma com o seguinte teor: «O juiz dirige o processo, devendo nomeadamente:
a) Adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma
dos atos processuais ao fim que visam atingir;
b) Garantir que não são praticados atos inúteis, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório;
c) Adotar os mecanismos de agilização processual previstos na lei».
10
Sobre história do preceito e (des)necessidade de acordo das partes (Brito, 1997) que a este respeito cita o
preâmbulo do Decreto-Lei 180/96 quando explica o afastamento da necessidade de acordo das partes: «a
adeauação não visa a criação de uma espécie de processo alternativo, da livre discricionariedade dos
litigantes, mas possibilitar a ultrapassagem de eventuais desconformidades com as previsões genéricas das
normas de direito adjectivo».
11
Ver (Faria, 2009).
41
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
12
Cf. (Brito, 1997, p. 37): «deve empregar-se o mínimo de actividade para se atingir o máximo resultado
processual».
13
O artigo 6.º também indica, com alguma redundância, o que o legislador entende serem exemplos da
direção ativa – a) promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (entre as
quais se contam as necessárias ao «suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de
sanação»), b) recusa do que for impertinente ou meramente dilatório, c) adoção de mecanismos de
simplificação e agilização processual – mas esses são meros exemplos, não são a delimitação do dever.
42
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
A dimensão de eficiência aflorada quanto ao uso das normas e à forma dos atos, perpassa
em termos mais vastos o dever de gestão, alargando-o a dimensões já não estritamente de
aplicação normas processuais mas de organização e utilização do conjunto dos recursos
disponíveis – humanos, materiais e tecnológicos.
Com o que temos delimitado o dever de gestão processual do juiz enunciado no CPC
2013:
O juiz tem o dever de dirigir ativamente o processo em ordem a obter com eficiência a
composição justa e célere do litígio.
A autonomia deste dever de gestão (ou deste dever como gestão) implica uma
abordagem distinta da integração descritiva dos diversos atos em que se possa exprimir.
Ou seja, antes de saber se a gestão processual implica a simplificação ou abrange também
a complexificação14 do processo, se implica uma calendarização, se pode consubstanciar-se
num afastamento dos prazos legais ou das formas de notificação de atos ou para comparência,
temos de encarar aquele dever na sede em que se coloca: a gestão estratégica do processo,
norteada pelas regras específicas desta área do saber.
Pelo que é útil e adequado o recurso aos instrumentos de gestão holística desenvolvidos
nomeadamente para o sector público15 que se ajustam aos diversos níveis em que a gestão se
consubstancia.
Instrumentos que implicam a consideração da missão do processo, da visão que decorre
da conformação que lhe é dada pelo sistema jurídico, e dos valores que o enformam em
ordem à definição da estratégia empregue na sua gestão, definindo em concreto objetivos
operacionais e ações a empreender.
Consideração expressa nas perspetivas dos cidadãos em geral (conformação pela
comunidade dos princípios gerais do processo civil, considerando a função do Estado de
administração da Justiça e as finalidades prosseguidas), das partes em particular (princípios do
dispositivo, do contraditório, da proibição da indefesa, da igualdade), dos procedimentos
internos de funcionamento (regras processuais e administrativas), da aprendizagem e dos
recursos disponíveis (humanos – juiz, funcionários e serviços vários privados e públicos –,
materiais – equipamento, edifícios, etc – e tecnológicos – sistema informático e
equipamentos).
14
No sentido da admissibilidade (Freitas, 2013, pp. 174-175)
15
Cf. (Kaplan & Norton, 1996) definindo o Balanced Scorecard como instrumento de gestão e de definição
da estratégia organizacional em geral e (Kaplan, 2013) especificamente nas organizações não lucrativas.
43
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
Instrumentos que permitem encarar a gestão do processo como atividade com autonomia
em relação à tramitação processual e que potenciam o seu efeito.
Deixa de fazer sentido então perguntar se a adequação formal se confunde com o dever
de gestão processual, pois naturalmente ambos encontram o seu campo de autonomia, sem
perderem a sua interligação. A adequação formal constitui um exercício de gestão processual
que é mais ampla do que aquele.
Como também deixa de ter sentido saber se o dever de gestão processual tem o seu lugar
ótimo nos litígios de massa ou na litigância nuclear16. A gestão é inerente à abordagem de cada
processo, diferindo naturalmente os conteúdos dessa abordagem.
Daí que, o dever de gestão processual, enquanto dever de gestão, beneficia de um
enquadramento autónomo do processual, com apelo às regras da gestão e aos instrumentos
diversos pela mesma proporcionados, dos quais se destacam pela sua adequação
instrumentos holísticos que partem da missão expressa em valores e da visão orientadora da
estratégia17 e da definição das ações a empreender18.
Assim, constitui-se ele próprio critério de aferição da adequação das opções processuais
do legislador.
Em termos gráficos poderíamos representar tal abordagem do seguinte modo:
16
Sobre o conceito, contraposto à litigância de massas (litígios de baixa densidade) (Matos, 2007, pp. 94-96
maxime).
17
Para uma leitura do processo enquanto estratégia (Teixeira, 2010).
18
(Kaplan & Norton, 1993)
44
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
19
Cf. (Brito, 1997, p. 31) a respeito em concreto apenas da adequação formal: «A possibilidade agora
consagrada [reforma de 95/96] de o juiz adaptar a tramitação do processo (…) tem tanto de aliciante para a
realização da justiça no processo civil, como de ameaçador para as garantias daqueles que exercem o seu
direito à jurisdição».
20
«Assegurados estes direitos, deve defender-se o papel activo do juiz, sem qualquer receio de
autoritarismo. A flexibilidade só é possível com um juiz activo, com uma gestão processual presente,
concreta, informada, disponível. Esta agilidade da magistratura é essencial à sua legitimação. Saber que em
certos processos deve estar mais distante, mais passiva; saber que em outros deve ser mais activa, mais
próxima. A elasticidade dos poderes atribuídos ao magistrado civil, a supletividade das regras processuais
deve ser assim entendida.
Defendo, pois, que o actual processo civil não é autoritário. É colaborante, é flexível, é próximo. Os direitos
das partes estão garantidos e são respeitados. O juiz é um elemento fulcral na condução do processo. A sua
importância pode implicar uma actuação decidida, mas pode também, por vezes, tornar-se transparente,
deixando ao contraditório das partes o avanço do processo. Seja qual for a postura, o magistrado está
sempre ao serviço das partes, das pessoas e não de uma ideia absoluta de verdade ou de justiça. Não há
donos do processo, nem há senhores da verdade. Há pessoas, com problemas, com litígios normais
decorrentes das relações humanas. É preciso resolvê-los, eficazmente. É necessário servir a solução, saciando
quem a requereu» p. 65.
21
Ver, por exemplo, (Schwarzer & Hirsch, 2006).
45
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
função da sua razão de ser e da sua finalidade, em ordem à consecução no caso do “processo
equitativo e justo decidido em prazo razoável” do artigo 6.º da Convenção Europeia dos
Direitos Humanos (CEDH) na leitura que dela faz também a Comissão Europeia para a Eficácia
da Justiça (CEPEJ).
É o modelo de juiz a que faz apelo o artigo 6.º do CPC.
Um juiz/gestor com valores que também se exprimem com especificidade na gestão
processual e se enumeram de modo exemplificativo:
Independência (na relação com os órgãos de gestão e na interdependência das
competências);
Imparcialidade («igual preocupação com a sorte de todas as pessoas» (Dworkin, 2011, p.
14));
Humildade (respeitando «totalmente a responsabilidade e o direito de cada pessoa a
decidir por si própria» (Dworkin, 2011, p. 14); conhecer a realidade da inserção em
organização);
Coragem («o juiz deve ter poderes que lhe permitam uma efetiva e ativa gestão dos
procedimentos» (CEPEJ-SATURN, (2013)4) e deve usar os poderes que tem);
Verdade (na relação com as partes, nomeadamente, quanto ao tempo dos processos
prestando informação correta quanto às causas de desvios e quanto às medidas para as
debelar);
Ciência (utilização das normas processuais e da sua articulação com as substantivas que
regem a declaração do direito);
Cultura dialogal e diretiva (do processo e na intervenção nele, com assunção da
cooperação e da firmeza na direção).
22
(Alexandre, 2013) coloca a questão: «Tenho dúvidas em dizer que a gestão processual – tal como está
concebida na PL 113/XII – pode conduzir a uma densificação da tramitação legalmente desenhada, porque o
art. 6º/1 da PL 113/XII, a propósito do dever de gestão processual, também alude a mecanismos de
simplificação processual. Por outro lado, se a gestão processual visa essencialmente a agilização, ideia
reforçada pela parte final do n.º 1 do art. 6º, como é que pode também visar a complexificação, que com ela
parece incompatível?».
46
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
escolha das armas (o processo integra a violência mas integrar não é obliterar) e a
previsibilidade das regras do combate, no caso as regras processuais, de que decorre a
importância do mitigado princípio de tipicidade das formas processuais.
Esta perspetiva, que se afigura essencial, torna sensíveis questões como o contraditório
ou a recorribilidade das decisões.
Contraditório
Pedra angular de um processo civil equitativo e justo o princípio do contraditório
consubstancia-se na possibilidade de a parte participar ativamente em todo o processo,
exprimindo-se nos planos da alegação, da prova e do direito (Freitas, 2013, p. 124 e ss).
Considerando o núcleo fulcral da gestão processual que a adequação formal constitui, são
especialmente sensíveis neste ponto as questões relacionadas com o contraditório,
especialmente quando a intervenção do juiz seja oficiosa.
Embora o artigo 547.º do CPC não refira expressamente a necessidade de audição das
partes, a mesma resulta do princípio geral do artigo 3.º/3 que aliás é retomado no artigo 6.º,
n.º 1, IIª parte.
Recorribilidade
Porque se a recorribilidade genérica pode bloquear o processo, postergando a almejada
celeridade, a irrecorribilidade demasiado ampla é o húmus ideal para o desenvolvimento do
vírus autoritário para que adverte (Mendonça, 2007)23.
É certo que como defende (Geraldes, s.d.), a recorribilidade pode demorar o processo.
Mas, como o refere também, há que ponderar os valores envolvidos e conflituais.
Embora não haja em processo civil um direito constitucional ao recurso, a especial
delicadeza das questões que podem ser convocadas em sede de gestão processual pode
aconselhar seja estabelecida a recorribilidade das decisões, tanto quanto a eficácia e a
eficiência, no estrito sentido da duração, a desaconselham.
23
Com uma impressiva metáfora que não resistimos a transcrever: «No final do século XIX um vírus infectou
o processo civil. Nem todos os processos sucumbiram, mas todos foram, de alguma forma, por ele afectados.
A comunidade científica deu-lhe o nome de «vírus autoritário». (…) O vírus provocava sintomas curiosos
entre as suas vítimas. Estas começavam por afirmar que o processo servia não para tutelar os direitos
subjectivos e os interesses legítimos dos particulares, mas para restaurar a norma material e o dirito
objectivo; acrescentavam, consequentemente, que o processo não servia as partes, mas pelo contrário eram
estas que o serviam; os juízes sentiam-se ungidos por uma força estranha que os impelia não tanto a dirimir
os concretos conflitos entre os seus concidadãos, mas a querer fazer justiça entre os homens».
47
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
O nosso legislador tomou posição nos termos constantes da norma do artigo 630.º/2 do
CPC que estatui serem irrecorríveis as decisões de agilização e simplificação processuais
previstas no artigo 6.º/1 e as decisões de adequação formal previstas no artigo 547.º.
(Freitas, 2013, p. 231 e ss) defende embora que «a norma do art. 630-2 talvez deva, por
isso, ser racionalmente interpretada no sentido de só excluir o recurso autónomo de apelação
das decisões de gestão processual, que não sejam de mero expediente (…), deixando aberta a
possibilidade da sua impugnação com a sentença final, nos termos do art. 644-3. Suscetíveis,
pelo contrário, de apelação autónoma (cf. art. 644-2-i, bem como o art. 644-2-d) são as
decisões que contendam com os princípios do contraditório ou da igualdade ou com as normas
que regulam a introdução dos factos no processo e a admissibilidade dos meios probatórios».
Dir-se-ia que a salvaguarda de recorribilidade quando violados os princípios que a norma
indica nos levaria a resistir ao “vírus”. Embora se afigure que essas melhor seriam questões de
procedência do recurso do que de admissibilidade, parece-nos que mesmo assim pode não
estar salvaguardado o afastamento do “autoritarismo”24.
Afigura-se-nos que as decisões de adequação formal do artigo 547 ( e as de agilização
processual do 6/1?) têm uma dupla vertente: a opção pela adequação formal ou agilização
processual e a conformação processual mediante a indicação de uma tramitação alternativa.
Vertentes que exprimem decisões diferentes: a decisão de inadequação das formas típicas e
de necessidade da adequação formal e a decisão sobre a forma a aplicar.
Qual destas decisões é declarada irrecorrível pelo artigo 630.º/2: ambas ou apenas uma
delas? É possível interpretar a norma no sentido de que apenas a decisão sobre a tramitação é
irrecorrível, sendo recorrível a decisão que opta pela adequação formal25 justificando a
inadequação das formas típicas?26
24
(Marinoni, 2006) adverte para a importância das questões relacionadas com a fundamentação e a
sindicância das decisões em caso de adequação formal: «as normas processuais abertas não apenas
conferem maior poder para a utilização dos instrumentos processuais, como também outorgam ao juiz o
dever de demonstrar a idoneidade do seu uso, em vista da obviedade de que todo poder deve ser exercido de
maneira legítima». Continuando adiante: «a ampliação do poder de execução do juiz, ocorrida para dar
maior efetividade à tutela dos direitos, possui, como contrapartida, a necessidade de que o controle da sua
atividade seja feita a partir da compreensão do significado das tutelas no plano do direito material, das
regras da adequação e da necessidade e mediante o seu indispensável complemento, a justificação judicial.
Em outros termos: pelo fato de o juiz ter poder para a determinação da melhor maneira de efetivação da
tutela, exige-se dele, por conseqüência, a adequada justificação das suas escolhas. Nesse sentido se pode
dizer que a justificativa é a outra face do incremento do poder do juiz».
25
Em contrário parece pronunciar-se (Brito, 1997, p. 69) ao referir: «a decisão do juiz de adequação é
sindicável, não quanto à decisão sobre se deve adequar ou não quando o faça oficiosamente, mas quando
48
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
decida adequar, o conteúdo positivo da decisão é susceptível de recurso». Embora se pronuncie num quadro
legal em que inexistia norma como a do artigo 630.º do CPC.
26
«A justificação, obedecendo a esses critérios, dá às partes a possibilidade de controle da decisão
jurisdicional. A diferença é a de que, em tais situações, o controle da atividade do juiz é muito mais complexa
e sofisticada do que aquela que ocorria com base no princípio da tipicidade, quando o juiz apenas podia usar
os instrumentos processuais definidos na lei. Mas essa mudança de forma de pensar o controle jurisdicional
é apenas reflexo da necessidade de se dar maior poder ao juiz – em parte a ele já entregue pelo próprio
legislador ao fixar as normas abertas – e da transformação do próprio conceito de direito, que submete a
compreensão da lei aos direitos fundamentais» (Marinoni, 2006).
27
A que se refere (Freitas, 2013).
28
(Schwarzer & Hirsch, 2013, p. 195)
49
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
não é um bom exemplo); adequação de prazos dos atos mediante “negociação” com as partes
(ressalvando invocações de indefesa ou de prejuízo da defesa em razão da exiguidade dos
prazos). Parecem maus exemplos de rigidez inadequada à gestão processual o recurso
frequente à fixação de prazos legais quando os mesmos poderiam ser fixados pelo juiz de
modo mais adequado ao caso concreto v.g. artigos 654.º/1 e 655.º/1.
50
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
Audiência Prévia
Preparação: da conciliação; identificação dos pressupostos em falta (decisão ou sanação);
identificação das deficiências fácticas; identificação dos temas “destacáveis” (prescrições;
prova legal) que possam ser conhecidos mediante produção de prova em audiência prévia
(com ou sem adequação formal); conhecimento de exceção ou mérito; identificação dos meios
probatórios adequados; temas da prova.
Despacho regulador:
Indicação dos intervenientes;
Indicação da ordem de trabalhos;
Indicação do modo como se perspetiva a realização da audiência prévia concretamente a
indicação do modo como será feita a enunciação dos temas da prova: debate e organização de
facto sem guião; proposta escrita remetida com o despacho; proposta escrita apresentada no
momento; debate e redação ulterior; pedido de propostas no despacho ou na audiência, etc.;
Indicação quanto a antecipação de produção de prova v.g tomada de depoimento de
parte nos termos do artigo 546.º/3 e da possibilidade de conhecer exceção ou mérito;
Indicação da necessidade de adequação formal (audição, proposta, fixação).
Calendarização: data e agenda da audiência (início e termos de cada sessão);
requerimentos passíveis de apresentação em julgamento; o tempo de inquirição de cada
testemunha; o tempo das alegações.
Audiência de julgamento
Cumprimento da programação estabelecida
Indicação a final da data previsível da prolação da sentença
3. A provimentação
51
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
Perspetiva da aprendizagem
A formalização dos procedimentos permite a transmissão do saber prático que é
elemento essencial de geração de conhecimento da “organização”.
29
(Lopes, 2010, p. 141).
30
Vejam-se por exemplo as questões ligadas á eficiência na gestão desses recursos que também envolve as
dimensões financeiras dos mesmos . A título de exemplo, o apelo à eficiência na sua dimensão diretamente
52
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
económica em (Schwarzer & Hirsch, 2013) e no programa “Justice judiciaire” introduzido pela lei francesa de
enquadramento financeiro de 2001, a “Loi organique des lois de finances” (LOLF).
Esta lei veio impor na administração pública e no sistema de justiça, por via orçamental, a perspetiva de
transpor para o setor público os métodos tradicionalmente utilizados no setor lucrativo da economia,
chamando a atenção para a dimensão económica do Estado e para a necessidade de introduzir exigências
de eficiência na utilização dos recursos e na dispensa dos serviços.
«No plano económico, a LOLF introduziu as finanças públicas numa nova era. Anteriormente, os progressos
do direito faziam-se através do formalismo e dos processos com uma primeira preocupação de assegurar os
princípios de apresentação do orçamento, o conhecimento efetivo das operações pela apresentação
transparente de contas e uma execução regular. Entrámos numa segunda era quando, no século XX se
decidiu utilizar o orçamento como instrumento de regulação da economia nacional, função apresentada
como determinante. No fim do século, quando o intervencionismo orçamental se mostrou ineficaz face às
crises económicas e sociais, impôs-se o facto de que as pessoas públicas, incluindo o estado, devem respeitar
as leis fundamentais da economia, nomeadamente demonstrando a sua eficiência, o que exige que lhes
sejam aplicados os meios de gestão já consagrados. Esta é a contribuição da LOLF» (Hertzog, 2006, p. 16).
O mesmo autor, referindo exatamente as questões da gestão pública explicita: «face ao fracasso das
instituições públicas só há dois remédios: ou a privatização ou a reforma. (…) A LOLF é um texto de rutura,
não porque rejeite as antigas finalidades – regularidade das operações e utilização económica do orçamento
– mas porque introduz uma nova finalidade no coração do direito orçamental: melhorar o desempenho do
estado. (…) A LOLF coloca, doravante, o processo orçamental, no seu conjunto, sob tensão para que a
produção pública atinja melhores resultados e os diferentes agentes sejam colocados em situação de prestar
atenção sobretudo a estes novos objetivos» (Hertzog, 2006, p. 30).
Introduzindo estes novos elementos de avaliação e melhoria do desempenho, a LOLF estabelece diversas
missões do estado, cuja organização não se abordará, pese embora tenha sido imensamente debatida . Uma
dessas missões refere-se ao sistema judicial sob a denominação “Programme 166 – Justice Judiciaire”,
englobando os Tribunais Judiciais, a Escola Nacional de Oficiais de Justiça e o Registo Criminal.
O programa está incluído no Ministério da Justiça, o responsável do programa é o diretor dos serviços
judiciários, concretizando-se pela definição de objetivos de longo prazo, com indicadores de medida
definidos a nível do programa.
Não é sem perplexidade que esta abordagem «económica» surge em matéria de justiça, por exemplo no
confronto entre o objetivo de controlar as despesas processuais e o direito de prescrever os meios de
investigação em que as mesmas são assumidas, direito/dever dos magistrados titulares da investigação ou o
indicador do provimento de recursos em relação com a qualidade das decisões.
Referimo-nos em breve apontamento ao regime sem pesquisa detalhada da sua aplicação na área da
Justiça, que a natureza do texto não permite, por o entendermos muito relevante na concretização da
ligação financeira da definição de objetivos e de avaliação do desempenho, com as questões que levanta,
nomeadamente em confronto com a independência dos tribunais e as consequências na determinação
oficiosa de provas dispendiosas.
Referindo-se ao modo de definição de objetivos diz (Serverin, 2011, p. 42): «o modelo produtivista roda no
vazio: trata-se de proferir cada vez mais depressa mais decisões sem que se saiba a que pedidos elas
53
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
Mas a gestão processual a que o juiz está obrigado não é apenas a gestão do processo
individual31. O juiz está também obrigado à gestão processual do conjunto dos seus processos,
dos processos que lhe estão distribuídos. Cada processo convive com os outros e os direitos
das partes de um processo convivem com os direitos das partes em cada um dos demais.
Dizendo de outro modo, entre os processos de um mesmo juiz, de um mesmo Juízo ou de uma
mesma comarca, verifica-se uma concorrência e interdependência de recursos afetos32.
O que apela para a gestão de um conjunto de processos33 (mais ou menos vasto e com
critérios de afetação por órgão jurisdicional, por matéria ou por território). Apela também para
a complementaridade das competências pois a gestão processual é cometida ao juiz em
exercício de funções jurisdicionais – o titular do processo –, mas também aos juízes em
exercício de funções de gestão – o juiz presidente e o juiz coordenador34.
respeitam nem a quem são destinadas. Pelo menos no plano dos indicadores da justiça [referindo-se aos da
LOLF], a lógica gestionária levou a melhor sobre a da missão dos tribunais».
31
A esse respeito veja-se o Regulamento de Inspecções Judiciais nomeadamente os artigos 1.º e 13.º que se
transcrevem na parte pertinente: Artigo 1.º «1— Tendo em vista contribuir para a melhoria da qualidade do
sistema de justiça, com especial incidência nas áreas da eficiência e da racionalização das práticas
jurisdicionais, administrativas e de gestão, os serviços de inspecção do Conselho Superior da Magistratura
têm as seguintes atribuições: (…) f) Facultar aos juízes todos os elementos para uma reflexão dos próprios
quanto à correcção dos procedimentos anteriormente adoptados, tendo em vista o aperfeiçoamento e
uniformização dos serviços judiciais, pondo-os ao corrente das práticas administrativas e de gestão, ainda
que processuais, tidas por inadequadas à obtenção de uma mais eficiente e célere administração da justiça.
32
«A evolução para um modelo gestionário, como o da “qualidade total” consagrado pela Fundação
Europeia para a Qualidade de Gestão (EFQM) e tido como modelo de referência para as reformas das
administrações públicas, que assenta na liderança, na gestão das pessoas, no desenvolvimento do seu
potencial, na definição clara das políticas e estratégias organizacionais, na gestão das parcerias e dos
recursos internos, na eficiência dos procedimentos, nos resultados como indicadores de satisfação e do seu
impacto na sociedade, determinará que os profissionais que detêm a responsabilidade na função primária
da organização tribunal, ou sejam os juízes, tenham maiores responsabilidades (liderança) organizativas»
(Mendes, 2010, p. 113).
33
«A gestão processual não pode hoje ser entendida de forma desgarrada, importando contextualiza-la
como parte integrante da gestão dos tribunais (court management)» (Matos, 2010, p. 135).
34
Certo é que esta actuação mais ou menos racional ou mais ou menos condicionada do juiz, o que envolve
também outras ponderações de cariz emocional e simbólico, terá de ser necessariamente compatibilizada
com um esquema de gestão e administração das tarefas jurisdicionais, tanto por via da consagração de
mecanismos de integração sistemática de administração dos tribunais, do nível macro para o micro, como
pela via da disponibilização de métodos de gestão processual, de auxílio funcional e de outro instrumental
técnico e material que possibilite solucionar os problemas suscitados, mormente com a sobrependência. (…)
Mas, por outro lado, a complexificação das tarefas a cargo dos tribunais, o aumento das pendências e o
acréscimo do número dos juízes e dos funcionários cria a necessidade, por si própria, de implementar
54
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
estruturas organizacionais complexas, as quais, de maneira inevitável, influem no modo pelo qual as
decisões jurisdicionais se vão conformar» (COELHO, 2008, pp. 102-103)
35
Maxime artigo 88º da NLOFTJ e 34º, nº 2, do DL 28/09.
36
(GOMES coord, 2010)
37
V.g. artigo 203º, da Constituição da República Portuguesa (CRP). Valores que são dos dos tribunais e dos
juízes.
38
Está obviamente excluída qualquer intervenção do juiz presidente na tramitação de processos concretos
da competência única do juiz titular. Utilizar-se-á a expressão «gestão processual macro» para designar a
atividade de organização da tramitação do conjunto de processos de um tribunal ou unidade orgânica,
excluindo aquela dimensão de gestão processual do caso.
55
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
39
Embora numa amálgama de competências descritas no seu artigo 88º por vezes com sistematização
pouco cuidada, por exemplo ao incluir entre as competências de representação e direção aspetos
claramente de gestão processual – v.g. alíneas a) a d), do nº 2.
56
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
40
«La distinction entre les processus et les procédures permettrait de différencier ce qui relève de
l’indépendance de la justice, essentiellement sur le plan juridictionnel, et ce qui n’en relève pas, c’est-à-dire
les éléments d’administration de la justice ou de gestion. La distinction n’est pas aisée à établir puisqu’elle
conduit à distinguer clairement autorité judiciaire constitutionnelle et service public de la justice. Mais c’est
probablement une piste pour parvenir à une certaine qualité de la justice ; la qualité des decisions
juridictionnelles suppose un environnement global permettant de rendre des décisions dans des conditions
matérielles et intellectuelles sereines. Une gestion sereine, cohérente et lisible d’une juridiction permet
d’organiser de manière adaptée le travail qui s’y effectue. Le management judiciaire paraît donc bien
constituer un pré-requis de la qualité de la décision juridictionnelle» (Pauliat, 2007, p. 131).
41
Um dos instrumentos privilegiados de gestão do tribunal e de gestão processual têm sido as reuniões de
planeamento. Envolvendo juízes e funcionários permitem o conhecimento direto dos problemas, o
diagnóstico das causas e a intervenção dos diferentes decisores.
As reuniões de planeamento são: a) ordinárias com periodicidade trimestral, por secções, para avaliação do
estado dos serviços e da execução do planeamento e para diagnóstico de eventuais dificuldades; b)
extraordinárias, por sugestão do juiz presidente, dos juízes das secções ou dos escrivães de direito, para
resolução de problemas concretos.
Nas reuniões participam: a) nas reuniões ordinárias todos os funcionários da secção e os Juízes que
entendam participar; b) nas extraordinárias, segundo a natureza do problema, apenas os juízes, apenas os
funcionários (todos ou apenas os escrivães de direito), os juízes e os funcionários.
As reuniões de planeamento são documentadas em atas das quais constam: a) a questão a tratar; b) o
debate da questão; c) as decisões da juiz presidente sobre a questão em debate; d) os provimentos dos
juízes da secção; e) as deliberações conjuntas da juiz presidente e dos juízes da secção; f) as propostas ao
CSM, à DGAJ ou ao IGFIJ.
57
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
Estes dados deviam incidir sobre o estado dos processos na perspetiva dos atos a praticar,
uma vez que a intervenção de gestão implicava a definição de uma estratégia global para a
prática daqueles atos que fosse explícita, coerente e équa, que possibilitasse a definição
concreta de objetivos. Permitindo, nomeadamente, a responsabilidade por essa estratégia
face aos cidadãos e aos diversos órgãos de governação do judiciário e estabelecê-la com
critérios de independência e imparcialidade próprios dos juízes.
Em reuniões envolvendo os escrivães de direito, foram sendo definidos, a partir da
experiência empírica, os principais parâmetros a ter em atenção para a agregação dos atos,
acabando por estabelecer-se que seriam considerados: os «prazos» – processos que aguardam
o decurso de um prazo para a prática de um ato pela secção –, as «conclusões/vistas» –
processos que aguardam despacho do juiz ou promoção do magistrado do Ministério Público
42
A restrição da análise ao aspeto da gestão processual nos termos delimitados no texto não ignora que as
questões da qualidade do serviço de justiça são de muito maior amplitude do que a da organização da
tramitação dos processos e, bem assim, que a organização da tramitação envolve também aspetos
relacionado com o trabalho dos juízes e dos magistrados do Ministério Público.
43
V. g. as competências de definição de critérios e de alocação de recursos humanos do juiz presidente e as
competências jurisdicionais dos restantes juízes que envolvem a direção funcional dos funcionários - artigo
25º, do Decreto-Lei 28/09, de 28 de Janeiro.
44
Artigo 88º , nº 4 e als a) a d) do nº 2.
45
De outros pontos de vista foi implementado o sistema de gestão, nomeadamente administrativo, de
gestão de recursos humanos, financeiros e materiais, de representação e contacto com entidades
exteriores.
58
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
ou que para tal devem ser apresentados pela secção –, os «despachos» – processos em que foi
proferido despacho pelo juiz (em sentido amplo, englobando as decisões finais, intercalares e
os despachos de mero expediente) que deve ser cumprido pela secção –, o «papel»
designação tradicional dada a todas as comunicações trazidas ao processo por entidades
externas (partes, advogados, outros) –, e a conta/contabilidade – atos de contagem do
processo em sentido estrito e a todas as operações subsequentes relacionadas com a receção,
pagamento ou destino de verbas.
Nesta fase tornou-se evidente que em secções com grande número de processos essa
informação não era possível, em secções com menor número de processos essa informação
não era acessível a todos os que dela necessitavam; em todos os casos a informação assim
obtida não era atual, completa e normalizada quanto aos atos processuais a praticar e aos
prazos respetivos46.
Em conclusão, não havia um meio de obter informação de gestão estruturada,
permanente e de pesquisa rápida sobre os atos a praticar pelas secções, informação
indispensável à organização eficiente do trabalho das secções47.
46
Na verdade, a informação disponível resultava do recurso a dados dispersos e parciais do sistema
informático em uso nos tribunais, ao conhecimento pessoal dos funcionários e à consulta manual processo a
processo.
47
O sistema informático Habilus é um repositório de dados que não está organizado para as necessidades
específicas de gestão: contém a informação relevante mas não é possível aceder-lhe de forma estruturada.
O caminho deverá ser, aliás, o de um sistema de informação com classificação (meta-dados) e não o sistema
manual que foi encontrado na comarca que é apenas «melhor do que nada».
48
O sistema está descrito nos termos que constam do Manual e Procedimentos operativos elaborados na
comarca em Junho de 2011 (Anexo I). Esta descrição decorre da ideia inicial da Escrivã de Direito Luísa
Coelho e incorpora os desenvolvimento dessa ideia ocorridos sob o seu impulso, da sua secção e,
posteriormente, de muitos outros funcionários da comarca, apoiado e incentivado pelos órgãos de gestão,
sendo a implementação e extensão a toda a comarca resultado de decisão da presidência.
49
O sistema proposto pela Escrivã do Juízo - Luísa Coelho - possibilita a obtenção daquela informação a todo
o momento e não apenas num momento fixo no tempo e consiste na utilização de um dos campos do
Habilus para anotar em cada processo um código correspondente ao ato processual a praticar.
59
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
implementação. Não relevando nesta sede a descrição do processo50, importa apenas referir
que o mesmo possibilita conhecer quais os atos a praticar em cada um dos processos
pendentes, qual a “entidade” a quem cabe a prática desses atos e qual a data em que os
mesmos devem ser praticados. Permite ainda a consulta integrada ou por conjunto de
processos51.
A fase de operação, após a indicada codificação, consiste na agregação dos dados52 de
modo a permitir aos juízes de direito (juiz presidente e juízes titulares), em diálogo com a
secção e na ponderação da capacidade de trabalho instalada, efetuar a gestão das prioridades,
o planeamento do trabalho e a definição dos objetivos, de modo adaptado (por isso diverso)
consoante as unidades orgânicas.
De forma genérica, todas as unidades orgânicas elaboram mensalmente os mapas de
53
atos a praticar em relação com as respetivas datas de execução, os quais são analisados pelos
juízes (presidente e em exercício de funções jurisdicionais).
Com base nos mapas de atos, os juízes, em diálogo com os funcionários, planeiam o
trabalho a efetuar e definem prioridades, podendo fazê-lo de forma sistemática – originando
os mapas de execução que o escrivão de direito concretiza efetuando a distribuição das tarefas
pelos funcionários do Juízo ou, de forma mais genérica, pela identificação do planeamento de
conclusões e da definição e objetivos concretizados a cada secção de processos.
O planeamento descrito corresponde ao sistema total mas assume aspetos diversos (com
supressão ou alteração de passos consoante as unidades orgânicas, de modo a que se possa
adequar ao seu estado, recursos e jurisdição), sendo sempre estabelecido em reuniões de
planeamento com os juízes e os funcionários.
50
Esse caminho está descrito no fluxograma que constitui a Ilustração 2. Como já referimos, o caminho
percorrido não foi previamente construído nos termos que constam do fluxograma descritivo. Porém, a
ferramenta em causa permite salientar os diversos pontos nevrálgicos do percurso.
Como resulta do fluxograma, ratificando a experiência vivida, os pontos nevrálgicos relacionaram-se com os
recursos humanos que implicaram a articulação de decisões de diversas entidades exteriores à comarca.
Também a redução a um fluxograma do percurso de determinação dos códigos permite salientar os
requisitos a ter em conta e os aspetos mais significativos da definição dos mesmos. A representação gráfica
segundo as regras da ferramenta permite evidenciar questões que não foram patentes desde o início e
provocaram a necessidade de diversas alterações dos códigos inicialmente fixados (letras para os regimes
legais; agregação de indicadores, etc).
51
Cf. Ilustração 8.
52
Elaboração dos mapas de atos (Ilustração 7).
53
Segundo o procedimento operativo definido em anexo ao mencionado Manual (PO1.MA.ED).
60
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
A gestão prosseguida envolve que a situação seja seguida mensalmente pela presidência e
analisada com frequência diversa em reuniões envolvendo todos os juízes e funcionários das
unidades orgânicas.
No fim do período de planeamento, a execução é analisada em reunião conjunta,
originando o novo planeamento que tem em conta a avaliação feita e os novos mapas de
atos54. As situações críticas detetadas são analisadas autonomamente, também em reuniões
de planeamento, implicando a tomada de medidas a partir da análise das suas causas55.
O sistema descrito foi operacionalizado sem qualquer quadro teórico que lhe desse
substrato ou que permitisse a sua avaliação ou crítica, correspondendo antes a uma resposta
empírica à oportunidade gerada pela mudança de regime legal, às dificuldades de resposta
adequada ao movimento processual e ao decurso da sua execução na vida quotidiana da
comarca.
Correspondeu à aceitação da necessidade de introdução de um modelo gestionário, à
opção central pela gestão processual, ao reconhecimento de que a mera gestão intuitiva,
fundada na experiência e nas tradições das diversas profissões judiciárias envolvidas (juízes
com pouca intervenção na gestão das secções e nenhuma na dos recursos humanos e
escrivães mais ou menos autónomos gerindo com base num conhecimento pessoal próprio e
pouco transmissível), não era adequada à resposta a dar aos cidadãos e à comunidade, sendo
necessária mas não suficiente.
A opção foi aliar aquele conhecimento tradicional e intuitivo à obtenção de informação
factual tanto quanto possível atual e completa, de modo a gerar um conhecimento e
possibilitar a gestão orientada para a tramitação dos processos de forma uniforme, com
tratamento équo das diversas situações e com definição de critérios e responsabilidades pela
sua escolha, definição centrada nos juízes enquanto titulares do órgão de soberania tribunal,
integrante do poder judicial, coordenado e assumido pela presidência do tribunal, com a
participação ativa de todos os funcionários, não só na execução mas também no debate
prévio.
54
São também tidas em conta as reclamações recebidas dos cidadãos ou o que decorre das reuniões da
Comissão Permanente ou do Conselho Geral do Conselho de Comarca. Apesar de ter sido elaborado um
questionário de satisfação na comarca, o mesmo restringe-se às testemunhas, recolhe poucos contributos e
não foi ainda tratado de forma sistemática de acordo com os valores do sistema a considerar.
55
V.g. alteração da alocação de recursos humanos, materiais ou de equipamento, a afetação de
cumprimento de processos a outras unidades orgânicas, a alteração da divisão de trabalho na secção, a
análise dos processos de trabalho para eliminação de atividades redundantes ou inúteis, medidas que
posteriormente são acompanhadas.
61
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
Como referimos, o regime legal da NLOFTJ centra o exercício das novas competências de
gestão na “qualidade do serviço de justiça prestado aos cidadãos” convocando explicitamente
as preocupações da qualidade para o âmago da gestão dos tribunais. Não é objeto deste texto
a delimitação do conceito de qualidade no contexto dos tribunais ou a dilucidação dos valores
e princípios a ter em conta, sendo certo que a definição concreta da atividade central de
gestão processual nos termos que se descreveram é extremamente limitada. A limitação não
decorre da opção por uma visão restritiva do âmbito da qualidade no judiciário, mas de uma
opção prática para solução de uma questão urgente: os atrasos nos processos e a inexistência
de critérios gerais de prioridades e calendário que pudessem ser expostos aos
cidadãos/utentes e sujeitos a apreciação e controlo externos56.
A consideração da qualidade como uma experiência global não está arredada da concreta
perspetiva de gestão, concentrando-se por opção de otimização em torno da gestão
processual macro, sem descurar aspetos como a gestão de recursos e administrativa, sendo
que uma perspetiva holística apenas seria possível num quadro coerente de política pública,
em concreto inexistente, incontrolável ao nível a que se situa a experiência, e na definição
global de indicadores de medida e de acesso a dados necessários à implementação desses
indicadores57.
O caso prático com que a comarca se defrontou inicialmente isolou um problema como
constituindo um fator de não qualidade – os atrasos e a inexistência de critérios uniformes e
équos na tramitação processual nessas circunstâncias de atraso – e elegeu-o como o problema
central a debelar.
Este objetivo é um objetivo geral dos judiciários de todos os países (artigo 6º da CEDH)
estando descrito como tal em instrumentos diversos58. Embora seja um objetivo limitado, é
central59, sendo certo que a decisão atempada é relevante em termos de confiança no sistema
e de incentivo à procura e viabilidade de acesso. Por outro lado, a ênfase dada não se ficou
56
Não tem essas características a gestão atomista por cada escrivão, já mencionada, que é a corrente nos
tribunais portugueses, não possibilitando igualdade de critérios, acrescendo que a intervenção dos juízes
permite caracterizar as opções de gestão da tramitação dos processos de características de independência e
imparcialidade que devem ser as notas características do sistema como um todo e não apenas na decisão
concreta.
57
Esta necessidade vem já explicitada, mesmo em termos da sua operacionalização, na LOSJ – artigos 90.º e
91.º (objetivos estratégicos e processuais) – devendo a gestão processual cometida ao juiz presidente
observá-los, como estatui o artigo 94.º, n.º 4.
58
(COURTS, 2005) medida 3.
59
(GOMES, 2011) maxime 33-46.
62
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
pela mera consideração do tempo dos processos, antes a relacionou com a igualdade de
tratamento das situações idênticas, obstando a discricionariedade ou aleatoriedade60.
Estas preocupações práticas encontram assim enquadramento nas preocupações teóricas
com a qualidade do judiciário, embora não as esgotem e sejam restritivas face a uma
consideração mais abrangente que teve o seu lugar na experiência na sua completude, que
não é possível abordar neste âmbito, relacionada com a previsibilidade das decisões e com a
melhoria de procedimentos61.
60
Critérios diversos decorrentes não de qualquer ilegítima vontade de assim agir, mas da inexistência de
padrões informativos e conformadores que possibilitassem a equidade de tratamento.
61
V.g. a preocupação com uniformização de procedimentos; com adoção de critérios idênticos pelos
Magistrados do Ministério Público em determinadas situações; com a abordagem de decisões de
competência e das divergências entre juízes da comarca na sua decisão (sem intervenção de órgãos de
gestão mas tão somente dos próprios e sem carácter vinculativo); com a compatibilização de agendas dos
juízes com a capacidade de trabalho da secção e com a capacidade das salas de audiência estabelecendo
regras de agendamento; com a definição de níveis mínimos de marcação de diligências pelos juízes, etc.
62
No relatório de Dezembro de 2009 os dados referidos, recolhidos do Habilus nos termos nele referidos e
com ressalva das inexactidões a que a transição deu lugar, são os seguintes. «A pendência global do Juízo é
de 6820 processos, sendo 3150 sem decisão e 3670 com decisão. Dos processos pendentes sem decisão 780
processos têm mais de cinco anos e 2370 menos de cinco anos».
63
Pese embora o seu atual desenho na LOSJ (artigo 95.º) seja de incidência territorial e não material o que
lhe retira, a nosso, ver, muitas das suas potencialidades.
63
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
No caso deste Juízo, a provimentação teve caráter residual por ter sido privilegiada a
tomada de decisões colegiais em reuniões de planeamento que, em muitos casos, tiveram na
prática a mesma utilidade64.
64
Ilustração 5.
65
Tem-se em conta o período de 14 de Abril de 2009 a 31 de Agosto de 2012.
64
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65
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71
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IV) CONCLUSÕES
72
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ANEXOS
73
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74
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75
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76
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Fonte: elaboração própria a partir dos dados das atas de reuniões de planeamento
77
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Fonte: Dados que resultaram da consulta mês a mês do sistema Habilus, sem
consolidação e apenas como informação para a gestão
78
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Gabinete
Despachos e agendas
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Contabilidade e outros
80
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos
81
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23 de janeiro de 2014
84
Videogravação da comunicação
Vídeo 1 Vídeo 2
85
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
A gestão do processo e a gestão dos processos
23 de Janeiro de 2014
ÍNDICE
II – A Gestão do Processo
IV – Conclusões
2
I – GESTÃO PROCESSUAL: Dimensões
3
Em suma, dois conjuntos significativos de normas se perfilam:
4
A atual preocupação com a gestão processual nos Judiciários corresponde a uma nova
maneira de perspetivar a “eterna” preocupação: a qualidade da decisão judicial.
5
O lugar da gestão processual – exigência de processo equitativo e justo decidido
em prazo razoável, previsível e com eficiência – convoca aquelas duas grandes
áreas de densificação do dever de gestão processual:
- a da gestão do processo
- e a da gestão dos processos
6
II – A GESTÃO DO PROCESSO
7
A gestão do processo não é uma novidade. A gestão enquanto estratégia de
abordagem e solução de problemas, questões, situações de vida, é algo inerente à
ação humana.
Estratégias das partes, desde logo, estratégias do juiz, estratégias das secções,
estratégias das testemunhas, dos peritos, das instituições que nele intervêm (v.g.
Segurança Social, Direcção-Geral de Reinserção Social, Instituto de Medicina Legal,
etc).
8
A estratégia do tribunal / organização desenvolveu-se muito em perspetivas
desconexas e burocráticas, alheando-se da finalidade do processo, de cada processo.
O que não tem principalmente que ver com a malevolência dos intervenientes, mas
com “pecados sociais” ou “pecados organizacionais” relacionados com a ausência de
lideranças, com o anacronismo dos critérios de avaliação do desempenho individual,
com a ausência de critérios de avaliação de desempenho organizacional, com errática
e desintegrada afetação de recursos.
9
A gestão do juiz tendia a gerir o despacho dos processos (muitos ou poucos) que lhe
eram apresentados pela secção com critérios determinados, mais ou menos
explicitamente, pelo Escrivão.
O que era potenciado por uma manifesta deficiência de informação quando o acervo
processual fosse de dimensão.
O que abre como linha de reflexão a ligação entre a gestão processual e a obtenção de
dados e de informação, que retomaremos a propósito da gestão de um conjunto de
processos.
10
As reformas organizativas do século XXI continuam a tentar contrariar esta tendência,
numa deriva inovatória/revogatória que ainda não cessou e que nem sempre resulta de
reflexão e experiência.
As leis processuais caminham, com idêntico propósito, para o paradigma do juiz ativo,
efetivo gestor do processo, embora também com hesitações e contradições.
É esta procura do juiz ativo que expressam as normas do artigo 265.º-A, do CPC na
redação de 95/96 (CPC 95), do artigo 2.º do Decreto-Lei 108/2006 (RPCE) e do artigo 6.º
do CPC na redação da Lei 41/2013 (CPC 2013).
11
O atual artigo 6.º do CPC é herdeiro desta visão reportando-se à gestão de cada
processo pelo juiz que dele é titular, tanto genericamente, em termos de atitude do
juiz perante o processo, como na regulação concreta de determinadas atuações
que o legislador entende exprimirem essa atitude.
12
A gestão processual nasce, assim, colada à adequação formal, confundindo-se
com ela, agregando sobretudo regras de boa utilização das normas processuais.
13
E o CPC estabelece a razão da celeridade.
Fá-lo no final do n.º 1 do artigo 6.º estabelecendo como finalidade «a justa composição
do litígio em prazo razoável».
14
A dimensão de eficiência, aflorada quanto ao uso das normas e à forma dos atos
(artigos 130.º, 131.º e 547.º), perpassa em termos mais vastos o dever de gestão,
alargando-o a dimensões que se reportam à organização e utilização do conjunto dos
recursos disponíveis – humanos, materiais e tecnológicos.
Com o que temos delimitado o dever de gestão processual do juiz enunciado no CPC
2013:
15
A autonomia deste dever de gestão (ou deste dever como gestão) implica
uma abordagem distinta da integração descritiva dos diversos atos
meramente processuais em que se possa exprimir.
O que implica
16
A Gestão processual do processo
Visão
Resolução célere, justa e eficiente do litígio
Missão
Valores
Composição dos litígios
Perspetiva “Partes”:
Perspetiva “Recursos”: - Igualdade (formal e substancial)
- Materiais -Contraditório (resposta e
Perspetiva “Cidadãos”: - Tecnológicos influência)
- Direção ativa - Humanos (Juiz - tempo/juiz, -Responsabilidade e liberdade
- Justiça (verdade material) agenda - e Funcionários) (factos e prova)
- Celeridade (prazo razoável e -Eficiência
previsível)
- Eficiência Perspetiva “Procedimentos”:
- Tempo/processo (previsibilidade,
Perspetiva “Aprendizagem”:
calendarização, gestão dos prazos)
- Etapas críticas (gestão inicial, audiência - Manuais de Boas Práticas
prévia, audiência de julgamento) - Formação funcionários
- Provimentação
- Organização do dossier físico e eletrónico
17
Em suma,
Assim, constitui-se ele próprio critério de aferição da adequação das opções processuais do
legislador, aliado aos critérios que os princípios processuais clássicos constituem.
18
Perspetiva dos “cidadãos”: direção ativa
Ao impor um dever de direção ativa do processo pelo juiz o legislador toma claramente
posição quanto ao modelo de juiz que pretende vigore:
- um modelo de juiz cujos poderes de direção são exercidos não apenas por promoção
das partes (princípio do dispositivo) mas no exercício de iniciativa própria
(princípio do inquisitório).
Mas esta visão de juiz e esta noção de processo não é sem polémica e, diga-se, sem
perigos, assimilada que é a uma visão autoritária do processo de que o nosso CPC por
interposto CPC de 39 seria tributário.
O juiz que “serve a solução” é o juiz do presente, sem prejuízo do notável contributivo
reflexivo dado pelos que se preocupam com o «vírus autoritário»
(Gouveia, 2007)
(Mendonça, 2007)
19
Um juiz/gestor com valores que assim se enumeram de modo exemplificativo:
- Coragem («o juiz deve ter poderes que lhe permitam uma efetiva e ativa gestão
dos procedimentos» (CEPEJ-SATURN, (2013)4) e deve usar os poderes que tem)
- Verdade (na relação com as partes, nomeadamente, quanto ao tempo dos processos
prestando informação correta quanto às causas de desvios e quanto às medidas para as
debelar)
20
Perspetiva das “partes”: contraditório
- da alegação
- da prova
- do direito.
(Freitas, 2013, p. 124 e ss).
21
Perspetiva “Partes”: recorribilidade
O legislador tomou posição nos termos constantes da norma do artigo 630.º/2 do CPC
que estatui serem irrecorríveis as decisões de agilização e simplificação processuais
previstas no artigo 6.º/1 e as decisões de adequação formal previstas no artigo 547.º.
(Freitas, 2013, p. 231 e ss) defende embora que «a norma do art. 630-2 talvez deva, por isso
[risco do exercício arbitrário dos poderes de gestão], ser racionalmente interpretada no
sentido de só excluir o recurso autónomo de apelação das decisões de gestão processual, que
não sejam de mero expediente (…), deixando aberta a possibilidade da sua impugnação com a
sentença final, nos termos do art. 644-3.».
(Marinoni, 2006) adverte para a importância das questões relacionadas com a fundamentação
e a sindicância das decisões em caso de adequação formal: «as normas processuais abertas
não apenas conferem maior poder para a utilização dos instrumentos processuais, como
também outorgam ao juiz o dever de demonstrar a idoneidade do seu uso».
«pelo fato de o juiz ter poder para a determinação da melhor maneira de efetivação da
tutela, exige-se dele, por conseqüência, a adequada justificação das suas escolhas. Nesse
sentido se pode dizer que a justificativa é a outra face do incremento do poder do juiz»
22
Perspetiva “Procedimentos” internos
1. O tempo/processo
Calendarização da lide em concreto nos diversos passos que a compõem e no cuidado em nunca
deixar o processo sem prazo - «em todos os processos deve haver, em cada momento, uma data
fixada para a prática de um ato, o que o levará, então, à atenção do juiz»- a fim de evitar que caia
em “roda-livre”. A calendarização do processo é praticamente impossível fora da adequação
formal que é um instrumento muito pesado; a abundância de prazos que o juiz não pode alterar
são um exemplo de negação da gestão processual.
Gestão dos prazos: fixação de critérios para os casos em que o prazo é marcado pelo juiz,
compatibilização entre os prazos assinados às partes e prazos gerais concretos do processo;
adequação de prazos dos atos mediante “negociação” com as partes (ressalvando invocações de
indefesa ou de prejuízo da defesa em razão da exiguidade dos prazos).
23
2. A identificação das etapas críticas
24
Gestão inicial: Despacho liminar
Esta etapa do processo pode não ter lugar na ação declarativa comum.
A opção a que alude o artigo 590.º/1 deve ser tomada e constitui uma atividade de gestão processual
prévia à existência do processo, a que estaria adequada a provimentação que engloba
Âmbitos diversos:
- orientação da secção
- orientação de auxiliares judiciários como os agentes de execução, os administradores de
insolvência ou os peritos
Atos diversos:
- Autorizações e determinações quanto a prática oficiosa de atos
- Delegações
- Desenho de procedimentos
- Despachos genéricos
- Regulamentos
- Esclarecimentos quanto ao entendimento seguido pelo juiz e instruções para seu
cumprimento
- Disciplina concreta de atos (nomeadamente o controle de citação 226.º/3, sendo certo que
está estabelecido no artigo 162.º/5 um dever de controle genérico pelo juiz presidente)
25
Gestão inicial: Despacho pré-saneador
26
Audiência Prévia
Preparação
- Conciliação
- Identificação dos pressupostos em falta (decisão ou sanação)
- Identificação das deficiências fácticas
- Identificação dos temas “destacáveis” (prescrições; prova legal) que possam ser
conhecidos com/sem produção de prova em audiência prévia
- Identificação das necessidades de adequação formal
- Identificação dos meios probatórios adequados
- Temas da prova
27
Despacho
28
Calendarização e disciplina
29
Audiência de julgamento
- Cumprimento da programação
30
3. A organização do dossier eletrónico e físico
A título de exemplo:
- a organização temática (não parece que tenha cabimento legal, mas seria útil)
31
Perspetiva dos “recursos”
O juiz do processo tem de considerar todos os recursos afetos à atividade administrativa que é
suporte da sua atividade jurisdicional: humanos, materiais e tecnológicos.
Entre os recursos humanos, o do seu próprio tempo, o tempo/juiz, cuja gestão implica a sua
diferenciação e a diferenciação das intervenções, a definição de regras de agendamento, a
organização do apoio da secção e a consideração concreta das capacidades desta enquanto
grupo e individuais.
32
Entre os recursos materiais a disponibilidade de sala de audiência, mas também de
equipamentos de gravação ou vídeo-conferência, de veículos, de digitalizadores, etc.
33
Perspetiva da “aprendizagem”
34
Mas a gestão processual a que o juiz está obrigado não é apenas a gestão do
processo individual mas a do conjunto dos processos que lhe estão distribuídos.
Ora, cada processo convive com os outros e os direitos das partes de um processo
convivem com os direitos das partes em cada um dos demais.
Dizendo de outro modo, entre os processos de um mesmo juiz, de um mesmo Juízo
ou de uma mesma comarca, verifica-se uma concorrência e interdependência de
recursos afetos.
O que apela para a gestão de um conjunto de processos (mais ou menos vasto e com
critérios de afetação por órgão jurisdicional, por matéria ou por território).
35
III – A Gestão do conjunto de Processos
(Tribunal, Unidade Orgânica)
na experiência da Lei 52/2008
36
A alusão que faremos a uma experiência concreta determina se pressuponha um
determinado modelo de gestão, o decorrente da aplicação da Lei 52/2008 (NLOFTJ).
37
A gestão processual cometida ao juiz presidente tem de ser entendida em conjugação com as
competências dos juízes que exercem funções jurisdicionais, centrando-se na gestão e
organização da tramitação do acervo processual no seu conjunto com o parâmetro de
qualidade do serviço de justiça que engloba vertentes muito diferentes do acompanhamento
ou organização do movimento processual.
Mas as competências de gestão processual macro têm a sua fonte nos critérios que enformam
a gestão do processo a que antes nos referimos, o que determina a centralidade das
competências dos juízes em exercício de funções jurisdicionais, sendo as do juiz presidente
de mero facilitador organizacional.
38
Definição do âmbito da Gestão Processual Macro na GLN
Realização de
- Gestão Processual Macro:
reuniões com os
acompanhamento da tramitação dos
Juízes de Direito
Modelo de gestão processos nas unidades orgânicas
sem recurso a
da NLOFTJ - Identificação do principal problema:
qualquer
obtenção de informação exata e de
ferramenta
forma sistematizada
sistematizada
39
Reuniões de planeamento e avaliação
40
As reuniões de planeamento foram documentadas em actas com o seguinte teor:
a) Apresentação da questão
b) Debate
Decisões / c) Decisões da juiz presidente
Deliberações: d) Provimentos dos juízes
e) Deliberações conjuntas dos juízes (presidentes e titulares)
f) Propostas ao CSM, à DGAJ ou ao IGFIJ;
As deliberações constantes das actas eram notificadas aos interessados e o texto das
mesmas disponibilizado na INTRANET da comarca.
41
Informação, planeamento e avaliação
Nesta fase ficou desenhado o método de gestão cujos esboços haviam sido traçados
nas reuniões iniciais com os juízes da comarca:
- informação sobre as UO
42
Gestão processual Macro - Procedimento de organização da tramitação
Início
Plan
Act Do
Codificação estática Plan
Check
Mapas de atos
(segundo os códigos e
as datas)
Reuniões de
planeamento (Juízes
de Direito)
Definição de
Definição de objetivos
prioridades
Mapas de execução
(momento da prática
dos atos/prioridades)
Mapas de tarefas
(Distribuição das
tarefas segundo os
mapas de execução)
43
1
Do
Atos
(oficiosidades,
Papel Atendimento
conclusões / vistas,
diligências
Conclusão da
execução
Atualização da
codificação dos
processo
Codificação dinâmica
Relatório de execução
(dos mapas de atos)
S Objetivos
3
cumpridos?
2
44
3 2
Aumento / Adoção de
Alterações de Afetação Alteração medidas Act
estrutura excecionais
Identificação de ações
preventivas (que evitem a
ocorrência de potenciais erros
– ex. ações de formação)
Identificação de ações de
melhoria
Conclusão da
avaliação
45
Temas das reuniões de planeamento
Fonte: elaboração própria a partir dos dados das atas de reuniões de planeamento
46
Mapa de conclusões GICV
X14 X06
Cls – 285º CPC Cls – fase de decisão
(marcar julgamento ou
decisão)
DATA
E ASSUNTO DECISÕES PROCEDIMENTOS
SUBSCRITORES
2009-05-18 Suporte físico do Impressão dos termos e atos do processo para Conhecimento a órgãos de
Juízes processo além dos considerados na Portaria 114/2008 gestão
(em exercício de
funções Notificação de todos os
jurisdicionais) funcionários
2009-09-08 Suporte físico do Impressão dos termos e atos do processo para Conhecimento a órgãos de
Juízes processo além dos considerados na Portaria 114/2008 gestão
(em exercício de
funções Notificação de todos os
jurisdicionais) funcionários
48
Mapas de atos
Gabinete
Unidade Orgânica Juízo de Grande Instância Cível - 1ª Secção
Ja n e iro Fe ve re iro Ma rç o Ab ril Ma io Ju n h o Ju lh o Ag o s to S e te mb ro O u tu b ro No ve mb roDe z e mb ro
Código Ac to p ro c e s s u a l
< = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s
XX0 Com Conclusão 9 9 6 4
XX1.1 Fase de citação 0 0 0 0
XX1.2 Fase de articulados 1 1 1 0
XX1.3 Fase Pré-saneador/Saneador/AP
13 5 24 17
XX2 Cls – marcação de conferência 1 1 0 0
XX3 Cls – fase de instrução (nomeadamente aguardando relatórios)
1 1 1 1
XX4 Cls – marcar julgamento (ou AP em TE) 1 1 4 4
XX5 Cls – fase de julgamento 0 0 1 1
XX6 Cls – fase de decisão (marcar julgamento ou decisão após relatórios)
0 0 0 0
XX7 Cls - sentença 31 7 23 6
XX8 Cls – fase de recurso (após sentença e antes do trânsito)
5 5 1 1
XX9 Cls – fase de execução de medida 0 0 1 1
XX10 Cls – após trânsito 0 0 0 0
XX11 Cls - Sentença de preceito 0 0 4 4
XX12 Cls – Desistência 0 0 0 0
XX13 Cls - Transacção 0 0 0 0
XX14 Cls – 285º CPC 0 0 0 0
XX15
XX16
XX17 Com Vista 2 2 2 2
XX18 Aguarda assinatura 1 1 0 0
Tota is 65 33 68 41 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
X51* Mafra
X52* Amadora
X53 Processos com arguidos não notificados da sentença
53
IV - Conclusões
54
O dever de gestão processual consagrado no nosso ordenamento
jurídico tem expressão enquanto gestão do processo e enquanto
gestão de um acervo processual.
Estas duas dimensões são vertentes de um mesmo percurso: o da
efetiva gestão do Judiciário pelo juiz, em cada processo e na
organização que em tal tem incidência.
O dever de gestão do processo tem, assim, autonomia face à missão
de aplicação das normas v.g. processuais ao caso concreto e beneficia
de um enquadramento gestionário, embora a sua expressão principal
enquanto gestão do processo seja o uso crítico das normas
processuais.
Gerir o processo implica, dada a interdependência e concorrência de
recursos, a gestão do conjunto de processos e a gestão do tribunal,
convocando o exercício integrado de competências complementares,
com fontes e legitimidades diversas.
55
A experiência concreta da Grande Lisboa Noroeste descrita teve em
atenção apenas o nível da comarca e prescindiu da consideração da
interação com órgãos externos.
Essa experiência isolou um aspeto crítico da qualidade do sistema – a
duração dos processos - e baseou-se no exercício colegial das
competências dos juízes com funções de gestão e dos juízes com
funções jurisdicionais.
Permitiu, por isso, intervenção a diversos níveis de organização do
trabalho e das tarefas e teve como pressuposto a unidade do
tribunal/organização e a instrumentalidade das funções administrativas
face à função jurisdicional.
Permitiu, nomeadamente, estabelecer a estratégia com critérios de
independência e imparcialidade próprios dos juízes e estabelecer a
responsabilidade dos juízes pela gestão, face aos cidadãos e aos diversos
órgãos de governação do judiciário.
56
FIM
57
O Novo Processo Civil – Desafios para o Ministério
Público
[Margarida Paz]
Videogravação da comunicação
Vídeo 1 Vídeo 2
173
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos
sobre problemas colocados pelo CPC de 2013
Sumário:
I – Deficiências formais de actos das partes (art. 146º)
II – Nulidades principais: o novo vício do erro na qualificação do meio processual
(art. 193º/3) e o eventual novo regime da sanabilidade da ineptidão da petição
inicial (art. 186º/3)
III – Nulidades secundárias: o novo regime atinente à recorribilidade das
decisões sobre elas proferidas (art. 630º/2)
IV – Omissão do dever de gestão processual (art. 6º/1):
Constitui uma nulidade secundária?
Em caso afirmativo, em que termos é recorrível a decisão que se
pronuncie sobre a correspondente arguição?
V – Acto de gestão processual (art. 6º/1):
Está sujeito ao regime das nulidades secundárias?
Em que termos é recorrível a decisão de gestão processual?
Reclamação e recurso (art. 593º/3)
VI – Regime das deficiências que afectam o despacho que identifica o objecto do
litígio e enuncia os temas da prova (art. 596º)
VII – Regime das irregularidades da gravação da audiência final ou da audiência
prévia (arts. 155º e 591º/4):
Consubstanciam nulidades secundárias?
Podem ser arguidas em recurso?
São de conhecimento oficioso?
VII – Regime das irregularidades da gravação da audiência final ou da audiência
prévia (arts. 155º e 591º/4):
VIII – Vícios da sentença (arts. 607º e segs.)
177
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
Senhoras e Senhores,
Começo por manifestar a minha satisfação por estar presente nestas Jornadas de
Processo Civil, agradecendo ao Centro de Estudos Judiciários e, em particular, ao seu Director
– Professor Pedro Barbas Homem – o convite que me foi dirigido.
178
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
Ou seja, este erro de qualificação não parece importar a anulação de qualquer acto,
quando seja, como parece ser a regra, conhecido pelo juiz no momento em que é cometido.
Quando não seja conhecido neste momento, parece que o regime será o dos n.ºs 1 e 2, do
artigo 193º (anulam-se apenas os actos que não possam ser aproveitados e sempre com
ressalva das garantias do réu).
É certo que o art. 195º, do CPC de 2013, corresponde ao anterior art. 201º:
“Artigo 195.º
Regras gerais sobre a nulidade dos atos
1 — Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não
admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só
produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir
no exame ou na decisão da causa.
179
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
180
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
O novo CPC indica, no art. 6º, que a gestão processual constitui um dever do juiz e não um
poder discricionário, isto é, que o não uso dos poderes de agilização e simplificação processual
que a lei lhe atribui constitui a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreve,
importando assim uma nulidade processual (cfr. o novo art. 195º, n.º 1, a que já fizemos
referência).
Este entendimento é acentuado pela circunstância de os projectos de um novo CPC de
Setembro de 2012 e Dezembro de 2011 aludirem a um “princípio” e não a um dever, como
agora sucede.
Harmoniza-se com este entendimento a regra que hoje consta expressamente do artigo
590º/4 (e que difere da constante do correspondente artigo 508º/3, do CPC de 1961): o
proferimento de despacho convidando as partes ao suprimento das insuficiências ou
imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada traduz um poder
vinculado do juiz.
Mas, a haver uma nulidade decorrente do não exercício do dever de gestão processual,
qual o seu regime? Haverá recurso da decisão que indefira a arguição dessa nulidade ou não
haverá tal recurso, por a nulidade não contender com os princípios da igualdade ou do
contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios
probatórios (cfr. o art. 630º, n.º 2, do novo CPC, já mencionado)?
Parece que a omissão do dever de gestão processual, uma vez que este dever está
conexionado com a agilização e simplificação processual (não consideramos agora, claro, o
dever de suprimento da falta de pressupostos processuais, previsto no art. 6º/2, do novo CPC;
referimo-nos ao dever de gestão processual em sentido estrito, consagrado no art. 6º/1), não
constituirá, em princípio, uma nulidade, uma vez que a irregularidade não é susceptível de
influir no exame ou na decisão da causa (influi, quanto muito, na celeridade do processo ou na
quantidade ou complexidade dos actos processuais a praticar) e, portanto, não integra a
previsão do art. 195º, n.º 1, do CPC.
Repare-se que esta solução é aplicável mesmo que se considere o dever de gestão
processual como um verdadeiro dever e portanto a omissão do seu exercício como a omissão
de um acto que a lei prescreve.
181
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
182
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
A primeira questão merece resposta afirmativa, embora o problema não seja novo:
pense-se, por exemplo, nos pressupostos de que depende a revista excepcional (art. 672º/1, a)
e b)).
Quanto à segunda questão, parece que deve admitir-se o controlo da observância do
princípio violado em recurso ou das consequências da decisão ao nível da aquisição processual
de factos ou admissibilidade de meios probatórios, mas não que a Relação, aproveitando o
controlo de legalidade que lhe é permitido fazer, aproveite para fazer um controlo de mérito,
isto é, que a Relação faça, ela própria, gestão processual.
Em conclusão: o despacho de gestão processual está sujeito a regras de recorribilidade
mais restritivas que a generalidade das decisões judiciais (art. 630º/2).
Mas se se traduzir num despacho discricionário ou num despacho de mero expediente (o
que não é forçoso suceder!), parece aplicável o art. 630º/1: só será recorrível na parte em que
deve obediência à lei (isto é, na parte em que não é discricionário ou de mero expediente).
Refira-se que a solução do art. 630º/2 – para os despachos de gestão processual que não
possam ser qualificados como discricionários ou de mero expediente, porque se assim for
aplica-se, como se disse, o n.º 1 – parece ter-se ficado a dever à ASJP, que propôs a extensão à
gestão processual e à adequação formal do regime do recurso das decisões sobre as
reclamações de nulidade previsto no art. 195º/4, da Proposta de Lei 113/XII (que esteve na
base do actual CPC), isto é, a ASJP propôs que as decisões de adequação formal e de
simplificação ou de agilização processual só fossem recorríveis se contendessem com os
princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a
admissibilidade de meios probatórios (cfr. a sugestão de redacção para o art. 630º/2,
constante de pág. 54, do Parecer da ASJP de Janeiro de 2013, in
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Parecer-ASJP-Janeiro-2013.pdf).
184
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
Esta solução da ASJP, que acabou por ficar legalmente consagrada, não parece porém a
melhor, tal como não parece a melhor a redacção do art. 195º/4, da PL 113/XII – que acabou
por ficar integrada no actual artigo 630º, n.º 2 –, que se presta a muitas confusões.
Considera-se, com efeito, que as regras gerais sobre recorribilidade seriam suficientes e
que a regulação pelo legislador dos casos em que o recurso é admissível revela alguma
desconfiança em relação à interpretação que os juízes venham a fazer dos poderes que lhes
são atribuídos e respectivos limites.
Por outro lado, e como refere o Prof. Lebre de Freitas no Parecer que entregou à AR
(disponível no site da AR em
http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=94512),
o regime do art. 660º (que se inspirou na previsão do nº 2, do artigo 710º, do CPC de 1961, na
redacção anterior à introduzida pelo DL 303/2007) é garantia suficiente contra recursos
excessivos, ao determinar que a impugnação das decisões interlocutórias que subam a final só
é provida quando a infracção cometida puder modificar a decisão final ou quando o
provimento tenha interesse para o recorrente.
3. Reclamação e recurso
A recorribilidade das decisões de gestão processual, nos termos do art. 630º, n.º 2, não
exclui a possibilidade de, em relação a certas dessas decisões, se seguir primeiro a via
impugnatória da reclamação: é o que decorre do art. 593º, n.º 3.
Segundo o artigo 593º/3, no caso de ter sido dispensada a audiência prévia, se alguma das
partes pretender reclamar do despacho a determinar a simplificação ou a agilização processual
nos termos do art. 6º/1, ou do despacho destinado a programar os actos a realizar na
audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as
respectivas datas – despachos estes que se encontram previstos no artigo 593º/2, alíneas b) e
d) e que podem ser qualificados como despachos de gestão processual, sendo aliás duvidosa a
185
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
O artigo 593º/3 prevê portanto uma audiência prévia potestativa, como explica Gabriela
Cunha Rodrigues, no estudo já atrás citado:
“O n.º 3 do artigo 591.º, em consonância com a ideia de que se pretende uma visão
participada do processo, acaba por conferir aos mandatários a faculdade de provocar uma
audiência prévia potestativa (14) nos casos em que pretendam reclamar dos despachos
previstos nas alíneas b) (despacho a determinar a adequação formal, a simplificação ou a
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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
187
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
com eles não tem sentido reclamar; o que deve fazer é recorrer, nos termos gerais do artigo
630º/2. Esta solução parece ser corroborada pelo artigo 591º/1, f), que só prevê reclamações,
tendo havido audiência prévia, em se tratando do despacho que identifica o objecto do litígio e
enuncia os temas da prova.
Relativamente à segunda dúvida, parece que a reclamação dos despachos de gestão
processual previstos no art. 593º/3 (isto é, dos mencionados no art. 593º/2, alíneas b) e d))
tem de ser feita em audiência prévia, isto é, não pode ser feita numa peça processual avulsa.
É o que decorre da regra da não duplicação de meios impugnatórios, isto é, da regra
segundo a qual se a lei prevê o recurso (como de facto prevê no artigo 630º/2), então não há
também lugar a reclamação.
É o que também decorre da exposição de motivos do projecto apresentado em Setembro
de 2012, que esteve na base do actual CPC:
“Notificadas as partes, se alguma delas pretender reclamar do que foi decretado pelo juiz
(excepção feito ao despacho saneador, cuja impugnação haverá de ser feita por via de recurso,
nos termos gerais), o meio próprio é requerer a realização da audiência prévia destinada a
tratar dos pontos sob reclamação”.
Relativamente à terceira dúvida, parece que, apresentada a reclamação, se esta for
indeferida, a parte pode recorrer do despacho nos termos do artigo 630º/2. Mas a apelação
será não autónoma, por força do artigo 644º/3.
Relativamente à quarta dúvida, que é a de saber se a reclamação pode ter lugar nas
acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, refira-se que a mesma é
pertinente, porquanto o artigo 597º não alude a qualquer reclamação. Supomos, porém, que a
sustentar-se um tal direito de reclamação, o mesmo não terá de ser necessariamente exercido
em audiência prévia, atendendo a que cumpre ao juiz, nos termos do artigo 597º (corpo)
ponderar sempre a necessidade e a adequação deste acto ao fim do processo. O que significa,
parece, que a reclamação dos despachos de gestão processual previstos no art. 597º, d) e f), a
admitir-se que possa ser deduzida nestas acções (e não se vê por que motivo não o deva poder
ser), pode ter lugar numa peça processual escrita.
188
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
audiência prévia: cfr. o artigo 591º/1, f)), bem como a possibilidade de recurso do despacho
que decida as reclamações.
Relativamente a esse despacho, diz Paulo Pimenta, num estudo intitulado “Os temas da
prova”, constante de um e-book do CEJ dedicado ao novo processo civil (Caderno I)
(http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Caderno_I_Novo%20_Processo_Civil
.pdf ):
“Com o regime ora proposto, fica claro que na fase intermédia do processo do que se
trata é de, primeiro, identificar o objeto do litígio e, segundo, de enunciar os temas da prova.
Quanto ao objecto do litígio, a sua identificação corresponde a antecipar para este
momento dos autos aquilo que, até agora, só surgia na sentença, sendo salutar e proveitoso,
quer para as partes, quer para o juiz, esta sinalização depois de finda a etapa dos articulados.
Este acto terá a virtualidade de, em devido tempo, focar os intervenientes processuais no
enquadramento jurídico da lide.
Relativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais de uma quesitação
atomística e sincopada de pontos de facto, outrossim de permitir que a instrução, dentro dos
limites definidos pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas, decorra sem barreiras
artificiais, com isso se assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com
atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica
da lide, aquilo que importará é que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade
histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos.
*…+
Relativamente aos critérios que deverão nortear a enunciação dos temas da prova,
cumpre dizer, desde já, que o método a empregar é fluído, não sendo susceptível de se
submeter a “regras” tão precisas e formais quanto as relativas ao questionário e mesmo à base
instrutória.
*…+
Agora, a enunciação dos temas da prova deverá ser balizada somente pelos limites que
decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas. Nessa conformidade, os temas da
prova serão aqueles que os exactos termos da lide justifiquem.
No limite, pode dizer-se que haverá tantos temas da prova quantos os elementos
integradores do tipo legal em causa, o que implica que o juiz e os mandatários das partes
atentem nisso.
*…+
189
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
Deve notar-se que a flexibilidade ínsita no conceito de temas da prova garante, só por si,
que a respectiva enunciação seja ora mais vaga ou difusa, ora mais concreta ou precisa, tudo
dependendo daquilo que seja, realmente, adequado às necessidades de uma instrução apta a
propiciar a justa composição do litígio. Por exemplo, é de antecipar que, numa acção que
tenha por objecto vícios de construção numa empreitada, os temas da prova sejam
enunciados com um grau de minúcia maior do que nos casos acima referidos. Assim,
antevendo-se desaconselhável que o tema de prova que se reporte só aos “defeitos” que a
obra apresenta, fará sentido segmentar tais defeitos (v. g., infiltrações, rachadelas, soalho,
pintura, portas, janelas, sistema eléctrico, sistema de exaustão). Tudo dependerá, afinal,
daquilo que ao próprio processo convier para que, insiste-se, a instrução conduza à descoberta
da verdade, isto é, ao apuramento da realidade da concreta obra a que os autos se reportam.”.
O primeiro problema que se coloca neste domínio é o de saber quais os possíveis
fundamentos da reclamação e recurso previstos no artigo 596º, desde logo porque:
– No caso do despacho destinado a identificar o objecto do litígio, não é facilmente
alcançável a sua finalidade e o seu conteúdo possível, atendendo à vigência do princípio da
oficiosidade em matéria de direito. Parece que se esse despacho for entendido como
reportado aos direitos que se pretendem fazer valer na acção (e parece que, na prática dos
tribunais, é assim que está a ser entendido) – por exemplo, o direito a uma indemnização por
dano moral –, ele não pode significar qualquer condicionamento do juiz quanto à fonte legal
de tal direito (a norma X ou a norma Y);
– No caso do despacho destinado a enunciar os temas da prova, a lei não fornece um
critério seguro para a elaboração do despacho e, além disso, parece ter querido cometer ao
juiz da primeira instância uma grande latitude de poderes, permitindo-lhe por exemplo
escolher os casos em que a enunciação dos temas da prova versa ou não versa sobre factos; e,
em se tratando de acção de valor não superior a metade da alçada da Relação, fica até ao
critério do juiz o proferimento do próprio despacho, atendendo a que, segundo a lei, o juiz só
o profere “consoante a necessidade e a adequação do acto ao fim do processo”.
Ao que parece, a reclamação do despacho que identifica o objecto do litígio pode ter
como fundamento a errada percepção do direito que se faz valer na acção: por exemplo, a
parte insurgir-se-á contra o despacho que considerou que na acção se faz valer um direito de
indemnização, porque na sua perspectiva está em causa o direito à entrega de um bem.
190
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
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também aplicáveis a qualquer despacho (cfr. o art. 613º/3); e, sendo despachos, são
igualmente actos processuais, pelo que as regras do art. 195º lhes são extensíveis.
Quanto ao recurso previsto no art. 596º, refira-se ainda a seguinte observação do CSM,
constante de págs. 145-146 do Parecer sobre a Proposta de Lei 113/XII (in
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/parecer13_novocpc.pdf):
“Nos nºs 3 e 4 do art. 596º vem previsto o seguinte:
«3 – O despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso
interposto da decisão final.
4 – Quando ocorram na audiência prévia e esta seja gravada, os despachos e as
reclamações previstas nos números anteriores podem ter lugar oralmente».
Este nº 4 constitui uma novidade, face ao último projecto submetido a discussão pública.
Da conjugação destes preceitos se retira que, se não houver transcrição da audiência
prévia (nos termos do art. 155º, no qual vem estabelecido que a secretaria procede à
transcrição de requerimentos e respectivas respostas, despachos e decisões que o juiz,
oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível), no que a esta matéria
das reclamações concerne, havendo impugnação, no recurso da decisão final, do despacho
que decidiu as reclamações, terá de subir à Relação o suporte contendo a gravação a essa
questão atinente, a juntar à relativa à eventual impugnação da matéria de facto. Ora, crê-se
que seria conveniente que se estabelecesse que ficassem exarados em acta o despacho que
enuncia os temas da prova, as reclamações e o despacho que as decide, ou, em alternativa, se
determinasse a transcrição obrigatória desses actos, para que, no tribunal superior (ademais,
com o reforço de poderes em sede de reapreciação da matéria de facto e as delongas daí
advindas), não haja que acrescentar à audição da prova gravada também a de actos da
audiência prévia.
Ademais, mesmo na 1ª instância, pode dar-se o caso de o juiz que presidir à audiência
prévia não ser o mesmo da audiência final, parecendo que se imporá materializar, reduzindo a
escrito, o que, em matéria tão fulcral para a “economia” do julgamento, se decidiu naquela
fase intermédia do processo.”
192
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
Essas regras constam do artigo 155º, o qual corresponde, mas só em parte, aos artigos
159º e 522º-C, nº 1, do CPC de 1961, e aos artigos 7º, n.º 2 e 9º, do DL 39/95, de 15 de
Fevereiro; o n.º 1, do artigo 155º, não tem, porém, correspondência em preceitos anteriores.
Determina o artigo 155º:
“Artigo 155.º
Gravação da audiência final e documentação dos demais atos presididos pelo juiz
1 — A audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada,
devendo apenas ser assinalados na ata o início e o termo de cada depoimento, informação,
esclarecimento, requerimento e respetiva resposta, despacho, decisão e alegações orais.
2 — A gravação é efetuada em sistema sonoro, sem prejuízo de outros meios audiovisuais
ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor.
3 — A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do
respetivo ato.
4 — A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar
do momento em que a gravação é disponibilizada.
5 — A secretaria procede à transcrição de requerimentos e respetivas respostas,
despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho
irrecorrível.
6 — A transcrição é feita no prazo de cinco dias a contar do respetivo ato; o prazo para
arguir qualquer desconformidade da transcrição é de cinco dias a contar da notificação da
sua incorporação nos autos.
7 — A realização e o conteúdo dos demais atos processuais presididos pelo juiz são
documentados em ata, na qual são recolhidas as declarações, requerimentos, promoções e
atos decisórios orais que tiverem ocorrido.
8 — A redação da ata incumbe ao funcionário judicial, sob a direção do juiz.
9 — Em caso de alegada desconformidade entre o teor do que foi ditado e o ocorrido, são
feitas consignar as declarações relativas à discrepância, com indicação das retificações a
193
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
efetuar, após o que o juiz profere, ouvidas as partes presentes, decisão definitiva, sustentando
ou modificando a redação inicial.” (negrito acrescentado)
À audiência prévia aplica-se este regime, por força do disposto no artigo 591º/4.
194
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
gravação, conforme decorre do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 39/95 (Ac. STJ, de
16/12/2010, proc. 170/06.4TCGMR.G1, www.dgsi.pt).
A questão dissonante reside no seguinte:
Se as deficiências apenas forem detetadas aquando da elaboração da minuta do recurso,
decorridos mais de 10 dias após a entrega do suporte e no limite do esgotamento do prazo de
interposição do recurso, influindo as deficiências na apreciação no exame e decisão da
impugnação da matéria de facto, poderá a parte argui-las em sede de alegações? Ou a
nulidade encontra-se sanada por não ter sido arguida atempadamente, força do disposto nos
artigos 201.º e 205.º, n.º1, do CPC?
As respostas da jurisprudência têm evoluído, e apesar de tudo, parecem tender a alguma
consensualização.
Partindo da constatação que não compete à parte controlar as boas ou más condições da
gravação, que é razoável que esta apenas ouça as gravações no momento em que elabora as
alegações (o que poderá fazer até ao ultimo dia do prazo para interpor recurso motivado), e,
por outro lado, a impossibilidade de se apurar o momento exato em que a parte se apercebeu
da deficiência, tem alguma jurisprudência defendido a admissibilidade da arguição em sede de
alegações (Cfr. entre outros, Ac. RL, de 15/05/2011, proc. 64/1996.L1-2, www.dgsi.pt).”.
195
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
Veja-se, ainda, RP 09-6-2010, que, além de conter um bom relato dos problemas que, na
prática, se colocavam quanto à audibilidade das gravações, trata do motivo pelo qual se
justifica que as respectivas deficiências consubstanciem nulidade
(http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/26d64c1bbb069ece80257
7970047d1ac?OpenDocument):
“O artº 201º do Código de Processo Civil, com décadas de experiência e redigido num
tempo de mais cuidadas técnicas de elaboração legislativa, estabelece que as irregularidades
cometidas no processo só produzem nulidade, na ausência de estatuição legal nesse sentido,
como ocorre na presente situação, quando ela possa influir no exame e decisão da causa,
devendo ser um sentido próximo deste aquele que se há-de atribuir ao referido artº 9º [do DL
39/95, de 15 de Fevereiro]. Se o Tribunal de 1ª instância, depois de ouvidas as testemunhas e
tendo em conta os demais elementos de prova dos autos define quais os factos provados e
quais os não provados e parte de um depoimento gravado não for perceptível, a sua não
repetição, tanto mais que o recorrente o invoque, terá sempre repercussões na decisão da
causa, pelo menos no sentido que impede o Tribunal de 2ª instância de verdadeiramente
reapreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto, diminuindo a amplitude do direito ao
recurso.”
196
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
Como salienta ainda Maria Adelaide Domingos, no estudo já referido, parecia que a
questão devia ser respondida de modo afirmativo, atendendo ao disposto no artigo 9º, do DL
n.º 39/95:
“Também tem surgido como controvertido saber se a Relação pode oficiosamente
conhecer da nulidade quando se apercebe das deficiências da gravação, sem que a mesmas
tenha sido arguidas pelas partes.
A resposta positiva baseia-se no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, na medida em que
estipula “Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou
que esta se encontre imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao
apuramento da verdade.” (Cfr. Ac. STJ, de 16/12/2010, proc. 170/06.4TCGMR.G1; Ac. RP, de
23/02/2010, proc. 4595/05.4TBSTS.P1; Ac. RP, de 23/11/2009, proc. 640/08.0TTMTS.P1,
todos em www.dgsi.pt; Ac. RL, de 24/03/2010, CJ 2010, II, P.160).”.
Como explica Maria Adelaide Domingos (no artigo já referenciado), a este propósito:
“ Suscita-se a dúvida se o n.º 2 do artigo 157.º [correspondente ao n.º 2 do artigo 155º do
CPC de 2013] vai ser interpretado no sentido da disponibilização da gravação do ato, ser
oficiosa, sem precedência de requerimento da parte.
E se assim for, parece ser de entender que o recorrente deixa de poder arguir a nulidade
emergente das deficiências da gravação apenas em sede de alegações, recaindo sobre o
mesmo o ónus de conferir a conformidade da gravação, nos 10 dias seguintes à sua
disponibilização (n.º 4 do artigo 157.º) e arguir, nesse prazo, a nulidade”.
197
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199
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
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O CPC de 1961 utilizava, no art. 666º/3, uma redacção diferente: dizia que a aplicação das
regras relativas aos vícios e reforma da sentença devia ser feita, até onde seja possível, aos
próprios despachos. Supõe-se, porém, que a alteração de redacção não tem nenhum
significado.
200
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
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O Professor Lebre de Freitas, num estudo intitulado “Sobre o novo Código de Processo
Civil (uma visão de fora)” (in http://www.oa.pt/upl/%7Ba3edae75-10cb-46bc-a975-
aa5effbc446d%7D.pdf) critica a solução, que considera excessiva, por entender que as partes
têm o direito de compreender a sentença, não apenas a sua parte decisória (como agora se
prevê) mas também os seus fundamentos, podendo a finalidade de evitar abusos ser
prosseguida com a possibilidade de requerer a aclaração em recurso, não esperando a
interposição deste pela resposta do juiz quanto ao pedido de aclaração (além de que a sanção
para os abusos deve ser encontrada no regime da litigância de má fé):
“Em nome da repressão do abuso de direitos processuais, é suprimida a faculdade de
pedir o esclarecimento da sentença.
É facto que os advogados das partes frequentemente recorriam sem fundamento à
reclamação por obscuridade da decisão, amiúde para assim ganharem tempo antes de se
decidirem quanto ao recurso a interpor. E é facto igualmente que os juízes usavam
sistematicamente indeferir o pedido de esclarecimento, ainda quando, nos casos em que ele
se justificava, iam dizendo qual o sentido da decisão tomada. Por essa ser a realidade de facto,
o DL 303/2007 veio determinar que o pedido de esclarecimento passasse a ser feito na
alegação de recurso (art. 669.º-3 do código revogado): o juiz não ficava desobrigado de
apreciar o requerimento (art. 670.º-1 do código revogado), mas a interposição do recurso
201
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
6. Reforma da sentença
O regime referente à reforma da sentença quanto a custas e multa foi em parte alterado,
levantando-se agora um problema (suscitado pelo n.º 3) quanto ao requerimento, em recurso,
dessa reforma, de que dá conta Pereira Gil (in
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/NCPC_Confronto_VCPC.pdf).
Determina o art. 616º:
“Artigo 616.º
Reforma da sentença
1 — A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a
custas e multa, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2 — Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a
reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica
dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si,
impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
3 — Cabendo recurso da decisão que condene em custas ou multa, o requerimento
previsto no n.º 1 é feito na alegação.” (negrito acrescentado)
202
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
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recorrível ou basta que a decisão em que está incluída a condenação tributária ou em multa
objecto de reforma seja recorrível pelas regras gerais? A qualificação no NCPC parece apontar
no primeiro sentido. Mas se assim for, dado o disposto no artigo 635º, nº 3, do NCPC (artigo
684º, nº 2, 2ª parte do CPC), parece injustificado que cabendo recurso da sentença, se cinda a
reforma quanto a custas multa da restante matéria decidida na sentença objecto de recurso”.
203
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013
dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada;
porém, no caso a que se refere o n.º 2 do artigo anterior, a parte prejudicada com a
alteração da decisão pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do
tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença.” (negrito acrescentado)
204
Incidentes da instância
Incidentes da instância
Carlos Lopes do Rego
Sumário:
I – As questões que o novo CPC suscita imediatamente:
a) As normas transitórias;
b) Conteúdo e significado dos Art.os 3.º, 5.º e 6.º
II – O desafio à cultura instalada. As diversas abordagens
III – Os institutos de difícil absorção. Exemplos:
O activismo judiciário;
A gestão processual;
A tramitação da Acção Declarativa
IV – As consequências relacionais
V – O Centro de Estudos Judiciários e a Ordem dos Advogados
A formação inicial e a formação contínua
VI – O Ministério da Justiça
VII – Os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público
VIII – A Organização Judiciária
IX – A perspectiva a curto e médio alcance
207
Incidentes da instância
I – Intervenção de terceiros:
208
Incidentes da instância
intervir na causa pendente, como associados quer do chamante, quer da parte contrária –
antigo art. 325º) por um sistema de tipificação, assente na natureza e indispensável
atendibilidade e relevância do interesse que legitima o chamamento (já que nem todos os
casos que justificam a intervenção espontânea devem permitir a dedução da intervenção
provocada), distinguindo-se:
a) os casos de litisconsórcio necessário, em que o chamamento, amplissimamente
facultado, visa assegurar um pressuposto processual;
b) os casos de chamamento, pelo primitivo A., de litisconsortes voluntários ou
subsidiários do R., contra os quais , alterando a sua estratégia processual originária,
pretenda dirigir também supervenientemente a sua pretensão, ampliando o objecto e
o âmbito subjectivo do litígio;
c) os casos de chamamento, suscitado pelo R.:
quer de possíveis litisconsortes passivos ou condevedores da relação material
controvertida, não demandados pelo A./credor, de modo a operar uma defesa
conjunta ou assegurar a efectivação do direito de regresso; porque não há
chamamento sem interesse atendível (fica claro que demandado apenas o
devedor principal, não pode este chamar a intervir o mero garante da obrigação,
contra o qual nunca poderá ter direito de regresso, e que o credor não curou de
responsabilizar pelo débito).
quer de possíveis litisconsortes voluntários do A., obtendo por esta via uma
apreciação global e definitiva do litígio, no confronto de todos os possíveis
interessados activos, contra os quais formula uma espécie de pretensão negatória
de apreciação do respectivo direito, não exercitado em juízo contra o
R./chamante (ex: o possuidor ou detentor da coisa, demandado apenas por um
dos comproprietários, requer a intervenção, na acção de reivindicação de todos
eles, a fim de, no confronto de todos eles, demonstrar a inverificação do direito à
restituição da coisa reivindicada).
d) Eliminam-se, assim, os casos em que a intervenção se esgotaria na formulação de um
mero convite para intervir, totalmente desprovido de efeitos se o
interveniente/chamado não deduzisse efectivamente o seu direito – só neste caso
apreciado na sentença, em termos de constituir caso julgado – cfr. o antigo art. 328º,
nº2, al. a) (ex: intervenção, provocada pelo autor, de possíveis litisconsortes
voluntários activos, para deduzirem na causa os respectivos direitos, paralelos aos do
A./chamante: um dos comproprietários desencadeia a acção de reivindicação, não
209
Incidentes da instância
tendo qualquer utilidade o chamamento por este dos restantes comproprietários que
com ele se não quiseram associar inicialmente na lide).
2.5. Exigência de que, na oposição provocada - art. 338º - o opoente que declara estar
disposto a satisfazer a prestação - só não o fazendo por desconhecer a verdadeira identidade
do credor - consigne logo em depósito a quantia ou coisa devida: deste modo, o alegado
reconhecimento pelo R. da obrigação tem logo de se corporizar em factos (o depósito do
objecto da dívida que se alega reconhecer), como condição de prosseguimento do incidente,
de modo a desincentivar possíveis manobras dilatórias do demandado.
210
Incidentes da instância
211
Videogravação da comunicação
Vídeo 1 Vídeo 2
212
Ónus da impugnação
Ónus da impugnação 1
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
1. Repartição do tema
Suponho que existe uma ligação estreita entre o ónus da alegação e o ónus da
impugnação de factos, porque penso que, para além das razões que se costumam apontar
para a imposição do ónus da impugnação,
• forçar a parte a tomar posição sobre os factos alegados pela parte contrária,
responsabilizando-a pelas afirmações de facto,
• disciplina processual,
• sendo que é a parte quem tem melhor conhecimento dos factos, aproveitar esse
conhecimento, impondo-lhe um ónus que a “incita” a colaborar, pois não é indiferente
ao tribunal ter ou não uma versão bilateral dos factos…
1
Notas que serviram de base à intervenção realizada no dia 24 de Janeiro de 2014, nas Jornadas de
Processo Civil organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários.
215
Ónus da impugnação
• porque, de um acto da parte (de uma omissão, ou melhor, do seu silêncio), a lei retira
a consequência de que o facto não impugnado se tem como assente
vinculativamente para o tribunal, que não pode submetê-lo a prova para averiguar se
ocorreu ou não;
• SALVO quanto aos factos instrumentais, porque aí a admissão por acordo, que se
presume, pode vir a ser “afastada por prova posterior” (nº 2 do 574º);0
• MAS quanto aos factos instrumentais, também não vale o princípio dispositivo para
a alegação: podem ser oficiosamente considerados, desde que resultem da instrução
da causa (5º, nº 2, a)). Desapareceu a afirmação expressa que essa consideração podia
ser oficiosa, como estava no ex-264º, nº3; mas o regime permanece.
• Não existia no Código de Processo Civil 1876, salvo para os chamados processos
cominatórios (ex: despejo).
• O Decreto de 29 de Maio de 1907, que criou o processo sumário; veio cominar a falta
de impugnação com a condenação no pedido.
• O Decreto nº 13979, de 25 de Julho, estendeu ao processo ordinário o ónus da
impugnação, com a cominação de admissão por acordo.
• Daí passou para Decreto nº 21287, de 26 de Maio de 1932, e daí para o Código de
Processo Civil 1939.
216
Ónus da impugnação
Não me parece claro o objectivo da eliminação; admito que se tenha pretendido dar a
indicação de que se quis acentuar o aumento de poderes do juiz, face aos poderes das partes.
Questão: saber se o princípio dispositivo vale também para a delimitação dos factos de
que o tribunal pode conhecer para julgar o pedido , integrantes ou não da causa de pedir (ou
fundamentadores da excepção) – ou seja, saber se têm de ser alegados para que o tribunal
deles possa conhecer, se existe um ónus de alegação,
217
Ónus da impugnação
1º- A afirmação (do ex-664º) de que o tribunal está limitado pelos factos alegados pelas
partes não passou para o novo Código.
2º- No artigo 5º, nº 1, diz-se agora que cabe às partes alegar “os factos essenciais que
constituem a causa de pedir e aqueles em que baseiam as exceções invocadas”.
3º- No nº 2, define-se o regime de conhecimento dos factos instrumentais e dos factos
complementares e concretizadores dos que as partes alegaram (não alegados nos articulados,
nem tendo a parte sido convidada a alegá-los, nos termos do artigo 590º).
4º - No artigo 612º, trata-se do regime dos factos notórios e de que o tribunal tem
conhecimento em virtude do exercício das suas funções.
Vejamos então:
1º – Distinção entre factos que integram a causa de pedir e outros factos: remeto para a
exposição anterior. Apenas recordo que os termos da lei aprovada parecem querer distinguir
entre os factos necessários à identificação da causa de pedir e os (demais) factos necessários à
procedência do pedido do autor.
A mesma questão se coloca quanto à delimitação dos factos que integram a excepção
peremptória (individualizam a excepção /são necessários para conseguir a improcedência da
acção).
218
Ónus da impugnação
Foi eliminado o requisito constante do ex- 264º “desde que a parte interessada manifeste
vontade de deles se aproveitar”, que tinha a função de uma “alegação a posteriori”; presume-
se que a parte quis deles beneficiar.
219
Ónus da impugnação
Creio que uma resposta afirmativa seria dificilmente compatível com a manutenção das
regras relativas à alegação de factos posteriores aos articulados, definidas a propósito dos
factos supervenientes (588º),ou com as limitações ao convite ao aperfeiçoamento (590º).
3º- Quanto aos factos instrumentais, com função probatória, não estão dependentes de
alegação, para poderem ser conhecidos; podem ser utilizados desde que resultem da instrução
da causa e não estão na disponibilidade da parte. Não estão abrangidos pelo ónus de alegação.
E, sendo de conhecimento oficioso, podem ser alegados enquanto puderem ser oficiosamente
conhecidos.
6. O ónus da impugnação.
220
Ónus da impugnação
7. Continuação
Por facilidade, vou analisar o ónus da impugnação a propósito da contestação; no fim,
chamo a atenção para a necessidade de generalização. Assim:
1º. É habitual distinguir ( 571º, ex 487º), na contestação-defesa,
a defesa
• por impugnação
• por excepção
isto é, não sair do círculo dos factos constitutivos do direito do autor/ alegar contra-
factos, factos novos (excepções peremptórias) ou obstáculos ao conhecimento de mérito
(excepções dilatórias).
2º.Importância da distinção:
a) anteriormente: número de articulados admissíveis. CPC 2013: não releva quanto a
este aspecto, porque só é admissível réplica em caso de reconvenção e nas acções de
simples apreciação negativa. Mantêm-se, no entanto, as exigências do princípio do
contraditório, quanto à possibilidade de resposta à excepção, seja qual for a forma de
a apresentar (na audiência? artº 3º, nº 4? na réplica, se tiver havido reconvenção?);
221
Ónus da impugnação
Desenvolvimento:
a. Impugnar de direito, apenas, significa reconhecer os factos alegados;
b. Na perspectiva do ónus da impugnação, só interessa a impugnação de facto. Não há
nenhuma disponibilidade quanto à qualificação jurídica dos factos alegados pelo autor, nem
quanto ao efeito jurídico que deles pretende retirar (ou seja, do pedido e da causa de pedir)
Como se sabe, não há disponibilidade quanto à qualificação jurídica dos factos, nem, em
geral, quanto à solução jurídica do litígio:
• 1 – Não vincula o tribunal, a subsunção dos factos integrantes da causa de pedir (por
exemplo, na responsabilidade contratual ou extracontratual, na qualificação de
contratos ou de vícios);
• 2 – Não vincula o tribunal um eventual acordo das partes sobre qualificações jurídicas
(de contratos, por ex., ou de vícios) ou sobre a aplicação de um determinado regime
legal;
• 3 – O mesmo se diga quanto ao enquadramento jurídico do pedido, desde que
respeitado o efeito prático que o autor pretende de modo diverso daquele que o autor
lhe deu ;
Pex: o autor pediu a declaração de nulidade ou a anulação de um acto que impugna;
mas o efeito “certo” para a causa de pedir invocada é a ineficácia. Pense-se na
222
Ónus da impugnação
223
Ónus da impugnação
224
Ónus da impugnação
Quererá isto dizer que o ónus da impugnação só existe quanto aos factos essenciais –
os tais que constituem a causa de pedir (na perspectiva “minimalista”)?
NÃO: o ónus da impugnação abrange
1- os factos essenciais;
2- os factos complementares ou concretizadores daqueles;
3- os factos instrumentais.
ISTO É:
• Factos complementares: tendo sido alegados pelo autor, recai sobre o réu o ónus de
os impugnar.
O convite não pode incidir sobre factos essenciais, no sentido de integradores da causa
de pedir, nem terá grande utilidade para os factos instrumentais. Interessa, sobretudo, para os
factos complementares ou concretizadores dos factos essenciais, alegados pelas partes.
• A DIFERENÇA está em que, quanto aos factos instrumentais (nº 2, do 574º), não é
definitiva a consequência da falta de impugnação definida, porque “a admissão dos
225
Ónus da impugnação
factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior”; mas estão abrangidos
pelo ónus de impugnação, se tiverem sido alegados.
226
Ónus da impugnação
“Admissão ficta”: tal como na revelia, também aqui a lei atribui significado declarativo
(de admissão) ao silêncio da parte.
No fundo, há uma presunção de admissão, não ilidível: ficta, como na revelia
(confissão ficta).
227
Ónus da impugnação
2ª– “Se não for admissível confissão sobre eles” – se não for admissível a confissão,
relativamente aos factos alegados pelo autor e não impugnados pelo réu.
Razão de ser: princípio da submissão aos limites substantivos, instrumentalidade do
processo. Código Civil, art. 354º. Ex: direitos indisponíveis.
228
Ónus da impugnação
Se for exigido como forma: a convenção tem como efeito a presunção de que as partes
se não quiseram vincular a não ser pela forma convencionada (art. 223º, Código Civil), e esta
presunção não pode ser elidida por confissão ficta (revelia) ou admissão ficta (ónus da
impugnação) (presunção contra presunção…).
Se for exigido como prova, aplicar-se-á o regime das convenções sobre meios de prova
(art. 345º, Código Civil); se a convenção for válida, o documento em falta não pode ser
substituído por falta de contestação ou de impugnação.
Razão de ser: fácil de ver. Respeito pela finalidade da regra da impugnação; boa fé;
maior dificuldade de prova para o autor do que para o réu, no caso de factos pessoais deste ou
de factos de que ele tenha ou deva ter conhecimento.
Problema: o que são factos pessoais, nomeadamente em caso de representação (p. ex.
de incapazes, ou quando é réu uma entidade colectiva).
229
Ónus da impugnação
1º- Réplica:
Código anterior, art. 505º: fácil de aplicar. A réplica era admitida para responder às
excepções, à reconvenção, aos factos constitutivos do direito do réu, nas acções de simples
apreciação negativa; sendo admissível, podia ainda ser utilizada para alterar o pedido (não
releva agora) e a causa de pedir.
Era admissível a tréplica para responder às excepções opostas pelo autor à
reconvenção; ou em caso de alteração (do pedido ou) da causa de pedir, na réplica.
Assim, a falta do articulado (réplica, tréplica) ou a falta de impugnação definida, nesse
articulado, dos factos alegados no anterior tinha como consequência a respectiva admissão
por acordo.
Cfr. acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Junho de 2008, www.dgsi.pt, proc.
nº 07B3704.
230
Ónus da impugnação
Não se prevê réplica ou outro articulado para responder às excepções – como funciona
o ónus da impugnação, imposto pela al. c), do artigo 572º e pelo nº 2, do 587º, neste quadro?
Art. 572º, c), 587º, nº 1 e 2: necessidade de individualizar, na contestação ou na
réplica, as excepções, sob pena de não se terem como admitidos por acordo os factos
correspondentes, se não forem (definidamente) impugnados.
Tem de funcionar, seja qual for a forma encontrada para as respostas (na audiência
prévia ou final, art. 3º nº 3, na réplica, em articulado admitido pelo juiz…).
10. Conclusões:
Da conjugação entre as regras relativas à alegação de factos e à impugnação (do autor/
do réu, quanto aos factos que fundamentam as excepções), parece-me resultar o seguinte:
• 1ª) Manutenção do ónus da alegação quanto aos factos essenciais.
• 2ª) Manutenção da possibilidade de consideração de factos complementares ou
concretizadores não alegados, desde que resultem da instrução da causa e as
partes tenham a oportunidade de sobre eles se pronunciarem.
No entanto
• desapareceu a “discussão” como “fonte” do conhecimento do facto (“e resultem da
instrução e discussão da causa”, nº 3 do anterior artigo 264º).
• desapareceu expressamente a “alegação a posteriori”, mas suponho que isso só
deve significar que há uma presunção de que a parte quer aproveitar o facto, que
deve ceder se a parte disser que não quer.
231
Ónus da impugnação
• 4ª) O ónus da alegação não se confunde com a preclusão. (Ónus: se a parte tem de
alegar ou de impugnar, para que o tribunal possa considerar o facto ou a sua
impugnação; preclusão: até quando a parte pode alegar ou impugnar).
Quanto à preclusão:
• atenuada em 1995, com a previsão do convite ao aperfeiçoamento dos articulados
(art. 590º, ex pré-saneador; audiência prévia, ex-preparatória): mantém-se
• tal como não funciona a preclusão para os factos instrumentais;
• e funciona para os tais essenciais da causa de pedir.
Problema:
Mantiveram-se as regras:
1– dos limites ao aperfeiçoamento: mantiveram-se os limites do princípio da
concentração da defesa, da falta de impugnação definida, da alteração da causa de pedir
(muito estreita, como se sabe… sem acordo, só aproveitando uma confissão do réu) – art.
590º, nº 6 - valem para o aperfeiçoamento na audiência prévia (art. 591º, nº 1, c));
2– da possibilidade de alegação posterior aos articulados, com a exigência de que se
trate de factos supervenientes (arts. 588º e 611º, que parece que obrigam a concluir no
sentido de que continua a funcionar a regra da preclusão).
232
Videogravação da comunicação
Vídeo 1 Vídeo 2
233
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
[Salazar Casanova]
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
Sumário:
1. Ónus de alegação
2. Limites dos poderes de cognição
3. Concretização e complementaridade referenciam-se aos factos alegados
4. Factos novos não alegados
5. Insuficiência da alegação com aperfeiçoamento
6. Insuficiência de alegação sem aperfeiçoamento
7. Suficiência dos factos alegados e factos novos resultantes da instrução
8. Sentido interpretativo do artigo 5.º
9. Factos novos integrativos de diversa previsão normativa
10. Alegação de factos essenciais e doutrina da substanciação
11. Causa de pedir
12. Factos instrumentais
13. Âmbito da oficiosidade
14. Poderes do Tribunal
15. Temas de Prova
16. Superveniência
17. Prova
Ónus de alegação
1
Os preceitos sem indicação de origem referem-se ao Código de Processo Civil de 2013, aprovado pela Lei
n.º 41/2013, de 26 de junho.
237
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
Não há, portanto, nenhuma proibição para as partes no que respeita à alegação de factos,
o que se compreende porque seria inadmissível que a lei impusesse qualquer obstáculo ao
poder de as partes alegarem os factos, sejam eles de que natureza forem, que considerem
relevantes para a decisão do litígio de acordo com a estratégia que reputem mais adequada
aos seus interesses.
2. As alterações introduzidas na lei de processo não têm por objetivo levar as partes à
elaboração de articulados mais concisos, expurgados de factos instrumentais ou menos
extensos na qualificação jurídica dos factos; o objetivo da lei foi, a nosso ver, o de evitar,
mediante a intervenção subsidiária do Tribunal, que as ações e as exceções fossem julgadas
improcedentes por insuficiência da matéria de facto alegada ou que os factos não alegados
mas revelados durante a instrução da causa não pudessem em circunstância alguma ser objeto
de aquisição processual.
No entanto, como é evidente, não interessa às partes ficarem sujeitas à contingência do
aproveitamento de factos revelados apenas durante a instrução da causa se puderem desde
logo alegá-los.
Pode causar estranheza que factos que são do conhecimento das partes não sejam desde
logo alegados, designadamente os factos complementares ou concretizadores de factos
essenciais alegados que, não obstante a conexão indispensável ao seu aproveitamento, não
deixam de constituir factos essenciais 2. Se é verdade que muitas vezes, por inadvertência, as
partes não indicam aos seus mandatários factos de que têm conhecimento e, por vezes,
excluem-nos com base num préjuízo quanto à sua conveniência, na maior parte dos casos a
explicação encontra-se no conhecimento limitado e deficiente das realidades conjugado
muitas vezes com a dificuldade, para não dizer impossibilidade, de obtenção de elementos
probatórios na fase pré-judicial.
3. Crê-se que a constatação de que a parte tinha (ou devia ter) conhecimento de
determinado facto quando propôs a ação, não basta para se considerar que agiu de má fé,
visando escamotear uma determinada realidade para tornar mais difícil o exercício do
contraditório ou para se valer do efeito surpresa – que sempre existe – designadamente
quando a "revelação" do facto ocorre durante a audiência final. No entanto, é evidente que o
2
Da redação constante do artigo 264.º/3, do C.P.C. 61 (redação em vigor à data da entrada em vigor do
C.P.C. de 2013) resultava expressamente que, quando a lei se refere a factos complementares ou
concretizadores de outros que as partes hajam oportunamente alegado, se tinha em vista os factos
essenciais: "serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões
formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes
hajam oportunamente alegado […]".
238
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
Tribunal deve estar atento, quando determinado facto se revela durante a discussão da causa,
sobre se a omissão de alegação no articulado é reveladora de litigância de má fé traduzida na
"omissão de factos relevantes para a decisão da causa" (artigo 542.º/2, alínea b)) mesmo
quando estes interessam à parte que os omitiu. A nosso ver, a litigância de má fé será nestas
circunstâncias uma situação rara de ocorrer, mas possível caso se demonstre que a omissão de
certos factos foi pré-determinada tendo em vista o efeito surpresa da sua revelação de modo a
dificultar o exercício do contraditório.
239
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
novos factos considerando que os factos alegados eram suficientes para se demonstrar a
posse.
7. Sem dúvida que estes novos factos são reveladores de posse mas, como se disse,
importa equacionar a consideração de factos novos igualmente constitutivos da invocada
posse. A abertura do furo artesanal e a construção dos casinhotos com as mencionadas
finalidades são, a nosso ver, factos instrumentais dos factos alegados respeitantes ao cultivo
do terreno e à plantação do pomar, ou seja, são factos por via dos quais se visa a prova dos
factos essenciais alegados.
Já quanto aos outros constata-se que estamos perante factos essenciais constitutivos da
posse 3. Por comodidade de raciocínio, admitamos que o tribunal não considerou que os factos
instrumentais permitissem julgar provado os factos essenciais alegados sobre os quais
igualmente não se produziu prova. Pode o Tribunal reconhecer a posse com base apenas nos
factos resultantes da instrução da causa?
3
Não se veja nesta afirmação a ideia de que um determinado facto não pode assumir natureza múltipla.
Parece-nos que um facto pode constituir simultaneamente facto essencial quando da sua prova resultar o
preenchimento normativo visado, mas igualmente facto instrumental se dele resulta a prova de outros
factos alegados. No exemplo apontado seria sustentável considerar-se que o arrendamento do terreno para
cultivo e a vedação do terreno, para além de demonstrarem diretamente a posse do autor sobre o terreno,
demonstravam ainda que o autor detinha e destinava aquele terreno para efetivo cultivo, não importando,
para o efeito, se o cultivava por si ou por mero detentor (artigo 1253.º, alínea c), do Código Civil).
240
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
direito que pretende reconhecido, o Tribunal pode ou não pode conhecer de todos os factos
que podiam ter sido alegados e não foram que chegaram ao seu conhecimento durante a
instrução da causa.
4
Definem-se factos complementares como aqueles que "não são necessários à identificação da situação
jurídica alegada pela parte, mas são indispensáveis à procedência da ação ou exceção. É, por isso que,
quando respeitante ao autor, a falta de alegação de factos essenciais se traduz na ineptidão da petição
inicial por inexistência de causa de pedir […] e que a ausência de um facto complementar não implica
qualquer inviabilidade ou ineptidão, mas importa a improcedência da ação"(Miguel Teixeira de Sousa,
Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 72).
5
Edição do Ministério da Justiça, sine data; ver ainda Código de Processo Civil Anotado por José Lebre de
Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Vol I (artigos 1.º a 380.º), 1999, pág. 465/468
6
O artigo 664.º do C.P.C./61 antes da revisão de 1995/1996 prescrevia: "o juiz não está sujeito às alegações
das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se
dos factos articulados pelas partes, salvo o que vai disposto nos artigos 514.º e 665.º".
Propôs-se na comissão revisora que o artigo 650.º/2, alínea f) do C.P.C. de 1961 respeitante aos poderes do
presidente passasse a ter a seguinte redação: "ao presidente do tribunal compete em especial: f) formular,
até ao encerramento da discussão, quesitos novos que interessem à boa decisão da causa, sem prejuízo,
porém, do disposto no artigo 664.º"; propôs-se, para o artigo 664.º, a seguinte redação: "o juiz não está
sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas
só pode servir-se dos factos que as partes, expressa ou implicitamente, tenham invocado em favor das suas
pretensões, salvo o disposto nos artigos 514.º e 665.º". Quer dizer: onde a lei dizia "o juiz não está sujeito
às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito mas só pode
servir-se dos factos articulados pelas partes, salvo o que vai disposto nos artigos 514.º e 665.º", limitando,
portanto, os poderes de cognição "aos factos articulados pelas partes", orientação que vinha do Código de
1939, abre-se a brecha consistente em permitir-se que o juiz possa conhecer oficiosamente dos " factos que
as partes, expressa ou implicitamente, tenham invocado a seu favor" (ver ata n.º 43 de 6 de novembro de
241
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
1985, B.M.J. n.º 367, pág. 110 e segs). Considerou o Prof. Antunes Varela que "a fórmula utilizada é ,
porém, mais restritiva que a que o Dr. Cardona Ferreira sugeriu, a que pretende que possam ser conhecidos
todos os factos revelados pela discussão da causa". Relativamente ao artigo 664.º, o Cons. Campos Costa
inquiriu sobre o real alcance do termo "implicitamente". Assim, "perguntou se abrange a possibilidade de,
tendo uma parte alegado não factos concretos mas um conceito de direito, serem aditados quesitos que
representem o seu desdobramento nesses factos concretos; se, tendo a parte alegado um facto conclusivo,
o juiz o pode transformar num facto concreto; se, tendo uma testemunha referido que uma terceira pessoa
lhe disse que o autor lhe afirmara ter recebido certa quantia do réu, esse facto (novo, mas meramente
instrumental relativamente ao pagamento) pode ser aditado". Fez ainda o Prof. Antunes Varela um balanço
das várias posições."Começou por verificar haver acordo quanto à necessidade de poder haver lugar a
diligências probatórias relativamente aos quesitos aditados, através da prorrogação do período instrutório.
Quanto aos outros aspetos há divergências. Na verdade, ou se pretende manter a atual limitação, objetiva,
aos factos articulados quanto à matéria de que o tribunal pode conhecer, ou não. Nesta segunda hipótese,
abrem-se dois caminhos. O primeiro, seguido pelo Cons. Rodrigues Bastos, consiste em possibilitar o
conhecimento de factos apenas implícita ou tacitamente alegados; não necessariamente articulados, mas,
pelo menos, invocados.'Implicitamente' é um termo bastante vago (sempre se poderá sustentar que quem
baseia a sua pretensão numa determinada norma legal está implicitamente a invocar todos os factos que
integram a sua previsão); 'tacitamente' é uma palavra muito menos perigosa. O segundo, mais restrito e
cauteloso, foi o escolhido pelo Dr. Cardona Ferreira, ao limitar a possibilidade de conhecimento de factos
não articulados aos que resultarem da discussão da causa. Se é mais restritivo por esse motivo, é, porém,
mais flexível de outro ponto de vista, já que não exige que o facto chegado ao conhecimento do tribunal
tenha sido invocado (ou seja, alegado pelas partes) podendo ser trazido, por exemplo, por uma
testemunha". Defendeu o Dr. Cardona Ferreira que " para além dos factos articulados no momento devido,
o tribunal só se pode servir dos factos que resultem da instrução". O texto proposto para o artigo 664.º
ficou assim redigido: "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e
aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos que as partes tenham invocado, expressa
ou tacitamente, nos seus articulados, em favor das suas pretensões, salvo o disposto nos artigos 514.º e
655.º".
No anteprojeto de 1988 a matéria do artigo 664.º passou a constar do artigo 8.º com a epígrafe "Princípio
dispositivo" assim redigido:
1. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes e nos factos instrumentais que, por
indagação oficiosa, lhes sirvam de base.
2. Podem ainda ser considerados na decisão os factos essenciais que, embora não articulados, tenham sido
invocados na instrução e discussão da causa, quando a parte por eles prejudicada os não tenha impugnado,
devendo tê-lo feito.
3. Havendo indícios de que as partes, ou uma delas, pretendem usar o processo para fim ilícito, incumbe ao
juiz promover as diligências necessárias ao esclarecimento do caso e à frustração do fim prosseguido".
Deste preceito, no que respeita ao n.º 2, a crítica incidiu, não sobre a possibilidade de serem considerados
factos essenciais não articulados que tenham sido invocados na instrução e discussão da causa, mas no
segmento "quando a parte por eles prejudicada os não tenha impugnado, devendo tê-lo feito".
Reconhecendo-se que o intuito do legislador "pode ser meritório - no sentido em que com tal preceito se
242
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
visa ampliar o princípio da aquisição processual em busca da verdade material" perguntou-se: " como se há
de então entender que a parte prejudicada - que tenha o ónus de impugnar tais factos - aceitou os
mesmos? Terá de haver alguma intimação em audiência para o efeito? O tribunal avisa do facto os
mandatários judiciais? Provoca-se um depoimento de parte ad hoc , obrigando a comparecer a parte?
("Anteprojeto do Código de Processo Civil" por Armindo Ribeiro Mendes e José Lebre de Freitas, R.O.A, Ano
49, setembro 1989, pág. 613-689, designadamente pág. 621).
Certo é que esta previsão veio a sofrer nova alteração com o projeto Antunes Varela. Ficou, assim, redigido
o artigo 9.º sob a epígrafe "Princípio dispositivo":
1. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes e nos factos instrumentais que, por
indagação oficiosa, lhes sirvam de base.
2. Podem, todavia, ser considerados factos essenciais à procedência da pretensão formulada pelo autor ou
da exceção ou reconvenção deduzidas pelo réu, que só por manifesto lapso a parte interessada não tenha
alegado, desde que à parte contrária tenha sido efetivamente facultada a produção de contraprova ou de
prova do contrário.
3. Havendo indícios de que as partes ou uma delas, pretendem usar o processo para fim ilícito, incumbe ao
juiz promover as diligências necessárias ao esclarecimento do caso e à frustração do fim prosseguido.
A observação essencial que este preceito suscitou foi a da necessidade de ser completado "com a expressa
consagração da faculdade de a parte a quem aproveitam alegar supervenientemente os factos que
completam a causa de pedir, requerendo logo ou em 7 dias as respetivas provas, se já tiver passado o
momento processual de o fazer". Salientou-se que "sob pena de desigualdade entre as partes, os factos
essenciais à procedência da pretensão não poderão integrar - não obstante a amplitude da redação do
artigo, que seria de retificar - uma nova causa de pedir, mas apenas completar a causa de pedir invocada, tal
como completam a exceção deduzida" ("Projeto de Código de Processo Civil, Lebre de Freitas, R.O.A.,Ano
50, 1990, pág.729-811, designadamente pág. 752/753).
O projeto de fevereiro de 1995, apresentado pela Comissão revisora designada pelo Despacho n.º 14/94, de
15 de abril do Ministro da Justiça Laborinho Lúcio propôs a seguinte redação ao artigo 264.º com a epígrafe
"Princípio dispositivo":
1. As partes delimitam, através da dedução das respetivas pretensões, o objeto do litígio, incumbindo ao juiz
apreciá-las exaustivamente, sem as exceder.
2. Sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados
pelas partes, bem como nos factos instrumentais que, por indagação oficiosa, lhes sirvam de base.
3. Podem ainda ser considerados na decisão factos essenciais à procedência da pretensão formulada pelo
autor ou da exceção ou reconvenção deduzidas pelo réu que, embora insuficientemente alegadas pela parte
interessada, resultem da instrução e discussão da causa, desde que aquela manifeste vontade de os
aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório".
Sobre este preceito fez-se a seguinte observação:
"O artigo 264.º/3 consagra a atendibilidade dos factos essenciais à procedência da pretensão ou de
exceções que 'embora insuficientemente alegadas pela parte interessada, resultem da instrução (e
discussão?) da causa, desde que aquela manifeste a vontade de os aproveitar (princípio dispositivo) e tenha
sido assegurada à parte contrária a possibilidade de contraprova ou de prova do contrário (princípio do
contraditório). A redação da norma já tinha sido enunciada nas Linhas Orientadoras, esclarecendo-se aí que
243
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
12. Pode, porém, considerar-se uma outra situação: os factos alegados são insuficientes,
mas o Tribunal não proferiu despacho de aperfeiçoamento, revelando-se em julgamento os
novos factos concretizadores da posse. Neste caso, continuam a deparar-se-nos factos
constitutivos, ou seja, factos que, uma vez provados, conduzem à procedência da ação. A parte
que alegou insuficientemente, se desses factos não pudesse beneficiar, dir-se-ia duplamente
prejudicada: não beneficiou do aperfeiçoamento e não viu os factos revelados serem
admitidos.
Argumentar-se-á, a favor do aproveitamento, que a partir do momento em que a lei
comete ao Tribunal o dever de suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou
concretização da matéria de facto (artigo 590.º/3) não faz sentido que a insuficiência de factos
cujo suprimento não foi ordenado não justifique o aproveitamento dos factos revelados na
instrução da causa que colmatam essa insuficiência. A preclusão derivada da omissão de
reclamação obviamente não deve estender os seus efeitos à proibição da admissão dos factos
novos.
Dir-se-á, contra o aproveitamento, que esta é a consequência da preclusão derivada da
omissão de reclamação do despacho de aperfeiçoamento; dir-se-á ainda que esta é a
consequência da omissão de alegação de factos essenciais.
Não se nos afigura que a preclusão tenha este alcance: ou seja, do que se trata agora de
saber é se os factos novos essenciais que resultaram da instrução da causa devem ou não
devem ser admitidos independentemente da possibilidade de a parte os ter alegado
oportunamente.
13. Isto tem interesse, porque se os factos alegados não eram suficientes para se poder
considerar que o autor possuía como proprietário há longos anos o aludido imóvel, tais factos
são factos essenciais concretizadores e, por conseguinte, o Tribunal podia deles conhecer
oficiosamente. 7
244
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
A lei, como resulta do artigo 5.º/1, alínea b), admite o aproveitamento destes factos.
8
A circunstância de se produzir prova sobre o facto novo não significa necessariamente que o Tribunal fique
vinculado no sentido de se lhe impor a admissibilidade desse facto. No entanto, se resultar da audiência que
245
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
246
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
que deriva o direito real, mas ao conjunto dos factos que visam provar a aquisição da
propriedade por usucapião.
23. Nas causas em que a causa de pedir se referencia ao facto jurídico, a concretização ou
complementaridade a que alude o artigo 5.º/2, alínea b), não se referenciam necessariamente
aos factos concretos "que as partes hajam alegado"; referenciam-se, pelo menos nas ações
reais, ao objeto da ação individualizado através do seu próprio conteúdo: no caso, o
reconhecimento da propriedade por usucapião. Por isso, a insuficiência é considerada em
função de todos os factos que permitem esse reconhecimento e não em função dos factos
concretos alegados para o efeito.
24. O juiz, quando da prolação da sentença, verificará, como se disse, se os factos novos
essenciais revelados têm em vista o pedido e causa de pedir determinados à luz dos factos
alegados. Se assim suceder, por certo que tais factos, se fossem insuficientes os alegados
tendo em vista a norma (ou normas) a integrar, concretizariam ou complementariam os
alegados.
O juiz passará a considerá-los, se não houver razão obstativa de ordem processual ou
substantiva, julgando-os provados ou não provados. E por certo também o juiz igualmente os
deve considerar, ainda que sejam suficientes os factos alegados e ainda que estes se tenham
provado, pois relevam todos eles para a procedência da pretensão.
25. De um ponto de vista prático, que não deve ser minimizado, este entendimento é de
aplicação fácil e de alcance equitativo: basta pensar que, a não se considerarem tais factos
novos, uma alteração da matéria de facto no tocante aos factos provados, designadamente no
âmbito de recurso interposto em que se impugnasse a matéria de facto, poderia levar a ação à
improcedência, o que já não sucede a partir do momento em que se admitem os factos novos.
26. Do exposto resulta que, no caso apontado, o Tribunal reconheceria a admissibilidade
de tais factos revelados na instrução da causa e, uma vez provados tais factos novos - os únicos
provados - não poderia com base neles deixar de reconhecer a posse do autor sobre o aludido
prédio rústico.
27. Sabendo-se que, não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só
pode dar-se ao fim de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé
(artigo 1296.º, do Código Civil), os factos que se revelem durante a instrução demonstrativos
de que o autor agia perante toda a população como dono daquela propriedade são factos
concretizadores da invocada posse pública, mas são igualmente complementares dos demais
factos que, em conjunto com aqueles, permitem considerar provada a usucapião pelo decurso
de quinze anos de posse de boa fé e pública.
247
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
28. Significa isto que o Tribunal pode considerar o facto novo revelado em audiência
considerando que o autor praticou todos aqueles atos à vista e com conhecimento de toda a
comunidade, visto que inequivocamente se está face a um facto complementar dos factos
alegados demonstrativos da posse, muito embora seja este facto também um facto essencial
tendo em vista a prova da usucapião.
11
Pressupõe-se que não estamos diante de facto superveniente.
248
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
Causa de pedir
32. Ou, pelo contrário, deveremos hoje considerar afastado este entendimento? Pode
aceitar-se que, tendo o autor proposto ação de divórcio com fundamento em determinados
factos que consubstanciam adultério, o tribunal, face à revelação de outros factos não
alegados - por exemplo, agressões que vitimaram o autor - decrete o divórcio? Pode aceitar-se
que, não invocada pelo autor a perda de interesse na outorga da escritura de compra e venda
mas tão somente o incumprimento definitivo por recusa do cumprimento por parte do
promitente-vendedor, o Tribunal condene o promitente-vendedor no pagamento do sinal
dobrado por incumprimento definitivo do contrato-promessa por falta de interesse do
promitente-comprador? (artigo 808.º, do Código Civil)?
33. Se a lei impõe a alegação de factos essenciais que constituem a causa de pedir (artigos
5.º/1 e 552.º/1, alínea d)) é essa causa de pedir que concretamente o Tribunal deve
considerar. A admissibilidade de novos factos pressupõe que a causa de pedir não seja
alterada. Tratando-se de factos complementares ou concretizadores dos factos alegados que
obviamente caracterizam a causa de pedir não se vê que tal possa suceder. A dificuldade
centra-se, portanto, desde logo na definição da causa de pedir a considerar no caso concreto.
12
Como refere Anselmo de Castro, loc. cit., "para a doutrina da substanciação a causa de pedir, ainda nos
direitos absolutos, será o facto gerador do direito, divergindo a ação sempre que seja diferente o facto
constitutivo invocado. Daí a designação 'teoria da substanciação': o que substancia ou fundamenta a ação (a
pretensão) igualmente a individualiza" (pág. 206).
13
Código de Processo Civil Anotado, por José Alberto dos Reis, Vol III, 3.ª edição, 1981, págs. 125/128.
249
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
34. Se a parte alega factos que não são suficientes para a procedência da ação, não é a
falta ou ininteligibilidade de causa de pedir o que está em causa, mas a improcedência da ação
à luz da caracterizada causa de pedir. Se A. pede a condenação de B. no pagamento do preço
por fornecimentos, a causa de pedir não está suficientemente caracterizada - que
fornecimentos foram efetuados, qual o período de tempo a que respeitam? Mas, com base na
doutrina da substanciação, não pode aceitar-se a condenação do réu considerando que, afinal,
o valor reclamado respeitava, não ao preço da mercadoria fornecida, mas aos prejuízos que
resultaram para o vendedor pelos custos de depósito da mercadoria em consequência do
atraso pelo comprador na receção da mercadoria.
35. A complementaridade ou a concretização têm em vista uma determinada causa de
pedir que, sob pena de ineptidão, há-de estar minimamente caracterizada desde a petição de
modo a que se haja com a citação estabilizada a instância (artigos 186.º, 259.º/2). Assim, o
incumprimento definitivo daquele contrato-promessa face à interpelação admonitória, o
divórcio por violação do dever de fidelidade face ao alegado adultério, o não pagamento do
preço de mercadoria fornecida referenciam-se sempre aos factos essenciais alegados que
constituem a causa de pedir, não admitindo a lei a consideração oficiosa de factos essenciais
não alegados referenciados a causa de pedir diversa daquela que deles resulta.
36. Quando o adultério constituía fundamento autónomo do divórcio ou de separação
judicial de pessoas e bens (artigo 1778.º, alínea a), do Código Civil de 1966), as agressões
físicas integravam o fundamento que constava da alínea g), desse mesmo artigo 1778.º, a
saber, "qualquer outro facto que ofenda gravemente a integridade física ou moral do
requerente".
No entanto, atualmente, a norma que tais factos têm em vista é a que consta da alínea d),
do artigo 1781.º, do Código Civil - "quaisquer outros factos que, independentemente da culpa
dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento" e, por isso, a menção de agressões,
a par do adultério, constituem factos concretizadores da ruptura do casamento.
Esta previsão normativa pode ser preenchida com quaisquer factos que evidenciem o fim
do casamento.
37. Releva nas ações constitutivas "o facto concreto que se invoca para obter o efeito
pretendido" (artigo 581.º/4); então, assim sendo, dir-se-á, o facto concreto essencial a atender
é aquele que foi concretamente alegado de modo suficiente para a caracterização da causa de
pedir e não todos os factos essenciais suscetíveis de preencher a categoria normativa "ruptura
definitiva do casamento".
250
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
251
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
43. Não se verificando tal situação, só se pode aceitar tal facto novo essencial não alegado
se não reconduzirmos a causa de pedir à violação de deveres conjugais que "mostrem a
ruptura definitiva do casamento" (artigos 1672.º e 1781.º, alínea d), do Código Civil). A causa
de pedir invocada seria o limite, a revelação dos factos novos no decurso da instrução seria a
condição.
44. No exemplo figurado, resultando da instrução que o réu agredira o autor, nenhuma
dúvida se suscita de que tal facto traduz violação do dever de respeito e, por si, é suscetível de
demonstrar a ruptura do casamento. Este facto não é todavia complementar nem
concretizador dos factos invocados comprovativos do adultério demonstrativos da violação do
dever de fidelidade; nem se pode afirmar que este facto – a agressão – seria alguma vez
suscetível de se conjugar com os factos alegados visando demonstrar a rutura definitiva do
casamento por violação do dever de fidelidade.
45. Repare-se todavia no seguinte: a violação dos deveres conjugais não constitui a
referência normativa causal com base na qual se irá reconhecer ou não a "ruptura definitiva do
casamento". É que, hoje, a culpa não releva enquanto fundamento do divórcio; releva a
constatação dos factos que evidenciem tout court a existência de uma rutura. Então, assim
sendo, os factos integrativos do divórcio são todos os factos, entre outros, suscetíveis de
revelar essa rutura que é ela em si a causa do pedido de divórcio.
46. Trata-se, portanto, mais uma vez, de ponderar se a suficiência dos factos alegados
obsta ou não obsta a que o Tribunal possa admitir factos complementares dos factos alegados
no sentido que considerámos anteriormente: factos que se conjugam com os alegados tendo
em vista o preenchimento da realidade normativa causal. Ora, para esta concorrem todos os
factos essenciais ocorridos, existindo sempre insuficiência quando não são alegados todos os
factos que podiam ter sido alegados.
47. O Tribunal, revelada a agressão em julgamento, pode considerar oficiosamente este
facto e decretar o divórcio; também, no âmbito do pré-saneador, a parte pode alegar este
facto ainda que haja sido convidada a alegar factos concretizadores de uma alegação
insuficiente de adultério. Acrescente-se, em nota final, que se a causa de pedir fosse
constituída pela violação culposa de deveres conjugais, não podia o autor invocar factualidade
integrativa de diversa causa de pedir: a violação do dever de respeito quando estava em causa
a violação do dever de fidelidade.
252
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
Factos instrumentais
48. Quanto aos factos instrumentais não impende sobre as partes nenhum ónus de
alegação. É também aqui evidente que é do interesse das partes a alegação de factos
instrumentais – que são aqueles que, por si, não bastam para a procedência da ação ou da
exceção, como sucede com os factos essenciais, mas permitem "inferir a demonstração dos
correspondentes factos principais" 14.
49. Nalguns casos será seguramente difícil a qualificação de um facto como instrumental
ou como facto essencial. No exemplo anteriormente apontado, pelo menos alguns atos
mencionados integrativos da posse por si sós não seriam suficientes para se considerar que o
autor era um possuidor. Tais atos poderiam por tal motivo ser vistos como atos meramente
instrumentais. Importa, segundo nos parece, ter, quanto a este aspeto, algum cuidado: um
facto que, em si, não permita preencher a categoria normativa causal visada, não é
necessariamente um facto instrumental. Não se afigura que a natureza essencial do facto
deixe de subsistir pela circunstância de ele carecer de se conjugar - de se complementar - com
outro facto para se preencher o tipo legal visado, o que sucede frequentemente nas causas de
pedir complexas.
50. Há, no entanto, factos instrumentais que, pelo seu significado probatório, quase se
confundem com os factos essenciais alegados. Veja-se o caso, que era muito comum nos
tribunais, da ação de despejo com fundamento na falta de residência permanente do
arrendatário. Alegando o autor que o réu não habita no local arrendado - seria este hoje o
tema de prova - a concretização dessa afirmação, equivalente à menção de que o réu não tem
no local arrendado a sua residência permanente, fazia-se normalmente alegando-se que ali
não come, não dorme nem é visto. A ausência de prova sobre tais factos apoiada em prova
testemunhal e por inconcludência nos gastos de luz, água e gás levaria a ação à improcedência;
assim não sucederá perante o facto novo instrumental revelado em julgamento de que o réu
vive noutra localidade em casa própria, adquirida por si, ali vivendo com os filhos menores.
Âmbito da oficiosidade
51. Atente-se que o Tribunal pode considerar os factos complementares ou
concretizadores revelados na instrução da causa ainda que a parte a quem aproveitam nada
diga, mas o Tribunal apenas pode considerar tais factos se à parte contrária tiver sido
proporcionada a possibilidade de se pronunciar (artigo 5.º/1, alínea b).
14
Teixeira de Sousa, loc. cit., pág. 72.
253
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
É certo, quanto aos factos dessa natureza que se revelam na discussão da causa, que a
presença dos mandatários implica o conhecimento dos factos e a possibilidade de se
pronunciarem sobre eles; é certo também que, tratando-se de factos que resultem de atos
praticados na fase de instrução, pode assim não suceder. Mas isso não significa que o Tribunal
possa sem mais considerar tais factos adquiridos em termos probatórios.
52. Não tem, a nosso ver, o juiz, no decurso do julgamento e perante o desenrolar da
prova, de mencionar pari passu que estão a ser revelados factos novos de natureza
instrumental. As partes não podem deixar, perante tais factos, se entenderem que se justifica
a produção de prova destinada a infirmar o que brotou de novo no julgamento, requerê-la
efetivando o exercício do contraditório.
53. A possibilidade de exercício do contraditório é fundamental. Por isso, constatando o
juiz que determinado facto revelado em audiência – a instrução não constitui uma fase
estanque, prolonga-se durante a audiência final e mesmo, limitadamente embora, para além
dela – constitui facto complementar ou concretizador dos factos que as partes hajam alegado
à luz da causa de pedir que deles promana, deve o juiz, na audiência, informar as partes da
relevância desse facto e da natureza que o caracteriza no âmbito do litígio a fim de, querendo,
exercerem o contraditório. Tal matéria passa a constituir tema de prova à semelhança do que
sucede com os factos supervenientes que interessam à decisão da causa (artigo 588.º/6). Se o
juiz não tiver ampliado o tema de prova em audiência, pode reabri-la para o efeito (artigo
607.º) salvo se a parte interessada declarar que não pretende exercer o contraditório
relativamente a tal matéria; o Tribunal da Relação pode igualmente determinar a ampliação do
tema de prova a fim de ser objeto de discussão a nova factualidade que resulta da instrução da
causa (artigo 662.º/2, alínea c)).
54. Na verdade, o exercício do contraditório pressupõe uma clara definição dos temas de
prova; entende-se que o Tribunal pode conhecer desses factos revelados na instrução da causa
independentemente da vontade das partes sem o que afinal não existiria oficiosidade. E se
esta existe é precisamente para se viabilizar, tanto quanto possível no interesse da verdade,
uma ampla cognoscibilidade em matéria de facto. No entanto, o processo está fundado em
princípios fundamentais, um dos quais é precisamente o princípio do contraditório.
55. Ora se aceitamos que o juiz pode conhecer de factos complementares e
concretizadores com o âmbito já mencionado e se entendemos que a possibilidade de
conhecimento dos factos novos não está dependente da vontade das partes quando eles são
revelados em audiência ou na instrução da causa, não seria aceitável que as partes pudessem
254
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
ficar sujeitas à incerteza decorrente da consideração pelo juiz de uma realidade de facto
essencial sem existir um juízo prévio sobre a relevância dessa realidade.
Poderes do Tribunal
56. O Tribunal pode impedir direta ou indiretamente a produção de prova sobre factos
alegados?
A resposta é afirmativa. Se o artigo 6.º/1 prescreve que o juiz pode recusar "o que for
impertinente ou meramente dilatório" é evidente que devem ser recusadas as diligências de
prova e também a produção de prova admitida sobre factos impertinentes ou meramente
dilatórios. Também o artigo 410.º prescreve que a instrução tem por objeto "os factos
necessitados de prova" e não são seguramente factos necessitados de prova os factos
impertinentes ou meramente dilatórios.
A circunstância de o juiz oficiosamente sujeitar ao crivo do contraditório factos
complementares ou concretizadores que estejam no âmbito dos seus poderes de cognição,
não obsta, como é evidente, que a parte interessada requeira que seja constituído como tema
de prova determinado facto de natureza complementar ou concretizadora revelado em
audiência e viabilizado o contraditório.
Temas de prova
57. No entanto, a instrução tem em primeira linha (artigo 410.º) por objeto "os temas de
prova enunciados" (artigo 596.º/1) e aqui já estamos perante uma alegação factual de
natureza genérica.
58. Se o tema de prova consiste em saber se o acidente resultou da invasão da faixa de
rodagem onde circulava o veículo A. pelo veículo B que, vindo de entroncamento à direita,
considerado o sentido de marcha daquele, não parou ao sinal de Stop ali existente, toda a
averiguação sobyre factos complementares, concretizadores e instrumentais referentes ao
mencionado tema de prova não deixará de ser admissível exatamente nos mesmos termos em
que seria admissível a produção de prova que sobre eles houvesse de incidir quesitados que
fossem per se. A prova de que o condutor entrou no entroncamento desrespeitando o sinal de
aproximação de estrada com prioridade e não o sinal de Stop não pode deixar de ser
admissível conquanto se esteja face a um facto essencial concretizador da alegada existência
no local de sinal de trânsito que não confere prioridade a quem circula nessa via. A
concretização não deve ser vista com referência ao assinalado sinal de Stop, mas com
referência a um assinalado sinal de perda de prioridade sob pena de se beneficiar quem alega
255
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
genericamente no confronto com aquele que, embora errando, procura concretizar o mais
possível as razões que entende assistir-lhe.
59. A elaboração de temas de prova não constitui todavia nenhum passaporte para um
interrogatório de testemunhas não factual do tipo "diga o senhor s.f.f. o que sabe sobre o
acidente ocorrido entre os veículos A. e B"; tão pouco constitui passaporte para um
interrogatório em que a parte interrogue a testemunha sobre factos alegados sem pertinência
para o litígio em concreto do tipo "a senhora testemunha disse que não presenciou o acidente,
mas diga-me s.f.f. se aquele é um local em que os veículos circulam habitualmente a grande
velocidade”, diga-me se o condutor do veículo B é pessoa cuidadosa na condução sendo
impensável que alguma vez desrespeitasse o sinal de Stop que se lhe deparasse à entrada de
entroncamento, etc. etc.).
60. Por isso, em audiência final, a prova há-de principiar sempre e tão somente sobre os
factos necessariamente essenciais integrativos dos temas de prova enunciados. É certo que a
lei, no que à prova pericial respeita, admite que esta se reporte aos factos articulados e não
apenas às questões de facto essenciais que se inserem nos temas de prova (artigo 475.º/2).
Isto significa que à prova pericial podem interessar, conquanto articulados, factos
concretizadores, factos instrumentais e factos complementares desde que se insiram nos
temas de prova enunciados o que evidencia o interesse, anteriormente referido, das partes em
muitos casos não se limitarem nos articulados à mera alegação dos factos essenciais.
No entanto, como é evidente, a prova será admitida se tais factos forem pertinentes e,
por isso, a lei 15 prescreve que o juiz pode indeferir "as questões suscitadas pelas partes que
considere inadmissíveis ou irrelevantes" (artigo 476.º/2).
No decurso da instrução da causa que não se reduz à audiência final - embora seja esta
que temos agora principalmente em vista - podem evidenciar-se factos que não tenham sido
alegados. São factos novos precisamente porque não foram alegados.
Superveniência
61. Tais factos, se forem instrumentais, podem ser sempre considerados pelo Tribunal e,
ainda que sejam supervenientes, não estão sujeitos ao regime de admissibilidade constante do
artigo 588.º e segs, pois com eles visa-se a prova de factos revelados durante a instrução da
causa, portanto, de conhecimento oficioso. Com efeito, se A. propõe contra B. ação de despejo
alegando que B. não utiliza o local arrendado para habitação há mais de um ano, ninguém o
15
Ainda que o não dissesse, seria de entender da mesma forma.
256
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
tendo visto nem à mulher nem aos filhos, constitui facto instrumental a menção de que no
local arrendado está a viver a filha casada do réu que o réu visita de tempos a tempos.
62. Se forem factos complementares ou concretizadores dos factos que as partes hajam
alegado, afigura-se-nos distinguir as situações de superveniência subjetiva das situações de
superveniência objetiva. Se o tribunal pode conhecer oficiosamente dos factos revelados
durante a instrução da causa que sejam complemento ou concretização dos factos alegados
com o sentido que já foi referido, a necessidade de se provar que a parte não tinha
conhecimento do facto excluiria a própria oficiosidade. Já quanto à superveniência objetiva, a
necessidade da sua alegação resulta da oficiosidade valer quanto aos factos novos
conexionados com os factos alegados. Sucede que os factos novos a ter em conta
oficiosamente são todos e apenas aqueles suscetíveis de terem sido alegados, ou seja, todos os
que já se tinham verificado quando a ação foi proposta.
Prova
63. Constitui facto essencial complementar dos factos alegados reveladores da
incapacidade do testador entre os quais o de se esquecer do nome de pessoas próximas, o de
se esquecer de que já falecera o seu cônjuge, pedindo a sua presença e lastimando-se da sua
ausência etc. etc., a menção efetuada em audiência final de que ele padecia há anos de
doença de Alzheimer que tinha já atingido um grau de evolução em que o próprio não estava
apto a medir o sentido da sua própria declaração (artigo 2199.º, do Código Civil).
64. Se em muitos casos a revelação de tais factos não constituirá uma surpresa no sentido
em que, atento o alegado, seria admissível que da prova resultasse esse facto novo - parece-
nos ser o caso do exemplo apontado respeitante à posse – já noutros – será o que acontece no
exemplo da incapacidade – o facto é inesperado porque seria de esperar que, pela sua
relevância, fosse o primeiro a ser alegado. A controvérsia sobre a incapacidade do testador
quando lavrou o testamento tinha em vista uma situação em que os factos apontariam para
uma incapacidade acidental e não para uma incapacidade permanente.
65. Não pode, a nosso ver, ser inviabilizada a produção de prova destinada a infirmar o
que desses factos resulta (v.g. a junção aos autos de toda a documentação clínica respeitante
ao testador e apreciação pericial tendo em vista saber se, face ao que da documentação clínica
consta, padecia o testador da referida doença) pois à parte prejudicada com a valorização
probatória desses factos novos "a possibilidade de se pronunciar" sobre eles não se restringe
ao exercício do contrainterrogatório, ou seja, "as instâncias indispensáveis para se completar
257
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
ou esclarecer o depoimento" (artigo 517.º/2). Com isto se quer dizer que em muitos casos o
exercício do contraditório pode implicar atos de instrução relevantes.
66. Aliás, no âmbito do despacho pré-saneador, a lei admite que seja apresentado novo
articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido (artigo 590.º/4) ficando os
factos aditados sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova (artigo 590.º/5). De
igual modo o exercício do contraditório e prova também são admissíveis se houver que
proceder ao suprimento das insuficiências da matéria de facto na audiência prévia com a
diferença de que, em tal caso, é desnecessária a apresentação de articulado visto que, logo
nessa ocasião, devem ser indicados os factos que integrem o exercício do contraditório.
67. Atente-se, porém, que a parte que não alegou factos essenciais ou complementares
dos factos essenciais alegados corre o risco, se deles tinha conhecimento quando propôs a
ação, de não poder beneficiar da sua aquisição processual se tais factos não "entrarem" no
processo por via da instrução da causa.
68. Assiste-lhe o direito de produzir prova sobre factos que se tenham revelado durante a
instrução da causa salvo, como é evidente, se o Tribunal considerar que tais factos não são
relevantes ou que, embora relevantes, não podem ser considerados por implicar a sua
aquisição processual violação da causa de pedir 16.
16
A consideração de factos novos revelados na instrução da causa não significa, assim sendo, que a parte
tenha incorrido em insuficiência de alegação. Refira-se que o convite que o Tribunal deve dirigir tendo em
vista o aperfeiçoamento não é admissível se os factos em causa constituírem causa de pedir diversa da
causa de pedir alegada ou que a parte tinha concretamente em vista. Ex: A. demanda B. considerando que o
veículo segurado não respeitou o sinal de stop invadindo a faixa em que circulava; B. nega a existência
naquele momento no local do embate de um sinal de Stop que dali teria sido removido ou de qualquer
outro sinal que conferisse prioridade ao condutor do veículo A; resultando todavia do auto de sinistro
elaborado pela autoridade policial a existência de rastos de travagem e a referência pelo condutor do
veículo A. que o outro veículo surgiu subitamente na via em manobra de travagem, não pode o Tribunal
convidar o A a alegar que o veículo segurado em B circulava com velocidade inadequada para quem se
aproxima de um cruzamento, ainda que com prioridade por vir da direita, impondo-se sempre uma
manobra de aproximação à via realizada lenta e cuidadosamente? Implicam tais factos novos não alegados
causa de pedir diversa? A causa de pedir em acidentes de viação é complexa, inclui todos os factos que
contribuíram para a eclosão do acidente. Se considerarmos apenas os factos alegados (o condutor do
veículo segurado entrou na via violando sinal de Stop), a falta de prova desse facto conduz à improcedência
da ação porque afinal lhe assistia prioridade; provando-se os factos que resultaram da instrução da causa,
ou seja, que o veículo segurado na ré, beneficiando da prioridade por se apresentar pela direita, entrou com
velocidade no cruzamento sem abrandar a velocidade de que vinha animado, pode decidir-se que a
responsabilidade do acidente pertence aos dois condutores.
258
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto
Concluindo:
I- A lei não impõe qualquer limitação ao ónus de alegação dos factos, dispondo as partes
de toda a liberdade para alegarem os factos essenciais e instrumentais que reputem
convenientes, aceitando-se que o façam de forma exaustiva visto que o seu aproveitamento
oficioso em fase ulterior do processo está condicionado à sua revelação na instrução da causa.
II- A superveniência subjetiva não obsta à admissibilidade de factos novos que resultam
da instrução da causa pois a lei admite o seu conhecimento oficioso.
III- A admissibilidade de factos complementares ou concretizadores pressupõe que se
conexionem (a) com factos que as partes hajam alegado, que resultem da instrução da causa
(b) e que as partes (c) sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciarem.
IV- Os factos novos têm de respeitar a causa de pedir que emerge dos factos
concretamente alegados; no entanto, no que respeita à qualificação jurídica, esta pode ser
diversa da que as partes tinham em vista à luz da causa de pedir que invocaram; ou seja, a
causa de pedir é aquela que resulta dos factos alegados e, por conseguinte, o direito pode ser
reconhecido ainda que fundado em causa de pedir diversa da invocada desde que esta tenha
suporte nos factos alegados.
V- Não obsta à admissibilidade dos factos novos que resultam da instrução da causa
enquanto factos complementares ou concretizadores dos factos alegados a suficiência destes
tendo em vista a pretensão deduzida.
VI- A complementaridade ou concretização dos factos novos deve ser considerada à luz da
causa de pedir que emerge dos factos concretamente alegados e a conexão com estes deve
ser considerada, tendo em vista a totalidade dos factos ocorridos integrativos dessa causa de
pedir que podiam ter sido alegados e não foram alegados, interpretação que está em
conformidade com a letra e o espírito do artigo 5.º, do C.P.C.
VII- Os factos novos concretizadores podem ser tanto os factos que emergem de
conclusões de facto alegadas como os que emergem de conceitos de direito desde que estes
se conexionem com factos alegados respeitantes à mesma causa de pedir.
VIII- Se o Tribunal, no decurso da instrução, constatar que se evidenciam factos de
natureza complementar ou concretizadora deve considerar oficiosamente que tais factos
constituem tema de prova, convidando as partes para, querendo, quanto a eles exercerem o
contraditório.
259
Videogravação da comunicação
260
Temas da prova e instrução
[Elizabeth Fernandez]
Temas da prova e instrução
Sumário:
I – As mudanças na produção de alguns meios de prova: a prova testemunhal e a
prova documental.
II – Crítica da inconsequente apresentação inicial dos requerimentos probatórios.
III – O que deveria ter mudado e nao mudou: cuidados de interpretação com a
prova pericial.
IV – As novas provas: as declarações de parte e as verificações não judiciais
qualificadas.
263
Videogravação da comunicação
Vídeo 1 Vídeo 2
264
Temas da prova e instrução
Sumário:
I – Temas da prova
I.I – Distinção entre (identificação do) objeto do litígio (arts. 596.º, n.º 1, e
607.º, n.º 2) e (enunciação das) questões que ao tribunal cumpre
solucionar (art. 607.º, n.º 2) – cfr., ainda (conhecimento das) questões a
resolver (arts. 595.º, n.º 2, e 608.º)
I.II – Enunciação dos temas da prova (art. 596.º, n.º 1)
II – Instrução
II.I – Oportunidade de apresentação e de alteração dos requerimentos
probatórios
II.II – Meios de prova
II.II.I – Prova por documentos
II.II.II – Declarações de parte
II.II.III – Verificações não judiciais qualificadas
II.II.IV – Prova testemunhal
(III – Audiência final)
267
Videogravação da comunicação
Vídeo 1 Vídeo 2
268
Sentença Cível
1
Texto cedido pelo autor para a presente publicação.
Sentença Cível
Sentença Cível 1
António Santos Abrantes Geraldes
1. No processo civil, o termo “sentença” designa o “acto pelo qual o juiz decide a causa
principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa” (art. 152º, nº 2, do
NCPC). Tal expressão abarca também, além da decisão final dos procedimentos cautelares, o
despacho saneador que conhece imediatamente do mérito da causa, isto é, que aprecia o
pedido ou algum dos pedidos ou excepção peremptória, nos termos do art. 595º, nº 1, al. b),
do NCPC.
Porém, atenta a recentíssima entrada em vigor do NCPC, incidirei especialmente sobre as
alterações que se materializaram no art. 607º, respeitante à “sentença”, como acto que, após
a audiência final, congrega tanto a decisão da matéria de facto, como a respectiva integração
jurídica, por comparação com o que anteriormente emergia dos arts. 653º (decisão da matéria
de facto) e 659º (sentença).
1
Corresponde ao texto-base da intervenção nas “Jornadas de Processo Civil” organizadas pelo CEJ, em 23 e
24 de Janeiro de 2014.
271
Sentença Cível
2
É evidente que a decisão da matéria de facto não deve ser condicionada por uma preconcebida solução
jurídica, devendo o juiz verter na mesma o resultado da convicção formada sobre os meios de prova sujeitos
a livre apreciação ou o que decorre de meios de prova vinculada. Mas tal não significa que o juiz, nesse
momento, se abstraia e desconsidere as respectivas consequências jurídicas.
Assim, com respeito pelos deveres deontológicos que obrigam a um distanciamento em relação ao resultado
da lide e sem embargo da necessidade e obrigatoriedade de o juiz motivar a decisão sobre a matéria de
facto, não poderá deixar de antecipar os efeitos que resultam da prova ou da falta de prova de certos factos,
assim como deve ponderar, em face dos institutos jurídicos em causa, os factos cuja prova se revela
necessária para que a acção ou a excepção proceda.
3
As atribulações do processo legislativo que começou por ter como objectivo uma alteração do anterior CPC
e acabou com a aprovação de um novo CPC explicam algumas incongruências, traduzindo-se uma delas na
inserção do nº 4 no art. 605º, segundo o qual “nos casos de transferência ou promoção, o juiz elabora
também a sentença”. Este preceito justificar-se-ia se tivesse sido mantida a cisão entre o julgamento da
matéria de facto e a respectiva integração jurídica. Já não se mostra necessário no modelo adoptado na
versão final do NCP, que prescreve a fusão de ambos os julgamentos na sentença, bastando para o efeito o
que está previsto no nº 3, nos termos do qual a transferência ou a promoção do juiz não interferem na
conclusão do julgamento.
272
Sentença Cível
4
Relativamente à Reforma do Processo Civil de 1996/97, poderão ser colhidas observações mais completas
que inseri em “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. I (princípios gerais e fase inicial) e vol. II (audiência
preliminar, despacho saneador, decisão da matéria de facto).
Já relativamente ao NCPC, abordei a matéria dos recursos em “Recursos no Novo CPC” (2013), e remeto
ainda, no que concerne aos Trabalhos Preparatórios, para textos publicados na revista Julgar, nº 16 (2012)
(“Nova Reforma do processo Civil”), em II Cadernos da Revista do Ministério Público (2012) (“Recursos”) e na
Revista da Ordem dos Advogados (2012) (“Reforma do Processo Civil”).
273
Sentença Cível
fundamentos apresentados pelo réu, máxime quando se defenda por excepção que ainda não
tenha sido apreciada no despacho saneador.
Culminará este segmento da sentença com a enunciação das “questões jurídicas” que
cumpre apreciar, na certeza, porém, de que as mesmas não correspondem a meros
argumentos jurídicos, antes aos vectores fundamentais da acção e da defesa, a que poderão
ainda acrescer outras que sejam de conhecimento oficioso 5.
Este enunciado, que ganhou forma há cerca de 30 anos, com o DL nº 242/85, de 9 de
Julho, repudia naturalmente a descrição pormenorizada de todos os passos processuais, tal
como é avesso à reprodução de todas as alegações ou argumentos apresentados nos diversos
articulados, devendo registar-se apenas aquilo que seja necessário à compreensão do que será
objecto de apreciação 6.
Em todos os casos o relatório da sentença (e dos acórdãos) deve respeitar o critério que o
legislador fixou, orientado por factores que favoreçam a clareza, a simplicidade e a utilidade
dos elementos expostos. Sendo escasso o tempo e os meios disponibilizados, os juízes devem
concentrar-se naquilo que é fundamental, não podendo ignorar o relevo que deve ser dado a
factores de eficiência associada à garantia judiciária em prazo razoável, como o determina a
Constituição e o art. 2º, nº 1, do NCPC 7.
5
Em regra, verificar-se-á uma coincidência entre o “objecto do litígio” a que se reporta o art. 607º, nº 2, e o
modo como o juiz, na audiência prévia, delimitou os “termos do litígio” (art. 591º, nº 1, al. c)).
Porém, para além de esta delimitação não ser vinculativa nem para o juiz que a concretizou, nem para o que
venha a realizar o julgamento e a proferir a sentença, não está afastada a possibilidade de, através de uma
análise mais profunda dos autos, se revelarem outras questões que resultem dos articulados, que tenham
sido suscitadas posteriormente ou que sejam de apreciação oficiosa.
Em tais circunstâncias, importará verificar se o contraditório se mostra garantido ou se, ao invés, é
necessária a audição das partes que evite decisões-surpresa, nos termos do art. 3º, nº 3.
6
A simplicidade do relatório não é uma característica específica da sentença, devendo também orientar a
estruturação dos acórdãos da Relação (art. 663º) e do Supremo Tribunal de Justiça (art. 679º), em que ainda
menos se compreendem extensos relatos dos passos processuais, numa ocasião em que se exige uma
concentração nas questões que integram o objecto do recurso, cujos limites não coincidem
necessariamente com o objecto da acção.
Aqui o que fundamentalmente importa é que sejam trazidos para o relatório os aspectos que importem à
delimitação do objecto do recurso e à inteligibilidade do seu julgamento.
7
Em termos pragmáticos, o juiz deve colocar-se na perspectiva de quem vai ser confrontado com a
sentença: a parte, os mandatários, os juízes dos Tribunais Superiores ou mesmo terceiros que à mesma
acedam. Assegurando que a sentença seja facilmente compreendida, deve omitir os elementos que não
revelem qualquer utilidade, nem prática, nem jurídica.
274
Sentença Cível
275
Sentença Cível
8
A sentença, como os demais actos processuais, deve ser redigida em português (art. 133º, nº 1, do NCPC),
mas numa linguagem corrente e fluente que, sem ser coloquial, permita a fácil compreensão do seu
conteúdo.
No que concerne à matéria de facto provada, deve evidenciar, de forma imediata, coerente e lógica, a
realidade sob apreciação, o que de modo algum se satisfaz com a colagem de diversos elementos que nem
sequer internamente se mostram ordenados.
Tal como acontece com um puzzle, em que o encaixe das peças se revela imprescindível à representação da
imagem, também a realidade que o Tribunal considera apurada apenas ganha sentido com a ordenação dos
diversos segmentos da matéria de facto. Ainda que se mantenha o número de componentes, o amontoado
de peças (ou o arrazoado de factos) não permite perceber a imagem (ou a realidade) em que se integra cada
um dos elementos.
Acresce que determinados segmentos da matéria de facto apenas revelam o seu verdadeiro sentido depois
de contextualizados, atendendo, por um lado, ao modo como foram alegados e, por outro, aos motivos por
que foram considerados provados.
Com facilidade se encontram exemplos de uma deficiente metodologia na elaboração de decisão judiciais,
designadamente em acções de responsabilidade civil por acidente de viação, em que é usual a mera
transcrição dos factos assentes, seguida de outros que decorrem da alegação do autor e do réu, uns
relativos às circunstâncias do acidente, outros aos diversos danos invocados, numa amálgama dificilmente
decifrável. Nestas e noutras situações, só uma ordenação lógica e coerente da matéria de facto permite
percepcionar a realidade que está em causa, tarefa que, uma vez executada, facilita a sua integração
jurídica.
276
Sentença Cível
9
Não era nem será concebível a prolação das famigeradas “sentenças por apontamento”, com declaração
oral do resultado do litígio, tal como não é sustentável a separação cronológica da decisão da matéria de
facto e da sua integração jurídica.
Já nada impede que a sentença seja proferida oralmente, no final da audiência de julgamento, ficando
gravada, nos termos dos arts. 155º, nº 1, e 153º, nº 3, opção que se revela especialmente eficiente nos
casos mais simples.
10
Tal como ocorre na pintura, o estilo realista ou naturalista não é o único capaz de representar a realidade.
Posto que estejam afastadas técnicas associadas ao abstraccionismo e sem embargo de determinadas
situações carecerem de uma maior pormenorização, uma linguagem impressionista ou expressionista pode
revelar-se suficiente para descrever a realidade em sentenças judiciais, desde que essa realidade seja
perceptível não apenas pelo juiz, como pelas partes e, depois, pelos Tribunais Superiores.
277
Sentença Cível
apreciação dos meios de prova que foram produzidos na audiência final ou da análise do
processado 11.
O julgamento da matéria de facto provada e não provada será o resultado de dois
processos decisórios submetidos a regimes diversificados.
Determinados meios de prova não consentem qualquer margem de apreciação,
gozando de força probatória plena. Assim ocorre com a confissão que a lei admita (arts. 354º e
358º do CC) e com os documentos autênticos, autenticados e mesmo particulares, nos termos
que estão regulados nos arts. 371º, nº 1, e 376º, nº 1, do CC.
A força probatória plena equivalente à confissão acompanha também os factos
relativamente aos quais exista acordo expresso ou tácito das partes, nos termos dos arts. 574º,
nºs 2 e 3, e 587º, nº 1, do NCPC, sem embargo das limitações aí previstas.
Nestes casos, os factos que encontrem em tais meios de prova força plena terão de ser
obrigatoriamente assumidos pelo juiz, sem que possam ser infirmados por outro género de
provas (v.g. testemunhas, perícias ou presunções judiciais).
E numa outra perspectiva, acautelada no art. 607º, nº 5, também é vedado ao juiz
declarar provados determinados factos para os quais a lei exija determinada formalidade
especial ou por documentos sem que essa exigência legal se mostre satisfeita.
Fora destas situações vigora o princípio da livre apreciação, nos termos do qual o juiz
aprecia os meios de prova segundo a sua prudente convicção, aplicando no exercício desse
múnus as legis artis adequadas (nº 5 do art. 607º).
Tal revela-se especialmente relevante no que concerne à prova testemunhal (com as
excepções previstas nos arts. 393º a 395º do CC), à prova por declarações de parte (art. 466º,
nº 3, do NCPC), à prova pericial (em que esse princípio expresso no art. 389º do CC deve ser
usado cum granu salis), à prova por inspecção judicial e por verificação não judicial qualificada
11
Manifestando-se neste momento o confronto entre a verdade material e a verdade processual, limitar-
me-ei a evidenciar a necessidade de o juiz adoptar um critério de razoabilidade no que concerne à
afirmação da prova ou da falta de prova dos factos controvertidos.
Cientes de que a verdade absoluta é estranha ao Direito e que, por conseguinte, a formulação de juízos
judiciários deve assentar, conforme as circunstâncias e a natureza do caso, em critérios que se orientem
pela verosimilhança ou pela maior ou menor probabilidade, não devem ser feitas exigências probatórias
irrealistas que, na prática, acabem por revelar uma situação de denegação de justiça.
Importa, por outro lado, ponderar, além dos aspectos ligados à distribuição do ónus da prova, os dados
revelados pela experiência judiciária no que concerne ao exercício desse ónus, sem ignorar sequer a postura
concretamente adoptada pela parte contrária sobre a qual também recaem exigências decorrentes do dever
de cooperação relativamente à descoberta da verdade e outras associadas ao ónus de contraprova.
278
Sentença Cível
(nos termos do art. 391º do CC e do art. 494º, nº 3, do NCPC) e à prova por presunções que
sofre as limitações previstas para a prova testemunhal (art. 351º do CC).
6.3. No que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não
será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma
como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova,
tarefas relativamente às quais foram introduzidas no NCPC importantes alterações que
visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia
usualmente aplicada no âmbito do anterior CPC 12.
Quanto ao ónus de alegação cumpre destacar o que agora dispõe o art. 5º, nº 1,
devendo o autor e o réu concentrar-se nos factos essenciais que constituem a causa ou causas
de pedir 13 ou em que se baseiam as excepções invocadas (a que deve acrescer a alegação,
ainda que não preclusiva, dos respectivos factos complementares), sem excessiva preocupação
pelos factos instrumentais, já que estes poderão ser livremente discutidos na audiência final.
Naturalmente o referido ónus de alegação exerce influência na enunciação dos temas
da prova que deverão ter por base os fundamentos de facto da acção e da defesa, sem que
essa vinculação leve ao extremo (revelado pela prática anterior) de inserir toda a factualidade
alegada (e controvertida) só por que foi alegada 14.
12
Sem embargo do necessário aggiornamento que se adapte às formulações legais constantes do NCPC,
remeto para o que já tratei em “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 4ª ed. (2010), págs. 216 e segs.,
onde, com mais desenvolvimento, abordei diversas questões atinentes à “decisão da matéria de facto”,
designadamente os segmentos decisórios de conteúdo positivo, negativo, restritivo e explicativo, a par das
patologias reveladas pelo teor excessivo, obscuro, contraditório ou puramente jurídico.
13
Foi praticamente abolida a possibilidade de alteração ou de ampliação da causa de pedir ou do pedido
(arts. 264º e 265º do NCPC), o que necessariamente se deve reflectir na elaboração da petição inicial,
designadamente no que concerne à fundamentação da pretensão.
14
Como regra que deve ser adaptada às circunstâncias do caso, os temas da prova devem centrar-se apenas
nos factos essenciais relativamente aos quais persista a controvérsia, excluindo, por isso, em regra, os factos
instrumentais que não integram qualquer pressuposto legal da acção ou da defesa.
Mas tal não significa que se mantenha a anterior metodologia que rodeava a elaboração da base instrutória,
parecendo-me inteiramente ajustada aquela para que apontam Ramos Faria e Ana Loureiro, em Primeiras
Notas ao NCPC, vol. I, quando assumem com frontalidade que os temas de instrução podem ser
identificados até por referência a conceitos de direito ou conclusivos, desde que todos os sujeitos
compreendam de facto o que está em discussão (pág. 510) e a forma usada permita o adequado julgamento
da causa em que se integram (pág. 508). Em suma, asseveram que “sem grande preocupação sobre a
qualificação dos factos, a enunciação dos temas da prova deve permitir apenas que se conheça o que está
ainda em causa na instrução, que questões de facto ainda não estão resolvidas”.
279
Sentença Cível
A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e
harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de
respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente
preenchiam os diversos pontos da base instrutória do anterior CPC.
Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, nos temas de prova se
inscreveram factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos
convertida num relato natural da realidade fixada.
Já quando porventura se tenha optado por proposições de carácter mais abrangente
ou de pendor mais genérico ou conclusivo, mas que permitam delimitar e compreender a
matéria de facto que é relevante para a resolução do concreto litígio, poderá justificar-se um
maior labor na sua concretização, seguindo um critério funcional que atenda às necessidades
do concreto litígio, desde que, como é natural, seja respeitada a correspondência com a prova
que foi produzida e bem assim os limites materiais da acção e da defesa.
6.4. Como se disse anteriormente, na enunciação dos factos apurados o juiz deve usar
uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada,
de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis,
determinará o resultado da acção.
Por isso é inadmissível (tal como já o era anteriormente) que se opte pela enunciação
desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem
qualquer coerência interna.
Este objectivo – que o bom senso já anteriormente deveria ter imposto como regra
absoluta – encontra agora na formulação legal um apoio suplementar, já que o art. 607º, nº 4,
2ª parte, impõe ao juiz a tarefa de compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, o que
necessariamente implica uma descrição inteligível da realidade litigada, em lugar de uma
sequência desordenada de factos atomísticos.
Em tal enunciação cabem necessariamente os factos essenciais que foram alegados
para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções ainda não apreciadas no
despacho saneador, a par dos factos complementares (que, de acordo com o tipo legal, se
revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda) e, se se mostrar necessário, dos
Semelhante juízo é formulado por Lebre de Freitas, em A Acção Declarativa Comum, 3ª ed., pág. 197,
quando refere que o juiz deve enunciar a matéria controvertida em “traços gerais”, exemplificando com
uma situação em que pode mostrar-se controvertido “se ou não foi celebrado o contrato X entre as partes”
e “qual dos contraentes não cumpriu as obrigações dele decorrentes”.
280
Sentença Cível
6.5. Mais dificuldades suscita o tratamento que deve ser conferido na sentença aos
factos instrumentais. Dificuldades que advêm do excessivo relevo que lhes foi dado no âmbito
do anterior CPC e que também decorrem das alterações legais que agora cumpre interpretar e
aplicar.
No sistema anterior, a lei apenas se referia aos factos instrumentais no art. 264º, nº 2,
do CPC, ainda assim para legitimar a sua consideração por parte do juiz, mesmo a título
oficioso, quando resultassem da instrução e discussão da causa.
Apesar disso e malgrado a função secundária de tais factos ligada à formação da
convicção sobre os factos constitutivos, impeditivos ou extintivos do direito invocado, era
comum a sua inserção na base instrutória só porque tinham sido alegados e se encontravam
controvertidos. Lograda, deste modo, a sua integração nessa peça fundamental, acabavam por
ser submetidos ao mesmo juízo probatório que presidia à apreciação dos demais factos,
culminando na sua integração na sentença.
Os excessos a que este sistema conduziu (law in action) são bem visíveis, quer através
da morosidade que foi induzida nas audiências finais, quer da extensão dos “fundamentos de
facto” que, uma vez relatados nas sentenças, acabavam por ser transpostos para a
fundamentação dos acórdãos da Relação ou mesmo do Supremo Tribunal de Justiça.
A morosidade das audiências era consequência do excessivo relevo formal que era
dado a tal factualismo. Na verdade, a mera integração acriteriosa dos factos instrumentais na
base instrutória confrontava as partes com a necessidade ou, ao menos, com a conveniência
de produzirem prova sobre os mesmos, a par daquela que deveriam apresentar relativamente
aos factos essenciais à procedência ou improcedência da acção 15.
15
O excessivo relevo atribuído a tais factos não era apenas da responsabilidade dos juízes, pois também as
próprias partes revelavam grande dificuldade em separar-se dessa factualidade que fora alegada nos seus
articulados, reclamando frequentemente contra a sua não inserção na base instrutória.
281
Sentença Cível
Fosse como fosse, a valorização formal de tais factos, traduzida na sua integração na base
instrutória, acabava por implicar a necessidade ou a utilidade de as partes produzirem prova
sobre cada um dos segmentos, utilidade que também era encontrada quando se projectava
ou antecipava a eventual impugnação da decisão da matéria de facto perante a Relação.
Enfim, os excessos de alegação inicial, em lugar de serem removidos, acabavam por repercutir-
se em toda a tramitação processual, até à fase de recurso.
16
A degradação formal do valor dos factos instrumentais transparece ainda do teor do art. 574º, nº 2, in
fine, uma vez que mesmo a eventual admissão anterior desses factos pela parte contrária não impede a
produção de prova sobre os mesmos, pondo o NCPC o acento tónico nos factos essenciais à procedência da
acção ou da excepção.
Tal como já resultava do anterior CPC, não existe qualquer fundamento legal para impedir ou dificultar a
produção de meios de prova sobre factos instrumentais, maxime prova testemunhal em audiência de
julgamento, importando unicamente que se integrem no círculo delimitado pelos factos essenciais ou
complementares a que se refere o art. 5º.
282
Sentença Cível
17
Teixeira de Sousa qualifica como instrumentais os factos que servem de base às presunções legais,
exemplificando precisamente com as presunções legais de paternidade previstas no art. 1871º, nº 1, do CC
(Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, em Scientia Iuridica, nº
332º, pág. 401).
Ainda que conclua que tais factos, apesar da natureza instrumental, terão de ser alegados, creio mais
ajustada a sua qualificação como factos essenciais, na medida em que deles se extrai, por via directa e sem
necessidade de intermediação do juiz, o efeito jurídico que a lei prescreve, no caso, a relação de
paternidade.
Na medida em que os factos que sustentam as presunções legais sejam qualificados como essenciais,
sofrem as limitações constantes dos arts. 264º e 265º no que concerne à alteração da causa de pedir.
Consequentemente também fica vedado ao juiz considerar na sentença factualidade essencialmente diversa
daquela que foi alegada, não podendo, por exemplo, reconhecer a paternidade com base numa presunção
legal diversa daquela que foi invocada pelo autor.
283
Sentença Cível
6.7. Diversa é a situação quando nos confrontamos com meras presunções judiciais.
Constituindo estas meras ilações que o julgador extrai de um facto conhecido para
afirmar um facto desconhecido, as mesmas podem assentar em factos essenciais que tenham
sido considerados provados ou que resultem plenamente dos autos, mas podem também
derivar da convicção formada sobre factos de natureza puramente instrumental que resultem
do processo ou da instrução da causa, tenham ou não tenham sido alegados pelas partes 18.
Por conseguinte, relativamente aos factos que apenas sirvam de suporte à afirmação
de outros factos por via de presunções judiciais, para além de não se mostrar necessária a sua
alegação (art. 5º) e de poderem ser livremente discutidos na audiência final (cfr. os arts. 410º e
516º), nem sequer terão de ser objecto de um juízo probatório específico. Em regra, bastará
que sejam revelados na motivação da decisão da matéria de facto, no segmento em que o juiz,
analisando criticamente as provas produzidas, exterioriza o percurso lógico que o conduziu à
formulação do juízo probatório sobre os factos essenciais ou complementares.
O importante é que o juiz exponha com clareza os motivos essenciais que o
determinaram a decidir de certa forma a matéria de facto controvertida contida nos temas de
prova, garantindo que a parte prejudicada pela decisão (com a aludida sustentação) possa
sindicar, perante a Relação, o juízo probatório formulado relativamente a tal factualidade,
18
Sempre os Tribunais de 1ª instância fizeram uso de presunções judiciais, previstas na lei substantiva como
meios de formação da convicção. Acontece, porém, que, antes da reforma do processo civil de 1996/97,
esse uso nem sempre era explicitado, na medida em que a lei processual se bastava com uma
fundamentação genérica quanto aos factos considerados provados. O seu relevo formal apenas se tornou
mais evidente com as exigências de fundamentação introduzidas com aquela reforma processual, quer no
sentido de tornar transparente o percurso cognitivo seguido pelo juiz, quer de reforçar a decisão da matéria
de facto, tendo sempre presente a efectiva possibilidade de a decisão de facto ser sindicada pela Relação
nos casos em que a mesma fosse impugnada.
Foi a partir daquela reforma que se acentuaram as virtualidades dos factos instrumentais, como pontos de
apoio para sustentar a afirmação ou a negação dos factos essenciais (que antes podia ser sustentada, por
exemplo, “nos depoimentos das testemunhas do A. e na análise da documentação dos autos”), os quais
foram alcandorados a um tal posto que torna agora mais difícil a retoma da função que verdadeiramente
devem exercer no processo.
Não se estranhe, pois, que as maiores resistências quanto à concretização de um downgrading
relativamente a tais factos advenha dos juízes, sem que, no entanto, essas dificuldades tenham de redundar
na manutenção do statu quo.
284
Sentença Cível
6.8. Exemplificando:
O recurso a presunções judiciais, para justificar a afirmação da prova dos factos
essenciais à procedência, é frequente quando se trata de acções de declaração de nulidade
com base em simulação absoluta ou relativa.
A falta de meios de prova directa de factos 19 que integram cada um dos pressupostos
normativos (em concreto, a divergência entre a declaração negocial e a vontade dos
declarantes, o acordo dos contraentes e o intuito de enganar terceiros) explica a necessidade
de normalmente se inferir a sua existência a partir de um conjunto mais ou menos alargado de
sinais exteriores que a experiência comum considera relevantes: v.g. o “transmitente”
continuou a habitar no prédio “vendido”, externamente continua a ser reputado como dono
do imóvel, continuou a pagar os impostos e a assumir as despesas de conservação, o negócio
foi celebrado com um familiar próximo, o valor declarado na escritura é muito inferior ao valor
de mercado, etc.
Ora, nestas situações, não vejo necessidade, nem de isolar para os temas de prova,
nem de recolher para a decisão da matéria de facto esses ou outros factos instrumentais,
bastando para a apreciação da acção que o juiz se pronuncie sobre os pressupostos fácticos da
simulação (naturalmente traduzidos por proposições que correspondam ao conteúdo dos
aludidos requisitos legais), expondo simultaneamente os motivos que o levaram a declarar os
que considerou provados e não provados.
O mesmo se verifica noutra acção paradigmática, a de impugnação pauliana, no que
concerne à demonstração e assunção do elemento subjectivo (comportamento doloso dos
contraentes ou existência de má fé) que concretamente se revele necessário para a sua
19
Com efeito, não é habitual que as partes subscrevam uma contra-declaração e menos ainda o será que tal
declaração, a existir, seja apresentada numa acção de simulação interposta por terceiro alheio ao negócio.
Daí a naturalidade com que deve ser encarada a valoração dos factos instrumentais e a admissibilidade ou
necessidade de inferir os factos ocultos a partir dos elementos circunstanciais revelados pelas testemunhas
ou decorrentes de outros meios de prova apresentados.
285
Sentença Cível
procedência. Sendo o mesmo apreendido a partir de factos instrumentais, bastará que estes
figurem no segmento da motivação, sem que exista a necessidade de formulação de um juízo
probatório 20.
Outrossim nas acções de investigação de paternidade, cuja apreciação se encontra
agora muito facilitada pelo recurso à prova pericial, de natureza científica, com força intrínseca
para, através da superação de lacunas probatórias, levar à demonstração dos factos essenciais
ou melhor, do facto essencial: o vínculo biológico.
Apesar dos avanços científicos que, além de facilitarem o direito probatório formal e
material, beneficiaram o direito substantivo, pode acontecer que as circunstâncias não
permitam a recolha do material biológico necessário à realização do exame de ADN 21. Nestas
circunstâncias e na falta de presunção legal de paternidade, para responder à questão de facto
essencial em redor da exclusividade do relacionamento sexual entre o pretenso pai e a mãe do
investigado, no período legal de concepção, não é necessária a emissão de um juízo probatório
explícito sobre os factos instrumentais que relevam para o efeito (vivência comum, relação de
namoro, etc.), bastando que os mesmos figurem, juntamente com outros elementos
probatórios, na motivação da decisão.
Os exemplos poderiam multiplicar-se, sendo que o modo de encarar as situações se
mantém.
Pela sua frequência, o uso de presunções judiciais, para fundamentar a decisão que
julga provados ou não provados determinados factos, ocorre com muita frequência em
matéria de acidentes de viação. O facto de nem sempre existirem testemunhas presenciais e
as dificuldades associadas ao cumprimento do ónus de prova ou de contraprova, pode levar o
juiz a decidir a matéria controvertida (v.g. factos relacionados, por exemplo, com a causalidade
ou com a culpa) com recurso a presunções judiciais, em que se associam os (poucos) factos
recolhidos através de depoimentos, croquis ou perícias e as regras de experiência.
20
Assim foi feito no Ac. da Rel. de Lisboa, de 25-3-03 (www.dgsi.pt, e na CJ, tomo II, pág. 91), relatado pelo
signatário, sendo alterado o juízo probatório vindo da 1ª instância com base na apreciação dos elementos
documentais que haviam sido apresentados e em presunções judiciais extraídas das regras de experiência.
Esse e outros casos que são descritos em diversos acórdãos das Relações ou do Supremo são bem
reveladores, por um lado, das dificuldades que os tribunais de 1ª instância manifestam quando se trata de
manusear o uso de presunções judiciais e, por outro lado, do nível de exigência probatória que acaba por
ser imposto ao credor que recorre à impugnação pauliana para salvaguardar a sua garantia patrimonial.
21
Dificuldades que, em determinados casos, podem ser superadas com exumação do cadáver do pretenso
pai (Ac. do STJ, de 24-5-12, www.dgsi.pt) e noutros casos, de recusa de colaboração, através da inversão do
ónus da prova (Ac. do STJ, de 16-10-12, www.dgsi.pt). Situações extremas que, no entanto, não colidem
com a livre apreciação da recusa de colaboração, nos termos do art. 417º, nº 2, do NCPC.
286
Sentença Cível
6.9. É natural que em algumas situações o juiz se confronte com uma dúvida objectiva
relativamente à qualificação jurídico-processual e à função de determinados factos. Uma
mesma proposição resultante da alegação das partes pode assumir num determinado
contexto um cunho essencial ou complementar, não ultrapassando noutro contexto o plano da
instrumentalidade.
Em tais circunstâncias, o juiz não deve guiar-se por critérios de base conceptual.
Quer na ocasião em que elabora os temas de prova 22, quer naquela que profere a
sentença, será mais avisado que se oriente por um critério funcional que, além de privilegiar a
natureza mais solene, permita o aproveitamento dos factos em sede de integração jurídica,
reduzindo a margem de risco relativamente a eventuais anulações da sentença motivadas pela
omissão de factos que a Relação, porventura, reconheça como relevantes no âmbito do
recurso de apelação (art. 663º, nº 1, al. c), in fine).
Pode ainda acontecer que, atenta a fundamentação da acção ou o conteúdo da defesa,
um mesmo facto desempenhe uma mera função instrumental ou explicativa de um facto
essencial e simultaneamente tenha a virtualidade de sustentar, por si, um determinado
pressuposto normativo determinante para o resultado da acção, de acordo com alguma das
diversas soluções plausíveis da questão de direito. Nesta eventualidade justificar-se-á
naturalmente que sobre o mesmo recaia um juízo probatório específico.
O que de modo algum se justifica, repita-se, é a manutenção da praxis anterior,
desconsiderando as alterações significativas que decorrem não apenas da aprovação formal de
um Novo CPC, como ainda da modificação substancial do seu conteúdo, designadamente no
22
Os argumentos apresentados pelas partes na audiência prévia, a densidade do que foi alegado, a
pertinência para a resolução do caso ou a antevisão das implicações futuras de uma ou de outra das opções
servirão para orientar o juiz na enunciação dos temas de prova, sem que estas cautelas devam conduzir a
que na elaboração dessa peça processual ou da sentença se mantenha uma prática viciosa que o novo
sistema pretendeu inequivocamente abolir e que o bom senso deve evitar.
287
Sentença Cível
que concerne às normas que regulam a alegação da matéria de facto, as que regem a
enunciação dos temas de prova como algo diferente, quer da base instrutória, quer do anterior
questionário, e aquelas que se reportam à estrutura e conteúdo da sentença.
Mantendo-se incólumes os objectivos do sistema de justiça cível e a função que devem
desempenhar os instrumentos de natureza processual e sem que de modo algum deva ser
prejudicada a justa decisão da causa (que implica, além do mais, a maior correspondência
possível entre a verdade material e a verdade formal), importa que não se ignorem, agora mais
do que nunca, outros princípios orientadores de toda a tramitação processual, como o da
economia de meios e o da celeridade.
Competindo aos Tribunais dar sequência a exigências vindas da sociedade no sentido
de os litígios e os conflitos de interesses serem resolvidos ou compostos em prazo razoável,
aqui, como noutros campos, terão de ser acolhidas as propostas que se destinaram a
simplificar a tramitação processual e a abreviar quer as audiências finais, quer a duração global
dos litígios, objectivos que poderão ser melhorados, além do mais, através do ajustado
tratamento que seja dado aos factos meramente instrumentais.
6.10. Tanto na exposição dos factos que se julgam provados como daqueles que forem
considerados não provados, o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica
do caso, antes deve assegurar que sejam recolhidos todos aqueles que se mostrem relevantes
em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito.
Assim era no modelo anterior, atento o disposto no art. 511º, nº 1, quando se tratava
de elaborar a base instrutória. Mas ainda que não se encontre no NCPC uma norma de teor
semelhante, a mesma diligência deve manter-se, a fim de garantir, em caso de eventual
recurso da sentença, a possibilidade de a Relação ou o Supremo Tribunal de Justiça
enveredarem por outra solução jurídica, sem necessidade de ampliação da matéria de facto,
nos termos previstos nos arts. 662º, nº 1, al. c), in fine, e 682º, nº 3.
Na verdade, pode acontecer que, na perspectiva do juiz, para que a acção ou a
excepção proceda, baste um determinado enunciado de factos provados ou não provados.
Apesar disso, se houver outras soluções defensáveis, dependentes do apuramento de outros
factos, o juiz deve assegurá-las, inscrevendo na fundamentação da matéria de facto os
elementos que se mostrarem relevantes.
A opção pela elaboração dos “temas da prova” em lugar de atomísticos “pontos da
base instrutória” ou de “quesitos” comporta ainda uma outra consequência muito importante.
Na ocasião em que o juiz se pronuncia sobre a matéria de facto provada e não provada não
288
Sentença Cível
deve estar condicionado pelas regras de distribuição do ónus da prova 23, devendo verter na
sua decisão o resultado objectivo da apreciação dos meios de prova que foram produzidos,
apenas limitado pelo objecto do processo circunscrito pela causa de pedir e pelas excepções
que foram invocadas.
23
Neste sentido cfr. Lebre de Feitas, A Acção Declarativa Comum, 3ª ed., págs. 197 e 198.
24
Mas só os factos relevantes, excluindo, por isso, aqueles que, ainda que admitidos por acordo ou
confissão, não interfiram de modo algum na solução jurídica.
Para simplificação dessa tarefa e simultaneamente para agilização da audiência final, nada impede que, logo
no início desta ou no seu decurso, mediante iniciativa das partes ou do juiz, sejam imediatamente
assinalados os factos que dispensam a produção de outros meios de prova, por decorrerem de acordo das
partes, de confissão ou de documento com força probatória suficiente. Sem necessidade de então se
proceder logo à sua transcrição, basta a identificação de tais factos, por referência aos articulados, para
tornar evidente e incontroversa a desnecessidade de outras diligências probatórias e para simplificar e
abreviar a audiência final.
Trata-se, aliás, de uma solução que, conquanto também não estivesse formalmente consagrada no CPC
anterior, já era permitida, admitindo-se que, independentemente da posição assumida pelas partes nos
articulados, estas circunscrevessem os termos do litígio em matéria de direitos disponíveis.
25
É de notar que mesmo a confissão em audiência final deve ser reduzida a escrito para ganhar foros de
prova plena, nos termos dos arts. 358º, nº 1, do CC, e 463º, nº 1, do NCPC.
26
O facto provado por documento não corresponde ao próprio documento. Em vez de o juiz se limitar a
“dar por reproduzido o teor do documento X”, importa que extracte do mesmo o segmento ou segmentos
que sejam concretamente relevantes, assinalando, assim, o específico meio de prova em que se baseou.
Imposição que obviamente colide com a pura reprodução de todo o documento, mesmo dos segmentos que
não são de modo algum determinantes para a apreciação do caso.
289
Sentença Cível
6.12. Em lugar de a sentença ser, como era anteriormente frequente, qual navio
graneleiro, o mero repositório dos factos tidos por assentes e dos factos emergentes das
respostas aos pontos da base instrutória, é agora ainda mais evidente que deve ser elaborada
com base em princípios de racionalidade, em que a matéria de facto apurada revele, de forma
escorreita e segundo uma enunciação lógica ou cronológica, a realidade que será
juridicamente integrada no segmento posterior 28.
Nesse esforço de enunciação e de integração insere-se ainda a harmonização da
matéria de facto considerada provada, desde que, em respeito pelos deveres legais e
deontológicos, tal corresponda ao resultado da formação da convicção sobre os meios de
prova que foram produzidos, dentro do círculo de factos essenciais que tenham sido alegados.
27
Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, pág. 248.
28
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, pág. 249.
A experiência demonstra que a ordenação lógica dos factos provados é o primeiro passo para uma correcta
integração jurídica, na medida em que não só permite um melhor entendimento da matéria em litígio como
ainda potencia uma melhor compreensão do relevo que, nesse conflito, deve ser atribuído à prova ou falta
de prova de determinados factos.
290
Sentença Cível
291
Sentença Cível
Esta opção não significa obviamente que seja admissível doravante a assimilação entre
o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de
uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspectos que dependem da
decisão da matéria de facto. Mas, para além de revelar o artificialismo a que conduzia a
anterior solução, em que se pretendia a todo o custo essa separação, tem subjacente a
admissibilidade de uma metodologia em que, com mais maleabilidade, se faça o cruzamento
entre a matéria de facto e a matéria de direito. Uma vez que a decisão da matéria de facto e a
matéria de direito são agregadas na mesma peça processual elaborada pelo mesmo juiz, tal
facilita e simplifica a decisão do litígio.
6.14. Com as devidas cautelas, ao menos numa fase transitória em que todos
procurarão adaptar-se ao NCPC, será preferível uma opção que se traduza na maior
concretização da factualidade apurada, com o que se evitarão eventuais anulações do
julgamento 31.
O que acima de tudo se deve modificar é uma postura essencialmente assente em
argumentos de natureza formal que determinou que a aplicação do anterior CPC tivesse
desembocado nos excessos já referidos, tanto ao nível da alegação, como da decisão da
matéria de facto, mesmo quando a realidade poderia ser condensada através de expressões
de conteúdo mais abrangente, sem qualquer prejuízo para a compreensão do litígio e para os
objectivos da justiça material.
Um caso paradigmático que pode ser extraído da experiência judiciária respeita às
acções de resolução do contrato de arrendamento por falta de residência permanente.
Sendo variáveis as situações que podem determinar a afirmação ou a negação desse
fundamento de resolução, de modo algum se pode compreender que, perante a recusa de
concentração daquela realidade numa expressão de conteúdo mais amplo, as partes tenham
sido conduzidas aos excessos de alegação que se traduziram numa pormenorização
estereotipada e com laivos caricaturais que geralmente se traduziu na descrição de que o
arrendatário “não dorme”, “não toma as refeições”, “não recebe as suas visitas” e “não recebe
31
Também este risco se procurou atalhar através de uma medida cujo pragmatismo é evidente: quando
houver anulação do julgamento pela Relação, o novo recurso que eventualmente seja interposto da
sentença é atribuído ao mesmo relator, nos termos do art. 218º do NCPC.
Solução que é extensiva a todos os casos de revogação da sentença pela Relação ou de ampliação da
decisão da matéria de facto determinada pelo Supremo (art. 682º, nº 3).
292
Sentença Cível
6.15. Manteve-se a determinação legal que obriga o juiz a expor a análise crítica das
provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de
liberdade é inexistente, quer quando de trate de provas submetidas à sua livre apreciação,
envolvendo os motivos essenciais que o determinaram a formular o juízo probatório
relativamente aos factos essenciais.
Não é necessária, nem aconselhável que essa motivação se traduza na reprodução ou
no resumo dos depoimentos prestados pelas testemunhas. A apreciação crítica destes ou de
quaisquer outros meios de prova basta-se com a exposição dos aspectos que para o juiz se
revelaram decisivos para a enunciação dos factos que considerou provados e não provados,
devendo reforçar a motivação quando tenha sido confrontado com meios de prova não
coincidentes 33.
Esse dever não se basta obviamente com a alusão genérica e indiscriminada a
determinados meios de prova (v.g. “a prova testemunhal” ou “a prova pericial”).
32
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, págs. 238 e 239.
33
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, págs. 242 a 244.
293
Sentença Cível
6.16. Merece destaque o tratamento dos documentos a que não seja atribuída força
probatória plena e que, por isso, se situam no campo da livre apreciação do juiz.
A prática revela uma enorme dificuldade dos Tribunais em enfrentar tais documentos,
como se tivessem de ser necessariamente secundados por outros meios de prova, com
destaque para a prova testemunhal.
Os resultados estão à vista: ante o receio de que a documentação apresentada não
seja valorada livremente, como deveria ser, as partes antecipam a necessidade de arrolarem
testemunhal, mesmo quando esta não seria necessária, com efeitos evidentes na morosidade
da resposta judiciária decorrente das longas ou sucessivas sessões de julgamento.
Ora, importa relembrar que os documentos particulares a que não corresponda força
probatória plena são meios de prova como quaisquer outros que a lei submete à livre
apreciação do julgador. Por isso, sem embargo da necessidade que, em concreto, possa existir
relativamente à demonstração da veracidade ou do sentido de tais documentos, não existe
qualquer imposição genérica no sentido de a parte os reforçar com prova testemunhal,
exigência tanto mais incompreensível quanto é certo que esta é a mais falível de todas provas.
Assim, em lugar de tais exigências injustificadas, cumpre ao juiz enfrentar tais
documentos ao abrigo do princípio da livre apreciação, extraindo deles e dos demais meios de
prova o que objectivamente deles resultar, com menção na motivação das razões que foram
determinantes.
294
Sentença Cível
34
Relativamente a questões cuja decisão seja prejudicada pode, ainda assim, justificar-se a apreciação que
sirva para reforçar o resultado declarado, como ocorre quando a improcedência da acção encontre o duplo
fundamento na integração jurídica dos factos provados e na caducidade ou na prescrição.
35
Ainda que a acção improceda por razões ligadas à matéria de facto apurada, no confronto com as normas
jurídicas, pode haver utilidade em reforçar a sentença, por exemplo, com a declaração de procedência da
excepção peremptória de caducidade ou de prescrição.
295
Sentença Cível
7.2. Relativamente a todas as questões jurídicas deve o juiz ponderar que a sua função
essencial é a de identificar, interpretar e aplicar as normas jurídicas que se ajustem ao caso
concreto, não devendo a sentença servir de pretexto para a exposição gratuita de
conhecimentos jurídicos ou para a reprodução de textos jurídicos sem qualquer utilidade para
a resolução do concreto litígio.
Enunciadas as questões a resolver e identificada a ordem lógica pela qual devem ser
apreciadas, o juiz deve concentrar-se naquilo que é essencial para a sua resolução,
encontrando o justo equilíbrio no que concerne à fundamentação jurídica, a qual, não
podendo ser dispensada (art. 154º), deve ser moderada, evitando que se transforme num
mero repositório de considerações jurídicas irrevelantes para o caso concreto 37.
36
Sobre a matéria cfr. Lopes do Rego, O princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no
momento da sentença, em Obra em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, págs. 781 e
segs.
Não ficando de modo algum afectada a aplicabilidade do regime jurídico que o juiz considere mais ajustado,
deste modo se assegura que as partes possam pronunciar-se, quer no sentido de sustentar a solução
anunciada, quer no sentido de a contrariar.
As referidas cautelas devem estender-se a todas as excepções que, na perspectiva do juiz, determinem a
absolvição da instância, não sendo de modo algum compreensível que nesta ocasião as partes sejam
confrontadas com um tal efeito sem que lhes seja dada a oportunidade de se pronunciarem.
Aliás, pode ainda acrescentar-se que tais cautelas devem desde logo ser asseguradas na audiência prévia,
aquando da delimitação dos termos do litígio (art. 591º, nº 1, al. c)).
37
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, págs. 250 e segs.
À irrelevância das considerações jurídicas despropositadas deve ainda acrescentar-se, como efeitos
preventivos, a irrelevância de considerações extrajurídicas cujo ruído acabe por prejudicar a compreensão
daquilo que verdadeiramente está em discussão.
296
Sentença Cível
7.3. No âmbito da sentença deve ser destacado o segmento decisório, não só porque a
lei o determina (art. 607º, nº 3, do NCPC), como ainda pelo facto de o mesmo evidenciar com
mais clareza o resultado da lide.
No confronto com o pedido ou pedidos formulados e dentro dos respectivos limites,
cumpre ao juiz exarar a sua procedência total ou parcial, culminando com a declaração do
efeito jurídico determinado e que varia em função da natureza da acção (condenatória, de
simples apreciação ou constitutiva) 40.
38
Nesta vertente, importa ainda que, quando se revele necessária ou útil a invocação de argumentos de
ordem doutrinal ou jurisprudencial, se mencione a respectiva fonte. Se é verdade que nenhuma norma o
determina, basta para o efeito invocar os deveres deontológicos que devem orientar toda a actividade
profissional do juiz.
39
Matéria que abordo mais desenvolvidamente em Recursos no Novo Código de Processo Civil (2013), págs.
360 e segs.
40
Nem sempre a enunciação das pretensões é feita de modo correcto, cumprindo, assim, ao juiz, na
sentença, ajustar a condenação ao efeito jurídico efectivamente pretendido.
297
Sentença Cível
7.4. Segue-se a decisão sobre custas judiciais, de acordo com as regras gerais, mas sem
olvidar que o nº 6 do art. 607º obriga a que seja fixada a proporção da responsabilidade em
situações em que esta seja repartida entre o autor e o réu ou seja distribuída entre dois ou
mais sujeitos que ocupem a mesma posição processual 42.
É neste campo que pode justificar-se o uso do instrumento previsto no nº 7 do art.
530º do NCPC (e art. 6º, nº 5, do RCP), aplicando à parte vencida a taxa de justiça agravada (o
dobro da taxa normal, nos termos da Tabela I-C do RCP), designadamente quando se verifique
que apresentou articulados escu-sadamente prolixos 43, quando as questões debatidas tenham
elevada complexidade ou quando tenham sido complexas ou morosas as diligências de prova.
Nas situações abarcadas pelo art. 531º, pode ainda justificar-se a aplicação à parte
vencida a taxa sancionatória especial (art. 10º do RCP, entre 2 e 15 UC’s) quando a pretensão
ou a defesa seja manifestamente improcedente e a parte tenha agido sem a prudência ou
diligência devida.
Deve ainda ser dada a devida atenção a situações que, excedendo a anterior, revelem
litigância de má fé instrumental ou substancial de alguma das partes 44, nos termos dos arts.
Por exemplo, são frequentes as petições em que o autor pede a “condenação do Réu a reconhecer que é
proprietário de um determinado prédio e a entregá-lo” (ou “condenação no reconhecimento de que o
contrato é nulo”), sendo que, rigorosamente, se trata simplesmente de obter o “reconhecimento” judicial de
que o A. (no confronto com o Réu) é o proprietário do prédio (ou de que o contrato é nulo), condenando-o
no cumprimento da obrigação correspondente (v.g. restituição ou pagamento da quantia mutuada).
41
Sobre a apreciação de pedidos genéricos, subsidiários, alternativos ou de prestações vincendas remeto
para o que desenvolvi em Temas da Reforma do Processo Civil, I vol., 2ª ed., págs. 156 e segs.
42
Conexa com a taxa de justiça está a questão do valor processual. Este deve ser fixado no despacho
saneador, mas admite-se que tal fixação ocorra na sentença, quando não haja despacho saneador, ou que o
valor anteriormente fixado seja corrigido, quando se trate de processo de liquidação cuja utilidade
económica sofra variações na pendência da acção (art. 306º, nº 2, do NCPC).
43
É este o único instrumento que o juiz pode utilizar para contrariar a manutenção de uma excessiva
tendência para a prolixidade ou para a demasiada extensão dos articulados, em desrespeito pela regra geral
prevista no art. 5º que orienta as partes para a concentração no que se revele essencial.
44
Matéria que mais desenvolvidamente já tratei em Temas Judiciários (1998).
298
Sentença Cível
542º a 545º (com condenação na multa entre 2 e 100 UC’s, nos termos do art. 27º, nº 3, do
RCP, e eventual indemnização à parte contrária, se esta a solicitar), assinalando-se, como
elemento inovador do NCPC, que se a parte que litiga maliciosamente for pessoa colectiva ou
sociedade, arcará directamente com a responsabilidade, em vez de recair unicamente sobre o
seu representante legal (art. 544º), como prescrevia o anterior CPC.
299
Videogravação da comunicação
300
Nótula sobre a Jurisdição Cível
1. O texto inicial desta nótula foi redigido em Setembro de 2010, no final de uma década
de exercício de funções no Tribunal da Relação, assentando as observações e comentários, em
grande parte, em elementos recolhidos da prática judiciária, como relator ou como adjunto.
É claro que se trata de uma visão parcelar, essencialmente fundada no contacto com os
processos em que tive intervenção, a que não faltará uma certa dose de subjectivismo
reflectido designadamente na escolha dos aspectos a salientar ou na posição que sobre os
mesmos foi adoptada.
Mas os casos enunciados permitem, em meu entender, que se reflicta sobre a função e os
objectivos do processo civil e, paralelamente, sobre o modo como o juiz deve assumir a
direcção do processo (agora sob a capa do dever de gestão processual) e tutelar os direitos
subjectivos e os interesses juridicamente relevantes.
A verdade é que, sem embargo das críticas que possam ser dirigidas a determinadas
opções do legislador, há muito que deixou de fazer sentido invocar obstáculos ou
impedimentos sustentados numa determinada visão formalista do processo civil – que até
Alberto dos Reis rejeitaria – não faltando agora instrumentos ou mecanismos que,
devidamente interpretados e conjugados, confluem para a valorização dos aspectos de ordem
substantiva, em detrimento de soluções formais, assim (cor)respondendo melhor aos
objectivos do sistema de Administração da Justiça e às necessidades da sociedade civil2.
Para o efeito, ainda que aos resultados projectados não sejam alheios outros profissionais
do foro, com destaque para os advogados, tendo em conta o uso que frequentemente é feito
de certos instrumentos processuais ou o recurso abusivo determinados expedientes de pendor
dilatório, incidirei especialmente sobre os actos funcionalmente atribuídos ao juiz. A direcção
do processo e os princípios gerais que o sustentam transportam consigo especiais
responsabilidades relativamente à satisfação das exigências e aos objectivos do sistema.
Os casos que apresento são meramente exemplificativos. Importa referir ainda que as
decisões que, em meu entender, são passíveis de maior crítica, por não fazerem jus à
1
Texto cedido pelo autor para a presente publicação.
2
Objectivos e instrumentos que o NCPC veio reforçar.
301
Nótula sobre a Jurisdição Cível
verdadeira função do processo civil ou por não reflectirem como deviam a verdadeira função
que aos Tribunais e aos respectivos juízes é atribuída, serão largamente minoritárias.
No entanto, ainda são em número significativo as situações que reflectem uma tendência,
posto que minoritária, para um certo revivalismo no que concerne à função do processo civil,
como se constituísse um fim em si mesmo, em vez de estar ao serviço da satisfação dos
direitos de natureza substantiva.
Depois de diversas reformas processuais que já apontavam o mesmo caminho, a aplicação
do NCPC não pode deixar de ser guiada pelos objectivos, regras e princípios que o enformam e
que apelam à simplificação processual, à prevalência do mérito sobre a forma, à economia de
meios, à celeridade e à eficácia dos mecanismos processuais.
2. Antes de avançar, porém, é justo que se reconheça a notória melhoria da generalidade
das decisões dos Tribunais de 1ª instância, com destaque especial para os despachos
saneadores e de condensação (agora resumida aos “temas da prova”) e para as sentenças de
mérito, incluindo as decisões finais dos procedimentos cautelares.
Depois de alguma resistência inicial à reforma do processo civil de 1996, tanto na parte
em que modificou a estrutura do processo, como naquela em que pretendeu valorizar o
recurso aos princípios gerais, são notórios os efeitos positivos que se traduzem na efectiva
subvalorização de aspectos formais, com prevalência para as decisões de mérito, e na
qualidade formal e substancial das decisões. Qualidade que também transparece da motivação
das decisões da matéria de facto, demonstrada através de uma efectiva apreciação crítica dos
meios de prova.
Todavia, a situação referida não parece inteiramente consolidada, começando a
pressentir-se ainda, aqui e ali, um certo retrocesso em relação ao entendimento correcto da
função desempenhada pelos mecanismos processuais. Com uma frequência superior à que os
antecedentes legislativos e as exigências do sistema poderiam tolerar, deparei-me com
algumas situações em que os processos pareciam constituir um fim em si mesmo,
enveredando-se por decisões de pendor formal, com recusa de utilização dos mecanismos e
dos poderes postos à disposição dos juízes no sentido de privilegiar a justiça substancial, e com
relativa indiferença em relação à utilidade dos meios processuais.
Por certo que nenhum sistema está imune a tais situações, sem que isso, no entanto,
deva impedir que se identifiquem alguns pontos críticos como forma de impedir retrocessos
numa altura em que cada vez mais se reclama contra a deficiente concretização dos objectivos
de eficácia, de celeridade e de economia de meios e de processos.
302
Nótula sobre a Jurisdição Cível
O facto de ter entrado em vigor o NCPC justifica que se analise criticamente o passado,
como terapêutica que evite a persistência de erros de perspectiva no que concerne à função
desempenhada pelos instrumentos processuais e ao posicionamento do juiz no âmbito da
administração da justiça cível.
3
Algumas das situações enunciadas encontram no NCPC argumentos que reforçam a necessidade de
obterem um tratamento diverso.
4
Postura agora de todo insustentável em face do art. 590º, do NCPC.
5
O que agora convoca o cumprimento do dever de gestão processual previsto no art. 6º, do NCPC.
6
A proximidade da entrada em vigor de uma nova lei de organização judiciária deve alertar-nos para a
necessidade de não adicionar às perturbações inerentes à sua implantação no terreno outras que advêm
apenas de incidentes processuais suscitados em torno da definição da competência dos Tribunais.
7
Foram os abusos na dispensa de audiências preliminares que determinaram as modificações legais no que
concerne à regulamentação das audiências prévias no NCPC (arts. 591º a 593º).
303
Nótula sobre a Jurisdição Cível
instrução dos recursos com subida em separado com as peças processuais que os
devem acompanhar;
s) Falta de condenação da parte como litigante de má fé em casos em que
manifestamente existem comportamentos processuais reprováveis;
t) Falta de efectivo poder de direcção por parte do juiz em relação à secretaria judicial,
permitindo que em tribunais de competência genérica exista uma efectiva
subvalorização dos processos cíveis em comparação com os processos criminais ou
que, sem qualquer justificação, se verifiquem atrasos no cumprimento dos actos.
8
O NCPC, para além de ter reforçado os poderes de direcção do juiz na condução do processo, pretende
ainda que esses poderes se manifestem na direcção das audiências, sendo essencial o empenho na sua
programação e, depois, na sua direcção, nos termos do art. 602º, nº 2, als. a) e d).
304
Nótula sobre a Jurisdição Cível
9
Contra esta “técnica” se pode invocar agora o que dispõe o art. 5º e a possibilidade de ser aplicada taxa de
justiça agravada, nos termos do art. 530º, nº 7, al. a), do NCPC.
10
Situação que, além de outras consequências, determina os efeitos previstos no art. 572º, al. c), 2ª parte,
do NCPC.
11
Situação a que o art. 151º, do NCPC, pretendeu pôr cobro.
12
Situação também foi objecto de uma mudança radical, já que, em regra, a junção de documentos apenas
pode ocorrer até ao 20º dia anterior ao início da audiência final (art. 423º, nº 2, do NCPC).
13
Agora com a medida paliativa que consta dos arts. 618º e 670º, do NCPC.
305
Nótula sobre a Jurisdição Cível
Trata-se de uma situação algo frequente sempre que ocorrem modificações na orgânica
judiciária e que persiste muitas vezes, apesar de sucessivos acórdãos da Relação que
contrariam as decisões de declaração de incompetência.
Ora, a definição da competência em função do território, da forma de processo ou do
valor constitui uma questão cujo relevo é relativo, de modo que a intervenção oficiosa apenas
deve ocorrer quando os autos revelem, de forma inequívoca, “os elementos necessários”, nos
termos do art. 104º, nº 1, do NCPC.
306
Nótula sobre a Jurisdição Cível
14
Prevendo-se a aprovação de uma nova lei de organização judiciária, é mister que as regras sobre
distribuição da competência relativamente aos novos processos ou sobre a afectação dos processos
pendentes sejam claras. Mas impõe-se igualmente que seja feito um uso adequado das regras de
interpretação, por forma a evitar decisões erradas ou contraditórias.
15
Para além dos impedimentos colocados às partes relativamente aos adiamentos das audiências finais (art.
603º, nº 1, do NCPC), também se procurou moralizar os adiamentos suscitados por razões atinentes ao
Tribunal (arts. 151º e 603º, nº 2), impondo, além disso, o máximo aproveitamento dos actos, com a maior
economia de meios e com a redução dos incómodos para as partes e para terceiros, designadamente para
as testemunhas.
16
Trata-se de uma actuação que já era infirmada pela lei anterior e que se revelará inteiramente
injustificada em face do art. 507º, nº 1, do NCPC, e da necessidade de calendarização da audiência final ou
das diversas sessões.
17
Com o NCPC deixou de haver pontos da base instrutória, os quais foram substituídos pelos temas de
prova, de modo que, de acordo com as circunstâncias (conteúdo dos temas de prova, necessidades do caso
concreto, nível de discussão a que foram submetidos na audiência final), caberá ao juiz enunciar a matéria
de facto que considera provada e não provada, de uma forma inteligível e coerente, por forma a conseguir
traduzir a realidade observada.
307
Nótula sobre a Jurisdição Cível
aponte para uma “velocidade não determinada” 18. O mesmo se diga em relação aos prejuízos
de natureza patrimonial que sejam causados em casos de embate ou de colisão de veículos 19.
e) Omissão de prolação de despacho de aperfeiçoamento.
Já verifiquei a recusa de admissão da intervenção de sujeito necessário para assegurar o
litisconsórcio necessário passivo (in casu, o Fundo de Garantia Automóvel) ou recusa de
prolação de despacho de aperfeiçoamento no sentido de ser chamado a intervir o sujeito que
assegure o litisconsórcio necessário activo ou passivo, para, acto contínuo, ser declarada a
absolvição do réu da instância com fundamento na preterição desse litisconsórcio 20.
f) Desconsideração dos interesses em causa em acções que exigem dos Tribunais uma
especial atenção, como ocorre na generalidade das questões do Direito da Família.
Numa acção para prestação de alimentos em que não se provou se um dos progenitores
tinha ou não tinha rendimentos e em que, por isso, foi absolvido do pedido, deixei escrito o
seguinte:
“A única questão que cumpre apreciar é se, apesar da falta de apuramento de qualquer
facto relativo às condições económicas do pai da menor, que se encontra em paradeiro
desconhecido, deve ser fixada uma prestação alimentícia a seu cargo. A resposta que
aprioristicamente se obtém quando nos deparamos com uma situação como a dos autos vai
no sentido afirmativo, de modo a que não sejam prejudicados os interesses do menor. É,
afinal, a resposta que se obtém quando se abandona uma estrita lógica formal que subjaz à
decisão recorrida.
…
A simples constatação dos anteriores elementos deixa claro que a decisão recorrida, em
vez de tutelar os interesses do menor que estão em causa, acaba por produzir um resultado
inadequado, levando a que o requerido, apesar de se encontrar juridicamente vinculado pela
18
Afinal, se o veículo ou veículos estavam em movimento, seguiam a velocidade superior a 0 km/hora!
19
Se o veículo ficou danificado, algum prejuízo patrimonial terá sofrido o seu proprietário, ainda que
porventura não possa ser imediatamente quantificado. O que não se admite é que, em face das
dificuldades, se considere pura e simplesmente não provada a ocorrência de um prejuízo patrimonial,
inviabilizando a liquidação posterior.
20
Tal corresponderia, agora, ao incumprimento do dever legal que consta dos arts. 6º, nº 2, e 590º, nº 3,
sendo de notar ainda que em face do NCPC deve receber o mesmo tratamento a situação que se caracterize
pelas insuficiências ou deficiências dos articulados no que concerne à alegação da matéria de facto (art.
590º, nº 3).
308
Nótula sobre a Jurisdição Cível
309
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311
Nótula sobre a Jurisdição Cível
como direito subjectivo oposto ao dever do Estado de dirimir litígios de direito privado, bem
diverso de um dever de agir judicialmente com consequências na apreciação liminar das
pretensões deduzidas.
A requerente, como alega, procurou encontrar nas autoridades administrativas a solução
para o caso. Atitude que, se for verdadeira, é irrepreensível, pois que, sem embargo dos
efeitos que a situação provoca na sua esfera jurídica, existirão outros bem mais graves que
devem ser tutelados por entes públicos, ainda que com posteriores reflexos na esfera dos
direitos privados.
A crer naquilo que a requerente alega, a ocorrência de perigos para a saúde pública, a
violação de preceitos regulamentares em termos de licenciamento de explorações pecuárias
ou o incumprimento de normas legais relacionadas com a posse de animais apresentam
virtualidades que bem poderiam ter servido para que a fonte de perigo fosse
administrativamente eliminada sem os encargos que decorrem do recurso aos Tribunais cíveis.
Não tendo surtido efeito as diligências que a requerente terá empreendido, não poderá
de modo algum ser penalizada.
O não exercício anterior do direito de acção judicial e, mais do que isso, a opção pelo
acionamento de mecanismos de direito administrativo com posterior inércia dos entes
públicos jamais pode redundar em prejuízo dos titulares de direitos afectados e que se
encontrem em situação de lesão grave, iminente ou reiterada.
Como decorre do direito de acção consagrado no art. 2º do CPC, a qualquer situação
juridicamente protegida corresponde uma acção, sem exclusão sequer da acção cautelar,
desde que, neste caso, se verifiquem os requisitos específicos. Por outro lado, as funções de
que sejam incumbidas autoridades policiais ou administrativas não contendem com a
legitimidade dos particulares de requererem providências de carácter inibitório,
acompanhadas ou não de medidas que imponham determinados comportamentos.
Não sendo seguro que os interessados a quem a lei reconhece determinado direito
possam actuar directamente sobre tais autoridades no sentido de as levar a cumprir as suas
funções, resta a possibilidade de lhes ser facultada a intervenção dos tribunais para a defesa
dos seus direitos ou dos interesses reconhecidos”.
312
Nótula sobre a Jurisdição Cível
Sendo verdade que o juiz não está necessariamente submetido ao juízo pericial, ainda que
maioritário, não poderá deixar de sustentar essa recusa em argumentos sólidos, o que não
ocorrer no caso que relato:
“O juiz – qualquer juiz, quer o da 1ª instância, quer os da Relação – não têm que aceitar
cegamente as opiniões dos peritos. Mas, não havendo razões para duvidar dos conhecimentos
técnicos, nem estando em causa algum factor relacionado com a idoneidade e objectividade
de um parecer subscrito por 4 dos 5 dos peritos, não é de ânimo leve que aquele deve ser
desconsiderado e que se acolham os elementos do outro perito ou que, à revelia do que
qualquer dos peritos deixou expresso, se façam juízos a partir de elementos avulsos
constantes do processo e que, pela sua natureza genérica, não podem ser directamente
aplicáveis à concreta parcela em causa, com características próprias, constituindo meros
referenciais estatísticos, com as suas virtualidades, mas sem a essencial de terem como
objecto uma concreta parcela destinada a piscicultura extensiva”.
Em suma, como é próprio do direito adjectivo, o CPC não pode ser entendido como um
“breviário” onde se encontrem todos os passos que devem ser dados, desde que o processo se
inicia até que é proferida a decisão que regula o conflito de interesses.
Longe disso, deve ser encarado como diploma cuja função essencial, para além da
indicação do objectivo a atingir, é o de enunciar as regras e os passos essenciais que permitam
atingir aquele desiderato, com obediência aos grandes princípios que lhe servem de lastro.
313
Nótula sobre a Jurisdição Cível
Se a Mª Juíza a quo entendia que era relevante para a decisão do procedimento a junção
dos documentos a que aludiu, o esclarecimento do número efectivo de comproprietários ou a
determinação das respectivas quotas tinha à sua disposição um meio facílimo de o conseguir:
determinar a notificação do requerente para o efeito.
Acresce que, como muito bem o refere o apelante, nem sequer se mostravam necessários
os referidos documentos ou esclarecimentos. O requerimento inicial enunciava com suficiência
tudo quanto de relevante deveria ter sido alegado pelo requerente para confrontar a parte
contrária antes de o Tribunal decidir”.
E noutro procedimento:
“Porém, o direito adjectivo não é apenas um conjunto de abstracções mais ou menos
apoiadas em doutrina e jurisprudência. Servindo de veículo ao direito substantivo, de que é
instrumental, jamais pode separar-se das concretas situações.
A excessiva atenção dada a aspectos formais correspondeu a uma corrente que fez escola
noutros tempos. À sombra de uma determinada interpretação que se fazia dos ensinamentos
de Alberto dos Reis, com excessivo apelo a aspectos formais, com relativa frequência os
Tribunais cíveis acabavam por sobrepor o direito processual ao direito substantivo.
Diversos autores vinham alertando para a inusitada frequência com que se suscitavam
questões processuais, invertendo-se frequentemente a ordem de valores por que deveria
pautar-se a actividade jurisdicional e que, no essencial, deveria ser dedicada à definição dos
direitos subjectivos e à resolução dos conflitos submetidos pelas partes à decisão dos
tribunais.
Contra esta tendência, de todo inaceitável nos tempos modernos, vem o legislador
actuando em sucessivas reformas, merecendo especial destaque a de 1996/97, através da qual
se pretendeu reduzir a justos limites as situações em que ficava impedido o conhecimento do
mérito da causa.
A fim de se operarem transformações visíveis no sistema e nos resultados derivados da
aplicação do direito adjectivo, consignou-se o alargamento da possibilidade de salvar a acção
inquinada por vício impeditivo do conhecimento de mérito, mas que resulte de falhas
menores, para além de uma outra solução mais arrojada, resultante do art. 288º, nº 3, do CPC,
que permite, nalgumas situações de persistência de excepções dilatórias, a prolação de
decisão de mérito.
A supremacia atribuída ao direito material, a instrumentalidade que caracteriza o direito
processual e a largueza com que o legislador encarou a intervenção do juiz na direcção do
processo e no afastamento de obstáculos formais confluem no sentido de se obterem
314
Nótula sobre a Jurisdição Cível
resultados mais ajustados no campo do direito material, em vez de decisões que, limitando-se
a absolver da instância, mantêm sem resolução material o litígio.
Por isso, na acção declarativa, sem exclusão sequer das acções não contestadas, o juiz não
deve limitar-se a verificar e a sancionar a existência de uma excepção dilatória. Ao invés,
impõe-se que exerça os poderes que a lei lhe confere no que respeita à superação de falhas
processuais susceptíveis de sanação, mesmo quando impliquem com pressupostos processuais
básicos, abarcando, quando tal se justifique, o convite ao esclarecimento de deficiências ou
imprecisões na matéria de facto, nos termos dos arts. 508º, nº 1, al. a), e 265º, nº 2, do CPC.
Reformulado o regime de aperfeiçoamento dos articulados, com ampliação dos poderes
do juiz e transposto para o fim dos articulados, não se compreende a insistência em decisões
formais, antes de se esgotarem os mecanismos alternativos que permitem o aproveitamento
do processado para a prolação de decisões de mérito”.
j) Não uso das regras da experiência ou não atendibilidade das regras da experiência
comum para efeitos de presunções judiciais.
Esta situação é frequente nas acções cuja procedência depende da prova de factos que
são do foro interno da outra parte ou relativamente aos quais não é natural nem possível a
apresentação de prova testemunhal ou documental, exigindo-se do juiz que forme a sua
convicção sobre o facto desconhecido a partir da prova de factos instrumentais.
Assim deveria ter acontecido – e não aconteceu – numa acção de impugnação pauliana:
“A prova de factos do foro interno, como aqueles de que depende a afirmação do
requisito da má fé necessário à impugnação pauliana (tal como ocorre com a simulação
contratual condicionada pela prova do acordo simulatório e da intenção de prejudicar
315
Nótula sobre a Jurisdição Cível
terceiros), constitui uma das mais espinhosas tarefas a cargo da parte sobre quem recai o ónus
probatório.
Sem descurar tais dificuldades, a afirmação da prova de um certo facto representa
sempre o resultado da formulação de um juízo humano. Uma vez que jamais este pode basear-
se na absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de
acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao Tribunal a formação da
convicção assente em padrões de probabilidade, que permita afastar a situação de dúvida
razoável.
A natureza subjectiva dos factos constitui um factor que indubitavelmente complica essa
tarefa mas que, apesar disso, não deve servir para negar tutela a direitos cujo exercício
dependa da prova desses factos. Por isso, desde que na motivação da decisão se justifiquem os
fundamentos concretos da convicção, o juiz deve usar um critério tanto menos rigoroso
quanto maior for a dificuldade de reunir os elementos de prova adequados. Por outro lado,
não deve ficar totalmente alheio ao processo de formação da convicção o comportamento
processual da parte contrária, pois se é verdade que o ónus da prova não lhe pertence,
também é certo que, como parte interessada no litígio, a sua actuação processual pode e deve
ser valorada de acordo com as regras da experiência comum.
…
Ganham, assim, especial relevo os dados recolhidos da experiência que nos revelam a
multiplicidade e a sofisticação das estratégias de fuga aos credores, merecendo destaque a
transferência de bens para pessoas ligadas aos interessados por relações de confiança ou a
intervenção de "testas de ferro" que formalmente assumem a titularidade dos bens que, de
facto, continuam na disponibilidade dos transmitentes, a favor de quem subscrevem
geralmente procuração irrevogável.
Mais elaborada e tecnicamente mais difícil de detecção é a utilização de sociedades off
shore (por vezes, incentivadas por entidades bancárias) obedecendo a um regime favorável no
que concerne à sua constituição e ao regime fiscal vigente em determinados (e bem
publicitados) "paraísos fiscais", possibilitam complementarmente, através do secretismo
adoptado quanto à identificação dos verdadeiros titulares do capital social, a ocultação de
bens que, de outro modo, ficariam à mercê dos credores.
É da experiência da vida que nestas e noutras circunstâncias os implicados não emitem
uma declaração confessória da realidade que se esconde por detrás da modificação da
titularidade jurídica dos bens. Tal elemento de prova objectivo pura e simplesmente não existe
316
Nótula sobre a Jurisdição Cível
ou não se mostra acessível, razão pela qual o sistema deve consentir que os interessados
façam prova dessa realidade por outras vias menos evidentes mas, ainda assim, que permitam,
com razoável segurança, a afirmação da veracidade de determinados factos controvertidos.
Ganham, assim, especial relevo as presunções definidas pelo art. 349º, do CC, como
“ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto
desconhecido”, e que incluem ainda as presunções judiciais ou “ad hominem”.
Condicionadas a uma utilização prudente e sensata, isenta de excessivo voluntarismo, as
presunções judiciais constituem um instrumento precioso a empregar, quando necessário e
quando tal for legalmente admitido (art. 351º, do CC), na formação da convicção que antecede
a resposta à matéria de facto, o que se torna premente quando se trata de proferir decisão
que, como ocorre relativamente à impugnação pauliana, se tornam dificilmente atingíveis
através de meios de prova directa.
Conquanto nem sempre resulte explícita a sua intervenção na formação da convicção
jurisdicional, constituem um importante mecanismo que pode levar o Tribunal a afirmar a
verificação de certo facto controvertido, suprindo as lacunas de conhecimento ou de
informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova; podem servir ainda
para valorar os meios de prova produzidos”.
317
Nótula sobre a Jurisdição Cível
demonstrando conhecimento pessoal dos factos, convencendo assim o Tribunal no sentido das
respostas dadas”.
Decerto que o esforço desenvolvido pelas partes na fase de instrução, a importância do
processo e o grau de litigiosidade que através dele se detecta mereciam do Tribunal a que se
dirigiram melhor resposta. O número de testemunhas, a quantidade e a duração das sessões
de julgamento (com interrogatórios, instâncias e perguntas feitas, respectivamente, pelos
Exmºs mandatários e pelo Mº Juiz a quo) não encontram eco na forma utilizada pelo Mº Juiz a
quo para expressar os motivos da sua decisão.
Face a tão inusitada motivação (pela natureza formal e pela notória incompatibilidade da
justificação), abriu-se o flanco a justificadas e escusadas dúvidas quanto ao acerto do
julgamento ou, ao menos, quanto aos reais motivos que terão levado o Tribunal a responder
da forma como o fez, sendo naturais a perplexidade e as dificuldades da apelante quanto à
compreensão do fio lógico que conduziu ao resultado declarado.
Dificuldades que também a este Tribunal se suscitam na ocasião em que, em sede de
recurso, lhe é solicitado que reaprecie a decisão da matéria de facto. Com efeito, tal
motivação, feita por quem acompanhou e mediou a produção da prova oralmente produzida
não consegue superar as dúvidas quanto ao valor intrínseco que terá sido atribuído a cada um
dos depoimentos ou quanto ao valor probatório atribuído a documentos (sentença e relatório
pericial elaborado por dois médicos psiquiatras), designadamente aos que foram extraídos do
processo de interdição e que directamente respeitam à capacidade de entendimento da
declarante E.
Tendo em conta o princípio da imediação que envolve a condução da audiência de
julgamento onde os depoimentos foram prestados, o Mº Juiz a quo estava em condições e
tinha o dever de deixar claros os motivos que o levaram a responder positiva ou
negativamente aos quesitos formulados, sendo fundamental para a correcta tramitação dos
processos judiciais que esses sinais sejam deixados bem visíveis para que as partes possam
reagir pelos meios de que dispõem e para que o Tribunal ad quem possa sindicar
correctamente a decisão impugnada.
Num processo em que uma tão grande riqueza de depoimentos se colhe da simples
leitura das transcrições feitas a partir das gravações, de modo algum se compreende a opção
manifestada na motivação da decisão sobre a matéria de facto caracterizada pela sua natureza
genérica, tabelar, enfim, vazia de conteúdo, aliás, bem longe da prática que, ao abrigo do novo
regime, se constata pela análise dos processos que sobem a esta Relação.
318
Nótula sobre a Jurisdição Cível
319
Nótula sobre a Jurisdição Cível
Afinal, razões que já eram anunciadas por Antunes Varela, para quem mesmo antes da
reforma do processo civil já se impunha a indicação das razões de credibilidade ou da força
decisiva reconhecida aos meios de prova, de modo que, por exemplo, havendo depoimentos
testemunhais contraditórios sobre a mesma ocorrência, o Tribunal necessitaria de indicar as
razões por que preferiu o depoimento A ao depoimento B.
Neste contexto, impondo-se, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, que se
estabeleça o fio condutor entre os meios de prova usados na aquisição da convicção
(fundamentos) e a decisão da matéria de facto (resultado), fazendo a apreciação crítica
daqueles, nos seus aspectos mais relevantes, a decisão encontrar-se-á viciada quando não
forem observadas as regras contidas no art. 653º, nº 2.”.
320
Nótula sobre a Jurisdição Cível
321
Nótula sobre a Jurisdição Cível
uma atitude reflexiva que evitem soluções que, no contexto judiciário, acabem por constituir
verdadeiras decisões surpresa.
…
n) Opção por uma solução de cariz formal, em lugar de outra de natureza substancial.
Considero paradigmática a situação que a seguir relato emergente de um litígio em redor
de um contrato de seguro de grupo, do Ramo Vida, em que se colocava a questão da
legitimidade activa do segurado, e onde deixei expresso o seguinte:
“O simples facto de a R., empresa seguradora, integrar o mesmo grupo do Banco
financiador deveria ter servido de travão a uma solução como a que decorre da decisão
agravada e cujo pendor formal da argumentação não pode deixar de ser realçado.
Considerar-se que relativamente à relação material controvertida era unicamente o Banco
que concedeu os créditos e que foi constituído beneficiário do seguro o detentor de
legitimidade para reclamar a liquidação do seguro de vida constitui um resultado
insustentável, na medida em que a correspondente absolvição da instância, com fundamento
na ilegitimidade dos AA., acabaria por se traduzir em benefício exclusivo da seguradora que
integra o grupo económico do Banco.
Potenciar-se-ia, assim, uma situação paradoxal: mesmo que fosse incontroversa a
verificação de todos os pressupostos da exigibilidade do capital seguro, continuaria a recair
sobre os AA. a obrigação de pagamento das prestações acordadas, a qual apenas cessaria se e
quando a entidade bancária resolvesse accionar a seguradora ... do seu próprio grupo.
Ao invés do que ficou expresso na decisão recorrida, deve reconhecer-se aos AA. um
interesse legítimo, porque directo e não meramente reflexo, para, na presente acção,
discutirem com a R. a verificação ou não dos pressupostos de que depende o accionamento do
referido contrato de seguro.
O reconhecimento da legitimidade processual, como mero pressuposto formal, não
implica naturalmente a procedência da pretensão. Basta que permita a manutenção da
instância para no âmbito da posterior tramitação se discutirem e apurarem os aspectos ligados
322
Nótula sobre a Jurisdição Cível
ao mérito da pretensão material. Repare-se que, no caso concreto, os AA. não reclamam para
si o pagamento do capital seguro. No seu segmento essencial, pretendem apenas que o
mesmo seja entregue ao banco mutuante para ser aplicado na liquidação dos empréstimos
que perante o mesmo contraíram.
Ora, na medida em que, pela eventual procedência da acção, os AA. vejam saldadas as
dívidas que assumiram perante o Banco, ficarão definitivamente exonerados do pagamento
das prestações que ficaram convencionadas nos contratos de mútuo, pois que, nos termos do
art. 767º do CC, nada obsta a que a prestação seja feita por terceiro. A presença do referido
interesse directo na demanda torna-se ainda mais evidente quando se verifica que os
contratos de mútuo celebrados com o Banco beneficiário do seguro ficaram garantidos por
hipoteca, sendo que o pagamento do capital mutuado, por via do accionamento do contrato
de seguro, é passível de determinar a extinção dessa garantia real, nos termos do art. 730º do
CC”.
Noutro caso – processo de insolvência – decidi que:
“Para além de se revelar a insuficiência de bens, verifica-se que o requerido, tendo para
isso oportunidade, não se esforçou por demonstrar que, apesar do diferencial aparente entre
o seu activo e o seu passivo, reúne condições (v.g. ao nível da obtenção de crédito, de
desenvolvimento de negócios futuros, etc.) para cumprir com as suas obrigações, maxime a
obrigação exequenda, elidindo, deste modo, a presunção de insolvência reflectida por aquele
factoíndice.
Tendo sido dada ao requerido a possibilidade de ilustrar com factos e meios de prova uma
diversa situação patrimonial ou a verificação de circunstâncias demonstrativas de uma
situação de solvência, nos termos e para efeitos do nº 3 do art. 30º, do CIRE, nada adiantou
para além de confirmar a titularidade da fracção hipotecada e de alegar que a mesma ainda
não foi penhorada. Nem sequer alegou, e tão pouco provou, que o seu valor seja suficiente
para suportar o pagamento das suas dívidas, facto de todo implausível tendo em conta, por
um lado, a natureza da bem (fracção autónoma), a sua localização e a pendência de hipotecas
sobre a mesma.
Nestas circunstâncias, não parecem ajustadas as conjecturas de valor meramente
especulativo formuladas pelo Mº Juiz a quo quando aludiu à possibilidade de a única fracção
referida potenciar o cumprimento das obrigações do requerido.
Se nem o requerido, conhecedor da concreta realidade, foi a tal ponto, muito menos essa
possibilidade, directamente contrariada pelos dados da experiência relacionados com a
natureza e localização da fracção autónoma, poderia ser adiantada pelo Tribunal.
323
Nótula sobre a Jurisdição Cível
p) Excessiva amplitude dos relatórios das sentenças, com extensas reproduções dos
articulados ou com relato de todas as incidências processuais, contrariando a
metodologia prevista na norma que regula a sentença e que claramente aponta para a
sintetização.
q) Falta de equilíbrio na fundamentação, variando entre a fundamentação excessiva e a
ausência de fundamentação ou a omissão de pronúncia.
Sendo obrigatória a fundamentação das decisões judiciais, o certo é que o maior ou
menor investimento nessa área exige que se abrevie a fundamentação em casos em que tal se
justifique (falta de efectiva litigiosidade, falta de oposição, carácter repetitivo da questão
apreciada, pacificação da solução a nível doutrinal ou jurisprudencial), guardando o maior
investimento (através de maior investigação, estudo e reflexão) para questões ou casos que
verdadeiramente exijam uma pronúncia judicial.
324
Nótula sobre a Jurisdição Cível
r) Rejeição oficiosa da execução sem que a questão tenha sido levantada e sem que os
autos revelem elementos suficientes.
Numa questão desta natureza tive a oportunidade de enunciar o seguinte:
“Mas uma tal intervenção tem de ser necessariamente encarada com parcimónia por
parte do juiz, ponderando sempre o facto de ao executado ter sido dada a oportunidade de
deduzir oposição e reservando a actuação de natureza complementar para situações-limite em
que a irregularidade da acção executiva não deixe margem para dúvidas. O uso do mecanismo
do art. 820º do CPC tem que ser necessariamente reservado para situações excepcionais em
que a ocorrência de alguma das situações abstractamente previstas decorra da mera análise
dos elementos fornecidos pelos autos, sem necessidade de intervenção judicial, de pendor
inquisitório”.
325
Nótula sobre a Jurisdição Cível
326
Da sentença cível
Da sentença cível
Manuel Tomé Soares Gomes
Nota Introdutória
Tais palavras exprimem bem o que hoje sentimos, ao sermos agitados pelos ventos da
Reforma do CPC, em busca de novos procedimentos para lidarmos com comportamentos
eivados de emoções remotas, ante a transmutação de um quadro normativo que se vem
revelando desfasado dos nossos tempos e, quiçá, inebriados pelas invenções tecnológicas
emergentes da “Revolução Informática” que, senão olímpica, pelo menos, reveladora de um
mundo virtual nunca dantes imaginado.
Como é sabido, em geral, a sentença tem por função obter o conhecimento da matéria
dos litígios e proceder à sua justa resolução. É, pois, um ato de racionalidade prático-jurídica,
através do qual o juiz julga os factos provados e os não provados e, nessa base, convoca o
quadro normativo aplicável, declarando o direito em concreto para valer com força de caso
julgado.
Ora, a produção de um conhecimento sólido, qualquer que seja a sua natureza, requer a
prévia definição dos parâmetros por que se rege a sua elaboração, pois deles deriva a
consistência e validade do conhecimento assim produzido. O método a seguir é, por
conseguinte, uma garantia de qualidade do resultado que se pretende.
329
Da sentença cível
Foi nesta linha de pensamento que procurei orientar o presente trabalho na mira de
contribuir, de forma modesta, mas com apelo à minha experiência profissional, para a reflexão
que se impõe sobre a economia do ato de julgar.
Estou em crer que a tão desejada simplificação das decisões judiciais melhor se alcança
com o aprimoramento racional do método decisório do que por via de simplismos redutores,
ao sabor de experimentalismos imaginativos, algo difusos, que, em vez de conduzir a uma
compreensão mútua dos critérios do agir processual, pode gerar um clima de incerteza e de
desconfiança entre os agentes judiciários e, em última análise, aos olhos dos cidadãos em
geral.
Não pretendo que as ideias e observações aqui veiculadas sejam entendidas como
modelos de actuação. Longe disso, procuro tão só partilhar o empenhamento numa aposta de
maior racionalidade no agir judiciário que contribua para uma realização mais célere e
proficiente da Justiça. É certo que essa racionalidade não se deve cingir à singularidade
estrutural do ato de julgar, mas antes abarcar todo o fenómeno processual como quadro
complexo e dinâmico em que se edificam os alicerces da decisão. Todavia, será a partir do
plano decisório que talvez melhor se descortine e perspetive a racionalidade teleológica do
processo.
Ganhar essa aposta depende do esforço comum. Deixo-vos o meu lance, nessa jogada, e
fico na expectativa de que seja coberto por melhores trunfos.
Talvez assim possamos, em conjunto, despertar do sono das fantasias e afrontar o
aparente caos do mundo real.
Da sentença cível
1
Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de JOSÉ PEDRO MACHADO, a palavra sentença
deriva do vocábulo latino sententia, que significa, etimologicamente, “sentimento, opinião, ideia, maneira
de ver, opinião (dada no senado), voto, sufrágio (dado nos comícios); falando de juízes: sentido, significação,
ideia, pensamento ...”. De notar que o termo sententia, no sistema das legis actiones do Direito Romano
Antigo, “significava ... simplesmente a opinião ou a convicção jurídica do iudex privatus sobre a questão
litigiosa” – vide SANTOS JUSTO, in Direito Privado Romano – I Parte Geral, Coimbra Editora, 2000, pag. 303.
330
Da sentença cível
2. Do Objeto da Sentença
Os requisitos relativos ao delineamento periférico do objeto da sentença têm a sua sede
legal, essencialmente, nos artigos 5.º e 608.º a 612.º do CPC.
Assim, a sentença tem por objecto:
a) em primeira linha, as questões processuais, mormente as que possam determinar a
absolvição da instância – n.º 1 do artigo 608.º do CPC;
b) em seguida, as questões de mérito suscitadas pelas partes e as que a lei permita ou
imponha que o juiz conheça oficiosamente, excetuadas as que se considerem
prejudicadas pela solução dada a outras – n.º 2 do citado artigo 608.º.
Para tal efeito, por questão entende-se o efeito pretendido pelo autor (pedido) e os
respectivos fundamentos (causa de pedir), bem como as exceções dilatórias ou perentórias e
seus fundamentos, arguidas ou de que cumpra ao juiz conhecer oficiosamente 3. No domínio
de cada questão em apreço, podem aduzir-se diversos argumentos ou linhas de raciocínio a
sustentar o enquadramento jurídico pertinente à solução do caso, mas que não constituem em
si mesmo uma questão. Ao juiz impõe-se apreciar todas as questões em causa, não tendo de
ocupar-se de todos os argumentos expendidos pelas partes, mas somente dos que se afigurem
relevantes para a dilucidação dos pontos controvertidos.
2
Doravante, a indicação de artigos do CPC ou de artigos sem qualquer outra menção refere-se ao Código de
Processo Civil português na redação dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
3
Sobre a noção de questões, mormente para os efeitos dos atuais artigos 608.º e 615.º n.º 1, alínea d), do
CPC, correspondentes, respetivamente aos artigos 660.º e 668.º, n.º 4, do CPC de 1939, vide, por todos,
ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pp. 51 a
58.
331
Da sentença cível
No âmbito das questões prejudicadas pela solução dada a outras, importa destacar
aquelas que devem ser apreciadas a título subsidiário ou de reforço. Se, por exemplo, se
concluir pela prescrição do direito peticionado, mas também tiverem sido invocadas outras
exceções perentórias igualmente procedentes, é recomendável que o juiz as aprecie, ainda
que a título subsidiário, em particular quando a questão da prescrição corra risco de insucesso
em eventual recurso que se vier a interpor; o mesmo se dirá quando se conclua, desde logo,
pela improcedência do fundamento do direito invocado, mas em que tenha sido também
suscitada a exceção de prescrição e que esta se mostre procedente, podendo assim ser
tomada em consideração, a título subsidiário.
Outrossim, quando se invoquem causas de pedir concorrentes ou múltiplas 4, deverão ser
todas objeto de apreciação, mesmo que qualquer delas determine, por si só, a procedência da
acção, até porque a procedência de algumas não prejudica o conhecimento das demais, se
tivermos em linha de conta que está também em causa o âmbito ou a latitude do fundamento
do caso julgado.
É certo que, nos termos dos n.º 2 e 3, do artigo 665.º, do CPC, se o tribunal recorrido
deixar de conhecer de certas questões por considerar que ficam prejudicadas pela solução
dada ao litígio, o tribunal de recurso deve conhecer delas, se entender que conduzem à
procedência do recurso e dispuser dos elementos necessários para tal, ouvindo previamente
as partes. De qualquer modo, a apreciação feita logo pelo tribunal de 1.ª instância dá mais
garantias de efetivação do princípio do duplo grau de jurisdição e evita a dilação decorrente da
reabertura do contraditório.
Em rigor, só ficam verdadeiramente prejudicadas as questões cuja apreciação seja
incompatível ou destituída de qualquer alcance útil, na perspetiva da solução dada ao litígio.
Por exemplo, se houver lugar à absolvição da instância não se poderá entrar na apreciação do
mérito da causa, salvo na hipótese prevista no n.º 3, do artigo 278.º, do CPC. Também caso se
conclua pela procedência de uma exceção dilatória ou de uma excepção perentória, com a
consequente absolvição do réu da instância ou absolvição do réu do pedido, respetivamente,
não tem, em princípio, qualquer efeito prático conhecer da mera improcedência de outras
exceções, na medida em que desta improcedência não se retiraria qualquer alcance útil da
decisão do julgado.
4
Importa não confundir causas de pedir concorrentes ou múltiplas com a causa de pedir complexa: no
âmbito daquelas, cada causa de pedir serve de fundamento autónomo à pretensão deduzida, enquanto que
a causa de pedir complexa é corporizada numa factualidade composta de vários elementos que, na sua
aglutinação, constituem o fundamento da pretensão.
332
Da sentença cível
333
Da sentença cível
3. Da Fase da Sentença
3.1. Preliminar
Como foi referido, a fase da sentença compreende a sequência dos atos processuais
respeitantes à prolação da decisão final da causa e à sua subsequente notificação às partes,
bem como os meios de eventual retificação e impugnação perante o juiz que a proferiu.
Esquematicamente, a fase processual em referência:
• tem início, após o encerramento da audiência final, com a conclusão do processo ao
juiz, nos termos do n.º 1, do art.º 607.º, do CPC;
• atinge o seu momento nobre com a prolação da sentença;
̶ compreende também os procedimentos subsequentes da secretaria relativos ao
registo da sentença e à sua notificação às partes (arts. 153.º, n.º 4, 220.º, 252.º e
253.º, do CPC);
• e pode comportar ainda procedimentos eventuais de retificação, suprimento de
nulidades e reforma da sentença, previstos nos artigos 613.º a 617.º, do CPC.
3.2. Procedimentos
3.2.1. Conclusão do processo ao juiz
Encerrada a audiência final, a secretaria deve fazer o processo concluso ao juiz para
proferir sentença, nos termos dos artigos 162.º, n.º 1, e 607.º, n.º 1, do CPC.
334
Da sentença cível
No domínio do processo declarativo comum, o juiz deve proferir a sentença, por escrito,
dentro do prazo máximo de 30 dias, mas se não se julgar suficientemente esclarecido, pode
ainda ordenar a reabertura da audiência para ouvir as pessoas que entender ou ordenar as
diligências que tenha por necessárias (art. 607.º, n.º 1, do CPC). Nos processos de jurisdição
voluntária, a sentença deve ser proferida no prazo de 15 dias (art.º 986.º, n.º 3).
Nos incidentes da instância e nos procedimentos cautelares, a decisão final deve ser
proferida de imediato, por escrito, após a produção da prova seguida de uma breve alegação
oral (artigos 295.º e 365.º, n.º 3, do CPC); mas nos alimentos provisórios e no arbitramento de
reparação provisória, a sentença é proferida oralmente, a consignar na ata, logo após a
produção da prova (artigos 385.º, n.º 3, e 389.º, n.º 1, do CPC).
Mesmo nas hipóteses em que disponha do prazo máximo acima referido, o juiz deverá
gerir essa disponibilidade no sentido de ajustá-la ao grau de complexidade ou de simplicidade
de cada caso, reservando mais tempo para os casos complexos que careçam de estudo
aprofundado e despendendo menos tempo nos casos mais simples ou de ocorrência mais
repetida.
Ainda neste capítulo, há que referir a norma inovadora do n.º 4, do art.º 605.º, do CPC,
que reforça o princípio da plenitude da assistência do juiz, ao determinar que “nos casos de
transferência ou promoção, o juiz elabora também a sentença”, impondo assim a identidade
do juiz que realize o julgamento e do que profere a sentença, o que se justifica, além do mais,
pela simples razão de que a decisão de facto passa agora a estar integrada na sentença.
A sentença deve, em regra, ser proferida por escrito, designadamente mediante o uso de
meios informáticos, e deve ser datada e assinada pelo próprio punho do juiz, o qual rubricará
também as folhas não manuscritas, como se preconiza nos artigos 153.º, n.º 1, do CPC. A
assinatura do juiz pode ser aposta com o nome abreviado, mas não com a mera rubrica (artigo
153.º, n.º 2, do CPC).
Porém, segundo o artigo 19.º, da Portaria n.º 280/2013, de 26 e agosto 5, em vigor desde
01-09-2013, os atos dos magistrados são praticados em suporte informático, com aposição de
5
Esta Portaria revogou as anteriores Portarias n.º 114/2008, de 06-02, e n.º 109/2006, de 13-10.
335
Da sentença cível
assinatura electrónica qualificada ou avançada, que substitui e dispensa, para todos os efeitos,
a assinatura autografada em suporte de papel.
Nalguns casos a sentença deve ou pode ser proferida oralmente no decurso da audiência,
ficando então consignada na respetiva ata, cuja assinatura pelo juiz garante a fidelidade da
reprodução (art. 153.º, n.º 3, do CPC), como, por exemplo, na hipótese prevista no artigo
385.º, n.º 3, do CPC.
A redação deve ser expressa em língua portuguesa (art. 133.º, n.º 1, do CPC) e deve
pautar-se pela clareza do conteúdo, observando-se o disposto nos artigos 131.º, n.º 3 e 4, e
153.º, n.º 1, do CPC, quanto às ressalvas e à utilização de abreviaturas e de algarismos.
A estrutura da sentença integra, nos termos definidos nos artigos 607.º, n.º 2 e 3, e 608.º,
do CPC, os seguintes segmentos:
a) O relatório a identificar as partes e o objeto do litígio, bem como a enunciar as
questões a resolver;
b) O saneamento, se for caso disso, em sede de conhecimento de exceções dilatórias ou
nulidades processuais;
c) A fundamentação de facto e de direito, que compreende:
(i) – em primeira linha, a enunciação dos factos provados e dos factos não provados;
(ii) – seguidamente, a motivação do julgamento de facto mediante a análise crítica das
provas e a especificação dos fatores que foram decisivos para a convicção sobre cada
facto, com a indicação dos concretos meios de prova convocados para tal efeito;
(iii) – e a rematar com a fundamentação de direito, indicando, interpretando e
aplicando as normas jurídicas correspondentes;
d) A decisão ou dispositivo, contendo o juízo de procedência ou de improcedência da
ação e da reconvenção, quando deduzida, bem como os consequentes comandos e
efeitos a decretar, em caso de procedência, e ainda a condenação nas custas que
sejam devidas; se for julgada procedente alguma exceção dilatória, a decisão consistirá
no juízo de absolvição do réu, ou eventualmente do reconvindo, da respetiva instância.
336
Da sentença cível
A este propósito, importa referir que, apesar de a lei ser omissa relativamente a estrutura
lógica dos despachos 6, para além do disposto, em geral, nos artigos 131.º, 133.º, 153.º e 154.º,
do CPC, afigura-se conveniente seguir o esquema paradigmático da sentença, com as devidas
adaptações simplificadoras, na medida em que tal esquema se revele adequado à
compreensibilidade da decisão, o que, obviamente, deixa de fora os despachos de mero
expediente.
Com alguma frequência, se proferem despachos que, começando logo pela decisão,
alinham, de seguida, a respetiva análise argumentativa, sem uma definição prévia e precisa da
questão a resolver e, quanto vezes, sem fixar sequer o contexto ou as vicissitudes processuais
relevantes.
Assim, na metodologia da elaboração dos despachos ditos jurisdicionais 7, dever-se-á:
a) começar por enunciar a questão a resolver, tal como vem formulada pelas partes ou
for reformulada ou suscitada, oficiosamente, pelo tribunal;
b) seguidamente, fixar os elementos circunstanciais do contexto e das vicissitudes
processuais relevantes para a resolução da questão;
c) depois, proceder à respetiva análise jurídica;
d) por fim, formular a decisão.
6
Só quanto ao regime legal dos vícios dos despachos, o n.º 3, artigo 613.º, do CPC, manda aplicar, com as
necessárias adaptações, o preceituado naquele artigo e seguintes.
7
Os despachos jurisdicionais são as decisões, normalmente interlocutórias, que, não se ocupando da
decisão final de uma causa ou de um incidente com estrutura de causa, versem sobre questões que sejam
susceptíveis de ofender os direitos das partes ou de terceiros, ainda que de natureza puramente processual,
podendo assumir a natureza de: a) - despachos discricionários, se proferidos no uso legal de um poder de
decidir segundo o prudente arbítrio do tribunal (art. 152º, nº 4, do CPC); b) - despachos vinculados, quando
devam ser proferidos segundo critérios de legalidade ou de razoabilidade não confinada ao livre poder
discricionário do tribunal.
337
Da sentença cível
3.2.2.3.2. Desenvolvimento
3.2.2.3.2.1. O relatório
8
O n.º 1, do art. 659.º, do CPC, na versão anterior à Reforma Intercalar introduzida pelo Dec.-Lei n.º
242/85, de 9 de Julho, exigia que o relatório contivesse, para além de uma exposição concisa do pedido e
dos seus fundamentos, bem como dos fundamentos e conclusões da defesa, de forma resumida as
ocorrências processuais cujo registo pudesse interessar para o conhecimento do litígio e que concluísse pela
descrição da causa tal como tivesse emergido da discussão final, fixando então com precisão as questões a
resolver. Dada a prática de alguma prolixidade na feitura dos relatórios, nomeadamente com a reprodução,
quase integral, do teor dos articulados, a Reforma Intercalar pretendeu imprimir maior simplificação nessa
formalidade e assim obter mais celeridade.
338
Da sentença cível
3.2.2.3.2.2. Do saneamento
Antes de entrar no exame do objeto da causa, o juiz deve conhecer das nulidades
processuais ou das questões que determinem a absolvição do réu da instância (falta de
pressupostos processuais), desde que sejam de apreciação oficiosa ou que as partes hajam
arguido, salvo nos casos de preclusão, como os previstos, nomeadamente, nos artigos 97.º, n.º
2, 200.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC. Deve, pois, o juiz assegurar-se de que não foram suscitadas
pelas partes questões prévias ainda por decidir e de que não ocorrem questões dessa natureza
que importem conhecimento oficioso.
Como forma de certificar a observância desse controlo, era prática habitual consignar, de
forma destacada, logo após o relatório, que “a instância mantêm-se válida e regular, não
existindo questões prévias de que cumpra conhecer”, fórmula esta que, embora dispensável,
tem o efeito prático de evitar qualquer distração na atuação daquela função de controlo.
Verificando-se a procedência de exceção dilatória que importe a absolvição do réu da
instância, a sentença assim o declarará, nos termos dos artigos 278.º, 576.º, n.º 2, e 577.º, do
CPC, pondo termo ao processo mediante uma decisão de forma.
Porém, ainda que subsistam exceções dilatórias destinadas a tutelar o interesse de uma
das partes, não se decretará a absolvição da instância se, não existindo outro motivo que obste
ao conhecimento de mérito, tal conhecimento conduzir a uma resolução do litígio
9
O delineamento dessas questões no despacho identificativo do objeto do litígio a que se refere o n.º 1, do
art.º 596.º, do CPC é como que a rosa-dos-ventos, pela qual as partes norteiam o coeficiente de esforço
probatório que lhes incumbe.
339
Da sentença cível
inteiramente favorável a essa parte, como se dispõe no n.º 3, parte final, do artigo 278.º, do
CPC 10.
3.2.2.3.2.3. Da fundamentação
A sentença deverá ser fundamentada através da exposição dos factos relevantes e das
razões de direito em que se estriba a decisão, como impõem os artigos 205.º, n.º 1, da
Constituição e 154.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3 e 4, do CPC.
10
Sobre a prevalência da decisão de mérito, vide, TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil,
Lex, 2.ª Edição, Lisboa, 1997, pags. 82 e segs; do mesmo autor, Sobre o sentido e a função dos pressupostos
processuais (Algumas reflexões sobre o dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais na acção
declarativa, ROA nº 49 (1989), pp. 85 e segs..
340
Da sentença cível
Quanto ao critério de seleção dos factos a submeter a juízo probatório, importa reter que
o julgamento da matéria de facto controvertida, submetida a instrução e discussão em
audiência final, sob a forma de temas de prova, deve ser formulado através de juízos
probatórios, tendo por objeto os factos alegados pelas partes nos respetivos articulados ou na
audiência prévia, bem como aqueles de que for lícito ao tribunal conhecer nos termos do n.º 2,
do artigo 5.º, do CPC, mormente os factos complementares ou concretizadores de outros
oportunamente alegados e que tenham decorrido da instrução. Mas o tribunal só deve
atender aos factos que, tendo sido oportunamente alegados ou licitamente introduzidos
durante a instrução, forem relevantes para a resolução do pleito, não cabendo pronunciar-se
sobre factos que se mostrem inequivocamente desnecessários para tal efeito.
341
Da sentença cível
Nesse tipo de factualidade, o facto essencial não é consubstanciado num núcleo definido
e cerrado, mas irradia-se numa multiplicidade de circunstâncias moleculares que, na sua
aglutinação, preenchem o conceito indeterminado ou a cláusula genérica da facti species
normativa. É sobretudo no âmbito deste tipo de factos complexos que podem ocorrer
concretizações ou complementaridades dimanadas da produção da prova em audiência,
suscetíveis de levar ao ajustamento do contexto narrativo dos articulados ao contexto
histórico do litígio.
Tais concretizações ou complementaridades fácticas podem ser introduzidas no objeto da
prova, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, mas, pelo
menos, têm de encontrar-se respaldadas em factualidade nuclear já alegada, não sendo
legítimo que subvertam esta factualidade em termos de contender com os princípio do
contraditório e da igualdade substancial das partes.
A aferição da relevância dos factos para a resolução do caso deverá ser feita em função de
três vectores confluentes:
342
Da sentença cível
(i) – Em primeiro lugar, o referencial normativo traçado na facti species legal, simples,
complexa ou concorrente, em que se inscreve a pretensão deduzida ou a exceção
perentória em causa, atentas as regras, gerais ou especiais, de distribuição do ónus da
prova, numa perspetiva aberta do quadro de soluções de direito plausíveis que o tribunal
possa vir, a final, a considerar, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º do CPC 11;
(ii) – Em segundo plano, o contexto factológico narrativo alegado pelas partes na fase dos
articulados e complementado, conforme os casos:
• por via de articulados supervenientes – artigos 588.º, 589.º e 611.º, do CPC;
• através de articulados complementares ou corretivos, deduzidos na sequência de
despacho de aperfeiçoamento - art.º 590.º, n.º 2, alínea b), 4, a 6, do CPC);
• em sede de discussão dos termos do litígio na audiência prévia - artigos 3.º, n.º 4,
e 591.º, n.º 1, alínea c), do CPC;
• ou mesmo durante a instrução da causa, na audiência final, nos termos do art.º
5.º, n.º 2, alínea b), do CPC;
(iii) – Por fim, o contexto histórico ou real do litígio, que, em regra, emerge da produção
da prova.
11
Este referencial normativo deve também nortear a identificação do objeto do litígio feita quer no
despacho a que se refere o art.º 596.º, do CPC, quer na enunciação das questões a resolver inserida no
relatório da sentença nos termos do art.º 607.º, n.º 2, parte final, do mesmo Código, tanto mais que, na
configuração daquele despacho, às partes podem divisar, de antemão, o coeficiente de esforço probatório
que lhe é exigido.
343
Da sentença cível
Tal perspetiva integrada evitará sobreposições, aporias ou mesmo contradições entre os juízos
probatórios e proporcionará maior economia na própria atividade instrutória.
Por fim, o contexto histórico do litígio, que, em regra, emerge da produção da prova,
permite pôr em linha o contexto narrativo das partes com a sua matriz factológica, no sentido
de um maior apego à dimensão real dos factos, possibilitando, consequentemente, uma
concretização ou complementação dos juízos probatórios, quando tal se afigura útil para a
subsequente análise jurídica.
A este propósito, convém recordar que a jurisprudência tem alinhado no sentido de
considerar que a decisão de facto não se deve ficar por enunciados demasiadamente secos,
mas que, na medida do possível e do necessário, sejam complementados por extensões
concretizadoras, de modo, dir-se-á, a ajustar o contexto narrativo dos factos no processo ao
contexto histórico que deflui da prova, tendo em vista o referencial normativo das questões se
direito a resolver. Assim, a arte de valorar a prova passa, portanto, pela habilidade do julgador
nesse jogo triangular.
Pode colocar-se a questão de saber se, na enunciação dos factos provados e não
provados, o tribunal deve cingir-se apenas aos factos essenciais à procedência da acção ou de
exceção perentória, ou se também deve formular juízos probatórios sobre factos se afigurem
meramente instrumentais daqueles factos essenciais.
Ora o n.º 4, do artigo 607.º, do CPC, prescreve que:
Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados
e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as
ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que
foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que
estão admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a
escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida, extraindo dos factos
apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
Por sua vez, o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código, consigna que:
Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) – Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa.
344
Da sentença cível
Do artigo 574.º, n.º 2, parte final, colhe-se também que a admissão de factos
instrumentais pode ser afastada por prova posterior.
Acresce que o artigo 449.º, n.º 2, manda incluir, nos temas da prova enunciados, a
matéria do incidente respeitante à ilisão da autenticidade ou da força probatória de
documento, que como é sabido, versa sobre factos auxiliares da prova, os quais respeitam à
admissibilidade, idoneidade e valoração de determinados meios de prova 12.
Da conjugação do disposto nos citados artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 607.º, n.º 4, colhe-se
que o tribunal deve tomar em consideração os factos instrumentais e extrair deles as ilações
em sede de presunções judiciais, mas de tais normativos não consta, pelo menos
expressamente, que sobre tais factos deva recair um juízo probatório específico.
Perante isso, poderá pensar-se que sobre os factos instrumentais não tem de recair um
específico juízo probatório, bastando indicá-los na motivação da decisão de facto a propósito
dos factos essenciais que deles se inferem, ou seja, como mero argumento probatório.
Afigura-se, no entanto, que uma tal degradação do juízo probatório em mero argumento
probatório, em sede de factos instrumentais, tem de ser equacionada com algumas cautelas 13.
Em primeiro lugar, há que ter presente que, na prática, nem sempre é nítida a linha de
fronteira entre a essencialidade e a instrumentalidade de um facto, podendo até suceder que
determinado facto se mostre, à partida, instrumental, e que, a final, acabe por se assumir
como essencial. Por exemplo, no caso de um acidente de viação, um rasto de travagem pode
ser instrumental enquanto indício de uma velocidade superior a determinado limite legal
(excesso de velocidade), mas a sua prova não ser conclusiva nesse sentido; no entanto, pode
bem acontecer que aquele mesmo rasto de travagem conjugado com outros elementos de
facto - como a força do impacto dos veículos e a sua posição relativa após o embate -, permita
preencher o conceito indeterminado de velocidade excessiva (art.º 24.º, n.º 1, do CE) e levar,
por consequência, ao juízo de culpabilidade do condutor do veículo, o que o torna agora num
elemento do facto essencial em que se traduz tal factualismo complexo.
Por outro lado, há factos de determinada natureza, nomeadamente os factos do foro
psicológico – cognitivos (v.g. o erro), afetivos (v.g. o abalo psíquico, o desgosto, a tristeza, a
jovialidade) e volitivos (vontade negocial, o animus possessório) – que não são, em regra,
12
Sobre os factos auxiliares da prova, vide o estudo do ora signatário, intitulado Um Olhar sobre a Prova em
Demanda da Verdade no Processo Civil, Separata da Revista do CEJ (2005), número 3, Almedina, pp.150-151.
13
A este propósito, no sentido da sujeição dos factos instrumentais a juízo probatório, vide LEBRE DE
FREITAS, A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, Coimbra Editora,
pag. 315 e seguintes.
345
Da sentença cível
Com efeito, se os factos instrumentais com tal relevo forem apenas disseminados na
motivação dos factos essenciais que indiciam, sem sobre eles recair um juízo probatório
específico, corre-se o risco de, por um lado, se eclipsar a sua conexão com os concretos meios
de prova em que se baseiam e, por outro, de se diluir o respectivo critério de valoração, tanto
mais que tal critério pode variar em função da natureza de cada facto indiciário, sabido como é
que alguns deles podem ser colhidos por via percetiva, enquanto outros o serão de um modo
mais fragmentário ou ténue com maior apelo às regras da experiência, o que poderá tornar a
sua reapreciação, em sede de recurso de apelação, mais problemática. Aliás, a não submissão
de tais factos instrumentais a um juízo probatório expresso pode dar azo à manipulação das
14
In Simplesmente la verdad – El juez y la construcción de los hechos, tradução espanhola, Marcial Pons,
2010, pp. 223 e 252.
346
Da sentença cível
presunções judiciais, em sede de mera argumentação probatória, mas sem ter presente a base
factual objetiva e segura em que assentam.
Não quer isto dizer que tenha de haver pronúncia expressa sobre todos os factos
instrumentais, mas tão só que deverá ser formulado juízo probatório sobre aqueles em que
repousa a essência do julgamento do facto fundamental, a ponderar no contexto de cada caso.
Assim, parece curial que se formulem juízos probatórios sobre os factos instrumentais
mais decisivos para servir de base às presunções judiciais e que devam ser concretamente
conectados com determinados meios de prova.
De igual modo, devem formular-se juízos probatórios sobre alguns dos factos auxiliares
da prova, como aqueles que respeitam a impugnação ou arguição de falsidade de documentos.
Já os factos auxiliares da prova decorrentes, por exemplo, da razão de ciência do testemunho,
da contradita ou da acareação deverão ser integrados como meros argumentos probatórios
em sede de motivação da decisão de facto.
Como é sabido, a linguística deixou, hoje, de ser confinada às suas duas dimensões
primárias – a dimensão gramatical (lógico-sintática) e a dimensão semântica – para se
alcandorar, agora, numa nova dimensão, que é a dimensão pragmática, a qual relaciona a
linguística com os contextos vivenciais e com as estratégias comunicacionais. Esta nova
347
Da sentença cível
dimensão foi brilhantemente versada por Jürgen Habermas na sua “teoria da acção
comunicativa”, com a distinção entre “agir estratégico” e “agir comunicacional” 15.
Para Habermas:
“Os discursos práticos têm de fazer com que os conteúdos lhe sejam dados. Sem o
horizonte do mundo da vida de um determinado grupo social e sem conflitos de acção num
determinada situação, na qual os participantes considerem como sua tarefa a regulação
consensual de uma matéria social controversa, não teria sentido querer empreender um
discurso prático”.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais
deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra
adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance
semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam
portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a
controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente
epidérmico dos seus modos de expressão linguística.
Os enunciados de facto devem também ser expostos numa ordenação sequencial lógica e
cronológica que facilite a conjugação dos seus diversos segmentos e a compreensão do
conjunto factual pertinente, na perspetiva das questões jurídicas a apreciar. Com efeito, a
ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de
inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e
sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou
fragmentário. Por isso mesmo, na sentença, cumpre ao juiz ordenar a matéria de facto – que
se encontra, de algum modo parcelada, em virtude dos factos assentes por decorrência da
falta de impugnação – na perspetiva do quadro normativo das questões a resolver. De resto,
só uma adequada ordenação dos factos provados permite compatibilizar toda a matéria
factual adquirida, como se determina no artigo 607.º, n.º 4, parte final, do CPC.
Por exemplo, numa ação emergente de responsabilidade contratual, devem enunciar-se,
em primeiro plano, os factos respeitantes à formação do contrato, incluindo o respetivo
clausulado, e só depois enunciar as vicissitudes da sua execução relacionadas com o
incumprimento; numa ação emergente de responsabilidade civil por acidente de viação, deve
consignar-se, em primeiro lugar, a factualidade concernente à infraestrutura do acidente
15
“Teorias da Verdade”, in Teorias de la Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos, Madrid,
Ediciones Cátedra, 1994.
348
Da sentença cível
(local, tempo, condições viárias, etc.), depois os factos respeitante aos comportamentos ilícitos
ou aos factores de risco da manobra efectuada e só por fim os danos causados.
Além disso, como já foi dito, os enunciados dos juízos de prova devem nortear-se pela
completude, clareza e coerência possíveis, em face dos resultados da prova, de forma a
prevenir os vícios formais de deficiência, obscuridade e contradição, que constituem
fundamento de anulação do julgamento nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
Sob este tópico, importa atentar no critério prático a seguir na segmentação dos factos.
Ora, dos artigos 452.º, n.º 2 (prova por confissão), 475.º, n.º 2 (prova pericial) e 516.º, n.º
1 e 2 (prova testemunhal), todos do CPC, decorre que a a actividade probatória, embora se
inscreva nos delineados temas da prova, nos termos do art.º 596.º, n.º 1, deve incidir sobre os
factos concretamente alegados ou licitamente emergentes da instrução. Por sua vez, do
disposto no artigo 607.º, n.º 3 a 5, do CPC colhe-se que a convicção do julgador se forma e a
sua enunciação se formaliza sobre a singularidade de cada facto. Ponto é saber como se deve
proceder à segmentação ou fragmentação textual desses enunciados, atenta a exigência de tal
singularidade factológica.
Segundo as regras gerais da sintaxe, o discurso descritivo-narrativo expressa-se mediante
proposições verbais (ou orações) integradas em frases, por sua vez, organizadas em conjuntos,
como são os períodos e os parágrafos, em harmonia com a maior ou menor proximidade das
ideias ou do fio de pensamento ali veiculado, tendo em vista uma adequada compreensão da
matéria exposta, por parte dos respetivos destinatários. Assim a sintaxe, mormente no campo
literário, obedece a regras linguísticas, de estética e de comunicação.
Contudo, a narrativa factológica processual requer especificidades ditadas pelo seu
próprio contexto e funcionalidade, em que predominam exigências de objetividade, clareza e,
em suma, de suficiente compreensibilidade para os destinatários das decisões judiciais.
Nessa linha, a segmentação dos factos tem de ser ponderada não em função de
arquétipos abstratos, porventura de pendor estético, nem de simplismos redutores, mas
atentando no concreto contexto do litígio, em especial na intensidade impugnativa que tenha
recaído sobre cada ponto de facto e na conjugação com os concretos meios de prova
convocados para a sua demonstração e até mesmo em vista das exigências de
operacionalidade na articulação do argumentário probatório com os enunciados fácticos nele
reportados.
349
Da sentença cível
O teor dos enunciados de facto correspondentes aos juízos probatórios deve ser depurado
de referências aos meios de prova ou às respectivas fontes de conhecimento, sendo de banir
dizeres como provado apenas que “a testemunha... viu o réu a entrar na casa do autor” ou, no
caso em se discuta a origem de um incêndio, provado apenas que “os bombeiros verificaram
não existir no local sinais do foco de incêndio”. Estas referências aos meios de prova, quando
muito, podem constituir argumento probatório, a consignar na motivação, para fundamentar
um juízo afirmativo ou negativo, pleno ou restritivo, do facto em causa.
Nessa linha, o que se requer é que o julgador assuma uma posição clara sobre o
julgamento de facto, decidindo o que deve decidir, sem evasivas. Por exemplo, se o que está
em causa é apurar a origem de um incêndio, o que o juiz tem de ajuizar é se o facto para tal
alegado está ou não provado, sendo que a verificação pelos bombeiros de não existir sinais do
foco de incêndio é apenas um dos meios de prova nesse sentido. Igualmente, se o que está em
discussão é indagar sobre a vontade real, expressa ou tácita, manifestada num contrato
350
Da sentença cível
escrito, o que tem de ser decidido é se está ou não provada a alegada vontade real, pelo que,
muitas vezes, o dar como provado apenas o que consta do documento se traduz numa forma
evasiva de julgar aquela questão.
Por outro lado, há que usar de muita cautela na remissão para o teor de documentos
juntos ao processo, devendo-se, em princípio, transcrever os conteúdos do teor do documento
que reproduzam factos considerados provados. Nessa linha, o juízo probatório deve refletir, de
modo inequívoco, as declarações negociais ou de ciência constante de documento que se
considerem ou não assumidas pelos seus autores, sem deixar margem para especular sobre
essa assunção, como sucede quando se afirma “provado apenas o que consta do documento
x”. O grau de precisão do juízo probatório deverá ser aferido, por um lado, em função e no
contexto narrativo do que vem alegado e, por outro lado, de harmonia com os resultados da
produção de prova e da convicção que o julgador sobre eles formar. Porém, quando se esteja
em presença de documentos em que se registam dados de leitura e definição inequívocas,
como, por exemplo, uma fatura donde conste as espécies, quantidades, datas e importâncias
de fornecimento de bens, não se vê inconveniente em que o juízo probatório se faça por
remissão para tais dados. Neste domínio, dada a diversidade dos casos concretos, não será
possível estabelecer critérios rígidos, devendo o julgador pautar-se por parâmetros de ordem
prática que confiram ao juízo de prova uma inteleção objetiva e precisa.
Depois da enunciação dos factos provados e dos factos não provados, a sentença deverá
conter a respetiva motivação, nos termos do artigo 607.º, n.º 4, do CPC, de modo a:
a) por um lado, indicar, de forma sintética, o fundamento dos factos assentes admitidos
por acordo e os provados por confissão ou documento com eficácia probatório plena,
com a mera referência a tal circunstância, bem como dos factos notórios e daqueles de
que o tribunal tem conhecimento por virtude das suas funções (factos judicialmente
notórios);
b) por outro lado, relativamente aos factos controvertidos submetidos a prova livre,
proceder à análise crítica do resultado probatório, extraindo as ilações pertinentes dos
factos instrumentais, especificando os fundamentos que foram decisivos para a
convicção do julgador, com a indicação dos meios concretos de prova em que se haja
fundado essa convicção.
351
Da sentença cível
Importa, antes de mais, considerar que a valoração da prova, por parte do tribunal, se
consubstancia na formação de juízos de razoabilidade sobre os factos controvertidos
relevantes para a resolução do litígio, em função do material probatório obtido através da
atividade instrutória, à luz das regras da experiência e da coerência lógica dum raciocínio
pragmático sobre as ocorrências da vida.
Neste capítulo, tem sido colocada a questão de saber o que se deve entender por objeto
da prova: se é a verdade material qua tal ou se é a factualidade alegada pelas partes no
processo, consistente no que se designa por dados de facto. Significa isto saber se o objeto da
prova se deve centrar na investigação dessa verdade material ou, diversamente, se se deve tão
só ajuizar sobre a correspondência entre a factualidade alegada e os resultados da prova do
acontecer histórico retratado nesta factualidade.
Como é sabido, em termos gnoseológicos, a dita “verdade material ou absoluta”, exterior,
é praticamente inatingível em qualquer domínio do saber. O entendimento humano versa
sobre a realidade fenoménica que, por sua vez, esconde uma realidade velada.
Assim, os mecanismos de perceção, de sensibilidade e de elaboração do pensamento
captam os múltiplos sinais dessa realidade fenoménica, interpretam-nos e assimilam-nos, com
base na experiência adquirida e nas próprias estruturas cognitivas, e convertem-nos em
conhecimento empírico e inteletivo, pelo que a realidade assimilada não é a reprodução pura e
simples da realidade fenoménica, mas antes um constructus dessa realidade elaborado pelo
próprio entendimento humano.
Ora a “reconstrução cognitiva” da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia
ter, a finalidade de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do
acontecido, nem tão pouco tal sucede sequer nos domínios da verdade história ou da verdade
científica. Muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e
íntima do julgador. Diversamente, a prova judicial tem como objetivo lograr uma compreensão
suficientemente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições
humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso 16.
16
Sobre a natureza do conhecimento judicial dos factos, seu carácter ideográfico, e as condicionantes
práticas e normativas da averiguação judicial, vide MARINA GASCÓN ABELLÁN, Los Hechos en el Derecho –
Bases argumentales de la prueba, Marcial Pons, Barcelona, 1999, pag. 97 a 123. Sobre o contexto da pro-va
352
Da sentença cível
judicial e o objectivo institucional da verdade aí prosseguida, vide JORDI FERRER BELTRÁN, La valoración
racional de la prueba, Marcial Pons, 2007, pag. 29 e seguintes.
17
Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a
realidade empírica, vide MICHELE TARUFFO, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à
configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide EDUARDO GAMBI, A Prova
Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e
seguintes; LLUÍS MUÑOZ SABATÉ, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor,
Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
18
A este propósito, vide LARRY LAUDAN, in Prólogo à monografia de Jordi Ferrer Beltrán citada na nota
precedente.
19
In Notas sobre Derecho e lenguaje, Buenos Aires, 1990, pag. 90.
353
Da sentença cível
sustentado na razão prática mediante a análise crítica dos dados de facto veiculados pela
atividade probatória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas
regras da experiência comum, colhidas da normalidade social, ou mesmo da experiência
qualificada em determinado sector de atividade, que não pelo mero convencimento íntimo do
julgador, não podendo assim a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade
persuasiva e suscetível de objetivação, sem excluir, de todo, a interferência de fatores de
índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis 20. No entanto, a intuição
não é um dado, mas um estímulo, qual motor de pesquisa, devendo ser ponderada com o
sentido crítico da reflexão. Ponto é que a motivação se paute pelo princípio da completude
racional, de forma a esconjurar o arbítrio 21.
Neste campo, há que estar prevenido contra a ocorrência de dois perigos frequentes 22:
por um lado, a tendência de generalização fácil do conhecimento empírico; por outro, o perigo
da obnubilação do abstrato, que ofusca a concreticidade dos factos sob o véu tanslúcido de
arquétipos categoriais. Como afirma Gaston Bachelard, “no ser humano predomina a
obscuridade do “eu sinto” sobre a clareza do “eu vejo” 23, o que pode conduzir à referida
generalização. Mas também, por vezes, irrompe o deslumbramento pelas fórmulas abstratas
redutoras dos fenómenos percepcionados.
Na valoração e formulação do juízo probatório deve, pois, procurar-se o equilíbrio entre o
sentido do real e a sua razão prática.
É nessa linha que se deve inscrever a ponderação dos depoimentos colhidos, tendo em
conta o respetivo teor, o seu nicho contextual, bem como as razões de ciência e a credibilidade
dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção na apreciação
da prova livre, ditado pelo n.º 5, do artigo 607.º, do CPC, e obter uma decisão que se possa ter
por justa e legítima.
20
Sobre o modelo cognitivo racional da prova, em detrimento de modelo puramente empírico, vide, entre
outros autores, MARINA GASCÓN ABELLÁN, Los Hechos en el Derecho – Bases argumentales de la prueba,
Marcial Pons, Barcelona, 1999, pag. 97 a 123.
21
Sobre o princípio da completude da motivação da decisão judicial ditado, pela necessidade da justificação
cabal das razões em que se funda, com função legitimidora do poder judicial, vide acórdão do STJ, de 17-01-
2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1876/06.3TBGDM.P1.S1, disponível
na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
22
GASTON BACHELARD, A Formação do Espírito Científico – Contribuição para uma Psicanálise do
Conhecimento, tradução de Estela dos Santos Abreu, Dinalivro, 2006, pp. 33 a 109.
23
In ob. cit. na nota precedente, pag. 196.
354
Da sentença cível
As boas práticas aconselham a que, na motivação, o juiz explicite as razões que o levaram,
por exemplo, a dar mais crédito a uma testemunha do que a outra, quando os seus
depoimentos sejam divergentes, salientando a razão de ciência ou a consistência e maturidade
reveladas pelo depoente. De igual modo, quando o argumento probatório repouse em
355
Da sentença cível
356
Da sentença cível
C – Da análise jurídica
24
Sobre o método do “círculo hermenêutico”, vide, entre outros, o Professor Doutor ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO, na Introdução ao livro de CLAUS CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na
ciência do Direito, Lisboa, 3.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
25
Sobre a recursividade na circularidade dos saberes como método de abordar o pensamento complexo,
vide ROBIN FORTIN, Compreender a Complexidade – Introdução ao Método de Edgar Morin, publicado, em
tradução portuguesa, pelo Instituto Piaget, 2007.
357
Da sentença cível
26
Vide JOHN RALSTON, SAUL, On equilibrium, Penguin Canada, 2002, pag. 284.
358
Da sentença cível
Desde logo, na enunciação das questões, partindo dos termos em que as partes as
suscitam ou em que devam ser suscitadas oficiosamente, há que proceder com clareza,
reformulando-as ou desdobrando-as nos diversos ângulos ou segmentos em que,
concretamente, importa abordá-las.
No campo argumentativo, convém ainda distinguir, por um lado, as razões que assumem
a função de considerandos, elementos essenciais, indispensáveis, do tecido discursivo; por
359
Da sentença cível
3.2.2.3.2.4. A decisão
360
Da sentença cível
Encerrada a audiência final, a secretaria deve fazer o processo concluso ao juiz para
proferir sentença, nos termos dos artigos 162.º, n.º 1, e 607.º, n.º 1, do CPC.
As sentenças logo que proferidas são objecto de registo em livro próprio, como impõe o
n.º 4, do artigo 153.º, do CPC, e são notificadas às partes e ao Ministério Público (artigos 220.º,
252.º e 253.º, do CPC).
A notificação, as comunicações obrigatórias e o registo da sentença são de cumprimento
oficioso pela secretaria, pelo que não necessitam de ser ordenados na sentença. Todavia, nas
decisões da 1.ª instância é ainda uma prática persistente, embora dispensável, ao que
361
Da sentença cível
supomos, com a justificação de que é uma forma expedita de alertar o funcionário para o
cumprimento desse dever. No entanto, é de admitir que, em caso de se anteverem
dificuldades práticas, por parte da secretaria, em divisar as notificações ou comunicações a
fazer, o juiz o possa indicar.
Por outro lado, mesmo depois de transitada, a sentença pode ainda ser objecto de
revogação pelo próprio tribunal que a proferiu, mas já em sede dos recursos extraordinários
para uniformização de jurisprudência e de revisão, respectivamente nos termos previstos e
regulados dos 688.º a 695.º e 696.º a 702.º, do CPC.
27
Sobre esta matéria vide, entre outros, PAULO CUNHA, Processo Comum de Declaração, Apontamentos de
Artur Costa e Jaime Lemos, Tomo II, 2.ª Edição, Augusto Costa & C.ª L.ª, Braga, 1945, pp 347 e seguintes;
362
Da sentença cível
ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pp. 113 e
seguintes; CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Vol. II, Obras Completas, 2012, AAFDL, pp. 535 a 547.
28
Sobre o vício de inexistência da sentença, vide, em especial, CASTRO MENDES, Direito Processual Civil,
Vol. II, Obras Completas, 2012, AAFDL, pp. 535 a 537 e 543.
363
Da sentença cível
Uma questão que aqui se deixa ligeiramente enunciada é a que se refere à validade de
uma sentença transitada em julgado que incida sobre objeto física ou legalmente impossível,
contrário à lei, indeterminável, ou contrária à ordem pública ou ofensiva dos bons costumes.
Basta pensar em casos de sentenças proferidas em matérias que extravasam claramente do
âmbito da função jurisdicional. Ou então supor um caso em que, numa acção de divórcio que
correra termos à revelia do réu, se vem mais tarde a apurar que este já tinha falecido antes do
trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio; ou um caso em que, depois de
decretada a adoção plena, seja proferida sentença a estabelecer a filiação natural do
adoptado, contra a proibição do artigo 1987.º, do CC.
Ora, a sentença enquanto ato jurídico que é não pode deixar de cair no âmbito de
aplicação do artigo 280.º, aplicável por força do art. 297.º, do CC.
Assim sendo, afigura-se que, quando o objeto da sentença colida com o preceituado no
citado art. 280.º, deverá ser nula e de nenhum efeito, havendo mesmo autores que sustentam
a sua inexistência jurídica, mormente quando verse sobre matérias subtraídas à função
jurisdicional.
Nesta linha de entendimento, uma sentença que decrete o divórcio de pessoa já falecida
versa sobre objecto legalmente impossível, dado que a morte de um dos cônjuges já operou a
dissolução do casamento (art. 1788.º, do CC). O mesmo sucede com a sentença que estabeleça
a filiação natural em relação a uma pessoa já adoptada plenamente. Num e noutro caso
estaremos perante sentenças nulas e de nenhum efeito por impossibilidade legal.
Os erros materiais da sentença, para os efeitos disposto nos artigos 613.º, n.º 2, e 614.º,
do CPC, podem consistir:
364
Da sentença cível
O suprimento dos erros materiais em referência faz-se por mera retificação nos termos e
segundo o procedimento previstos no artigo 614.º, do CPC:
a) Quanto à iniciativa (art. 614.º, n.º 1, parte final, do CPC
b) Quanto ao momento
365
Da sentença cível
c) Quanto ao procedimento
A violação das normas que disciplinam, em geral (artigos 131.º, 133.º, n.º 1, 137.º, n.º 1,
153.º e 154.º, do CPC) e em particular (arts. 607.º a 609.º, do CPC), a elaboração da sentença,
enquanto ato processual que é, constitui o que se costuma designar por vício formal ou error
in procedendo, também designado “erro de atividade”, pode importar:
a) alguma das nulidades típicas da sentença previstas nas diversas alíneas do n.º 1, do
artigo 615.º, do CPC;
b) ou, subsidiariamente, as nulidades secundárias nos termos dos artigos 195.º e 199.º,
do CPC.
Porém, há que ter presente que das decisões proferidas pelo juiz da causa sobre as
nulidades previstas no art.º 195.º, do CPC, não cabe recurso, salvo se contenderem com os
princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a
366
Da sentença cível
O artigo 153.º, n.º 1, do CPC, impõe que a sentença seja assinada pelo juiz, sendo que a
falta deste requisito externo importa a nulidade da sentença, que é, porém, suscetível de
suprimento, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível
colher essa assinatura, devendo o juiz declarar no processo a data em que apôs a assinatura,
nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do CPC. Mas, se a assinatura for
electrónica, não haverá lugar a essa declaração (art.º 615.º, n.º 3, do CPC)
Não sendo possível colher a assinatura, a sentença deve ser anulada e proferida nova
sentença.
Segundo o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, as decisões dos tribunais que não sejam de
mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Esta directriz constitucional está
concretizada no artigo 154.º, do CPC, que reza o seguinte:
1 - As decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada são
sempre fundamentadas.
2 – A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no
requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a
contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta
simplicidade.
Todavia a lei admite formas simplificadas de fundamentação das decisões, nas hipóteses
previstas nos artigos 385.º, n.º 3, 567.º, n.º 3, do CPC, nomeadamente por adesão aos
fundamentos alegados pelo autor.
367
Da sentença cível
29
A este propósito, sobre a distinção entre nulidade e revogabilidade da sentença, associadas,
respectivamente, aos vícios formais e ao erro de julgamento, vide CASTRO MENDES, Direito Processual Civil,
Vol. II, Obras Completas, 2012, AAFDL, pags. 543 a 547.
368
Da sentença cível
Segundo o artigo 607.º, n.º 3, parte final, do CPC, o juiz na sentença deverá concluir pela
decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação
discursiva entre:
• a base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável
– a dita premissa maior;
• a factualidade dada como provada – a dita premissa menor;
• e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro
normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir portanto um nexo lógico que permita, no
limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se
verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa
relação de recíproca exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão
pouco é viável formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de
uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito.
Ora a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício
formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC,
quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer
desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar
sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera
inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de
julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.
De harmonia com o artigo 608.º, n.º 1, do CPC, o juiz na sentença deve conhecer de todas
as questões processuais, suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, e não
se encontrem precludidas, que determinem a absolvição do réu da instância – são as
chamadas excepções dilatórias. Ainda nesta sede, o juiz deve conhecer das nulidades
processuais arguidas pelos litigantes ou que sejam de conhecimento oficioso, ajuizando sobre
a sua relevância anulatória, ao abrigo do disposto nos artigos 196.º e 200.º, do CPC, a não ser
que as considere sanadas ou precludidas, nos termos da lei.
369
Da sentença cível
370
Da sentença cível
O n.º 1, do artigo 609.º, do CPC, prescreve que a sentença não pode condenar em
quantidade superior (limite quantitativo) ou em objeto diverso do que se pedir (limite
qualitativo).
Porém, se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade do pedido, o n.º 2,
do artigo 609.º, do CPC, permite que o juiz profira decisão genérica, mormente, condenando o
réu no que vier a ser liquidado em ulterior incidente processual, nos termos previstos nos
artigos 358.º, n.º 2, e 360.º, n.º 3, do CPC. A decisão genérica tanto pode ocorrer nos casos em
que foi formulado pedido genérico, ao abrigo do n.º 1, do artigo 556.º, do citado Código, como
ainda nos casos em que, muito embora tenha sido deduzido pedido específico, da instrução da
causa não se apuraram elementos de prova que permitam fixar em concreto o objeto ou o
quantum em apreço.
A este propósito, tem-se suscitado o problema de saber como articular o n.º 2, do artigo
609.º, do CPC com o disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, que permite ao tribunal julgar
equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, quando não puder ser averiguado
o valor exato dos danos; ou seja, qual a hierarquia de aplicação dos dois normativos.
Importa, assim, distinguir os dois planos em que se inscrevem tais normativos 30.
Em primeiro lugar, aquando da prolação da sentença, o juiz deverá ponderar se ainda se
mostra viável averiguar o valor dos danos em sede do incidente póstumo de liquidação e, em
caso afirmativo, proferirá condenação genérica, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC. Se,
contudo, no âmbito do incidente de liquidação a prova produzida pelos litigantes for ainda
assim insuficiente, ao juiz incumbe completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando,
designadamente, a produção de prova pericial, como preceitua o n.º 4, do artigo 360.º, do
CPC. Só, em último caso, usará do critério da equidade na fixação do montante dos danos, nos
termos do n.º 3, do artigo 566.º, do CC.
Se, face aos elementos em análise, se mostrar, desde logo, de todo desnecessário ou
inviável tal apuramento subsequente, o juiz procederá então à imediata fixação do valor dos
danos, segundo critérios de equidade, dentro dos limites tidos por provados, ao abrigo do n.º
3, do artigo 566.º, do CC. Neste sentido, tenha-se presente o acórdão da Relação de Évora, de
22-11-1985, cujo sumário se encontra publicado no BMJ n.º 343.º, pag. 390, em que se decidiu
que: O recurso à equidade previsto no art. 566.º, n.º 3, do CC, depende da verificação dos
30
A este propósito, vide comentário do Professor Doutor VAZ SERRA, RLJ Ano 114º, pags. 278.
371
Da sentença cível
requisitos seguintes: a) – que esteja apurado um mínimo de elementos sobre a natureza dos
danos e a sua extensão, que permita ao julgador computá-los em valores próximos daqueles
que realmente lhes correspondem; b) – que já não seja possível averiguar o valor exacto dos
danos.
Em qualquer dos casos, convém não confundir as situações de insuficiência de prova
quanto à existência de dano com a insuficiência de prova apenas quanto ao respectivo
montante, ou melhor dizendo, não confundir a espécie de dano com a determinação do seu
quantum. Só nesta última hipótese é que se coloca a questão da fixação do montante do dano
em liquidação posterior ou segundo a equidade, já que na primeira hipótese estamos perante
uma situação de improcedência da ação por insuficiência de prova quanto à verificação de um
facto essencial relativo à pretensão indemnizatória, o que importará a absolvição do pedido.
Outro ponto controverso tem sido o de saber se, no domínio das dívidas de valor, como
sucede no âmbito das ações de indemnização, o juiz pode, oficiosamente, na sentença,
proceder à atualização do valor inicialmente peticionado, sem violação do disposto no artigo
609.º, n.º 1, do CPC. Existe divergência doutrinária e jurisprudencial sobre essa matéria,
havendo quem sustente que a atualização oficiosa ainda se situa nos limites do valor real do
pedido, sendo por isso legalmente admissível.
Todavia, o STJ, no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 13/96, de 15-10, fixou o
entendimento de que “o tribunal não pode, nos termos do art. 661.º, n.º 1 (atual 609.º), do
CPC, quando condenar em dívida de valor, proceder à sua actualização em montante superior
ao pedido”.
Também no que respeita à fixação ou condenação em objeto diferente do pedido se tem
suscitado dúvidas sobre o alcance prático deste limite, em particular nos casos em que a
solução passa por uma qualificação jurídica diversa da sustentada pelo autor ou reconvinte. É
o que acontece quando, por exemplo, o autor pede a declaração de resolução de um contrato
com fundamento em incumprimento, mas em que se verifica que o contrato em crise é nulo
por falta de forma; ou quando, por exemplo, o autor instaura uma ação de impugnação
pauliana, concluindo, erradamente, pela invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio
impugnado, sendo que o efeito adequado é o da ineficácia relativa, à luz do disposto no artigo
616.º, n.º 1 e 4, do CC. Será que o tribunal poderá, na primeira hipótese, declarar a nulidade
do contrato e decretar a respectiva consequência restituitória, ao abrigo do disposto nos
artigos 286.º e 289.º, do CC, e, na segunda hipótese, decretar a ineficácia do negócio
impugnado, dando ainda provimento à pretensão do autor?
372
Da sentença cível
31
AUJ n.º 3/2001, de 23 de janeiro, publicado no DR, de 9-12-2001.
32
AUJ de 28/3/95,publicado no DR, de 17/5/95.
373
Da sentença cível
Fora dos parâmetros referidos, a sentença que fixar quantidade superior ou objeto
diverso do que for pedido será afetada de nulidade, conforme o consignado na alínea e), do
n.º 1, do artigo 668.º, do CPC.
Outro vício formal da decisão de facto, previsto no citado artigo 662.º, n.º 2, alínea d), é a
falta de fundamentação devida da decisão proferida sobre algum facto essencial para o
julgamento da causa.
Em tal hipótese, o tribunal de recurso poderá determinar, oficiosamente, que o tribunal
de 1.ª instância fundamente a decisão, naquela parte, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea
d), e n.º 3, alínea b), do CPC.
Das decisões da Relação sobre os vícios em referência não cabe recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça (n.º 4, do art.º 662.º, do CPC).
374
Da sentença cível
confissão das partes, o que implica que tal pronúncia se considere como não escrita ou
irrelevante, nos termos gerais.
A par dos vícios acima identificados, a sentença pode ainda enfermar de outros vícios ou
irregularidade, por inobservância de requisitos formais que disciplinam em geral, a prática dos
actos processuais e, em particular, dos atos dos magistrados, nos termos conjugados dos
artigos 131.º e segs., 153.º e segs. e 195.º, do CPC. Tais vícios ou irregularidades só geram
nulidade processual quando a lei o declare ou quando possam influir no exame ou na decisão
da causa, como prescreve o n.º 1, do citado art. 195.º.
Face à ocorrência de nulidade secundária da sentença, assiste às partes o direito de argui-
la, nos termos dos arts. 196.º, 2.ª parte e 199.º, do CPC.
Porém, como já foi dito, da decisão do juiz da causa sobre essa nulidade não cabe recurso,
salvo se contender com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição
processual de factos ou com a admissibilidade de meios de prova, nos termos do art.º 630.º,
n.º 2, do CPC.
O erro de julgamento na sentença pode traduzir-se em duas espécies bem distintas: erro
de direito e erro de facto.
375
Da sentença cível
B – O erro de facto ocorre nos casos em que o juiz valore erradamente os factos ou ainda
quando não atenda a factos pertinentes alegados ou licitamente introduzidos na causa e que
se encontrem provados.
O erro de julgamento de facto por incorreta valoração da prova é apreciado à luz do
critério da livre convicção do julgador, incluindo os casos de erro nas ilações extraídas de
presunções judiciais (arts. 349.º e 351.º, do CC).
376
Da sentença cível
Quando o erro do julgamento consista no não atendimento de facto alegado pelas partes
ou licitamente introduzido durante a instrução e que se encontre provado, compete ao
tribunal de recurso integrá-lo na factualidade provada, nos termos do art.º 607.º, n.º 3,
aplicável por via dos art.º 663.º, n.º 2, do CPC.
5. Impugnação da Sentença
5.1. Noção de trânsito em julgado
377
Da sentença cível
A – Âmbito
A impugnação da decisão judicial mediante reclamação só pode fundar-se na arguição de
vício formal ou de procedimento que a afete enquanto ato processual, nos casos de:
a) nulidades da sentença, nos termos previstos no art. 615.º, aplicável aos despachos
por via do n.º 3, do art. 613.º, ambos do CPC;
b) erro manifesto de direito ou de facto, quando não haja lugar a recurso ordinário, nos
termos do n.º 2, do art. 616.º, do CPC;
c) nulidades secundárias, nos termos previstos nos artigos 195.º, 196.º, parte final, e
199.º, do CPC.
A reclamação pode ter ainda por fundamento o erro de julgamento quanto as custas e
multa, nos termos do n.º 1, do art. 616.º, do CPC. Mas, se couber recurso da decisão, tal erro
terá de ser suscitado na alegação desse recurso (art. 616.º, n.º 3, CPC). Note-se que o erro de
julgamento quanto a custas respeita à determinação do responsável por elas e (ou) à medida
dessa responsabilidade, mormente por violação dos critérios de incidência subjetiva
estabelecidos nos arts. 527.º e seguintes do CPC, o que é bem distinto da hipótese de reforma
da conta prevista no art.º 31.º, do RCP.
378
Da sentença cível
do artigo 616.º, ou ainda o erro manifesto de facto ou de direito previsto no n.º 2, deste
mesmo artigo, terão de ser suscitados por via de recurso, como decorre do disposto nos
artigos 615.º, n.º 4, 616.º, n.º 2 e 3, e 617.º, n.º 1, do CPC, observando-se depois o preceituado
nos n.º 2 a 6, do citado artigo 617.º Assim, a reclamação autónoma só é admissível quando a
decisão não admita recurso ordinário, salvo se a parte a ele renunciar.
B – Oportunidade
A reclamação, quando não haja lugar a recurso ordinário, deve ser deduzida no prazo
geral de dez dias previsto no art.º 149.º, do CPC. A nulidade da sentença por falta de
assinatura do juiz pode ser, no entanto, suprida, oficiosamente ou a requerimento das partes,
enquanto for possível colher essa assinatura (n.º 2, do art. 615.º, do CPC).
A reclamação da decisão com fundamento em nulidade secundária, nos termos previstos
no n.º 1, do art. 195.º, do CPC, será deduzida no prazo geral previsto no art. 149.º, mas com a
aplicação do disposto no n.º 1, do art. 199.º, do mesmo Código.
C – Procedimento
379
Da sentença cível
com a aquisição processual ou com a admissibilidade de meios probatórios (art.º 630.º, n.º 2,
CPC).
5.2.2. Recurso
380
Da sentença cível
381
Da sentença cível
recurso sobre a decisão de facto, pelo que não se vislumbram razões para não exigir tal
especificação em sede de conclusões. Já no domínio da especificação dos meios probatórios e
da indicação das passagens da gravação, não divisamos razões ponderosas para as levar ao
quadro conclusivo, tanto mais que as mesmas nem sequer confinam o campo de investigação
do tribunal, como, aliás, decorre, do disposto no n.º 1, do artigo 662.º, do CPC.
Seja como for, mesmo na linha mais restritiva, em face da pouca clareza da lei, será
recomendável que, na falta da especificação conclusiva tida por necessária, desde que feita no
corpo das alegações, o relator convide então o recorrente a aperfeiçoar as conclusões,
lançando mão da aplicação analógica do n.º 3, do artigo 639.º
Outro ponto duvidoso prende-se com o rigor com que deve ser aplicada a sanção prevista
no n.º 2, alínea a), do art.º 640.º, do CPC, para a falta de indicação exata das passagens das
gravações dos depoimentos em causa.
Em termos práticos essa indicação, em regra, não obsta à fácil pesquisa e leitura das
gravações, não se mostrando até muito operacional uma indicação saltitante dos depoimentos
gravados, tendo em conta a intercorrência dos interrogatórios e das respetivas instâncias.
Nessa medida, afigura-se mais curial flexibilizar aquela exigência, reservando-a para os
casos graves em que a falta de tal indicação obste à audição do recorrido na organização da
sua defesa ou porventura ao exame do tribunal de recurso, embora seja recomendável que o
recorrente se paute sempre pelo rigor legal para evitar que seja arguida essa nulidade.
6. Efeitos da Sentença
6.1. Efeitos de natureza processual
O segundo nível de estabilidade é atingido com o trânsito em julgado, na noção dada pelo
artigo 628.º, do CPC, isto é, quando a decisão já não seja suscetível de recurso ordinário ou de
reclamação.
O trânsito em julgado da sentença, seja qual for o seu âmbito, provoca a extinção da
instância, como consigna o art.º 277.º, alínea a), do CPC, sem prejuízo das hipóteses de
382
Da sentença cível
renovação prevista, genericamente, nos artigos 261.º, n.º 2, 282.º e 358.º, n.º 2, do mesmo
Código.
Não obstante isso, haverá ainda lugar a procedimentos ulteriores, tais como:
• aos procedimentos de contagem do processo e de eventual reclamação da conta, nos
termos dos artigos 29.º e seguintes, do RCP;
• aos atos de pagamento das custas em dívida (arts. 32.º e seguintes, do RCP);
• ao visto de fiscalização do Ministério Público e ao subsequente visto em correição do
juiz, nos termos do n.º 2, do artigo 156.º, n.º 2, da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto,
correspondente ao art. 126º, da Lei nº 3/99, de 13 de janeiro (LOFTJ);
• por fim, o arquivamento dos autos, que se consideram, para este efeito, findos três
meses após o trânsito em julgado da decisão final (nº 1, alínea a), do citado art. 156º,
da Lei n.º 52/2008, salvo quando deve neles prosseguir a respetiva execução, nos
temos 626.º, do CPC.
Transitada em julgado, a sentença forma caso julgado formal, nos termos definidos no
artigo 620.º, do CPC, quando recaia unicamente sobre a relação processual, tornando-se
obrigatória dentro no processo.
383
Da sentença cível
O caso julgado formal não alcança o direito que através da ação se pretendia fazer valer,
pelo que não obsta a que se proponha nova ação entre as mesmas partes e sobre a mesma
pretensão. Isso não significa que a extinção da instância não tenha qualquer interferência na
relação material controvertida.
Com efeito, a desistência ou a absolvição da instância, bem como a deserção ou a
ineficácia do compromisso arbitral, desencadeiam, nos termos do n.º 2, do artigo 327.º, do CC,
o reinício do prazo de prescrição da obrigação litigiosa interrompido na decorrência da
propositura da acção (que se opera com a citação ou cinco dias após a instauração da ação,
nos termos do artigo 323.º, n.º 1 e 2, do CC), sem prejuízo do disposto nos artigos 327.º, n.º 3,
do CC e 279.º, n.º 2, do CPC. O reinício do prazo prescricional atua retroativamente desde o
ato interruptivo.
No caso de o direito litigioso estar sujeito a prazo de caducidade, que fica suspenso com a
propositura da acção (art. 331.º, n.º 2, do CC), esse prazo retoma o seu curso logo após a
deserção da instância, nos termos estatuídos no n.º 2, do artigo 332.º, do CC, sem prejuízo
também do disposto no n.º 3, do artigo 327.º, ex vi do n.º 1, do citado artigo 332.º, ambos do
CC.
384
Da sentença cível
Transitada em julgado, a sentença que decida sobre o mérito da causa alcança o fim
normal da ação, qual seja, o pronunciamento definitivo do órgão jurisdicional sobre a relação
material controvertida, pondo assim termo ao litígio. É o que se designa por caso julgado
material definido no artigo 619.º, n.º 1, do CPC. Ao caso julgado material atribui-se duas
funções distintas: uma função positiva e uma função negativa.
A função positiva do caso julgado opera o efeito de autoridade do caso julgado, o qual
vincula o tribunal e demais entidades públicas e privadas, nos precisos limites e termos em que
julga, nos termos consignados nos artigos 205.º, n.º 2, da Constituição e 9.º, n.º 1, da Lei n.º
52/2008, de de 28 de agosto, correspondente ao art. 8.º, nº 1, da Lei n.º 3/99, bem como nos
artigos 619.º, n.º 1, e 621.º e seguintes do CPC.
A função negativa do caso julgado opera por via da exceção dilatória do caso julgado, nos
termos previstos nos artigos 577.º, alínea i), 580.º e 581.º, do CPC, impedindo que uma nova
causa possa ocorrer sobre o mesmo objeto – pedido e causa de pedir – e entre as mesmas
385
Da sentença cível
partes, cuja identidade se afere pela sua qualidade jurídica, ainda que em posição diversa da
que assumiram na causa anterior.
Nas palavras do Prof. Castro Mendes, os efeitos de autoridade do caso julgado e a
excepção do caso julgado, ainda que constituindo duas formas distintas de eficácia deste, mais
não são do que duas faces da mesma moeda 33.
Questões bem mais complexas no âmbito do instituto do caso julgado, e que excedem o
propósito deste trabalho, são as que se prendem com a sua natureza e com os respetivos
limites objetivos e subjetivos, nomeadamente o seu alcance quanto aos fundamentos de facto,
a preclusão quanto aos factos que podiam ter sido alegados pelo autor até ao encerramento
da discussão da causa em primeira instância, a preclusão dos meios de defesa não suscitados
oportunamente pelo réu, a extensão e a eficácia reflexa do caso julgado quanto a terceiros e
ainda o momento a que se reporta o trânsito em julgado.
33
Prof. CASTRO MENDES, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pag. 36 e segs.
386
Videogravação da comunicação
387
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
[Henrique Araújo]
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Sumário:
1. O sistema da oralidade pura e o DL 39/95, de 15 de Fevereiro
2. A consagração do duplo grau de jurisdição em matéria de facto
3. O papel da Relação na apreciação da prova (síntese jurisprudencial)
4. A matéria de facto passível de impugnação recursória
5. A alteração da matéria de facto à luz do NCPC (análise dos artigos 640º e 662º)
Bibliografia:
Pontos 1. e 2.
• Laborinho Lúcio, “O Julgamento”
• Armindo Ribeiro Mendes, Revista Julgar, n.º 16
• Pessoa Vaz, “Direito Processual Civil”
Pontos 3.
• Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, Volume I
• Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, 2ª edição, Volume I
Ponto 4.
• Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil”
• Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997
• António Montalvão Machado, “O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à luz do
Novo Código de Processo Civil”
• Paula Costa e Silva, “Acto e Processo”, páginas 152/153.
Ponto 5.
• Mouraz Lopes, “A Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português:
Legitimar, Diferenciar, Simplificar, Almedina, 2011.
• Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, Almedina, 2013.
• Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”
• João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, “Introdução ao Estudo e à
Aplicação do Código de Processo Civil de 2013.
391
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
1. Chegaram bem tarde ao direito processual civil português os ventos que já há muito
sopravam nas nações mais civilizadas, no que se refere à documentação da prova em
audiência, à motivação da decisão da matéria de facto e à possibilidade de se recorrer desta.
O legislador português, que adoptara o sistema de oralidade pura em 1932 e que o
revigorara em 1939, deixou passar, inexplicavelmente, a reforma de 1961 sem tocar nesses
vectores estruturais do processo civil.
Fosse por errada interpretação da doutrina de Klein e Chiovenda – como avança o
Prof. Pessoa Vaz – fosse por transmissão osmótica duma visão marcadamente autoritária das
funções do Estado, o que sabemos hoje é que Portugal foi dos últimos países a introduzir no
ordenamento processual civil as alterações necessárias ao reconhecimento das garantias
judiciárias mais básicas.
O sistema de oralidade pura, não permitindo a documentação da prova oral produzida
em audiência, não impondo ao julgador uma motivação de facto séria, objectiva e controlável,
nem possibilitando o recurso da decisão sobre a matéria de facto, atentava, efectivamente,
contra as garantias judiciárias fundamentais do Estado de Direito.
Assim, desde 1932 a 1995, vivemos num sistema com uma única instância de facto e
três instâncias de direito, com a agravante de que não havia qualquer imposição legal no
sentido de que as decisões da matéria de facto fossem adequadamente motivadas na 1ª
instância.
Em 1995, vencidas algumas resistências 1, pôs-se fim a esse anacronismo.
Tudo começou com um diploma avulso, mas cuja importância há-de perdurar na
história do direito processual civil: o DL 39/95, de 15 de Fevereiro.
Nesse diploma passou a estar prevista e regulamentada a possibilidade da
documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, por regra em
gravação sonora, abrindo-se caminho para a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de
jurisdição na apreciação da matéria de facto. Reconheceu-se, enfim, o direito ao recurso em
matéria de facto como integrando o núcleo essencial do direito constitucional de acesso à
justiça.
1
Laborinho Lúcio, “O Julgamento”, páginas 327 e seguintes.
392
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
393
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Estabilizado este entendimento – cuja validade está hoje fortalecida nos nºs 1 e 2,
alíneas a) e b) do artigo 662º – nem por isso deixaremos de questionar por que razão o
legislador não aproveitou esta reforma para erigir como regra a gravação simultânea de som e
imagem. O acoplamento da imagem ao registo sonoro da prova beneficiaria a diluição da
5
Cfr., entre outros, os Acórdãos de 19.04.2001, no processo n.º 435/01, de 16.04.2002, no processo n.º
02498, e o de 08.07.2003, no processo n.º 1832/03, estando o primeiro publicado nos Sumários de
Jurisprudência do STJ, 2001, 2º volume, o segundo disponível no sítio www.dgsi.pt e o terceiro na CJ Ano XI,
Tomo II, páginas 151 e seguintes.
6
O primeiro da nota anterior.
394
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
desvantagem decorrente da não imediação da prova pela Relação e potenciaria uma maior
aproximação à verdade material. É este tipo de incongruências entre as intenções declaradas e
a não consagração dos mecanismos legais para as concretizar 7 que frequentemente
compromete o sucesso integral das reformas, em qualquer área do direito.
Klein, autor do Código Austríaco de 1895, já no tempo advertia que “o importante
como corolário decisivo de uma lei que regula o processo civil são todas aquelas disposições
legislativas e administrativas que são necessárias para reunir todas as forças e organizar as
novas estruturas com as quais as dificuldades da nova matéria processual devem ser
vencidas” 8.
E, já agora, a propósito do momento escolhido para a entrada em vigor do NCPC, não
podemos deixar de reproduzir o que o mesmo autor dizia, na sua intemporal lucidez: seria “o
maior erro que se poderia cometer, se não se introduzissem na organização judiciária … todas
aquelas alterações e completações que pela natureza e fim do processo são
incondicionalmente exigidas”.
7
Cfr. artigo 155º, n.º 2, que mantém a regra do registo sonoro.
8
Pessoa Vaz, “Direito Processual Civil”, página 29.
395
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Mas, para a seriação dos factos que relevem para a decisão da causa – quer resultem
provados ou não provados – tem de atentar-se no que dispõe o artigo 5º, que corresponde em
larga medida ao antigo 264º.
Assim, de acordo com o n.º 1 desse artigo, competirá às partes a alegação dos factos
essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções
invocadas – cfr. artigos 552º, n.º 1, alínea d) e 572º, alínea c).
Consideram-se factos essenciais (ou principais) aqueles que aparecem delimitados pela
norma como fundamentais para a procedência ou improcedência da acção. É a norma que
opera como critério de selecção das conotações do facto que são consideradas relevantes e da
exclusão daquelas que à mesma não interessam. A sua alegação deve ser feita com “um
mínimo de concretização e densificação” 9 de modo a que seja permitida a sua prova na
audiência final, sendo portanto de evitar uma descrição toldada por conceitos genéricos e/ou
conclusivos.
A obrigação de alegação dos factos essenciais é o corolário do acolhimento pelo nosso
direito processual civil da teoria da substanciação, que implica para o autor a necessidade de
articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por
arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir
invocada 10.
A par desses, devem ser considerados, na decisão final, outros factos, subtraídos ao
ónus de alegação, a saber: os factos notórios (artigos 5º, n.º 2, alínea c) e 412º, n.º 1); os factos
de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (artigos 5º, n.º
2, alínea c) e 412º, n.º 2); os factos reveladores de uso reprovável do processo (artigo 612º); os
factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (artigo 5º, n.º 2, alínea
a)); e os factos complementares ou concretizadores de outros que as partes tenham
oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que às partes
tenha sido dada a oportunidade de sobre eles se pronunciarem (artigo 5º, n.º 2, alínea b)).
Em comparação com o anterior código, nota-se, também aqui, um esbatimento do
princípio do dispositivo em favor de um maior pendor inquisitório, designadamente no que
concerne aos factos complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados. O
julgador pode agora conhecer oficiosamente desses factos quando resultem da instrução da
9
Como defende Lopes do Rego, Revista Julgar, n.º 16, página 125.
10
Cfr., entre outros, Alberto dos Reis, ob. cit., Volume II, 3ª edição, pág. 354, Anselmo de Castro, “Direito
Processual Civil Declaratório”, Vol. I, página 207, e Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo
Civil”, 2ª edição, Vol. I, página 193.
396
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
causa e desde que se mostre cumprido o contraditório, deixando de ser necessário que a parte
interessada manifeste vontade em deles se aproveitar.
Para finalizar este capítulo deixaremos apenas breves indicações para ajudar à
caracterização de factos notórios, instrumentais e complementares ou concretizadores.
Factos notórios (514º, n.º1) são os de conhecimento geral no país, os conhecidos pelo
cidadão comum, pelas pessoas regularmente informadas, com acesso aos meios normais de
informação 11.
Não basta, assim, qualquer conhecimento; “é indispensável um conhecimento de tal
modo extenso, isto é, elevado a tal grau da difusão que o facto apareça, por assim dizer,
revestido do carácter de certeza” 12.
Por outro lado, é necessário que se trate de factos concretos, elementos estruturantes
da causa de pedir da acção, da reconvenção ou das excepções, o que implica não poderem ser
considerados como tal as meras ilações ou conclusões fáctico-jurídicas ou meramente jurídicas
(ex.: a indivisibilidade de um prédio urbano) 13.
Factos instrumentais são aqueles de que não depende a procedência ou
improcedência da acção, mas do seu conhecimento, pelo mecanismo das presunções, quer
legais quer judiciais, infere-se a certeza ou a prova dos factos essenciais. A sua função é,
portanto, a de permitir atingir a prova destes factos 14.
Os factos são considerados complementares ou concretizadores quando se têm por
imprescindíveis ou, pelo menos, relevantes à procedência ou improcedência das pretensões,
mas não à viabilidade da acção ou da excepção 15. Eles completam uma causa de pedir (ou de
uma excepção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma excepção) aglutinadora de
vários elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros constitutivos do seu
núcleo complementar 16.
11
Rodrigues Bastos, em “Notas ao CPC”, Volume II, edição de 1972, página 514, distingue o facto notório do
facto evidente, fazendo corresponder este último à aplicação de verdades axiomáticas próprias das várias
ciências; o facto evidente apresenta-se ao juiz como provindo das fontes comuns do saber humano, v.g. o
conhecimento de que o calor dilata os corpos.
12
Alberto dos Reis, “CPC Anotado”, Volume III, páginas 259/260.
13
Acórdão do STJ de 01.07.2004, no processo n.º 04B2285.
14
Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, página 135.
15
Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997, páginas 70 e 71, onde são
descritos alguns exemplos deste tipo de factos.
16
António Montalvão Machado, “O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à luz do Novo Código de Processo
Civil”, página 349.
397
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
5. Entrando definitivamente no tema, pode-se afirmar, já à partida, que o NCPC não traz
alterações de vulto ao regime instituído pela revisão operada pelo DL 303/2007, de 24 de
Agosto, respeitando-o nas suas linhas essenciais 17.
É certo que, como se referiu mais acima, há um reforço dos poderes da Relação na
apreciação da matéria de facto, o que se aceita em função do reconhecimento de que a
relação jurídica estabelecida entre a parte que exerce o direito de acção e o tribunal, obriga a
que este desenvolva uma actuação concreta e eficaz em ordem à protecção dos direitos e
interesses legalmente tutelados 18.
A finalidade última desse reforço é, portanto, a aproximação da verdade
processualmente declarada à verdade extraprocessual.
São dois os preceitos em que centraremos a nossa atenção, cada um deles com um
específico campo de análise, mas interligados: o artigo 640 e o artigo 662º.
O primeiro trata dos ónus impostos ao recorrente que impugne a matéria de facto.
Artigo 640.º
Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto
1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente
especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada,
que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas
tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva
parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de
poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido
designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem
sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo,
à transcrição dos excertos que considere importantes.
17
João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, “Introdução ao estudo e à aplicação do Código de
Processo Civil de 2013”, página 95.
18
Paula Costa e Silva, “Acto e Processo”, páginas 152/153.
398
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
399
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
19
João Aveiro Pereira, “O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, página 3, em
www.trl.mj.pt
400
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
estar devidamente espelhado nas conclusões do recurso, nem que seja por remissão expressa
para o corpo das alegações 20. Se não for este o caso, terá o recorrente, na nossa opinião, de
especificar nas conclusões os pontos concretos de facto que pretende impugnar, indicar os
meios de prova em que, para esse efeito, se baseia, e, na actual configuração legal, apontar
com o mínimo de clareza o sentido que pretende para a decisão de cada um desses pontos de
facto.
Pela própria função das conclusões, nunca seria de impor ao recorrente que, por
exemplo, procedesse nas conclusões a uma descrição detalhada dos depoimentos em que
funda a sua discordância em relação ao decidido na 1ª instância. Será suficiente, segundo
cremos, a indicação nominativa dos concretos meios de prova que considera decisivos para a
alteração da matéria de facto (documento de fls. …, testemunha …, relatório pericial de fls. …,
etc).
O que não pode é desvirtuar-se o efeito pretendido com a imposição daqueles ónus ao
recorrente, sob pena de não fazer qualquer sentido o que resulta articuladamente das normas
dos artigos 635º, n.º 4, 639º, n.º 1, e 640º, do NCPC. (artigos 684º, n.º 3, 685º-A, n.º 1, e 685º-
B, do anterior CPC).
Apesar de ser também este, segundo nos quer parecer, o entendimento mais recente
do STJ 21, este tribunal tem demonstrado uma maior flexibilidade no tratamento desta questão,
de que é exemplo, o acórdão de 08.11.2006, tirado ainda antes da alterações ao CPC
introduzidas pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto, de cujo sumário se extrai o seguinte pedaço:
“O artigo 690º-A do Código de Processo Civil, impondo um especial ónus de alegação, quando
se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, não exige que o recorrente leve às
conclusões a indicação dos concretos meios probatórios em que se baseia a sua discordância
20
Quanto à obrigação da indicação exacta das passagens da gravação – alínea a), do n.º 2 –, cuja omissão
tem como consequência a imediata rejeição do recurso na respectiva parte, quer-nos parecer que essa
indicação pode ser feita apenas no corpo das alegações (não sendo necessária a sua inclusão nas
conclusões), uma vez que o objectivo que se pretende com essa imposição legal é o de tornar localizável, no
registo sonoro, os segmentos dos depoimentos ou esclarecimentos que o recorrente considera relevantes
para o sucesso da impugnação da decisão de facto.
21
Cfr. o acórdão de 04.07.2013, no processo n.º 1727/07.1TBSTS-L.P1.S1, em www.dgsi.pt, em cujo sumário
se escreveu: A delimitação concreta dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e demais
ónus impostos pelo art. 685.º-B, do CPC, há-de ser efectuada no corpo da alegação; nas conclusões bastará
fazer referência muito sintética aos pontos de facto impugnados, e às razões porque se pretende a sua
alteração, sem necessidade de transcrever (ou copiar) o que a respeito se escreveu no corpo da alegação
sobre a matéria.
401
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
22
Decidiu-se do mesmo modo no acórdão de 08.03.2006, no processo n.º 05S3823, e no acórdão de
13.07.2006, no processo n.º 06S1079, ambos em www.dgsi.pt. Ver também o acórdão de 27.10.2009, tirado
no processo n.º 1877/03.3TBCBR.C1.S1, também na referida base de dados, em que se decidiu que não se
inclui no ónus estabelecido pelo art. 690.º-A, n.º 1, do CPC, o dever de levar às conclusões da alegação a
indicação, mesmo resumida, dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
23
Acórdão proferido no processo n.º 3473/06.4TJVNF-A.P1.S1, disponível no mesmo sítio electrónico.
402
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
De tudo se conclui que, se o recorrente não fizer constar das conclusões as menções
inscritas no n.º 1, do artigo 640º, terá de rejeitar-se o recurso nessa parte, não se conhecendo
do seu objecto 24.
Uma derradeira nota: se o recorrido pretender ampliar o âmbito do recurso, nos
termos do artigo 636º, n.º 2, ficará sujeito aos mesmos ónus e às mesmas consequências que
já referimos quanto ao recorrente – artigo 640º, n.º 3.
O outro preceito que nos propomos analisar é o do artigo 662º, que tem como
epígrafe “A modificabilidade da decisão de facto”.
Artigo 662.º
Modificabilidade da decisão de facto
1 — A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos
como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 — A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a
credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de
prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os
elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a
matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da
matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum
facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os
depoimentos gravados ou registados.
3 — Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma:
a) Se for ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias
adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância;
b) Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-
se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da
matéria de facto, com o fim de evitar contradições;
24
Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, páginas 127/128.
403
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
404
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
autêntico, não atacado de falsidade, faz prova plena de certo facto (artigo 371º, do CC), ou
quando tenha considerado que a prova decorrente das declarações impressas em documento
particular, com autoria reconhecida e livre de qualquer vício, apesar de contrárias aos
interesses do declarante, não produziam o efeito confessório atribuído por lei (artigo 376º, n.º
2, do CC).
Na malha da mesma previsão, não obstante a ambiguidade deste segmento da norma,
cairá a situação em que o tribunal da 1ª instância tenha indevidamente valorizado a força
probatória de meio de prova insuficiente para a prova de determinado facto, o que, nesse
caso, levará a que a Relação proceda à retirada desse facto da plataforma dos factos provados
– artigo 364º, n.º 1, do CC.
Em todas as situações narradas, a alteração da decisão de facto pela Relação decorre
da omissão ou da errada ponderação das regras de direito probatório material.
No conceito de ‘prova produzida’ cabe todo o acervo probatório recolhido no processo
susceptível de ser livremente apreciado, designadamente documentos sem valor probatório
pleno, relatórios periciais e, bem entendido, os depoimentos orais, prestados e gravados na
audiência de julgamento 25, cujo conteúdo seja susceptível de provocar a alteração requerida,
desde que cumpridas as condições estabelecidas no artigo 640º, acima tratado.
Mas, antes de avançarmos, impõem-se algumas considerações a respeito da avaliação
da prova testemunhal.
Já acima referimos que a Relação não goza da prerrogativa da imediação, sendo sabido
que esta cumpre um papel fundamental na aferição da sinceridade e veracidade do
depoimento. A prova testemunhal que chega à Relação contém apenas o relato verbal,
gravado em suporte áudio ou transcrito, o que não permite qualquer interacção com o emissor
do relato nem a apreensão das componentes não verbais do depoimento.
Sendo irrecusável que o contacto directo do juiz com a testemunha permite que
aquele, com base no comportamento não verbal desta, infira sensações utilizáveis como
instrumento de valoração do depoimento, então isso mesmo deve constar da fundamentação
da decisão de facto. Disponibilizado esse elemento ao tribunal de recurso, por via de uma
motivação que aprimore a força persuasiva do julgamento dos factos, estará este em
condições de formular um juízo mais substanciado sobre a valoração feita na 1ª instância. Por
isso se diz que a imediação não é um método, mas tão só uma técnica, um meio necessário ao
25
A obrigatoriedade da gravação da prova em todas as audiências finais das acções, incidentes e
procedimentos cautelares – artigo 155º, n.º 1 – vai alargar, sem a mínima dúvida, o âmbito de incidência
das impugnações da matéria de facto em recurso.
405
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
desenvolvimento da prova que, no entanto, não é suficiente para garantir em definitivo a sua
valoração e o seu tratamento adequado 26.
Por outro lado, como tem sido admitido, a análise feita a partir do canal verbal é mais
fiável e eficaz do que aquela que é feita a partir dos comportamentos não verbais 27.
A falta da imediação da prova não pode, pois, constituir obstáculo à formação de uma
convicção diversa, e necessariamente autónoma, da que se formou na 1ª instância. Os vários
ângulos de avaliação do depoimento e a possibilidade de recurso a qualquer outro elemento
de prova, designadamente no âmbito dos poderes de investigação oficiosa conferidos no
artigo 640º, n.º 2, alínea b), podem habilitar a Relação à formulação plena de uma apreciação
diferente sobre a lógica do raciocínio empregue pelo juiz da 1ª instância.
Devem, porém, observar-se redobrados cuidados nos casos em que a impugnação da
matéria de facto se baseia em depoimentos prestados e gravados no próprio local do litígio 28.
Como é regra nessas situações, as perguntas feitas às testemunhas relacionam-se com a
apreciação directa e objectiva de elementos físicos do local, numa dialéctica que nem a prova
fotográfica ou pericial – quando existam – conseguem acompanhar.
Finalmente, a terceira hipótese do n.º 1 prevê a alteração fundada em documento
superveniente.
Esta situação equivale praticamente à alínea c), do anterior n.º 1, do artigo 712º, da
qual constava a referência a documento novo superveniente.
É superveniente o documento que à parte não foi possível juntar até ao encerramento
da discussão na 1ª instância, ou por ainda não existir ou, existindo, por a parte dele não ter
conhecimento ou dele não poder dispor 29 - cfr. artigos 425º e 651º, n.º 1.
O documento superveniente terá de possuir força bastante para criar uma
convicção diferente da que se formou na 1ª instância sobre um determinado facto.
O reforço dos poderes da Relação mostra-se bem evidenciado nas duas primeiras
alíneas do n.º 2, do artigo 662º, completamente inovadoras.
Até agora, a renovação dos meios de prova na Relação apenas poderia ter lugar
quando, em relação à matéria de facto impugnada, se afigurasse que os mesmos eram
indispensáveis ao apuramento da verdade – 1ª parte, do n.º 3, do artigo 712º.
26
Mouraz Lopes, “A Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português: Legitimar, Diferenciar,
Simplificar”, Almedina, 2011, página 248.
27
Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, Almedina, 2013, página 396.
28
Cfr. Acórdão do STJ de 20.05.2010, no processo n.º 73/2002.S1, em www.dgsi.pt
29
Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, página 201.
406
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Mas o legislador foi ainda mais longe: levando ao limite o princípio do inquisitório
(artigo 411º) e aproximando-se cada vez mais do modelo do recurso do reexame 31, atribuiu à
Relação o dever de ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção
de novos meios de prova – alínea b), do n.º 2.
Não nos parece ser esta a melhor ocasião para discutir esta opção legislativa.
Colocando-nos apenas no plano da sua exequibilidade, não podemos deixar de dizer que o
deficitário quadro de meios físicos, humanos e financeiros das Relações, e, sobretudo, o
modelo em que assenta o funcionamento das secções cíveis, não auguram o normal
cumprimento destas novas responsabilidades.
Ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias
adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância – alínea
30
Antunes Varela e …, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, página 627, nota 3.
31
O sistema de reexame permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidida pelo tribunal da 1ª
instância, ao passo que o sistema da reponderação apenas lhe possibilita o controlo da sentença recorrida.
O primeiro tem raízes no Código Napoleónico e o segundo no Código Austríaco de 1895 – Amâncio Ferreira,
ob. cit., página 131.
407
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
a), do n.º 3 – o que significa, na nossa leitura, que terá de ser o desembargador relator a
presidir à realização das respectivas diligências de prova – artigo 652º, n.º 1, alínea d).
A alínea c), corresponde, quase ipsis verbis, à primeira parte do n.º 4, do antigo artigo
712º.
Não constando do processo todos os elementos probatórios que, nos termos do
referido n.º 1, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, deve a
Relação anular oficiosamente a decisão de facto proferida na 1ª instância, em dois casos: a)
quando considere deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados
da matéria de facto; b) quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto.
A decisão será deficiente quando determinado ponto da matéria de facto ou algum
seu segmento não tenha sido objecto de pronúncia; será obscura quando padeça de
ininteligibilidade, equivocidade ou imprecisão, gerando dúvidas sobre o sentido e alcance das
proposições linguístico-gramaticais utilizadas; será contraditória quando na decisão se
evidencie oposição material entre diversos pontos de facto dados como provados. Não se
antevê a possibilidade de haver contradição entre um facto provado e um facto não provado, a
não ser que neste se não acolha o antecedente lógico provado naquele (ex: numa acção
relacionada com um acidente de viação, dar-se como provado que o autor auferia o
vencimento mensal de 800,00€ como marceneiro e dar-se como não provado, noutro ponto,
que, à data do acidente, o autor trabalhasse).
Verificado qualquer um destes vícios, a decisão terá de ser anulada.
A anulação oficiosa da decisão de facto ocorrerá, igualmente, quando não tenham sido
contemplados, na enunciação dos temas de prova (ou mesmo quando não haja lugar a essa
enunciação – cfr., artigo 410º), factos alegados pelas partes que se mostrem indispensáveis
para a resolução do litígio. Impõe-se, nesse caso, a ampliação da matéria de facto, a fim de que
se estenda a discussão a pontos de facto omitidos pela 1ª instância.
A repetição do julgamento, por efeito da anulação da decisão de facto motivada por
qualquer uma das situações tratadas, não abrange a parte da decisão não viciada, sem prejuízo
de o tribunal da 1ª instância voltar a apreciar outros pontos da matéria de facto já
anteriormente decididos, acomodando-os, se for caso disso, à decisão da questão referenciada
pela Relação, a fim de que se evitem contradições – alíneas b) e c), do n.º 3.
408
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Para completar a análise do n.º 2, do artigo 622º, falta abordar a alínea d).
Retirado do iter processual o julgamento autónomo da matéria de facto, é agora na
sentença que o juiz tem o dever de indicar, de modo objectivo, as razões que o levaram a dar
como provados determinados factos e como não provados outros – artigo 607º, n.º 4. Ou seja,
tem de analisar criticamente a prova, explicando por que motivo deu mais valor ao
depoimento de certa testemunha, por que motivo considerou relevantes ou irrelevantes
certas conclusões dos peritos, por que motivo achou satisfatória, ou não, a prova resultante de
documentos particulares, etc. 32.
Quando não se mostrar devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum
facto essencial para o julgamento da causa, a Relação determina que o tribunal da 1ª instância
a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
No n.º 5, do anterior artigo 712º, este tipo de intervenção estava dependente de um
pedido expresso do requerente. Não o havendo, não podia a Relação, por sua iniciativa,
ordenar à 1ª instância a adequada fundamentação de determinado facto essencial.
A supressão dessa condição, com a concretização, por via oficiosa, do poder de
interferir no cumprimento da obrigação de motivar cabalmente a decisão sobre a matéria de
facto, vem contribuir para uma clarificação dos fundamentos decisórios em matéria de facto,
dentro da lógica já indicada de prevalência da verdade material sobre a verdade formal.
Poderá suceder que o tribunal da 1ª instância não esteja em condições de cumprir a
determinação da Relação, em virtude de, por exemplo, o juiz que fundamentou a decisão estar
permanentemente impossibilitado – artigo 605º, n.º 1. Nesse caso, terá de ser repetida a
produção da prova relativa a esse facto. Se nem isso for possível (por exemplo, falecimento da
única testemunha indicada a essa matéria), o juiz da 1ª instância limita-se a justificar a razão
da impossibilidade – alínea d), do n.º 3.
32
Abrantes Geraldes, ob. cit., II Volume, página 259.
409
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Não se justifica, por outro lado, a determinação da 2ª instância para que se cumpra a
fundamentação sobre determinado facto, se esse facto for de todo indiferente à decisão da
causa 33.
Do mesmo modo, se a 1ª instância se não pronunciar sobre um determinado facto
alegado nos articulados e isso for causa impugnação em sede de recurso, a Relação não
anulará a decisão se o referido facto se mostrar irrelevante para a sorte da acção 34.
À semelhança do que ditava o n.º 6, do artigo 712º, nenhuma das decisões da Relação
de que falámos até aqui é passível de recurso para o STJ – n.º 4, do artigo 662º.
No entanto, o STJ pode proceder a correcções da matéria de facto em três situações:
quando entenda que para a solução de direito se mostra necessária a averiguação de factos
alegados pelas partes, que não tenham sido apreciados nas duas instâncias – artigo 682º, n.º
3; quando detecte a presença de contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizem
a resolução jurídica do litígio; e quando julgue não observada pelas instâncias uma disposição
legal que exija certa espécie de prova ou verifique a desconsideração de norma que defina a
força de determinado meio de prova – artigo 674º, n.º 3.
Ocorrendo tais situações, o STJ ordena a baixa do processo à Relação para que se
proceda em conformidade.
33
Acórdão do STJ de 14.06.1972, BMJ 218, página 208.
34
Acórdão da Relação de Coimbra, de 10.11.1992, BMJ 421, página 517.
410
Videogravação da comunicação
411
Os Títulos Executivos e as formas do processo de
execução. Alguns reparos à reforma da execução na Lei
nº 41/2013, de 26 de junho
[Rui Pinto]
Os Títulos Executivos e as formas do processo de execução. Alguns reparos à reforma da
execução na Lei nº 41/2013, de 26 de junho
Sumário:
§ 1º Introdução. 1. Tema. A intrínseca relação entre título executivo e forma
executiva. 2. O caráter aparentemente substantivamente neutro da temática. §
2º Títulos executivos. 1. Conceito, e função; natureza e relação com a causa de
pedir. 2. A supressão dos documentos particulares simples, como categoria
genérica. — A. Alteração. — B. Consequências substantivas. 3. A expressa
concessão de força executiva aos meros quirógrafos. — A. Alteração. — B.
Consequências substantivas. 4. Regime transitório. § 3º As formas de processo.
1. Sentido de forma de processo na ação executiva: inadequação do conceito; a
(impossível de conter) multiplicidade de vias procedimentais (“tracks”). 2. Vias
procedimentais na execução para pagamento de quantia certa. — A. A
bipartição legal. A via ou forma sumária como forma especial e frequente.
Especialidades — B. Via ordinária como regra residual: forma ordinária
necessária e forma ordinária eventual. — C. Vias inominadas: em especial, os
casos dos artigos 727º e 855º nº 5. — D. Execução de sentença nos próprios
autos. — E. Apreciação crítica: excessivo favor debitoris? 3. Vias procedimentais
na execução para entrega de coisa certa. — A. Enunciado; especialidades na
execução de sentença. — B. Articulação com as regras especiais da execução
para entrega de coisa imóvel arrendada. 4. Vias procedimentais na execução
para prestação de facto; especialidades na execução de sentença. 5. Vias
procedimentais na cumulação de execuções. — A. Execuções com fins
idênticos— B. Execuções com fins diferentes. § 4º Conclusões finais. 1.
Constitucionalidade das regras de formalização de títulos executivos, acesso à
tutela jurisdicional e intensidade do exercício do direito de defesa em sede de
títulos executivos.2. Presença do despacho liminar e momento de citação em
sede de vias procedimentais executivas.
415
Videogravação da comunicação
Vídeo 1 Vídeo 2
416
ANEXOS
Jurisprudência
Jurisprudência do Tribunal Constitucional
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
Jurisprudência dos Tribunais de Relação
Tribunal da Relação de Coimbra
Tribunal da Relação de Évora
Tribunal da Relação de Guimarães
Tribunal da Relação de Lisboa
Tribunal da Relação de Porto
Jurisprudência do Tribunal Constitucional
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
NÚCLEO DE APOIO DOCUMENTAL E INFORMAÇÃO JURÍDICA
[Novo Código de Processo Civil / Temas da Prova / Dever de gestão processual / Poderes
de cognição do juiz / Princípio do dispositivo / Princípio da adequação formal / Ónus de Alegação /
Factos instrumentais / Factos complementares e concretizadores / Réplica / Ampliação da causa de
pedir / Alteração da causa de pedir / Objeto do litígio / Erro na forma do processo / Declarações de
parte / Depoimento de parte / Confissão / Verificações não judiciais qualificadas / Impugnação da
matéria de facto / Audiência prévia / Dispensa da audiência prévia / Compensação / Reconvenção /
Arresto / Inversão do Contencioso / Tutela da personalidade /Art. 878º CPC (ou NCPC) / Aplicação da
lei processual no tempo / Princípio da confiança / Título executivo / Art. 857º, CPC (ou NCPC) /
Reclamação de Créditos]
Acórdão n.º 777/14 - Não julga inconstitucional o artigo 642.º, n.º 2, do Código de
Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, interpretado no
sentido de que, havendo o recorrente sido notificado para apresentar
comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e da multa, e liquidando o
mesmo apenas a multa, deve o tribunal determinar o desentranhamento do
requerimento apresentado, sem dele conhecer. (Apreciação de norma do NCPC,
com referência a prova).
Acórdão n.º 847/14 - Julga inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º
do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na
interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares
emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil
e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo
Civil de 1961. Ver ainda Acórdão n.º 161/15. (Apreciação de norma do NCPC, com
referência aos descritores título executivo, princípio da confiança, aplicação da
lei processual no tempo e temas da prova).
Abril 2015
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
NCPC
Temas vários
Jurisprudência do STJ
Távora Victor
Temas da prova
Temas da prova
Factos conclusivos
Insolvência
Poderes do juiz
Reclamação de créditos
Poderes da Relação
Lista de créditos reconhecidos e não
Interpretação da declaração negocial
reconhecidos
Teoria da impressão do destinatário
Sentença
Homologação
ao considerar provada ou não provada a concreta créditos não implica sem mais a produção de uma
matéria de facto a que eles se reportam, especificar e sentença homologatória «cega» por um eventual
a sua decisão, não podendo limitar-se a considerar II- O art. 130.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com os
provada ou não provada a matéria, puramente princípios processuais gerais que conferem ao juiz
condensação havia sido enunciada, cabendo à e impõe que este afira da bondade formal e
sobre a matéria de facto, sindicar e corrigir tal apresentada pelo administrador de insolvência.
II- Em aplicação do critério normativo da impressão mencionado normativo não se reduz apenas à
do destinatário, deve qualificar-se como assunção categoria do mero erro formal, podendo abranger
cumulativa de dívida a declaração, constante de razões ligadas à substância dos créditos em apreço o
documento escrito e enviado à contraparte, em que – que poderá ser objecto de censura por parte do
perante a existência de dúvidas objectivas acerca da tribunal, mesmo que os aludidos créditos não tenham
entidade declarante se compromete, caso a autarquia Revista n.º 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1 - 6.ª Secção
13-11-2014
Revista n.º 444/12.5TVLSB.L1.S1 - 7.ª Secção
Lopes do Rego (Relator) *
Orlando Afonso
426
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
IV- A eliminação do referido quesito (levada a cabo I- A ineptidão da petição inicial deve ser arguida até à
pela Relação), sem a sua substituição por outro, contestação ou neste articulado, pelo que é
impediria, na prática, os autores de fazerem prova extemporânea a sua invocação, pela primeira vez, nas
sobre a localização da área ocupada dentro do alegações de recurso para o STJ, não sendo, ademais,
conjunto de prédios, inviabilizando assim a aquela nulidade principal passível de conhecimento
procedência do pedido de reconhecimento de oficioso em sede de recurso de revista (cfr. arts.
propriedade dessa área. 202.º, 206.º, n.º 2 e 508.º, todos do CPC).
V- O referido em III e IV determina a anulação do II- Como decorre dos arts. 722., n.º 2 e 729.º, ambos
acórdão recorrido, nos termos do art. 682.º, n.º 3, do do CPC, os poderes de cognição do STJ são restritos,
CPC, para que se julgue da falta de especificação da não lhe sendo lícito sindicar eventuais erros na
fundamentação da resposta e a impugnação da apreciação das provas ou na fixação dos factos
resposta correspondente, não sendo possível – sem materiais, salvo quando ocorra ofensa de disposição
isso – definir desde já a solução jurídica aplicável (art. expressa que exija certa espécie de prova para
683.º, n.º 2, do CPC). demonstrar a existência de um facto ou que fixe a
força de determinado meio de prova.
24-04-2014 III- Concluindo-se que as respostas a artigos da base
Revista n.º 24/09.2TBMDA.C2.S1 - 7.ª Secção instrutória constituem um minus em relação ao que
Maria dos Prazeres Beleza (Relator) ali se indagava e que tem um conteúdo concretizador,
Salazar Casanova não se justifica que se exerça o poder contido no art.
Lopes do Rego 646.º, n.º 4, do CPC.
IV- Não tendo o depoente – à data, advogado
Ineptidão da petição inicial
estagiário –, tido intervenção nos assuntos da ré e
Matéria de facto
limitando-se o mesmo, no testemunho que prestou, a
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
dar conta dos ensinamentos do seu então patrono a
Respostas explicativas
respeito da fixação de honorários, é inviável
Advogado
considerar que haja incorrido em revelação de dado
Testemunha
abrangido pelo sigilo profissional a que está obrigado.
Dever de sigilo
V- Tendo a ré, no âmbito do contrato de mandato
Contrato de mandato
forense que ajustou com o autor, procedido ao
Honorários
pagamento, em moldes faseados, dos honorários
Usura
acordados em função dos serviços – que foram
Bons costumes
autonomizados pelas partes – que este lhe prestou,
Cumprimento defeituoso
satisfez a obrigação de lhe pagar a retribuição,
Má fé
extinguindo-a (arts. 762.º, 763.º, n.º 1, 769.º e
Responsabilidade contratual
1167.º, al. b), todos do CC), pelo que não pode
Ónus da prova
questionar a bondade do valor entregue, sendo, pois,
Litigância de má fé
irrelevante a menção a esses serviços no laudo da
Sociedade comercial
Ordem dos Advogados.
Caso julgado
VI- A usura tem como elemento subjectivo essencial a
Recurso de revista
posição de inferioridade do lesado no momento em
Inadmissibilidade
que celebra o negócio ou pratica o acto, a qual
justifica a protecção do ordenamento jurídico para o
428
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
tornavam objectiva e definitivamente impossível a I- Para efeitos de exercício dos poderes de cognição
celebração dos prometidos contratos e previram que devem ter-se como não definitivos aqueles juízos de
a celebração dos contratos prometidos se tornaria valor sobre os factos materiais que a Relação
impossível, aceitando esse resultado – contêm formulou em função da sensibilidade ou intenção
materialidade destinada a provar o estado de jurídica, os quais, por traduzirem valorações legais já
consciência e intenção das rés, versando sobre factos podem ser sindicados pelo STJ.
do foro interno dos intervenientes no negócio objecto II- O conceito de “exploração agrícola de tipo familiar"
de impugnação pauliana, não envolvendo matéria é um conceito de direito cujo preenchimento há-de
conclusiva que deva ser desconsiderada. resultar da conjugação dos vários elementos factuais
VI- O exercício da impugnação pauliana depende, nos a que a lei faz referência, consistindo o mais
termos do art. 610.º do CC, da verificação dos importante na efectiva afectação do prédio, ou
seguintes requisitos: (i) ser o crédito anterior ao acto conjunto de prédios, a exploração agrícola através do
ou, sendo posterior, ter o acto sido realizado trabalho próprio do cultivador ou de pessoas do seu
dolosamente com o fim de impedir a satisfação do agregado familiar, circunstância esta que faz caber
direito do futuro credor; (ii) resultar do acto a dentro dos poderes de cognição deste STJ a
impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação apreciação e decisão sobre o preenchimento ou não
integral do seu crédito, ou o agravamento dessa preenchimento factual desse conceito jurídico.
impossibilidade; (iii) sendo o acto oneroso, exige-se III- Não é razoável, sobretudo no actual contexto de
ainda a má fé dos respectivos sujeitos. desenvolvimento agrário, pensar-se que a unidade
VII- A lei não impõe, para a procedência da agrícola familiar apenas existe quando se torna
impugnação pauliana, o prévio reconhecimento efectivamente produtiva, desprezando para efeitos
judicial do direito de crédito e condenação do de integração daquele conceito jurídico
devedor no cumprimento da obrigação. (nomeadamente para efeitos da previsão normativa
VIII- Quando o direito de crédito nasce do próprio do art. 1381.º, al. b) – esta normatividade tem que
incumprimento do devedor – e nesse preciso ser compaginada e entendida em conjunto e não
momento –, sem qualquer intervenção do credor, fragmentariamente conforme comanda a unidade
não é exigível a demonstração de que o acto lesivo da sistemática para que aponta o art. 9.º do CC) – toda a
garantia patrimonial foi dolosamente realizado, mas fase temporal de investimentos, de preparação dos
apenas a prova de que aquele acto foi realizado com solos e de plantações efectuadas.
a finalidade de obstar à satisfação do crédito do IV- Na sua variante de exercício em desequilíbrio –
autor, posteriormente constituído. desproporção grave entre o exercício do titular
exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem –, o
05-02-2015 abuso de direito resultará da prática de uma acção
Revista n.º 14434/05.0TBMAI.P2.S1 - 7.ª Secção que pelas circunstâncias ultrapasse os limites
Fernanda Isabel Pereira (Relator) razoáveis do exercício de um direito, provocando
Pires da Rosa danos a um terceiro – apresenta-se, desta forma,
Maria dos Prazeres Beleza como um resultado do princípio da
proporcionalidade, conatural à própria ideia de
Abuso do direito
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sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente. de qualquer uma das hipóteses em que, de acordo
IV- Se o prédio dominante pode, facilmente, sem com o disposto no art. 721.º, n.º 3, do CPC, na
excessivo incómodo ou dispêndio obter comunicação redacção aplicável, o STJ deva intervir no julgamento
com o centro da freguesia, através da via pública, sem da matéria de facto, não cabe a este tribunal alterá-
ter de utilizar o carreiro objeto da servidão, que, la.
apenas permite o encurtamento da distância na ida III- Perante o facto de o menor, filho do autor e da ré
ao centro da freguesia, e que onera o prédio – que viveram em união de facto – ter sido, por
serviente, não se justifica a manutenção da servidão, decisão judicial, confiado à guarda do primeiro e dada
como já não encontraria suporte, neste momento, a a ausência de factologia referente às necessidades de
sua constituição inicial, pela simples, mas decisiva cada uma das partes, bem andou a Relação, em face
razão de que esse prédio não pode ser considerado do disposto no art. 1105.º do CC (aplicável “ex vi” art.
encravado. 4.º da Lei n.º 7/2001, de 11-05), ao considerar o
V- Realizando-se o acesso à via pública, através de um interesse do menor como único elemento relevante
prédio, entretanto, adquirido pelos titulares do para a decisão sobre a atribuição do arrendamento da
prédio dominante, ligado, materialmente, a este, casa de morada de família, sendo que este se
justifica-se que deixe de ser onerado com a servidão sobrepõe aos interesses do recorrente, aliás apenas
pedonal de passagem o prédio serviente alheio, e que invocados em sede recursória.
se declare extinta, por desnecessidade, a IV- O DL n.º 166/97, de 07-05, não pode ser
correspondente servidão. interpretado no sentido de subverter a atribuição da
casa de morada de família se estiver em causa a
25-06-2014 cessação de união de facto e o interesse de um
Revista n.º 3474/06.2TBBCL.G1.S1 - 1.ª Secção menor confiado à guarda do progenitor a quem se
Helder Roque (Relator) * atribuiu a sua guarda.
Gregório Silva Jesus
Martins de Sousa 03-07-2014
(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Revista n.º 1360/11.3T2AMD.L1.S1 - 7.ª Secção
Acordo Ortográfico) Orlando Afonso (Relator)
Távora Vítor
Falta de contestação Granja da Fonseca
Ónus de impugnação especificada
Matéria de facto Processo de jurisdição voluntária
que julgue mais conveniente e oportuna. versão do DL n.º 303/2007, correspondente ao art.
II- A natureza do processo de jurisdição voluntária 682.º do NCPC).
permite e obriga o tribunal a realizar as diligências III- A ampliação da base instrutória tem de referir-se a
necessárias ao apuramento do pedido e factos factos alegados pela parte e não a factos novos sob
correlativos que o suportem, pois, neste tipo de pena de violação do princípio do dispositivo; a
processos, o requerente não tem o ónus de alegar e faculdade concedida pela lei processual civil ao STJ só
provar a matéria de facto. pode ser exercida quando as instâncias seleccionarem
III- O juiz não está vinculado ao pedido, podendo imperfeitamente a matéria da prova, amputando-a
afastar-se dele, na medida em que aquilo que lhe é de elementos que consideraram dispensáveis, mas
exigido é a regulação do interesse fundamental em que se verifica serem indispensáveis para o Supremo
questão (no caso dos processos tutelares cíveis, o definir o direito.
interesse do menor) pela forma que seja mais IV- A lei processual civil portuguesa tem vindo a
conveniente e oportuna e sem estrita vinculação aos evoluir no sentido do reforço do princípio do
factos que lhe foram apresentados e ao pedido que inquisitório, no plano da instrução, com a
lhe foi formulado. correspondente restrição ao princípio do dispositivo;
não obstante esta evolução, cabe às partes alegar os
09-09-2014 factos principais da causa, que integram a causa de
Reclamação n.º 4289/12.4TBALM.L1-A.S1 - 1.ª Secção pedir e que fundam as excepções (art. 264.º, n.º 1, do
Paulo Sá (Relator) CPC revogado) ou, na formulação do NCPC, os factos
Garcia Calejo essenciais que constituam a causa de pedir (art. 5.º,
Helder Roque n.º 1).
V- A alegação dos factos essenciais é feita nos
Matéria de facto articulados (art. 147.º, n.º 1, do NCPC), incluindo não
Base instrutória só os articulados normais do processo (petição inicial,
Ampliação da base instrutória contestação e réplica), mas também o articulado
Factos essenciais superveniente (art. 588.º, n.º 1, do NCPC). O juiz
Factos instrumentais pode, contudo, convidar as partes a aperfeiçoar os
Princípio dispositivo articulados, quando contenham insuficiências ou
Princípio inquisitório imprecisões na exposição da matéria de facto (arts.
590.º, n.º 2, al. b), e n.ºs 3 e 4, e 591.º, n.º 1, al. c), do
NCPC), mas não pode substituir-se-lhes na introdução
I- A base instrutória, eliminada pelo NCPC (2013), não dos factos na causa.
tem carácter de definitividade, podendo ser ampliada VI- Factos instrumentais são aqueles que, por
por decisão tomada em audiência final (art. 650.º, n.º natureza, não carecem de alegação e, por isso, são
2, al. f), do CPC, na versão do DL n.º 303/2007, de 24- oficiosamente considerados na decisão de facto,
08), em recurso de apelação (art. 712.º, n.º 4, do CPC) desde que resultem da instrução da causa;
ou por determinação do STJ (art. 729.º, n.º 3, do CPC). diversamente dos factos principais, não constituem
II- Para que tais poderes possam ser exercidos pelo condicionantes directas na decisão, sendo a sua
STJ, é necessário que os factos fixados pelas função, antes, a de permitir atingir a prova dos factos
instâncias sejam insuficientes para a decisão da principais.
questão de direito ou que ocorram contradições na VII- Os factos instrumentais destinam-se a realizar
decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a prova indiciária dos factos essenciais, já que através
decisão jurídica do pleito (art. 729.º, n.º 3, do CPC, na
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça partes (art. 5.º do NCPC (2013)), pelo que a inclusão
Facto não articulado sindicada pelo STJ e tem como consequência que a
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
primeiro que nada tem que ver com aquelas corresponderia a sancionar um abuso de direito e a
carências. abrir a porta a que, depois de garantida a doação pela
VII- Se bem que a obrigação de alimentos tenha por aceitação, qualquer donatário pudesse perpetrar as
fundamento uma natureza afectiva (já que a gratidão maiores perversidades contra o doador (desde que
do donatário tem que se traduzir num apoio às não integrassem as causas que despoletam a
necessidades do doador), ela não compreende o ingratidão) sem que tal beliscasse a vantagem
respeito e a consideração devidos pelo réu – patrimonial assegurada, quem sabe, por uma
donatário –, à autora nem tudo aquilo que seja simpatia e dedicação hipócritas ou de fachada.
destinado a manter a dignidade humana da mesma
(incluindo actos destinados a suprir as crescentes 11-12-2014
limitações físicas e psíquicas desta) não se podendo, Revista n.º 25908/11.4T2SNT.L1.S1 - 2.ª Secção
pois, obrigar aquele a acarinhar a doadora e a Serra Baptista (Relator)
acompanhá-la na velhice, o que equivale por dizer Fernando Bento
que a falta de apoio afectivo a esta não integra a João Trindade
causa de revogação da doação referida em VI.
Princípio dispositivo
VIII- Resultando dos factos provados que i) a doadora
Pedido
conta com 87 anos de idade; ii) é viúva e não tem
Reconhecimento do direito
herdeiros; iii) que os réus não a visitavam e deixaram-
Direito de propriedade
na só quando esteve acamada, iv) que lhe dirigiu
Prédio confinante
imprecações que a deixaram triste; e v) que os réus se
Muro
apropriaram da quantia de Esc. 10.000.000$00 que
Presunção
àquela pertencia; é evidente que o réu adoptou uma
Compropriedade
conduta que defraudou as expectativas legítimas de
Princípio do contraditório
gratidão por parte da autora.
IX- A contestação de uma acção tem de se fundar
num inerente direito mas não pode afrontar os I- O princípio do dispositivo impede que o tribunal
valores fundamentais da ordem jurídica pelo que, não decida para além ou diversamente do que foi pedido,
se podendo limitar as exacções processuais ao mas não obsta a que profira decisão que se inscreva
instituto da litigância de má fé, há que, como válvula no âmbito da pretensão formulada.
de escape, convocar o instituto do abuso do direito – II- Pedindo os autores o reconhecimento do direito de
enquanto manifestação da boa fé que torna ilegítimo propriedade de um muro que delimita os quintais dos
o exercício de certas posições jurídicas quando as dois prédios urbanos confinantes, não constitui
mesmas, embora conformes à legalidade, são excesso de pronúncia, nem fere o princípio do
inadmissíveis por contender com o sistema jurídico na dispositivo a decisão judicial que, com fundamento na
sua globalidade – para as reprimir. presunção legal do art. 1371.º, n.º 2, do CC,
X- As exigências da boa fé e o sistema considerado no reconhece que o muro é compropriedade de ambas
seu conjunto não toleram que, perante uma actuação as partes.
do donatário como a descrita em VIII, este possa III- Considerando que ao réu foi conferida a
pugnar pela plena eficácia e irrevogabilidade da possibilidade de se defender, sem exclusão, sequer,
doação feita num momento em que não seria de da possibilidade de ilidir a presunção legal de
supor que tal conduta se verificaria, sendo que o comunhão prevista no art. 1371.º, n.º 2, do CC, a
reconhecimento da sua intangibilidade decisão que reconheceu a situação de
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
1 do art. 672.º do NCPC (2013) não basta a alegação comunidade, situações essas capazes de gerar alarme
de meras discordâncias quanto ao decidido pela ou intranquilidade social.
Relação, e à aplicação do direito por esta efectuada, III- Não reveste a relevância referida em I e II a
sendo necessário que a recorrente localize e alegue questão de saber se os membros honorários de uma
uma questão jurídica, dotada de pragmatismo e cooperativa têm ou não direito de propor à direcção a
abstracção, susceptível de ser transponível para adesão de novos associados.
outras situações. IV- Por outro lado, a questão referida em III não
II- A circunstância de estarmos perante um contrato ultrapassa o caso singular, nem versa sobre matéria
obrigatório, eventualmente qualificável como de que contenda com interesses de ordem pública.
adesão, num mercado fechado e pouco concorrencial
não é, só por si, suficiente para justificar que o STJ 13-03-2014
volte a analisar uma questão que mereceu Revista excepcional n.º 585/11.6TVPRT.P1.S1
tratamento uniforme por parte das instâncias. Moreira Alves (Relator)
Sebastião Póvoas
06-03-2014 Pires da Rosa
Revista excepcional n.º 25382/10.2T2SNT.L1.S1
Pires da Rosa (Relator) Impugnação da matéria de facto
Relevância jurídica
Cooperativa I- Cumpre o ónus imposto pelo n.º 1 do art. 640.º do
Interesses de particular relevância social NCPC (2013), o recorrente que, nas conclusões das
Ónus de alegação alegações, refere expressamente que o recurso visava
«principalmente a impugnação da matéria de facto
I- A densificação do conceito aberto constante da al. dada como provada», e, nas alegações, referem os
a) do n.º 1 do art. 672.º do NCPC (2013) passa concretos pontos de facto considerados
estarmos perante uma questão de direito complexa, incorrectamente julgados, bem como os concretos
cuja subsunção jurídica imponha um importante e meios probatórios, que, em sua opinião, impunham,
detalhado exercício de exegese, um longo debate decisão diversa, expressando o sentido da alteração
pela doutrina e jurisprudência com o objectivo de se pretendida.
obter um consenso em termos de servir de II- As conclusões são proposições sintéticas que
orientação para quem tenha interesse jurídico ou emanam do que se expôs ao longo das alegações,
profissional. sendo que é nestas que se devem indicar as razões da
II- Por seu turno, a densificação do conceito de discordância com o julgado, nomeadamente, as
“interesses de particular relevância social” passará razões pelas quais se entende que a decisão deve ser
pela circunstância de se colocar à decisão situações anulada ou alterada.
que digam respeito à estrutura familiar, aos direitos
dos consumidores, ao ambiente, ecologia, qualidade 20-11-2014
de vida, saúde, património histórico e cultural, ou Revista n.º 110/10.6TVPRT.P1.S1 - 2.ª Secção
quando se discutam interesses importantes da Oliveira Vasconcelos (Relator)
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
Condenação em objecto diverso do pedido 08), em recurso de apelação (art. 712.º, n.º 4, do CPC)
Documento II- Para que tais poderes possam ser exercidos pelo
NCPC), mas não pode substituir-se-lhes na introdução I- Não se produzem contra o avalista os efeitos da
dos factos na causa. vinculação cambiária por ele assumida em livrança
VI- Factos instrumentais são aqueles que, por subscrita em branco enquanto esta não for
natureza, não carecem de alegação e, por isso, são preenchida, não podendo, assim, ser decretada a
oficiosamente considerados na decisão de facto, insolvência do avalista pelo incumprimento dessa
desde que resultem da instrução da causa; obrigação cambiária.
diversamente dos factos principais, não constituem II- O preenchimento de livrança efetuado no decurso
condicionantes directas na decisão, sendo a sua dos autos de insolvência com data de vencimento
função, antes, a de permitir atingir a prova dos factos anterior (17-5-2012) à data do encerramento da
principais. audiência final (19-07-2012) constitui facto
VII- Os factos instrumentais destinam-se a realizar objetivamente superveniente (facto complementar –
prova indiciária dos factos essenciais, já que através ver art. 264.º do CPC de 1961 e 5.º, n.º 2, al. b), do
deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, CPC de 2013) cuja atendibilidade é admissível nos
à demonstração dos factos essenciais termos do art. 663.º do CPC (art. 611.º do CPC de
correspondentes – assumindo em exclusivo uma 2013).
função probatória e não uma função de III- Tal facto não carece de ser alegado para que, no
preenchimento e substanciação jurídico-material das processo de insolvência, o juiz nele possa fundar a sua
pretensões e da defesa. decisão (art. 11.º do CIRE).
02-12-2014 16-01-2014
Revista n.º 295/04.0TBVFR.P2-A.S1 - 1.ª Secção Revista n.º 1094/12.1TBTVD.L1.S1 - 7.ª Secção
Maria Clara Sottomayor (Relatora) Salazar Casanova (Relator) *
Sebastião Póvoas Lopes do Rego
Moreira Alves Orlando Afonso
(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo
Acordo Ortográfico)
Factos complementares e concretizadores
Matéria de facto
Aval Matéria de direito ~
Obrigação cambiária Factos supervenientes
Avalista Articulado superveniente
Insolvência Alteração da causa de pedir
Incumprimento Factos complementares
Livrança em branco Factos concretizadores
Pacto de preenchimento
Factos supervenientes I- Compete ao STJ, no âmbito de um recurso de
Ónus de alegação revista, sindicar a decisão da Relação referente à
Princípio dispositivo interpretação de certo segmento da sentença, na
Princípio inquisitório parte em que a mesma elenca a factualidade
provada, de modo a aferir se a interpretação acolhida
é conforme aos padrões ou critérios interpretativos
que devem nortear a interpretação das decisões
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
Base instrutória
Réplica Ampliação da base instrutória
Factos essenciais
Factos instrumentais
Matéria de facto
Princípio dispositivo
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
Princípio inquisitório
Factos admitidos por acordo
Factos conclusivos
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
27-02-2014
Revista n.º 172/07.3TBCCH.E1.S1 - 7.ª Secção
Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)
Salazar Casanova
Lopes do Rego
Insolvência XE "Insolvência"
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
Depoimento de parte
Erro na forma do processo
Confissão
Valor probatório
Recurso de revista Princípio da livre apreciação da prova
Dupla conforme
Inadmissibilidade
I- O depoimento de parte constitui, tão-só, um
Revista excepcional
instrumento hábil a provocar a confissão judicial
Revista excecional
provocada que, como meio de realização de prova
Erro na forma do processo
Rejeição de recurso 449
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
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Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça