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Caderno Especial

O NOVO PROCESSO CIVIL


CADERNO V TEXTOS E JURISPRUDÊNCIA
(JORNADAS DE PROCESSO CIVIL–JANEIRO 2014 E JURISPRUDÊNCIA
DOS TRIBUNAIS SUPERIORES SOBRE O NOVO CPC)

setembro de 2015
“O Novo Processo Civil” consiste num conjunto de Cadernos
que o CEJ preparou com o objetivo de fornecer à comunidade
jurídica um conjunto de elementos de trabalho que pudessem
facilitar a abordagem e o estudo do Código de Processo Civil
vigente desde 1 de setembro de 2013.
Com uma vertente essencialmente prática e vocacionada para
os profissionais do Direito pretende ser um contributo para a
necessária reflexão sobre as novas soluções normativas.
O compêndio passa agora a comportar cinco Cadernos (I –
correspondente à estrutura das Jornadas do Processo Civil do
CEJ, de abril de 2013, acrescido de outros textos, originais ou
produzidos noutras conferências; II – textos de doutrina que
acompanharam o processo legislativo com o intuito de permitir
a compreensão da evolução normativa e o porquê das opções
tomadas; III – trabalhos e estudos sobre o novo CPC dos
Auditores de Justiça do 30º Curso – sob a orientação dos
docentes do CEJ – elaborados em 2013; IV – textos sobre os
impactos do Novo CPC no Processo do Trabalho; V – textos e
jurisprudência).
Nos dias 23 e 24 de janeiro de 2014, decorreram as segundas
Jornadas de Processo Civil do CEJ, nas quais se apreciou o
impacto da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil,
fazendo-se o ponto da situação da reforma e aprofundando-se
a discussão das alterações mais relevantes.
Dois anos volvidos sobre a entrada em vigor Código de
Processo Civil de 2013, torna-se patente a necessidade de
trazer a lume os textos produzidos nas Jornadas de Processo
Civil de 2014, juntando uma resenha jurisprudencial de
acórdãos do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal de
Justiça e dos Tribunais das Relações de Lisboa, Porto, Coimbra,
Guimarães e Évora, já sobre o NCPC.
Com este último caderno, o CEJ completa o projeto relativo ao
novo processo civil esperando ter atingido os objetivos
propostos.
Ficha Técnica

Jurisdição Civil, Processual Civil e Comercial


Gabriela Cunha Rodrigues (Coordenadora)
Laurinda Gemas
Margarida Paz
Miguel Ângelo Carmo

Nome:
Caderno V – O Novo Processo Civil – Textos e Jurisprudência (Jornadas de Processo Civil–
janeiro 2014 e Jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o novo CPC)

Categoria:
Caderno Especial – O Novo Processo Civil

Colaboração:
Núcleo de Apoio Documental e Informação Jurídica do Tribunal Constitucional
Gabinete dos Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça – Assessoria Cível

Intervenientes:
João Correia (Advogado e Coordenador da Comissão de Reforma do Processo Civil)
Susana Videira (Diretora-Geral da Política de Justiça e Professora da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa)
Ana Isabel de Azeredo Coelho* (Juíza de Direito, Auxiliar do Tribunal da Relação de
Lisboa)
Margarida Paz (Procuradora da República e Docente do CEJ)
Isabel Maria Alexandre (Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)
Carlos Lopes do Rego (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e Membro da
Comissão de Reforma do Processo Civil)
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça)
Salazar Casanova (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça)
Elizabeth Fernandez (Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho e
Advogada)
Paulo Ramos de Faria* (Juiz de Direito dos Juízos Cíveis do Porto)
António Santos Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e

*
À data da sua intervenção.
Membro da Comissão de Reforma do Processo Civil)
Manuel Tomé Soares Gomes* (Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa)
Rui Pinto (Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa)
Henrique Araújo (Juiz Desembargador do Tribunal da Relação do Porto)

Auditores de Justiça (31.º Curso):


Alexandra Sofia dos Santos Pires Cotrim Nunes
Ana Gabriela Ferreira Rocha
Ana Isa de Sousa Ribeiro Moura
Ana Luisa Charters Ribeiro Sá
Ângela Susana Oliveira Trindade Pinto
António Marcos Ferreira Calado
Bruno Marcelo Correia Alves
Carla dos Santos Pimenta Pereira
Carlos Manuel Dias dos Santos
Catarina Maria Borges Costa de Brandão Proença
Cátia Alexandra Duarte Lobo
Cátia José Lourenço da Costa
Celma Castelo David
Cláudia Susana Fialho Bichinho Ventura
Diana Filipa Tato Lopes da Silva
Diana Isabel Mota Fernandes
Eliana Patrícia Marques Pereira
Eva Josefina Calvete Tomé
Filipa Vaz da Fonseca
Frederico Camolino de Melo Santos
Henrique António Gonçalves Candeias da Guerra Maio
João Guilherme Martelo de Almeida
José Joaquim da Silva Ferreira Braga
Luís Daniel da Silva Amador
Luís Filipe Guerra de Oliveira Rodeiro
Lusa Tatiana Pinto César Correia de Paiva
Mafalda de Sá Morais Rodrigues Leonardo
Maria Beatriz de Castro Tavares Monteiro Pacheco
Maria Inês Cunha Oliveira Silva
Maria Manuela Ferreira Taborda
Maria Teresa Barros Ferreira
Mário Jorge Lopes Afonso Rodrigues Ribeiro
Neuza Soraia Rodrigues Carvalhas
Patricia Penque Vicente
Patrícia Silva Pereira
Paulo Alexandre Gaspar Gomes Cardoso Lopes
Paulo Alexandre Silva Gomes
Rui Paulo Rodrigues Santos
Rute Isabel Bexiga Ramos
Valder Ceita Ramos
Violeta Sofia Pereira Martins

Revisão final:
Edgar Taborda Lopes (Coordenador do Departamento da Formação do CEJ, Juiz de
Direito)
Joana Caldeira (Técnica Superior do Departamento da Formação)

Forma de citação de um livro eletrónico (NP405‐4):

AUTOR(ES) – Título [Em linha]. a ed. Edição. Local de edição: Editor, ano de
edição.
[Consult. Data de consulta]. Disponível na internet:<URL:>. ISBN.

Exemplo:
Direito Bancário [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2015.
[Consult. 12 mar. 2015].
Disponível na
internet:<URL:http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/Direito_Bancario.pdf.
ISBN 978-972-9122-98-9.
ÍNDICE

Ponto da situação da Reforma do Processo Civil. A metamorfose comportamental – João


Correia ......................................................................................................................................... 13
Sumário .................................................................................................................................. 15
Videogravação da comunicação ............................................................................................ 16
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação – Susana Antas Videira ........... 17
Texto da intervenção ............................................................................................................. 19
Videogravação da comunicação ............................................................................................ 32
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos – Ana Isabel de
Azeredo Coelho............................................................................................................................ 33
Texto da intervenção ............................................................................................................. 35
Videogravação da comunicação ............................................................................................ 85
Apresentação em powerpoint ................................................................................................ 87
O Novo Processo Civil – Desafios para o Ministério Público – Margarida Paz ......................... 145
Apresentação em prezzi ....................................................................................................... 147
Videogravação da comunicação .......................................................................................... 173
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013 – Isabel Maria Alexandre.................................................................................................. 175
Sumário e texto da intervenção ........................................................................................... 177
Incidentes da instância – Carlos Lopes do Rego ....................................................................... 205
Sumário e texto da intervenção ........................................................................................... 207
Videogravação da comunicação .......................................................................................... 212
Ónus da impugnação – Maria dos Prazeres Pizarro Beleza ...................................................... 213
Texto da intervenção ........................................................................................................... 215
Videogravação da comunicação .......................................................................................... 233
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto – Salazar Casanova .................................... 235
Sumário e texto da intervenção ........................................................................................... 237
Videogravação da comunicação .......................................................................................... 260

Temas da prova e instrução ..................................................................................................... 261


- Elizabeth Fernandez ........................................................................................................... 261
Sumário ........................................................................................................................... 263
Videogravação da comunicação ..................................................................................... 264
- Paulo Ramos Faria ............................................................................................................. 265
Sumário ........................................................................................................................... 267
Videogravação da comunicação ..................................................................................... 268
Sentença Cível – António Santos Abrantes Geraldes ................................................................ 269
Texto da intervenção ........................................................................................................... 271
Videogravação da comunicação .......................................................................................... 300
Nótula sobre a Jurisdição Cível – António Santos Abrantes Geraldes....................................... 301
Texto .................................................................................................................................... 301
Da sentença cível – Manuel Tomé Soares Gomes ..................................................................... 327
Texto da intervenção ........................................................................................................... 329
Videogravação da comunicação .......................................................................................... 387
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto – Henrique Araújo ................................... 389
Sumário e texto da intervenção ........................................................................................... 391
Videogravação da comunicação .......................................................................................... 411
Os Títulos Executivos e as formas do processo de execução. Alguns reparos à reforma da
execução na Lei nº 41/2013, de 26 de junho – Rui Pinto.......................................................... 413
Sumário ................................................................................................................................ 415
Videogravação da comunicação .......................................................................................... 416

ANEXOS ..................................................................................................................................... 417


• Jurisprudência............................................................................................................ 417
− Jurisprudência do Tribunal Constitucional ........................................................... 419
− Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça ................................................... 423
− Jurisprudência dos Tribunais de Relação .............................................................. 465
 Tribunal da Relação de Coimbra...................................................................... 467
 Tribunal da Relação de Évora .......................................................................... 510
 Tribunal da Relação de Guimarães .................................................................. 520
 Tribunal da Relação de Lisboa ......................................................................... 540
 Tribunal da Relação do Porto .......................................................................... 580
Registo das revisões efetuadas ao e-book

Identificação da versão Data de atualização

Versão inicial – 31/08/2015

Versão 1 20/10/2015

Notas:
Foi respeitada a opção dos autores na utilização ou não do novo Acordo Ortográfico.
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Acrobat Reader.
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software: Internet Explorer 9 ou posterior; Chrome; Firefox ou Safari e o Flash Media
Player nas versões mais recentes.
Ponto da situação da Reforma do Processo Civil.
A metamorfose comportamental

[João Correia]
Ponto da situação da Reforma do Processo Civil. A metamorfose comportamental

Ponto da situação da Reforma do Processo Civil. A


metamorfose comportamental
João Correia

Sumário:
I – As questões que o novo CPC suscita imediatamente:
a) As normas transitórias;
b) Conteúdo e significado dos Art.os 3.º, 5.º e 6.º
II – O desafio à cultura instalada. As diversas abordagens
III – Os institutos de difícil absorção. Exemplos:
 O activismo judiciário;
 A gestão processual;
 A tramitação da Acção Declarativa
IV – As consequências relacionais
V – O Centro de Estudos Judiciários e a Ordem dos Advogados
 A formação inicial e a formação contínua
VI – O Ministério da Justiça
VII – Os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público
VIII – A Organização Judiciária
IX – A perspectiva a curto e médio alcance

15
Videogravação da comunicação

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Tendências do Processo Civil: desformalização e
simplificação

[Susana Antas Videira]


Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Tendências do Processo Civil: desformalização e


simplificação
Susana Videira

Senhoras e Senhores,

Começo por manifestar a minha satisfação por estar presente nestas Jornadas de
Processo Civil, agradecendo ao Centro de Estudos Judiciários e, em particular, ao seu Diretor –
Professor Pedro Barbas Homem – o convite que me foi dirigido.
Num espaço e num tempo em que a realidade política e económica precede, tantas vezes,
o movimento das ideias e os conceitos de liberdade, de solidariedade e de justiça social
sobrevivem enfraquecidos pelo desenvolvimento das leis do mercado, o novo Leviatã que
deixa a democracia sem meios para garantir, de forma eficiente, o seu poder de limitação do
arbítrio, é urgente – diria mesmo, é inadiável – recuperar a discussão, o diálogo, o
pensamento, como hoje e amanhã, nestas jornadas, iremos fazer.
A Europa está, como é por todos reconhecido, a atravessar uma dura experiência na sua
vida social. A situação histórica do nosso tempo, que já alguém caracterizou como uma
angustiosa exasperação, acompanhada de profunda desespiritualização, obriga a pensar em
Justiça e no aprofundamento da democracia de direitos fundamentais.
Internamente, a crise financeira também ajuda a colocar Justiça [e a apologia da sua
reforma] na ordem do dia.
Mas, para além do seu lado mais sombrio, a situação financeira do país também oferece
uma janela de oportunidade quase única em que se reúnem os elementos económicos,
culturais e políticos para ousar pensar os problemas estruturais da Justiça portuguesa,
reinventando, a este nível, o modelo de relação entre o Cidadão e o Estado.
Por consequência, a Justiça não é apenas um tema para o decisor político e para o
legislador. É um concurso a que todos somos convocados, particularmente os Juízes, os
Magistrados do Ministério Público, os Advogados e os demais profissionais da área forense,
porque melhor do que ninguém têm consciência da necessidade de encontrar soluções para os
problemas estruturais e conjunturais do sistema de Justiça português.
Entre esses problemas, conta-se o da morosidade e o da excessiva pendência, não raro
consequências de uma enorme complexidade das soluções jurídicas gizadas.

19
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Por isso, nos últimos anos, e especialmente a partir de 2011, pelas vicissitudes que todos
conhecemos, temos assistido, em Portugal, a um enorme esforço de simplificação e de
desformalização de muitos dos institutos jurídicos, com especial enfoque no âmbito do
processo civil, que, como é sabido, foi objeto de uma profunda reordenação traduzida na
aprovação do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho,
entrado em vigor no passado dia 1 de setembro de 2013.
Com efeito, uma das maiores exigências – e mesmo urgências – da sociedade portuguesa
é, precisamente, a de ter um sistema de Justiça mais justo, mas também mais célere e mais
eficaz, que afaste, pelo seu próprio desempenho, a imagem generalizada, e nem sempre
equitativa, de que o funcionamento da Justiça é um obstáculo à vida das pessoas e das
empresas.
O Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica
assinado a 17 de maio de 2011 entre Portugal e a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu
e o Fundo Monetário Internacional, no que concerne ao sistema judicial, previu um vasto
conjunto de medidas destinadas a melhorar o funcionamento do sistema judicial e a aumentar
a eficiência desse mesmo sistema.
O Plano de reformas que foi estabelecido para a Justiça teve como desígnio,
reiteradamente afirmado pelo decisor político, não apenas melhorar a prestação e a
administração da justiça, mas também fazê-la mais simples e entendível pelo cidadão, mais
transparente e mais dotada de instrumentos que permitam que se gere uma verdadeira
cultura de prestação de contas no sistema judiciário.
Não obstante, importa recordar que estas reformas surgem num contexto muito
específico, já que, no âmbito da execução do memorandum de entendimento antes referido, o
Governo assumiu fortes compromissos estruturais na área da Justiça, que passam por alterar a
organização judiciária, intervir por forma a reduzir a pendência processual em atraso, em
especial na área da Execuções, e promover a revisão do Processo Civil.
Na vertente do processo civil, a que nos ocupa nesta intervenção, identificavam-se
dificuldades na valoração da materialidade das causas e eram possíveis arrastamentos legais –
eventualmente não legítimos - dos pleitos.
Nesta medida, a reforma do processo civil, cujo texto, por opção política, acabou por se
reconverter num código novo, para benefício dos utilizadores, veio introduzir medidas que
visam quer a celeridade processual e a definição concreta, numa fase inicial tanto quanto
possível, dos momentos mais relevantes no processo, quer um maior poder de intervenção do
juiz.

20
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Não me alongarei a referir os aspetos mais relevantes do Novo Código.


Todavia, e cuidando de responder ao convite que me foi dirigido para testemunhar,
durante os próximos minutos, o enorme esforço que tem sido empreendido no nosso país,
com o envolvimento de todos os parceiros judiciários, em torno das “novas” tendências do
processo civil, procurarei destacar as principais medidas de simplificação e de desformalização
adotadas, que estão a permitir alcançar resultados muitíssimo significativos no combate à
pendência processual em atraso, particularmente no domínio da ação executiva.
No âmbito da ação declarativa, uma dessas medidas tem que ver com a consagração do
dever de gestão processual.
Este dever, previsto no artigo 6.º, do CPC, contribui para a simplificação processual na
medida em que, determinando que o juiz deve “dirigir ativamente o processo e providenciar
pelo seu andamento célere”, lhe dá poderes para “recusar o que for impertinente ou
meramente dilatório” e para adotar “mecanismos de simplificação e agilização processual que
garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.
Trata-se, por isso, de um poder-dever ao qual o juiz deverá recorrer (ouvindo as partes)
sempre que considere existir uma solução que simplifique e agilize o processo, garantindo a
justa composição do litígio.
Outra medida de simplificação prevista no novo CPC é a consagração da forma única do
processo comum declarativo (que substituiu as formas ordinária, sumária e sumaríssima),
uniformizando prazos para a prática de atos. Esta medida deve ser analisada, naturalmente,
tendo em conta a já referida consagração do dever de gestão processual, que permite ao juiz
“adaptar” a forma única às circunstâncias de cada processo em concreto.
Por outro lado, ao conferir mais amplos poderes de gestão processual ao juiz, o Legislador
pôde prescindir de alguns processos especiais, pois agora é possível adaptar a marcha da única
forma de processo às necessidades do caso concreto de molde a obter uma melhor e mais
eficiente composição da contenda.
Por isso, procedeu-se à eliminação de diversos processos especiais que estavam previstos
no anterior CPC:
 Reforço e substituição das garantias especiais das obrigações;
 Expurgação de hipotecas e da extinção de privilégios;
 Venda antecipada de penhor;
 Reforma de documentos;
 Reforma de livros;
 Liquidação judicial de sociedades.

21
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Ainda nesta sede, procedeu-se a revogação de dois regimes processuais que se


encontravam previstos em diplomas autónomos: o Regime Processual Civil Experimental e o
Regime de Processo Civil Simplificado.
Em termos de marcha processual, outra das medidas simbólicas no que respeita à
tentativa de simplificação, bem como à obtenção de uma maior celeridade, foi a consagração,
como regra geral, da existência de apenas dois articulados durante o processo – a petição
inicial e a contestação – nos quais se devem concentrar as grandes questões a discutir.
Para tal limitou-se a possibilidade de apresentação de réplica aos casos de dedução da
defesa quanto à matéria da reconvenção, deixando esta de ser admissível para responder às
exceções deduzidas (as quais devem ser respondidas em articulado superveniente, ficando por
isso à consideração do juiz a sua aceitação), e eliminou-se a possibilidade de apresentação de
tréplica.
Outra matéria onde se inovou, quer em termos de maior simplificação de procedimentos,
quer no domínio da celeridade, é a da nova disciplina da citação.
Estudos recentes concluíram que cerca de 50% do tempo de duração de um processo
corresponde ao período que decorre desde que a citação “sai” pela primeira vez do tribunal
até ao momento em que se considera o réu citado. É, portanto, claramente uma matéria onde
era e é possível melhorar.
Por isso mesmo, ao nível da citação das pessoas coletivas, o novo CPC introduz mudanças
significativas, passando a citação a ser efetuada por carta registada com aviso de receção para
a morada constante do ficheiro central de pessoas coletivas do Registo Nacional de Pessoas
Coletivas.
Adota-se um regime semelhante ao que existia para o domicílio convencionado, sendo
por isso um regime que responsabiliza as pessoas coletivas, mas que se baseia numa obrigação
que estas já tinham anteriormente, que é a de manter atualizada a morada constante do
referido ficheiro central.
Relativamente à citação de pessoas singulares, o regime previsto no novo CPC é
essencialmente idêntico ao anteriormente em vigor, com uma inovação que se justifica,
precisamente, pela simplificação - no caso de citação edital por incerteza do lugar em que o
citando se encontra, os anúncios são publicados já não em jornais, mas num site, alargando-se
assim a todos os processos a solução anteriormente prevista no Regime Processual Civil
Experimental.

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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Uma das matérias do novo CPC que pode suscitar mais discussões jurisprudenciais e
doutrinárias, até porque o próprio Código parece dar uma larga margem para interpretação
deste conceito, é o dos temas de prova.
Não procuro antecipar um tema, que vai ser objeto de oportuna discussão amanhã, mas
parece-me importante referir que o referido conceito, ao abandonar uma visão rígida da
alegação e prova dos factos, ainda sob influência do conceito dos “quesitos”, em prol de uma
visão mais ampla e ágil, pode contribuir, em função do modo como se concretizar esse
conceito a nível jurisprudencial e doutrinário, para decisões materialmente mais justas (sendo
a justeza das decisões o grande objetivo pretendido atingir com esta alteração), mas pode
contribuir também, e em simultâneo, para a simplificação e agilização processual.
Outro dos aspetos em que a nova disciplina da ação declarativa pretendeu simplificar e
desformalizar procedimentos tem a ver com a nova regulação da audiência prévia.
Essa preocupação é evidente na alínea e), do n.º 1, do artigo 591.º, quando determina
que um dos objetivos da audiência prévia é “(d)eterminar, após debate, a adequação formal, a
simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo
547.º” do novo Código de Processo Civil.
Mas essa preocupação também está presente quando, na alínea g), do mesmo número, se
prevê igualmente como fim da audiência prévia “(p)rogramar, após audição dos mandatários,
os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração
e designar as respetivas datas”.
Trata-se de uma medida de calendarização da audiência final (anterior audiência de
julgamento) que, acreditamos, contribuirá para uma melhor gestão do processo por parte não
só do tribunal mas também das partes, permitindo-lhes conhecer melhor e por isso prever
melhor o desenrolar do processo, antecipando constrangimentos que poderão surgir numa
fase posterior, e com isso evitando-os, nomeadamente através do recurso a mecanismos de
simplificação ou agilização processual que sejam considerados adequados.
Para além disso, esta calendarização permitirá convocar outros intervenientes
(nomeadamente testemunhas e peritos) apenas para o dia e para a hora em que de facto têm
que intervir no processo, podendo assim contribuir para reduzir o número de situações em
que ocorrem deslocações inúteis aos tribunais.
Nesta breve resenha das medidas de simplificação introduzidas pelo novo Código de
Processo Civil, uma referência é, ainda, devida ao regime da prova testemunhal e ao facto de a
regra geral passar a ser a apresentação das testemunhas pela parte, procedendo o tribunal à
sua notificação apenas nos casos em que tal seja requerido. Criam-se assim condições para

23
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

libertar os tribunais, nomeadamente as secretarias, de um conjunto significativo de


notificações.
No entanto, a maior inovação nesta matéria no que à simplificação diz respeito talvez seja
a introdução de um novo meio de prova, ou se quiserem, de uma nova modalidade da
inspeção judicial: a verificação não judicial qualificada (regulada no artigo 494.º, do novo CPC).
Esta nova modalidade permite ao juiz determinar que, em situações onde é possível a
realização de inspeção judicial, mas o juiz considere que não se justifica a perceção direta dos
factos pelo tribunal, se realize uma verificação através de técnico ou pessoa qualificada (que,
em função do caso concreto, até pode ser um funcionário judicial, por ex.).
Esta solução, ao “desformalizar” os requisitos da inspeção judicial, permitindo que a
inspeção seja feita por terceiro, contribui também para a simplificação e para a agilização
processual, libertando o tribunal para outras atividades sem colocar em causa a realização da
inspeção e os benefícios que dela se podem tirar.
Outra das alterações previstas no novo CPC e que tem reflexos ao nível da simplificação e
agilização processual é a eliminação da dicotomia julgamento/alegações de facto e alegações
de direito, realizadas em momentos diferentes. No novo CPC, estas alegações ocorrem num
único momento, no termo da audiência final, com as alegações finais, que condensam as
anteriores alegações de facto e de direito, não havendo lugar a uma decisão prévia sobre a
matéria de facto.
Também ao nível do regime da prática de atos pelos mandatários se registaram algumas
medidas de simplificação processual, em especial a determinação da prática de atos pelos
mandatários exclusivamente por via eletrónica (conforme o disposto no artigo 144.º, do novo
CPC).
Esta solução permite uniformizar os prazos e regimes das notificações entre mandatários
(agora efetuadas exclusivamente através da aplicação informática), libertando o tribunal de
várias atividades como o controlo da realização das notificações entre mandatários.
No que respeita às providências cautelares, a maior alteração será porventura a previsão
da possibilidade de inversão do contencioso, ou seja de, em determinadas circunstâncias, o
juiz dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal.
Estamos assim perante uma medida que possibilita a obtenção de uma composição
definitiva do litígio sem que seja necessário intentar um novo processo judicial, sendo por isso
também uma clara medida de simplificação processual.

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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Outra medida que importa, neste contexto, referir é a consagração da possibilidade,


prevista no artigo 146.º, do suprimento de deficiências formais de atos das partes.
Trata-se de um mecanismo de agilização processual que não tinha correspondência no
CPC anterior, e que permite a retificação de certos erros, vícios ou omissões, por decisão do
juiz e a requerimento das partes, desde que a falta não se possa imputar a dolo ou culpa grave
e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o regular andamento da
causa.
Outro mecanismo de simplificação processual foi a eliminação da figura da interrupção da
instância. O CPC anterior previa a interrupção da instância quando o processo estivesse parado
durante mais de 1 ano. Caso a instância estivesse interrompida durante 2 anos, considerava-se
a instância deserta, o que levava a que o processo tivesse que estar parado durante 3 anos
para que fosse considerado como tal. Estes prazos, pela sua largueza, não estavam de modo
nenhum ajustados à necessária celeridade que se pretende imprimir ao sistema de justiça, pois
um dos pressupostos de uma decisão justa é precisamente e também a existência de uma
decisão tão pronta quanto possível.
Com a eliminação da figura da interrupção da instância e com o encurtamento do prazo
de deserção da instância para 6 meses (no seguimento de anteriores medidas adotadas no
âmbito da ação executiva), procedeu-se a uma muito significativa agilização da figura da
deserção, responsabilizando-se as partes pela sua atuação no processo de modo muito mais
consequente.

Senhoras e Senhores,

Referimos a ação executiva.


De forma tão isenta quanto possível há que reconhecer que a reforma da Ação Executiva,
desenvolvida num passado próximo, se traduziu em pouco mais do que num complexo vazio
organizativo, sem agentes de execução capazes de realizar os serviços que haviam recebido,
sem que a Administração Pública cooperasse com esses intervenientes processuais e, acima de
tudo, alongando o circuito da tramitação, encarecendo o serviço e sem resultados práticos
evidentes.
O processo executivo requeria, pois, particular atenção porquanto se impunha reduzir,
significativamente, as pendências cíveis em atraso e criar as condições para que os processos
se concluam em tempo útil e razoável, dando adequada resposta às expectativas, não só
sociais, como económicas.

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Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

De facto, como é tragicamente sabido, a dinâmica social e económica que modela a


sociedade portuguesa potenciou o sobre-endividamento das famílias e das empresas,
acarretando consequências penosas de comportamentos de ostentação, aliados a baixíssimos
níveis de poupança, ao crédito fácil e à escassez de atividades produtivas geradoras de riqueza
real, que, no conjunto, quase hipotecaram o nosso futuro.
É neste contexto que avultam os níveis de incumprimento das obrigações contraídas,
tanto das empresas como dos particulares, aumentando significativamente a atividade
jurisdicional relativa à cobrança de créditos.
As estatísticas da Justiça estão aí, para o comprovar: em 31 de dezembro de 2012, as
ações executivas cíveis representavam 73% do total de processos pendentes nos tribunais
judiciais de 1.ª Instância.

A 30 de junho de 2013, estavam pendentes 1.153 mil ações executivas.


Mas as estatísticas da justiça do segundo trimestre deste ano também revelam algo que
há muito não observávamos: um decréscimo de 4,9% face ao primeiro trimestre de 2013,
assistindo-se a uma redução de 59.364 ações executivas cíveis pendentes nos tribunais
judiciais de 1.ª instância.
Esta tendência, já iniciada no final de 2012 e reforçada no primeiro trimestre deste ano,
contrasta com o comportamento de sucessivos aumentos registados até então.
A taxa de resolução processual, que mede a capacidade do sistema enfrentar a procura e
que desejavelmente deve ser igual ou superior a 100%, atingiu neste segundo trimestre de
2013 o valor inédito de 190,3%.
Considerando os períodos homólogos desde 2007, a evolução observada foi a mais
favorável de todos os períodos.
A redução fica a dever-se de forma clara ao elevado número de processos findos, que
conseguiram ultrapassar largamente o número de processos entrados.
Estes resultados são o efeito do enorme esforço que tem sido desenvolvido, desde o final
de 2011, pelo Ministério da Justiça em estreita articulação com as demais entidades com
responsabilidade no âmbito da ação executiva.
Com efeito, em finais de 2011, por despacho da Ministra da Justiça foi constituído um
grupo de trabalho, que eu tive a oportunidade e o privilégio de coordenar, o qual tem reunido
regularmente e onde participam, além de diversos serviços do próprio Ministério, o Conselho
Superior da Magistratura, a Câmara dos Solicitadores, o Colégio da Especialidade dos Agentes
de Execução e a Comissão para a Eficácia das Execuções.

26
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Este grupo tem dinamizado um conjunto alargado de medidas operacionais,


administrativas, técnicas e legislativas que evidenciam agora de forma expressiva os seus
efeitos: desde o desenvolvimento de novas funcionalidades nos sistemas informáticos de
suporte à atividade dos tribunais e dos agentes de execução, à promoção de novas
metodologias de trabalho e de reorganização de recursos humanos, passando por ações de
formação e de acompanhamento dos agentes de execução e pela concepção de um conjunto
de medidas legislativas pontuais e direcionadas aos problemas detetados, de que o sistema
carecia para libertar os tribunais de processos inviáveis.
Com a aprovação do novo Código de Processo Civil, os resultados favoráveis que já se
observam terão tendência, segundo cremos, para se manter e, até, para melhorar.
Com efeito, de entre todas as medidas de simplificação e desformalização adotadas na lei
em vigor, talvez se possa erigir como uma das mais relevantes a operacionalização do regime
das penhoras eletrónicas de contas bancárias, que, estando já prevista há muito, nunca tinha
logrado alcançar o seu propósito, por inúmeras dificuldades atinentes à sua operacionalização.
Sucede que, na verdade, o regime anterior não oferecia regras firmes que permitissem
aos agentes de execução saber que contas bancárias dispunham de saldos aptos a serem
penhorados, nem estavam definidos claramente quais deveriam ser os procedimentos a
adotar para tornar efetiva essa mesma penhora por meios eletrónicos.
Ora, sucede que, à luz dos artigos 749.º, n.º 6 e 780.º, do CPC toda essa “matéria escura”
foi dissipada, tendo-se instituído, de um lado, o dever de o Banco de Portugal facultar aos
agentes de execução informação sobre a existência, ou não, de contas bancárias abertas em
nome de um executado determinado, e do outro, o poder de o agente de execução ordenar,
também por via eletrónica, às instituições de crédito nas quais tais contas se encontram
abertas, o bloqueio dos saldos existentes, observadas certas condições e dentro de
determinados limites, impostos para tutela dos legítimos interesses dos executados.
A este propósito e para demonstrar a relevância desta medida, julgo revestir a maior
importância falar-vos dos dados que foi possível obter com a colaboração da Câmara dos
Solicitadores nesta matéria e que nos permitem perceber que, desde a entrada em vigor do
novo Código e até 31 de dezembro, já foram realizados 339.563 pedidos de bloqueio, dos
quais resultaram 49.494 contas bloqueadas para um montante global de €123.216.109,53.
Dos bloqueios realizados foram convertidos em penhora 22.374 pedidos, num montante
global de €48.591.570,66.

27
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Os números, pela sua simplicidade, falam por si: trata-se de um instituto que,
seguramente, permitirá recuperar muito mais facilmente créditos devidos aos credores, com a
inerente redução de custos derivada de todo o processado se efetivar por via eletrónica, o
que, obviamente, conduz a uma simplificação de procedimentos e a uma desformalização
ímpares neste domínio.
Outra das áreas em que a simplificação e a desformalização do processo civil mais se fez
sentir com a reforma resultante do novo processo civil prendeu-se com a forma de instauração
da ação executiva e a desnecessidade que passou a existir de se intentar uma nova ação
executiva quando já tenha sido instaurada ação declarativa com o intuito de se fazer
reconhecer um qualquer direito e este haja sido declarado pelo tribunal através de sentença.
Nestas situações, deixa de ser necessário propor-se ação para tornar efetivo o que o
tribunal já declarou, tramitando a execução nos autos em que correu a ação declarativa.
Este mecanismo, agora regulado no artigo 85.º, do novo CPC, é o elo de ligação que
muitos reclamavam faltar entre a declaração de um direito e a sua execução, e que agora o
Legislador consagrou, para evitar a ocorrência de atos inúteis nos processos, que, já tendo sido
praticados na fase declaratória, não carecem de ser repetidos na fase executiva.
Também com o intuito de simplificar e clarificar procedimentos e a marcha processual da
ação executiva, merece realce a reintrodução na ordem jurídica interna da clara destrinça
entre a forma sumária e a ordinária nas execuções para pagamento de quantia certa, prevista
no artigo 550.º, do novo CPC, tendo-se visado pôr fim a uma aparente simplificação da forma
do processo executivo que não passava disso mesmo: uma aparência simplificadora.
Se à luz do anterior regime, que propalava só existir uma única forma de ação executiva,
toda a marcha processual era uma espécie de “caixinha de surpresas”, que variava mediante
diversos circunstancialismos, o que complicava de sobremaneira a compreensão da marcha do
processo, a lei passa agora a marcar claramente quais são os passos a observar em cada uma
das referidas formas processuais, afirmando a que títulos executivos fortes corresponde uma
forma de ação mais simplificada e vice-versa.
Um outro formalismo combatido pelo novo CPC é a existência na ordem jurídica de ações
executivas ainda vivas que, na verdade o já não deveriam estar, pois que ou já produziram os
seus efeitos e os credores encontram-se a receber regularmente as importâncias que servem
para pagamento do que lhes é devido ou não são justificáveis porque os executados não
dispõem de bens para que a satisfação dos créditos dos exequentes se possa efetivar.

28
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Assim, o Legislador cuidou de clarificar que seja pela inexistência de bens do executado,
seja pelo facto de estarem em curso penhoras atinentes a rendimentos periódicos, o novo
Código de Processo Civil, mantendo as causas de extinção da execução vigentes no regime
anterior, acrescentou três novas situações, que vêm, precisamente, permitir a redução das
pendências nos tribunais cíveis, fazendo face a estas situações que aumentavam de forma
injustificada a pendência nos tribunais.
Com efeito, o artigo 849.º, do novo Código de Processo Civil, relativo à extinção da
execução, acrescenta às causas de extinção da ação executiva as seguintes situações:

 Na fase da penhora, se não forem encontrados bens penhoráveis no prazo de três


meses a contar da notificação do início das diligências para a penhora e se nem o
exequente nem o executado indicarem bens penhoráveis no prazo de 10 dias,
extingue-se - sem mais - a execução;
 No que concerne à penhora de rendas, abonos, vencimentos ou salários, findo o prazo
de oposição, se esta não tiver sido deduzida, ou julgada a oposição improcedente, caso
não sejam identificados outros bens penhoráveis, o agente de execução, depois de
assegurado o pagamento das quantias que lhe sejam devidas a título de honorários e
despesas, adjudica as quantias vincendas, notificando a entidade pagadora para as
entregar diretamente ao exequente, extinguindo a execução;
 No caso de concurso de credores, e verificando-se uma pluralidade de execuções sobre
os mesmos bens, a sustação integral da segunda execução determina a extinção da
execução, sem prejuízo de o exequente poder requerer a renovação da instância
quando indicar os concretos bens a penhorar.

O objetivo de simplificação processual não conduziu, porém, o Legislador a afrouxar as


suas preocupações com a salvaguarda dos mais legítimos direitos dos executados, pelo que
esta reforma também procurou, sempre que tal foi considerado necessário, reforçar as
garantias que aos mesmos são devidas.
Assim, e para ilustrar com um exemplo o que se acaba de referir, sublinho que uma das
medidas mais relevantes tomadas ao nível da ação executiva no reforço dos direitos dos
executados prendeu-se com a perda da força executiva dos documentos particulares,
assegurando-se, desta forma, a garantia contra execuções injustas, fundadas, tantas vezes, em
escritos de compreensão e validade muito questionáveis.

29
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

A não exequibilidade de documentos particulares incute, claro está, uma maior segurança
jurídica nas ações executivas, evitando oposições para discussão do documento particular e da
relação subjacente ao mesmo.
Os documentos particulares que importem a constituição ou reconhecimento de qualquer
obrigação, para valerem como título executivo, deverão ser exarados ou autenticados por
notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, a bem da certeza e
da segurança jurídicas.
Por outro lado, ao abrigo do novo Código de Processo Civil e com o especial intuito de
simplificar a muitos o acesso ao sistema de justiça, os particulares podem agora recorrer aos
funcionários judiciais para cobrarem dívidas não profissionais até aos dez mil euros.
Tratando-se de trabalhadores, essa possibilidade alarga-se às execuções destinadas à
cobrança de créditos laborais até trinta mil euros.
Regista-se, pois, que o Legislador, a par de preocupações de simplificação e de
desformalização processual, não esqueceu, como, de resto, se impõe, que é necessário
reforçar os mecanismos de acesso ao direito e à justiça.

Senhoras e Senhores,

Após este excurso, já longo, sobre algumas das medidas que me parecem mais relevantes
no que tange à simplificação e desformalização no âmbito do processo civil, foco central desta
intervenção, não posso deixar de assinalar que o esforço simplificador não se limitou ao direito
processual civil, havendo, noutras áreas do sistema de justiça, afloramentos claros destas
tendências.
O novo processo especial de revitalização, um procedimento simples e altamente
desformalizado criado pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, que alterou o Código da Insolvência
e da Recuperação de Empresas, que tem provado contribuir para a recuperação de um
número significativo de empregos e de empresas e a reforma em curso do Código do
Procedimento Administrativo (CPA), com o objetivo de modernizar o funcionamento da
Administração no seu relacionamento com os cidadãos e assim conseguir que a Administração
Pública portuguesa, com total transparência e isenção, se paute por critérios de eficiência,
celeridade e economicidade, pondo-se termo à morosidade que desincentiva tantas vezes os
nossos agentes económicos ao investimento são, apenas, dois exemplos de áreas em que se
adotaram ou procuram adotar procedimentos simplificadores.

30
Tendências do Processo Civil: desformalização e simplificação

Mas se competitividade do país e o futuro de Portugal não dispensam a ousadia de


empreender, a qual passa, também, pela simplificação de procedimentos, em ordem a atingir
uma resposta mais célere, imporá terminar, recordando, que a plena concretização do
conceito de cidadania também exige, particularmente ao decisor político e ao legislador que
jamais esqueçam que a justiça é, como lembra Rawls, a carta fundamental de uma sociedade
humana em boa ordem!

Muito obrigada!

31
Videogravação da comunicação

32
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a
gestão dos processos

[Ana Isabel de Azeredo Coelho]


Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Dever de gestão processual. A gestão do processo e a


gestão dos processos
Ana Isabel de Azeredo Coelho

RESUMO

O texto aborda a gestão processual em duas dimensões: a gestão de cada processo e a


gestão de um conjunto de processos, considerando que estas duas dimensões são vertentes
de um mesmo percurso: o da preocupação com a qualidade da decisão judicial e da efetiva
gestão do Judiciário pelo juiz, em cada processo e na organização/tribunal.
Entende-se que o dever de gestão processual previsto no artigo 6.º do CPC 2013 não se
reduz à aplicação perita das leis processuais, mesmo através da adequação formal, antes tem
conteúdo autónomo que decorre do comando em que se consubstancia: o juiz tem o dever de
dirigir ativamente o processo em ordem a obter com eficiência a composição justa e célere
do litígio.
A autonomia da gestão do processo face à mera aplicação de normas processuais torna
útil e adequado o recurso aos instrumentos da gestão considerando a missão do processo, a
visão que decorre da conformação que lhe é dada pelo sistema jurídico, os valores que o
enformam para definição da estratégia expressa em objetivos operacionais e ações.
Para além do bom uso das normas processuais, o juiz do processo tem de considerar
todos os recursos afetos à atividade administrativa que é suporte da sua atividade
jurisdicional, sendo também um gestor dos meios públicos e responsável pelo modo como os
mesmos são por si, ou sob a sua direção, geridos.
A gestão processual a que o juiz está obrigado não é apenas a gestão do processo
individual mas também a de todos os processos que lhe estão distribuídos, entre os quais se
verifica uma concorrência e interdependência de recursos.
Esta dimensão apela para a complementaridade das competências pois a gestão
processual é cometida ao juiz em exercício de funções jurisdicionais – o titular do processo -,
mas também aos juízes em exercício de funções de gestão – o juiz presidente e o juiz
coordenador, no modelo de gestão das Leis 52/2008 e 62/2013 -, acrescendo as competências
dos órgãos da administração pública da justiça.

35
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

As competências de gestão processual do juiz presidente têm a sua fonte nos critérios que
enformam a gestão do processo, o que determina a centralidade das competências dos juízes
em exercício de funções jurisdicionais. As competências do juiz presidente surgem como mero
facilitador organizacional.
Descrevendo a experiência concreta da comarca da Grande Lisboa Noroeste, a mesma é
considerada apenas ao nível da própria comarca, prescindindo da interação com órgãos
externos, e isola um aspeto crítico da qualidade do sistema – a duração do processo.
Baseando-se no exercício colegial das competências dos juízes com funções de gestão e dos
juízes com funções jurisdicionais, e intervém a diversos níveis de organização do trabalho e das
tarefas, no pressuposto da unidade do tribunal/organização e da instrumentalidade das
funções administrativas face à função jurisdicional.
A dimensão e assunto central não permitem abordar senão indiretamente as
condicionantes organizacionais e processuais que se refletem negativamente no exercício de
uma efetiva gestão processual, desde o modo de organização do sistema judiciário macro, à
indefinição de lideranças, à vetustez das estruturas ou à inexistência de um sistema de
informação para a gestão, mas esses fatores são essenciais.

I) A GESTÃO PROCESSUAL: DIMENSÕES

Enfrentando o tema «dever de gestão processual» procurámos na legislação publicada a


expressão numa primeira tentativa de perceber o modo como o legislador conforma a gestão
processual.
O conjunto de diplomas1 em que a expressão aparece pode dividir-se nos seguintes
grupos de afinidade: aqueles em que gestão processual tem o sentido de gestão de
1
Lei n.º 127-A/97. DR 293/97 SÉRIE I-A 1º SUPLEMENTO de 1997-12-20; Lei n.º 3-A/2000. DR 80 SÉRIE I-A 1º
SUPLEMENTO de 2000-04-04; Lei n.º 107-A/2003. DR 301 SÉRIE I-A 1º SUPLEMENTO de 2003-12-31; Portaria
n.º 1067/2004. DR 201 SÉRIE I-B de 2004-08-26; Decreto-Lei n.º 108/2006. DR 111 SÉRIE I-A de 2006-06-08;
Portaria n.º 349/2007. DR 64 SÉRIE I de 2007-03-30; Portaria n.º 593/2007. DR 92 SÉRIE I de 2007-05-14;
Resolução do Conselho de Ministros n.º 106/2007. DR 156 SÉRIE I de 2007-08-14; Lei n.º 66-B/2007. DR 250
SÉRIE I, 1º SUPLEMENTO de 2007-12-28; Portaria n.º 99/2008. DR 22 SÉRIE I de 2008-01-31; Portaria n.º
114/2008. DR 26 SÉRIE I de 2008-02-06; Resolução do Conselho de Ministros n.º 66/2008. DR 73 SÉRIE I de
2008-04-14; Portaria n.º 457/2008. DR 118 SÉRIE I de 2008-06-20; Lei n.º 52/2008. DR 166 SÉRIE I de 2008-
08-28; Decreto-Lei n.º 181/2008. DR 166 SÉRIE I de 2008-08-28; Portaria n.º 1538/2008. DR 251 SÉRIE I de
2008-12-30; Portaria n.º 419-A/2009. DR 75 SÉRIE I, 1º SUPLEMENTO de 2009-04-17; Portaria n.º 649-
A/2009. DR 111 SÉRIE I, 1º SUPLEMENTO de 2009-06-09; Resolução do Conselho de Ministros n.º 112/2012.
DR 252 SÉRIE I de 2012-12-31; Lei n.º 41/2013. DR 121 SÉRIE I de 2013-06-26; Lei n.º 45/2013. DR 126 SÉRIE

36
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

procedimentos burocráticos de um determinado serviço, aqueles em que gestão processual é


reportada ao sistema informático de tramitação eletrónica dos processos judiciais ou “afins”,
aquelesm que gestão processual se refere à gestão da tramitação de um concreto processo
judicial e aqueles em que gestão processual visa a gestão de um conjunto de processos
(unificado ou pelo órgão, jurisdicional ou para-judicial, a quem foram distribuídos, ou pela
afetação a uma unidade orgânica de tramitação processual, v.g. secção de processos, ou pela
afetação a uma comarca).
As normas que se referem à gestão processual reportada ao sistema informático de
tramitação dos processos judiciais, reconduzem-se afinal a um destes dois últimos grupos,
consoante está em causa a utilização do sistema para tramitar um processo ou as virtualidades
do mesmo para proporcionar dados e informação para a gestão de um conjunto de processos.
As normas que se reportam à gestão dos procedimentos burocráticos de um serviço
público podem aproximar um conceito de gestão organizacional que, reportada ao tribunal
enquanto entidade administrativa, não é sem influência, embora indireta, na gestão do
processo ou dos processos.
Em suma, dois conjuntos significativos de normas se perfilam: as que se reportam à
gestão do processo e as que respeitam à gestão global de um conjunto de processos. Com
incidência nos processos judiciais, integram o primeiro grupo a do artigo 6.º do CPC e suas
antecessoras, as dos artigos 265.º-A, e 31.º/3 do CPC na redação de 95/96 e 2.º do Decreto-Lei
108/2006, e o segundo grupo a do artigo 88.º da Lei 52/2008 (NLOFTJ) e sua sucessora, a do
artigo 94.º da Lei 62/2013 (LOSJ).
Não cabendo no âmbito deste texto uma revisão dos diversos aspetos em que possa
conceptualizar-se a gestão processual2, trataremos apenas de postular uma delimitação
descritiva e ponderar da sua concretização naquelas dimensões.
Tomaremos de empréstimo a delimitação estabelecida por (Schwarzer & Hirsch, 2013, p.
187) por referência às regras federais de processo civil dos EUA. Referem esses Autores:
«A gestão processual, no essencial, envolve a utilização pelo juiz das ferramentas que tem
ao seu dispor, com equidade e bom senso, por um modo que se adeque à sua personalidade e
estilo», em ordem a «assegurar a justa, célere e económica resolução de todas as ações”»
(nosso sublinhados e negrito).

I de 2013-07-03; Lei n.º 62/2013. DR 163 SÉRIE I de 2013-08-26; Portaria n.º 280/2013. DR 163 SÉRIE I de
2013-08-26; Resolução do Conselho de Ministros n.º 91/2013. DR 248 SÉRIE I de 2013-12-23.
2
Sobre várias definições de gestão processual ver (Alexandre, 2013).

37
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

A atual preocupação com a gestão processual nos Judiciários corresponde a uma nova
maneira de perspetivar a “eterna” preocupação: a qualidade da decisão judicial3.
Parafraseando (Frydman, 2007, p. 19) dir-se-ia que a questão da qualidade da decisão
judicial primeiro confinada à legalidade da decisão ou à sua proporcionalidade, sindicável pelo
sistema de recursos, prosseguiu com a consideração da argumentação como lugar de
legitimidade, vincando a necessidade de fundamentação, para desembocar na exigência do
processo equitativo e justo decidido em prazo razoável (e previsível) que é ainda
procedimental/processual mas é também, muito, organizacional.
Percurso que passa, assim, da sindicância da legalidade estrita para a da legitimidade
argumentativa e do processo à organização4.
O lugar da gestão processual – exigência de processo equitativo e justo decidido em prazo
razoável, previsível5 e com eficiência – convoca aquelas duas grandes áreas de densificação do
dever de gestão processual – a da gestão do processo e a da gestão dos processos.
Áreas que têm em comum a utilização de instrumentos de organização eficiente dos
recursos disponíveis em ordem à prossecução de uma finalidade.

3
(Jean, 2007, p. 30) refere os diversos níveis em que essa preocupação de espelha atualmente: a qualidade
dos sistemas judiciários, a qualidade dos processos judiciais e a qualidade da decisão judicial.
4
Cf. (Frydman, 2007, p. 19): «L’hypothèse que je développerai est celle d’un glissement progressif, dans la
théorie et dans la pratique contemporaines, d’une conception substantielle vers une conception procédurale
et à présent managériale de la qualité des décisions de justice, qui s’accompagne, sur le plan du contrôle,
d’une multiplication des modalités et des instances qui s’empilent en quelque sorte les unes sur les autres.
Pour le montrer, nous distinguerons cinq stades successifs au fil d’un parcours à marche forcée de l’histoire
des idées et des pratiques judiciaires. Nous partirons du contrôle de légalité classiquement confié à la Cour
de cassation (1) pour envisager ensuite le contrôle marginal de proportionnalité, caractéristique de la
jurisprudence sociologique (2). Nous verrons comment ce premier mouvement en amène d’autres, d’abord, à
la suite du tournant argumentatif, le développement du contrôle de motivation (3), puis, à la faveur du
tournant procédural, le contrôle du respect des guaranties du procès équitable, sous la haute autorité de la
Cour européenne des Droits de l’Homme (4) et enfin le contrôle de qualité proprement dit portant sur
l’administration et le fonctionnement de la justice (5)».
5
A CEPEJ vem insistindo nesta dimensão “temporal” do processo que é a previsibilidade da sua duração e o
conhecimento de tal pelas partes que é também compromisso do sistema. Cf. CEPEJ (2004) 19
(www.coe.int/CEPEJ).

38
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

II) A GESTÃO DO PROCESSO

A gestão do processo não é uma novidade. A gestão enquanto estratégia de abordagem e


solução de problemas, questões, situações de vida, é algo inerente à ação humana.
O processo é um problema, coloca questões e submete situações de vida a juízo. Nessa
medida gera estratégias. Estratégias de cada um dos intervenientes. E são muitos. Estratégias
das partes, desde logo, estratégias do juiz, estratégias das secções, estratégias das
testemunhas, dos peritos, das instituições que nele intervêm (v.g. Segurança Social, Direcção-
Geral de Reinserção Social, Instituto de Medicina Legal, etc, etc).
No meu estágio de iniciação conheci desde logo uma estratégia: «é preciso chutar a
bola». A metáfora futebolística pretendia transmitir que não devia o juiz ficar com a “batata
quente” na mão, que o mesmo é dizer, em versão culinária, que o processo não devia aquecer
na nossa secretária e dela devia sair, a bem ou a mal, em benefício de uma honrosa aposição
final do “ds”.
É uma gestão. Correspondia-lhe a bem descrita guerra secção/juiz de (Mendes, 2010),
com episódicos momentos de conciliação ou com tratados de paz duradouros, destinados a
conseguir que ambas as partes (juiz e secção) obtivessem a prossecução máxima das suas
finalidades.
Esta gestão não tem principalmente a ver com a malevolência dos intervenientes, mas
com “pecados sociais” ou “pecados organizacionais” relacionados com a ausência de
lideranças, com o anacronismo dos critérios de avaliação do desempenho individual, com a
ausência de critérios de desempenho organizacional, com errática e desintegrada afetação de
recursos. Enfim, com verdadeira falência de gestão do tribunal como organização e do
processo à sua finalidade, que o aumento quantitativo e qualitativo do recurso aos tribunais só
tornou mais patente.
A gestão do juiz tendia a gerir o despacho dos processos (muitos ou poucos) que lhe eram
apresentados pela secção com critérios determinados pelo Escrivão, mais ou menos
explicitamente.
A gestão do processo pelo juiz, numa metáfora parental que não paternalista, bastava-se
com um regime de visitas quinzenal (despachos de fundo) e alguns lanches ocasionais
(despacho de expediente), no termo do que, com sorte, o processo desembocava numa
maioridade por decurso do tempo, sem projeto educativo discernível, ou caía na
marginalidade dos incidentes sem fim à vista.

39
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

O que era potenciado por uma manifesta deficiência de informação quando o acervo
processual fosse de dimensão (no meu tribunal de ingresso os processos pendentes cabiam
em quatro mal cheias prateleiras de menos de um metro, o que constituía informação
manifestamente digerível por um juiz, mas não é sempre assim…), falta de informação
impeditiva de uma gestão digna desse nome.
A descrição caricatural passa-se no horizonte após a reforma da organização judiciária de
1987, com a constituição de uma autonomia hierárquica e inspetiva das secretarias, a
dissociação da avaliação de desempenho por corporações profissionais e não por organização
tribunal, acompanhada do aumento da litigância já referida e o consequente aumento
exponencial do número de processos pendentes nos tribunais.
As reformas organizativas subsequentes continuam a tentar contrariar esta tendência
(Mendes, 2010, p. 109 e ss) numa deriva inovatória/revogatória que ainda não cessou. As leis
processuais caminham, com idêntico propósito, para o paradigma do juiz ativo, efetivo gestor
do processo, embora com hesitações e contradições manifestas que mereceriam alguma
atenção6.
É esta procura do juiz ativo que expressam as normas do artigo 265.º-A, do CPC na
redação de 95/96 (CPC 95), do artigo 2.º do Decreto-Lei 108/2006 (RPCE) e do artigo 6.º do
CPC na redação da Lei 41/2013 (CPC 2013, constituindo afinal um elemento da política pública
de justiça.
Como referia o preâmbulo do Decreto-Lei 108/20067:
«Este regime confere ao juiz um papel determinante, aprofundando a conceção sobre a
atuação do magistrado judicial no processo civil declarativo enquanto responsável pela direção
do processo e, como tal, pela sua agilização. Mitiga-se o formalismo processual civil, dirigindo
o juiz para uma visão crítica das regras».
O atual artigo 6.º do CPC é herdeiro desta visão reportando-se à gestão de cada processo
pelo juiz que dele é titular, tanto genericamente, em termos de atitude do juiz perante o

6
A questão desenrola-se nas páginas da Revista Julgar, sendo amplamente debatida por (Gouveia, 2007) e
(Mendonça, 2007), retomada por (Matos, 2007).
7
Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional 132/2010: «Ou seja, pretendeu-se criar uma forma de processo
única sujeita ao princípio da gestão, aplicável a todos os tribunais cíveis a que não caiba regime especial.
Trata-se de uma tramitação flexível que funciona como uma espécie de paradigma e que não deve
prejudicar o dever de gestão processual. Esta tramitação única será tendencialmente aplicável aos processos
a que actualmente se aplica a forma de processo declarativo comum, consequentemente o elemento
relevante para o mencionado Decreto-Lei é a forma de processo e não a competência do tribunal».

40
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

processo, como na regulação concreta de determinadas atuações que o legislador entende


exprimirem essa atitude.
O que coloca a questão da autonomia do dever de gestão processual relativamente aos
atos em que se traduz. Autonomia ou falta dela que se coloca com especial incidência quanto
ao dever de adequação formal8.
Desde logo, a interrogação sobre a autonomia desse dever face ao conteúdo próprio da
missão do juiz: a decisão dos casos concretos submetidos, em obediência única à Constituição
e à lei, nomeadamente à lei processual. Confunde-se o dever de gestão processual do processo
com a aplicação perita das leis processuais (adequadas à adjetivação das substantivas) ao caso
concreto submetido?
O dever de gestão processual do processo, com esta denominação, surgiu na lei com o
artigo 2.º9 do Decreto-Lei 108/2006.
Esta norma reafirmou o princípio da direção do processo pelo juiz e apelou, nas suas
alíneas b) e c), ao seu exercício mediante a aplicação da lei processual, sem qualquer
autonomia de outras normas para as quais aliás remete: proibição de atos inúteis e
simplificação e agilização previstas na lei. Ou seja, mais chamada de atenção, do que novidade.
Na sua alínea a) a norma é mais promissora ao apelar à adequação formal. Promissora
sobretudo pelo espírito do Decreto-Lei em que se insere, já que a adequação formal já se
encontrava prevista no anterior artigo 265.º-A do CPC 95/9610.
É sobretudo o carácter experimental do diploma, que se anuncia destinado a conformar a
futura revisão do CPC, e a aplicação empenhada que dele foi feita11 que vão constituir
novidade.
A gestão processual nasce, assim, colada à adequação formal, confundindo-se com ela,
agregando sobretudo regras de boa utilização das normas processuais.

8
Cf. (Alexandre, 2013) e (Faria, s.d.) CEJ.
9
Norma com o seguinte teor: «O juiz dirige o processo, devendo nomeadamente:
a) Adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma
dos atos processuais ao fim que visam atingir;
b) Garantir que não são praticados atos inúteis, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório;
c) Adotar os mecanismos de agilização processual previstos na lei».
10
Sobre história do preceito e (des)necessidade de acordo das partes (Brito, 1997) que a este respeito cita o
preâmbulo do Decreto-Lei 180/96 quando explica o afastamento da necessidade de acordo das partes: «a
adeauação não visa a criação de uma espécie de processo alternativo, da livre discricionariedade dos
litigantes, mas possibilitar a ultrapassagem de eventuais desconformidades com as previsões genéricas das
normas de direito adjectivo».
11
Ver (Faria, 2009).

41
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Cremos, porém, que a gestão do processo ultrapassa em muito a adequação formal,


mesmo se os atos de adequação formal são um dos conteúdos da gestão do processo. O que a
actual inserção sistemática da adequação formal – artigo 547.º – tão bem exprime.
Analisando a atual norma.
Compreendendo a utilidade prática da partição da norma do artigo 6.º proposta por
(Faria, s.d.), afigura-se que em sede de consagração do dever de gestão processual esta norma
contém um único comando:
O juiz deve «dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere».
Mas assim confrontados com o comando podemos perguntar: Porquê? Para quê?
Lembremos o passeio de Carlos e do Ega pelo Aterro, no final de Os Maias, jurando,
ambos, não sair, «por fortuna ou império», do «passinho lento, prudente, correto, que é o
único que se deve ter na vida» e assim assentando a «teoria definitiva da vida»: «não vale a
pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma». Teoria firme que a prática
imediata infirma quando se lançam em vibrante corrida para apanhar o Americano que surgia
ao fundo da ladeira, para irem a … lado nenhum.
Não é assim com a gestão do processo. O CPC não nos manda correr para o Americano
sem destino, antes estabelece a razão da corrida que é aqui metáfora da celeridade.
Fá-lo no final do n.º 1 do artigo 6.º estabelecendo a finalidade «a justa composição do
litígio em prazo razoável».
Ou no artigo 7.º, em sede de dever de cooperação: «concorrendo para obter com
brevidade e eficácia a justa composição do litígio».
Um breve parêntesis para referir que a menção da eficácia tem na norma o sentido de
eficiência, ou seja, utilização mínima de recursos necessários à prossecução do fim. Só assim a
menção é útil pois entendida como obtenção dos resultados seria tautológica.
Eficiência12 que, em termos estritamente processuais, aflora como princípio da tramitação
processual, no artigo 130.º, e na forma dos atos, no artigo 131.º. Estas normas integram o
comando relativo ao dever de gestão processual: «dirigir ativamente o processo e providenciar
pelo seu andamento célere»13.

12
Cf. (Brito, 1997, p. 37): «deve empregar-se o mínimo de actividade para se atingir o máximo resultado
processual».
13
O artigo 6.º também indica, com alguma redundância, o que o legislador entende serem exemplos da
direção ativa – a) promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (entre as
quais se contam as necessárias ao «suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de
sanação»), b) recusa do que for impertinente ou meramente dilatório, c) adoção de mecanismos de
simplificação e agilização processual – mas esses são meros exemplos, não são a delimitação do dever.

42
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

A dimensão de eficiência aflorada quanto ao uso das normas e à forma dos atos, perpassa
em termos mais vastos o dever de gestão, alargando-o a dimensões já não estritamente de
aplicação normas processuais mas de organização e utilização do conjunto dos recursos
disponíveis – humanos, materiais e tecnológicos.
Com o que temos delimitado o dever de gestão processual do juiz enunciado no CPC
2013:
O juiz tem o dever de dirigir ativamente o processo em ordem a obter com eficiência a
composição justa e célere do litígio.
A autonomia deste dever de gestão (ou deste dever como gestão) implica uma
abordagem distinta da integração descritiva dos diversos atos em que se possa exprimir.
Ou seja, antes de saber se a gestão processual implica a simplificação ou abrange também
a complexificação14 do processo, se implica uma calendarização, se pode consubstanciar-se
num afastamento dos prazos legais ou das formas de notificação de atos ou para comparência,
temos de encarar aquele dever na sede em que se coloca: a gestão estratégica do processo,
norteada pelas regras específicas desta área do saber.
Pelo que é útil e adequado o recurso aos instrumentos de gestão holística desenvolvidos
nomeadamente para o sector público15 que se ajustam aos diversos níveis em que a gestão se
consubstancia.
Instrumentos que implicam a consideração da missão do processo, da visão que decorre
da conformação que lhe é dada pelo sistema jurídico, e dos valores que o enformam em
ordem à definição da estratégia empregue na sua gestão, definindo em concreto objetivos
operacionais e ações a empreender.
Consideração expressa nas perspetivas dos cidadãos em geral (conformação pela
comunidade dos princípios gerais do processo civil, considerando a função do Estado de
administração da Justiça e as finalidades prosseguidas), das partes em particular (princípios do
dispositivo, do contraditório, da proibição da indefesa, da igualdade), dos procedimentos
internos de funcionamento (regras processuais e administrativas), da aprendizagem e dos
recursos disponíveis (humanos – juiz, funcionários e serviços vários privados e públicos –,
materiais – equipamento, edifícios, etc – e tecnológicos – sistema informático e
equipamentos).

14
No sentido da admissibilidade (Freitas, 2013, pp. 174-175)
15
Cf. (Kaplan & Norton, 1996) definindo o Balanced Scorecard como instrumento de gestão e de definição
da estratégia organizacional em geral e (Kaplan, 2013) especificamente nas organizações não lucrativas.

43
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Instrumentos que permitem encarar a gestão do processo como atividade com autonomia
em relação à tramitação processual e que potenciam o seu efeito.
Deixa de fazer sentido então perguntar se a adequação formal se confunde com o dever
de gestão processual, pois naturalmente ambos encontram o seu campo de autonomia, sem
perderem a sua interligação. A adequação formal constitui um exercício de gestão processual
que é mais ampla do que aquele.
Como também deixa de ter sentido saber se o dever de gestão processual tem o seu lugar
ótimo nos litígios de massa ou na litigância nuclear16. A gestão é inerente à abordagem de cada
processo, diferindo naturalmente os conteúdos dessa abordagem.
Daí que, o dever de gestão processual, enquanto dever de gestão, beneficia de um
enquadramento autónomo do processual, com apelo às regras da gestão e aos instrumentos
diversos pela mesma proporcionados, dos quais se destacam pela sua adequação
instrumentos holísticos que partem da missão expressa em valores e da visão orientadora da
estratégia17 e da definição das ações a empreender18.

Assim, constitui-se ele próprio critério de aferição da adequação das opções processuais
do legislador.
Em termos gráficos poderíamos representar tal abordagem do seguinte modo:

16
Sobre o conceito, contraposto à litigância de massas (litígios de baixa densidade) (Matos, 2007, pp. 94-96
maxime).
17
Para uma leitura do processo enquanto estratégia (Teixeira, 2010).
18
(Kaplan & Norton, 1993)

44
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Alguns aspetos das perspetivas propostas


As perspetivas indicadas podem funcionar como pólos aglutinadores da reflexão e da ação
de gestão processual. A título de mera ilustração, salientaremos alguns aspectos, sem
preocupação de sistematização e integração.

Perspetiva dos cidadãos: a direção ativa


Ao impor um dever de direção ativa do processo pelo juiz o legislador toma claramente
posição quanto ao modelo de juiz que pretende vigore: um modelo de juiz cujos poderes de
direção são exercidos não apenas por promoção das partes (princípio do dispositivo) mas no
exercício de iniciativa própria (princípio do inquisitório).
Esta visão de juiz e esta noção de processo não é sem polémica19 e, diga-se, sem perigos,
assimilada que é a uma visão autoritária do processo de que o nosso CPC por interposto CPC
de 39 seria tributário.
Cremos que o juiz que “serve a solução” defendido por (Gouveia, 2007)20 é o juiz do
presente, sem prejuízo do notável contributivo reflexivo dado pelos que se preocupam com o
«vírus autoritário» (Mendonça, 2007).
Este juiz é o juiz que convive com manuais de boas práticas processuais21, que conforma a
tramitação do processo (simplificando-a ou complexificando-a22), que simplifica os atos em

19
Cf. (Brito, 1997, p. 31) a respeito em concreto apenas da adequação formal: «A possibilidade agora
consagrada [reforma de 95/96] de o juiz adaptar a tramitação do processo (…) tem tanto de aliciante para a
realização da justiça no processo civil, como de ameaçador para as garantias daqueles que exercem o seu
direito à jurisdição».
20
«Assegurados estes direitos, deve defender-se o papel activo do juiz, sem qualquer receio de
autoritarismo. A flexibilidade só é possível com um juiz activo, com uma gestão processual presente,
concreta, informada, disponível. Esta agilidade da magistratura é essencial à sua legitimação. Saber que em
certos processos deve estar mais distante, mais passiva; saber que em outros deve ser mais activa, mais
próxima. A elasticidade dos poderes atribuídos ao magistrado civil, a supletividade das regras processuais
deve ser assim entendida.
Defendo, pois, que o actual processo civil não é autoritário. É colaborante, é flexível, é próximo. Os direitos
das partes estão garantidos e são respeitados. O juiz é um elemento fulcral na condução do processo. A sua
importância pode implicar uma actuação decidida, mas pode também, por vezes, tornar-se transparente,
deixando ao contraditório das partes o avanço do processo. Seja qual for a postura, o magistrado está
sempre ao serviço das partes, das pessoas e não de uma ideia absoluta de verdade ou de justiça. Não há
donos do processo, nem há senhores da verdade. Há pessoas, com problemas, com litígios normais
decorrentes das relações humanas. É preciso resolvê-los, eficazmente. É necessário servir a solução, saciando
quem a requereu» p. 65.
21
Ver, por exemplo, (Schwarzer & Hirsch, 2006).

45
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

função da sua razão de ser e da sua finalidade, em ordem à consecução no caso do “processo
equitativo e justo decidido em prazo razoável” do artigo 6.º da Convenção Europeia dos
Direitos Humanos (CEDH) na leitura que dela faz também a Comissão Europeia para a Eficácia
da Justiça (CEPEJ).
É o modelo de juiz a que faz apelo o artigo 6.º do CPC.
Um juiz/gestor com valores que também se exprimem com especificidade na gestão
processual e se enumeram de modo exemplificativo:
Independência (na relação com os órgãos de gestão e na interdependência das
competências);
Imparcialidade («igual preocupação com a sorte de todas as pessoas» (Dworkin, 2011, p.
14));
Humildade (respeitando «totalmente a responsabilidade e o direito de cada pessoa a
decidir por si própria» (Dworkin, 2011, p. 14); conhecer a realidade da inserção em
organização);
Coragem («o juiz deve ter poderes que lhe permitam uma efetiva e ativa gestão dos
procedimentos» (CEPEJ-SATURN, (2013)4) e deve usar os poderes que tem);
Verdade (na relação com as partes, nomeadamente, quanto ao tempo dos processos
prestando informação correta quanto às causas de desvios e quanto às medidas para as
debelar);
Ciência (utilização das normas processuais e da sua articulação com as substantivas que
regem a declaração do direito);
Cultura dialogal e diretiva (do processo e na intervenção nele, com assunção da
cooperação e da firmeza na direção).

Perspetiva das partes


O aviso que fazem os defensores do denominado modelo liberal do processo civil não
deve cair em cesto roto. O admirável mundo da gestão tem de incorporar que o processo civil
é um espaço de livre exercício de direitos, em que a conflitualidade se exprime e não pode ser
reduzida a uma comunidade de trabalho, sendo direito das partes a conformação da lide, a

22
(Alexandre, 2013) coloca a questão: «Tenho dúvidas em dizer que a gestão processual – tal como está
concebida na PL 113/XII – pode conduzir a uma densificação da tramitação legalmente desenhada, porque o
art. 6º/1 da PL 113/XII, a propósito do dever de gestão processual, também alude a mecanismos de
simplificação processual. Por outro lado, se a gestão processual visa essencialmente a agilização, ideia
reforçada pela parte final do n.º 1 do art. 6º, como é que pode também visar a complexificação, que com ela
parece incompatível?».

46
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

escolha das armas (o processo integra a violência mas integrar não é obliterar) e a
previsibilidade das regras do combate, no caso as regras processuais, de que decorre a
importância do mitigado princípio de tipicidade das formas processuais.
Esta perspetiva, que se afigura essencial, torna sensíveis questões como o contraditório
ou a recorribilidade das decisões.

Contraditório
Pedra angular de um processo civil equitativo e justo o princípio do contraditório
consubstancia-se na possibilidade de a parte participar ativamente em todo o processo,
exprimindo-se nos planos da alegação, da prova e do direito (Freitas, 2013, p. 124 e ss).
Considerando o núcleo fulcral da gestão processual que a adequação formal constitui, são
especialmente sensíveis neste ponto as questões relacionadas com o contraditório,
especialmente quando a intervenção do juiz seja oficiosa.
Embora o artigo 547.º do CPC não refira expressamente a necessidade de audição das
partes, a mesma resulta do princípio geral do artigo 3.º/3 que aliás é retomado no artigo 6.º,
n.º 1, IIª parte.

Recorribilidade
Porque se a recorribilidade genérica pode bloquear o processo, postergando a almejada
celeridade, a irrecorribilidade demasiado ampla é o húmus ideal para o desenvolvimento do
vírus autoritário para que adverte (Mendonça, 2007)23.
É certo que como defende (Geraldes, s.d.), a recorribilidade pode demorar o processo.
Mas, como o refere também, há que ponderar os valores envolvidos e conflituais.
Embora não haja em processo civil um direito constitucional ao recurso, a especial
delicadeza das questões que podem ser convocadas em sede de gestão processual pode
aconselhar seja estabelecida a recorribilidade das decisões, tanto quanto a eficácia e a
eficiência, no estrito sentido da duração, a desaconselham.

23
Com uma impressiva metáfora que não resistimos a transcrever: «No final do século XIX um vírus infectou
o processo civil. Nem todos os processos sucumbiram, mas todos foram, de alguma forma, por ele afectados.
A comunidade científica deu-lhe o nome de «vírus autoritário». (…) O vírus provocava sintomas curiosos
entre as suas vítimas. Estas começavam por afirmar que o processo servia não para tutelar os direitos
subjectivos e os interesses legítimos dos particulares, mas para restaurar a norma material e o dirito
objectivo; acrescentavam, consequentemente, que o processo não servia as partes, mas pelo contrário eram
estas que o serviam; os juízes sentiam-se ungidos por uma força estranha que os impelia não tanto a dirimir
os concretos conflitos entre os seus concidadãos, mas a querer fazer justiça entre os homens».

47
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

O nosso legislador tomou posição nos termos constantes da norma do artigo 630.º/2 do
CPC que estatui serem irrecorríveis as decisões de agilização e simplificação processuais
previstas no artigo 6.º/1 e as decisões de adequação formal previstas no artigo 547.º.
(Freitas, 2013, p. 231 e ss) defende embora que «a norma do art. 630-2 talvez deva, por
isso, ser racionalmente interpretada no sentido de só excluir o recurso autónomo de apelação
das decisões de gestão processual, que não sejam de mero expediente (…), deixando aberta a
possibilidade da sua impugnação com a sentença final, nos termos do art. 644-3. Suscetíveis,
pelo contrário, de apelação autónoma (cf. art. 644-2-i, bem como o art. 644-2-d) são as
decisões que contendam com os princípios do contraditório ou da igualdade ou com as normas
que regulam a introdução dos factos no processo e a admissibilidade dos meios probatórios».
Dir-se-ia que a salvaguarda de recorribilidade quando violados os princípios que a norma
indica nos levaria a resistir ao “vírus”. Embora se afigure que essas melhor seriam questões de
procedência do recurso do que de admissibilidade, parece-nos que mesmo assim pode não
estar salvaguardado o afastamento do “autoritarismo”24.
Afigura-se-nos que as decisões de adequação formal do artigo 547 ( e as de agilização
processual do 6/1?) têm uma dupla vertente: a opção pela adequação formal ou agilização
processual e a conformação processual mediante a indicação de uma tramitação alternativa.
Vertentes que exprimem decisões diferentes: a decisão de inadequação das formas típicas e
de necessidade da adequação formal e a decisão sobre a forma a aplicar.
Qual destas decisões é declarada irrecorrível pelo artigo 630.º/2: ambas ou apenas uma
delas? É possível interpretar a norma no sentido de que apenas a decisão sobre a tramitação é
irrecorrível, sendo recorrível a decisão que opta pela adequação formal25 justificando a
inadequação das formas típicas?26

24
(Marinoni, 2006) adverte para a importância das questões relacionadas com a fundamentação e a
sindicância das decisões em caso de adequação formal: «as normas processuais abertas não apenas
conferem maior poder para a utilização dos instrumentos processuais, como também outorgam ao juiz o
dever de demonstrar a idoneidade do seu uso, em vista da obviedade de que todo poder deve ser exercido de
maneira legítima». Continuando adiante: «a ampliação do poder de execução do juiz, ocorrida para dar
maior efetividade à tutela dos direitos, possui, como contrapartida, a necessidade de que o controle da sua
atividade seja feita a partir da compreensão do significado das tutelas no plano do direito material, das
regras da adequação e da necessidade e mediante o seu indispensável complemento, a justificação judicial.
Em outros termos: pelo fato de o juiz ter poder para a determinação da melhor maneira de efetivação da
tutela, exige-se dele, por conseqüência, a adequada justificação das suas escolhas. Nesse sentido se pode
dizer que a justificativa é a outra face do incremento do poder do juiz».
25
Em contrário parece pronunciar-se (Brito, 1997, p. 69) ao referir: «a decisão do juiz de adequação é
sindicável, não quanto à decisão sobre se deve adequar ou não quando o faça oficiosamente, mas quando

48
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Os princípios indicados como fundamento de recorribilidade apontam para a decisão de


concreta conformação processual e não para a decisão pela necessidade de recorrer à
adequação formal. Não se vê em que poderia esta violar aqueles princípios.
Coisa diversa é a da oportunidade da subida do recurso ou seja, a de saber se cabe
apelação autónoma dessas decisões27.

Perspetiva dos procedimentos internos


1. O tempo/processo

A celeridade enquanto duração razoável e previsível é um dos principais aspetos


motivadores da direção ativa do juiz.
A consideração do tempo no processo implica a previsibilidade, a calendarização, a gestão
dos prazos e a identificação das etapas críticas.
Previsibilidade: indicação da previsibilidade de resolução do litígio com eventual indicação
do desvio-padrão, dos critérios de agendamento e da situação da UO que o determina.
Calendarização da lide em concreto nos diversos passos que a compõem e no cuidado em
nunca deixar o processo sem prazo – «em todos os processos deve haver, em cada momento,
uma data fixada para a prática de um ato, o que o levará, então, à atenção do juiz»28 – a fim
de evitar que caia em “roda-livre”. A calendarização do processo é praticamente impossível
fora da adequação formal que é um instrumento muito pesado; a abundância de prazos que o
juiz não pode alterar são um exemplo de negação da gestão processual.
Calendarização efetiva dos atos a praticar em concreto.
Gestão dos prazos: fixação de critérios para os casos em que o prazo é marcado pelo juiz,
compatibilização entre os prazos assinados às partes e prazos gerais concretos do processo
(fixar três dias à parte para praticar um ato na sequência de seis meses de inércia do tribunal

decida adequar, o conteúdo positivo da decisão é susceptível de recurso». Embora se pronuncie num quadro
legal em que inexistia norma como a do artigo 630.º do CPC.
26
«A justificação, obedecendo a esses critérios, dá às partes a possibilidade de controle da decisão
jurisdicional. A diferença é a de que, em tais situações, o controle da atividade do juiz é muito mais complexa
e sofisticada do que aquela que ocorria com base no princípio da tipicidade, quando o juiz apenas podia usar
os instrumentos processuais definidos na lei. Mas essa mudança de forma de pensar o controle jurisdicional
é apenas reflexo da necessidade de se dar maior poder ao juiz – em parte a ele já entregue pelo próprio
legislador ao fixar as normas abertas – e da transformação do próprio conceito de direito, que submete a
compreensão da lei aos direitos fundamentais» (Marinoni, 2006).
27
A que se refere (Freitas, 2013).
28
(Schwarzer & Hirsch, 2013, p. 195)

49
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

não é um bom exemplo); adequação de prazos dos atos mediante “negociação” com as partes
(ressalvando invocações de indefesa ou de prejuízo da defesa em razão da exiguidade dos
prazos). Parecem maus exemplos de rigidez inadequada à gestão processual o recurso
frequente à fixação de prazos legais quando os mesmos poderiam ser fixados pelo juiz de
modo mais adequado ao caso concreto v.g. artigos 654.º/1 e 655.º/1.

2. A identificação das etapas críticas

Cada forma processual tem etapas críticas a considerar em termos de calendarização e de


intervenção reguladora prévia.
Restringindo-nos à ação declarativa comum em primeira instância os grandes momentos
de gestão do processo concreto são a gestão inicial do despacho liminar (que é deixado ao
critério do juiz – 590.º/1 – sendo a primeira opção de gestão processual que lhe cumpre
tomar), a gestão inicial do despacho pré-saneador (artigo 590.º), a audiência prévia (artigos
591.º a 598.º) e a audiência de julgamento/sentença (artigos 599.º e ss e 607.º e ss).

Gestão inicial: Despacho liminar


Esta etapa do processo pode não ter lugar na ação declarativa comum. A opção a que
alude o artigo 590.º/1 deve ser tomada e constitui uma atividade de gestão processual prévia à
existência do processo, a que estaria adequada a provimentação.
Provimentação que é um poderoso instrumento de gestão processual e engloba atos
diversos: autorizações, delegações, desenho de procedimentos, despachos genéricos,
regulamentos, adequação da forma dos atos, etc.
O contacto inicial com o processo na fase liminar permite identificação das questões
colocadas pelos pressupostos formais (atividade necessária à sanação ou à decisão quando
insanáveis), identificação das especificidades objetivas e subjetivas (princípio da igualdade
substancial), ponderação da necessidade de adequação formal e identificação das questões
substantivas (improcedência, aperfeiçoamento).

Gestão inicial: Despacho pré-saneador


A etapa processual que o CPC denomina gestão inicial é o anterior despacho ou atividade de
pré-saneamento: sanação de pressupostos processuais; correcção de irregularidades dos
articulados; junção de documento para conhecimento de exceção ou do mérito.

50
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Audiência Prévia
Preparação: da conciliação; identificação dos pressupostos em falta (decisão ou sanação);
identificação das deficiências fácticas; identificação dos temas “destacáveis” (prescrições;
prova legal) que possam ser conhecidos mediante produção de prova em audiência prévia
(com ou sem adequação formal); conhecimento de exceção ou mérito; identificação dos meios
probatórios adequados; temas da prova.
Despacho regulador:
Indicação dos intervenientes;
Indicação da ordem de trabalhos;
Indicação do modo como se perspetiva a realização da audiência prévia concretamente a
indicação do modo como será feita a enunciação dos temas da prova: debate e organização de
facto sem guião; proposta escrita remetida com o despacho; proposta escrita apresentada no
momento; debate e redação ulterior; pedido de propostas no despacho ou na audiência, etc.;
Indicação quanto a antecipação de produção de prova v.g tomada de depoimento de
parte nos termos do artigo 546.º/3 e da possibilidade de conhecer exceção ou mérito;
Indicação da necessidade de adequação formal (audição, proposta, fixação).
Calendarização: data e agenda da audiência (início e termos de cada sessão);
requerimentos passíveis de apresentação em julgamento; o tempo de inquirição de cada
testemunha; o tempo das alegações.

Audiência de julgamento
Cumprimento da programação estabelecida
Indicação a final da data previsível da prolação da sentença

3. A provimentação

Afigura-se muito desejável a provimentação como instrumento de gestão processual,


podendo assumir âmbitos diversos, nomeadamente:
 orientação da secção ou de auxiliares judiciários como os agentes de execução, os
administradores de insolvência ou os peritos;
 determinações quanto a prática oficiosa de atos;
 esclarecimento quanto ao entendimento seguido pelo juiz e instruções para seu
cumprimento;
 intervenção na fase de citação (226.º/2);

51
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

 despachos genéricos de organização da tramitação pela secretaria.

4. A organização do dossier eletrónico e físico


A título de exemplo:
 o conteúdo do processo físico
 a utilização de pastas de classificação de despachos a proferir
 a classificação dos despachos proferidos
 a organização temática (não parece que tenha cabimento legal, mas seria útil)
 a organização de um ou vários índices

Perspetiva da aprendizagem
A formalização dos procedimentos permite a transmissão do saber prático que é
elemento essencial de geração de conhecimento da “organização”.

Perspetiva dos recursos


Como dissemos, a gestão do processo convoca a mobilização de outro tipo de recursos
para além do tempo/processo e das normas processuais.
O juiz do processo tem de considerar todos os recursos afetos à atividade administrativa
que é suporte da sua atividade jurisdicional: humanos, materiais e tecnológicos.
Entre os recursos humanos, o do seu próprio tempo, o tempo/juiz, cuja gestão implica a
sua diferenciação e a diferenciação das intervenções29, a definição de regras de agendamento,
a organização do apoio da secção e a consideração concreta das capacidades desta enquanto
grupo e individuais.
Entre os recursos materiais a disponibilidade de sala de audiência, mas também de
equipamentos de gravação ou vídeo-conferência, de veículos, de digitalizadores, etc.
Entre os recursos tecnológicos o sistema de tramitação dos processos e as diversas
funcionalidades de recolha de dados para a gestão, embora se reconheça que o mesmo está
desenhado para as secções e não para o juiz.
O juiz do processo é também um gestor dos meios públicos e é responsável pelo modo
como os mesmos são por si, ou sob a sua direção, geridos ou ignorados30.

29
(Lopes, 2010, p. 141).
30
Vejam-se por exemplo as questões ligadas á eficiência na gestão desses recursos que também envolve as
dimensões financeiras dos mesmos . A título de exemplo, o apelo à eficiência na sua dimensão diretamente

52
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

económica em (Schwarzer & Hirsch, 2013) e no programa “Justice judiciaire” introduzido pela lei francesa de
enquadramento financeiro de 2001, a “Loi organique des lois de finances” (LOLF).
Esta lei veio impor na administração pública e no sistema de justiça, por via orçamental, a perspetiva de
transpor para o setor público os métodos tradicionalmente utilizados no setor lucrativo da economia,
chamando a atenção para a dimensão económica do Estado e para a necessidade de introduzir exigências
de eficiência na utilização dos recursos e na dispensa dos serviços.
«No plano económico, a LOLF introduziu as finanças públicas numa nova era. Anteriormente, os progressos
do direito faziam-se através do formalismo e dos processos com uma primeira preocupação de assegurar os
princípios de apresentação do orçamento, o conhecimento efetivo das operações pela apresentação
transparente de contas e uma execução regular. Entrámos numa segunda era quando, no século XX se
decidiu utilizar o orçamento como instrumento de regulação da economia nacional, função apresentada
como determinante. No fim do século, quando o intervencionismo orçamental se mostrou ineficaz face às
crises económicas e sociais, impôs-se o facto de que as pessoas públicas, incluindo o estado, devem respeitar
as leis fundamentais da economia, nomeadamente demonstrando a sua eficiência, o que exige que lhes
sejam aplicados os meios de gestão já consagrados. Esta é a contribuição da LOLF» (Hertzog, 2006, p. 16).
O mesmo autor, referindo exatamente as questões da gestão pública explicita: «face ao fracasso das
instituições públicas só há dois remédios: ou a privatização ou a reforma. (…) A LOLF é um texto de rutura,
não porque rejeite as antigas finalidades – regularidade das operações e utilização económica do orçamento
– mas porque introduz uma nova finalidade no coração do direito orçamental: melhorar o desempenho do
estado. (…) A LOLF coloca, doravante, o processo orçamental, no seu conjunto, sob tensão para que a
produção pública atinja melhores resultados e os diferentes agentes sejam colocados em situação de prestar
atenção sobretudo a estes novos objetivos» (Hertzog, 2006, p. 30).
Introduzindo estes novos elementos de avaliação e melhoria do desempenho, a LOLF estabelece diversas
missões do estado, cuja organização não se abordará, pese embora tenha sido imensamente debatida . Uma
dessas missões refere-se ao sistema judicial sob a denominação “Programme 166 – Justice Judiciaire”,
englobando os Tribunais Judiciais, a Escola Nacional de Oficiais de Justiça e o Registo Criminal.
O programa está incluído no Ministério da Justiça, o responsável do programa é o diretor dos serviços
judiciários, concretizando-se pela definição de objetivos de longo prazo, com indicadores de medida
definidos a nível do programa.
Não é sem perplexidade que esta abordagem «económica» surge em matéria de justiça, por exemplo no
confronto entre o objetivo de controlar as despesas processuais e o direito de prescrever os meios de
investigação em que as mesmas são assumidas, direito/dever dos magistrados titulares da investigação ou o
indicador do provimento de recursos em relação com a qualidade das decisões.
Referimo-nos em breve apontamento ao regime sem pesquisa detalhada da sua aplicação na área da
Justiça, que a natureza do texto não permite, por o entendermos muito relevante na concretização da
ligação financeira da definição de objetivos e de avaliação do desempenho, com as questões que levanta,
nomeadamente em confronto com a independência dos tribunais e as consequências na determinação
oficiosa de provas dispendiosas.
Referindo-se ao modo de definição de objetivos diz (Serverin, 2011, p. 42): «o modelo produtivista roda no
vazio: trata-se de proferir cada vez mais depressa mais decisões sem que se saiba a que pedidos elas

53
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Mas a gestão processual a que o juiz está obrigado não é apenas a gestão do processo
individual31. O juiz está também obrigado à gestão processual do conjunto dos seus processos,
dos processos que lhe estão distribuídos. Cada processo convive com os outros e os direitos
das partes de um processo convivem com os direitos das partes em cada um dos demais.
Dizendo de outro modo, entre os processos de um mesmo juiz, de um mesmo Juízo ou de uma
mesma comarca, verifica-se uma concorrência e interdependência de recursos afetos32.
O que apela para a gestão de um conjunto de processos33 (mais ou menos vasto e com
critérios de afetação por órgão jurisdicional, por matéria ou por território). Apela também para
a complementaridade das competências pois a gestão processual é cometida ao juiz em
exercício de funções jurisdicionais – o titular do processo –, mas também aos juízes em
exercício de funções de gestão – o juiz presidente e o juiz coordenador34.

respeitam nem a quem são destinadas. Pelo menos no plano dos indicadores da justiça [referindo-se aos da
LOLF], a lógica gestionária levou a melhor sobre a da missão dos tribunais».
31
A esse respeito veja-se o Regulamento de Inspecções Judiciais nomeadamente os artigos 1.º e 13.º que se
transcrevem na parte pertinente: Artigo 1.º «1— Tendo em vista contribuir para a melhoria da qualidade do
sistema de justiça, com especial incidência nas áreas da eficiência e da racionalização das práticas
jurisdicionais, administrativas e de gestão, os serviços de inspecção do Conselho Superior da Magistratura
têm as seguintes atribuições: (…) f) Facultar aos juízes todos os elementos para uma reflexão dos próprios
quanto à correcção dos procedimentos anteriormente adoptados, tendo em vista o aperfeiçoamento e
uniformização dos serviços judiciais, pondo-os ao corrente das práticas administrativas e de gestão, ainda
que processuais, tidas por inadequadas à obtenção de uma mais eficiente e célere administração da justiça.
32
«A evolução para um modelo gestionário, como o da “qualidade total” consagrado pela Fundação
Europeia para a Qualidade de Gestão (EFQM) e tido como modelo de referência para as reformas das
administrações públicas, que assenta na liderança, na gestão das pessoas, no desenvolvimento do seu
potencial, na definição clara das políticas e estratégias organizacionais, na gestão das parcerias e dos
recursos internos, na eficiência dos procedimentos, nos resultados como indicadores de satisfação e do seu
impacto na sociedade, determinará que os profissionais que detêm a responsabilidade na função primária
da organização tribunal, ou sejam os juízes, tenham maiores responsabilidades (liderança) organizativas»
(Mendes, 2010, p. 113).
33
«A gestão processual não pode hoje ser entendida de forma desgarrada, importando contextualiza-la
como parte integrante da gestão dos tribunais (court management)» (Matos, 2010, p. 135).
34
Certo é que esta actuação mais ou menos racional ou mais ou menos condicionada do juiz, o que envolve
também outras ponderações de cariz emocional e simbólico, terá de ser necessariamente compatibilizada
com um esquema de gestão e administração das tarefas jurisdicionais, tanto por via da consagração de
mecanismos de integração sistemática de administração dos tribunais, do nível macro para o micro, como
pela via da disponibilização de métodos de gestão processual, de auxílio funcional e de outro instrumental
técnico e material que possibilite solucionar os problemas suscitados, mormente com a sobrependência. (…)
Mas, por outro lado, a complexificação das tarefas a cargo dos tribunais, o aumento das pendências e o
acréscimo do número dos juízes e dos funcionários cria a necessidade, por si própria, de implementar

54
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Disso se ocupará o ponto seguinte.

III) A GESTÃO DOS PROCESSOS


1. O modelo de gestão

A alusão que faremos a uma experiência concreta determina se pressuponha um


determinado modelo de gestão, o decorrente da aplicação da Lei 52/2008 (NLOFTJ). Porém,
com alterações não muito significativas, a experiência é transponível para a gestão do
conjunto de processos distribuídos a um juiz ou para a gestão do conjunto de processos de
uma unidade orgânica.
O modelo de gestão da Lei 52/2008 pretendeu introduzir uma atitude gestionária35 e
permitiu a concentração de competências ao nível das comarcas36 destinadas a planear,
promover a ação, alocar recursos, acompanhar a execução e avaliar o serviço de justiça
prestado pelo tribunal, pretendendo a definição uniformizada e coerente de prioridades,
critérios e objetivos, sobretudo mediante a consagração de um quadro inovador de
competências do presidente da comarca, que a lei impõe seja um juiz.
O quadro de princípios e valores decorrente da Constituição da República especifica a
independência e imparcialidade como atributos dos tribunais37, indicando a NLOFTJ um
conceito potencialmente aglutinador de sentido na referência à «qualidade do serviço de
justiça prestado aos cidadãos» como critério de avaliação de desempenho.
Assim, a abordagem à organização do tribunal na perspetiva do novo modelo de juiz
presidente não se reduz à gestão administrativa, antes abrange as diversas dimensões da
qualidade no judiciário, nas quais se incluem as questões da organização da tramitação
processual do conjunto dos processos38 e, bem assim, todas as competências instrumentais de

estruturas organizacionais complexas, as quais, de maneira inevitável, influem no modo pelo qual as
decisões jurisdicionais se vão conformar» (COELHO, 2008, pp. 102-103)
35
Maxime artigo 88º da NLOFTJ e 34º, nº 2, do DL 28/09.
36
(GOMES coord, 2010)
37
V.g. artigo 203º, da Constituição da República Portuguesa (CRP). Valores que são dos dos tribunais e dos
juízes.
38
Está obviamente excluída qualquer intervenção do juiz presidente na tramitação de processos concretos
da competência única do juiz titular. Utilizar-se-á a expressão «gestão processual macro» para designar a
atividade de organização da tramitação do conjunto de processos de um tribunal ou unidade orgânica,
excluindo aquela dimensão de gestão processual do caso.

55
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

alocação de recursos, de definição de processos de trabalho, de simplificação de atos, de


supressão de redundâncias.
Neste contexto a relevância das competências do juiz presidente cujo estatuto (Mendes &
Coelho, 2007, p. 156) referem necessitar de definição, situação que se mantém com a Lei
62/2013 (LOSJ). Relevância nomeadamente ao atribuir ao juiz presidente competências de
gestão processual que como tal indica no artigo 88.º39, n.º 4.
São elas as competências de implementação de métodos de trabalho e objetivos
mensuráveis, de acompanhamento e avaliação da atividade do tribunal, nomeadamente da
qualidade do serviço de justiça prestado aos cidadãos, de acompanhamento do movimento
processual do tribunal, da realização dos objetivos fixados, de promoção de reuniões de
planeamento e avaliação e de medidas de agilização e simplificação processuais.
Esta gestão processual cometida ao juiz presidente tem de ser entendida, como já dito,
em conjugação com as competências dos juízes que exercem funções jurisdicionais,
centrando-se na gestão e organização da tramitação do acervo processual no seu conjunto
com o parâmetro de qualidade do serviço de justiça que engloba vertentes muito diferentes
do acompanhamento ou organização do movimento processual.
A gestão processual macro não se reporta à disciplina do encadeamento de atos
processuais a que nos referimos na primeira parte, antes pressupõe a ligação entre as tarefas a
realizar e os recursos a alocar, o conhecimento da capacidade de trabalho de cada unidade
face ao volume existente, o equilíbrio das unidades orgânicas dentro da comarca e a definição
de prioridades e objetivos à luz de concretas dimensões de qualidade do judiciário:
independência, imparcialidade, igualdade de tratamento, accountability (nas dimensões de
informação sobre os critérios e opções e de prestação de contas das consequências dessas
opções).
Mas as competências de gestão processual macro têm a sua fonte nos critérios que
enformam a gestão do processo a que antes nos referimos, o que determina a centralidade
das competências dos juízes em exercício de funções jurisdicionais, sendo as do juiz presidente
de mero facilitador organizacional.
Este sumariamente o quadro normativo da gestão processual macro do tribunal de
comarca, prescindindo nesta exposição das determinantes interações com a gestão macro do
Judiciário e das aporias que introduzem num quadro que nada tem de unívoco e em muitos

39
Embora numa amálgama de competências descritas no seu artigo 88º por vezes com sistematização
pouco cuidada, por exemplo ao incluir entre as competências de representação e direção aspetos
claramente de gestão processual – v.g. alíneas a) a d), do nº 2.

56
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

casos está profundamente eivado de contradições. Quadro que é, no entanto essencial à


efectividade da gestão processual e da qualidade do sistema40.

2. A gestão processual macro: delimitação na comarca da Grande Lisboa Noroeste


No caso da GLN, para delimitação do que seria a gestão processual macro, o método
seguido foi o do debate em reuniões com os juízes de direito41 em que foram ponderados
diversos aspetos a ter em conta.
O procedimento de definição da atividade de gestão processual a empreender fez uso do
instrumento formal fornecido pelo artigo 88º, nº 2, alínea c): reuniões de planeamento.
Considerada a situação genérica da comarca – elevada pendência processual com
processos muito antigos e com atrasos significativos na tramitação –, foi definido que a ação
de gestão processual se devia centrar no acompanhamento da tramitação dos processos nas
unidades orgânicas, ou seja, na dimensão do planeamento da tramitação do conjunto de

40
«La distinction entre les processus et les procédures permettrait de différencier ce qui relève de
l’indépendance de la justice, essentiellement sur le plan juridictionnel, et ce qui n’en relève pas, c’est-à-dire
les éléments d’administration de la justice ou de gestion. La distinction n’est pas aisée à établir puisqu’elle
conduit à distinguer clairement autorité judiciaire constitutionnelle et service public de la justice. Mais c’est
probablement une piste pour parvenir à une certaine qualité de la justice ; la qualité des decisions
juridictionnelles suppose un environnement global permettant de rendre des décisions dans des conditions
matérielles et intellectuelles sereines. Une gestion sereine, cohérente et lisible d’une juridiction permet
d’organiser de manière adaptée le travail qui s’y effectue. Le management judiciaire paraît donc bien
constituer un pré-requis de la qualité de la décision juridictionnelle» (Pauliat, 2007, p. 131).
41
Um dos instrumentos privilegiados de gestão do tribunal e de gestão processual têm sido as reuniões de
planeamento. Envolvendo juízes e funcionários permitem o conhecimento direto dos problemas, o
diagnóstico das causas e a intervenção dos diferentes decisores.
As reuniões de planeamento são: a) ordinárias com periodicidade trimestral, por secções, para avaliação do
estado dos serviços e da execução do planeamento e para diagnóstico de eventuais dificuldades; b)
extraordinárias, por sugestão do juiz presidente, dos juízes das secções ou dos escrivães de direito, para
resolução de problemas concretos.
Nas reuniões participam: a) nas reuniões ordinárias todos os funcionários da secção e os Juízes que
entendam participar; b) nas extraordinárias, segundo a natureza do problema, apenas os juízes, apenas os
funcionários (todos ou apenas os escrivães de direito), os juízes e os funcionários.
As reuniões de planeamento são documentadas em atas das quais constam: a) a questão a tratar; b) o
debate da questão; c) as decisões da juiz presidente sobre a questão em debate; d) os provimentos dos
juízes da secção; e) as deliberações conjuntas da juiz presidente e dos juízes da secção; f) as propostas ao
CSM, à DGAJ ou ao IGFIJ.

57
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

processos pendentes no tribunal e sua execução42. Acompanhamento a exercer colegialmente,


envolvendo juiz presidente e juízes com funções jurisdicionais, a fim de permitir a intervenção
integrada que a diversidade e complementaridade das competências possibilitava43.
Sem prejuízo da correção da visão integradora e global das diversas competências
inovadoramente atribuídas ao juiz presidente, as competências de gestão processual44 surgem
como as mais relevantes pela sua novidade e por se dirigirem ao core business do tribunal: a
administração da justiça mediante a resolução dos casos concretos submetidos. Urgia, em
consequência, implementar na prática a nova gestão no seu núcleo significativo45: a gestão
processual macro.
A organização da gestão processual macro pressupõe a posse de informação tanto quanto
possível completa do estado das diversas secções de processos do tribunal de comarca: o
problema central colocado foi o da obtenção de dados o mais exatos possível sobre os
processos pendentes e as tarefas a desempenhar.

Estes dados deviam incidir sobre o estado dos processos na perspetiva dos atos a praticar,
uma vez que a intervenção de gestão implicava a definição de uma estratégia global para a
prática daqueles atos que fosse explícita, coerente e équa, que possibilitasse a definição
concreta de objetivos. Permitindo, nomeadamente, a responsabilidade por essa estratégia
face aos cidadãos e aos diversos órgãos de governação do judiciário e estabelecê-la com
critérios de independência e imparcialidade próprios dos juízes.
Em reuniões envolvendo os escrivães de direito, foram sendo definidos, a partir da
experiência empírica, os principais parâmetros a ter em atenção para a agregação dos atos,
acabando por estabelecer-se que seriam considerados: os «prazos» – processos que aguardam
o decurso de um prazo para a prática de um ato pela secção –, as «conclusões/vistas» –
processos que aguardam despacho do juiz ou promoção do magistrado do Ministério Público

42
A restrição da análise ao aspeto da gestão processual nos termos delimitados no texto não ignora que as
questões da qualidade do serviço de justiça são de muito maior amplitude do que a da organização da
tramitação dos processos e, bem assim, que a organização da tramitação envolve também aspetos
relacionado com o trabalho dos juízes e dos magistrados do Ministério Público.
43
V. g. as competências de definição de critérios e de alocação de recursos humanos do juiz presidente e as
competências jurisdicionais dos restantes juízes que envolvem a direção funcional dos funcionários - artigo
25º, do Decreto-Lei 28/09, de 28 de Janeiro.
44
Artigo 88º , nº 4 e als a) a d) do nº 2.
45
De outros pontos de vista foi implementado o sistema de gestão, nomeadamente administrativo, de
gestão de recursos humanos, financeiros e materiais, de representação e contacto com entidades
exteriores.

58
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

ou que para tal devem ser apresentados pela secção –, os «despachos» – processos em que foi
proferido despacho pelo juiz (em sentido amplo, englobando as decisões finais, intercalares e
os despachos de mero expediente) que deve ser cumprido pela secção –, o «papel»
designação tradicional dada a todas as comunicações trazidas ao processo por entidades
externas (partes, advogados, outros) –, e a conta/contabilidade – atos de contagem do
processo em sentido estrito e a todas as operações subsequentes relacionadas com a receção,
pagamento ou destino de verbas.
Nesta fase tornou-se evidente que em secções com grande número de processos essa
informação não era possível, em secções com menor número de processos essa informação
não era acessível a todos os que dela necessitavam; em todos os casos a informação assim
obtida não era atual, completa e normalizada quanto aos atos processuais a praticar e aos
prazos respetivos46.
Em conclusão, não havia um meio de obter informação de gestão estruturada,
permanente e de pesquisa rápida sobre os atos a praticar pelas secções, informação
indispensável à organização eficiente do trabalho das secções47.

3. Obtenção de informação. Planeamento, Execução, Avaliação48


Neste contexto, a Escrivã do Juízo de Execução apresentou uma proposta de solução
através da inclusão manual de códigos nos processos eletrónicos, identificando o ato
processual a praticar e a data da sua prática, de modo a que a consulta pelo código permitisse
a obtenção daqueles dados49. Debatida e aceite a proposta pelos juízes iniciou-se a sua

46
Na verdade, a informação disponível resultava do recurso a dados dispersos e parciais do sistema
informático em uso nos tribunais, ao conhecimento pessoal dos funcionários e à consulta manual processo a
processo.
47
O sistema informático Habilus é um repositório de dados que não está organizado para as necessidades
específicas de gestão: contém a informação relevante mas não é possível aceder-lhe de forma estruturada.
O caminho deverá ser, aliás, o de um sistema de informação com classificação (meta-dados) e não o sistema
manual que foi encontrado na comarca que é apenas «melhor do que nada».
48
O sistema está descrito nos termos que constam do Manual e Procedimentos operativos elaborados na
comarca em Junho de 2011 (Anexo I). Esta descrição decorre da ideia inicial da Escrivã de Direito Luísa
Coelho e incorpora os desenvolvimento dessa ideia ocorridos sob o seu impulso, da sua secção e,
posteriormente, de muitos outros funcionários da comarca, apoiado e incentivado pelos órgãos de gestão,
sendo a implementação e extensão a toda a comarca resultado de decisão da presidência.
49
O sistema proposto pela Escrivã do Juízo - Luísa Coelho - possibilita a obtenção daquela informação a todo
o momento e não apenas num momento fixo no tempo e consiste na utilização de um dos campos do
Habilus para anotar em cada processo um código correspondente ao ato processual a praticar.

59
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

implementação. Não relevando nesta sede a descrição do processo50, importa apenas referir
que o mesmo possibilita conhecer quais os atos a praticar em cada um dos processos
pendentes, qual a “entidade” a quem cabe a prática desses atos e qual a data em que os
mesmos devem ser praticados. Permite ainda a consulta integrada ou por conjunto de
processos51.
A fase de operação, após a indicada codificação, consiste na agregação dos dados52 de
modo a permitir aos juízes de direito (juiz presidente e juízes titulares), em diálogo com a
secção e na ponderação da capacidade de trabalho instalada, efetuar a gestão das prioridades,
o planeamento do trabalho e a definição dos objetivos, de modo adaptado (por isso diverso)
consoante as unidades orgânicas.
De forma genérica, todas as unidades orgânicas elaboram mensalmente os mapas de
53
atos a praticar em relação com as respetivas datas de execução, os quais são analisados pelos
juízes (presidente e em exercício de funções jurisdicionais).
Com base nos mapas de atos, os juízes, em diálogo com os funcionários, planeiam o
trabalho a efetuar e definem prioridades, podendo fazê-lo de forma sistemática – originando
os mapas de execução que o escrivão de direito concretiza efetuando a distribuição das tarefas
pelos funcionários do Juízo ou, de forma mais genérica, pela identificação do planeamento de
conclusões e da definição e objetivos concretizados a cada secção de processos.
O planeamento descrito corresponde ao sistema total mas assume aspetos diversos (com
supressão ou alteração de passos consoante as unidades orgânicas, de modo a que se possa
adequar ao seu estado, recursos e jurisdição), sendo sempre estabelecido em reuniões de
planeamento com os juízes e os funcionários.

50
Esse caminho está descrito no fluxograma que constitui a Ilustração 2. Como já referimos, o caminho
percorrido não foi previamente construído nos termos que constam do fluxograma descritivo. Porém, a
ferramenta em causa permite salientar os diversos pontos nevrálgicos do percurso.
Como resulta do fluxograma, ratificando a experiência vivida, os pontos nevrálgicos relacionaram-se com os
recursos humanos que implicaram a articulação de decisões de diversas entidades exteriores à comarca.
Também a redução a um fluxograma do percurso de determinação dos códigos permite salientar os
requisitos a ter em conta e os aspetos mais significativos da definição dos mesmos. A representação gráfica
segundo as regras da ferramenta permite evidenciar questões que não foram patentes desde o início e
provocaram a necessidade de diversas alterações dos códigos inicialmente fixados (letras para os regimes
legais; agregação de indicadores, etc).
51
Cf. Ilustração 8.
52
Elaboração dos mapas de atos (Ilustração 7).
53
Segundo o procedimento operativo definido em anexo ao mencionado Manual (PO1.MA.ED).

60
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

A gestão prosseguida envolve que a situação seja seguida mensalmente pela presidência e
analisada com frequência diversa em reuniões envolvendo todos os juízes e funcionários das
unidades orgânicas.
No fim do período de planeamento, a execução é analisada em reunião conjunta,
originando o novo planeamento que tem em conta a avaliação feita e os novos mapas de
atos54. As situações críticas detetadas são analisadas autonomamente, também em reuniões
de planeamento, implicando a tomada de medidas a partir da análise das suas causas55.
O sistema descrito foi operacionalizado sem qualquer quadro teórico que lhe desse
substrato ou que permitisse a sua avaliação ou crítica, correspondendo antes a uma resposta
empírica à oportunidade gerada pela mudança de regime legal, às dificuldades de resposta
adequada ao movimento processual e ao decurso da sua execução na vida quotidiana da
comarca.
Correspondeu à aceitação da necessidade de introdução de um modelo gestionário, à
opção central pela gestão processual, ao reconhecimento de que a mera gestão intuitiva,
fundada na experiência e nas tradições das diversas profissões judiciárias envolvidas (juízes
com pouca intervenção na gestão das secções e nenhuma na dos recursos humanos e
escrivães mais ou menos autónomos gerindo com base num conhecimento pessoal próprio e
pouco transmissível), não era adequada à resposta a dar aos cidadãos e à comunidade, sendo
necessária mas não suficiente.
A opção foi aliar aquele conhecimento tradicional e intuitivo à obtenção de informação
factual tanto quanto possível atual e completa, de modo a gerar um conhecimento e
possibilitar a gestão orientada para a tramitação dos processos de forma uniforme, com
tratamento équo das diversas situações e com definição de critérios e responsabilidades pela
sua escolha, definição centrada nos juízes enquanto titulares do órgão de soberania tribunal,
integrante do poder judicial, coordenado e assumido pela presidência do tribunal, com a
participação ativa de todos os funcionários, não só na execução mas também no debate
prévio.

54
São também tidas em conta as reclamações recebidas dos cidadãos ou o que decorre das reuniões da
Comissão Permanente ou do Conselho Geral do Conselho de Comarca. Apesar de ter sido elaborado um
questionário de satisfação na comarca, o mesmo restringe-se às testemunhas, recolhe poucos contributos e
não foi ainda tratado de forma sistemática de acordo com os valores do sistema a considerar.
55
V.g. alteração da alocação de recursos humanos, materiais ou de equipamento, a afetação de
cumprimento de processos a outras unidades orgânicas, a alteração da divisão de trabalho na secção, a
análise dos processos de trabalho para eliminação de atividades redundantes ou inúteis, medidas que
posteriormente são acompanhadas.

61
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Como referimos, o regime legal da NLOFTJ centra o exercício das novas competências de
gestão na “qualidade do serviço de justiça prestado aos cidadãos” convocando explicitamente
as preocupações da qualidade para o âmago da gestão dos tribunais. Não é objeto deste texto
a delimitação do conceito de qualidade no contexto dos tribunais ou a dilucidação dos valores
e princípios a ter em conta, sendo certo que a definição concreta da atividade central de
gestão processual nos termos que se descreveram é extremamente limitada. A limitação não
decorre da opção por uma visão restritiva do âmbito da qualidade no judiciário, mas de uma
opção prática para solução de uma questão urgente: os atrasos nos processos e a inexistência
de critérios gerais de prioridades e calendário que pudessem ser expostos aos
cidadãos/utentes e sujeitos a apreciação e controlo externos56.
A consideração da qualidade como uma experiência global não está arredada da concreta
perspetiva de gestão, concentrando-se por opção de otimização em torno da gestão
processual macro, sem descurar aspetos como a gestão de recursos e administrativa, sendo
que uma perspetiva holística apenas seria possível num quadro coerente de política pública,
em concreto inexistente, incontrolável ao nível a que se situa a experiência, e na definição
global de indicadores de medida e de acesso a dados necessários à implementação desses
indicadores57.
O caso prático com que a comarca se defrontou inicialmente isolou um problema como
constituindo um fator de não qualidade – os atrasos e a inexistência de critérios uniformes e
équos na tramitação processual nessas circunstâncias de atraso – e elegeu-o como o problema
central a debelar.
Este objetivo é um objetivo geral dos judiciários de todos os países (artigo 6º da CEDH)
estando descrito como tal em instrumentos diversos58. Embora seja um objetivo limitado, é
central59, sendo certo que a decisão atempada é relevante em termos de confiança no sistema
e de incentivo à procura e viabilidade de acesso. Por outro lado, a ênfase dada não se ficou

56
Não tem essas características a gestão atomista por cada escrivão, já mencionada, que é a corrente nos
tribunais portugueses, não possibilitando igualdade de critérios, acrescendo que a intervenção dos juízes
permite caracterizar as opções de gestão da tramitação dos processos de características de independência e
imparcialidade que devem ser as notas características do sistema como um todo e não apenas na decisão
concreta.
57
Esta necessidade vem já explicitada, mesmo em termos da sua operacionalização, na LOSJ – artigos 90.º e
91.º (objetivos estratégicos e processuais) – devendo a gestão processual cometida ao juiz presidente
observá-los, como estatui o artigo 94.º, n.º 4.
58
(COURTS, 2005) medida 3.
59
(GOMES, 2011) maxime 33-46.

62
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

pela mera consideração do tempo dos processos, antes a relacionou com a igualdade de
tratamento das situações idênticas, obstando a discricionariedade ou aleatoriedade60.
Estas preocupações práticas encontram assim enquadramento nas preocupações teóricas
com a qualidade do judiciário, embora não as esgotem e sejam restritivas face a uma
consideração mais abrangente que teve o seu lugar na experiência na sua completude, que
não é possível abordar neste âmbito, relacionada com a previsibilidade das decisões e com a
melhoria de procedimentos61.

4. Um caso de aplicação: o Juízo de Grande Instância Cível


A descrição do percurso talvez beneficie se considerarmos especificamente a sua
concretização numa UO. Escolhi no caso o Juízo de Grande Instância Cível. A escolha teve que
ver com o facto de ser um Juízo com um enorme problema de pendências e de processos em
atraso, ter uma dimensão processual razoável62 e diversos juízes, com a vantagem adicional de
integrar as competências de uma juiz coordenadora, o que permite evidenciar as
potencialidades desse órgão de gestão63.
O quadro que segue apresenta as concretas reuniões de planeamento que tiveram lugar
no juízo, os intervenientes, as matérias tratadas, as decisões tomadas, com indicação de alguns
procedimentos a que deram lugar, não constando aqueles que foram proferidos sob a forma
de despachos de alocação de recursos, nomeadamente de colocação de funcionários.

60
Critérios diversos decorrentes não de qualquer ilegítima vontade de assim agir, mas da inexistência de
padrões informativos e conformadores que possibilitassem a equidade de tratamento.
61
V.g. a preocupação com uniformização de procedimentos; com adoção de critérios idênticos pelos
Magistrados do Ministério Público em determinadas situações; com a abordagem de decisões de
competência e das divergências entre juízes da comarca na sua decisão (sem intervenção de órgãos de
gestão mas tão somente dos próprios e sem carácter vinculativo); com a compatibilização de agendas dos
juízes com a capacidade de trabalho da secção e com a capacidade das salas de audiência estabelecendo
regras de agendamento; com a definição de níveis mínimos de marcação de diligências pelos juízes, etc.
62
No relatório de Dezembro de 2009 os dados referidos, recolhidos do Habilus nos termos nele referidos e
com ressalva das inexactidões a que a transição deu lugar, são os seguintes. «A pendência global do Juízo é
de 6820 processos, sendo 3150 sem decisão e 3670 com decisão. Dos processos pendentes sem decisão 780
processos têm mais de cinco anos e 2370 menos de cinco anos».
63
Pese embora o seu atual desenho na LOSJ (artigo 95.º) seja de incidência territorial e não material o que
lhe retira, a nosso, ver, muitas das suas potencialidades.

63
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

No caso deste Juízo, a provimentação teve caráter residual por ter sido privilegiada a
tomada de decisões colegiais em reuniões de planeamento que, em muitos casos, tiveram na
prática a mesma utilidade64.

Reuniões de planeamento da GICV65

64
Ilustração 5.
65
Tem-se em conta o período de 14 de Abril de 2009 a 31 de Agosto de 2012.

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IV) CONCLUSÕES

O dever de gestão processual consagrado no nosso ordenamento jurídico tem expressão


enquanto gestão do processo e enquanto gestão de um acervo processual.
Estas duas dimensões são vertentes de um mesmo percurso: o da efetiva gestão do
Judiciário pelo juiz, em cada processo e na organização que em tal tem incidência.
O dever de gestão do processo tem, assim, autonomia face à missão de aplicação das
normas v.g. processuais ao caso concreto e beneficia de um enquadramento gestionário,
embora a sua expressão principal se situe ao nível do uso das normas processuais.
Gerir o processo implica, dada a interdependência e concorrência de recursos, com a
gestão do conjunto de processos e com a gestão do tribunal, convocando o exercício integrado
de competências complementares, com fontes e legitimidades diversas.
A experiência concreta da Grande Lisboa Noroeste descrita, considerada apenas ao nível
da própria comarca e prescindindo da interação com órgãos externos, isolou um aspeto crítico
da qualidade do sistema e baseou-se no exercício colegial das competências dos juízes com
funções de gestão e dos juízes com funções jurisdicionais, com intervenção a diversos níveis de
organização do trabalho e das tarefas, no pressuposto da unidade do tribunal/organização e
da instrumentalidade das funções administrativas face à função jurisdicional.
Permitiu, nomeadamente, estabelecer a estratégia com critérios de independência e
imparcialidade próprios dos juízes e estabelecer a responsabilidade dos juízes pela gestão,
face aos cidadãos e aos diversos órgãos de governação do judiciário.

72
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

ANEXOS

Ilustração 1 – Definição do âmbito da Gestão Processual Macro na GLN

Fonte: elaboração própria

Ilustração 2 – Gestão processual macro – Procedimento para obtenção de informação

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Fonte: elaboração própria

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Fonte: elaboração própria

Ilustração 4 – Temas das reuniões de planeamento

Fonte: elaboração própria a partir dos dados das atas de reuniões de planeamento

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Ilustração 5 – Provimentos na GICV

Fonte: Comarca da Grande Lisboa Noroeste

Ilustração 6 – Evolução de pendências

Fonte: Dados que resultaram da consulta mês a mês do sistema Habilus, sem
consolidação e apenas como informação para a gestão

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Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

Ilustração 7 – Mapas de atos (exemplos)

Gabinete

Despachos e agendas

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Contabilidade e outros

Fonte: Dados recolhidos por pesquisa dos códigos

Ilustração 8 – Informação agregada dos atos a praticar na comarca (Julho 2012)

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Fonte: Relatório da presidência da comarca da GLN/Julho 2012

Ilustração 9 – Mapa de conclusões GICV

Fonte: Elaboração própria e acta 141 da GICV

81
Dever de gestão processual. A gestão do processo e a gestão dos processos

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23 de janeiro de 2014

84
Videogravação da comunicação

Vídeo 1 Vídeo 2

85
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
A gestão do processo e a gestão dos processos

Centro de Estudos Judiciários

Ana de Azeredo Coelho

23 de Janeiro de 2014
ÍNDICE

I – Gestão Processual: Dimensões

II – A Gestão do Processo

III – A Gestão do conjunto de Processos (Tribunal, Unidade Orgânica) na


experiência da Lei 52/2008

IV – Conclusões

2
I – GESTÃO PROCESSUAL: Dimensões

3
Em suma, dois conjuntos significativos de normas se perfilam:

- as que se reportam à gestão do processo


- e as que respeitam à gestão global de um conjunto de processos.

Com incidência nos processos judiciais, integram o primeiro grupo a do artigo


6.º do CPC e suas antecessoras, as dos artigos 265.º-A, do CPC na redação de
95/96 e 2.º do Decreto-Lei 108/2006, e o segundo grupo a do artigo 88.º da Lei
52/2008 (NLOFTJ) e sua sucessora, a do artigo 94.º da Lei 62/2013 (LOSJ).

Tomaremos de empréstimo a delimitação estabelecida por (Schwarzer & Hirsch,


2013, p. 187) por referência às regras federais de processo civil dos EUA.

Referem esses Autores:

«A gestão processual, no essencial, envolve a utilização pelo juiz das


ferramentas que tem ao seu dispor, com equidade e bom senso, por um
modo que se adeque à sua personalidade e estilo», em ordem a «assegurar
a justa, célere e económica resolução de todas as ações”

4
A atual preocupação com a gestão processual nos Judiciários corresponde a uma nova
maneira de perspetivar a “eterna” preocupação: a qualidade da decisão judicial.

Parafraseando (Frydman, 2007, p. 19) dir-se-ia que a questão da qualidade da decisão


judicial primeiro confinada à legalidade da decisão ou à sua proporcionalidade,
sindicável pelo sistema de recursos, prosseguiu com a consideração da argumentação
como lugar de legitimidade, vincando a necessidade de fundamentação, para
desembocar na exigência do processo equitativo e justo decidido em prazo razoável
(e previsível) que é ainda procedimental/processual mas é também, muito,
organizacional.

Percurso que passa, assim, da sindicância da legalidade estrita para a da


legitimidade argumentativa e do processo à organização

5
O lugar da gestão processual – exigência de processo equitativo e justo decidido
em prazo razoável, previsível e com eficiência – convoca aquelas duas grandes
áreas de densificação do dever de gestão processual:

- a da gestão do processo
- e a da gestão dos processos

Áreas que têm em comum utilização de instrumentos de organização eficiente dos


recursos disponíveis em ordem à prossecução de uma finalidade.

6
II – A GESTÃO DO PROCESSO

7
A gestão do processo não é uma novidade. A gestão enquanto estratégia de
abordagem e solução de problemas, questões, situações de vida, é algo inerente à
ação humana.

O processo é um problema, coloca questões e submete situações de vida a juízo.


Nessa medida gera estratégias. Estratégias de cada um dos intervenientes. E são
muitos.

Estratégias das partes, desde logo, estratégias do juiz, estratégias das secções,
estratégias das testemunhas, dos peritos, das instituições que nele intervêm (v.g.
Segurança Social, Direcção-Geral de Reinserção Social, Instituto de Medicina Legal,
etc).

8
A estratégia do tribunal / organização desenvolveu-se muito em perspetivas
desconexas e burocráticas, alheando-se da finalidade do processo, de cada processo.

O que não tem principalmente que ver com a malevolência dos intervenientes, mas
com “pecados sociais” ou “pecados organizacionais” relacionados com a ausência de
lideranças, com o anacronismo dos critérios de avaliação do desempenho individual,
com a ausência de critérios de avaliação de desempenho organizacional, com errática
e desintegrada afetação de recursos.

Enfim, com verdadeira falência de gestão do tribunal como organização e do


processo à sua finalidade que o aumento quantitativo e qualitativo do recurso aos
tribunais só tornou mais patente.

Uma linha de reflexão se evidencia: a ligação entre a gestão do processo e a gestão


do tribunal

9
A gestão do juiz tendia a gerir o despacho dos processos (muitos ou poucos) que lhe
eram apresentados pela secção com critérios determinados, mais ou menos
explicitamente, pelo Escrivão.

O que era potenciado por uma manifesta deficiência de informação quando o acervo
processual fosse de dimensão.

O que abre como linha de reflexão a ligação entre a gestão processual e a obtenção de
dados e de informação, que retomaremos a propósito da gestão de um conjunto de
processos.

10
As reformas organizativas do século XXI continuam a tentar contrariar esta tendência,
numa deriva inovatória/revogatória que ainda não cessou e que nem sempre resulta de
reflexão e experiência.

As leis processuais caminham, com idêntico propósito, para o paradigma do juiz ativo,
efetivo gestor do processo, embora também com hesitações e contradições.

É esta procura do juiz ativo que expressam as normas do artigo 265.º-A, do CPC na
redação de 95/96 (CPC 95), do artigo 2.º do Decreto-Lei 108/2006 (RPCE) e do artigo 6.º
do CPC na redação da Lei 41/2013 (CPC 2013).

Como referia o preâmbulo do Decreto-Lei 108/2006:

«Este regime confere ao juiz um papel determinante, aprofundando a


conceção sobre a atuação do magistrado judicial no processo civil
declarativo enquanto responsável pela direção do processo e, como tal, pela
sua agilização. Mitiga-se o formalismo processual civil, dirigindo o juiz para
uma visão crítica das regras».

11
O atual artigo 6.º do CPC é herdeiro desta visão reportando-se à gestão de cada
processo pelo juiz que dele é titular, tanto genericamente, em termos de atitude do
juiz perante o processo, como na regulação concreta de determinadas atuações
que o legislador entende exprimirem essa atitude.

O que coloca a questão da autonomia do dever de gestão processual relativamente


aos atos em que se traduz.

O dever de gestão processual constitui mera chamada de atenção quanto à


necessidade de o juiz aplicar criticamente as leis processuais?

Confunde-se o dever de gestão processual do processo com a aplicação perita das


leis processuais (adequadas à adjetivação das substantivas) ao caso concreto
submetido?

12
A gestão processual nasce, assim, colada à adequação formal, confundindo-se
com ela, agregando sobretudo regras de boa utilização das normas processuais.

Cremos, porém, que a gestão do processo ultrapassa em muito a adequação


formal, mesmo se os atos de adequação formal são um dos seus conteúdos de
eleição.

Afigura-se que em sede de consagração do dever de gestão processual esta norma


contém um único comando:

O juiz deve «dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento


célere».

13
E o CPC estabelece a razão da celeridade.

Fá-lo no final do n.º 1 do artigo 6.º estabelecendo como finalidade «a justa composição
do litígio em prazo razoável».

Ou no artigo 7.º, em sede de dever de cooperação: «concorrendo para obter com


brevidade e eficácia a justa composição do litígio».

14
A dimensão de eficiência, aflorada quanto ao uso das normas e à forma dos atos
(artigos 130.º, 131.º e 547.º), perpassa em termos mais vastos o dever de gestão,
alargando-o a dimensões que se reportam à organização e utilização do conjunto dos
recursos disponíveis – humanos, materiais e tecnológicos.

Com o que temos delimitado o dever de gestão processual do juiz enunciado no CPC
2013:

O juiz tem o dever de dirigir ativamente o processo em ordem a obter com


eficiência a composição justa e célere do litígio.

15
A autonomia deste dever de gestão (ou deste dever como gestão) implica
uma abordagem distinta da integração descritiva dos diversos atos
meramente processuais em que se possa exprimir.

Pelo que é útil e adequado o recurso aos instrumentos de gestão holística


desenvolvidos nomeadamente para o sector público.

O que implica

- a consideração da Missão do processo, da Visão que decorre da


conformação que lhe é dada pelo sistema jurídico, e dos Valores que o
enformam em ordem à definição da estratégia, definindo em concreto
objetivos operacionais e ações a empreender.

- o enquadramento em Perspetivas diversas:


- dos Cidadãos
- das Partes
- dos Procedimentos
- dos Recursos
- da Aprendizagem

16
A Gestão processual do processo

Visão
Resolução célere, justa e eficiente do litígio
Missão

Valores
Composição dos litígios

Perspetiva “Partes”:
Perspetiva “Recursos”: - Igualdade (formal e substancial)
- Materiais -Contraditório (resposta e
Perspetiva “Cidadãos”: - Tecnológicos influência)
- Direção ativa - Humanos (Juiz - tempo/juiz, -Responsabilidade e liberdade
- Justiça (verdade material) agenda - e Funcionários) (factos e prova)
- Celeridade (prazo razoável e -Eficiência
previsível)
- Eficiência Perspetiva “Procedimentos”:
- Tempo/processo (previsibilidade,
Perspetiva “Aprendizagem”:
calendarização, gestão dos prazos)
- Etapas críticas (gestão inicial, audiência - Manuais de Boas Práticas
prévia, audiência de julgamento) - Formação funcionários
- Provimentação
- Organização do dossier físico e eletrónico

17
Em suma,

O enquadramento do dever de gestão processual, enquanto dever de gestão, é autónomo da


dimensão meramente processual, com apelo às regras da gestão e aos instrumentos diversos
pela mesma proporcionados, dos quais se destacam pela sua adequação instrumentos
holísticos que partem da Missão expressa em Valores e da Visão orientadora da estratégia
e da definição das ações a empreender. (Kaplan & Norton, 1993)

Assim, constitui-se ele próprio critério de aferição da adequação das opções processuais do
legislador, aliado aos critérios que os princípios processuais clássicos constituem.

18
Perspetiva dos “cidadãos”: direção ativa

Ao impor um dever de direção ativa do processo pelo juiz o legislador toma claramente
posição quanto ao modelo de juiz que pretende vigore:

- um modelo de juiz cujos poderes de direção são exercidos não apenas por promoção
das partes (princípio do dispositivo) mas no exercício de iniciativa própria
(princípio do inquisitório).

Mas esta visão de juiz e esta noção de processo não é sem polémica e, diga-se, sem
perigos, assimilada que é a uma visão autoritária do processo de que o nosso CPC por
interposto CPC de 39 seria tributário.

O juiz que “serve a solução” é o juiz do presente, sem prejuízo do notável contributivo
reflexivo dado pelos que se preocupam com o «vírus autoritário»

(Gouveia, 2007)
(Mendonça, 2007)

19
Um juiz/gestor com valores que assim se enumeram de modo exemplificativo:

- Independência (na relação com os órgãos de gestão e na interdependência das


competências)

- Imparcialidade («igual preocupação com a sorte de todas as pessoas» (Dworkin,


2011, p. 14))

- Humildade (respeitando «totalmente a responsabilidade e o direito de cada pessoa a


decidir por si própria» (Dworkin, 2011, p. 14); conhecer a realidade da inserção em
organização)

- Coragem («o juiz deve ter poderes que lhe permitam uma efetiva e ativa gestão
dos procedimentos» (CEPEJ-SATURN, (2013)4) e deve usar os poderes que tem)

- Verdade (na relação com as partes, nomeadamente, quanto ao tempo dos processos
prestando informação correta quanto às causas de desvios e quanto às medidas para as
debelar)

- Ciência (utilização das normas processuais e da sua articulação com as


substantivas que regem a declaração do direito)

- Cultura dialogal e diretiva (do processo e da intervenção nele, sem prejuízo de


assunção dos poderes de direção mas antes como o modo de os exercer com firmeza)

20
Perspetiva das “partes”: contraditório

Pedra angular de um processo civil equitativo e justo o princípio do contraditório


consubstancia-se na possibilidade de a parte participar ativamente em todo o processo,
exprimindo-se nos planos:

- da alegação
- da prova
- do direito.
(Freitas, 2013, p. 124 e ss).

Considerando o núcleo fulcral da gestão processual que a adequação formal constitui,


são especialmente sensíveis neste ponto as questões relacionadas com o
contraditório, nomeadamente quando a intervenção do juiz seja oficiosa.

21
Perspetiva “Partes”: recorribilidade

O legislador tomou posição nos termos constantes da norma do artigo 630.º/2 do CPC
que estatui serem irrecorríveis as decisões de agilização e simplificação processuais
previstas no artigo 6.º/1 e as decisões de adequação formal previstas no artigo 547.º.

(Freitas, 2013, p. 231 e ss) defende embora que «a norma do art. 630-2 talvez deva, por isso
[risco do exercício arbitrário dos poderes de gestão], ser racionalmente interpretada no
sentido de só excluir o recurso autónomo de apelação das decisões de gestão processual, que
não sejam de mero expediente (…), deixando aberta a possibilidade da sua impugnação com a
sentença final, nos termos do art. 644-3.».

(Marinoni, 2006) adverte para a importância das questões relacionadas com a fundamentação
e a sindicância das decisões em caso de adequação formal: «as normas processuais abertas
não apenas conferem maior poder para a utilização dos instrumentos processuais, como
também outorgam ao juiz o dever de demonstrar a idoneidade do seu uso».
«pelo fato de o juiz ter poder para a determinação da melhor maneira de efetivação da
tutela, exige-se dele, por conseqüência, a adequada justificação das suas escolhas. Nesse
sentido se pode dizer que a justificativa é a outra face do incremento do poder do juiz»

22
Perspetiva “Procedimentos” internos

1. O tempo/processo

Previsibilidade: indicação da previsibilidade de resolução do litígio, do desvio-padrão, dos


critérios de agendamento e despacho, da situação da UO que o determina.

Calendarização da lide em concreto nos diversos passos que a compõem e no cuidado em nunca
deixar o processo sem prazo - «em todos os processos deve haver, em cada momento, uma data
fixada para a prática de um ato, o que o levará, então, à atenção do juiz»- a fim de evitar que caia
em “roda-livre”. A calendarização do processo é praticamente impossível fora da adequação
formal que é um instrumento muito pesado; a abundância de prazos que o juiz não pode alterar
são um exemplo de negação da gestão processual.

Calendarização de actos específicos

Gestão dos prazos: fixação de critérios para os casos em que o prazo é marcado pelo juiz,
compatibilização entre os prazos assinados às partes e prazos gerais concretos do processo;
adequação de prazos dos atos mediante “negociação” com as partes (ressalvando invocações de
indefesa ou de prejuízo da defesa em razão da exiguidade dos prazos).

23
2. A identificação das etapas críticas

Cada forma processual tem etapas críticas a considerar em termos de calendarização e


de intervenção reguladora prévia.

Restringindo-nos à ação declarativa comum em primeira instância os grandes


momentos de gestão do processo concreto são:

 a gestão inicial do despacho liminar (que é deixado ao critério do juiz – 590.º/1


- sendo a primeira opção de gestão processual que lhe cumpre tomar),

 a gestão inicial do despacho pré-saneador (artigo 590.º),

 a audiência prévia (artigos 591.º a 598.º),

 e a audiência de julgamento/sentença (artigos 599.º e ss e 607.º e ss).

24
 Gestão inicial: Despacho liminar

Esta etapa do processo pode não ter lugar na ação declarativa comum.

A opção a que alude o artigo 590.º/1 deve ser tomada e constitui uma atividade de gestão processual
prévia à existência do processo, a que estaria adequada a provimentação que engloba

Âmbitos diversos:
- orientação da secção
- orientação de auxiliares judiciários como os agentes de execução, os administradores de
insolvência ou os peritos

Atos diversos:
- Autorizações e determinações quanto a prática oficiosa de atos
- Delegações
- Desenho de procedimentos
- Despachos genéricos
- Regulamentos
- Esclarecimentos quanto ao entendimento seguido pelo juiz e instruções para seu
cumprimento
- Disciplina concreta de atos (nomeadamente o controle de citação 226.º/3, sendo certo que
está estabelecido no artigo 162.º/5 um dever de controle genérico pelo juiz presidente)

25
 Gestão inicial: Despacho pré-saneador

A etapa processual consiste no anterior despacho ou atividade de pré-saneamento:

- Suprimento de exceções dilatórias;


- Aperfeiçoamento dos articulados;
- Junção de documentos para apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no
todo ou em parte, do mérito da causa;
- Suprimento de as irregularidades dos articulados;
- Suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da
matéria de facto alegada.

É essencial ao exercício efetivo do dever de gestão processual na dimensão eficiência uma


visão integrada e concentrada desta atividade e da fase global em que se enquadra, pese
embora a prejudicialidade de algumas questões em relação a outras.

A gestão processual é o contrário do despacho a conta-gotas que por vezes ocorre


nesta fase.

26
 Audiência Prévia

Preparação

- Conciliação
- Identificação dos pressupostos em falta (decisão ou sanação)
- Identificação das deficiências fácticas
- Identificação dos temas “destacáveis” (prescrições; prova legal) que possam ser
conhecidos com/sem produção de prova em audiência prévia
- Identificação das necessidades de adequação formal
- Identificação dos meios probatórios adequados
- Temas da prova

27
Despacho

- Indicação dos intervenientes

- Indicação concreta e detalhada da ordem de trabalhos

- Indicação do modo como se perspetiva a realização da audiência prévia,


concretamente a indicação do modo como será feito o debate para enunciação dos
temas da prova:
- debate e organização de facto sem guião
- proposta escrita remetida com o despacho
- proposta escrita apresentada no momento
- debate e redação ulterior
- pedido de propostas no despacho ou na audiência, etc.

- Indicação quanto a antecipação de produção de prova v.g tomada de depoimento de


parte nos termos do artigo 546.º/3

- Indicação da possibilidade de conhecimento de exceção ou mérito

- Indicação da necessidade de adequação formal (audição, proposta, fixação)

28
Calendarização e disciplina

- Data e agenda da audiência de julgamento (início e termo de cada sessão);

- Requerimentos passíveis de apresentação em julgamento;

- Duração da inquirição de cada testemunha;

- Duração das alegações.

29
 Audiência de julgamento

- Cumprimento da programação

- Indicação a final da data previsível da prolação da sentença

30
3. A organização do dossier eletrónico e físico

A título de exemplo:

- o conteúdo do processo físico

- a utilização de pastas de classificação de despachos a proferir (CITIUS)

- a classificação dos despachos proferidos

- a organização temática (não parece que tenha cabimento legal, mas seria útil)

- a organização de um ou vários índices

31
Perspetiva dos “recursos”

A gestão do processo convoca a mobilização de outro tipo de recursos para além do


tempo/processo e das normas processuais.

O juiz do processo tem de considerar todos os recursos afetos à atividade administrativa que é
suporte da sua atividade jurisdicional: humanos, materiais e tecnológicos.

Entre os recursos humanos, o do seu próprio tempo, o tempo/juiz, cuja gestão implica a sua
diferenciação e a diferenciação das intervenções, a definição de regras de agendamento, a
organização do apoio da secção e a consideração concreta das capacidades desta enquanto
grupo e individuais.

32
Entre os recursos materiais a disponibilidade de sala de audiência, mas também de
equipamentos de gravação ou vídeo-conferência, de veículos, de digitalizadores, etc.

Entre os recursos tecnológicos o sistema de tramitação dos processos e as diversas


funcionalidades de recolha de dados para a gestão, embora se reconheça que o
mesmo está desenhado para as secções e não para o juiz.

O juiz do processo é também um gestor dos meios públicos e é


responsável pelo modo como os mesmos são por si, ou sob a sua
direção, geridos ou ignorados

33
Perspetiva da “aprendizagem”

A formalização dos procedimentos permite a transmissão do saber prático que é


elemento essencial de geração de conhecimento da “organização” que se pode exprimir
em Manuais de Boas Práticas a que faz apelo o actual regulamento das inspeções
judiciais.

34
Mas a gestão processual a que o juiz está obrigado não é apenas a gestão do
processo individual mas a do conjunto dos processos que lhe estão distribuídos.

Ora, cada processo convive com os outros e os direitos das partes de um processo
convivem com os direitos das partes em cada um dos demais.
Dizendo de outro modo, entre os processos de um mesmo juiz, de um mesmo Juízo
ou de uma mesma comarca, verifica-se uma concorrência e interdependência de
recursos afetos.

O que apela para a gestão de um conjunto de processos (mais ou menos vasto e com
critérios de afetação por órgão jurisdicional, por matéria ou por território).

Apela também para a complementaridade das competências pois a gestão


processual é cometida ao juiz em exercício de funções jurisdicionais – o titular do
processo -, mas também aos juízes em exercício de funções de gestão – o juiz
presidente e o juiz coordenador.

35
III – A Gestão do conjunto de Processos
(Tribunal, Unidade Orgânica)
na experiência da Lei 52/2008

36
A alusão que faremos a uma experiência concreta determina se pressuponha um
determinado modelo de gestão, o decorrente da aplicação da Lei 52/2008 (NLOFTJ).

Porém, com alterações não muito significativas, a experiência é transponível para a


gestão do conjunto de processos distribuídos a um juiz ou para a gestão do conjunto
de processos de uma unidade orgânica.

O quadro de princípios e valores decorrente da Constituição da República especifica


a independência e imparcialidade como atributos dos tribunais , indicando a
NLOFTJ um conceito potencialmente aglutinador de sentido na referência à
«qualidade do serviço de justiça prestado aos cidadãos» como critério de avaliação
de desempenho.

37
A gestão processual cometida ao juiz presidente tem de ser entendida em conjugação com as
competências dos juízes que exercem funções jurisdicionais, centrando-se na gestão e
organização da tramitação do acervo processual no seu conjunto com o parâmetro de
qualidade do serviço de justiça que engloba vertentes muito diferentes do acompanhamento
ou organização do movimento processual.

Mas as competências de gestão processual macro têm a sua fonte nos critérios que enformam
a gestão do processo a que antes nos referimos, o que determina a centralidade das
competências dos juízes em exercício de funções jurisdicionais, sendo as do juiz presidente
de mero facilitador organizacional.

Este sumariamente o quadro normativo da gestão processual macro do tribunal de comarca,


prescindindo nesta exposição das determinantes interações com a gestão macro do Judiciário
e das aporias que introduzem num quadro que nada tem de unívoco e em muitos casos está
profundamente eivado de contradições.

38
Definição do âmbito da Gestão Processual Macro na GLN

Realização de
- Gestão Processual Macro:
reuniões com os
acompanhamento da tramitação dos
Juízes de Direito
Modelo de gestão processos nas unidades orgânicas
sem recurso a
da NLOFTJ - Identificação do principal problema:
qualquer
obtenção de informação exata e de
ferramenta
forma sistematizada
sistematizada

Características das reuniões:


- Objetivo específico
- Debate
- Elaboração de atas Brainstorming

- Melhor compreensão das opções


tomadas, das encaradas e suas
motivações
- Possibilidade de retoma de determinadas
questões em estádios diferentes

Fonte: elaboração própria

39
Reuniões de planeamento e avaliação

Um dos instrumentos privilegiados de gestão do tribunal e de gestão processual foi a


realização de reuniões de planeamento e avaliação. Envolvendo juízes e funcionários
permitiu o conhecimento directo dos problemas, o diagnóstico das causas e a intervenção
dos diferentes decisores.

a) ordinárias com periodicidade trimestral, por secções, para


avaliação do estado dos serviços e da execução do
planeamento e para diagnóstico de eventuais dificuldades.
Natureza:
b) extraordinárias, por sugestão do juiz presidente, dos juízes
das secções ou dos escrivães de direito, para resolução de
problemas concretos.
Participantes:
a) nas reuniões ordinárias para organização do serviço das secções
Sujeitos: todos os funcionários da secção e os Juízes que entendam
participar.
b) nas reuniões ordinárias para organização do serviço dos juízes
todos os Juízes envolvidos.
c) nas extraordinárias, segundo a natureza do problema, apenas os
juízes, apenas os funcionários (todos ou apenas os escrivães de
direito), os juízes e os funcionários.

40
As reuniões de planeamento foram documentadas em actas com o seguinte teor:

a) Apresentação da questão
b) Debate
Decisões / c) Decisões da juiz presidente
Deliberações: d) Provimentos dos juízes
e) Deliberações conjuntas dos juízes (presidentes e titulares)
f) Propostas ao CSM, à DGAJ ou ao IGFIJ;

As deliberações constantes das actas eram notificadas aos interessados e o texto das
mesmas disponibilizado na INTRANET da comarca.

41
Informação, planeamento e avaliação

Nesta fase ficou desenhado o método de gestão cujos esboços haviam sido traçados
nas reuniões iniciais com os juízes da comarca:

- informação sobre as UO

- planeamento da actividade de cada uma com


estabelecimento de prioridades e objectivos

- execução das actividades planeadas

- monitorização e avaliação da execução do planeado

- redefinição do planeamento com base naquela avaliação


e na informação actualizada

Iniciou-se a prática de obtenção mensal de informação respeitante a cada UO do estado


da pendência, dos atrasos no cumprimento de processos e das dificuldades experimentadas,
informação tratada aos diversos níveis de intervenção

42
Gestão processual Macro - Procedimento de organização da tramitação
Início

Plan

Act Do
Codificação estática Plan

Check

Mapas de atos
(segundo os códigos e
as datas)

Reuniões de
planeamento (Juízes
de Direito)

Definição de
Definição de objetivos
prioridades

Mapas de execução
(momento da prática
dos atos/prioridades)

Mapas de tarefas
(Distribuição das
tarefas segundo os
mapas de execução)

43
1

Do
Atos
(oficiosidades,
Papel Atendimento
conclusões / vistas,
diligências

Conclusão da
execução

Atualização da
codificação dos
processo 
Codificação dinâmica

Relatório de execução
(dos mapas de atos)

Reunião de avaliação Check

S Objetivos
3
cumpridos?

2
44
3 2

Análise das causas /


implementação de Check
ações corretivas

Recursos Recursos Processos de Ocorrências


humanos materiais trabalho excecionais

Aumento / Adoção de
Alterações de Afetação Alteração medidas Act
estrutura excecionais

Identificação de ações
preventivas (que evitem a
ocorrência de potenciais erros
– ex. ações de formação)

Identificação de ações de
melhoria

Conclusão da
avaliação

Fonte: elaboração própria


Fim

45
Temas das reuniões de planeamento

Fonte: elaboração própria a partir dos dados das atas de reuniões de planeamento

46
Mapa de conclusões GICV

Segunda Terça Quarta Quinta Sexta


X7 X02 X11 X00
Cls - sentença Cls – Marcação de Cls - Sentença de Abrir Conclusão
conferência preceito

X8 X03 X12 X01.1 X48


Cls – fase de recurso Cls – fase de instrução Cls – Desistência Fase de citação Visto em correição
(após sentença e antes (nomeadamente
do trânsito) aguardando relatórios)

X9 X04 X13 X01.2


Cls – fase de execução Cls – marcar julgamento Cls - Transacção Fase de articulados
de medida (ou AP em TE)

X10 X05 X01.3


Cls – após trânsito Cls – fase de julgamento Fase Pré-
saneador/Saneador/AP

X14 X06
Cls – 285º CPC Cls – fase de decisão
(marcar julgamento ou
decisão)

X17 X17 X17 X17 X17


Abrir Vista Abrir Vista Abrir Vista Abrir Vista Abrir Vista

X18 X18 X18 X18 X18


Notificar o MP Notificar o MP Notificar o MP Notificar o MP Notificar o MP

Fonte: elaboração própria e ata 141 da GICV


47
Provimentos na GICV

DATA
E ASSUNTO DECISÕES PROCEDIMENTOS
SUBSCRITORES

2009-05-18 Suporte físico do Impressão dos termos e atos do processo para Conhecimento a órgãos de
Juízes processo além dos considerados na Portaria 114/2008 gestão
(em exercício de
funções Notificação de todos os
jurisdicionais) funcionários

2009-09-08 Suporte físico do Impressão dos termos e atos do processo para Conhecimento a órgãos de
Juízes processo além dos considerados na Portaria 114/2008 gestão
(em exercício de
funções Notificação de todos os
jurisdicionais) funcionários

Fonte: comarca da Grande Lisboa Noroeste

48
Mapas de atos
Gabinete
Unidade Orgânica Juízo de Grande Instância Cível - 1ª Secção
Ja n e iro Fe ve re iro Ma rç o Ab ril Ma io Ju n h o Ju lh o Ag o s to S e te mb ro O u tu b ro No ve mb roDe z e mb ro
Código Ac to p ro c e s s u a l
< = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s
XX0 Com Conclusão 9 9 6 4
XX1.1 Fase de citação 0 0 0 0
XX1.2 Fase de articulados 1 1 1 0
XX1.3 Fase Pré-saneador/Saneador/AP
13 5 24 17
XX2 Cls – marcação de conferência 1 1 0 0
XX3 Cls – fase de instrução (nomeadamente aguardando relatórios)
1 1 1 1
XX4 Cls – marcar julgamento (ou AP em TE) 1 1 4 4
XX5 Cls – fase de julgamento 0 0 1 1
XX6 Cls – fase de decisão (marcar julgamento ou decisão após relatórios)
0 0 0 0
XX7 Cls - sentença 31 7 23 6
XX8 Cls – fase de recurso (após sentença e antes do trânsito)
5 5 1 1
XX9 Cls – fase de execução de medida 0 0 1 1
XX10 Cls – após trânsito 0 0 0 0
XX11 Cls - Sentença de preceito 0 0 4 4
XX12 Cls – Desistência 0 0 0 0
XX13 Cls - Transacção 0 0 0 0
XX14 Cls – 285º CPC 0 0 0 0

XX15
XX16
XX17 Com Vista 2 2 2 2
XX18 Aguarda assinatura 1 1 0 0
Tota is 65 33 68 41 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Fonte: dados recolhidos por pesquisa dos códigos


49
Despachos e agenda

Unidade Orgânica Juízo de Grande Instância Cível - 1ª Secção


Ja n e iro Fe ve re iro Ma rç o Ab ril Ma io Ju n h o Ju lh o Ag o s to S e te mb ro O u tu b ro No ve mb roDe z e mb ro
Có d ig o Ac to p ro c e s s u a l
< = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s
X20 Cumprimento de despacho de mero expediente
221 140 90 63
X21 Cumprimento de Notificação – saneador
10 3 2 2
X22 Cumprimento de Julgamento agendado < 90 dias
6 6 8 8
X23 Cumprimento de Julgamento agendado > 90 dias
49 28 52 24
X24 Cumprimento de Notificação – sentença 2 2 0 0
X25 Cumprimento do transito/Capital de remissão
0 0 0 0
X26 Cumprimento de despacho/decisão de prescrição
0 0 0 0
X27 Cumprimento de extinções de pena 0 0 0 0
X28 Artº 78º do CRC/Assinar acta/ARTº 89º CPT
8 8 4 4
X29 Com diligência agendada já cumprido 15 14 9 7
X30 Insistir com agente de execução - citação 13 7 14 10
X31 Insistências diversas 49 30 69 51
X32 Insistir relatório DGRS
X33 Insistir relatório ECJ
X34 Insistir relatório OPC
X35 Insistir relatório SS
X36 Insistir pelo cumprimento de mandado de detenção

X37 Administrador (Juízo do Comércio)

X38 Pesquisa de bens 3 0 2 0


X39 Pesquisa de paradeiro 0 0 0 0
Tota is 376 238 250 169 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

Fonte: dados recolhidos por pesquisa dos códigos


50
Contabilidade e outros

Unidade Orgânica Juízo de Grande Instância Cível - 1ª Secção


Ja n e iro Fe ve re iro Ma rç o Ab ril Ma io Ju n h o Ju lh o Ag o s to S e te mb ro O u tu b ro No ve mb roDe z e mb ro
Có d ig o Ac to p ro c e s s u a l
< = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s < = mê s
X40 Re me te r à conta – Código ante rior a 2004 112 11 118 10
X41 Remeter à conta – Código de 2004 316 29 340 31
X42 Elaborar a conta – Regulamento das Custas Processuais
521 47 570 57
X43 Prestações 1 0 1 1
X44 Avisar a conta 0 0 0 0
X45 Dar baixa da conta 79 10 68 8
X46 Com saldo para corrigir 0 0 0 0
X47 Remeter à distribuição (instrução)/MP (Trabalho)

X48 Visto em correição 73 5 58 4


X49 Remeter ao arquivo geral 2928 78 2976 52
Outras situações

X50 Processos com mandados de detenção pendentes

X51* Mafra
X52* Amadora
X53 Processos com arguidos não notificados da sentença

X54 Processos a aguardarem resposta da SS

X55 Processos a aguardarem prazo da renovação do FGDAM

X56 Processos a aguardarem informações diversas dos OPC

X57 Processos urgentes

Fonte: dados recolhidos por pesquisa dos códigos


51
Informação agregada dos atos a praticar na comarca
Junho 2012

Fonte: relatório da presidência da comarca da GLN / Julho 2012


52
Fonte: relatório da presidência da comarca da GLN / Julho 2012

53
IV - Conclusões

54
 O dever de gestão processual consagrado no nosso ordenamento
jurídico tem expressão enquanto gestão do processo e enquanto
gestão de um acervo processual.
 Estas duas dimensões são vertentes de um mesmo percurso: o da
efetiva gestão do Judiciário pelo juiz, em cada processo e na
organização que em tal tem incidência.
 O dever de gestão do processo tem, assim, autonomia face à missão
de aplicação das normas v.g. processuais ao caso concreto e beneficia
de um enquadramento gestionário, embora a sua expressão principal
enquanto gestão do processo seja o uso crítico das normas
processuais.
 Gerir o processo implica, dada a interdependência e concorrência de
recursos, a gestão do conjunto de processos e a gestão do tribunal,
convocando o exercício integrado de competências complementares,
com fontes e legitimidades diversas.

55
 A experiência concreta da Grande Lisboa Noroeste descrita teve em
atenção apenas o nível da comarca e prescindiu da consideração da
interação com órgãos externos.
 Essa experiência isolou um aspeto crítico da qualidade do sistema – a
duração dos processos - e baseou-se no exercício colegial das
competências dos juízes com funções de gestão e dos juízes com
funções jurisdicionais.
 Permitiu, por isso, intervenção a diversos níveis de organização do
trabalho e das tarefas e teve como pressuposto a unidade do
tribunal/organização e a instrumentalidade das funções administrativas
face à função jurisdicional.
 Permitiu, nomeadamente, estabelecer a estratégia com critérios de
independência e imparcialidade próprios dos juízes e estabelecer a
responsabilidade dos juízes pela gestão, face aos cidadãos e aos diversos
órgãos de governação do judiciário.

56
FIM

57
O Novo Processo Civil – Desafios para o Ministério
Público

[Margarida Paz]
Videogravação da comunicação

Vídeo 1 Vídeo 2

173
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos
sobre problemas colocados pelo CPC de 2013

[Isabel Maria Alexandre]


Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre


problemas colocados pelo CPC de 2013
Isabel Maria Alexandre

Sumário:
I – Deficiências formais de actos das partes (art. 146º)
II – Nulidades principais: o novo vício do erro na qualificação do meio processual
(art. 193º/3) e o eventual novo regime da sanabilidade da ineptidão da petição
inicial (art. 186º/3)
III – Nulidades secundárias: o novo regime atinente à recorribilidade das
decisões sobre elas proferidas (art. 630º/2)
IV – Omissão do dever de gestão processual (art. 6º/1):
 Constitui uma nulidade secundária?
 Em caso afirmativo, em que termos é recorrível a decisão que se
pronuncie sobre a correspondente arguição?
V – Acto de gestão processual (art. 6º/1):
 Está sujeito ao regime das nulidades secundárias?
 Em que termos é recorrível a decisão de gestão processual?
 Reclamação e recurso (art. 593º/3)
VI – Regime das deficiências que afectam o despacho que identifica o objecto do
litígio e enuncia os temas da prova (art. 596º)
VII – Regime das irregularidades da gravação da audiência final ou da audiência
prévia (arts. 155º e 591º/4):
 Consubstanciam nulidades secundárias?
 Podem ser arguidas em recurso?
 São de conhecimento oficioso?
VII – Regime das irregularidades da gravação da audiência final ou da audiência
prévia (arts. 155º e 591º/4):
VIII – Vícios da sentença (arts. 607º e segs.)

177
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

Senhoras e Senhores,

Começo por manifestar a minha satisfação por estar presente nestas Jornadas de
Processo Civil, agradecendo ao Centro de Estudos Judiciários e, em particular, ao seu Director
– Professor Pedro Barbas Homem – o convite que me foi dirigido.

I. Deficiências formais de actos das partes


As deficiências formais de actos das partes vêm tratadas no artigo 146º, do CPC de 2013,
que constitui preceito sem correspondência no anterior Código.
Gabriela Cunha Rodrigues, num estudo intitulado “A audiência declarativa comum”,
constante de um e-book do CEJ sobre o novo processo civil (Caderno I)
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Caderno_I_Novo%20_Processo_Civil.
pdf, relaciona o estatuído no artigo 146º, com o dever de gestão processual mas, sobretudo,
com o princípio da prevalência da substância sobre a forma.

É o seguinte o teor do artigo 146º:


“Artigo 146.º
Suprimento de deficiências formais de atos das partes
1 — É admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da
peça processual apresentada.
2 — Deve ainda o juiz admitir, a requerimento da parte, o suprimento ou a correção de
vícios ou omissões puramente formais de atos praticados, desde que a falta não deva imputar-
se a dolo ou culpa grave e o suprimento ou a correção não implique prejuízo relevante para o
regular andamento da causa.”.

II. Nulidades principais

1. Erro na qualificação do meio processual


O artigo 193º/3 do CPC de 2013, também ele, como assinala Gabriela Cunha Rodrigues
(no estudo já assinalado), reflexo da prevalência da substância sobre a forma, determina o
seguinte: “O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido
oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.”

178
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

Ou seja, este erro de qualificação não parece importar a anulação de qualquer acto,
quando seja, como parece ser a regra, conhecido pelo juiz no momento em que é cometido.
Quando não seja conhecido neste momento, parece que o regime será o dos n.ºs 1 e 2, do
artigo 193º (anulam-se apenas os actos que não possam ser aproveitados e sempre com
ressalva das garantias do réu).

2. Sanabilidade da ineptidão da p.i.


Como salienta o Professor Lebre de Freitas (no livro A ação declarativa comum, 3ª ed.,
págs. 49-50 e 135-137), no CPC de 2013, a réplica deixou de ter como função a resposta às
excepções deduzidas na contestação (é o que resulta da comparação entre o artigo 502º/1, 1ª
parte, do CPC de 1961, e o artigo 584º/1, do CPC de 2013), pelo que se coloca o problema de
saber se, havendo ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade do pedido ou da causa de
pedir e havendo lugar a réplica, o autor pode sanar, na réplica, o vício da ininteligibilidade
mediante nova alegação (como, dantes, se sustentava, à luz do Assento 12/94).
O ponto é duvidoso, segundo o Professor Lebre de Freitas, até porque desapareceu a
tréplica: qualquer solução, porém, na sua perspectiva, sempre teria de assegurar o
contraditório.
Parece preferível considerar que a réplica deve continuar a poder ser utilizada para sanar
o vício em referência (quando haja lugar a réplica, claro), porque as alternativas seriam a
sanação do vício em articulado autónomo ou a redução das possibilidades de sanação do vício,
que se afiguram prejudiciais, respectivamente, para a economia processual e para a justiça da
decisão e, portanto, contrárias à orientação geral do Código.

III. Nulidades secundárias


Há alterações ao regime geral das nulidades dos actos processuais.

É certo que o art. 195º, do CPC de 2013, corresponde ao anterior art. 201º:
“Artigo 195.º
Regras gerais sobre a nulidade dos atos
1 — Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não
admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só
produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir
no exame ou na decisão da causa.

179
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

2 — Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes


que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras
partes que dela sejam independentes.
3 — Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm
como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.”.

Mas há uma importante alteração à regra da recorribilidade dos despachos proferidos


sobre arguições de nulidade, que deixa de ser a regra geral e passa a ser a regra particular do
art. 630º/2:
“Artigo 630.º
Despachos que não admitem recurso
1 — Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso
legal de um poder discricionário.
2 — Não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual,
proferidas nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º, das decisões proferidas sobre as
nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º e das decisões de adequação formal, proferidas
nos termos previstos no artigo 547.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade
ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios
probatórios.” (negrito acrescentado).

Ou seja: Em princípio, não são recorríveis os despachos proferidos sobre arguições de


nulidade, a não ser que a irregularidade cometida contenda com a igualdade das partes,
contraditório, aquisição processual de factos ou admissibilidade de meios probatórios.
E a regra aplica-se apenas aos despachos que indefiram, ou também aos que defiram
arguições de nulidade? Parece que a ambos: o interessado na manutenção do acto não há-de
ter mais direitos do que o interessado no seu afastamento, no que diz respeito à aferição da
sua legalidade pelo tribunal superior.

IV. Consequências do exercício do dever de gestão processual: omissões de gestão


processual
(Estas questões, bem como, em parte, a questão de que trato no subsequente ponto V., já
foram por mim analisadas num estudo publicado no site do CEJ:
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Texto_intervencao_Isabel_Alexandre
.pdf)

180
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

O novo CPC indica, no art. 6º, que a gestão processual constitui um dever do juiz e não um
poder discricionário, isto é, que o não uso dos poderes de agilização e simplificação processual
que a lei lhe atribui constitui a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreve,
importando assim uma nulidade processual (cfr. o novo art. 195º, n.º 1, a que já fizemos
referência).
Este entendimento é acentuado pela circunstância de os projectos de um novo CPC de
Setembro de 2012 e Dezembro de 2011 aludirem a um “princípio” e não a um dever, como
agora sucede.
Harmoniza-se com este entendimento a regra que hoje consta expressamente do artigo
590º/4 (e que difere da constante do correspondente artigo 508º/3, do CPC de 1961): o
proferimento de despacho convidando as partes ao suprimento das insuficiências ou
imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada traduz um poder
vinculado do juiz.
Mas, a haver uma nulidade decorrente do não exercício do dever de gestão processual,
qual o seu regime? Haverá recurso da decisão que indefira a arguição dessa nulidade ou não
haverá tal recurso, por a nulidade não contender com os princípios da igualdade ou do
contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios
probatórios (cfr. o art. 630º, n.º 2, do novo CPC, já mencionado)?
Parece que a omissão do dever de gestão processual, uma vez que este dever está
conexionado com a agilização e simplificação processual (não consideramos agora, claro, o
dever de suprimento da falta de pressupostos processuais, previsto no art. 6º/2, do novo CPC;
referimo-nos ao dever de gestão processual em sentido estrito, consagrado no art. 6º/1), não
constituirá, em princípio, uma nulidade, uma vez que a irregularidade não é susceptível de
influir no exame ou na decisão da causa (influi, quanto muito, na celeridade do processo ou na
quantidade ou complexidade dos actos processuais a praticar) e, portanto, não integra a
previsão do art. 195º, n.º 1, do CPC.
Repare-se que esta solução é aplicável mesmo que se considere o dever de gestão
processual como um verdadeiro dever e portanto a omissão do seu exercício como a omissão
de um acto que a lei prescreve.

E do despacho que indefira a arguição de nulidade, o interessado pode recorrer?


À luz do novo CPC, que determina, no art. 630º, n.º 2, que não é admissível recurso das
decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195º, salvo se estas
contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios, parece estranhamente que estas


duas últimas circunstâncias – a conexão com a aquisição processual de factos e a conexão com
a admissibilidade de meios probatórios – constituem simultaneamente uma condição de
admissibilidade (nos termos desse n.º 2) e uma condição de procedência do recurso (nos
termos do n.º 1, do artigo 195º).
As outras duas circunstâncias – violação do princípio da igualdade ou do contraditório –
bastam para a admissibilidade do recurso, mas parece que este não terá provimento se a
irregularidade cometida não puder influir no exame ou na decisão da causa (porque neste caso
não está preenchida a previsão do n.º 1, do artigo 195º).
Portanto, à luz do novo CPC, dir-se-ia que mesmo que seja recorrível o despacho que
indefira uma arguição de nulidade por omissão do dever de gestão processual – com o
fundamento de que essa omissão significou, por ex., uma violação do princípio da igualdade
(cfr. o n.º 2, do artigo 630º) –, o recurso não terá provimento se a nulidade cometida não tiver
influído no exame ou na decisão da causa (e não terá influído se se prender apenas com a
agilização e simplificação do processo).
Esta solução é estranha: um recurso admissível que está condenado a fracassar.

V. Consequências do exercício do dever de gestão processual: actos de gestão processual

1. Não aplicação da regra do artigo 195º/1


E quando o juiz exerça o seu dever de gestão processual?
Nesta eventualidade já não se coloca o problema da aplicabilidade da regra do artigo
195º, n.º 1, referente aos casos em que se verifica uma nulidade processual, atendendo a que
a aplicação desta regra pressupõe normalmente que não há despacho (“das nulidades
reclama-se; dos despachos recorre-se”): ora quando o juiz exerce o seu dever de gestão
processual proferirá um despacho.
O que significa que, quando o juiz exerce o seu dever de gestão processual, a
irregularidade que eventualmente cometa nesse exercício deverá ser atacada mediante
recurso, e não mediante reclamação por nulidade. Isto não significa, porém, que a lei não
possa prever a reclamação em relação a alguns desses despachos: é o que sucede, como
veremos, em relação aos despachos previstos nos artigos 591º/1, e) e g), 593º/2, b) e d) e
597º, d) e f). Isto não significa também que o despacho não possa ser nulo por aplicação das
regras sobre as nulidades de sentença e sobre as nulidades (secundárias) dos actos
processuais.

182
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

2. Aplicação da regra do artigo 630º/2


As decisões proferidas no uso de poderes de gestão processual são recorríveis? E quais os
poderes do tribunal de recurso na apreciação dessa gestão processual?
Quanto ao problema da recorribilidade destas decisões, cabe salientar que não é
imperativo que estejam em causa, na gestão processual em sentido estrito (isto é, na área em
que a gestão processual se diferencia da aplicação do princípio da oficiosidade), apenas
despachos que possam ser qualificados como discricionários ou de mero expediente (e que,
por esse motivo, sejam irrecorríveis).
Aliás, esta conclusão decorre da leitura do art. 630º, que distingue os despachos de mero
expediente e discricionários (regulados, quanto à sua recorribilidade, no n.º 1) das decisões de
simplificação ou de agilização processual (reguladas, quanto à sua recorribilidade, no n.º 2).

Segundo o artigo 630º, n.º 2, do novo CPC:


“2 — Não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual,
proferidas nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º, das decisões proferidas sobre as
nulidades previstas no n.º 1, do artigo 195.º e das decisões de adequação formal, proferidas
nos termos previstos no artigo 547.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade
ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios
probatórios.” (negrito acrescentado)
Esta regra, claro, subordina-se à do artigo 629º/1, referente ao valor da causa e da
sucumbência: não faria sentido que as decisões de gestão processual fossem equiparadas,
quanto à sua recorribilidade, àquelas relativamente às quais o recurso é sempre admissível
com certo fundamento.
A questão da recorribilidade das decisões de gestão processual tem sido controversa ao
longo do processo legislativo que culminou no CPC de 2013.
O novo CPC, embora tenha suprimido as referências à irrecorribilidade destas decisões,
que constavam de anteriores projectos, não chega porém ao ponto de remeter para as regras
gerais de recorribilidade, solução que se afigurava a melhor do ponto de vista teórico, uma vez
que aquelas decisões podem ter uma natureza muito variada e, como tal, não há razão
nenhuma para que sejam irrecorríveis, se não puderem ser qualificadas como despachos de
mero expediente ou despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário, ou se,
mesmo que o puderem ser, a decisão haja violado algum princípio fundamental do processo
civil.

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

O novo CPC é porém mais restritivo: só a violação de certos princípios – igualdade e


contraditório – ou certas consequências da decisão de gestão processual – ao nível da
aquisição processual de factos ou da admissibilidade de meios probatórios – torna o recurso
admissível.
Esta restrição levanta porém dois problemas:
a) Não haverá o perigo de a recorribilidade da decisão depender do preenchimento de
conceitos indeterminados, gerando-se assim incerteza?
b) Admitido o recurso, quais os poderes da Relação?

A primeira questão merece resposta afirmativa, embora o problema não seja novo:
pense-se, por exemplo, nos pressupostos de que depende a revista excepcional (art. 672º/1, a)
e b)).
Quanto à segunda questão, parece que deve admitir-se o controlo da observância do
princípio violado em recurso ou das consequências da decisão ao nível da aquisição processual
de factos ou admissibilidade de meios probatórios, mas não que a Relação, aproveitando o
controlo de legalidade que lhe é permitido fazer, aproveite para fazer um controlo de mérito,
isto é, que a Relação faça, ela própria, gestão processual.
Em conclusão: o despacho de gestão processual está sujeito a regras de recorribilidade
mais restritivas que a generalidade das decisões judiciais (art. 630º/2).
Mas se se traduzir num despacho discricionário ou num despacho de mero expediente (o
que não é forçoso suceder!), parece aplicável o art. 630º/1: só será recorrível na parte em que
deve obediência à lei (isto é, na parte em que não é discricionário ou de mero expediente).
Refira-se que a solução do art. 630º/2 – para os despachos de gestão processual que não
possam ser qualificados como discricionários ou de mero expediente, porque se assim for
aplica-se, como se disse, o n.º 1 – parece ter-se ficado a dever à ASJP, que propôs a extensão à
gestão processual e à adequação formal do regime do recurso das decisões sobre as
reclamações de nulidade previsto no art. 195º/4, da Proposta de Lei 113/XII (que esteve na
base do actual CPC), isto é, a ASJP propôs que as decisões de adequação formal e de
simplificação ou de agilização processual só fossem recorríveis se contendessem com os
princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a
admissibilidade de meios probatórios (cfr. a sugestão de redacção para o art. 630º/2,
constante de pág. 54, do Parecer da ASJP de Janeiro de 2013, in
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Parecer-ASJP-Janeiro-2013.pdf).

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

Esta solução da ASJP, que acabou por ficar legalmente consagrada, não parece porém a
melhor, tal como não parece a melhor a redacção do art. 195º/4, da PL 113/XII – que acabou
por ficar integrada no actual artigo 630º, n.º 2 –, que se presta a muitas confusões.
Considera-se, com efeito, que as regras gerais sobre recorribilidade seriam suficientes e
que a regulação pelo legislador dos casos em que o recurso é admissível revela alguma
desconfiança em relação à interpretação que os juízes venham a fazer dos poderes que lhes
são atribuídos e respectivos limites.
Por outro lado, e como refere o Prof. Lebre de Freitas no Parecer que entregou à AR
(disponível no site da AR em
http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=94512),
o regime do art. 660º (que se inspirou na previsão do nº 2, do artigo 710º, do CPC de 1961, na
redacção anterior à introduzida pelo DL 303/2007) é garantia suficiente contra recursos
excessivos, ao determinar que a impugnação das decisões interlocutórias que subam a final só
é provida quando a infracção cometida puder modificar a decisão final ou quando o
provimento tenha interesse para o recorrente.

O artigo 660º dispõe o seguinte:


“Artigo 660.º
Efeitos da impugnação de decisões interlocutórias
O tribunal só dá provimento à impugnação das decisões interlocutórias, impugnadas
conjuntamente com a decisão final nos termos do n.º 3, do artigo 644.º, quando a infração
cometida possa modificar aquela decisão ou quando, independentemente dela, o provimento
tenha interesse para o recorrente.”.

3. Reclamação e recurso
A recorribilidade das decisões de gestão processual, nos termos do art. 630º, n.º 2, não
exclui a possibilidade de, em relação a certas dessas decisões, se seguir primeiro a via
impugnatória da reclamação: é o que decorre do art. 593º, n.º 3.
Segundo o artigo 593º/3, no caso de ter sido dispensada a audiência prévia, se alguma das
partes pretender reclamar do despacho a determinar a simplificação ou a agilização processual
nos termos do art. 6º/1, ou do despacho destinado a programar os actos a realizar na
audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as
respectivas datas – despachos estes que se encontram previstos no artigo 593º/2, alíneas b) e
d) e que podem ser qualificados como despachos de gestão processual, sendo aliás duvidosa a

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

necessidade de autonomização do segundo, atendendo a que ainda se enquadra no âmbito do


primeiro –, pode requerer, em 10 dias, a realização de audiência prévia.
Requerendo a parte a audiência prévia com essa finalidade, a audiência deve realizar-se
num dos 20 dias seguintes e destina-se a apreciar as questões suscitadas e, acessoriamente, a
fazer uso do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 591º, isto é, a discutir as posições das
partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões
na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do
debate.
É a seguinte a redacção do artigo 593º:
“Artigo 593.º
Dispensa da audiência prévia
1 — Nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência
prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo
591.º.
2 — No caso previsto no número anterior, nos 20 dias subsequentes ao termo dos
articulados, o juiz profere:
a) Despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
b) Despacho a determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual,
nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
c) O despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º;
d) Despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o
número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas.
3 — Notificadas as partes, se alguma delas pretender reclamar dos despachos previstos
nas alíneas b) a d) do número anterior, pode requerer, em 10 dias, a realização de audiência
prévia; neste caso, a audiência deve realizar-se num dos 20 dias seguintes e destina-se a
apreciar as questões suscitadas e, acessoriamente, a fazer uso do disposto na alínea c) do n.º
1 do artigo 591.º.” (negrito acrescentado)

O artigo 593º/3 prevê portanto uma audiência prévia potestativa, como explica Gabriela
Cunha Rodrigues, no estudo já atrás citado:
“O n.º 3 do artigo 591.º, em consonância com a ideia de que se pretende uma visão
participada do processo, acaba por conferir aos mandatários a faculdade de provocar uma
audiência prévia potestativa (14) nos casos em que pretendam reclamar dos despachos
previstos nas alíneas b) (despacho a determinar a adequação formal, a simplificação ou a

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

agilização processual), c) (despacho que identifica o objecto do litígio e enuncia os temas da


prova) e d) (despacho destinado a programar a audiência final).
Nesse caso, será designada a audiência prévia num dos 20 dias seguintes, a qual se
destinará, em primeira linha, a apreciar as questões suscitadas (segunda parte, do n.º 3, do
artigo 591.º).
Em nosso entender, tal como o juiz deve ser transparente quando designa a data para a
audiência prévia, indicando o seu objecto e as suas finalidades, ao abrigo do disposto no n.º 2,
do artigo 591.º, também a parte deve apontar qual o despacho ou o segmento de despacho
sobre o qual pretende reclamar, devendo ainda, em casos pontuais, indicar as razões da
reclamação, ao abrigo do princípio da colaboração entre as partes e o tribunal (artigo 7.º, do
NCPC), sob pena de o juiz não poder avaliar se o direito de convocar uma audiência prévia
cumpre os requisitos legais.
A título de exemplo, imagine-se que o advogado da parte não pretende reclamar da
calendarização dos actos da audiência mas apenas declarar que está impedido em serviço
noutro tribunal.
Será de convocar uma audiência prévia só para este efeito?
Parece-nos que não, pois não se trata de uma questão relativa à calendarização dos actos,
mas sim relativa ao impedimento a que se reporta o artigo 151.º, n.º 2, do NCPC.”.

O artigo 593º/3 levanta as seguintes dúvidas:


1) Será que só admite reclamação (dos despachos de gestão processual que prevê)
quando não haja audiência prévia?
2) Será que a reclamação desses despachos só pode ter lugar na audiência prévia, não
pode ter lugar numa peça processual avulsa?
3) Será que a reclamação desses despachos exclui a possibilidade de recurso dos
mesmos?
4) Será que a reclamação dos despachos de gestão processual previstos no art. 593º/3
não é possível nas acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, a que
o art. 597º alude?

Relativamente à primeira dúvida, parece que a reclamação dos despachos de gestão


processual previstos no art. 593º/3 só faz sentido quando os mesmos hajam sido proferidos
fora de audiência prévia. Caso esta tenha lugar, tais despachos são proferidos após debate –
conforme decorre do artigo 591º/1, alíneas e) e g) –, pelo que se a parte não se conformar

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

com eles não tem sentido reclamar; o que deve fazer é recorrer, nos termos gerais do artigo
630º/2. Esta solução parece ser corroborada pelo artigo 591º/1, f), que só prevê reclamações,
tendo havido audiência prévia, em se tratando do despacho que identifica o objecto do litígio e
enuncia os temas da prova.
Relativamente à segunda dúvida, parece que a reclamação dos despachos de gestão
processual previstos no art. 593º/3 (isto é, dos mencionados no art. 593º/2, alíneas b) e d))
tem de ser feita em audiência prévia, isto é, não pode ser feita numa peça processual avulsa.
É o que decorre da regra da não duplicação de meios impugnatórios, isto é, da regra
segundo a qual se a lei prevê o recurso (como de facto prevê no artigo 630º/2), então não há
também lugar a reclamação.
É o que também decorre da exposição de motivos do projecto apresentado em Setembro
de 2012, que esteve na base do actual CPC:
“Notificadas as partes, se alguma delas pretender reclamar do que foi decretado pelo juiz
(excepção feito ao despacho saneador, cuja impugnação haverá de ser feita por via de recurso,
nos termos gerais), o meio próprio é requerer a realização da audiência prévia destinada a
tratar dos pontos sob reclamação”.
Relativamente à terceira dúvida, parece que, apresentada a reclamação, se esta for
indeferida, a parte pode recorrer do despacho nos termos do artigo 630º/2. Mas a apelação
será não autónoma, por força do artigo 644º/3.
Relativamente à quarta dúvida, que é a de saber se a reclamação pode ter lugar nas
acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, refira-se que a mesma é
pertinente, porquanto o artigo 597º não alude a qualquer reclamação. Supomos, porém, que a
sustentar-se um tal direito de reclamação, o mesmo não terá de ser necessariamente exercido
em audiência prévia, atendendo a que cumpre ao juiz, nos termos do artigo 597º (corpo)
ponderar sempre a necessidade e a adequação deste acto ao fim do processo. O que significa,
parece, que a reclamação dos despachos de gestão processual previstos no art. 597º, d) e f), a
admitir-se que possa ser deduzida nestas acções (e não se vê por que motivo não o deva poder
ser), pode ter lugar numa peça processual escrita.

VI. Irregularidades do despacho que identifica o objecto do litígio e enuncia os temas da


prova
O artigo 596º trata do despacho destinado a identificar o objecto do litígio e a enunciar os
temas da prova, prevendo a possibilidade de reclamação desse despacho (reclamação essa
que, como já atrás se disse, pode ter lugar, ainda que o despacho haja sido proferido em

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
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audiência prévia: cfr. o artigo 591º/1, f)), bem como a possibilidade de recurso do despacho
que decida as reclamações.
Relativamente a esse despacho, diz Paulo Pimenta, num estudo intitulado “Os temas da
prova”, constante de um e-book do CEJ dedicado ao novo processo civil (Caderno I)
(http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Caderno_I_Novo%20_Processo_Civil
.pdf ):
“Com o regime ora proposto, fica claro que na fase intermédia do processo do que se
trata é de, primeiro, identificar o objeto do litígio e, segundo, de enunciar os temas da prova.
Quanto ao objecto do litígio, a sua identificação corresponde a antecipar para este
momento dos autos aquilo que, até agora, só surgia na sentença, sendo salutar e proveitoso,
quer para as partes, quer para o juiz, esta sinalização depois de finda a etapa dos articulados.
Este acto terá a virtualidade de, em devido tempo, focar os intervenientes processuais no
enquadramento jurídico da lide.
Relativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais de uma quesitação
atomística e sincopada de pontos de facto, outrossim de permitir que a instrução, dentro dos
limites definidos pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas, decorra sem barreiras
artificiais, com isso se assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com
atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica
da lide, aquilo que importará é que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade
histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos.
*…+
Relativamente aos critérios que deverão nortear a enunciação dos temas da prova,
cumpre dizer, desde já, que o método a empregar é fluído, não sendo susceptível de se
submeter a “regras” tão precisas e formais quanto as relativas ao questionário e mesmo à base
instrutória.
*…+
Agora, a enunciação dos temas da prova deverá ser balizada somente pelos limites que
decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas. Nessa conformidade, os temas da
prova serão aqueles que os exactos termos da lide justifiquem.
No limite, pode dizer-se que haverá tantos temas da prova quantos os elementos
integradores do tipo legal em causa, o que implica que o juiz e os mandatários das partes
atentem nisso.
*…+

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

Deve notar-se que a flexibilidade ínsita no conceito de temas da prova garante, só por si,
que a respectiva enunciação seja ora mais vaga ou difusa, ora mais concreta ou precisa, tudo
dependendo daquilo que seja, realmente, adequado às necessidades de uma instrução apta a
propiciar a justa composição do litígio. Por exemplo, é de antecipar que, numa acção que
tenha por objecto vícios de construção numa empreitada, os temas da prova sejam
enunciados com um grau de minúcia maior do que nos casos acima referidos. Assim,
antevendo-se desaconselhável que o tema de prova que se reporte só aos “defeitos” que a
obra apresenta, fará sentido segmentar tais defeitos (v. g., infiltrações, rachadelas, soalho,
pintura, portas, janelas, sistema eléctrico, sistema de exaustão). Tudo dependerá, afinal,
daquilo que ao próprio processo convier para que, insiste-se, a instrução conduza à descoberta
da verdade, isto é, ao apuramento da realidade da concreta obra a que os autos se reportam.”.
O primeiro problema que se coloca neste domínio é o de saber quais os possíveis
fundamentos da reclamação e recurso previstos no artigo 596º, desde logo porque:
– No caso do despacho destinado a identificar o objecto do litígio, não é facilmente
alcançável a sua finalidade e o seu conteúdo possível, atendendo à vigência do princípio da
oficiosidade em matéria de direito. Parece que se esse despacho for entendido como
reportado aos direitos que se pretendem fazer valer na acção (e parece que, na prática dos
tribunais, é assim que está a ser entendido) – por exemplo, o direito a uma indemnização por
dano moral –, ele não pode significar qualquer condicionamento do juiz quanto à fonte legal
de tal direito (a norma X ou a norma Y);
– No caso do despacho destinado a enunciar os temas da prova, a lei não fornece um
critério seguro para a elaboração do despacho e, além disso, parece ter querido cometer ao
juiz da primeira instância uma grande latitude de poderes, permitindo-lhe por exemplo
escolher os casos em que a enunciação dos temas da prova versa ou não versa sobre factos; e,
em se tratando de acção de valor não superior a metade da alçada da Relação, fica até ao
critério do juiz o proferimento do próprio despacho, atendendo a que, segundo a lei, o juiz só
o profere “consoante a necessidade e a adequação do acto ao fim do processo”.
Ao que parece, a reclamação do despacho que identifica o objecto do litígio pode ter
como fundamento a errada percepção do direito que se faz valer na acção: por exemplo, a
parte insurgir-se-á contra o despacho que considerou que na acção se faz valer um direito de
indemnização, porque na sua perspectiva está em causa o direito à entrega de um bem.

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

Mas quais os fundamentos possíveis da reclamação do despacho que enuncia os temas da


prova?
No CPC anterior (artigo 511º), a propósito da fixação da base instrutória, dizia-se que esta
devia compreender matéria relevante para a decisão da causa, ter em conta as várias soluções
plausíveis da questão de direito, e dizer respeito a matéria controvertida; dizia-se ainda que as
reclamações podiam versar tanto a matéria incluída na base instrutória como a matéria
considerada assente; e dizia-se finalmente que as reclamações podiam ter como fundamento
deficiência, excesso ou obscuridade.
Ou seja, no direito anterior os fundamentos possíveis da reclamação da fixação da base
instrutória eram mais perceptíveis do que os fundamentos possíveis da reclamação da
enunciação dos temas da prova.
Parece que, à luz do CPC de 2013, a reclamação pode ter fundamentos muito
diversificados, desde a indevida inclusão nos temas de prova de factos que já estão provados,
até à indevida inclusão de factos em vez de elementos integradores de um tipo legal, passando
pela falta de concretização factual nos casos em que ela se justificaria (como no exemplo
acima, de Paulo Pimenta, da acção fundada em vícios de empreitada), até à colocação, como
tema da prova, de algo que não integre qualquer previsão legal; parece, ainda, que o recurso
da decisão que julgue a reclamação pode destinar-se a controlar juízos de adequação e de
oportunidade da 1ª instância.
O Professor Lebre de Freitas (no livro – já atrás citado – A ação declarativa comum, 3ª ed.,
pág. 175 e nota 18), porém, salienta que a reclamação do despacho que enuncia os temas da
prova pode ter por fundamento deficiência (aqui referindo a omissão de pontos relevantes
para a decisão da causa), excesso (aqui referindo a inclusão de pontos irrelevantes, fora do
objecto do processo ou não introduzidos pelas partes, devendo sê-lo) ou obscuridade (aqui
referindo a redacção que suscite dúvidas quanto ao enunciado dos temas da prova), o que
significa que o Autor considera ainda essencialmente aplicáveis no direito actual os
fundamentos de reclamação que o direito anterior contemplava.
Seja como for, nem a reclamação nem o recurso que estão previstos no artigo 596º
assentam num vício processual, numa nulidade de decisão: dirigem-se, antes, ao conteúdo da
decisão. Sob este ponto de vista, aqueles meios impugnatórios aproximam-se da reclamação e
do recurso da decisão de gestão processual, de que tratámos no ponto anterior.
O que não significa, uma vez que estamos perante despachos, que a estes não sejam
aplicáveis as disposições sobre as nulidades da sentença, uma vez que estas são, em regra,

191
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

também aplicáveis a qualquer despacho (cfr. o art. 613º/3); e, sendo despachos, são
igualmente actos processuais, pelo que as regras do art. 195º lhes são extensíveis.

Quanto ao recurso previsto no art. 596º, refira-se ainda a seguinte observação do CSM,
constante de págs. 145-146 do Parecer sobre a Proposta de Lei 113/XII (in
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/parecer13_novocpc.pdf):
“Nos nºs 3 e 4 do art. 596º vem previsto o seguinte:
«3 – O despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso
interposto da decisão final.
4 – Quando ocorram na audiência prévia e esta seja gravada, os despachos e as
reclamações previstas nos números anteriores podem ter lugar oralmente».
Este nº 4 constitui uma novidade, face ao último projecto submetido a discussão pública.
Da conjugação destes preceitos se retira que, se não houver transcrição da audiência
prévia (nos termos do art. 155º, no qual vem estabelecido que a secretaria procede à
transcrição de requerimentos e respectivas respostas, despachos e decisões que o juiz,
oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível), no que a esta matéria
das reclamações concerne, havendo impugnação, no recurso da decisão final, do despacho
que decidiu as reclamações, terá de subir à Relação o suporte contendo a gravação a essa
questão atinente, a juntar à relativa à eventual impugnação da matéria de facto. Ora, crê-se
que seria conveniente que se estabelecesse que ficassem exarados em acta o despacho que
enuncia os temas da prova, as reclamações e o despacho que as decide, ou, em alternativa, se
determinasse a transcrição obrigatória desses actos, para que, no tribunal superior (ademais,
com o reforço de poderes em sede de reapreciação da matéria de facto e as delongas daí
advindas), não haja que acrescentar à audição da prova gravada também a de actos da
audiência prévia.
Ademais, mesmo na 1ª instância, pode dar-se o caso de o juiz que presidir à audiência
prévia não ser o mesmo da audiência final, parecendo que se imporá materializar, reduzindo a
escrito, o que, em matéria tão fulcral para a “economia” do julgamento, se decidiu naquela
fase intermédia do processo.”

192
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

VII. Irregularidades na gravação da audiência final e da audiência prévia

1. O artigo 155º, do CPC de 2013


O novo CPC contém, ao contrário do anterior Código, regras sobre a disponibilização da
gravação às partes, sobre a arguição da falta ou deficiência da gravação, e sobre a arguição da
desconformidade da transcrição com a gravação.

Essas regras constam do artigo 155º, o qual corresponde, mas só em parte, aos artigos
159º e 522º-C, nº 1, do CPC de 1961, e aos artigos 7º, n.º 2 e 9º, do DL 39/95, de 15 de
Fevereiro; o n.º 1, do artigo 155º, não tem, porém, correspondência em preceitos anteriores.
Determina o artigo 155º:
“Artigo 155.º
Gravação da audiência final e documentação dos demais atos presididos pelo juiz
1 — A audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada,
devendo apenas ser assinalados na ata o início e o termo de cada depoimento, informação,
esclarecimento, requerimento e respetiva resposta, despacho, decisão e alegações orais.
2 — A gravação é efetuada em sistema sonoro, sem prejuízo de outros meios audiovisuais
ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor.
3 — A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do
respetivo ato.
4 — A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar
do momento em que a gravação é disponibilizada.
5 — A secretaria procede à transcrição de requerimentos e respetivas respostas,
despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho
irrecorrível.
6 — A transcrição é feita no prazo de cinco dias a contar do respetivo ato; o prazo para
arguir qualquer desconformidade da transcrição é de cinco dias a contar da notificação da
sua incorporação nos autos.
7 — A realização e o conteúdo dos demais atos processuais presididos pelo juiz são
documentados em ata, na qual são recolhidas as declarações, requerimentos, promoções e
atos decisórios orais que tiverem ocorrido.
8 — A redação da ata incumbe ao funcionário judicial, sob a direção do juiz.
9 — Em caso de alegada desconformidade entre o teor do que foi ditado e o ocorrido, são
feitas consignar as declarações relativas à discrepância, com indicação das retificações a

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

efetuar, após o que o juiz profere, ouvidas as partes presentes, decisão definitiva, sustentando
ou modificando a redação inicial.” (negrito acrescentado)
À audiência prévia aplica-se este regime, por força do disposto no artigo 591º/4.

2. Qualificação da falta ou deficiência da gravação como nulidade processual e


possibilidade da sua arguição em recurso, à luz do CPC de 1961
Levanta-se a questão de saber se as irregularidades da gravação configuram nulidade
processual e, em caso afirmativo, qual o meio processual adequado para arguir essa nulidade,
se a reclamação ou se o recurso.
Sobre esta questão já escreveu Maria Adelaide Domingos, em 30/10/2012, no contexto
do processo legislativo conducente ao actual CPC, num estudo intitulado “Recursos – um olhar
convergente sobre aspetos dissonantes: questões práticas”, constante de um e-book do CEJ
sobre o novo processo civil (Caderno II) (in
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Caderno_II_Novo%20_Processo_Civil
.pdf ).
A Autora dá conta dos contornos desse problema à luz do anterior CPC, referindo que
uma corrente jurisprudencial tendia a considerar que as irregularidades da gravação podiam
ser arguidas em recurso. Como explica a Autora:
“*…+ quando as gravações dos depoimentos apresentam deficiências, colocam-se dúvidas
sobre o tempo e modo de arguição das mesmas e quais as suas consequências.
*…+
O regime vigente instituído pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15/02, não prevê uma data
limite para ser requerida a entrega das fitas magnéticas contendo a gravação, atualmente, o
CD com a gravação.
Prevê tão só um prazo de 8 dias para serem entregues, após terem sido solicitadas (artigo
7.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 39/95).
A deficiência da gravação, que pode ir desde a impercetibilidade total ou parcial de algum
ou de todos os depoimentos, constituiu uma nulidade, por poder influir no exame e decisão
sobre a matéria de facto.
Alguns entendem que se enquadra no regime das nulidades processuais e segue o regime
de arguição dos artigos 201.º e seguintes do CPC (Ac. RL, de 25/05/2010, proc.
179/05.5TBSRQ.L1-8, www.dgsi.pt).
Outros entendem, que se trata de uma irregularidade especial com um regime especial de
arguição, imposto pelo manifesto interesse de ordem pública que se visa alcançar com a

194
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

gravação, conforme decorre do regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 39/95 (Ac. STJ, de
16/12/2010, proc. 170/06.4TCGMR.G1, www.dgsi.pt).
A questão dissonante reside no seguinte:
Se as deficiências apenas forem detetadas aquando da elaboração da minuta do recurso,
decorridos mais de 10 dias após a entrega do suporte e no limite do esgotamento do prazo de
interposição do recurso, influindo as deficiências na apreciação no exame e decisão da
impugnação da matéria de facto, poderá a parte argui-las em sede de alegações? Ou a
nulidade encontra-se sanada por não ter sido arguida atempadamente, força do disposto nos
artigos 201.º e 205.º, n.º1, do CPC?
As respostas da jurisprudência têm evoluído, e apesar de tudo, parecem tender a alguma
consensualização.
Partindo da constatação que não compete à parte controlar as boas ou más condições da
gravação, que é razoável que esta apenas ouça as gravações no momento em que elabora as
alegações (o que poderá fazer até ao ultimo dia do prazo para interpor recurso motivado), e,
por outro lado, a impossibilidade de se apurar o momento exato em que a parte se apercebeu
da deficiência, tem alguma jurisprudência defendido a admissibilidade da arguição em sede de
alegações (Cfr. entre outros, Ac. RL, de 15/05/2011, proc. 64/1996.L1-2, www.dgsi.pt).”.

Identicamente, no sentido da possibilidade de arguição das irregularidades da gravação


em sede de alegações, RP, 8-10-2012
(http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/e94f63841075a28580257
a9f005686a9?OpenDocument):
“I- A falta ou a falha na gravação da prova constitui nulidade processual nos termos
definidos pelo art.º 201.º n.º1 do C.P.CIVIL, pois trata-se de irregularidade susceptível de influir
no exame e decisão da causa, desde logo por retirar ao recorrente a possibilidade de impugnar
em sede de recurso o julgamento da matéria de facto.
II- A tal nulidade será aplicável o regime das nulidades atípicas, aplicando-se a regra geral
sobre o prazo de arguição consignada no artº 205.º nº 1, 2ª parte, do Código de Processo Civil,
sendo que, e no que tange à sua tempestividade a mesma pode ser arguida nas alegações do
recurso de apelação.
III- Às partes não incumbe o ónus de controlar a qualidade das gravações realizadas, pois
que a lei preceitua que serão realizadas pelo próprio Tribunal, nem tal lhes é possível verificar,
tratando-se de acto que não é imediatamente perceptível.”.

195
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

Veja-se também RP 17-4-2012, salientando, diversamente, que a possibilidade de arguir o


vício nas alegações não se sobrepõe ao ónus de arguir o vício no prazo de 10 dias após o seu
conhecimento
(http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/9097d5e9a6d0e9cf80257
9ed004f1da2?OpenDocument):
“I – A nulidade decorrente da deficiente gravação da audiência pode ser arguida dentro
do prazo da alegação de recurso, salvo se se demonstrar que o reclamante teve conhecimento
do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo, podendo tal alegação ter lugar nessa
própria alegação;
II – A arguição dessa nulidade não tem a virtualidade de suspender o prazo para a
apresentação das alegações então em curso desde logo porque se trata de um prazo
processual, estabelecido por lei, sendo, por isso, contínuo.”.

Veja-se, ainda, RP 09-6-2010, que, além de conter um bom relato dos problemas que, na
prática, se colocavam quanto à audibilidade das gravações, trata do motivo pelo qual se
justifica que as respectivas deficiências consubstanciem nulidade
(http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/26d64c1bbb069ece80257
7970047d1ac?OpenDocument):
“O artº 201º do Código de Processo Civil, com décadas de experiência e redigido num
tempo de mais cuidadas técnicas de elaboração legislativa, estabelece que as irregularidades
cometidas no processo só produzem nulidade, na ausência de estatuição legal nesse sentido,
como ocorre na presente situação, quando ela possa influir no exame e decisão da causa,
devendo ser um sentido próximo deste aquele que se há-de atribuir ao referido artº 9º [do DL
39/95, de 15 de Fevereiro]. Se o Tribunal de 1ª instância, depois de ouvidas as testemunhas e
tendo em conta os demais elementos de prova dos autos define quais os factos provados e
quais os não provados e parte de um depoimento gravado não for perceptível, a sua não
repetição, tanto mais que o recorrente o invoque, terá sempre repercussões na decisão da
causa, pelo menos no sentido que impede o Tribunal de 2ª instância de verdadeiramente
reapreciar a decisão proferida sobre a matéria de facto, diminuindo a amplitude do direito ao
recurso.”

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

3. Conhecimento oficioso da irregularidade da gravação, à luz do CPC de 1961 e do art.


9º, do DL 39/95
No direito anterior ao CPC de 2103, além do problema de saber se as deficiências da
gravação consubstanciavam nulidade processual e podiam ser arguidas em recurso, levantava-
se ainda a questão de saber se o vício era de conhecimento oficioso pela Relação.

Como salienta ainda Maria Adelaide Domingos, no estudo já referido, parecia que a
questão devia ser respondida de modo afirmativo, atendendo ao disposto no artigo 9º, do DL
n.º 39/95:
“Também tem surgido como controvertido saber se a Relação pode oficiosamente
conhecer da nulidade quando se apercebe das deficiências da gravação, sem que a mesmas
tenha sido arguidas pelas partes.
A resposta positiva baseia-se no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, na medida em que
estipula “Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou
que esta se encontre imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao
apuramento da verdade.” (Cfr. Ac. STJ, de 16/12/2010, proc. 170/06.4TCGMR.G1; Ac. RP, de
23/02/2010, proc. 4595/05.4TBSTS.P1; Ac. RP, de 23/11/2009, proc. 640/08.0TTMTS.P1,
todos em www.dgsi.pt; Ac. RL, de 24/03/2010, CJ 2010, II, P.160).”.

4. A solução do artigo 155º, do CPC de 2013: as irregularidades da gravação não devem


ser arguidas nas alegações de recurso nem são de conhecimento oficioso;
articulação, quanto a este último aspecto, com o artigo 662º/2, a)
O artigo 155º, do novo CPC, contém regras específicas sobre a invocação das
irregularidades da gravação, das quais parece resultar que estas não podem ser arguidas nas
alegações de recurso.

Como explica Maria Adelaide Domingos (no artigo já referenciado), a este propósito:
“ Suscita-se a dúvida se o n.º 2 do artigo 157.º [correspondente ao n.º 2 do artigo 155º do
CPC de 2013] vai ser interpretado no sentido da disponibilização da gravação do ato, ser
oficiosa, sem precedência de requerimento da parte.
E se assim for, parece ser de entender que o recorrente deixa de poder arguir a nulidade
emergente das deficiências da gravação apenas em sede de alegações, recaindo sobre o
mesmo o ónus de conferir a conformidade da gravação, nos 10 dias seguintes à sua
disponibilização (n.º 4 do artigo 157.º) e arguir, nesse prazo, a nulidade”.

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

As regras do artigo 155º, do CPC de 2013, parecem ainda sobrepor-se, no domínio do


processo civil, ao artigo 9º, do DL n.º 39/95, do que resultaria que as irregularidades da
gravação não são de conhecimento oficioso. Quanto a este último aspecto, porém, haverá que
atender ao disposto no artigo 662º acerca dos poderes da Relação de modificação da decisão
sobre a matéria de facto, que aponta para uma conclusão diferente.
Acerca da questão do conhecimento oficioso das irregularidades da gravação assinala
ainda Maria Adelaide Domingos, no estudo já várias vezes citado:
“Fica, ainda a dúvida, se desaparece a previsão do atual artigo 9.º do Decreto-Lei n.º
39/95 que tem permitido o conhecimento oficioso das deficiências da gravação.
Ou seja, se a nulidade não for atempadamente arguida, e se a Relação constar que a
deficiência compromete a compreensão do depoimento, sendo o mesmo essencial para
apreciar a impugnação, qual a solução?
Deixa de reapreciar e decide com base nos demais meios probatórios, se os houver?
Caberá esta possibilidade na alínea a), do artigo 663.º [correspondente ao artigo 662º/2, alínea
a), do CPC de 2013], entendendo-se que há séria dúvida sobre o sentido do depoimento e
ordena-se a renovação daquele meio probatório perante a Relação?”.
Julga-se que a solução correcta é esta última. Não faria sentido que a Relação, em caso de
dúvida fundada sobre a prova realizada, pudesse ordenar a produção de novos meios de prova
(cfr. o artigo 662º/2, b)), mas já não pudesse ordenar a renovação de um meio de prova
anteriormente produzido; excluir o conhecimento oficioso de uma irregularidade da gravação
e, como tal, reduzir o âmbito do controlo pela Relação por um motivo tão singelo, constituiria,
na verdade, um retrocesso no nosso sistema.

5. Recurso da decisão que indefira uma arguição de nulidade por irregularidade da


gravação, à luz do CPC de 2013
A decisão que indefira uma arguição de nulidade por irregularidade da gravação parece
ser recorrível com fundamento no artigo 630º/2, porque esta irregularidade afecta a
possibilidade de controlo, pela Relação, da decisão da matéria de facto e, desse modo, a
aquisição processual de factos; pode eventualmente entender-se também que a irregularidade
afecta o contraditório, na sua expressão de direito à prova, assim preenchendo a previsão do
artigo 630º/2.

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Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

VIII. Vícios e reforma da sentença


1. Não proferimento da sentença no prazo legal
Não implica qualquer vício da sentença o seu proferimento fora do prazo, porque o prazo
não é peremptório.

É o que se extrai das seguintes disposições:


“Artigo 607.º
1 - Encerrada a audiência final, o processo é concluso ao juiz, para ser proferida sentença
no prazo de 30 dias *…+
*…+”.
“Artigo 156.º
*…+
4 – Decorridos três meses sobre o termo do prazo fixado para a prática de ato próprio do
juiz, sem que o mesmo tenha sido praticado, deve o juiz consignar a concreta razão da
inobservância do prazo.
5 – A secretaria remete, mensalmente, ao presidente do tribunal informação discriminada
dos casos em que se mostrem decorridos três meses sobre o termo do prazo fixado para a
prática de ato próprio do juiz, ainda que o ato tenha sido entretanto praticado, incumbindo ao
presidente do tribunal, no prazo de 10 dias contado da data de receção, remeter o expediente
à entidade com competência disciplinar.”.

2. Vícios da sentença e vícios dos despachos


O preceito referente à aplicação, aos despachos, das regras atinentes aos vícios e reforma
da sentença, foi ligeiramente alterado com a revisão do Código, passando agora a dizer o
seguinte:
“Artigo 613.º
Extinção do poder jurisdicional e suas limitações
1 — Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz
quanto à matéria da causa.
2 — É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a
sentença, nos termos dos artigos seguintes.
3 — O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se,
com as necessárias adaptações aos despachos.” (negrito acrescentado).

199
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

O CPC de 1961 utilizava, no art. 666º/3, uma redacção diferente: dizia que a aplicação das
regras relativas aos vícios e reforma da sentença devia ser feita, até onde seja possível, aos
próprios despachos. Supõe-se, porém, que a alteração de redacção não tem nenhum
significado.

3. Esclarecimento de dúvidas pelo juiz


O art. 666º/2 do CPC de 1961 dizia que o juiz podia, mesmo depois do proferimento da
sentença, esclarecer dúvidas existentes na sentença.
Essa possibilidade não passou para o Código actual: veja-se o correspondente artigo
613º/2.
A supressão da referência justifica-se pela circunstância de a obscuridade ou ambiguidade
da sentença que tornem ininteligível a decisão deverem ser resolvidas através da arguição de
nulidade, nos termos do artigo 615º/1, c).

4. Rectificação de erros materiais


O regime da rectificação de erros materiais do novo CPC (art. 614º) não apresenta
inovações de monta relativamente ao regime do anterior Código.

5. Ininteligibilidade da decisão como causa de nulidade da sentença


Com o novo Código, deixou de figurar como causa de nulidade da sentença a omissão “no
que respeita à fixação da responsabilidade por custas, nos termos do n.º 4 do artigo 659º”,
que passa agora a estar prevista no artigo 614º/1, enquanto causa de rectificação de erros
materiais da sentença.

A inovação mais importante consiste, porém, em consagrar, como causa de nulidade da


sentença, a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível: veja-se o novo
artigo 615º/1, c). Concomitantemente, desaparece a possibilidade de a parte requerer no
tribunal que proferiu a sentença o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade da
decisão ou dos seus fundamentos, requerimento esse que seria feito na alegação, se da
decisão coubesse recurso (regime este que estava previsto no artigo 669º, do CPC de 1961).
É o seguinte o teor do novo artigo 615º:
“Artigo 615.º
Causas de nulidade da sentença
1 — É nula a sentença quando:

200
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

a) Não contenha a assinatura do juiz;


b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade
ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar -se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de
questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 — A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a
requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que
proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 — Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração
prevista no número anterior.
4 — As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante
o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso,
no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.” (negrito acrescentado).

O Professor Lebre de Freitas, num estudo intitulado “Sobre o novo Código de Processo
Civil (uma visão de fora)” (in http://www.oa.pt/upl/%7Ba3edae75-10cb-46bc-a975-
aa5effbc446d%7D.pdf) critica a solução, que considera excessiva, por entender que as partes
têm o direito de compreender a sentença, não apenas a sua parte decisória (como agora se
prevê) mas também os seus fundamentos, podendo a finalidade de evitar abusos ser
prosseguida com a possibilidade de requerer a aclaração em recurso, não esperando a
interposição deste pela resposta do juiz quanto ao pedido de aclaração (além de que a sanção
para os abusos deve ser encontrada no regime da litigância de má fé):
“Em nome da repressão do abuso de direitos processuais, é suprimida a faculdade de
pedir o esclarecimento da sentença.
É facto que os advogados das partes frequentemente recorriam sem fundamento à
reclamação por obscuridade da decisão, amiúde para assim ganharem tempo antes de se
decidirem quanto ao recurso a interpor. E é facto igualmente que os juízes usavam
sistematicamente indeferir o pedido de esclarecimento, ainda quando, nos casos em que ele
se justificava, iam dizendo qual o sentido da decisão tomada. Por essa ser a realidade de facto,
o DL 303/2007 veio determinar que o pedido de esclarecimento passasse a ser feito na
alegação de recurso (art. 669.º-3 do código revogado): o juiz não ficava desobrigado de
apreciar o requerimento (art. 670.º-1 do código revogado), mas a interposição do recurso

201
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

deixava de aguardar essa apreciação. Simultaneamente, o DL 303/2007 deixou expresso, em


sentido oposto à interpretação corrente nos tribunais, que não só a parte decisória da
sentença, mas também os seus fundamentos, podiam ser objeto do pedido de esclarecimento.
Esta possibilidade é, além do mais, pedagógica: a parte tem direito a compreender
integralmente o que o juiz decide e porque decide, tal contribuindo para a transparência da
justiça. Quanto ao abuso, a forma adequada para o reprimir é a sanção por má fé, não a
supressão dum meio que, criteriosamente utilizado, é útil. Optando por esta via e deixando
subsistir apenas, como fundamento de nulidade, a ininteligibilidade da parte decisória, que
muito raramente ocorre (art. 615-1-c), a proposta optou pelo caminho mais fácil, mas talvez
não pela solução mais equilibrada.”.

6. Reforma da sentença
O regime referente à reforma da sentença quanto a custas e multa foi em parte alterado,
levantando-se agora um problema (suscitado pelo n.º 3) quanto ao requerimento, em recurso,
dessa reforma, de que dá conta Pereira Gil (in
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/NCPC_Confronto_VCPC.pdf).
Determina o art. 616º:
“Artigo 616.º
Reforma da sentença
1 — A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a
custas e multa, sem prejuízo do disposto no n.º 3.
2 — Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a
reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica
dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si,
impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
3 — Cabendo recurso da decisão que condene em custas ou multa, o requerimento
previsto no n.º 1 é feito na alegação.” (negrito acrescentado)

Segundo Pereira Gil, no estudo acima assinalado:


“O nº 3 corresponde ao nº 3 do artigo 669º do CPC, inovando na qualificação da decisão
passível de recurso. Significa isto que a reforma a que alude o nº 1 tem que ser feita na
alegação de recurso sempre que a decisão que condena em custas ou multa seja de per si

202
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

recorrível ou basta que a decisão em que está incluída a condenação tributária ou em multa
objecto de reforma seja recorrível pelas regras gerais? A qualificação no NCPC parece apontar
no primeiro sentido. Mas se assim for, dado o disposto no artigo 635º, nº 3, do NCPC (artigo
684º, nº 2, 2ª parte do CPC), parece injustificado que cabendo recurso da sentença, se cinda a
reforma quanto a custas multa da restante matéria decidida na sentença objecto de recurso”.

7. Processamento da questão da nulidade da sentença ou da sua reforma


O processamento subsequente da questão da nulidade da sentença ou da sua reforma
sofreu algumas modificações no novo CPC, como resulta da comparação entre o actual artigo
617º e o artigo 670º do Código anterior.
São de salientar os novos n.ºs 4, 5 e 6 do artigo 617º:
“Artigo 617.º
Processamento subsequente
1 — Se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de
recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia
sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento.
2 — Se o juiz suprir a nulidade ou reformar a sentença, considera-se o despacho proferido
como complemento e parte integrante desta, ficando o recurso interposto a ter como objeto a
nova decisão.
3 — No caso previsto no número anterior, pode o recorrente, no prazo de 10 dias, desistir
do recurso interposto, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a
alteração sofrida pela sentença, podendo o recorrido responder a tal alteração, no mesmo
prazo.
4 — Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode
o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade da
alteração introduzida na sentença, assumindo, a partir desse momento, a posição de
recorrente.
5 — Omitindo o juiz o despacho previsto no n.º 1, pode o relator, se o entender
indispensável, mandar baixar o processo para que seja proferido; se não puder ser apreciado
o objeto do recurso e houver que conhecer da questão da nulidade ou da reforma, compete
ao juiz, após a baixa dos autos, apreciar as nulidades invocadas ou o pedido de reforma
formulado, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o previsto no n.º 6.
6 — Arguida perante o juiz que proferiu a sentença alguma nulidade, nos termos da
primeira parte do n.º 4 do artigo 615.º, ou deduzido pedido de reforma da sentença, por

203
Vícios dos actos processuais: alguns apontamentos sobre problemas colocados pelo CPC de
2013

dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada;
porém, no caso a que se refere o n.º 2 do artigo anterior, a parte prejudicada com a
alteração da decisão pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do
tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença.” (negrito acrescentado)

Sobre estes n.ºs 4, 5 e 6, refere Pereira Gil, no estudo já assinalado:


“O nº 4 é inovador e inspira-se no antigo regime dos agravos quando se verificava a
reparação do agravo.
A primeira parte do nº 5 tem alguma correspondência com a segunda parte do nº 5 do
CPC, passando a baixa do processo a não ser imperativa. A segunda parte do nº 5 é inovadora.
O nº 6 é em certa medida inovador, regressando a segunda parte ao regime previsto no
nº 4 do artigo 670º do CPC, na redacção introduzida pelo decreto-lei nº 180/96, de 25 de
Setembro”.

204
Incidentes da instância

[Carlos Lopes do Rego]


Incidentes da instância

Incidentes da instância
Carlos Lopes do Rego

Sumário:
I – As questões que o novo CPC suscita imediatamente:
a) As normas transitórias;
b) Conteúdo e significado dos Art.os 3.º, 5.º e 6.º
II – O desafio à cultura instalada. As diversas abordagens
III – Os institutos de difícil absorção. Exemplos:
 O activismo judiciário;
 A gestão processual;
 A tramitação da Acção Declarativa
IV – As consequências relacionais
V – O Centro de Estudos Judiciários e a Ordem dos Advogados
 A formação inicial e a formação contínua
VI – O Ministério da Justiça
VII – Os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público
VIII – A Organização Judiciária
IX – A perspectiva a curto e médio alcance

207
Incidentes da instância

I – Intervenção de terceiros:

1. Manutenção da tipologia das formas de intervenção de terceiros em causa


pendente, estruturalmente condicionadas pela natureza da situação jurídica invocada como
base da legitimidade para intervir e da sua conexão com a relação material controvertida,
permitindo distinguir os tipos de incidentes consoante ocorra:
 invocação de um direito próprio, paralelo ao de alguma das partes primitivas, com
quem o interveniente se pretende associar;
 alegação de um direito incompatível juridicamente com a pretensão do A.;
 invocação de uma situação jurídica dependente ou subordinada da relação material
controvertida, (visando o interveniente auxiliar, numa posição subordinada, a parte de
cujo direito está dependente);
 bem como da iniciativa da intervenção (intervenção espontânea ou provocada);
 e dos poderes que assistem ao interveniente no confronto das partes primitivas
(estatuto de parte principal ou de parte acessória).

2. Principais alterações introduzidas pela reforma:


2.1. Eliminação da figura da intervenção coligatória activa – art. 311º – por o interesse
em intervir, com base numa relação autónoma, embora conexa, com a controvertida entre as
partes não justificar - num sistema que permite amplamente a apensação de acções na fase de
instrução e julgamento – a perturbação causada pela intervenção tardia na tramitação da
causa pendente, na fase dos articulados, necessariamente repetidos no confronto do
interveniente (Ex.: acidente de viação com múltiplos lesados, não sendo admissível a
superveniente dedução das suas pretensões indemnizatórias na acção iniciada apenas por um
dos lesados, obrigando a repetir a fase dos articulados sempre que um dos lesados deduz a sua
pretensão).
Mantêm-se, porém, as situações de admissibilidade da intervenção coligatória ressalvadas
por lei especial, obviamente não derrogada pelo CPC (acidentes de trabalho que
simultaneamente se configuram como acidentes de viação, reclamação de dívidas
hospitalares).

2.2. Redefinição do campo da intervenção principal provocada – art. 316º – operando a


substituição da amplíssima cláusula geral que delimitava o âmbito da intervenção principal
provocada (facultando o chamamento relativamente a todos os que tivessem o direito de

208
Incidentes da instância

intervir na causa pendente, como associados quer do chamante, quer da parte contrária –
antigo art. 325º) por um sistema de tipificação, assente na natureza e indispensável
atendibilidade e relevância do interesse que legitima o chamamento (já que nem todos os
casos que justificam a intervenção espontânea devem permitir a dedução da intervenção
provocada), distinguindo-se:
a) os casos de litisconsórcio necessário, em que o chamamento, amplissimamente
facultado, visa assegurar um pressuposto processual;
b) os casos de chamamento, pelo primitivo A., de litisconsortes voluntários ou
subsidiários do R., contra os quais , alterando a sua estratégia processual originária,
pretenda dirigir também supervenientemente a sua pretensão, ampliando o objecto e
o âmbito subjectivo do litígio;
c) os casos de chamamento, suscitado pelo R.:
 quer de possíveis litisconsortes passivos ou condevedores da relação material
controvertida, não demandados pelo A./credor, de modo a operar uma defesa
conjunta ou assegurar a efectivação do direito de regresso; porque não há
chamamento sem interesse atendível (fica claro que demandado apenas o
devedor principal, não pode este chamar a intervir o mero garante da obrigação,
contra o qual nunca poderá ter direito de regresso, e que o credor não curou de
responsabilizar pelo débito).
 quer de possíveis litisconsortes voluntários do A., obtendo por esta via uma
apreciação global e definitiva do litígio, no confronto de todos os possíveis
interessados activos, contra os quais formula uma espécie de pretensão negatória
de apreciação do respectivo direito, não exercitado em juízo contra o
R./chamante (ex: o possuidor ou detentor da coisa, demandado apenas por um
dos comproprietários, requer a intervenção, na acção de reivindicação de todos
eles, a fim de, no confronto de todos eles, demonstrar a inverificação do direito à
restituição da coisa reivindicada).
d) Eliminam-se, assim, os casos em que a intervenção se esgotaria na formulação de um
mero convite para intervir, totalmente desprovido de efeitos se o
interveniente/chamado não deduzisse efectivamente o seu direito – só neste caso
apreciado na sentença, em termos de constituir caso julgado – cfr. o antigo art. 328º,
nº2, al. a) (ex: intervenção, provocada pelo autor, de possíveis litisconsortes
voluntários activos, para deduzirem na causa os respectivos direitos, paralelos aos do
A./chamante: um dos comproprietários desencadeia a acção de reivindicação, não

209
Incidentes da instância

tendo qualquer utilidade o chamamento por este dos restantes comproprietários que
com ele se não quiseram associar inicialmente na lide).

2.3. Alteração da tramitação da intervenção principal espontânea, – art. 315º –


eliminando-se o ónus de cumulação da oposição ao incidente com a resposta à matéria da
causa principal e estabelecendo a imediata decisão sobre a admissibilidade da intervenção
requerida, obedecendo ao seguinte figurino:
 requerimento de intervenção;
 apreciação liminar;
 resposta das partes primitivas;
 decisão imediata sobre a admissibilidade do incidente;
 só depois se processando a apresentação entre as partes dos articulados subsequentes
que a forma processual comporte (amplamente restringidos com a adopção, na versão
actual do CPC, da forma única de processo declaratório comum).

2.4. Restrição à admissibilidade da intervenção acessória provocada – art. 322º –


facultando-se ao juiz – como reflexo do reforço dos poderes de gestão processual - uma
apreciação definitiva, prudencial e casuística da relevância e seriedade da suscitação do
incidente – e limitando para 60 dias o prazo de consumação de todas as citações originadas
pelo incidente.

2.5. Exigência de que, na oposição provocada - art. 338º - o opoente que declara estar
disposto a satisfazer a prestação - só não o fazendo por desconhecer a verdadeira identidade
do credor - consigne logo em depósito a quantia ou coisa devida: deste modo, o alegado
reconhecimento pelo R. da obrigação tem logo de se corporizar em factos (o depósito do
objecto da dívida que se alega reconhecer), como condição de prosseguimento do incidente,
de modo a desincentivar possíveis manobras dilatórias do demandado.

II – O incidente de justo impedimento:

 como causa da prorrogação de um prazo peremptório para a prática de acto


processual a parte ( art. 140º);
 como causa de um excepcional adiamento da audiência marcada por acordo de
agendas ( art.603º) ;

210
Incidentes da instância

 como causa da excepcional admissibilidade de os actos da parte serem praticados por


meios não compreendidos na tramitação electrónica ( art. 144º, nº8).

211
Videogravação da comunicação

Vídeo 1 Vídeo 2

212
Ónus da impugnação

[Maria dos Prazeres Pizarro Beleza]


Ónus da impugnação

Ónus da impugnação 1
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

1. Repartição do tema

De acordo com a repartição que o Senhor Conselheiro Salazar Casanova e eu fizemos do


tema comum da intervenção, Ónus da alegação e ónus da impugnação, coube-me prestar
particular atenção ao ónus da impugnação.
Não faz sentido repetir exposições; no entanto, dada a estreita relação entre um e outro
ónus, começo por fazer um brevíssimo apanhado da solução consagrada no Código de
Processo Civil 2013 quanto à alegação de factos, com o objectivo de a estabelecer.

2. Princípio dispositivo, alegação e impugnação de factos:

Suponho que existe uma ligação estreita entre o ónus da alegação e o ónus da
impugnação de factos, porque penso que, para além das razões que se costumam apontar
para a imposição do ónus da impugnação,

• forçar a parte a tomar posição sobre os factos alegados pela parte contrária,
responsabilizando-a pelas afirmações de facto,
• disciplina processual,
• sendo que é a parte quem tem melhor conhecimento dos factos, aproveitar esse
conhecimento, impondo-lhe um ónus que a “incita” a colaborar, pois não é indiferente
ao tribunal ter ou não uma versão bilateral dos factos…

As consequências ligadas ao respectivo incumprimento são ainda uma importante


manifestação da força do princípio dispositivo no processo civil vigente:

1
Notas que serviram de base à intervenção realizada no dia 24 de Janeiro de 2014, nas Jornadas de
Processo Civil organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários.

215
Ónus da impugnação

• porque, de um acto da parte (de uma omissão, ou melhor, do seu silêncio), a lei retira
a consequência de que o facto não impugnado se tem como assente
vinculativamente para o tribunal, que não pode submetê-lo a prova para averiguar se
ocorreu ou não;
• SALVO quanto aos factos instrumentais, porque aí a admissão por acordo, que se
presume, pode vir a ser “afastada por prova posterior” (nº 2 do 574º);0
• MAS quanto aos factos instrumentais, também não vale o princípio dispositivo para
a alegação: podem ser oficiosamente considerados, desde que resultem da instrução
da causa (5º, nº 2, a)). Desapareceu a afirmação expressa que essa consideração podia
ser oficiosa, como estava no ex-264º, nº3; mas o regime permanece.

ISTO É: a imposição do ónus da alegação não é uma consequência necessária do


princípio dispositivo.

• Não existia no Código de Processo Civil 1876, salvo para os chamados processos
cominatórios (ex: despejo).
• O Decreto de 29 de Maio de 1907, que criou o processo sumário; veio cominar a falta
de impugnação com a condenação no pedido.
• O Decreto nº 13979, de 25 de Julho, estendeu ao processo ordinário o ónus da
impugnação, com a cominação de admissão por acordo.
• Daí passou para Decreto nº 21287, de 26 de Maio de 1932, e daí para o Código de
Processo Civil 1939.

MAS a consequência do incumprimento é própria de um processo dispositivo, porque o


facto fica assente em virtude de um acto da parte, sem que o juiz possa submetê-lo a mais
prova.
ASSIM:
3. O novo Código de Processo Civil eliminou a referência ao princípio dispositivo.
• Constava do art 264º, relativo à alegação de factos e aos factos de que o tribunal podia
conhecer [epígrafe: “Princípio dispositivo”].
• O art equivalente, 5º, tem essa epígrafe (“Ónus de alegação das partes e poderes de
cognição do tribunal “); Mas eliminou-se a expressão “princípio dispositivo”.

216
Ónus da impugnação

Não me parece claro o objectivo da eliminação; admito que se tenha pretendido dar a
indicação de que se quis acentuar o aumento de poderes do juiz, face aos poderes das partes.

A verdade é que o princípio dispositivo continua a valer quanto aos aspectos


fundamentais do processo; como não podia deixar de ser, uma vez que os litígios julgados
segundo as regras do Processo Civil respeitam a direitos privados disponíveis, que não podem
ver a sua natureza subvertida por regras processuais.
O Processo Civil é um direito instrumental, como os demais ramos de Direito Processual: o
princípio dispositivo acaba por ser a tradução processual dessa disponibilidade e da autonomia
da vontade.

4. No Processo Civil português, as partes dispõem do objecto do processo, ou seja, do


conjunto formado pelo pedido e pela causa de pedir, ampliado pela eventual
dedução de excepções (o mesmo vale para a reconvenção, pelo que se não trata aqui
autonomamente) - como é natural: natureza privada disponível dos direitos das partes
– e, por essa via, determinam o âmbito dos poderes de cognição do tribunal e do caso
julgado.
A disponibilidade do objecto do processo decorre da natureza disponível dos direitos
apreciados segundo as regras do processo civil.
Deixando agora de lado as questões relativas ao pedido, e demais manifestações do
princípio dispositivo.

5. A causa de pedir, a excepção e a alegação de factos

Questão: saber se o princípio dispositivo vale também para a delimitação dos factos de
que o tribunal pode conhecer para julgar o pedido , integrantes ou não da causa de pedir (ou
fundamentadores da excepção) – ou seja, saber se têm de ser alegados para que o tribunal
deles possa conhecer, se existe um ónus de alegação,

CÓDIGO ANTERIOR (ex-artigo 664º com as limitações previstas no ex-artigo 264º):


1.º – Regra: às partes cabia alegar os factos integrantes da causa de pedir e das excepções
e,
2º – em geral, o tribunal só podia conhecer dos factos alegados pelas partes, salvo
tratando-se de:

217
Ónus da impugnação

• factos notórios (factos de que têm conhecimento as pessoas medianamente


informadas, no espaço geográfico relevante) – ex 514º;
• factos de que o tribunal toma conhecimento em virtude do exercício das
suas funções - ex 514º;
• factos necessários para evitar o uso anormal do processo - ex 665º;
• ou, com certas exigências, de factos instrumentais.

3.º - quanto aos factos complementares ou concretizadores dos factos essenciais,


resultantes da instrução ou discussão da causa, exigia-se uma “alegação a posteriori”: a parte a
quem aproveitavam tinha manifestar a vontade correspondente, para que o tribunal deles
pudesse conhecer.

Como é no Código Novo:

1º- A afirmação (do ex-664º) de que o tribunal está limitado pelos factos alegados pelas
partes não passou para o novo Código.
2º- No artigo 5º, nº 1, diz-se agora que cabe às partes alegar “os factos essenciais que
constituem a causa de pedir e aqueles em que baseiam as exceções invocadas”.
3º- No nº 2, define-se o regime de conhecimento dos factos instrumentais e dos factos
complementares e concretizadores dos que as partes alegaram (não alegados nos articulados,
nem tendo a parte sido convidada a alegá-los, nos termos do artigo 590º).
4º - No artigo 612º, trata-se do regime dos factos notórios e de que o tribunal tem
conhecimento em virtude do exercício das suas funções.

Vejamos então:

1º – Distinção entre factos que integram a causa de pedir e outros factos: remeto para a
exposição anterior. Apenas recordo que os termos da lei aprovada parecem querer distinguir
entre os factos necessários à identificação da causa de pedir e os (demais) factos necessários à
procedência do pedido do autor.

A mesma questão se coloca quanto à delimitação dos factos que integram a excepção
peremptória (individualizam a excepção /são necessários para conseguir a improcedência da
acção).

218
Ónus da impugnação

Quanto às excepções, não se coloca, evidentemente, o problema da ineptidão; mas põe-


se o problema paralelo de saber o que é preciso alegar para que o tribunal conheça da
excepção; e o mesmo se diga quanto aos factos complementares ou concretizadores (também
necessários, não para a identificação, mas para a procedência da excepção).

2º – Do ponto de vista da disponibilidade, que é a que agora me interessa, tem


relevância esta distinção? Há alterações, face ao Código anterior?
Suponho que a resposta seja esta:

1º- Há disponibilidade sobre os factos essenciais (que seguramente integram a causa de


pedir; o mesmo quanto à excepção): o tribunal só pode conhecê-los se forem alegados (nº 1,
do artigo 5º) – alegação directa das partes;
2º- Quanto aos factos complementares ou integradores, (e seja qual for a opinião sobre
o conceito de causa de pedir), a sua utilização pelo tribunal não está dependente de alegação
directa (nº 2, b), do artigo 5º), pode conhecê-los:
• quer tenham sido alegados, inicialmente ou em resposta ao convite ao
aperfeiçoamento feito nos termos do artigo 590º,
• quer não, desde que resultem da instrução da causa (Código anterior, também
da discussão) e que as partes tenham a possibilidade de se pronunciar sobre eles.

Foi eliminado o requisito constante do ex- 264º “desde que a parte interessada manifeste
vontade de deles se aproveitar”, que tinha a função de uma “alegação a posteriori”; presume-
se que a parte quis deles beneficiar.

• Questão: a parte beneficiada tem o direito de se opor à consideração desses factos?


Entendo que sim e, portanto, que ainda estão na disponibilidade da parte. É a solução
conforme com a disponibilidade da relação material.

• Mas esta possibilidade de consideração de factos complementares ou concretizadores


da causa de pedir ou da excepção significa que a parte tem o direito de os alegar
depois dos articulados? Durante a instrução, por exemplo?

219
Ónus da impugnação

Creio que uma resposta afirmativa seria dificilmente compatível com a manutenção das
regras relativas à alegação de factos posteriores aos articulados, definidas a propósito dos
factos supervenientes (588º),ou com as limitações ao convite ao aperfeiçoamento (590º).

Nota importante: há naturalmente que distinguir o ónus de alegação (de factos) e


a preclusão (da possibilidade de alegação).

3º- Quanto aos factos instrumentais, com função probatória, não estão dependentes de
alegação, para poderem ser conhecidos; podem ser utilizados desde que resultem da instrução
da causa e não estão na disponibilidade da parte. Não estão abrangidos pelo ónus de alegação.
E, sendo de conhecimento oficioso, podem ser alegados enquanto puderem ser oficiosamente
conhecidos.

Porquê a diferença? Porque desempenham um função probatória, neste sentido não


autónoma (base de presunções); porque o juiz tem amplos poderes inquisitórios do juiz, no
que respeita à prova – artigo 411º.
Já antes da reforma de 95, o Prof. Antunes Varela defendia que os factos instrumentais,
dada a sua função probatória, podiam ser oficiosamente considerados pelo tribunal.
Razão de ser da necessidade de resultarem da instrução (cfr. actas da Comissão de
Revisão do Código de Processo Civil, presidida por Antunes Varela): delimitação objectiva da
forma como chegaram ao conhecimento do tribunal; imparcialidade do juiz e contraditório.

6. O ónus da impugnação.

É habitual tratar-se da impugnação e do ónus da impugnação a propósito da contestação.


É aliás na contestação que o Código de Processo Civil o regula, definindo o âmbito, as
excepções e a consequência da falta de cumprimento – artigo 574º.
E assim o vou tratar.
Na verdade, porém, não está apenas em causa uma das regras de organização da
contestação, mas antes uma questão mais geral, que se coloca a ambas as partes e em
relação aos factos alegados pela parte contrária (ou até aos conhecidos oficiosamente? ou não
alegados mas resultantes da instrução do processo?).
• Vejamos, por ex:

220
Ónus da impugnação

1º- réplica: o artigo 587º estende a regra do ónus da impugnação à “falta de


apresentação da réplica ou [à] falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu” – ou
seja, à atitude do autor perante a alegação de novos factos pelo réu, seja na reconvenção, seja
na acção de simples apreciação negativa ou seja na excepção, nº 1;
e às excepções deduzidas na réplica, nº 2, o que levanta dificuldades acrescidas na lei
actual, tendo em conta a limitação da réplica e a inexistência de tréplica (quando o autor se
defende por excepção da reconvenção);
2º- vale para os articulados supervenientes – 588º, nº 4;
3º- e quanto aos factos conhecidos oficiosamente? Notórios e etc., e instrumentais? [3º,
nº 3, contraditório!]
4º- e quanto aos factos complementares e concretizadores, resultantes da instrução do
processo?
A lei anterior dizia “desde que tenha sido facultado o contraditório” à parte contrária à
que deles beneficia. Hoje, sem distinguir as partes, diz “desde que sobre eles tenham tido a
possibilidade de se pronunciar”.

7. Continuação
Por facilidade, vou analisar o ónus da impugnação a propósito da contestação; no fim,
chamo a atenção para a necessidade de generalização. Assim:
1º. É habitual distinguir ( 571º, ex 487º), na contestação-defesa,
a defesa
• por impugnação
• por excepção
isto é, não sair do círculo dos factos constitutivos do direito do autor/ alegar contra-
factos, factos novos (excepções peremptórias) ou obstáculos ao conhecimento de mérito
(excepções dilatórias).

2º.Importância da distinção:
a) anteriormente: número de articulados admissíveis. CPC 2013: não releva quanto a
este aspecto, porque só é admissível réplica em caso de reconvenção e nas acções de
simples apreciação negativa. Mantêm-se, no entanto, as exigências do princípio do
contraditório, quanto à possibilidade de resposta à excepção, seja qual for a forma de
a apresentar (na audiência? artº 3º, nº 4? na réplica, se tiver havido reconvenção?);

221
Ónus da impugnação

b) ónus de discriminar as excepções, na contestação, sob pena de os factos que as


integram não se considerarem admitidos por acordo se não forem impugnados pelo
autor, de acordo com a regra da impugnação definida (CPC 2013, art. 572º, c));
c) ónus da prova: a defesa por impugnação, ainda que indirecta, não cria nenhum ónus
da prova para o réu. Mantém-se o ónus da prova do autor, quanto aos factos
constitutivos do direito que invocou.

3º. e, dentro da impugnação,


• impugnação de facto
• impugnação de direito

e, dentro da impugnação de facto,


• impugnação directa,
• impugnação indirecta.

Desenvolvimento:
a. Impugnar de direito, apenas, significa reconhecer os factos alegados;
b. Na perspectiva do ónus da impugnação, só interessa a impugnação de facto. Não há
nenhuma disponibilidade quanto à qualificação jurídica dos factos alegados pelo autor, nem
quanto ao efeito jurídico que deles pretende retirar (ou seja, do pedido e da causa de pedir)

Como se sabe, não há disponibilidade quanto à qualificação jurídica dos factos, nem, em
geral, quanto à solução jurídica do litígio:
• 1 – Não vincula o tribunal, a subsunção dos factos integrantes da causa de pedir (por
exemplo, na responsabilidade contratual ou extracontratual, na qualificação de
contratos ou de vícios);
• 2 – Não vincula o tribunal um eventual acordo das partes sobre qualificações jurídicas
(de contratos, por ex., ou de vícios) ou sobre a aplicação de um determinado regime
legal;
• 3 – O mesmo se diga quanto ao enquadramento jurídico do pedido, desde que
respeitado o efeito prático que o autor pretende de modo diverso daquele que o autor
lhe deu ;
Pex: o autor pediu a declaração de nulidade ou a anulação de um acto que impugna;
mas o efeito “certo” para a causa de pedir invocada é a ineficácia. Pense-se na

222
Ónus da impugnação

impugnação pauliana: o credor quer executar os bens alienados, e até no património


do adquirente. O tribunal pode declarar a ineficácia do acto impugnado, quando foi
pedida a sua anulação? Ou julga improcedente a acção?
Suponho que a resposta seja afirmativa: pode julgar o acto ineficaz.
Acórdão de Uniformização n.º 3/2001 (23.1.2001): Tendo o autor, em acção de
impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico
impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a
ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz
deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo
664.º do Código de Processo Civil (Nota: tem votos de vencido, por causa do 661º, nº 2
anterior).

Vejamos então o ónus da impugnação:

8. Ónus da impugnação definida


Quanto à defesa por impugnação (de facto), o Código de Processo Civil continua a
consagrar o ónus da impugnação definida, ou seja:
O réu tem de tomar posição definida perante os factos alegados pelo autor, sob pena
de se considerarem admitidos por acordo.
Vejamos os pontos que interessam:
1º. O que se entende por posição definida;
2º. De entre os factos alegados pelo autor, a que factos se refere o ónus;
3º. Quais são as consequências da falta de impugnação;
4º. Quais são as excepções ao ónus de impugnação;
5º. Impugnação e simples desconhecimento.

1º– Posição definida:


1– Até à reforma de 1995, falava-se em ónus de impugnação especificada e proibia-se
expressamente a contestação por negação (global, ou genérica).
Utilizando a expressão posição definida, o (então) artigo 490º dizia que se tinham
como admitidos por acordo os factos não impugnados especificadamente.
2– Em 1985 (Decreto-Lei nº 242/85, 9 de Julho, Reforma Intercalar do Processo),
previu-se a possibilidade de impugnação por remissão para os artigos da petição inicial;

223
Ónus da impugnação

3– Em 1995, com o objectivo de atenuar a rigidez, eliminaram-se a expressão


“impugnação especificada” e a proibição expressa da contestação por negação.
Ora:
O alcance, ou o nível de impugnação exigido, deve ser interpretado em função da
razão de ser do ónus correspondente. O que se pretende é que o réu assuma uma posição
quanto aos factos que o autor alega (todos os que são abrangidos pelo ónus de impugnação).

Isso não significa:


1– que tenha de se pronunciar por referência a um por um dos factos. Tendo em conta
a relação que existir entre os factos alegados pelo autor, a impugnação de um facto de que
outros dependem dispensa a impugnação dos factos dependentes;
2– a contestação tem de ser interpretada globalmente: não podem ter-se como
admitidos factos que não foram impugnados directamente, mas que são incompatíveis com
outros que o foram; assim como não se devem considerar impugnados factos que o réu afirma
estar a impugnar, sem o fazer subsidiariamente, quando a versão global da contestação
assenta numa lógica incompatível com essa impugnação;
3– que significa a eliminação da proibição da contestação por negação?
Continuo a entender que não vale como impugnação a negação global, genérica
(incompatível com a razão de ser da imposição do ónus de impugnação definida…).
Ex: Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Dezembro de 2004, www.dgsi.pt,
proc. nº 04A404 – a suficiência da impugnação e a eventual negação global tem de ser avaliada
em cada caso.

4– E os factos negativos? Quando estão suficientemente impugnados?


Tal como quanto ao ónus da prova, não há nenhuma inversão do ónus de alegação
quanto aos factos negativos: não há que afirmar factos positivos contrários.

2º– Factos alegados pelo autor: que factos?


Na definição do conteúdo da petição inicial (552º) e da contestação (572º) diz-se,
quanto à alegação de facto,
• que o autor expõe “os factos essenciais que constituem a causa de pedir” (CPC anterior
dizia “expor os factos”);

224
Ónus da impugnação

• e que o réu “expõe os factos essenciais em que se baseiam as excepções deduzidas”


(CPC anterior dizia “expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão
do autor”);
• e, quanto ao ónus da impugnação, que o réu “tem de tomar posição definida perante
os factos que constituem a causa de pedir” (CPC anterior dizia “tomar posição definida
perante os factos articulados na petição”).

Quererá isto dizer que o ónus da impugnação só existe quanto aos factos essenciais –
os tais que constituem a causa de pedir (na perspectiva “minimalista”)?
NÃO: o ónus da impugnação abrange
1- os factos essenciais;
2- os factos complementares ou concretizadores daqueles;
3- os factos instrumentais.

ISTO É:
• Factos complementares: tendo sido alegados pelo autor, recai sobre o réu o ónus de
os impugnar.

A redacção pode induzir um sentido diferente, mas:


• em primeiro lugar, referindo-se a lei aos factos instrumentais, não faria sentido
concluir que o ónus da impugnação abrange os factos instrumentais, se alegados pelo
autor, mas não os factos complementares ou concretizadores;
• em segundo lugar, cfr. artº 590º, nº 6 (limites ao aperfeiçoamento resultante de
convite, no despacho pré-saneador, ex. 508º): prevê-se expressamente que o
aperfeiçoamento, não incida sobre o núcleo da causa de pedir, pois não pode implicar
a respectiva alteração, e não sirva para suprir a falta de impugnação definida.

O convite não pode incidir sobre factos essenciais, no sentido de integradores da causa
de pedir, nem terá grande utilidade para os factos instrumentais. Interessa, sobretudo, para os
factos complementares ou concretizadores dos factos essenciais, alegados pelas partes.

• A DIFERENÇA está em que, quanto aos factos instrumentais (nº 2, do 574º), não é
definitiva a consequência da falta de impugnação definida, porque “a admissão dos

225
Ónus da impugnação

factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior”; mas estão abrangidos
pelo ónus de impugnação, se tiverem sido alegados.

3º– Quais são as consequências da falta de impugnação.


A falta de impugnação definida implica que os factos se consideram admitidos por
acordo (por isso se fala de ónus, uma vez que o seu não cumprimento importa consequências
desfavoráveis).

Que significa exactamente isso?


1- No processo: os factos têm-se por assentes (admitidos por acordo; a lei não diz
confessados, como na revelia).

Não é indiferente a escolha das palavras, embora, na prática a diferença entre


confissão e admissão por acordo não seja muito expressiva.
No entanto, revelam diferentes atitudes psicológicas ou diferentes ponderações: a
admissão pode significar, apenas, que a parte não quer discutir um facto, seja por o considerar
irrelevante, seja por outro motivo qualquer. Por isso mesmo, é diverso o regime aplicável a
eventual falta ou vício da vontade. Recorde-se que o regime de anulação ou de declaração de
nulidade, previsto no artigo 359º, do Código Civil, para a confissão expressa, é aplicável à
revelia, com as devidas adaptações.

Na prática, que sucede aos factos não impugnados eficazmente:


• Antes de 95, eram incluídos na especificação, se relevantes;
• Depois de 95, na “lista de factos assentes”;
• Com o CPC 2013, não haverá necessariamente essa lista, sem prejuízo de, na audiência
prévia, poderem ser indicados.
Caberá ao juiz escolher a solução que se lhe afigurar mais adequada, dentro dos poderes
gerais de adequação formal e gestão processual, nomeadamente, fazendo a “lista” dos factos
assentes.
A complexidade da matéria de facto pode recomendá-lo.

• EM QUALQUER CASO, os factos, se relevantes, são considerados na sentença, sem que


sobre eles recaia prova. Sentença ( art. 607º, nº 4).

226
Ónus da impugnação

(Temas da prova genéricos; necessidade de respeito pelos factos assentes, na produção


da prova)
Poderá suceder que, frequentemente, haja factos assentes que respeitem a matéria
incluída nos temas da prova.

“Admissão ficta”: tal como na revelia, também aqui a lei atribui significado declarativo
(de admissão) ao silêncio da parte.
No fundo, há uma presunção de admissão, não ilidível: ficta, como na revelia
(confissão ficta).

2- Fora do processo: não aplicável o regime relativo ao valor extra-processual das


provas (à revelia também não é aplicável).
Suponho que nem será aplicável à admissão expressa (diferentemente do que sucede
com a confissão judicial expressa).

3- E se houver pluralidade de partes?


• não há regra semelhante à da revelia – 568º, a);
• daí não decorre, necessariamente, que se um dos réus não impugnar um facto, o
mesmo se tem como assente quanto a ele e como não assente quanto aos demais;
• embora não se coloque, aqui, o problema da unidade de tramitação (que existe na
revelia), a verdade é que, pelo menos nos casos de litisconsórcio necessário, não
poderá valer a consequência da admissão por acordo apenas por parte dos
litisconsortes.

Assim, acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de MAIO 2009, www.dgsi.pt, proc.


nº 86/05.1TVPRT.S1, que, aliás trata de várias outras questões interessantes para o tema,
nomeadamente a consideração da admissão por acordo como uma confissão.

4. Excepções ao ónus de impugnação


Art. 574º, nº 2 e nº 4: A falta de impugnação não importa a admissão por acordo:
1ª– “Se [os factos não definidamente impugnados] estiverem em oposição com a
defesa no seu conjunto”.
Razão de ser: Necessidade de interpretação global da contestação, de não a tornar
intrinsecamente contraditória.

227
Ónus da impugnação

Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Julho de 2008, www.dgsi.pt,


proc. nº 07B3704.

2ª– “Se não for admissível confissão sobre eles” – se não for admissível a confissão,
relativamente aos factos alegados pelo autor e não impugnados pelo réu.
Razão de ser: princípio da submissão aos limites substantivos, instrumentalidade do
processo. Código Civil, art. 354º. Ex: direitos indisponíveis.

3ª “Se só puderem ser provados por documento escrito”


Mesma excepção na revelia, art. 568º, d).
Razão de ser: 364º. Código Civil .
Todos sabemos que um documento escrito pode ser exigido por lei ou por convenção
das partes e, em ambos os casos, como requisito de forma ou apenas de prova. Assim:
Se o documento for exigido por lei como
• requisito de forma;
• requisito de prova.
Tal como sucede na revelia, em que a confissão ficta não pode substituir um
documento exigido por lei como requisito de forma ou de prova (ou seja, o facto em causa não
se considera provado por confissão), em caso algum o documento legalmente exigido pode ser
substituído pela admissão por acordo presumida. Isto porque se um documento é exigido por
lei como requisito de forma de uma declaração, a falta desse documento provoca invalidade
(nulidade) por falta de forma: o documento em falta só pode ser substituído por outro meio de
prova ou outro documento de força probatória superior (364º, nº 1).
Se o documento apenas é exigido, por lei, como requisito de prova, a sua falta não
torna a declaração inválida; mas só por confissão expressa pode ser provado (364º, nº 2).
Razão de ser: a confissão é o meio de prova mais difícil de obter, porque provém da parte a
quem a prova prejudica.

MAS e se a exigência de documento escrito resultar de convenção das partes?


• também pode ser exigido por convenção das partes como
 requisito de forma ;
 requisito de prova.

228
Ónus da impugnação

Se for exigido como forma: a convenção tem como efeito a presunção de que as partes
se não quiseram vincular a não ser pela forma convencionada (art. 223º, Código Civil), e esta
presunção não pode ser elidida por confissão ficta (revelia) ou admissão ficta (ónus da
impugnação) (presunção contra presunção…).
Se for exigido como prova, aplicar-se-á o regime das convenções sobre meios de prova
(art. 345º, Código Civil); se a convenção for válida, o documento em falta não pode ser
substituído por falta de contestação ou de impugnação.

4ª Se o réu for incapaz, ausente ou incerto, quando representado pelo Ministério


Público ou advogado oficioso.
Razão de ser: fácil de ver, protecção dos incapazes.
Não vale quando houver advogado constituído.

Cfr. com a revelia:


• Nunca há revelia operante de réu incapaz;
• Ausentes e incertos: citados editalmente, se permanecerem em situação de revelia
absoluta (desde 1995, anteriormente só se lhes aplicava o regime da revelia se
constituíssem advogado), não se lhes aplicam os efeitos da revelia.

5 – Impugnação e afirmação de desconhecimento


Questão: que consequência tem a afirmação, pelo réu, de que desconhece o facto
alegado pelo autor?
A lei distingue consoante se tratar ou não
• de factos pessoais ;
• de factos de que o réu deva ter conhecimento.

Tratando-se de factos pessoais ou de que o réu deva ter conhecimento, a afirmação de


desconhecimento vale como confissão (sic). No caso contrário, como impugnação.

Razão de ser: fácil de ver. Respeito pela finalidade da regra da impugnação; boa fé;
maior dificuldade de prova para o autor do que para o réu, no caso de factos pessoais deste ou
de factos de que ele tenha ou deva ter conhecimento.
Problema: o que são factos pessoais, nomeadamente em caso de representação (p. ex.
de incapazes, ou quando é réu uma entidade colectiva).

229
Ónus da impugnação

Cfr. depoimento de parte; cfr. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 21 MARÇO de


2012, www.dgsi.pt, proc. nº 2359/06.7TVLSB.L1.S1. e “Processo laboral sumário, falta do réu a
julgamento, factos pessoais, poderes do Supremo”, in Colectânea de Jurisprudência, ano XIII,
tomo III, 1988, pág.49 e segs.

9. Aplicação a outros articulados


• Réplica, art. 587º.
• Articulados supervenientes, art. 588º, nº 3, c).

1º- Réplica:
Código anterior, art. 505º: fácil de aplicar. A réplica era admitida para responder às
excepções, à reconvenção, aos factos constitutivos do direito do réu, nas acções de simples
apreciação negativa; sendo admissível, podia ainda ser utilizada para alterar o pedido (não
releva agora) e a causa de pedir.
Era admissível a tréplica para responder às excepções opostas pelo autor à
reconvenção; ou em caso de alteração (do pedido ou) da causa de pedir, na réplica.
Assim, a falta do articulado (réplica, tréplica) ou a falta de impugnação definida, nesse
articulado, dos factos alegados no anterior tinha como consequência a respectiva admissão
por acordo.
Cfr. acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Junho de 2008, www.dgsi.pt, proc.
nº 07B3704.

Código de Processo Civil de 2013:


• Manteve, no art. 587º, o mesmo regime (só para a réplica, porque nunca há
tréplica).
ASSIM:
• vigora a mesma solução para contestar a reconvenção e para a resposta aos factos
constitutivos do direito alegado pelo réu, nas acções de simples apreciação
negativa;
• e para as excepções, alegadas pelo réu na contestação,

 ou pelo autor, em resposta à reconvenção


 ou nas acções de simples apreciação negativa?

230
Ónus da impugnação

Não se prevê réplica ou outro articulado para responder às excepções – como funciona
o ónus da impugnação, imposto pela al. c), do artigo 572º e pelo nº 2, do 587º, neste quadro?
Art. 572º, c), 587º, nº 1 e 2: necessidade de individualizar, na contestação ou na
réplica, as excepções, sob pena de não se terem como admitidos por acordo os factos
correspondentes, se não forem (definidamente) impugnados.

Tem de funcionar, seja qual for a forma encontrada para as respostas (na audiência
prévia ou final, art. 3º nº 3, na réplica, em articulado admitido pelo juiz…).

2º– Articulados supervenientes: aplica-se a regra da impugnação definida, sob pena


de admissão por acordo (ou seja, vale o ónus da impugnação definida). Não alterações de
regime, relativamente ao anterior.

10. Conclusões:
Da conjugação entre as regras relativas à alegação de factos e à impugnação (do autor/
do réu, quanto aos factos que fundamentam as excepções), parece-me resultar o seguinte:
• 1ª) Manutenção do ónus da alegação quanto aos factos essenciais.
• 2ª) Manutenção da possibilidade de consideração de factos complementares ou
concretizadores não alegados, desde que resultem da instrução da causa e as
partes tenham a oportunidade de sobre eles se pronunciarem.

No entanto
• desapareceu a “discussão” como “fonte” do conhecimento do facto (“e resultem da
instrução e discussão da causa”, nº 3 do anterior artigo 264º).
• desapareceu expressamente a “alegação a posteriori”, mas suponho que isso só
deve significar que há uma presunção de que a parte quer aproveitar o facto, que
deve ceder se a parte disser que não quer.

• 3ª) Manutenção do regime, quanto aos factos instrumentais:


• são de conhecimento oficioso, não estão dependentes de alegação e podem ser
alegados enquanto puderem ser conhecidos oficiosamente: não existe ónus de
alegação (já não existia, desde 95).

231
Ónus da impugnação

• 4ª) O ónus da alegação não se confunde com a preclusão. (Ónus: se a parte tem de
alegar ou de impugnar, para que o tribunal possa considerar o facto ou a sua
impugnação; preclusão: até quando a parte pode alegar ou impugnar).

Quanto à preclusão:
• atenuada em 1995, com a previsão do convite ao aperfeiçoamento dos articulados
(art. 590º, ex pré-saneador; audiência prévia, ex-preparatória): mantém-se
• tal como não funciona a preclusão para os factos instrumentais;
• e funciona para os tais essenciais da causa de pedir.

E quanto aos complementares ou concretizadores?


Podem ser conhecidos desde que resultem da instrução da causa; significa que podem
ser alegados também depois dos articulados (no sentido de ter a parte o direito de os alegar
depois dos articulados, nomeadamente durante a instrução da causa)?

Problema:
Mantiveram-se as regras:
1– dos limites ao aperfeiçoamento: mantiveram-se os limites do princípio da
concentração da defesa, da falta de impugnação definida, da alteração da causa de pedir
(muito estreita, como se sabe… sem acordo, só aproveitando uma confissão do réu) – art.
590º, nº 6 - valem para o aperfeiçoamento na audiência prévia (art. 591º, nº 1, c));
2– da possibilidade de alegação posterior aos articulados, com a exigência de que se
trate de factos supervenientes (arts. 588º e 611º, que parece que obrigam a concluir no
sentido de que continua a funcionar a regra da preclusão).

5ª) Especificamente quanto ao ónus da impugnação, atenuação real só encontro


quanto aos factos instrumentais, por não ser definitiva a admissão por acordo.

Nota: creio que a eliminação da possibilidade de alteração da causa de pedir, nos


termos anteriores, veio obrigar o autor a uma mais extensa alegação e, portanto, obrigar o réu
à correspondente impugnação.

232
Videogravação da comunicação

Vídeo 1 Vídeo 2

233
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

[Salazar Casanova]
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

Poderes de cognição do juiz em matéria de facto


Salazar Casanova

Sumário:
1. Ónus de alegação
2. Limites dos poderes de cognição
3. Concretização e complementaridade referenciam-se aos factos alegados
4. Factos novos não alegados
5. Insuficiência da alegação com aperfeiçoamento
6. Insuficiência de alegação sem aperfeiçoamento
7. Suficiência dos factos alegados e factos novos resultantes da instrução
8. Sentido interpretativo do artigo 5.º
9. Factos novos integrativos de diversa previsão normativa
10. Alegação de factos essenciais e doutrina da substanciação
11. Causa de pedir
12. Factos instrumentais
13. Âmbito da oficiosidade
14. Poderes do Tribunal
15. Temas de Prova
16. Superveniência
17. Prova

Ónus de alegação

1. As partes têm o poder de alegar livremente mencionando os factos que entenderem


pertinentes tendo em vista a pretensão deduzida.
A lei prescreve que às partes cabe "alegar os factos essenciais que constituem a causa de
pedir e aqueles em que se baseiam as exceções apresentadas" (artigo 5.º/1) 1.

1
Os preceitos sem indicação de origem referem-se ao Código de Processo Civil de 2013, aprovado pela Lei
n.º 41/2013, de 26 de junho.

237
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

Não há, portanto, nenhuma proibição para as partes no que respeita à alegação de factos,
o que se compreende porque seria inadmissível que a lei impusesse qualquer obstáculo ao
poder de as partes alegarem os factos, sejam eles de que natureza forem, que considerem
relevantes para a decisão do litígio de acordo com a estratégia que reputem mais adequada
aos seus interesses.
2. As alterações introduzidas na lei de processo não têm por objetivo levar as partes à
elaboração de articulados mais concisos, expurgados de factos instrumentais ou menos
extensos na qualificação jurídica dos factos; o objetivo da lei foi, a nosso ver, o de evitar,
mediante a intervenção subsidiária do Tribunal, que as ações e as exceções fossem julgadas
improcedentes por insuficiência da matéria de facto alegada ou que os factos não alegados
mas revelados durante a instrução da causa não pudessem em circunstância alguma ser objeto
de aquisição processual.
No entanto, como é evidente, não interessa às partes ficarem sujeitas à contingência do
aproveitamento de factos revelados apenas durante a instrução da causa se puderem desde
logo alegá-los.
Pode causar estranheza que factos que são do conhecimento das partes não sejam desde
logo alegados, designadamente os factos complementares ou concretizadores de factos
essenciais alegados que, não obstante a conexão indispensável ao seu aproveitamento, não
deixam de constituir factos essenciais 2. Se é verdade que muitas vezes, por inadvertência, as
partes não indicam aos seus mandatários factos de que têm conhecimento e, por vezes,
excluem-nos com base num préjuízo quanto à sua conveniência, na maior parte dos casos a
explicação encontra-se no conhecimento limitado e deficiente das realidades conjugado
muitas vezes com a dificuldade, para não dizer impossibilidade, de obtenção de elementos
probatórios na fase pré-judicial.
3. Crê-se que a constatação de que a parte tinha (ou devia ter) conhecimento de
determinado facto quando propôs a ação, não basta para se considerar que agiu de má fé,
visando escamotear uma determinada realidade para tornar mais difícil o exercício do
contraditório ou para se valer do efeito surpresa – que sempre existe – designadamente
quando a "revelação" do facto ocorre durante a audiência final. No entanto, é evidente que o

2
Da redação constante do artigo 264.º/3, do C.P.C. 61 (redação em vigor à data da entrada em vigor do
C.P.C. de 2013) resultava expressamente que, quando a lei se refere a factos complementares ou
concretizadores de outros que as partes hajam oportunamente alegado, se tinha em vista os factos
essenciais: "serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões
formuladas ou das exceções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes
hajam oportunamente alegado […]".

238
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

Tribunal deve estar atento, quando determinado facto se revela durante a discussão da causa,
sobre se a omissão de alegação no articulado é reveladora de litigância de má fé traduzida na
"omissão de factos relevantes para a decisão da causa" (artigo 542.º/2, alínea b)) mesmo
quando estes interessam à parte que os omitiu. A nosso ver, a litigância de má fé será nestas
circunstâncias uma situação rara de ocorrer, mas possível caso se demonstre que a omissão de
certos factos foi pré-determinada tendo em vista o efeito surpresa da sua revelação de modo a
dificultar o exercício do contraditório.

Limites dos poderes de cognição


4. Seja como for, a lei pretende que o ónus de alegação não constitua um obstáculo à
admissibilidade de certos factos que venham a revelar-se nos autos. O Rubicão da sua
admissibilidade está na sua inserção na causa de pedir e na sua conexão com factos essenciais
alegados por deles serem concretização ou complemento.

Concretização e complementaridade referenciam-se aos factos alegados


5. Resulta expressamente do texto do artigo 5.º/2, alínea b), no que respeita aos factos
concretizadores e complementares, que estes se referenciam a factos alegados. Por isso, é
sempre com referência aos factos alegados que importa atender para se considerar se o novo
facto revelado na instrução da causa deve ser admissível enquanto facto concretizador ou
complementar.

Factos novos não alegados


6. Se o autor alega que exerceu ao longo de vários anos atos demonstrativos de posse
correspondente ao exercício de propriedade (artigo 1251.º, do Código Civil) sobre um
determinado terreno, atos que concretizou (cultivo do terreno, plantação de pomar, inscrição
do imóvel na matriz em seu nome e pagamento de impostos) tendo em vista provar a
aquisição da propriedade desse terreno por usucapião, a revelação em julgamento de outros
factos, igualmente concretizadores da invocada posse, implica a questão de saber se tais
factos podem ser processualmente adquiridos.
Referindo-se na instrução da causa ou na audiência final que foi construída pelo autor
uma cerca em rede que delimitou o terreno, que a propriedade foi pelo autor arrendada a um
vizinho durante o período em que o autor esteve ausente no estrangeiro, que o autor
procedeu à abertura no terreno de um furo artesanal e à construção de uns casinhotos para
recolha de alfaias e pesticidas, a questão que se suscita é a de saber qual a natureza destes

239
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

novos factos considerando que os factos alegados eram suficientes para se demonstrar a
posse.
7. Sem dúvida que estes novos factos são reveladores de posse mas, como se disse,
importa equacionar a consideração de factos novos igualmente constitutivos da invocada
posse. A abertura do furo artesanal e a construção dos casinhotos com as mencionadas
finalidades são, a nosso ver, factos instrumentais dos factos alegados respeitantes ao cultivo
do terreno e à plantação do pomar, ou seja, são factos por via dos quais se visa a prova dos
factos essenciais alegados.
Já quanto aos outros constata-se que estamos perante factos essenciais constitutivos da
posse 3. Por comodidade de raciocínio, admitamos que o tribunal não considerou que os factos
instrumentais permitissem julgar provado os factos essenciais alegados sobre os quais
igualmente não se produziu prova. Pode o Tribunal reconhecer a posse com base apenas nos
factos resultantes da instrução da causa?

Insuficiência de alegação com aperfeiçoamento


8. Admita-se que o autor, para fundamentar a invocada posse sobre o terreno, se limitou
na petição a alegar que cultivava o prédio há mais de 20 anos e que o juiz, considerando que
tal facto não era suficiente para se considerar provada a posse, sentiu a necessidade, no
despacho pré-saneador, de convidar ao aperfeiçoamento do respetivo articulado, alegando
então o autor todos os factos a que nos referimos.
9. Constata-se, assim sendo, que a parte que alegou insuficientemente vem a ser
beneficiada relativamente à parte que alegou suficientemente se esta não puder aproveitar-se
dos factos novos essenciais revelados na audiência final sendo certo que a posse apenas seria
reconhecida mercê da prova desses factos novos.
10. A não admissibilidade desses factos novos essenciais justificar-se-ia com base no ónus
de alegação. No entanto, atente-se que, quando a lei diz que "às partes cabe alegar os factos
essenciais que constituem a causa de pedir", ela nada nos diz sobre a questão de saber se,
uma vez alegados os factos essenciais que a parte entendeu por bem alegar constitutivos do

3
Não se veja nesta afirmação a ideia de que um determinado facto não pode assumir natureza múltipla.
Parece-nos que um facto pode constituir simultaneamente facto essencial quando da sua prova resultar o
preenchimento normativo visado, mas igualmente facto instrumental se dele resulta a prova de outros
factos alegados. No exemplo apontado seria sustentável considerar-se que o arrendamento do terreno para
cultivo e a vedação do terreno, para além de demonstrarem diretamente a posse do autor sobre o terreno,
demonstravam ainda que o autor detinha e destinava aquele terreno para efetivo cultivo, não importando,
para o efeito, se o cultivava por si ou por mero detentor (artigo 1253.º, alínea c), do Código Civil).

240
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

direito que pretende reconhecido, o Tribunal pode ou não pode conhecer de todos os factos
que podiam ter sido alegados e não foram que chegaram ao seu conhecimento durante a
instrução da causa.

Insuficiência de alegação sem aperfeiçoamento


11. A razão da admissibilidade dos factos concretizadores ou complementares4
encontramo-la nas "Linhas Orientadoras da Nova Legislação Processual Civil" 5 onde se refere
que "com vista a permitir, em situações limite, uma maior aproximação à verdade material,
deverá consagrar-se o dever de o juiz considerar na decisão factos essenciais à procedência da
pretensão formulada pelo autor ou da exceção ou reconvenção deduzidas pelo réu que,
embora insuficientemente ou incompletamente alegados pela parte interessada
(complemento de uma 'causa petendi' complexa, concretização de conceitos de direito, etc.
resultem da instrução e discussão da causa, desde que aquela manifeste intenção de os
aproveitar e à parte contrária tenha sido facultada a produção, em prazo razoável, de
contraprova ou prova do contrário". 6

4
Definem-se factos complementares como aqueles que "não são necessários à identificação da situação
jurídica alegada pela parte, mas são indispensáveis à procedência da ação ou exceção. É, por isso que,
quando respeitante ao autor, a falta de alegação de factos essenciais se traduz na ineptidão da petição
inicial por inexistência de causa de pedir […] e que a ausência de um facto complementar não implica
qualquer inviabilidade ou ineptidão, mas importa a improcedência da ação"(Miguel Teixeira de Sousa,
Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 72).
5
Edição do Ministério da Justiça, sine data; ver ainda Código de Processo Civil Anotado por José Lebre de
Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Vol I (artigos 1.º a 380.º), 1999, pág. 465/468
6
O artigo 664.º do C.P.C./61 antes da revisão de 1995/1996 prescrevia: "o juiz não está sujeito às alegações
das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se
dos factos articulados pelas partes, salvo o que vai disposto nos artigos 514.º e 665.º".
Propôs-se na comissão revisora que o artigo 650.º/2, alínea f) do C.P.C. de 1961 respeitante aos poderes do
presidente passasse a ter a seguinte redação: "ao presidente do tribunal compete em especial: f) formular,
até ao encerramento da discussão, quesitos novos que interessem à boa decisão da causa, sem prejuízo,
porém, do disposto no artigo 664.º"; propôs-se, para o artigo 664.º, a seguinte redação: "o juiz não está
sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas
só pode servir-se dos factos que as partes, expressa ou implicitamente, tenham invocado em favor das suas
pretensões, salvo o disposto nos artigos 514.º e 665.º". Quer dizer: onde a lei dizia "o juiz não está sujeito
às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito mas só pode
servir-se dos factos articulados pelas partes, salvo o que vai disposto nos artigos 514.º e 665.º", limitando,
portanto, os poderes de cognição "aos factos articulados pelas partes", orientação que vinha do Código de
1939, abre-se a brecha consistente em permitir-se que o juiz possa conhecer oficiosamente dos " factos que
as partes, expressa ou implicitamente, tenham invocado a seu favor" (ver ata n.º 43 de 6 de novembro de

241
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

1985, B.M.J. n.º 367, pág. 110 e segs). Considerou o Prof. Antunes Varela que "a fórmula utilizada é ,
porém, mais restritiva que a que o Dr. Cardona Ferreira sugeriu, a que pretende que possam ser conhecidos
todos os factos revelados pela discussão da causa". Relativamente ao artigo 664.º, o Cons. Campos Costa
inquiriu sobre o real alcance do termo "implicitamente". Assim, "perguntou se abrange a possibilidade de,
tendo uma parte alegado não factos concretos mas um conceito de direito, serem aditados quesitos que
representem o seu desdobramento nesses factos concretos; se, tendo a parte alegado um facto conclusivo,
o juiz o pode transformar num facto concreto; se, tendo uma testemunha referido que uma terceira pessoa
lhe disse que o autor lhe afirmara ter recebido certa quantia do réu, esse facto (novo, mas meramente
instrumental relativamente ao pagamento) pode ser aditado". Fez ainda o Prof. Antunes Varela um balanço
das várias posições."Começou por verificar haver acordo quanto à necessidade de poder haver lugar a
diligências probatórias relativamente aos quesitos aditados, através da prorrogação do período instrutório.
Quanto aos outros aspetos há divergências. Na verdade, ou se pretende manter a atual limitação, objetiva,
aos factos articulados quanto à matéria de que o tribunal pode conhecer, ou não. Nesta segunda hipótese,
abrem-se dois caminhos. O primeiro, seguido pelo Cons. Rodrigues Bastos, consiste em possibilitar o
conhecimento de factos apenas implícita ou tacitamente alegados; não necessariamente articulados, mas,
pelo menos, invocados.'Implicitamente' é um termo bastante vago (sempre se poderá sustentar que quem
baseia a sua pretensão numa determinada norma legal está implicitamente a invocar todos os factos que
integram a sua previsão); 'tacitamente' é uma palavra muito menos perigosa. O segundo, mais restrito e
cauteloso, foi o escolhido pelo Dr. Cardona Ferreira, ao limitar a possibilidade de conhecimento de factos
não articulados aos que resultarem da discussão da causa. Se é mais restritivo por esse motivo, é, porém,
mais flexível de outro ponto de vista, já que não exige que o facto chegado ao conhecimento do tribunal
tenha sido invocado (ou seja, alegado pelas partes) podendo ser trazido, por exemplo, por uma
testemunha". Defendeu o Dr. Cardona Ferreira que " para além dos factos articulados no momento devido,
o tribunal só se pode servir dos factos que resultem da instrução". O texto proposto para o artigo 664.º
ficou assim redigido: "o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e
aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos que as partes tenham invocado, expressa
ou tacitamente, nos seus articulados, em favor das suas pretensões, salvo o disposto nos artigos 514.º e
655.º".
No anteprojeto de 1988 a matéria do artigo 664.º passou a constar do artigo 8.º com a epígrafe "Princípio
dispositivo" assim redigido:
1. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes e nos factos instrumentais que, por
indagação oficiosa, lhes sirvam de base.
2. Podem ainda ser considerados na decisão os factos essenciais que, embora não articulados, tenham sido
invocados na instrução e discussão da causa, quando a parte por eles prejudicada os não tenha impugnado,
devendo tê-lo feito.
3. Havendo indícios de que as partes, ou uma delas, pretendem usar o processo para fim ilícito, incumbe ao
juiz promover as diligências necessárias ao esclarecimento do caso e à frustração do fim prosseguido".
Deste preceito, no que respeita ao n.º 2, a crítica incidiu, não sobre a possibilidade de serem considerados
factos essenciais não articulados que tenham sido invocados na instrução e discussão da causa, mas no
segmento "quando a parte por eles prejudicada os não tenha impugnado, devendo tê-lo feito".
Reconhecendo-se que o intuito do legislador "pode ser meritório - no sentido em que com tal preceito se

242
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

visa ampliar o princípio da aquisição processual em busca da verdade material" perguntou-se: " como se há
de então entender que a parte prejudicada - que tenha o ónus de impugnar tais factos - aceitou os
mesmos? Terá de haver alguma intimação em audiência para o efeito? O tribunal avisa do facto os
mandatários judiciais? Provoca-se um depoimento de parte ad hoc , obrigando a comparecer a parte?
("Anteprojeto do Código de Processo Civil" por Armindo Ribeiro Mendes e José Lebre de Freitas, R.O.A, Ano
49, setembro 1989, pág. 613-689, designadamente pág. 621).
Certo é que esta previsão veio a sofrer nova alteração com o projeto Antunes Varela. Ficou, assim, redigido
o artigo 9.º sob a epígrafe "Princípio dispositivo":
1. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes e nos factos instrumentais que, por
indagação oficiosa, lhes sirvam de base.
2. Podem, todavia, ser considerados factos essenciais à procedência da pretensão formulada pelo autor ou
da exceção ou reconvenção deduzidas pelo réu, que só por manifesto lapso a parte interessada não tenha
alegado, desde que à parte contrária tenha sido efetivamente facultada a produção de contraprova ou de
prova do contrário.
3. Havendo indícios de que as partes ou uma delas, pretendem usar o processo para fim ilícito, incumbe ao
juiz promover as diligências necessárias ao esclarecimento do caso e à frustração do fim prosseguido.
A observação essencial que este preceito suscitou foi a da necessidade de ser completado "com a expressa
consagração da faculdade de a parte a quem aproveitam alegar supervenientemente os factos que
completam a causa de pedir, requerendo logo ou em 7 dias as respetivas provas, se já tiver passado o
momento processual de o fazer". Salientou-se que "sob pena de desigualdade entre as partes, os factos
essenciais à procedência da pretensão não poderão integrar - não obstante a amplitude da redação do
artigo, que seria de retificar - uma nova causa de pedir, mas apenas completar a causa de pedir invocada, tal
como completam a exceção deduzida" ("Projeto de Código de Processo Civil, Lebre de Freitas, R.O.A.,Ano
50, 1990, pág.729-811, designadamente pág. 752/753).
O projeto de fevereiro de 1995, apresentado pela Comissão revisora designada pelo Despacho n.º 14/94, de
15 de abril do Ministro da Justiça Laborinho Lúcio propôs a seguinte redação ao artigo 264.º com a epígrafe
"Princípio dispositivo":
1. As partes delimitam, através da dedução das respetivas pretensões, o objeto do litígio, incumbindo ao juiz
apreciá-las exaustivamente, sem as exceder.
2. Sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados
pelas partes, bem como nos factos instrumentais que, por indagação oficiosa, lhes sirvam de base.
3. Podem ainda ser considerados na decisão factos essenciais à procedência da pretensão formulada pelo
autor ou da exceção ou reconvenção deduzidas pelo réu que, embora insuficientemente alegadas pela parte
interessada, resultem da instrução e discussão da causa, desde que aquela manifeste vontade de os
aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório".
Sobre este preceito fez-se a seguinte observação:
"O artigo 264.º/3 consagra a atendibilidade dos factos essenciais à procedência da pretensão ou de
exceções que 'embora insuficientemente alegadas pela parte interessada, resultem da instrução (e
discussão?) da causa, desde que aquela manifeste a vontade de os aproveitar (princípio dispositivo) e tenha
sido assegurada à parte contrária a possibilidade de contraprova ou de prova do contrário (princípio do
contraditório). A redação da norma já tinha sido enunciada nas Linhas Orientadoras, esclarecendo-se aí que

243
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

12. Pode, porém, considerar-se uma outra situação: os factos alegados são insuficientes,
mas o Tribunal não proferiu despacho de aperfeiçoamento, revelando-se em julgamento os
novos factos concretizadores da posse. Neste caso, continuam a deparar-se-nos factos
constitutivos, ou seja, factos que, uma vez provados, conduzem à procedência da ação. A parte
que alegou insuficientemente, se desses factos não pudesse beneficiar, dir-se-ia duplamente
prejudicada: não beneficiou do aperfeiçoamento e não viu os factos revelados serem
admitidos.
Argumentar-se-á, a favor do aproveitamento, que a partir do momento em que a lei
comete ao Tribunal o dever de suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou
concretização da matéria de facto (artigo 590.º/3) não faz sentido que a insuficiência de factos
cujo suprimento não foi ordenado não justifique o aproveitamento dos factos revelados na
instrução da causa que colmatam essa insuficiência. A preclusão derivada da omissão de
reclamação obviamente não deve estender os seus efeitos à proibição da admissão dos factos
novos.
Dir-se-á, contra o aproveitamento, que esta é a consequência da preclusão derivada da
omissão de reclamação do despacho de aperfeiçoamento; dir-se-á ainda que esta é a
consequência da omissão de alegação de factos essenciais.
Não se nos afigura que a preclusão tenha este alcance: ou seja, do que se trata agora de
saber é se os factos novos essenciais que resultaram da instrução da causa devem ou não
devem ser admitidos independentemente da possibilidade de a parte os ter alegado
oportunamente.
13. Isto tem interesse, porque se os factos alegados não eram suficientes para se poder
considerar que o autor possuía como proprietário há longos anos o aludido imóvel, tais factos
são factos essenciais concretizadores e, por conseguinte, o Tribunal podia deles conhecer
oficiosamente. 7

se visavam situações como as de complemento duma causa de pedir complexa ou de concretização de


conceitos de direito. Tratava-se, pois, não propriamente de factos insuficientemente alegados, mas de factos
não alegados em complemento ou concretização de outros constantes (nem que fosse com uma
generalidade próxima da que é própria dos conceitos de direito) dos articulados" ("Revisão do Processo
Civil" por Lebre de Freitas, R.O.A.,Ano 55, 1995, págs. 417-518, designadamente pág. 430). O texto final
respeita ao artigo 264.º, do C.P.C. (revisão de 1995/1996).
7
Estas considerações valem igualmente para os factos concretizadores. Alegando o autor facto genérico
conclusivo – que trata do terreno como seu dono há muitos anos – os factos mencionados são todos factos
concretizadores e, por conseguinte, ainda que não tivesse sido proferido despacho de aperfeiçoamento, o
Tribunal pode sempre considerá-los nos termos do artigo 5.º/2, alínea b).

244
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

A lei, como resulta do artigo 5.º/1, alínea b), admite o aproveitamento destes factos.

Suficiência dos factos alegados e factos novos resultantes na instrução


14. Fica-nos uma última situação: os factos alegados foram suficientes e, por conseguinte,
não se pôs ao Tribunal a necessidade de convidar ao aperfeiçoamento, mas o autor decaiu na
sua prova; a ação apenas pode ser julgada procedente com base nos factos resultantes da
instrução.
Pergunta-se: franqueou a lei a admissibilidade dos novos factos revelados durante a
instrução da causa a todos os factos suscetíveis de concretizar ou de complementar os factos
alegados?

Sentido interpretativo do artigo 5.º


15. Justificar-se-á uma interpretação do artigo 5.º no sentido de se admitirem factos
novos essenciais que visem o reconhecimento do direito ou da relação material visados que se
revelarem durante a instrução da causa independentemente da suficiência ou insuficiência dos
factos essenciais alegados?
Ou tais factos novos apenas devem ser admitidos a posteriori quando se constate que,
face à prova produzida incidente sobre os factos essenciais alegados de modo suficiente,
aqueles que o Tribunal considerou provados não se revelam suficientes para a qualificação
jurídica visada?
Ou, finalmente, tais factos novos pura e simplesmente não podem ser admitidos?
16. Não nos parece aceitável o segundo entendimento, assim perspetivado, porque não
se trata aqui de uma admissão condicional de factos novos com base na falta de prova dos
factos alegados. Atente-se que o juízo sobre a admissibilidade dos factos é prévio e indiferente
ao juízo de prova sobre esses mesmos factos. Se o Tribunal entender que um facto revelado
durante a instrução da causa não é admissível, não pode obviamente declará-lo provado ainda
que sobre ele haja incidido prova - designadamente a que o revelou - que levaria a considerá-
lo provado.
17. Não existindo atualmente separação entre o julgamento de facto e o julgamento de
direito, o juiz, no processo íntimo de análise dos factos e do direito, começará por verificar se
determinados factos novos revelados na instrução são admissíveis e só depois decidirá se deve
julgá-los provados ou não provados 8.

8
A circunstância de se produzir prova sobre o facto novo não significa necessariamente que o Tribunal fique
vinculado no sentido de se lhe impor a admissibilidade desse facto. No entanto, se resultar da audiência que

245
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

18. A noção de facto concretizador ou a de facto complementar parece pressupor uma


situação de insuficiência de alegação.
19. De um ponto de vista conceptual importa atentar que a suficiência ou insuficiência
podem ser consideradas relativamente aos factos essenciais concretamente alegados, mas
também podem ser consideradas relativamente a todos os factos essenciais que podiam ter
sido alegados e não foram.
20. À luz desta última perspetiva, e tratando-se designadamente de uma causa de pedir
complexa, a complementaridade seria sempre considerada em função da relação material que
fundamenta o direito que se pretende reconhecido.
O conceptualismo revela por vezes algumas fragilidades: no caso, acode ao espírito a
estranheza de se considerar provado o facto essencial complementar de um facto alegado sem
que este esteja provado.
21. Dir-se-á então que a complementaridade deve ser encarada de modo a abranger, não
apenas a realidade que completa a que foi insuficientemente alegada, mas também aquela
que se acrescenta ou se adiciona à factualidade que foi suficientemente alegada com esta se
conjugando (complementando) de modo a alcançar-se com efetividade a compreensão
normativa visada.
22. No caso apontado, a lei referencia o facto jurídico de que deriva o direito real - a
propriedade - ou seja, como referia Anselmo de Castro, "seja qual for a causa de pedir
concreta da relação jurídica invocada, tais direitos" - direito de propriedade, direitos absolutos
- são sempre os mesmos individualizando-se pelo objeto e não pela causa. Assim, numa ação
de reivindicação, a causa de pedir será o direito de propriedade em si próprio, dado que tal
direito é o mesmo, quer tenha como fonte a sucessão, a compra e venda, a prescrição, a
doação ou qualquer outro título" 9.
Ora, nas ações reais, posto que a lei imponha a menção do facto de que deriva o direito
real (artigo 581.º/4), "aventa-se a ideia de que o título aquisitivo da propriedade é sempre a
usucapião, pois os outros apenas podem transmitir a propriedade, mas não constituí-la" 10 e,
assim sendo, a complementaridade ou concretização não se referenciam ao facto jurídico de

o Tribunal proferiu decisão, admitindo a prova requerida, ou determinando-a oficiosamente, incidente


sobre facto novo revelado em julgamento - v.g. convocando testemunha, designando prova pericial, etc. - o
Tribunal fica vinculado tão somente quanto a essa decisão; tal vinculação não obsta a que, na sentença, o
juiz considere que tal facto novo não pode relevar por razões de ordem substantiva (o facto em causa não
poderia ser provado por testemunhas) ou processual (o facto referencia-se a diversa causa de pedir).
9
Direito Processual Civil Declaratório, Vol I, 1981, pág. 205.
10
Noções Elementares de Processo Civil, por Manuel A. Domingos Andrade, 1976, pág. 322

246
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

que deriva o direito real, mas ao conjunto dos factos que visam provar a aquisição da
propriedade por usucapião.
23. Nas causas em que a causa de pedir se referencia ao facto jurídico, a concretização ou
complementaridade a que alude o artigo 5.º/2, alínea b), não se referenciam necessariamente
aos factos concretos "que as partes hajam alegado"; referenciam-se, pelo menos nas ações
reais, ao objeto da ação individualizado através do seu próprio conteúdo: no caso, o
reconhecimento da propriedade por usucapião. Por isso, a insuficiência é considerada em
função de todos os factos que permitem esse reconhecimento e não em função dos factos
concretos alegados para o efeito.
24. O juiz, quando da prolação da sentença, verificará, como se disse, se os factos novos
essenciais revelados têm em vista o pedido e causa de pedir determinados à luz dos factos
alegados. Se assim suceder, por certo que tais factos, se fossem insuficientes os alegados
tendo em vista a norma (ou normas) a integrar, concretizariam ou complementariam os
alegados.
O juiz passará a considerá-los, se não houver razão obstativa de ordem processual ou
substantiva, julgando-os provados ou não provados. E por certo também o juiz igualmente os
deve considerar, ainda que sejam suficientes os factos alegados e ainda que estes se tenham
provado, pois relevam todos eles para a procedência da pretensão.
25. De um ponto de vista prático, que não deve ser minimizado, este entendimento é de
aplicação fácil e de alcance equitativo: basta pensar que, a não se considerarem tais factos
novos, uma alteração da matéria de facto no tocante aos factos provados, designadamente no
âmbito de recurso interposto em que se impugnasse a matéria de facto, poderia levar a ação à
improcedência, o que já não sucede a partir do momento em que se admitem os factos novos.
26. Do exposto resulta que, no caso apontado, o Tribunal reconheceria a admissibilidade
de tais factos revelados na instrução da causa e, uma vez provados tais factos novos - os únicos
provados - não poderia com base neles deixar de reconhecer a posse do autor sobre o aludido
prédio rústico.
27. Sabendo-se que, não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só
pode dar-se ao fim de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé
(artigo 1296.º, do Código Civil), os factos que se revelem durante a instrução demonstrativos
de que o autor agia perante toda a população como dono daquela propriedade são factos
concretizadores da invocada posse pública, mas são igualmente complementares dos demais
factos que, em conjunto com aqueles, permitem considerar provada a usucapião pelo decurso
de quinze anos de posse de boa fé e pública.

247
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

28. Significa isto que o Tribunal pode considerar o facto novo revelado em audiência
considerando que o autor praticou todos aqueles atos à vista e com conhecimento de toda a
comunidade, visto que inequivocamente se está face a um facto complementar dos factos
alegados demonstrativos da posse, muito embora seja este facto também um facto essencial
tendo em vista a prova da usucapião.

Factos novos integrativos de diversa previsão normativa


29. Se A. pede a condenação de B. no pagamento de sinal dobrado porque, celebrado
contrato-promessa de compra e venda que, de acordo com o estipulado, devia ter sido
realizada no prazo de 6 meses, cumprindo ao promitente vendedor a marcação da escritura, o
que este não fez, nem mesmo depois de ser interpelado para o fazer no prazo de 30 dias que
lhe foi fixado, será que o decaimento do autor no pedido pela falta de prova destes factos
pode ser impedido pela revelação em julgamento do facto novo não alegado consistente na
celebração, já decorridos os 6 meses estipulados, pelo promitente-vendedor de contrato-
promessa de compra e venda com outro indivíduo a quem entregou, para utilização, esse
mesmo imóvel? 11
Estamos, no caso, não diante de um facto concretizador ou complementar dos factos
alegados, mas perante um facto novo essencial integrativo de diversa previsão, a saber, o
incumprimento definitivo do contrato-promessa por perda objetiva de interesse na prestação
por parte do autor, promitente-comprador que não tem interesse na aquisição de propriedade
de um imóvel ocupado.
Repare-se que no primeiro caso a causa de pedir invocada não era posta em causa,
digamos assim, pela prova dos factos novos: tinha-se em vista saber se o autor era possuidor
do prédio rústico pelo tempo necessário à aquisição da propriedade por usucapião. Tratava-se
tão somente de saber se, apesar de serem suficientes os factos alegados para a prova da
invocada posse, o Tribunal podia ainda assim considerar factos novos revelados na discussão
do litígio, não se estando, portanto, a visar uma nova realidade causal.
No exemplo agora indicado constata-se que o autor não alegou factos visando a perda
objetiva do interesse na celebração da escritura de compra e venda em consequência de,
decorrido já o prazo fixado para a outorga da escritura de compra e venda, o promitente
vendedor ter outorgado contrato-promessa com terceiro a quem entregou, para utilização, o
imóvel, integrando tais factos um diverso conceito normativo causal: a perda de interesse na
realização da prestação.

11
Pressupõe-se que não estamos diante de facto superveniente.

248
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

Alegação de factos essenciais e doutrina da substanciação 12


30. Quando a lei refere que "às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a
causa de pedir" (artigo 5.º/1, do C.P.C.) não parece que se esteja a afastar a doutrina da
substanciação de acordo com a qual, como é sabido, se exige a indicação do facto jurídico
concreto em que se baseia o direito do autor". Aliás, o C.P.C. de 2013 não alterou nos artigos
186.º, 580.º, 581.º, a redação dos correspondentes artigos 193.º, 497.º e 498.º, do C.P.C. de
1961.
31. De acordo com este entendimento, "o tribunal não conhece de puras abstrações, de
meras categorias legais; conhece de factos reais, particulares e concretos e tais factos quando
sejam suscetíveis de produzir efeitos jurídicos, é que constituem a causa de pedir. Como nota
Chiovenda e já assinalámos, a causa petendi não é norma de lei que a parte invoca em juízo; é
o facto que se alega como capaz de converter em concreto a vontade abstrata da lei". 13

Causa de pedir
32. Ou, pelo contrário, deveremos hoje considerar afastado este entendimento? Pode
aceitar-se que, tendo o autor proposto ação de divórcio com fundamento em determinados
factos que consubstanciam adultério, o tribunal, face à revelação de outros factos não
alegados - por exemplo, agressões que vitimaram o autor - decrete o divórcio? Pode aceitar-se
que, não invocada pelo autor a perda de interesse na outorga da escritura de compra e venda
mas tão somente o incumprimento definitivo por recusa do cumprimento por parte do
promitente-vendedor, o Tribunal condene o promitente-vendedor no pagamento do sinal
dobrado por incumprimento definitivo do contrato-promessa por falta de interesse do
promitente-comprador? (artigo 808.º, do Código Civil)?
33. Se a lei impõe a alegação de factos essenciais que constituem a causa de pedir (artigos
5.º/1 e 552.º/1, alínea d)) é essa causa de pedir que concretamente o Tribunal deve
considerar. A admissibilidade de novos factos pressupõe que a causa de pedir não seja
alterada. Tratando-se de factos complementares ou concretizadores dos factos alegados que
obviamente caracterizam a causa de pedir não se vê que tal possa suceder. A dificuldade
centra-se, portanto, desde logo na definição da causa de pedir a considerar no caso concreto.

12
Como refere Anselmo de Castro, loc. cit., "para a doutrina da substanciação a causa de pedir, ainda nos
direitos absolutos, será o facto gerador do direito, divergindo a ação sempre que seja diferente o facto
constitutivo invocado. Daí a designação 'teoria da substanciação': o que substancia ou fundamenta a ação (a
pretensão) igualmente a individualiza" (pág. 206).
13
Código de Processo Civil Anotado, por José Alberto dos Reis, Vol III, 3.ª edição, 1981, págs. 125/128.

249
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

34. Se a parte alega factos que não são suficientes para a procedência da ação, não é a
falta ou ininteligibilidade de causa de pedir o que está em causa, mas a improcedência da ação
à luz da caracterizada causa de pedir. Se A. pede a condenação de B. no pagamento do preço
por fornecimentos, a causa de pedir não está suficientemente caracterizada - que
fornecimentos foram efetuados, qual o período de tempo a que respeitam? Mas, com base na
doutrina da substanciação, não pode aceitar-se a condenação do réu considerando que, afinal,
o valor reclamado respeitava, não ao preço da mercadoria fornecida, mas aos prejuízos que
resultaram para o vendedor pelos custos de depósito da mercadoria em consequência do
atraso pelo comprador na receção da mercadoria.
35. A complementaridade ou a concretização têm em vista uma determinada causa de
pedir que, sob pena de ineptidão, há-de estar minimamente caracterizada desde a petição de
modo a que se haja com a citação estabilizada a instância (artigos 186.º, 259.º/2). Assim, o
incumprimento definitivo daquele contrato-promessa face à interpelação admonitória, o
divórcio por violação do dever de fidelidade face ao alegado adultério, o não pagamento do
preço de mercadoria fornecida referenciam-se sempre aos factos essenciais alegados que
constituem a causa de pedir, não admitindo a lei a consideração oficiosa de factos essenciais
não alegados referenciados a causa de pedir diversa daquela que deles resulta.
36. Quando o adultério constituía fundamento autónomo do divórcio ou de separação
judicial de pessoas e bens (artigo 1778.º, alínea a), do Código Civil de 1966), as agressões
físicas integravam o fundamento que constava da alínea g), desse mesmo artigo 1778.º, a
saber, "qualquer outro facto que ofenda gravemente a integridade física ou moral do
requerente".
No entanto, atualmente, a norma que tais factos têm em vista é a que consta da alínea d),
do artigo 1781.º, do Código Civil - "quaisquer outros factos que, independentemente da culpa
dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento" e, por isso, a menção de agressões,
a par do adultério, constituem factos concretizadores da ruptura do casamento.
Esta previsão normativa pode ser preenchida com quaisquer factos que evidenciem o fim
do casamento.
37. Releva nas ações constitutivas "o facto concreto que se invoca para obter o efeito
pretendido" (artigo 581.º/4); então, assim sendo, dir-se-á, o facto concreto essencial a atender
é aquele que foi concretamente alegado de modo suficiente para a caracterização da causa de
pedir e não todos os factos essenciais suscetíveis de preencher a categoria normativa "ruptura
definitiva do casamento".

250
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

38. Se o autor alega factos imprecisos ou insuficientes para a caracterização do adultério


enquanto ato violador do dever de fidelidade (artigo 1672.º do Código Civil), pergunta-se: o
convite ao aperfeiçoamento não lhe permite invocar outros factos essenciais diversos dos que
se destinam a provar o adultério enquanto causa concretamente alegada que evidencia
"ruptura definitiva do casamento", face ao disposto no artigo 265.º, conjugado com o artigo
591.º/6?
39. À luz da doutrina da substanciação, a causa de pedir não se reconduz à categoria
normativa tida em vista ("ruptura definitiva do casamento"; consubstancia-se nos factos
concretos alegados de tal sorte que a ação não deixará de proceder, caso os factos preencham
categoria normativa diversa da que foi visada. Assim, se o autor pede o divórcio considerando
que há uma rutura definitiva do casamento alegando que, por causa do invocado adultério,
deixou de fazer vida comum com o réu há mais de um ano, apesar de ambos partilharem a
mesma casa, o que só sucede por razões económicas, o Tribunal, ainda que não se prove o
adultério, não deixará de julgar a ação procedente constatada a separação de facto por um
ano consecutivo (artigo 1781.º, alínea a), do Código Civil).
40. No entanto, tratando-se de factos complementares ou concretizadores, estes, como
se disse, referenciam-se em função "dos que as partes hajam alegado" (artigo 5.º/2, alínea b).
Nas ações em que a causa de pedir "é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca
para obter o efeito pretendido", a complementaridade ou concretização devem ser vistas em
função desses factos concretos e não em função da própria pretensão emergente do facto
jurídico invocado como sucede tratando-se de direito real.
41. Por isso, revelados que sejam durante a instrução da causa factos essenciais nunca
alegados caracterizadores de agressão física, o Tribunal - dir-se-á - não afastada a doutrina da
substanciação, não pode admitir tais factos e, com base neles, decretar o divórcio. Por outras
palavras, a complementaridade ou concretização não deixam a órbita da causa de pedir
consubstanciada nos factos concretamente alegados para passarem a abranger a órbita da
previsão normativa que os factos visam preencher.
42. Note-se, porém, que uma alegação factual imprecisa pode suscitar fundadas dúvidas.
Se o autor alegou que a ruptura do casal é definitiva porque o réu incorreu em atos violentos
demonstrativos da violação do dever de recíproco respeito, designadamente a ligação
sentimental do réu com outra pessoa, a prova em julgamento de atos concretos de agressão
constitui ato concretizador de facto essencial conclusivo alegado: a prática de atos violentos
que vitimaram o autor.

251
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

43. Não se verificando tal situação, só se pode aceitar tal facto novo essencial não alegado
se não reconduzirmos a causa de pedir à violação de deveres conjugais que "mostrem a
ruptura definitiva do casamento" (artigos 1672.º e 1781.º, alínea d), do Código Civil). A causa
de pedir invocada seria o limite, a revelação dos factos novos no decurso da instrução seria a
condição.
44. No exemplo figurado, resultando da instrução que o réu agredira o autor, nenhuma
dúvida se suscita de que tal facto traduz violação do dever de respeito e, por si, é suscetível de
demonstrar a ruptura do casamento. Este facto não é todavia complementar nem
concretizador dos factos invocados comprovativos do adultério demonstrativos da violação do
dever de fidelidade; nem se pode afirmar que este facto – a agressão – seria alguma vez
suscetível de se conjugar com os factos alegados visando demonstrar a rutura definitiva do
casamento por violação do dever de fidelidade.
45. Repare-se todavia no seguinte: a violação dos deveres conjugais não constitui a
referência normativa causal com base na qual se irá reconhecer ou não a "ruptura definitiva do
casamento". É que, hoje, a culpa não releva enquanto fundamento do divórcio; releva a
constatação dos factos que evidenciem tout court a existência de uma rutura. Então, assim
sendo, os factos integrativos do divórcio são todos os factos, entre outros, suscetíveis de
revelar essa rutura que é ela em si a causa do pedido de divórcio.
46. Trata-se, portanto, mais uma vez, de ponderar se a suficiência dos factos alegados
obsta ou não obsta a que o Tribunal possa admitir factos complementares dos factos alegados
no sentido que considerámos anteriormente: factos que se conjugam com os alegados tendo
em vista o preenchimento da realidade normativa causal. Ora, para esta concorrem todos os
factos essenciais ocorridos, existindo sempre insuficiência quando não são alegados todos os
factos que podiam ter sido alegados.
47. O Tribunal, revelada a agressão em julgamento, pode considerar oficiosamente este
facto e decretar o divórcio; também, no âmbito do pré-saneador, a parte pode alegar este
facto ainda que haja sido convidada a alegar factos concretizadores de uma alegação
insuficiente de adultério. Acrescente-se, em nota final, que se a causa de pedir fosse
constituída pela violação culposa de deveres conjugais, não podia o autor invocar factualidade
integrativa de diversa causa de pedir: a violação do dever de respeito quando estava em causa
a violação do dever de fidelidade.

252
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

Factos instrumentais
48. Quanto aos factos instrumentais não impende sobre as partes nenhum ónus de
alegação. É também aqui evidente que é do interesse das partes a alegação de factos
instrumentais – que são aqueles que, por si, não bastam para a procedência da ação ou da
exceção, como sucede com os factos essenciais, mas permitem "inferir a demonstração dos
correspondentes factos principais" 14.
49. Nalguns casos será seguramente difícil a qualificação de um facto como instrumental
ou como facto essencial. No exemplo anteriormente apontado, pelo menos alguns atos
mencionados integrativos da posse por si sós não seriam suficientes para se considerar que o
autor era um possuidor. Tais atos poderiam por tal motivo ser vistos como atos meramente
instrumentais. Importa, segundo nos parece, ter, quanto a este aspeto, algum cuidado: um
facto que, em si, não permita preencher a categoria normativa causal visada, não é
necessariamente um facto instrumental. Não se afigura que a natureza essencial do facto
deixe de subsistir pela circunstância de ele carecer de se conjugar - de se complementar - com
outro facto para se preencher o tipo legal visado, o que sucede frequentemente nas causas de
pedir complexas.
50. Há, no entanto, factos instrumentais que, pelo seu significado probatório, quase se
confundem com os factos essenciais alegados. Veja-se o caso, que era muito comum nos
tribunais, da ação de despejo com fundamento na falta de residência permanente do
arrendatário. Alegando o autor que o réu não habita no local arrendado - seria este hoje o
tema de prova - a concretização dessa afirmação, equivalente à menção de que o réu não tem
no local arrendado a sua residência permanente, fazia-se normalmente alegando-se que ali
não come, não dorme nem é visto. A ausência de prova sobre tais factos apoiada em prova
testemunhal e por inconcludência nos gastos de luz, água e gás levaria a ação à improcedência;
assim não sucederá perante o facto novo instrumental revelado em julgamento de que o réu
vive noutra localidade em casa própria, adquirida por si, ali vivendo com os filhos menores.

Âmbito da oficiosidade
51. Atente-se que o Tribunal pode considerar os factos complementares ou
concretizadores revelados na instrução da causa ainda que a parte a quem aproveitam nada
diga, mas o Tribunal apenas pode considerar tais factos se à parte contrária tiver sido
proporcionada a possibilidade de se pronunciar (artigo 5.º/1, alínea b).

14
Teixeira de Sousa, loc. cit., pág. 72.

253
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

É certo, quanto aos factos dessa natureza que se revelam na discussão da causa, que a
presença dos mandatários implica o conhecimento dos factos e a possibilidade de se
pronunciarem sobre eles; é certo também que, tratando-se de factos que resultem de atos
praticados na fase de instrução, pode assim não suceder. Mas isso não significa que o Tribunal
possa sem mais considerar tais factos adquiridos em termos probatórios.
52. Não tem, a nosso ver, o juiz, no decurso do julgamento e perante o desenrolar da
prova, de mencionar pari passu que estão a ser revelados factos novos de natureza
instrumental. As partes não podem deixar, perante tais factos, se entenderem que se justifica
a produção de prova destinada a infirmar o que brotou de novo no julgamento, requerê-la
efetivando o exercício do contraditório.
53. A possibilidade de exercício do contraditório é fundamental. Por isso, constatando o
juiz que determinado facto revelado em audiência – a instrução não constitui uma fase
estanque, prolonga-se durante a audiência final e mesmo, limitadamente embora, para além
dela – constitui facto complementar ou concretizador dos factos que as partes hajam alegado
à luz da causa de pedir que deles promana, deve o juiz, na audiência, informar as partes da
relevância desse facto e da natureza que o caracteriza no âmbito do litígio a fim de, querendo,
exercerem o contraditório. Tal matéria passa a constituir tema de prova à semelhança do que
sucede com os factos supervenientes que interessam à decisão da causa (artigo 588.º/6). Se o
juiz não tiver ampliado o tema de prova em audiência, pode reabri-la para o efeito (artigo
607.º) salvo se a parte interessada declarar que não pretende exercer o contraditório
relativamente a tal matéria; o Tribunal da Relação pode igualmente determinar a ampliação do
tema de prova a fim de ser objeto de discussão a nova factualidade que resulta da instrução da
causa (artigo 662.º/2, alínea c)).
54. Na verdade, o exercício do contraditório pressupõe uma clara definição dos temas de
prova; entende-se que o Tribunal pode conhecer desses factos revelados na instrução da causa
independentemente da vontade das partes sem o que afinal não existiria oficiosidade. E se
esta existe é precisamente para se viabilizar, tanto quanto possível no interesse da verdade,
uma ampla cognoscibilidade em matéria de facto. No entanto, o processo está fundado em
princípios fundamentais, um dos quais é precisamente o princípio do contraditório.
55. Ora se aceitamos que o juiz pode conhecer de factos complementares e
concretizadores com o âmbito já mencionado e se entendemos que a possibilidade de
conhecimento dos factos novos não está dependente da vontade das partes quando eles são
revelados em audiência ou na instrução da causa, não seria aceitável que as partes pudessem

254
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

ficar sujeitas à incerteza decorrente da consideração pelo juiz de uma realidade de facto
essencial sem existir um juízo prévio sobre a relevância dessa realidade.

Poderes do Tribunal
56. O Tribunal pode impedir direta ou indiretamente a produção de prova sobre factos
alegados?
A resposta é afirmativa. Se o artigo 6.º/1 prescreve que o juiz pode recusar "o que for
impertinente ou meramente dilatório" é evidente que devem ser recusadas as diligências de
prova e também a produção de prova admitida sobre factos impertinentes ou meramente
dilatórios. Também o artigo 410.º prescreve que a instrução tem por objeto "os factos
necessitados de prova" e não são seguramente factos necessitados de prova os factos
impertinentes ou meramente dilatórios.
A circunstância de o juiz oficiosamente sujeitar ao crivo do contraditório factos
complementares ou concretizadores que estejam no âmbito dos seus poderes de cognição,
não obsta, como é evidente, que a parte interessada requeira que seja constituído como tema
de prova determinado facto de natureza complementar ou concretizadora revelado em
audiência e viabilizado o contraditório.

Temas de prova
57. No entanto, a instrução tem em primeira linha (artigo 410.º) por objeto "os temas de
prova enunciados" (artigo 596.º/1) e aqui já estamos perante uma alegação factual de
natureza genérica.
58. Se o tema de prova consiste em saber se o acidente resultou da invasão da faixa de
rodagem onde circulava o veículo A. pelo veículo B que, vindo de entroncamento à direita,
considerado o sentido de marcha daquele, não parou ao sinal de Stop ali existente, toda a
averiguação sobyre factos complementares, concretizadores e instrumentais referentes ao
mencionado tema de prova não deixará de ser admissível exatamente nos mesmos termos em
que seria admissível a produção de prova que sobre eles houvesse de incidir quesitados que
fossem per se. A prova de que o condutor entrou no entroncamento desrespeitando o sinal de
aproximação de estrada com prioridade e não o sinal de Stop não pode deixar de ser
admissível conquanto se esteja face a um facto essencial concretizador da alegada existência
no local de sinal de trânsito que não confere prioridade a quem circula nessa via. A
concretização não deve ser vista com referência ao assinalado sinal de Stop, mas com
referência a um assinalado sinal de perda de prioridade sob pena de se beneficiar quem alega

255
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

genericamente no confronto com aquele que, embora errando, procura concretizar o mais
possível as razões que entende assistir-lhe.
59. A elaboração de temas de prova não constitui todavia nenhum passaporte para um
interrogatório de testemunhas não factual do tipo "diga o senhor s.f.f. o que sabe sobre o
acidente ocorrido entre os veículos A. e B"; tão pouco constitui passaporte para um
interrogatório em que a parte interrogue a testemunha sobre factos alegados sem pertinência
para o litígio em concreto do tipo "a senhora testemunha disse que não presenciou o acidente,
mas diga-me s.f.f. se aquele é um local em que os veículos circulam habitualmente a grande
velocidade”, diga-me se o condutor do veículo B é pessoa cuidadosa na condução sendo
impensável que alguma vez desrespeitasse o sinal de Stop que se lhe deparasse à entrada de
entroncamento, etc. etc.).
60. Por isso, em audiência final, a prova há-de principiar sempre e tão somente sobre os
factos necessariamente essenciais integrativos dos temas de prova enunciados. É certo que a
lei, no que à prova pericial respeita, admite que esta se reporte aos factos articulados e não
apenas às questões de facto essenciais que se inserem nos temas de prova (artigo 475.º/2).
Isto significa que à prova pericial podem interessar, conquanto articulados, factos
concretizadores, factos instrumentais e factos complementares desde que se insiram nos
temas de prova enunciados o que evidencia o interesse, anteriormente referido, das partes em
muitos casos não se limitarem nos articulados à mera alegação dos factos essenciais.
No entanto, como é evidente, a prova será admitida se tais factos forem pertinentes e,
por isso, a lei 15 prescreve que o juiz pode indeferir "as questões suscitadas pelas partes que
considere inadmissíveis ou irrelevantes" (artigo 476.º/2).
No decurso da instrução da causa que não se reduz à audiência final - embora seja esta
que temos agora principalmente em vista - podem evidenciar-se factos que não tenham sido
alegados. São factos novos precisamente porque não foram alegados.

Superveniência
61. Tais factos, se forem instrumentais, podem ser sempre considerados pelo Tribunal e,
ainda que sejam supervenientes, não estão sujeitos ao regime de admissibilidade constante do
artigo 588.º e segs, pois com eles visa-se a prova de factos revelados durante a instrução da
causa, portanto, de conhecimento oficioso. Com efeito, se A. propõe contra B. ação de despejo
alegando que B. não utiliza o local arrendado para habitação há mais de um ano, ninguém o

15
Ainda que o não dissesse, seria de entender da mesma forma.

256
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

tendo visto nem à mulher nem aos filhos, constitui facto instrumental a menção de que no
local arrendado está a viver a filha casada do réu que o réu visita de tempos a tempos.
62. Se forem factos complementares ou concretizadores dos factos que as partes hajam
alegado, afigura-se-nos distinguir as situações de superveniência subjetiva das situações de
superveniência objetiva. Se o tribunal pode conhecer oficiosamente dos factos revelados
durante a instrução da causa que sejam complemento ou concretização dos factos alegados
com o sentido que já foi referido, a necessidade de se provar que a parte não tinha
conhecimento do facto excluiria a própria oficiosidade. Já quanto à superveniência objetiva, a
necessidade da sua alegação resulta da oficiosidade valer quanto aos factos novos
conexionados com os factos alegados. Sucede que os factos novos a ter em conta
oficiosamente são todos e apenas aqueles suscetíveis de terem sido alegados, ou seja, todos os
que já se tinham verificado quando a ação foi proposta.

Prova
63. Constitui facto essencial complementar dos factos alegados reveladores da
incapacidade do testador entre os quais o de se esquecer do nome de pessoas próximas, o de
se esquecer de que já falecera o seu cônjuge, pedindo a sua presença e lastimando-se da sua
ausência etc. etc., a menção efetuada em audiência final de que ele padecia há anos de
doença de Alzheimer que tinha já atingido um grau de evolução em que o próprio não estava
apto a medir o sentido da sua própria declaração (artigo 2199.º, do Código Civil).
64. Se em muitos casos a revelação de tais factos não constituirá uma surpresa no sentido
em que, atento o alegado, seria admissível que da prova resultasse esse facto novo - parece-
nos ser o caso do exemplo apontado respeitante à posse – já noutros – será o que acontece no
exemplo da incapacidade – o facto é inesperado porque seria de esperar que, pela sua
relevância, fosse o primeiro a ser alegado. A controvérsia sobre a incapacidade do testador
quando lavrou o testamento tinha em vista uma situação em que os factos apontariam para
uma incapacidade acidental e não para uma incapacidade permanente.
65. Não pode, a nosso ver, ser inviabilizada a produção de prova destinada a infirmar o
que desses factos resulta (v.g. a junção aos autos de toda a documentação clínica respeitante
ao testador e apreciação pericial tendo em vista saber se, face ao que da documentação clínica
consta, padecia o testador da referida doença) pois à parte prejudicada com a valorização
probatória desses factos novos "a possibilidade de se pronunciar" sobre eles não se restringe
ao exercício do contrainterrogatório, ou seja, "as instâncias indispensáveis para se completar

257
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

ou esclarecer o depoimento" (artigo 517.º/2). Com isto se quer dizer que em muitos casos o
exercício do contraditório pode implicar atos de instrução relevantes.
66. Aliás, no âmbito do despacho pré-saneador, a lei admite que seja apresentado novo
articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido (artigo 590.º/4) ficando os
factos aditados sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova (artigo 590.º/5). De
igual modo o exercício do contraditório e prova também são admissíveis se houver que
proceder ao suprimento das insuficiências da matéria de facto na audiência prévia com a
diferença de que, em tal caso, é desnecessária a apresentação de articulado visto que, logo
nessa ocasião, devem ser indicados os factos que integrem o exercício do contraditório.
67. Atente-se, porém, que a parte que não alegou factos essenciais ou complementares
dos factos essenciais alegados corre o risco, se deles tinha conhecimento quando propôs a
ação, de não poder beneficiar da sua aquisição processual se tais factos não "entrarem" no
processo por via da instrução da causa.
68. Assiste-lhe o direito de produzir prova sobre factos que se tenham revelado durante a
instrução da causa salvo, como é evidente, se o Tribunal considerar que tais factos não são
relevantes ou que, embora relevantes, não podem ser considerados por implicar a sua
aquisição processual violação da causa de pedir 16.

16
A consideração de factos novos revelados na instrução da causa não significa, assim sendo, que a parte
tenha incorrido em insuficiência de alegação. Refira-se que o convite que o Tribunal deve dirigir tendo em
vista o aperfeiçoamento não é admissível se os factos em causa constituírem causa de pedir diversa da
causa de pedir alegada ou que a parte tinha concretamente em vista. Ex: A. demanda B. considerando que o
veículo segurado não respeitou o sinal de stop invadindo a faixa em que circulava; B. nega a existência
naquele momento no local do embate de um sinal de Stop que dali teria sido removido ou de qualquer
outro sinal que conferisse prioridade ao condutor do veículo A; resultando todavia do auto de sinistro
elaborado pela autoridade policial a existência de rastos de travagem e a referência pelo condutor do
veículo A. que o outro veículo surgiu subitamente na via em manobra de travagem, não pode o Tribunal
convidar o A a alegar que o veículo segurado em B circulava com velocidade inadequada para quem se
aproxima de um cruzamento, ainda que com prioridade por vir da direita, impondo-se sempre uma
manobra de aproximação à via realizada lenta e cuidadosamente? Implicam tais factos novos não alegados
causa de pedir diversa? A causa de pedir em acidentes de viação é complexa, inclui todos os factos que
contribuíram para a eclosão do acidente. Se considerarmos apenas os factos alegados (o condutor do
veículo segurado entrou na via violando sinal de Stop), a falta de prova desse facto conduz à improcedência
da ação porque afinal lhe assistia prioridade; provando-se os factos que resultaram da instrução da causa,
ou seja, que o veículo segurado na ré, beneficiando da prioridade por se apresentar pela direita, entrou com
velocidade no cruzamento sem abrandar a velocidade de que vinha animado, pode decidir-se que a
responsabilidade do acidente pertence aos dois condutores.

258
Poderes de cognição do juiz em matéria de facto

Concluindo:
I- A lei não impõe qualquer limitação ao ónus de alegação dos factos, dispondo as partes
de toda a liberdade para alegarem os factos essenciais e instrumentais que reputem
convenientes, aceitando-se que o façam de forma exaustiva visto que o seu aproveitamento
oficioso em fase ulterior do processo está condicionado à sua revelação na instrução da causa.
II- A superveniência subjetiva não obsta à admissibilidade de factos novos que resultam
da instrução da causa pois a lei admite o seu conhecimento oficioso.
III- A admissibilidade de factos complementares ou concretizadores pressupõe que se
conexionem (a) com factos que as partes hajam alegado, que resultem da instrução da causa
(b) e que as partes (c) sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciarem.
IV- Os factos novos têm de respeitar a causa de pedir que emerge dos factos
concretamente alegados; no entanto, no que respeita à qualificação jurídica, esta pode ser
diversa da que as partes tinham em vista à luz da causa de pedir que invocaram; ou seja, a
causa de pedir é aquela que resulta dos factos alegados e, por conseguinte, o direito pode ser
reconhecido ainda que fundado em causa de pedir diversa da invocada desde que esta tenha
suporte nos factos alegados.
V- Não obsta à admissibilidade dos factos novos que resultam da instrução da causa
enquanto factos complementares ou concretizadores dos factos alegados a suficiência destes
tendo em vista a pretensão deduzida.
VI- A complementaridade ou concretização dos factos novos deve ser considerada à luz da
causa de pedir que emerge dos factos concretamente alegados e a conexão com estes deve
ser considerada, tendo em vista a totalidade dos factos ocorridos integrativos dessa causa de
pedir que podiam ter sido alegados e não foram alegados, interpretação que está em
conformidade com a letra e o espírito do artigo 5.º, do C.P.C.
VII- Os factos novos concretizadores podem ser tanto os factos que emergem de
conclusões de facto alegadas como os que emergem de conceitos de direito desde que estes
se conexionem com factos alegados respeitantes à mesma causa de pedir.
VIII- Se o Tribunal, no decurso da instrução, constatar que se evidenciam factos de
natureza complementar ou concretizadora deve considerar oficiosamente que tais factos
constituem tema de prova, convidando as partes para, querendo, quanto a eles exercerem o
contraditório.

259
Videogravação da comunicação

260
Temas da prova e instrução

[Elizabeth Fernandez]
Temas da prova e instrução

Temas da prova e instrução


Elizabeth Fernandez

Sumário:
I – As mudanças na produção de alguns meios de prova: a prova testemunhal e a
prova documental.
II – Crítica da inconsequente apresentação inicial dos requerimentos probatórios.
III – O que deveria ter mudado e nao mudou: cuidados de interpretação com a
prova pericial.
IV – As novas provas: as declarações de parte e as verificações não judiciais
qualificadas.

263
Videogravação da comunicação

Vídeo 1 Vídeo 2

264
Temas da prova e instrução

[Paulo Ramos Faria]


Temas da prova e instrução

Temas da prova e instrução


Paulo Ramos Faria

Sumário:
I – Temas da prova
 I.I – Distinção entre (identificação do) objeto do litígio (arts. 596.º, n.º 1, e
607.º, n.º 2) e (enunciação das) questões que ao tribunal cumpre
solucionar (art. 607.º, n.º 2) – cfr., ainda (conhecimento das) questões a
resolver (arts. 595.º, n.º 2, e 608.º)
 I.II – Enunciação dos temas da prova (art. 596.º, n.º 1)
II – Instrução
 II.I – Oportunidade de apresentação e de alteração dos requerimentos
probatórios
 II.II – Meios de prova
 II.II.I – Prova por documentos
 II.II.II – Declarações de parte
 II.II.III – Verificações não judiciais qualificadas
 II.II.IV – Prova testemunhal
(III – Audiência final)

267
Videogravação da comunicação

Vídeo 1 Vídeo 2

268
 Sentença Cível

 Nótula sobre a Jurisdição


Cível1

[António Santos Abrantes Geraldes]

1
Texto cedido pelo autor para a presente publicação.
Sentença Cível

Sentença Cível 1
António Santos Abrantes Geraldes

1. No processo civil, o termo “sentença” designa o “acto pelo qual o juiz decide a causa
principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa” (art. 152º, nº 2, do
NCPC). Tal expressão abarca também, além da decisão final dos procedimentos cautelares, o
despacho saneador que conhece imediatamente do mérito da causa, isto é, que aprecia o
pedido ou algum dos pedidos ou excepção peremptória, nos termos do art. 595º, nº 1, al. b),
do NCPC.
Porém, atenta a recentíssima entrada em vigor do NCPC, incidirei especialmente sobre as
alterações que se materializaram no art. 607º, respeitante à “sentença”, como acto que, após
a audiência final, congrega tanto a decisão da matéria de facto, como a respectiva integração
jurídica, por comparação com o que anteriormente emergia dos arts. 653º (decisão da matéria
de facto) e 659º (sentença).

2. O sistema anterior caracterizava-se pela dualidade de julgamentos: num primeiro


momento, o Tribunal (quase em absoluto, o juiz singular) proferia a decisão da matéria de
facto, expondo o resultado da sua convicção relativamente aos diversos pontos da base
instrutória, seguida da motivação colhida da apreciação crítica dos meios de prova produzidos;
num segundo momento, depois de eventuais alegações de direito, o processo era apresentado
ao juiz para proferir a sentença, com identificação, interpretação e aplicação das normas
jurídicas aos factos considerados provados.
Já então era possível, em determinadas situações, antecipar a prolação da sentença,
como acontecia quando as partes optavam por alegações de direito orais (arts. 657º, nº 1, e
659º, nº 5) ou no processo sumário (art. 791º, nº 3).
Ainda assim, mantinha-se a repartição entre o julgamento da matéria de facto e a
apreciação jurídica, como decisões autónomas, ainda que formalmente agregadas.
Esta metodologia, que sobreviveu a diversas reformas do processo civil, apresentava
alguns inconvenientes que o NCPC procurou afastar.

1
Corresponde ao texto-base da intervenção nas “Jornadas de Processo Civil” organizadas pelo CEJ, em 23 e
24 de Janeiro de 2014.

271
Sentença Cível

Para além da sua inadequação a um modelo que praticamente abolira a intervenção do


Tribunal Colectivo e em que, por conseguinte, tanto o julgamento da matéria de facto, como a
respectiva apreciação jurídica, eram atribuídos a um órgão uninominal, a referida
autonomização formal tinha como pressuposto essencial a possibilidade de se estabelecer
uma perfeita delimitação entre o que constituía matéria de facto e o que deveria considerar-se
matéria de direito, desiderato que nem sempre era viável ou conveniente.
Acrescia ainda que o estabelecimento de uma separação formal e temporal entre a
decisão da matéria de facto e a aplicação do direito dificultava uma correcta integração de
ambos os fundamentos da sentença 2.
Ademais, a separação entre a decisão da matéria de facto e a sentença potenciava ainda
que fossem subscritas por juízes diversos, nos casos em que o juiz que dirigira a audiência de
discussão e julgamento e proferira a decisão da matéria de facto era transferido para outro
Tribunal de 1ª instância ou promovido à Relação, uma vez que o princípio da plenitude da
assistência apenas vigorava para a audiência de julgamento 3.
A percepção dos inconvenientes da anterior solução esteve na génese das modificações
operadas e que essencialmente se traduziram no seguinte: “encerrada a audiência final, o
processo é concluso ao juiz, para ser proferida sentença no prazo de 30 dias” (art. 607º, nº 1,
do NCPC).

2
É evidente que a decisão da matéria de facto não deve ser condicionada por uma preconcebida solução
jurídica, devendo o juiz verter na mesma o resultado da convicção formada sobre os meios de prova sujeitos
a livre apreciação ou o que decorre de meios de prova vinculada. Mas tal não significa que o juiz, nesse
momento, se abstraia e desconsidere as respectivas consequências jurídicas.
Assim, com respeito pelos deveres deontológicos que obrigam a um distanciamento em relação ao resultado
da lide e sem embargo da necessidade e obrigatoriedade de o juiz motivar a decisão sobre a matéria de
facto, não poderá deixar de antecipar os efeitos que resultam da prova ou da falta de prova de certos factos,
assim como deve ponderar, em face dos institutos jurídicos em causa, os factos cuja prova se revela
necessária para que a acção ou a excepção proceda.
3
As atribulações do processo legislativo que começou por ter como objectivo uma alteração do anterior CPC
e acabou com a aprovação de um novo CPC explicam algumas incongruências, traduzindo-se uma delas na
inserção do nº 4 no art. 605º, segundo o qual “nos casos de transferência ou promoção, o juiz elabora
também a sentença”. Este preceito justificar-se-ia se tivesse sido mantida a cisão entre o julgamento da
matéria de facto e a respectiva integração jurídica. Já não se mostra necessário no modelo adoptado na
versão final do NCP, que prescreve a fusão de ambos os julgamentos na sentença, bastando para o efeito o
que está previsto no nº 3, nos termos do qual a transferência ou a promoção do juiz não interferem na
conclusão do julgamento.

272
Sentença Cível

3. As modificações introduzidas com o NCPC determinam algumas alterações no que


concerne à elaboração da sentença, umas de natureza formal e outras de cariz substancial 4.
Desde logo, não podem olvidar-se os contributos que nas sucessivas reformas processuais
o legislador vem procurando dar no sentido da simplificação dos actos processuais, como
factor que potencia a eficácia e a celeridade na resposta judiciária. Objectivos nem sempre
bem compreendidos, uma vez que, malgrado as modificações legais, ainda é recorrente a
concentração de esforços na descrição do litígio (em que o pretendido relatório se transforma
no relato de todas as incidências processuais ou na transcrição de todos os fundamentos da
acção ou da defesa) ou na exposição (ou na transcrição facilitada pelo copy past) de elementos
de natureza doutrinal ou jurisprudencial sem efectivo relevo para a resolução das questões a
decidir.
Sendo recorrentes as observações que se fazem relativamente a determinadas opções
legislativas, é mister que se admita, nesta área específica, que as reformas no âmbito do
processo civil têm apostado precisamente na simplificação dos actos, objectivo que deve ser
prosseguido na prática judiciária.

4. A aludida simplificação deve orientar o juiz, desde logo, na elaboração do segmento


relativo à identificação das partes, não se compreendendo a reprodução de todos os
elementos que obrigatoriamente já terão sido enunciados pelo autor na petição inicial (art.
552º, nº 1, al. a)), nem a reprodução dos domicílios ou sedes sociais.
Menos ainda se justificará, em face do texto legal (art. 607º, nº 1), que praticamente já
reproduz o que constava do art. 659º, nº 1, do anterior CPC, que, em lugar de uma correcta e
sintética identificação do objecto do litígio, continuem a ser feitas transcrições dos articulados
sem qualquer utilidade, desviando a atenção daquilo que verdadeiramente é importante.
Por ser necessária à compreensão da sentença, a lei apenas exige que o juiz enuncie, em
traços gerais, os contornos do litígio, com identificação clara do pedido ou dos pedidos
formulados, a par da síntese dos respectivos fundamentos (causa ou causas de pedir) e dos

4
Relativamente à Reforma do Processo Civil de 1996/97, poderão ser colhidas observações mais completas
que inseri em “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. I (princípios gerais e fase inicial) e vol. II (audiência
preliminar, despacho saneador, decisão da matéria de facto).
Já relativamente ao NCPC, abordei a matéria dos recursos em “Recursos no Novo CPC” (2013), e remeto
ainda, no que concerne aos Trabalhos Preparatórios, para textos publicados na revista Julgar, nº 16 (2012)
(“Nova Reforma do processo Civil”), em II Cadernos da Revista do Ministério Público (2012) (“Recursos”) e na
Revista da Ordem dos Advogados (2012) (“Reforma do Processo Civil”).

273
Sentença Cível

fundamentos apresentados pelo réu, máxime quando se defenda por excepção que ainda não
tenha sido apreciada no despacho saneador.
Culminará este segmento da sentença com a enunciação das “questões jurídicas” que
cumpre apreciar, na certeza, porém, de que as mesmas não correspondem a meros
argumentos jurídicos, antes aos vectores fundamentais da acção e da defesa, a que poderão
ainda acrescer outras que sejam de conhecimento oficioso 5.
Este enunciado, que ganhou forma há cerca de 30 anos, com o DL nº 242/85, de 9 de
Julho, repudia naturalmente a descrição pormenorizada de todos os passos processuais, tal
como é avesso à reprodução de todas as alegações ou argumentos apresentados nos diversos
articulados, devendo registar-se apenas aquilo que seja necessário à compreensão do que será
objecto de apreciação 6.
Em todos os casos o relatório da sentença (e dos acórdãos) deve respeitar o critério que o
legislador fixou, orientado por factores que favoreçam a clareza, a simplicidade e a utilidade
dos elementos expostos. Sendo escasso o tempo e os meios disponibilizados, os juízes devem
concentrar-se naquilo que é fundamental, não podendo ignorar o relevo que deve ser dado a
factores de eficiência associada à garantia judiciária em prazo razoável, como o determina a
Constituição e o art. 2º, nº 1, do NCPC 7.

5
Em regra, verificar-se-á uma coincidência entre o “objecto do litígio” a que se reporta o art. 607º, nº 2, e o
modo como o juiz, na audiência prévia, delimitou os “termos do litígio” (art. 591º, nº 1, al. c)).
Porém, para além de esta delimitação não ser vinculativa nem para o juiz que a concretizou, nem para o que
venha a realizar o julgamento e a proferir a sentença, não está afastada a possibilidade de, através de uma
análise mais profunda dos autos, se revelarem outras questões que resultem dos articulados, que tenham
sido suscitadas posteriormente ou que sejam de apreciação oficiosa.
Em tais circunstâncias, importará verificar se o contraditório se mostra garantido ou se, ao invés, é
necessária a audição das partes que evite decisões-surpresa, nos termos do art. 3º, nº 3.
6
A simplicidade do relatório não é uma característica específica da sentença, devendo também orientar a
estruturação dos acórdãos da Relação (art. 663º) e do Supremo Tribunal de Justiça (art. 679º), em que ainda
menos se compreendem extensos relatos dos passos processuais, numa ocasião em que se exige uma
concentração nas questões que integram o objecto do recurso, cujos limites não coincidem
necessariamente com o objecto da acção.
Aqui o que fundamentalmente importa é que sejam trazidos para o relatório os aspectos que importem à
delimitação do objecto do recurso e à inteligibilidade do seu julgamento.
7
Em termos pragmáticos, o juiz deve colocar-se na perspectiva de quem vai ser confrontado com a
sentença: a parte, os mandatários, os juízes dos Tribunais Superiores ou mesmo terceiros que à mesma
acedam. Assegurando que a sentença seja facilmente compreendida, deve omitir os elementos que não
revelem qualquer utilidade, nem prática, nem jurídica.

274
Sentença Cível

5. No anterior modelo, na estruturação da sentença, seguia-se a transcrição dos factos


provados que, em geral, se traduzia na reprodução dos factos anteriormente considerados
assentes e dos resultantes das respostas dadas aos diversos pontos da base instrutória.
Já então era necessário que o juiz coligisse dos autos outros factos cuja prova derivasse de
acordo das partes, de confissão reduzida a escrito ou de documentos.
Posto que na sua generalidade, tais factos já tivessem sido recolhidos, na fase da
condensação, para os “factos assentes” (“especificação”, na terminologia inicial do CPC), essa
selecção não precludia a possibilidade e a necessidade de serem atendidos outros factos com
relevo para a decisão das questões jurídicas sob apreciação cuja prova emergisse
vinculadamente dos autos.
Também neste campo da descrição da matéria de facto considerada provada eram
frequentes situações patológicas a que urge dar resposta.
Alguns dos vícios tinham a sua génese no modo como as partes cumpriam o ónus de
alegação da matéria de facto. Uma vez que a lei não impunha nem impõe limites formais (nem
qualitativos, nem quantitativos) relativamente a tal matéria, com frequência se verificava (e,
porventura, continuará a verificar-se) a apresentação de extensos articulados, sem efectiva
concentração nos factos essenciais, com excessiva alegação de factos instrumentais ou
circunstanciais, por vezes de forma repetida, prejudicando ou dificultando a compreensão dos
verdadeiros termos do litígio.
Dir-se-ia que, na posterior fase da condensação, se impunha que o juiz, dotado de maior
objectividade, apenas relevasse como “factos assentes” ou para a “base instrutória” aqueles
que efectivamente fossem determinantes para o resultado da acção, segundo as diversas
soluções plausíveis da questão de direito.
Mas nem sempre essa selecção era efectuada com o necessário rigor, de tal modo que os
vícios que caracterizavam os articulados acabavam por contaminar quer os “factos assentes”,
quer a “base instrutória”.
No que concerne à base instrutória, constatava-se com muita frequência que, em vez de
concentrar os factos controvertidos verdadeiramente decisivos para o desfecho da acção,
acabava por integrar, sem critério e de forma anárquica, a multiplicidade de factos alegados
por cada uma das partes, sem respeito pelas regras de distribuição do ónus da prova e por
vezes em versões antagónicas.
Para além dos efeitos negativos que se revelavam através do arrastamento da audiência
de julgamento, a fundamentação da sentença posteriormente elaborada acabava por reflectir
os erros ou vícios anteriores. Situação que era agravada ainda por uma outra deficiência muito

275
Sentença Cível

comum quando o juiz praticamente se limitava a reproduzir na sentença os factos assentes e


os resultantes das respostas aos pontos da base instrutória, sem respeitar uma descrição
lógica ou cronológica da matéria de facto apurada, numa teia que tornava muitas vezes
incompreensível a realidade carecida de integração jurídica.
Não se procurem na lei adjectiva anterior justificações para esta situação, a qual era
resultado do simples incumprimento de uma regra elementar: a de que a sentença deve
enunciar a realidade que cumpre integrar, o que necessariamente impunha e impõe a sua
descrição de forma inteligível e segundo uma ordem lógica que facilite a compreensão dos
termos do litígio e a razão da necessidade de composição judicial 8.

6. Os mencionados objectivos de clareza e de simplificação devem ser prosseguidos com


o NCPC que, nesta parte, introduziu algumas modificações.

8
A sentença, como os demais actos processuais, deve ser redigida em português (art. 133º, nº 1, do NCPC),
mas numa linguagem corrente e fluente que, sem ser coloquial, permita a fácil compreensão do seu
conteúdo.
No que concerne à matéria de facto provada, deve evidenciar, de forma imediata, coerente e lógica, a
realidade sob apreciação, o que de modo algum se satisfaz com a colagem de diversos elementos que nem
sequer internamente se mostram ordenados.
Tal como acontece com um puzzle, em que o encaixe das peças se revela imprescindível à representação da
imagem, também a realidade que o Tribunal considera apurada apenas ganha sentido com a ordenação dos
diversos segmentos da matéria de facto. Ainda que se mantenha o número de componentes, o amontoado
de peças (ou o arrazoado de factos) não permite perceber a imagem (ou a realidade) em que se integra cada
um dos elementos.
Acresce que determinados segmentos da matéria de facto apenas revelam o seu verdadeiro sentido depois
de contextualizados, atendendo, por um lado, ao modo como foram alegados e, por outro, aos motivos por
que foram considerados provados.
Com facilidade se encontram exemplos de uma deficiente metodologia na elaboração de decisão judiciais,
designadamente em acções de responsabilidade civil por acidente de viação, em que é usual a mera
transcrição dos factos assentes, seguida de outros que decorrem da alegação do autor e do réu, uns
relativos às circunstâncias do acidente, outros aos diversos danos invocados, numa amálgama dificilmente
decifrável. Nestas e noutras situações, só uma ordenação lógica e coerente da matéria de facto permite
percepcionar a realidade que está em causa, tarefa que, uma vez executada, facilita a sua integração
jurídica.

276
Sentença Cível

6.1. A primeira e principal modificação respeita à concentração na mesma peça


processual da decisão da matéria de facto controvertida e da integração jurídica, o que
justificou a ampliação do prazo de prolação de 10 para 30 dias 9.
A separação entre o que constitui matéria de facto e o que integra matéria de direito é
questão que percorre toda a instância processual, desde os articulados, passando pela
sentença, até aos recursos, maxime ao recurso de revista.
Mas pese embora o relevo que essa delimitação apresenta, jamais se conseguiu ou
conseguirá a enunciação de um critério universal que responda a todas as questões suscitadas.
Continuando a lei a prever tal delimitação, os respectivos contornos poderão sofrer variações
em função das concretas circunstâncias, designadamente em razão do verdadeiro objecto do
processo, de tal modo que uma mesma proposição pode assumir, num determinado contexto,
uma questão de facto e, noutro contexto, uma questão de direito.
Posto que o julgamento da matéria de facto não deva confundir-se com o julgamento
da matéria de direito, a manutenção, a todo o custo, de uma linha de separação revela-se
frequentemente artificial e prejudicial à justa resolução da lide, sendo, por isso, admissível e
desejável uma maior concentração da factualidade considerada provada, ainda que com
auxílio de formulações de pendor mais genérico, mas que permitam uma correcta e inteligível
compreensão da realidade que o Tribunal conseguiu isolar 10.

6.2. Um dos segmentos principais da sentença deve reportar o resultado da convicção


formada pelo juiz relativamente à matéria abarcada pelos “temas de prova”, em resultado da

9
Não era nem será concebível a prolação das famigeradas “sentenças por apontamento”, com declaração
oral do resultado do litígio, tal como não é sustentável a separação cronológica da decisão da matéria de
facto e da sua integração jurídica.
Já nada impede que a sentença seja proferida oralmente, no final da audiência de julgamento, ficando
gravada, nos termos dos arts. 155º, nº 1, e 153º, nº 3, opção que se revela especialmente eficiente nos
casos mais simples.
10
Tal como ocorre na pintura, o estilo realista ou naturalista não é o único capaz de representar a realidade.
Posto que estejam afastadas técnicas associadas ao abstraccionismo e sem embargo de determinadas
situações carecerem de uma maior pormenorização, uma linguagem impressionista ou expressionista pode
revelar-se suficiente para descrever a realidade em sentenças judiciais, desde que essa realidade seja
perceptível não apenas pelo juiz, como pelas partes e, depois, pelos Tribunais Superiores.

277
Sentença Cível

apreciação dos meios de prova que foram produzidos na audiência final ou da análise do
processado 11.
O julgamento da matéria de facto provada e não provada será o resultado de dois
processos decisórios submetidos a regimes diversificados.
Determinados meios de prova não consentem qualquer margem de apreciação,
gozando de força probatória plena. Assim ocorre com a confissão que a lei admita (arts. 354º e
358º do CC) e com os documentos autênticos, autenticados e mesmo particulares, nos termos
que estão regulados nos arts. 371º, nº 1, e 376º, nº 1, do CC.
A força probatória plena equivalente à confissão acompanha também os factos
relativamente aos quais exista acordo expresso ou tácito das partes, nos termos dos arts. 574º,
nºs 2 e 3, e 587º, nº 1, do NCPC, sem embargo das limitações aí previstas.
Nestes casos, os factos que encontrem em tais meios de prova força plena terão de ser
obrigatoriamente assumidos pelo juiz, sem que possam ser infirmados por outro género de
provas (v.g. testemunhas, perícias ou presunções judiciais).
E numa outra perspectiva, acautelada no art. 607º, nº 5, também é vedado ao juiz
declarar provados determinados factos para os quais a lei exija determinada formalidade
especial ou por documentos sem que essa exigência legal se mostre satisfeita.
Fora destas situações vigora o princípio da livre apreciação, nos termos do qual o juiz
aprecia os meios de prova segundo a sua prudente convicção, aplicando no exercício desse
múnus as legis artis adequadas (nº 5 do art. 607º).
Tal revela-se especialmente relevante no que concerne à prova testemunhal (com as
excepções previstas nos arts. 393º a 395º do CC), à prova por declarações de parte (art. 466º,
nº 3, do NCPC), à prova pericial (em que esse princípio expresso no art. 389º do CC deve ser
usado cum granu salis), à prova por inspecção judicial e por verificação não judicial qualificada

11
Manifestando-se neste momento o confronto entre a verdade material e a verdade processual, limitar-
me-ei a evidenciar a necessidade de o juiz adoptar um critério de razoabilidade no que concerne à
afirmação da prova ou da falta de prova dos factos controvertidos.
Cientes de que a verdade absoluta é estranha ao Direito e que, por conseguinte, a formulação de juízos
judiciários deve assentar, conforme as circunstâncias e a natureza do caso, em critérios que se orientem
pela verosimilhança ou pela maior ou menor probabilidade, não devem ser feitas exigências probatórias
irrealistas que, na prática, acabem por revelar uma situação de denegação de justiça.
Importa, por outro lado, ponderar, além dos aspectos ligados à distribuição do ónus da prova, os dados
revelados pela experiência judiciária no que concerne ao exercício desse ónus, sem ignorar sequer a postura
concretamente adoptada pela parte contrária sobre a qual também recaem exigências decorrentes do dever
de cooperação relativamente à descoberta da verdade e outras associadas ao ónus de contraprova.

278
Sentença Cível

(nos termos do art. 391º do CC e do art. 494º, nº 3, do NCPC) e à prova por presunções que
sofre as limitações previstas para a prova testemunhal (art. 351º do CC).

6.3. No que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não
será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma
como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova,
tarefas relativamente às quais foram introduzidas no NCPC importantes alterações que
visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia
usualmente aplicada no âmbito do anterior CPC 12.
Quanto ao ónus de alegação cumpre destacar o que agora dispõe o art. 5º, nº 1,
devendo o autor e o réu concentrar-se nos factos essenciais que constituem a causa ou causas
de pedir 13 ou em que se baseiam as excepções invocadas (a que deve acrescer a alegação,
ainda que não preclusiva, dos respectivos factos complementares), sem excessiva preocupação
pelos factos instrumentais, já que estes poderão ser livremente discutidos na audiência final.
Naturalmente o referido ónus de alegação exerce influência na enunciação dos temas
da prova que deverão ter por base os fundamentos de facto da acção e da defesa, sem que
essa vinculação leve ao extremo (revelado pela prática anterior) de inserir toda a factualidade
alegada (e controvertida) só por que foi alegada 14.

12
Sem embargo do necessário aggiornamento que se adapte às formulações legais constantes do NCPC,
remeto para o que já tratei em “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 4ª ed. (2010), págs. 216 e segs.,
onde, com mais desenvolvimento, abordei diversas questões atinentes à “decisão da matéria de facto”,
designadamente os segmentos decisórios de conteúdo positivo, negativo, restritivo e explicativo, a par das
patologias reveladas pelo teor excessivo, obscuro, contraditório ou puramente jurídico.
13
Foi praticamente abolida a possibilidade de alteração ou de ampliação da causa de pedir ou do pedido
(arts. 264º e 265º do NCPC), o que necessariamente se deve reflectir na elaboração da petição inicial,
designadamente no que concerne à fundamentação da pretensão.
14
Como regra que deve ser adaptada às circunstâncias do caso, os temas da prova devem centrar-se apenas
nos factos essenciais relativamente aos quais persista a controvérsia, excluindo, por isso, em regra, os factos
instrumentais que não integram qualquer pressuposto legal da acção ou da defesa.
Mas tal não significa que se mantenha a anterior metodologia que rodeava a elaboração da base instrutória,
parecendo-me inteiramente ajustada aquela para que apontam Ramos Faria e Ana Loureiro, em Primeiras
Notas ao NCPC, vol. I, quando assumem com frontalidade que os temas de instrução podem ser
identificados até por referência a conceitos de direito ou conclusivos, desde que todos os sujeitos
compreendam de facto o que está em discussão (pág. 510) e a forma usada permita o adequado julgamento
da causa em que se integram (pág. 508). Em suma, asseveram que “sem grande preocupação sobre a
qualificação dos factos, a enunciação dos temas da prova deve permitir apenas que se conheça o que está
ainda em causa na instrução, que questões de facto ainda não estão resolvidas”.

279
Sentença Cível

A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e
harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de
respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente
preenchiam os diversos pontos da base instrutória do anterior CPC.
Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, nos temas de prova se
inscreveram factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos
convertida num relato natural da realidade fixada.
Já quando porventura se tenha optado por proposições de carácter mais abrangente
ou de pendor mais genérico ou conclusivo, mas que permitam delimitar e compreender a
matéria de facto que é relevante para a resolução do concreto litígio, poderá justificar-se um
maior labor na sua concretização, seguindo um critério funcional que atenda às necessidades
do concreto litígio, desde que, como é natural, seja respeitada a correspondência com a prova
que foi produzida e bem assim os limites materiais da acção e da defesa.

6.4. Como se disse anteriormente, na enunciação dos factos apurados o juiz deve usar
uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada,
de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis,
determinará o resultado da acção.
Por isso é inadmissível (tal como já o era anteriormente) que se opte pela enunciação
desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem
qualquer coerência interna.
Este objectivo – que o bom senso já anteriormente deveria ter imposto como regra
absoluta – encontra agora na formulação legal um apoio suplementar, já que o art. 607º, nº 4,
2ª parte, impõe ao juiz a tarefa de compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, o que
necessariamente implica uma descrição inteligível da realidade litigada, em lugar de uma
sequência desordenada de factos atomísticos.
Em tal enunciação cabem necessariamente os factos essenciais que foram alegados
para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções ainda não apreciadas no
despacho saneador, a par dos factos complementares (que, de acordo com o tipo legal, se
revelem necessários para que a acção ou a excepção proceda) e, se se mostrar necessário, dos

Semelhante juízo é formulado por Lebre de Freitas, em A Acção Declarativa Comum, 3ª ed., pág. 197,
quando refere que o juiz deve enunciar a matéria controvertida em “traços gerais”, exemplificando com
uma situação em que pode mostrar-se controvertido “se ou não foi celebrado o contrato X entre as partes”
e “qual dos contraentes não cumpriu as obrigações dele decorrentes”.

280
Sentença Cível

factos concretizadores daquela factualidade, na medida em que a mesma se mostre


necessária.
Se relativamente aos factos essenciais funciona plenamente o princípio da preclusão
que impede a sua alegação posterior aos articulados, já quanto aos factos complementares e
factos concretizadores, para além de poderem ser introduzidos no processo em resposta a um
eventual despacho de aperfeiçoamento (art. 590º, nº 4), poderão ainda ser considerados na
sentença, desde que resultem da instrução da causa e as partes tenham tido a possibilidade de
sobre eles se pronunciar (art. 5º, nº 2, al. b)).

6.5. Mais dificuldades suscita o tratamento que deve ser conferido na sentença aos
factos instrumentais. Dificuldades que advêm do excessivo relevo que lhes foi dado no âmbito
do anterior CPC e que também decorrem das alterações legais que agora cumpre interpretar e
aplicar.
No sistema anterior, a lei apenas se referia aos factos instrumentais no art. 264º, nº 2,
do CPC, ainda assim para legitimar a sua consideração por parte do juiz, mesmo a título
oficioso, quando resultassem da instrução e discussão da causa.
Apesar disso e malgrado a função secundária de tais factos ligada à formação da
convicção sobre os factos constitutivos, impeditivos ou extintivos do direito invocado, era
comum a sua inserção na base instrutória só porque tinham sido alegados e se encontravam
controvertidos. Lograda, deste modo, a sua integração nessa peça fundamental, acabavam por
ser submetidos ao mesmo juízo probatório que presidia à apreciação dos demais factos,
culminando na sua integração na sentença.
Os excessos a que este sistema conduziu (law in action) são bem visíveis, quer através
da morosidade que foi induzida nas audiências finais, quer da extensão dos “fundamentos de
facto” que, uma vez relatados nas sentenças, acabavam por ser transpostos para a
fundamentação dos acórdãos da Relação ou mesmo do Supremo Tribunal de Justiça.
A morosidade das audiências era consequência do excessivo relevo formal que era
dado a tal factualismo. Na verdade, a mera integração acriteriosa dos factos instrumentais na
base instrutória confrontava as partes com a necessidade ou, ao menos, com a conveniência
de produzirem prova sobre os mesmos, a par daquela que deveriam apresentar relativamente
aos factos essenciais à procedência ou improcedência da acção 15.

15
O excessivo relevo atribuído a tais factos não era apenas da responsabilidade dos juízes, pois também as
próprias partes revelavam grande dificuldade em separar-se dessa factualidade que fora alegada nos seus
articulados, reclamando frequentemente contra a sua não inserção na base instrutória.

281
Sentença Cível

Não sendo concebível a manutenção de um tal sistema, com todo o rol de


consequências negativas que eram visíveis, impõe-se uma outra metodologia que, sem colocar
em crise a justa decisão do litígio, permita trazer para o processo as vantagens da celeridade e
da eficiência da actividade judiciária.
É o que agora se busca através do disposto nos arts. 5º, nº 2, al. a), e 607º, nº 4, do
NCPC.
Para além de os factos instrumentais não carecerem de alegação (bastando, para o
efeito que se aleguem os factos essenciais de cuja prova depende a procedência ou
improcedência da acção), os mesmos poderão ser livremente discutidos e apreciados na
audiência final 16. Consequentemente, atenta a função secundária que desempenham no
processo, tendente a justificar simplesmente a alegação ou a prova dos factos essenciais ou
complementares, os factos instrumentais não terão que integrar a base instrutória e, além
disso, nem sequer deverão ser objecto, ao menos em regra, de um juízo probatório específico.
Independentemente de os factos instrumentais terem ou não terem sido alegados,
desde que resultem da instrução da causa (maxime da audiência final), o juiz, em associação
com as regras de experiência que se traduzem na aplicação de presunções judiciais, deve
tomá-los em consideração quando se tratar de motivar a afirmação ou a negação dos factos
verdadeiramente relevantes.

6.6. Os factos de natureza instrumental revelam-se especialmente importantes


quando se relacionam com as presunções judiciais.

Fosse como fosse, a valorização formal de tais factos, traduzida na sua integração na base
instrutória, acabava por implicar a necessidade ou a utilidade de as partes produzirem prova
sobre cada um dos segmentos, utilidade que também era encontrada quando se projectava
ou antecipava a eventual impugnação da decisão da matéria de facto perante a Relação.
Enfim, os excessos de alegação inicial, em lugar de serem removidos, acabavam por repercutir-
se em toda a tramitação processual, até à fase de recurso.
16
A degradação formal do valor dos factos instrumentais transparece ainda do teor do art. 574º, nº 2, in
fine, uma vez que mesmo a eventual admissão anterior desses factos pela parte contrária não impede a
produção de prova sobre os mesmos, pondo o NCPC o acento tónico nos factos essenciais à procedência da
acção ou da excepção.
Tal como já resultava do anterior CPC, não existe qualquer fundamento legal para impedir ou dificultar a
produção de meios de prova sobre factos instrumentais, maxime prova testemunhal em audiência de
julgamento, importando unicamente que se integrem no círculo delimitado pelos factos essenciais ou
complementares a que se refere o art. 5º.

282
Sentença Cível

O direito substantivo estabelece dois tipos de presunções: as presunções legais,


assentes na verificação de determinados pressupostos de facto que devem ser demonstrados
(juris et de jure ou juris tantum) e as presunções judiciais que correspondem a ilações extraídas
pelo juiz, de acordo com as regras de experiência, a partir de determinados factos conhecidos
(arts. 349º a 351º do CC).
Relativamente às presunções legais, a afirmação do efeito legalmente presumido
corresponde a uma conclusão jurídica, não prescindindo, por isso, da emissão de um juízo
probatório sobre os respectivos pressupostos de facto que, sendo essenciais para a extracção
daquela conclusão, devem ser objecto de pronúncia judicial explícita 17.
Por exemplo, a lei presume que a “titularidade do direito real de gozo” sobre um bem
pertence ao respectivo “possuidor”. Deste modo, tal conclusão apenas pode ser extraída num
contexto em que se apure, através de decisão explícita, que o interessado tem a qualidade de
possuidor, a qual é decomposta pelos elementos objectivo e subjectivo (arts. 1268º e 1252º,
nº 2, do CC).
Outro exemplo: a lei presume a “paternidade/filiação” quando o filho seja reputado e
tratado como tal pelo pretenso pai e reputado como filho também pelo público, ou quando o
pretenso pai manteve relacionamento sexual com a mãe do investigado no período legal de
concepção (art. 1871º, nº 1, als. a) e e), do CC). Assim sendo, a afirmação da paternidade
presumida não prescinde da formulação de um juízo probatório explícito sobre os factos que
determinam as referidas presunções legais, sendo, nessa medida, factos essenciais e não
factos instrumentais.
Em tal situação, se acaso não for elidida a presunção legal que emerge da
demonstração dos respectivos pressupostos, nos termos que a lei prescreve, a acção será

17
Teixeira de Sousa qualifica como instrumentais os factos que servem de base às presunções legais,
exemplificando precisamente com as presunções legais de paternidade previstas no art. 1871º, nº 1, do CC
(Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil, em Scientia Iuridica, nº
332º, pág. 401).
Ainda que conclua que tais factos, apesar da natureza instrumental, terão de ser alegados, creio mais
ajustada a sua qualificação como factos essenciais, na medida em que deles se extrai, por via directa e sem
necessidade de intermediação do juiz, o efeito jurídico que a lei prescreve, no caso, a relação de
paternidade.
Na medida em que os factos que sustentam as presunções legais sejam qualificados como essenciais,
sofrem as limitações constantes dos arts. 264º e 265º no que concerne à alteração da causa de pedir.
Consequentemente também fica vedado ao juiz considerar na sentença factualidade essencialmente diversa
daquela que foi alegada, não podendo, por exemplo, reconhecer a paternidade com base numa presunção
legal diversa daquela que foi invocada pelo autor.

283
Sentença Cível

julgada procedente, declarando o tribunal o efeito jurídico que se traduz no estabelecimento


da relação de paternidade biológica.

6.7. Diversa é a situação quando nos confrontamos com meras presunções judiciais.
Constituindo estas meras ilações que o julgador extrai de um facto conhecido para
afirmar um facto desconhecido, as mesmas podem assentar em factos essenciais que tenham
sido considerados provados ou que resultem plenamente dos autos, mas podem também
derivar da convicção formada sobre factos de natureza puramente instrumental que resultem
do processo ou da instrução da causa, tenham ou não tenham sido alegados pelas partes 18.
Por conseguinte, relativamente aos factos que apenas sirvam de suporte à afirmação
de outros factos por via de presunções judiciais, para além de não se mostrar necessária a sua
alegação (art. 5º) e de poderem ser livremente discutidos na audiência final (cfr. os arts. 410º e
516º), nem sequer terão de ser objecto de um juízo probatório específico. Em regra, bastará
que sejam revelados na motivação da decisão da matéria de facto, no segmento em que o juiz,
analisando criticamente as provas produzidas, exterioriza o percurso lógico que o conduziu à
formulação do juízo probatório sobre os factos essenciais ou complementares.
O importante é que o juiz exponha com clareza os motivos essenciais que o
determinaram a decidir de certa forma a matéria de facto controvertida contida nos temas de
prova, garantindo que a parte prejudicada pela decisão (com a aludida sustentação) possa
sindicar, perante a Relação, o juízo probatório formulado relativamente a tal factualidade,

18
Sempre os Tribunais de 1ª instância fizeram uso de presunções judiciais, previstas na lei substantiva como
meios de formação da convicção. Acontece, porém, que, antes da reforma do processo civil de 1996/97,
esse uso nem sempre era explicitado, na medida em que a lei processual se bastava com uma
fundamentação genérica quanto aos factos considerados provados. O seu relevo formal apenas se tornou
mais evidente com as exigências de fundamentação introduzidas com aquela reforma processual, quer no
sentido de tornar transparente o percurso cognitivo seguido pelo juiz, quer de reforçar a decisão da matéria
de facto, tendo sempre presente a efectiva possibilidade de a decisão de facto ser sindicada pela Relação
nos casos em que a mesma fosse impugnada.
Foi a partir daquela reforma que se acentuaram as virtualidades dos factos instrumentais, como pontos de
apoio para sustentar a afirmação ou a negação dos factos essenciais (que antes podia ser sustentada, por
exemplo, “nos depoimentos das testemunhas do A. e na análise da documentação dos autos”), os quais
foram alcandorados a um tal posto que torna agora mais difícil a retoma da função que verdadeiramente
devem exercer no processo.
Não se estranhe, pois, que as maiores resistências quanto à concretização de um downgrading
relativamente a tais factos advenha dos juízes, sem que, no entanto, essas dificuldades tenham de redundar
na manutenção do statu quo.

284
Sentença Cível

designadamente na medida em que foi sustentada em factos instrumentais e nas regras de


experiência que foram expostas.
Em tais circunstâncias a Relação, em sede de apreciação do recurso sobre a matéria de
facto, tendo acesso a todos os meios de prova que foram produzidos e aos que foram
prestados oralmente (que, por isso, foram gravados, nos termos do art. 155º, nº 1), estará
apta a reapreciar a decisão e o correspondente juízo probatório formulado relativamente aos
factos principais.

6.8. Exemplificando:
O recurso a presunções judiciais, para justificar a afirmação da prova dos factos
essenciais à procedência, é frequente quando se trata de acções de declaração de nulidade
com base em simulação absoluta ou relativa.
A falta de meios de prova directa de factos 19 que integram cada um dos pressupostos
normativos (em concreto, a divergência entre a declaração negocial e a vontade dos
declarantes, o acordo dos contraentes e o intuito de enganar terceiros) explica a necessidade
de normalmente se inferir a sua existência a partir de um conjunto mais ou menos alargado de
sinais exteriores que a experiência comum considera relevantes: v.g. o “transmitente”
continuou a habitar no prédio “vendido”, externamente continua a ser reputado como dono
do imóvel, continuou a pagar os impostos e a assumir as despesas de conservação, o negócio
foi celebrado com um familiar próximo, o valor declarado na escritura é muito inferior ao valor
de mercado, etc.
Ora, nestas situações, não vejo necessidade, nem de isolar para os temas de prova,
nem de recolher para a decisão da matéria de facto esses ou outros factos instrumentais,
bastando para a apreciação da acção que o juiz se pronuncie sobre os pressupostos fácticos da
simulação (naturalmente traduzidos por proposições que correspondam ao conteúdo dos
aludidos requisitos legais), expondo simultaneamente os motivos que o levaram a declarar os
que considerou provados e não provados.
O mesmo se verifica noutra acção paradigmática, a de impugnação pauliana, no que
concerne à demonstração e assunção do elemento subjectivo (comportamento doloso dos
contraentes ou existência de má fé) que concretamente se revele necessário para a sua
19
Com efeito, não é habitual que as partes subscrevam uma contra-declaração e menos ainda o será que tal
declaração, a existir, seja apresentada numa acção de simulação interposta por terceiro alheio ao negócio.
Daí a naturalidade com que deve ser encarada a valoração dos factos instrumentais e a admissibilidade ou
necessidade de inferir os factos ocultos a partir dos elementos circunstanciais revelados pelas testemunhas
ou decorrentes de outros meios de prova apresentados.

285
Sentença Cível

procedência. Sendo o mesmo apreendido a partir de factos instrumentais, bastará que estes
figurem no segmento da motivação, sem que exista a necessidade de formulação de um juízo
probatório 20.
Outrossim nas acções de investigação de paternidade, cuja apreciação se encontra
agora muito facilitada pelo recurso à prova pericial, de natureza científica, com força intrínseca
para, através da superação de lacunas probatórias, levar à demonstração dos factos essenciais
ou melhor, do facto essencial: o vínculo biológico.
Apesar dos avanços científicos que, além de facilitarem o direito probatório formal e
material, beneficiaram o direito substantivo, pode acontecer que as circunstâncias não
permitam a recolha do material biológico necessário à realização do exame de ADN 21. Nestas
circunstâncias e na falta de presunção legal de paternidade, para responder à questão de facto
essencial em redor da exclusividade do relacionamento sexual entre o pretenso pai e a mãe do
investigado, no período legal de concepção, não é necessária a emissão de um juízo probatório
explícito sobre os factos instrumentais que relevam para o efeito (vivência comum, relação de
namoro, etc.), bastando que os mesmos figurem, juntamente com outros elementos
probatórios, na motivação da decisão.
Os exemplos poderiam multiplicar-se, sendo que o modo de encarar as situações se
mantém.
Pela sua frequência, o uso de presunções judiciais, para fundamentar a decisão que
julga provados ou não provados determinados factos, ocorre com muita frequência em
matéria de acidentes de viação. O facto de nem sempre existirem testemunhas presenciais e
as dificuldades associadas ao cumprimento do ónus de prova ou de contraprova, pode levar o
juiz a decidir a matéria controvertida (v.g. factos relacionados, por exemplo, com a causalidade
ou com a culpa) com recurso a presunções judiciais, em que se associam os (poucos) factos
recolhidos através de depoimentos, croquis ou perícias e as regras de experiência.
20
Assim foi feito no Ac. da Rel. de Lisboa, de 25-3-03 (www.dgsi.pt, e na CJ, tomo II, pág. 91), relatado pelo
signatário, sendo alterado o juízo probatório vindo da 1ª instância com base na apreciação dos elementos
documentais que haviam sido apresentados e em presunções judiciais extraídas das regras de experiência.
Esse e outros casos que são descritos em diversos acórdãos das Relações ou do Supremo são bem
reveladores, por um lado, das dificuldades que os tribunais de 1ª instância manifestam quando se trata de
manusear o uso de presunções judiciais e, por outro lado, do nível de exigência probatória que acaba por
ser imposto ao credor que recorre à impugnação pauliana para salvaguardar a sua garantia patrimonial.
21
Dificuldades que, em determinados casos, podem ser superadas com exumação do cadáver do pretenso
pai (Ac. do STJ, de 24-5-12, www.dgsi.pt) e noutros casos, de recusa de colaboração, através da inversão do
ónus da prova (Ac. do STJ, de 16-10-12, www.dgsi.pt). Situações extremas que, no entanto, não colidem
com a livre apreciação da recusa de colaboração, nos termos do art. 417º, nº 2, do NCPC.

286
Sentença Cível

Estando em causa, por exemplo, a determinação da velocidade a que o veículo seguia


ou, de forma mais genérica, havendo controvérsia sobre se a velocidade que o condutor
imprimia ao veículo era ou não era excessiva (considerando designadamente o estado ou o
perfil da via e as condições de tempo), não vejo que exista alguma utilidade imediata
emergente da formulação de um juízo probatório específico, por exemplo, sobre o rasto de
travagem. Constituindo elemento que, conjuntamente com outros, permitirá afirmar (ou
negar) o facto ilícito imputado ao condutor, na falta de outro interesse mais directo, basta que
figure na motivação da decisão.

6.9. É natural que em algumas situações o juiz se confronte com uma dúvida objectiva
relativamente à qualificação jurídico-processual e à função de determinados factos. Uma
mesma proposição resultante da alegação das partes pode assumir num determinado
contexto um cunho essencial ou complementar, não ultrapassando noutro contexto o plano da
instrumentalidade.
Em tais circunstâncias, o juiz não deve guiar-se por critérios de base conceptual.
Quer na ocasião em que elabora os temas de prova 22, quer naquela que profere a
sentença, será mais avisado que se oriente por um critério funcional que, além de privilegiar a
natureza mais solene, permita o aproveitamento dos factos em sede de integração jurídica,
reduzindo a margem de risco relativamente a eventuais anulações da sentença motivadas pela
omissão de factos que a Relação, porventura, reconheça como relevantes no âmbito do
recurso de apelação (art. 663º, nº 1, al. c), in fine).
Pode ainda acontecer que, atenta a fundamentação da acção ou o conteúdo da defesa,
um mesmo facto desempenhe uma mera função instrumental ou explicativa de um facto
essencial e simultaneamente tenha a virtualidade de sustentar, por si, um determinado
pressuposto normativo determinante para o resultado da acção, de acordo com alguma das
diversas soluções plausíveis da questão de direito. Nesta eventualidade justificar-se-á
naturalmente que sobre o mesmo recaia um juízo probatório específico.
O que de modo algum se justifica, repita-se, é a manutenção da praxis anterior,
desconsiderando as alterações significativas que decorrem não apenas da aprovação formal de
um Novo CPC, como ainda da modificação substancial do seu conteúdo, designadamente no
22
Os argumentos apresentados pelas partes na audiência prévia, a densidade do que foi alegado, a
pertinência para a resolução do caso ou a antevisão das implicações futuras de uma ou de outra das opções
servirão para orientar o juiz na enunciação dos temas de prova, sem que estas cautelas devam conduzir a
que na elaboração dessa peça processual ou da sentença se mantenha uma prática viciosa que o novo
sistema pretendeu inequivocamente abolir e que o bom senso deve evitar.

287
Sentença Cível

que concerne às normas que regulam a alegação da matéria de facto, as que regem a
enunciação dos temas de prova como algo diferente, quer da base instrutória, quer do anterior
questionário, e aquelas que se reportam à estrutura e conteúdo da sentença.
Mantendo-se incólumes os objectivos do sistema de justiça cível e a função que devem
desempenhar os instrumentos de natureza processual e sem que de modo algum deva ser
prejudicada a justa decisão da causa (que implica, além do mais, a maior correspondência
possível entre a verdade material e a verdade formal), importa que não se ignorem, agora mais
do que nunca, outros princípios orientadores de toda a tramitação processual, como o da
economia de meios e o da celeridade.
Competindo aos Tribunais dar sequência a exigências vindas da sociedade no sentido
de os litígios e os conflitos de interesses serem resolvidos ou compostos em prazo razoável,
aqui, como noutros campos, terão de ser acolhidas as propostas que se destinaram a
simplificar a tramitação processual e a abreviar quer as audiências finais, quer a duração global
dos litígios, objectivos que poderão ser melhorados, além do mais, através do ajustado
tratamento que seja dado aos factos meramente instrumentais.

6.10. Tanto na exposição dos factos que se julgam provados como daqueles que forem
considerados não provados, o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica
do caso, antes deve assegurar que sejam recolhidos todos aqueles que se mostrem relevantes
em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito.
Assim era no modelo anterior, atento o disposto no art. 511º, nº 1, quando se tratava
de elaborar a base instrutória. Mas ainda que não se encontre no NCPC uma norma de teor
semelhante, a mesma diligência deve manter-se, a fim de garantir, em caso de eventual
recurso da sentença, a possibilidade de a Relação ou o Supremo Tribunal de Justiça
enveredarem por outra solução jurídica, sem necessidade de ampliação da matéria de facto,
nos termos previstos nos arts. 662º, nº 1, al. c), in fine, e 682º, nº 3.
Na verdade, pode acontecer que, na perspectiva do juiz, para que a acção ou a
excepção proceda, baste um determinado enunciado de factos provados ou não provados.
Apesar disso, se houver outras soluções defensáveis, dependentes do apuramento de outros
factos, o juiz deve assegurá-las, inscrevendo na fundamentação da matéria de facto os
elementos que se mostrarem relevantes.
A opção pela elaboração dos “temas da prova” em lugar de atomísticos “pontos da
base instrutória” ou de “quesitos” comporta ainda uma outra consequência muito importante.
Na ocasião em que o juiz se pronuncia sobre a matéria de facto provada e não provada não

288
Sentença Cível

deve estar condicionado pelas regras de distribuição do ónus da prova 23, devendo verter na
sua decisão o resultado objectivo da apreciação dos meios de prova que foram produzidos,
apenas limitado pelo objecto do processo circunscrito pela causa de pedir e pelas excepções
que foram invocadas.

6.11. Ao enunciar na fundamentação da sentença os factos que considera provados, o


juiz não tem que atender simplesmente aos que são envolvidos especificamente nos temas da
prova, devendo ainda extrair dos autos outros factos relevantes 24.
O art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, mantém a necessidade de serem inseridos na
fundamentação da sentença os factos que estejam provados por acordo das partes (em
resultado da sobreposição dos articulados ou por via de qualquer actuação avulsa posterior),
por confissão extrajudicial ou judicial reduzida a escrito 25 ou por prova documental dotada de
força plena, quer se trate de documento autêntico ou autenticado, quer mesmo de
documento particular 26.
Não estamos perante qualquer novidade legislativa, já que também no anterior CPC a
sentença deveria ser mais do que um rol de factos que anteriormente tivessem sido
considerados assentes e dos resultantes das respostas aos pontos da base instrutória. O art.

23
Neste sentido cfr. Lebre de Feitas, A Acção Declarativa Comum, 3ª ed., págs. 197 e 198.
24
Mas só os factos relevantes, excluindo, por isso, aqueles que, ainda que admitidos por acordo ou
confissão, não interfiram de modo algum na solução jurídica.
Para simplificação dessa tarefa e simultaneamente para agilização da audiência final, nada impede que, logo
no início desta ou no seu decurso, mediante iniciativa das partes ou do juiz, sejam imediatamente
assinalados os factos que dispensam a produção de outros meios de prova, por decorrerem de acordo das
partes, de confissão ou de documento com força probatória suficiente. Sem necessidade de então se
proceder logo à sua transcrição, basta a identificação de tais factos, por referência aos articulados, para
tornar evidente e incontroversa a desnecessidade de outras diligências probatórias e para simplificar e
abreviar a audiência final.
Trata-se, aliás, de uma solução que, conquanto também não estivesse formalmente consagrada no CPC
anterior, já era permitida, admitindo-se que, independentemente da posição assumida pelas partes nos
articulados, estas circunscrevessem os termos do litígio em matéria de direitos disponíveis.
25
É de notar que mesmo a confissão em audiência final deve ser reduzida a escrito para ganhar foros de
prova plena, nos termos dos arts. 358º, nº 1, do CC, e 463º, nº 1, do NCPC.
26
O facto provado por documento não corresponde ao próprio documento. Em vez de o juiz se limitar a
“dar por reproduzido o teor do documento X”, importa que extracte do mesmo o segmento ou segmentos
que sejam concretamente relevantes, assinalando, assim, o específico meio de prova em que se baseou.
Imposição que obviamente colide com a pura reprodução de todo o documento, mesmo dos segmentos que
não são de modo algum determinantes para a apreciação do caso.

289
Sentença Cível

659º, nº 3, já impunha que o juiz importasse para a fundamentação da sentença os factos


admitidos por acordo, os provados por documentos e os resultantes de confissão reduzida a
escrito.
Todavia, o relevo desta actuação é agora bem superior. Não existindo uma peça
processual que concentre e antecipe (ainda que com efeitos não definitivos) a matéria
assente, nos termos que se previam no art. 511º, nº 2, do anterior CPC, é fundamental que
aquando da elaboração da sentença seja feita a análise detalhada dos articulados e do
restante processado, recolhendo os elementos de facto que se mostrem relevantes para a
integração dos pressupostos normativos de que depende o resultado da acção.
Este segmento da matéria de facto caracteriza-se especialmente por dele estar
excluído o princípio da livre apreciação, sendo o mero resultado da aplicação de normas sobre
prova vinculada que não deixam ao juiz qualquer margem de subjectivismo. Regras que
igualmente justificam que, mesmo oficiosamente, tanto a Relação como o Supremo Tribunal
de Justiça, devam interferir na matéria de facto provada e não provada quando, no âmbito da
apelação ou da revista, se verificar que a mesma está afectada por erro de direito probatório
material, quer na vertente da atribuição de força probatória plena a meios que dela
destituídas, quer na vertente do desrespeito dessa força probatória 27.

6.12. Em lugar de a sentença ser, como era anteriormente frequente, qual navio
graneleiro, o mero repositório dos factos tidos por assentes e dos factos emergentes das
respostas aos pontos da base instrutória, é agora ainda mais evidente que deve ser elaborada
com base em princípios de racionalidade, em que a matéria de facto apurada revele, de forma
escorreita e segundo uma enunciação lógica ou cronológica, a realidade que será
juridicamente integrada no segmento posterior 28.
Nesse esforço de enunciação e de integração insere-se ainda a harmonização da
matéria de facto considerada provada, desde que, em respeito pelos deveres legais e
deontológicos, tal corresponda ao resultado da formação da convicção sobre os meios de
prova que foram produzidos, dentro do círculo de factos essenciais que tenham sido alegados.

27
Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, pág. 248.
28
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, pág. 249.
A experiência demonstra que a ordenação lógica dos factos provados é o primeiro passo para uma correcta
integração jurídica, na medida em que não só permite um melhor entendimento da matéria em litígio como
ainda potencia uma melhor compreensão do relevo que, nesse conflito, deve ser atribuído à prova ou falta
de prova de determinados factos.

290
Sentença Cível

Nessa tarefa se inscreve ainda a superação de eventuais contradições mediante uma


análise mais aprofundada dos autos.
Poderá até acontecer – embora não seja conveniente que isso se transforme em regra
– que uma mais atenta percepção das normas substantivas aplicáveis ao caso ou uma melhor
observação dos meios de prova que foram ou poderiam ter sido produzidos na audiência final
acabem por revelar a necessidade da sua reabertura, possibilidade que foi acautelada pelo nº 1
do art. 607º do NCPC (correspondente ao anterior art. 653º, nº 1).
Mais do que ocorria no âmbito do anterior CPC, o facto de ter findado a cisão entre o
julgamento da matéria de facto e da matéria de direito potencia um melhor ajustamento da
decisão final à realidade, na medida em que, em determinadas situações, as lacunas
relacionadas com a prova de certos factos apenas se tornam visíveis ou relevantes na ocasião
em que o juiz se confronta com as normas que tem de aplicar ao caso concreto. Então, tratar-
se-á de realizar as diligências de prova que forem reputadas pertinentes sobre os factos
anteriormente já discutidos ou sobre outros que, relevando dos autos, não tenham sido
objecto de discussão.

6.13. Ao invés dos temas de prova que se destinam fundamentalmente a enunciar os


traços gerais do conflito que divide as partes e que, como já se disse, poderão assumir um
carácter genérico e até conclusivo que abra a oportunidade a que a instrução se processo com
naturalidade, na fundamentação da sentença devem ser relatados os factos que o juiz
considerou provados (e não provados) 29.
Nessa enunciação o juiz deve adequar-se às circunstâncias e exigências do caso, tendo
em conta designadamente as virtualidades que decorram de uma maior concentração da
factualidade apurada ou de uma maior discriminação ou pormenorização que, além de
antecipar a resolução de problemas de integração jurídica, possa ainda obviar a eventuais
impugnações sustentadas em argumentos de pendor formal em redor da delimitação do que
constitui matéria de facto ou matéria de direito 30.
Como elemento coadjuvante da compreensão do novo regime é significativo que não
se encontre no NCPC a norma do nº 4 do art. 646º do anterior CPC que considerava “não
escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito”.
29
Como referem Ramos Faria e Ana Loureiro, “a decisão sobre a matéria de facto nunca se poderá bastar
com formulações genéricas, de direito ou conclusivas, exigindo-se que o tribunal se pronuncie sobre os
factos essenciais e instrumentais pertinentes à questão enunciada adquiridos pelo processo” (Primeiras
Notas ao NCPC, vol. I, pág. 510).
30
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, págs. 237 e segs.

291
Sentença Cível

Esta opção não significa obviamente que seja admissível doravante a assimilação entre
o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de
uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspectos que dependem da
decisão da matéria de facto. Mas, para além de revelar o artificialismo a que conduzia a
anterior solução, em que se pretendia a todo o custo essa separação, tem subjacente a
admissibilidade de uma metodologia em que, com mais maleabilidade, se faça o cruzamento
entre a matéria de facto e a matéria de direito. Uma vez que a decisão da matéria de facto e a
matéria de direito são agregadas na mesma peça processual elaborada pelo mesmo juiz, tal
facilita e simplifica a decisão do litígio.

6.14. Com as devidas cautelas, ao menos numa fase transitória em que todos
procurarão adaptar-se ao NCPC, será preferível uma opção que se traduza na maior
concretização da factualidade apurada, com o que se evitarão eventuais anulações do
julgamento 31.
O que acima de tudo se deve modificar é uma postura essencialmente assente em
argumentos de natureza formal que determinou que a aplicação do anterior CPC tivesse
desembocado nos excessos já referidos, tanto ao nível da alegação, como da decisão da
matéria de facto, mesmo quando a realidade poderia ser condensada através de expressões
de conteúdo mais abrangente, sem qualquer prejuízo para a compreensão do litígio e para os
objectivos da justiça material.
Um caso paradigmático que pode ser extraído da experiência judiciária respeita às
acções de resolução do contrato de arrendamento por falta de residência permanente.
Sendo variáveis as situações que podem determinar a afirmação ou a negação desse
fundamento de resolução, de modo algum se pode compreender que, perante a recusa de
concentração daquela realidade numa expressão de conteúdo mais amplo, as partes tenham
sido conduzidas aos excessos de alegação que se traduziram numa pormenorização
estereotipada e com laivos caricaturais que geralmente se traduziu na descrição de que o
arrendatário “não dorme”, “não toma as refeições”, “não recebe as suas visitas” e “não recebe

31
Também este risco se procurou atalhar através de uma medida cujo pragmatismo é evidente: quando
houver anulação do julgamento pela Relação, o novo recurso que eventualmente seja interposto da
sentença é atribuído ao mesmo relator, nos termos do art. 218º do NCPC.
Solução que é extensiva a todos os casos de revogação da sentença pela Relação ou de ampliação da
decisão da matéria de facto determinada pelo Supremo (art. 682º, nº 3).

292
Sentença Cível

a sua correspondência” ou “tem reduzidos consumos de água e de electricidade” na casa


arrendada.
Sendo verdade, tanto no que concerne à enunciação dos temas de prova, como à
decisão da matéria de facto, que continuará a ser inviável a utilização de conceitos
indeterminados, com directa repercussão na decisão do caso concreto, como a “boa fé”, a
“culpa” ou o “incumprimento do contrato”, não se detectam motivos que obriguem a
converter necessariamente qualquer expressão com algum cunho jurídico em factos
naturalísticos, sendo importante, isso sim, que a realidade em causa possa ser compreendida,
sem que restem dúvidas quanto ao sentido do que é afirmado ou negado.
Por conseguinte, propugna-se uma verdadeira concentração naquilo que é essencial,
depreciando o acessório, com prevalência de critérios que não sejam demasiado rigoristas,
sendo importante que o juiz consiga traduzir em linguagem normal a realidade apreendida,
explicitando depois os motivos que o determinaram, com destaque para os factos
instrumentais de onde extraiu as ilações ou presunções judiciais 32.
O facto de ser o juiz que dirigiu a audiência de julgamento que necessariamente vai
integrar o caso nas normas aplicáveis e extrair as suas consequências, tarefas executadas na
mesma ocasião e inscritas no mesmo acto processual, constitui um novo ingrediente que
deverá impulsionar uma nova forma de retratar a realidade.

6.15. Manteve-se a determinação legal que obriga o juiz a expor a análise crítica das
provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de
liberdade é inexistente, quer quando de trate de provas submetidas à sua livre apreciação,
envolvendo os motivos essenciais que o determinaram a formular o juízo probatório
relativamente aos factos essenciais.
Não é necessária, nem aconselhável que essa motivação se traduza na reprodução ou
no resumo dos depoimentos prestados pelas testemunhas. A apreciação crítica destes ou de
quaisquer outros meios de prova basta-se com a exposição dos aspectos que para o juiz se
revelaram decisivos para a enunciação dos factos que considerou provados e não provados,
devendo reforçar a motivação quando tenha sido confrontado com meios de prova não
coincidentes 33.
Esse dever não se basta obviamente com a alusão genérica e indiscriminada a
determinados meios de prova (v.g. “a prova testemunhal” ou “a prova pericial”).

32
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, págs. 238 e 239.
33
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, págs. 242 a 244.

293
Sentença Cível

Correspectivamente, é curial que a motivação seja individualizada relativamente a


cada facto ou factos que entre si formem um bloco.
Importa que também a motivação seja transparente, por forma a habilitar as partes a
compreender as razões essenciais em que o juiz sustentou a sua decisão e, em casos de
discordância, a proceder à sua impugnação.
A apreciação crítica dos meios de prova deve permitir às partes e, depois, ao Tribunal
da Relação, perceber as razões essenciais que levaram o juiz a pronunciar-se de determinado
modo relativamente aos factos essenciais, com indicação, por exemplo, das razões de ciência
que relevou, por forma a ficar garantida tanto a impugnação da decisão, como a sua
reapreciação pela Relação.

6.16. Merece destaque o tratamento dos documentos a que não seja atribuída força
probatória plena e que, por isso, se situam no campo da livre apreciação do juiz.
A prática revela uma enorme dificuldade dos Tribunais em enfrentar tais documentos,
como se tivessem de ser necessariamente secundados por outros meios de prova, com
destaque para a prova testemunhal.
Os resultados estão à vista: ante o receio de que a documentação apresentada não
seja valorada livremente, como deveria ser, as partes antecipam a necessidade de arrolarem
testemunhal, mesmo quando esta não seria necessária, com efeitos evidentes na morosidade
da resposta judiciária decorrente das longas ou sucessivas sessões de julgamento.
Ora, importa relembrar que os documentos particulares a que não corresponda força
probatória plena são meios de prova como quaisquer outros que a lei submete à livre
apreciação do julgador. Por isso, sem embargo da necessidade que, em concreto, possa existir
relativamente à demonstração da veracidade ou do sentido de tais documentos, não existe
qualquer imposição genérica no sentido de a parte os reforçar com prova testemunhal,
exigência tanto mais incompreensível quanto é certo que esta é a mais falível de todas provas.
Assim, em lugar de tais exigências injustificadas, cumpre ao juiz enfrentar tais
documentos ao abrigo do princípio da livre apreciação, extraindo deles e dos demais meios de
prova o que objectivamente deles resultar, com menção na motivação das razões que foram
determinantes.

294
Sentença Cível

7. Quanto à matéria de direito:


7.1. O segmento da identificação, interpretação e aplicação do direito aos factos
apurados não foi alvo de modificações legais, a não ser as que estão associadas à
simultaneidade e à maior capacidade de o juiz proceder a uma mais completa integração, sem
exclusão sequer do recurso a outras presunções judiciais que não tenham sido extraídas
aquando da apreciação dos meios de prova ou despoletadas a partir da análise conjugada dos
factos apurados (art. 607º, nº 4).
Cumpre então ao juiz apreciar as questões jurídicas ainda carecidas de resolução,
obedecendo à ordem lógica que concretamente se revelar mais eficiente. A não ser que a
apreciação de alguma questão esteja prejudicada pela resposta dada a outra 34, o juiz deverá
conhecer de todas as questões, evitando a nulidade por omissão de pronúncia prevista no art.
615º, nº 1, al. d), 1ª parte.
Determina o art. 608º que seja dada prioridade às questões de natureza processual
que ainda estejam por resolver (nulidades, excepções dilatórias ainda por apreciar ou outras
questões de natureza processual que interfiram no resultado), sem embargo do que se dispõe
no art. 278º, nº 3, relativamente a deter-minadas excepções dilatórias que visem tutelar o
interesse da parte vencedora relativamente ao mérito da causa (quebra do dogma da
prioridade de conhecimento das excepções dilatórias).
É já no mérito da causa que se inscrevem as excepções peremptórias, as quais apenas
devem ser apreciadas se na medida em que o caso concreto o justificar ou porventura como
reforço da decisão proferida relativamente a outras questões 35.
Sem embargo da apreciação ds questões que sejam de conhecimento oficioso, o juiz
deve limitar-se às questões que tenham sido invocadas, evitando, deste modo, a nulidade da
sentença por excesso de pronúncia, nos temos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine.
Nas questões de conhecimento oficioso a liberdade do juiz está condicionada pelo que
resultar do processo. A nulidade contratual é evidenciada quando, por exemplo, se trate de
vício de forma (v.g. contrato que não respeitou a forma legalmente prescrita). Porém, quando
emergir de vícios materiais ou substanciais (v.g. simulação contratual), a sua apreciação não

34
Relativamente a questões cuja decisão seja prejudicada pode, ainda assim, justificar-se a apreciação que
sirva para reforçar o resultado declarado, como ocorre quando a improcedência da acção encontre o duplo
fundamento na integração jurídica dos factos provados e na caducidade ou na prescrição.
35
Ainda que a acção improceda por razões ligadas à matéria de facto apurada, no confronto com as normas
jurídicas, pode haver utilidade em reforçar a sentença, por exemplo, com a declaração de procedência da
excepção peremptória de caducidade ou de prescrição.

295
Sentença Cível

dispensará de modo algum a prévia alegação e a posterior demonstração dos factos


pertinentes.
Por outro lado, não deve ser descurado relativamente a tais questões o respeito pelo
princípio do contraditório que, nas concretas circunstâncias, pode determinar a audição das
partes para se pronunciarem, nos termos do art. 3º, nº 3, formalidade apenas dispensada
quando se trata de casos de manifesta desnecessidade.
Diligência que deve ser acautelada também quando o juiz, no uso do poder/dever de
indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º, nº 3), configure uma
solução ou um efeito jurídico que se revele surpreendente para as partes 36.

7.2. Relativamente a todas as questões jurídicas deve o juiz ponderar que a sua função
essencial é a de identificar, interpretar e aplicar as normas jurídicas que se ajustem ao caso
concreto, não devendo a sentença servir de pretexto para a exposição gratuita de
conhecimentos jurídicos ou para a reprodução de textos jurídicos sem qualquer utilidade para
a resolução do concreto litígio.
Enunciadas as questões a resolver e identificada a ordem lógica pela qual devem ser
apreciadas, o juiz deve concentrar-se naquilo que é essencial para a sua resolução,
encontrando o justo equilíbrio no que concerne à fundamentação jurídica, a qual, não
podendo ser dispensada (art. 154º), deve ser moderada, evitando que se transforme num
mero repositório de considerações jurídicas irrevelantes para o caso concreto 37.

36
Sobre a matéria cfr. Lopes do Rego, O princípio dispositivo e os poderes de convolação do juiz no
momento da sentença, em Obra em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, vol. I, págs. 781 e
segs.
Não ficando de modo algum afectada a aplicabilidade do regime jurídico que o juiz considere mais ajustado,
deste modo se assegura que as partes possam pronunciar-se, quer no sentido de sustentar a solução
anunciada, quer no sentido de a contrariar.
As referidas cautelas devem estender-se a todas as excepções que, na perspectiva do juiz, determinem a
absolvição da instância, não sendo de modo algum compreensível que nesta ocasião as partes sejam
confrontadas com um tal efeito sem que lhes seja dada a oportunidade de se pronunciarem.
Aliás, pode ainda acrescentar-se que tais cautelas devem desde logo ser asseguradas na audiência prévia,
aquando da delimitação dos termos do litígio (art. 591º, nº 1, al. c)).
37
Sobre a matéria cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo CPC, 2013, págs. 250 e segs.
À irrelevância das considerações jurídicas despropositadas deve ainda acrescentar-se, como efeitos
preventivos, a irrelevância de considerações extrajurídicas cujo ruído acabe por prejudicar a compreensão
daquilo que verdadeiramente está em discussão.

296
Sentença Cível

Não menos censurável me parece a opção que se traduza na excessiva transposição de


opiniões alheias, não encontrando qualquer justificação esta dependência argumentativa num
sistema, como o nosso, que naturalmente reconhece ao juiz autoridade para identificar,
interpretar e aplicar a lei ao caso concreto 38.
Como ocorre noutros casos, é perante as exigências do caso concreto e do seu nível de
complexidade que deve buscar-se o ponto de equilíbrio entre a deficiente e a excessiva
fundamentação, apreciando a necessidade ou conveniência de corroborar as soluções
propugnadas com argumentos doutrinários ou jurisprudenciais, sem que se invertam os
termos do acto judicativo.
A sentença, na parte da motivação jurídica, deve exercer a função de convencer as
partes quanto ao trajecto percorrido e de habilitar a parte vencida a deduzir, querendo, a sua
impugnação. Em situações particularmente discutíveis, considero até que devem ser expostos
os diversos argumentos, favoráveis e desfavoráveis à tese adoptada.
Ainda que o juiz não se encontre adstrito à jurisprudência dos Tribunais Superiores,
nem sequer quando se trata de jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça,
deveres de ordem deontológica, associados a objectivos de eficiência do sistema judiciário,
deverão servir de travão a inconsistentes posturas de recusa de entendimentos
generalizados 39.

7.3. No âmbito da sentença deve ser destacado o segmento decisório, não só porque a
lei o determina (art. 607º, nº 3, do NCPC), como ainda pelo facto de o mesmo evidenciar com
mais clareza o resultado da lide.
No confronto com o pedido ou pedidos formulados e dentro dos respectivos limites,
cumpre ao juiz exarar a sua procedência total ou parcial, culminando com a declaração do
efeito jurídico determinado e que varia em função da natureza da acção (condenatória, de
simples apreciação ou constitutiva) 40.

38
Nesta vertente, importa ainda que, quando se revele necessária ou útil a invocação de argumentos de
ordem doutrinal ou jurisprudencial, se mencione a respectiva fonte. Se é verdade que nenhuma norma o
determina, basta para o efeito invocar os deveres deontológicos que devem orientar toda a actividade
profissional do juiz.
39
Matéria que abordo mais desenvolvidamente em Recursos no Novo Código de Processo Civil (2013), págs.
360 e segs.
40
Nem sempre a enunciação das pretensões é feita de modo correcto, cumprindo, assim, ao juiz, na
sentença, ajustar a condenação ao efeito jurídico efectivamente pretendido.

297
Sentença Cível

Deve ser especialmente ponderada a necessidade de respeitar a natureza ou o valor


do pedido formulado, sob pena de nulidade, nos termos do art. 615º, nº 1, al. e) 41.
Importa ainda evidenciar a necessidade de se afastar a contradição entre os
fundamentos e a decisão ou situações de ambiguidade ou de obscuridade que determinem a
nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, al. c).

7.4. Segue-se a decisão sobre custas judiciais, de acordo com as regras gerais, mas sem
olvidar que o nº 6 do art. 607º obriga a que seja fixada a proporção da responsabilidade em
situações em que esta seja repartida entre o autor e o réu ou seja distribuída entre dois ou
mais sujeitos que ocupem a mesma posição processual 42.
É neste campo que pode justificar-se o uso do instrumento previsto no nº 7 do art.
530º do NCPC (e art. 6º, nº 5, do RCP), aplicando à parte vencida a taxa de justiça agravada (o
dobro da taxa normal, nos termos da Tabela I-C do RCP), designadamente quando se verifique
que apresentou articulados escu-sadamente prolixos 43, quando as questões debatidas tenham
elevada complexidade ou quando tenham sido complexas ou morosas as diligências de prova.
Nas situações abarcadas pelo art. 531º, pode ainda justificar-se a aplicação à parte
vencida a taxa sancionatória especial (art. 10º do RCP, entre 2 e 15 UC’s) quando a pretensão
ou a defesa seja manifestamente improcedente e a parte tenha agido sem a prudência ou
diligência devida.
Deve ainda ser dada a devida atenção a situações que, excedendo a anterior, revelem
litigância de má fé instrumental ou substancial de alguma das partes 44, nos termos dos arts.

Por exemplo, são frequentes as petições em que o autor pede a “condenação do Réu a reconhecer que é
proprietário de um determinado prédio e a entregá-lo” (ou “condenação no reconhecimento de que o
contrato é nulo”), sendo que, rigorosamente, se trata simplesmente de obter o “reconhecimento” judicial de
que o A. (no confronto com o Réu) é o proprietário do prédio (ou de que o contrato é nulo), condenando-o
no cumprimento da obrigação correspondente (v.g. restituição ou pagamento da quantia mutuada).
41
Sobre a apreciação de pedidos genéricos, subsidiários, alternativos ou de prestações vincendas remeto
para o que desenvolvi em Temas da Reforma do Processo Civil, I vol., 2ª ed., págs. 156 e segs.
42
Conexa com a taxa de justiça está a questão do valor processual. Este deve ser fixado no despacho
saneador, mas admite-se que tal fixação ocorra na sentença, quando não haja despacho saneador, ou que o
valor anteriormente fixado seja corrigido, quando se trate de processo de liquidação cuja utilidade
económica sofra variações na pendência da acção (art. 306º, nº 2, do NCPC).
43
É este o único instrumento que o juiz pode utilizar para contrariar a manutenção de uma excessiva
tendência para a prolixidade ou para a demasiada extensão dos articulados, em desrespeito pela regra geral
prevista no art. 5º que orienta as partes para a concentração no que se revele essencial.
44
Matéria que mais desenvolvidamente já tratei em Temas Judiciários (1998).

298
Sentença Cível

542º a 545º (com condenação na multa entre 2 e 100 UC’s, nos termos do art. 27º, nº 3, do
RCP, e eventual indemnização à parte contrária, se esta a solicitar), assinalando-se, como
elemento inovador do NCPC, que se a parte que litiga maliciosamente for pessoa colectiva ou
sociedade, arcará directamente com a responsabilidade, em vez de recair unicamente sobre o
seu representante legal (art. 544º), como prescrevia o anterior CPC.

299
Videogravação da comunicação

300
Nótula sobre a Jurisdição Cível

Nótula sobre a Jurisdição Cível 1


António Santos Abrantes Geraldes

1. O texto inicial desta nótula foi redigido em Setembro de 2010, no final de uma década
de exercício de funções no Tribunal da Relação, assentando as observações e comentários, em
grande parte, em elementos recolhidos da prática judiciária, como relator ou como adjunto.
É claro que se trata de uma visão parcelar, essencialmente fundada no contacto com os
processos em que tive intervenção, a que não faltará uma certa dose de subjectivismo
reflectido designadamente na escolha dos aspectos a salientar ou na posição que sobre os
mesmos foi adoptada.
Mas os casos enunciados permitem, em meu entender, que se reflicta sobre a função e os
objectivos do processo civil e, paralelamente, sobre o modo como o juiz deve assumir a
direcção do processo (agora sob a capa do dever de gestão processual) e tutelar os direitos
subjectivos e os interesses juridicamente relevantes.
A verdade é que, sem embargo das críticas que possam ser dirigidas a determinadas
opções do legislador, há muito que deixou de fazer sentido invocar obstáculos ou
impedimentos sustentados numa determinada visão formalista do processo civil – que até
Alberto dos Reis rejeitaria – não faltando agora instrumentos ou mecanismos que,
devidamente interpretados e conjugados, confluem para a valorização dos aspectos de ordem
substantiva, em detrimento de soluções formais, assim (cor)respondendo melhor aos
objectivos do sistema de Administração da Justiça e às necessidades da sociedade civil2.
Para o efeito, ainda que aos resultados projectados não sejam alheios outros profissionais
do foro, com destaque para os advogados, tendo em conta o uso que frequentemente é feito
de certos instrumentos processuais ou o recurso abusivo determinados expedientes de pendor
dilatório, incidirei especialmente sobre os actos funcionalmente atribuídos ao juiz. A direcção
do processo e os princípios gerais que o sustentam transportam consigo especiais
responsabilidades relativamente à satisfação das exigências e aos objectivos do sistema.
Os casos que apresento são meramente exemplificativos. Importa referir ainda que as
decisões que, em meu entender, são passíveis de maior crítica, por não fazerem jus à

1
Texto cedido pelo autor para a presente publicação.
2
Objectivos e instrumentos que o NCPC veio reforçar.

301
Nótula sobre a Jurisdição Cível

verdadeira função do processo civil ou por não reflectirem como deviam a verdadeira função
que aos Tribunais e aos respectivos juízes é atribuída, serão largamente minoritárias.
No entanto, ainda são em número significativo as situações que reflectem uma tendência,
posto que minoritária, para um certo revivalismo no que concerne à função do processo civil,
como se constituísse um fim em si mesmo, em vez de estar ao serviço da satisfação dos
direitos de natureza substantiva.
Depois de diversas reformas processuais que já apontavam o mesmo caminho, a aplicação
do NCPC não pode deixar de ser guiada pelos objectivos, regras e princípios que o enformam e
que apelam à simplificação processual, à prevalência do mérito sobre a forma, à economia de
meios, à celeridade e à eficácia dos mecanismos processuais.
2. Antes de avançar, porém, é justo que se reconheça a notória melhoria da generalidade
das decisões dos Tribunais de 1ª instância, com destaque especial para os despachos
saneadores e de condensação (agora resumida aos “temas da prova”) e para as sentenças de
mérito, incluindo as decisões finais dos procedimentos cautelares.
Depois de alguma resistência inicial à reforma do processo civil de 1996, tanto na parte
em que modificou a estrutura do processo, como naquela em que pretendeu valorizar o
recurso aos princípios gerais, são notórios os efeitos positivos que se traduzem na efectiva
subvalorização de aspectos formais, com prevalência para as decisões de mérito, e na
qualidade formal e substancial das decisões. Qualidade que também transparece da motivação
das decisões da matéria de facto, demonstrada através de uma efectiva apreciação crítica dos
meios de prova.
Todavia, a situação referida não parece inteiramente consolidada, começando a
pressentir-se ainda, aqui e ali, um certo retrocesso em relação ao entendimento correcto da
função desempenhada pelos mecanismos processuais. Com uma frequência superior à que os
antecedentes legislativos e as exigências do sistema poderiam tolerar, deparei-me com
algumas situações em que os processos pareciam constituir um fim em si mesmo,
enveredando-se por decisões de pendor formal, com recusa de utilização dos mecanismos e
dos poderes postos à disposição dos juízes no sentido de privilegiar a justiça substancial, e com
relativa indiferença em relação à utilidade dos meios processuais.
Por certo que nenhum sistema está imune a tais situações, sem que isso, no entanto,
deva impedir que se identifiquem alguns pontos críticos como forma de impedir retrocessos
numa altura em que cada vez mais se reclama contra a deficiente concretização dos objectivos
de eficácia, de celeridade e de economia de meios e de processos.

302
Nótula sobre a Jurisdição Cível

O facto de ter entrado em vigor o NCPC justifica que se analise criticamente o passado,
como terapêutica que evite a persistência de erros de perspectiva no que concerne à função
desempenhada pelos instrumentos processuais e ao posicionamento do juiz no âmbito da
administração da justiça cível.

3. Estas nótulas assentam essencialmente em dados recolhidos da experiência pessoal,


enunciando apenas os aspectos que, na minha perspectiva, conflituam de forma mais flagrante
com a natureza e função atribuída ao processo civil 3.

3.1. Da parte dos juízes:


a) Recusa de prolação de despachos de convite ao aperfeiçoamento dos articulados ou
de correcção de aspectos de ordem processual, com posterior extracção de efeitos das
deficiências verificadas 4;
b) Indeferimento liminar de requerimentos em procedimentos cautelares em situações
em que se justificaria o despacho de aperfeiçoamento;
c) Excessiva demora na prolação da decisão final em procedimentos cautelares, com
diligências probatórias excessivas;
d) Falta de efectiva direcção do processo, em casos em que se exige a recusa do que é
impertinente ou a delimitação das questões que já foram apreciadas, daquelas que
ainda estão por apreciar (v.g. nos processos de inventário) 5;
e) Levantamento da excepção de incompetência material ou territorial em casos em que
a mesma não foi suscitada, nem decorre manifestamente dos autos 6;
f) Dispensa de audiência preliminar fora dos casos em que a lei o admite 7;
g) Falta de efectiva direcção das audiências, consentindo no seu arrastamento por
diversas sessões 8;

3
Algumas das situações enunciadas encontram no NCPC argumentos que reforçam a necessidade de
obterem um tratamento diverso.
4
Postura agora de todo insustentável em face do art. 590º, do NCPC.
5
O que agora convoca o cumprimento do dever de gestão processual previsto no art. 6º, do NCPC.
6
A proximidade da entrada em vigor de uma nova lei de organização judiciária deve alertar-nos para a
necessidade de não adicionar às perturbações inerentes à sua implantação no terreno outras que advêm
apenas de incidentes processuais suscitados em torno da definição da competência dos Tribunais.
7
Foram os abusos na dispensa de audiências preliminares que determinaram as modificações legais no que
concerne à regulamentação das audiências prévias no NCPC (arts. 591º a 593º).

303
Nótula sobre a Jurisdição Cível

h) Excessiva exigência no que concerne ao preenchimento do ónus da prova, com


elevação da fasquia da convicção a um ponto que torna por vezes inviável a prova dos
factos relevantes, designadamente quando se trata de factos negativos ou cuja prova
directa se mostra difícil ou impossível;
i) Opção pelo resumo dos depoimentos das testemunhas na motivação da decisão da
matéria de facto, em vez da apreciação crítica dos meios de prova;
j) Elaboração da sentença sem ordenação lógica ou cronológica dos factos provados;
k) Incompreensível paralisação de alguns processos em fases cruciais, designadamente
nas fases do saneamento e da sentença;
l) Considerações jurídicas sem efectivo relevo para o caso concreto, designadamente
quando as questões não são objecto de qualquer divergência, muitas vezes com uso e
abuso de copy paste de decisões anteriores;
m) Aproveitamento de considerações jurídicas extraídas de outras decisões ou de obras
jurídicas sem menção das respectivas fontes;
n) Desconsideração de direitos e interesses legítimos em litígios que emergem de
relações familiares ou que exigem actuação urgente;
o) Prevalência dada a argumentos formais, em detrimento de razões substanciais que
privilegiam a justiça material;
p) Insuficiente uso de poderes inquisitórios em matéria de direito probatório;
q) Insuficiente uso de mecanismos legais que possibilitam a simplificação da tramitação e
dos actos processuais, como a elaboração de sentenças;
r) Determinação da remessa do processo para a Relação sem verificação do dever de

instrução dos recursos com subida em separado com as peças processuais que os
devem acompanhar;
s) Falta de condenação da parte como litigante de má fé em casos em que
manifestamente existem comportamentos processuais reprováveis;
t) Falta de efectivo poder de direcção por parte do juiz em relação à secretaria judicial,
permitindo que em tribunais de competência genérica exista uma efectiva
subvalorização dos processos cíveis em comparação com os processos criminais ou
que, sem qualquer justificação, se verifiquem atrasos no cumprimento dos actos.

8
O NCPC, para além de ter reforçado os poderes de direcção do juiz na condução do processo, pretende
ainda que esses poderes se manifestem na direcção das audiências, sendo essencial o empenho na sua
programação e, depois, na sua direcção, nos termos do art. 602º, nº 2, als. a) e d).

304
Nótula sobre a Jurisdição Cível

3.2. Da parte dos advogados:


a) Articulados com deficiências na articulação da matéria de facto ou com excessiva e
repetitiva alegação 9;
b) Falta de clara separação, na contestação, do que constitui matéria de impugnação e
matéria de excepção 10;
c) Alegações nos articulados qualitativamente inferiores às alegações de recurso;
d) Falta de efectiva colaboração na audiência preliminar (agora audiência prévia);
e) Adiamento de audiências por motivos fúteis, apesar de o seu agendamento ter tido em
consideração a compatibilização de agendas 11;
f) Apresentação de documentos na audiência de julgamento que já estavam disponíveis
na fase dos articulados, com o fim de se extrair proveito do efeitosurpresa, sem
consideração pelos inconvenientes que determina na justa decisão da causa e na
demora do processo 12;
g) Não uso da faculdade de produção de depoimentos testemunhais por escrito;
h) Abusiva apresentação de requerimentos de arguição de nulidade ou de aclaração da
sentença em casos em que esta não admite recurso 13;
i) Excessivo recurso à arguição de nulidades da sentença, em vez da concentração de
esforços na impugnação da decisão;
j) Colocação nas alegações de questões não invocadas nos articulados;
k) Generalizada insatisfação do ónus de formulação de verdadeiras conclusões nos
recursos, a exigir a sintetização das questões e a identificação das normas jurídicas
violadas ou da interpretação que lhes deve ser atribuída;

9
Contra esta “técnica” se pode invocar agora o que dispõe o art. 5º e a possibilidade de ser aplicada taxa de
justiça agravada, nos termos do art. 530º, nº 7, al. a), do NCPC.
10
Situação que, além de outras consequências, determina os efeitos previstos no art. 572º, al. c), 2ª parte,
do NCPC.
11
Situação a que o art. 151º, do NCPC, pretendeu pôr cobro.
12
Situação também foi objecto de uma mudança radical, já que, em regra, a junção de documentos apenas
pode ocorrer até ao 20º dia anterior ao início da audiência final (art. 423º, nº 2, do NCPC).
13
Agora com a medida paliativa que consta dos arts. 618º e 670º, do NCPC.

305
Nótula sobre a Jurisdição Cível

l) Deficiente impugnação da decisão da matéria de facto, com referências genéricas a


erros decisórios, sem uma efectiva apreciação crítica dos meios de prova, nem tomada
de posição clara sobre o sentido da decisão pretendida;
m) Intervenção indiscriminada junto das Relações (e, depois, junto do Supremo) de
advogados sem experiência profissional;
n) Falta de efectiva responsabilização, pela Ordem dos Advogados, das situações que
envolvem litigância de má fé da responsabilidade dos advogados.

3.3. Da parte das secretarias judiciais:


a) Paralisação dos processos cíveis em comparação com os processos criminais;
b) Excessiva solicitação da intervenção do juiz em situações em que se impõe uma
actuação imediata da secretaria;
c) Falta de acompanhamento das inovações legislativas;
d) Frequentes situações de deficiente gravação ou falta de gravação das audiências finais,
originando escusadas repetições de julgamentos;
e) Deficiente sinalização dos locais onde se encontram gravados os depoimentos;
f) Não envio das gravações das audiências;
g) Não envio dos elementos extraídos do processo electrónico e que se mostram
necessários para apreciar o recurso.

4. Concretizando algumas situações respeitantes aos juízes:


a) Declaração oficiosa de incompetência do Tribunal em casos em que a excepção nem
sequer é suscitada, nem existem motivos evidentes para tal.

Trata-se de uma situação algo frequente sempre que ocorrem modificações na orgânica
judiciária e que persiste muitas vezes, apesar de sucessivos acórdãos da Relação que
contrariam as decisões de declaração de incompetência.
Ora, a definição da competência em função do território, da forma de processo ou do
valor constitui uma questão cujo relevo é relativo, de modo que a intervenção oficiosa apenas
deve ocorrer quando os autos revelem, de forma inequívoca, “os elementos necessários”, nos
termos do art. 104º, nº 1, do NCPC.

306
Nótula sobre a Jurisdição Cível

Mesmo em relação à incompetência em razão da matéria, apenas se justifica a apreciação


oficiosa quando não suscitar dúvidas, sendo de todo incompreensível que ocorra a partir de
argumentos questionáveis e, além disso, que não seja precedida da audição das partes 14.
b) Adiamento de audiências finais, sem esgotamento das possibilidades de
aproveitamento da data para a realização das diligências pertinentes 15.
c) Convocação para as audiências finais de um número excessivo de testemunhas, em
lugar da sua distribuição por várias sessões 16.
d) Recusa de respostas restritivas ou explicativas a pontos da base instrutória, com opção
por respostas negativas, apesar de os meios de prova o consentirem.

Entre respostas totalmente positivas ou negativas, justificam-se, por vezes, respostas


restritivas, como ocorre frequentemente em acções de acidentes de viação, quando se
discutem valores de danos ou velocidades de veículos 17. O importante é que o juiz se situe
dentro da matéria de facto controvertida, vertendo para a decisão o que efectivamente
resultar da sua apreciação dos meios de prova que foram produzidos.
Por exemplo, sendo questionado se um veículo seguia a 90 km/h ou a 50 km/h, a falta de
prova de qualquer dos valores não deve determinar respostas negativas. Em tais circunstâncias
justificar-se-á, ao menos, que se considere provada uma velocidade não superior a 70 km/h ou
não inferior a 80 km/h ou, uma decisão que, sem se comprometer com qualquer velocidade,

14
Prevendo-se a aprovação de uma nova lei de organização judiciária, é mister que as regras sobre
distribuição da competência relativamente aos novos processos ou sobre a afectação dos processos
pendentes sejam claras. Mas impõe-se igualmente que seja feito um uso adequado das regras de
interpretação, por forma a evitar decisões erradas ou contraditórias.
15
Para além dos impedimentos colocados às partes relativamente aos adiamentos das audiências finais (art.
603º, nº 1, do NCPC), também se procurou moralizar os adiamentos suscitados por razões atinentes ao
Tribunal (arts. 151º e 603º, nº 2), impondo, além disso, o máximo aproveitamento dos actos, com a maior
economia de meios e com a redução dos incómodos para as partes e para terceiros, designadamente para
as testemunhas.
16
Trata-se de uma actuação que já era infirmada pela lei anterior e que se revelará inteiramente
injustificada em face do art. 507º, nº 1, do NCPC, e da necessidade de calendarização da audiência final ou
das diversas sessões.
17
Com o NCPC deixou de haver pontos da base instrutória, os quais foram substituídos pelos temas de
prova, de modo que, de acordo com as circunstâncias (conteúdo dos temas de prova, necessidades do caso
concreto, nível de discussão a que foram submetidos na audiência final), caberá ao juiz enunciar a matéria
de facto que considera provada e não provada, de uma forma inteligível e coerente, por forma a conseguir
traduzir a realidade observada.

307
Nótula sobre a Jurisdição Cível

aponte para uma “velocidade não determinada” 18. O mesmo se diga em relação aos prejuízos
de natureza patrimonial que sejam causados em casos de embate ou de colisão de veículos 19.
e) Omissão de prolação de despacho de aperfeiçoamento.
Já verifiquei a recusa de admissão da intervenção de sujeito necessário para assegurar o
litisconsórcio necessário passivo (in casu, o Fundo de Garantia Automóvel) ou recusa de
prolação de despacho de aperfeiçoamento no sentido de ser chamado a intervir o sujeito que
assegure o litisconsórcio necessário activo ou passivo, para, acto contínuo, ser declarada a
absolvição do réu da instância com fundamento na preterição desse litisconsórcio 20.

f) Desconsideração dos interesses em causa em acções que exigem dos Tribunais uma
especial atenção, como ocorre na generalidade das questões do Direito da Família.
Numa acção para prestação de alimentos em que não se provou se um dos progenitores
tinha ou não tinha rendimentos e em que, por isso, foi absolvido do pedido, deixei escrito o
seguinte:
“A única questão que cumpre apreciar é se, apesar da falta de apuramento de qualquer
facto relativo às condições económicas do pai da menor, que se encontra em paradeiro
desconhecido, deve ser fixada uma prestação alimentícia a seu cargo. A resposta que
aprioristicamente se obtém quando nos deparamos com uma situação como a dos autos vai
no sentido afirmativo, de modo a que não sejam prejudicados os interesses do menor. É,
afinal, a resposta que se obtém quando se abandona uma estrita lógica formal que subjaz à
decisão recorrida.

A simples constatação dos anteriores elementos deixa claro que a decisão recorrida, em
vez de tutelar os interesses do menor que estão em causa, acaba por produzir um resultado
inadequado, levando a que o requerido, apesar de se encontrar juridicamente vinculado pela

18
Afinal, se o veículo ou veículos estavam em movimento, seguiam a velocidade superior a 0 km/hora!
19
Se o veículo ficou danificado, algum prejuízo patrimonial terá sofrido o seu proprietário, ainda que
porventura não possa ser imediatamente quantificado. O que não se admite é que, em face das
dificuldades, se considere pura e simplesmente não provada a ocorrência de um prejuízo patrimonial,
inviabilizando a liquidação posterior.
20
Tal corresponderia, agora, ao incumprimento do dever legal que consta dos arts. 6º, nº 2, e 590º, nº 3,
sendo de notar ainda que em face do NCPC deve receber o mesmo tratamento a situação que se caracterize
pelas insuficiências ou deficiências dos articulados no que concerne à alegação da matéria de facto (art.
590º, nº 3).

308
Nótula sobre a Jurisdição Cível

paternidade, continue totalmente desonerado de qualquer responsabilidade decorrente do


poder paternal, incluindo a contribuição para alimentos da sua filha.
Ao negar a fixação de uma qualquer prestação, ao menos partindo de padrões de
normalidade, a sentença recorrida acaba por deixar desprotegido quem o Direito da Família
pretende essencialmente tutelar: a menor.
É verdade que, nos termos do art. 2004º do CC, os alimentos deverão se proporcionais
aos meios daquele que houver de prestá-los. Mas também resulta de tal preceito que devem
ser ajustados às necessidades do credor, sendo que, tratando-se de menor de tenra idade, a
contribuição dos pais (de ambos os pais) é vital para assegurar o seu desenvolvimento. Acresce
que no caso concreto a requerente limita-se a peticionar a prestação mensal de € 125,00
mensais, sendo que a decisão de alimentos nunca é definitiva, permitindo-se a sua
modificação caso se modifiquem circunstâncias relevantes.
Perante este quadro, é caso para perguntar: que indivíduo, não afectado por qualquer
incapacidade grave, tendo sobre si o encargo de suportar uma parte dos alimentos de uma
filha de tenra idade, não está em condições de dispor, pelo seu trabalho, daquela quantia, se
necessário, fazendo um esforço suplementar?
A resposta que imediatamente se intui quanto a essa questão elementar é a de que,
nessas circunstâncias (e outras não são visíveis no caso concreto, não podendo, por isso, ser
consideradas), também ao requerido pode e deve ser fixada uma prestação alimentícia como
reflexo (mínimo) do seu poder/dever paternal. Ainda que estivesse apurado – e não está – que
o requerido não aufere qualquer rendimento, tal não contenderia com aquela obrigação, já
que é inerente à relação de paternidade a necessidade de realizar esforços e de ajustar a
vivência por forma a que se consigam obter rendimentos que, além do mais, possam servir
para prover às necessidades de quem, como o filho menor, não tem possibilidades de
sobrevivência autónoma”.
Noutro caso, em que se pretendia o decretamento de uma providência cautelar
antecipatória com fundamento na ruína de um prédio e do perigo que representava para as
pessoas, o requerimento inicial foi liminarmente indeferido.
Na revogação desse despacho exarei o seguinte:
“Ora, os requerentes alegaram a situação de ruína iminente do prédio e o facto de
representar perigo para a vida dos requeridos, dos clientes que frequentam o estabelecimento
e do público em geral, quer decorrentes do perigo de derrocada, quer do perigo de incêndio.
Invocaram ainda o receio de que a manutenção da situação e a concretização de algum
dos referidos perigos possa ser causa de responsabilização.

309
Nótula sobre a Jurisdição Cível

Para o efeito, instruíram o requerimento inicial com dois relatórios da responsabilidade


de técnicos de engenharia civil, nos quais se refere, além do mais, que os edifícios ameaçam
“ruir a qualquer momento”, exigindo-se a “imediata desocupação de todos os seus ocupantes e
bens”, concluindo pela existência de “risco de derrocada iminente e de um eventual e
consequente incêndio”.
No segundo relatório conclui-se que existem “problemas a nível de coesão e da
estabilidade das paredes” e que o “quadro patológico implica graves riscos de segurança e de
saúde na utilização dos espaços interiores e públicos envolventes”.
Tais relatórios contêm diversa informação e também vêm acompanhados de fotografias
do interior e do exterior dos edifícios.
Trata-se, como é evidente, de meras alegações ou informações sobre as quais os
requeridos ainda se não pronunciaram. Tão pouco o tribunal sobre os mesmos se debruçou,
limitando-se a considerações de ordem genérica, sem descer à valoração de tais meios
probatórios em confronto com os pressupostos dos procedimentos cautelares.
A mera ponderação dos factos alegados pelos requerentes e mais ainda a sua conjugação
com elementos probatórios apresentados revela ter sido precipitada a rejeição liminar, sem
que sequer tenha sido apreciada a realidade que subjaz ao presente litígio.
Não se concebe efectivamente que a pretensão de natureza cautelar que pelos
requerentes foi deduzida seja resolvida (“arrumada”) com a argumentação que consta de fls.
101 (afinal, o único trecho relevante), onde ficou expresso que: “em face da factualidade
alegada afigura-se-nos que a mesma não justifica o receito dos requerentes de que os
requeridos causem lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito de denúncia dos
contratos de arrendamento para demolição do prédio” … “pois que não estão impedidos de o
exercer pela via legalmente existente para o efeito”.
Não se nos afigura correcta a opção da rejeição liminar que põe o acento tónico na
possibilidade de os requerentes interporem uma acção de denúncia do contrato de
arrendamento, sem se debruçar sobre os pressupostos que levaram os requerentes a solicitar
o decretamento de uma medida cautelar de efeitos antecipatórios.
Deste modo, foram total e injustificadamente desvalorizadas as alegações feitas pelos
requerentes e os meios de prova apresentados quanto à situação em que o prédio se encontra
e quanto aos danos que podem alegadamente ser provocados em terceiros, com implicações
nos próprios requerentes.
Concluiu o Tribunal a quo que do necessário recurso àquela acção de denúncia dos
contratos não resultará para os requerentes “qualquer prejuízo”.

310
Nótula sobre a Jurisdição Cível

Trata-se de uma conclusão precipitada e que desconsidera por completo a situação de


perigo alegada pelos requerentes, que pretendem, na sua tese, eliminar uma fonte de perigo e
precaver-se contra eventuais acções de responsabilização que possam ser contra si deduzidas.
Numa época em que continua a verificar-se uma excessiva morosidade no funcionamento
dos mecanismos jurisdicionais comuns (sendo que o Tribunal recorrido não constitui excepção)
e em que, além disso, frequentemente se verifica uma situação de inércia por parte de outras
entidades (maxime Municípios) com competências na área do urbanismo e, mais
concretamente, na cessação de situações de risco de desmoronamento de prédios urbanos,
através de despejos administrativos ou de intimação para a realização de obras coercivas de
demolição, não deverão ser os Tribunais (que, por vezes, constituem o último e o principal
bastião na tutela de direitos, e de defesa de interesses juridicamente protegidos) a recusar,
mediante juízos sumários e precipitados como aqueles que perpassam pela decisão recorrida,
a possibilidade de exercerem as funções de que foram constitucionalmente incumbidos.
Impõe-se, isso sim que, fazendo jus aos poderes de que constitucionalmente estão
investidos, apreciem a factualidade invocada e os meios de prova apresentados em face dos
pressupostos formais e substantivos aplicáveis ao caso concreto.
No caso, nada justifica a eliminação radical da pretensão na fase liminar, justificando-se a
passagem para a fase subsequente”.
Noutro procedimento cautelar discutia-se uma situação de perigo para a saúde pública
decorrente de animais doentes ou mortos cuja remoção era pretendida, a qual também foi
indeferida liminarmente:
“Perante este quadro integrado, como se disse, por factos alegados, com que se lida na
ocasião em que é proferido despacho liminar, somos impelidos a formular a seguinte
interrogação de pendor retórico: para que a pretensão da requerente passe a fase liminar que
permita o posterior confronto do Tribunal com os factos que se apurarem que mais seria
necessário alegar?
Uma tal interrogação acaba por conter a resposta, deixando bem evidente a necessidade
de revogar a decisão agravada, para que os autos prossigam.
Ao invés do que consta da decisão agravada, não pode extrair-se do facto de o diferendo
recuar a 2004 ou 2005 argumento que permita justificar o indeferimento liminar. A maior
duração da situação apenas agrava a situação danosa, ao invés do que concluiu o Tribunal a
quo.
Nem o facto de a requerente se ter abstido de interpor qualquer acção com carácter
definitivo pode ser invocada. É que o CPC prevê no seu art. 2º o exercício do direito de acção,

311
Nótula sobre a Jurisdição Cível

como direito subjectivo oposto ao dever do Estado de dirimir litígios de direito privado, bem
diverso de um dever de agir judicialmente com consequências na apreciação liminar das
pretensões deduzidas.
A requerente, como alega, procurou encontrar nas autoridades administrativas a solução
para o caso. Atitude que, se for verdadeira, é irrepreensível, pois que, sem embargo dos
efeitos que a situação provoca na sua esfera jurídica, existirão outros bem mais graves que
devem ser tutelados por entes públicos, ainda que com posteriores reflexos na esfera dos
direitos privados.
A crer naquilo que a requerente alega, a ocorrência de perigos para a saúde pública, a
violação de preceitos regulamentares em termos de licenciamento de explorações pecuárias
ou o incumprimento de normas legais relacionadas com a posse de animais apresentam
virtualidades que bem poderiam ter servido para que a fonte de perigo fosse
administrativamente eliminada sem os encargos que decorrem do recurso aos Tribunais cíveis.
Não tendo surtido efeito as diligências que a requerente terá empreendido, não poderá
de modo algum ser penalizada.
O não exercício anterior do direito de acção judicial e, mais do que isso, a opção pelo
acionamento de mecanismos de direito administrativo com posterior inércia dos entes
públicos jamais pode redundar em prejuízo dos titulares de direitos afectados e que se
encontrem em situação de lesão grave, iminente ou reiterada.
Como decorre do direito de acção consagrado no art. 2º do CPC, a qualquer situação
juridicamente protegida corresponde uma acção, sem exclusão sequer da acção cautelar,
desde que, neste caso, se verifiquem os requisitos específicos. Por outro lado, as funções de
que sejam incumbidas autoridades policiais ou administrativas não contendem com a
legitimidade dos particulares de requererem providências de carácter inibitório,
acompanhadas ou não de medidas que imponham determinados comportamentos.
Não sendo seguro que os interessados a quem a lei reconhece determinado direito
possam actuar directamente sobre tais autoridades no sentido de as levar a cumprir as suas
funções, resta a possibilidade de lhes ser facultada a intervenção dos tribunais para a defesa
dos seus direitos ou dos interesses reconhecidos”.

g) Uso inadequado do princípio de livre apreciação.


Numa expropriação por utilidade pública não foi atendido o parecer emitido por quatro
dos cinco peritos, aderindo-se ao parecer apresentado pelo perito que fora indicado pelo
expropriado.

312
Nótula sobre a Jurisdição Cível

Sendo verdade que o juiz não está necessariamente submetido ao juízo pericial, ainda que
maioritário, não poderá deixar de sustentar essa recusa em argumentos sólidos, o que não
ocorrer no caso que relato:
“O juiz – qualquer juiz, quer o da 1ª instância, quer os da Relação – não têm que aceitar
cegamente as opiniões dos peritos. Mas, não havendo razões para duvidar dos conhecimentos
técnicos, nem estando em causa algum factor relacionado com a idoneidade e objectividade
de um parecer subscrito por 4 dos 5 dos peritos, não é de ânimo leve que aquele deve ser
desconsiderado e que se acolham os elementos do outro perito ou que, à revelia do que
qualquer dos peritos deixou expresso, se façam juízos a partir de elementos avulsos
constantes do processo e que, pela sua natureza genérica, não podem ser directamente
aplicáveis à concreta parcela em causa, com características próprias, constituindo meros
referenciais estatísticos, com as suas virtualidades, mas sem a essencial de terem como
objecto uma concreta parcela destinada a piscicultura extensiva”.

h) Indeferimento liminar de requerimentos iniciais de procedimentos cautelares em casos


em que se justificava a prolação de despacho de aperfeiçoamento.
São frequentes estas situações, o que motivou que, numa delas, tenha referido o
seguinte:
“Decorrida mais de uma década sobre a importante reforma do processo civil que
pretendeu assinalar o relevo que deve ser dado ao direito material, passando para um plano
secundário aspectos de natureza formal, deveria ser desnecessário relembrar que só em casos-
limite aspectos de natureza formal deverão ter como consequência a rejeição liminar ou
qualquer outra decisão de extinção da instância por motivos formais. Nos demais, deve o juiz
fazer uso de outras soluções que, sem quebra de quaisquer princípios relevantes, confluem
para a melhoria da resposta do sistema às solicitações dos cidadãos ou das empresas.

Em suma, como é próprio do direito adjectivo, o CPC não pode ser entendido como um
“breviário” onde se encontrem todos os passos que devem ser dados, desde que o processo se
inicia até que é proferida a decisão que regula o conflito de interesses.
Longe disso, deve ser encarado como diploma cuja função essencial, para além da
indicação do objectivo a atingir, é o de enunciar as regras e os passos essenciais que permitam
atingir aquele desiderato, com obediência aos grandes princípios que lhe servem de lastro.

313
Nótula sobre a Jurisdição Cível

Se a Mª Juíza a quo entendia que era relevante para a decisão do procedimento a junção
dos documentos a que aludiu, o esclarecimento do número efectivo de comproprietários ou a
determinação das respectivas quotas tinha à sua disposição um meio facílimo de o conseguir:
determinar a notificação do requerente para o efeito.
Acresce que, como muito bem o refere o apelante, nem sequer se mostravam necessários
os referidos documentos ou esclarecimentos. O requerimento inicial enunciava com suficiência
tudo quanto de relevante deveria ter sido alegado pelo requerente para confrontar a parte
contrária antes de o Tribunal decidir”.
E noutro procedimento:
“Porém, o direito adjectivo não é apenas um conjunto de abstracções mais ou menos
apoiadas em doutrina e jurisprudência. Servindo de veículo ao direito substantivo, de que é
instrumental, jamais pode separar-se das concretas situações.
A excessiva atenção dada a aspectos formais correspondeu a uma corrente que fez escola
noutros tempos. À sombra de uma determinada interpretação que se fazia dos ensinamentos
de Alberto dos Reis, com excessivo apelo a aspectos formais, com relativa frequência os
Tribunais cíveis acabavam por sobrepor o direito processual ao direito substantivo.
Diversos autores vinham alertando para a inusitada frequência com que se suscitavam
questões processuais, invertendo-se frequentemente a ordem de valores por que deveria
pautar-se a actividade jurisdicional e que, no essencial, deveria ser dedicada à definição dos
direitos subjectivos e à resolução dos conflitos submetidos pelas partes à decisão dos
tribunais.
Contra esta tendência, de todo inaceitável nos tempos modernos, vem o legislador
actuando em sucessivas reformas, merecendo especial destaque a de 1996/97, através da qual
se pretendeu reduzir a justos limites as situações em que ficava impedido o conhecimento do
mérito da causa.
A fim de se operarem transformações visíveis no sistema e nos resultados derivados da
aplicação do direito adjectivo, consignou-se o alargamento da possibilidade de salvar a acção
inquinada por vício impeditivo do conhecimento de mérito, mas que resulte de falhas
menores, para além de uma outra solução mais arrojada, resultante do art. 288º, nº 3, do CPC,
que permite, nalgumas situações de persistência de excepções dilatórias, a prolação de
decisão de mérito.
A supremacia atribuída ao direito material, a instrumentalidade que caracteriza o direito
processual e a largueza com que o legislador encarou a intervenção do juiz na direcção do
processo e no afastamento de obstáculos formais confluem no sentido de se obterem

314
Nótula sobre a Jurisdição Cível

resultados mais ajustados no campo do direito material, em vez de decisões que, limitando-se
a absolver da instância, mantêm sem resolução material o litígio.
Por isso, na acção declarativa, sem exclusão sequer das acções não contestadas, o juiz não
deve limitar-se a verificar e a sancionar a existência de uma excepção dilatória. Ao invés,
impõe-se que exerça os poderes que a lei lhe confere no que respeita à superação de falhas
processuais susceptíveis de sanação, mesmo quando impliquem com pressupostos processuais
básicos, abarcando, quando tal se justifique, o convite ao esclarecimento de deficiências ou
imprecisões na matéria de facto, nos termos dos arts. 508º, nº 1, al. a), e 265º, nº 2, do CPC.
Reformulado o regime de aperfeiçoamento dos articulados, com ampliação dos poderes
do juiz e transposto para o fim dos articulados, não se compreende a insistência em decisões
formais, antes de se esgotarem os mecanismos alternativos que permitem o aproveitamento
do processado para a prolação de decisões de mérito”.

i) Não aplicação da regra substantiva referente às situações de colisão de veículos (art.


506º, do CC), optando-se pela absolvição da seguradora com fundamento na ausência
de prova da culpa ou de presunção de culpa.
Por diversas vezes me confrontei com sentenças em que, malgrado a falta de prova de
culpa ou de presunção de culpa de qualquer dos condutores, se optou pela absolvição da Ré
Seguradora, com fundamento na falta de prova da culpa do condutor do veículo segurado.
Aqui o que está em causa já não é o incumprimento de regras de processo civil, antes o
desrespeito flagrante de uma regra elementar de direito substantivo que obriga a que, em tais
circunstâncias, se deva repartir a responsabilidade por ambos os condutores de acordo com o
grau de risco de cada um dos veículos, nos termos do art. 506º, do CC.

j) Não uso das regras da experiência ou não atendibilidade das regras da experiência
comum para efeitos de presunções judiciais.
Esta situação é frequente nas acções cuja procedência depende da prova de factos que
são do foro interno da outra parte ou relativamente aos quais não é natural nem possível a
apresentação de prova testemunhal ou documental, exigindo-se do juiz que forme a sua
convicção sobre o facto desconhecido a partir da prova de factos instrumentais.
Assim deveria ter acontecido – e não aconteceu – numa acção de impugnação pauliana:
“A prova de factos do foro interno, como aqueles de que depende a afirmação do
requisito da má fé necessário à impugnação pauliana (tal como ocorre com a simulação
contratual condicionada pela prova do acordo simulatório e da intenção de prejudicar

315
Nótula sobre a Jurisdição Cível

terceiros), constitui uma das mais espinhosas tarefas a cargo da parte sobre quem recai o ónus
probatório.
Sem descurar tais dificuldades, a afirmação da prova de um certo facto representa
sempre o resultado da formulação de um juízo humano. Uma vez que jamais este pode basear-
se na absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de
acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao Tribunal a formação da
convicção assente em padrões de probabilidade, que permita afastar a situação de dúvida
razoável.
A natureza subjectiva dos factos constitui um factor que indubitavelmente complica essa
tarefa mas que, apesar disso, não deve servir para negar tutela a direitos cujo exercício
dependa da prova desses factos. Por isso, desde que na motivação da decisão se justifiquem os
fundamentos concretos da convicção, o juiz deve usar um critério tanto menos rigoroso
quanto maior for a dificuldade de reunir os elementos de prova adequados. Por outro lado,
não deve ficar totalmente alheio ao processo de formação da convicção o comportamento
processual da parte contrária, pois se é verdade que o ónus da prova não lhe pertence,
também é certo que, como parte interessada no litígio, a sua actuação processual pode e deve
ser valorada de acordo com as regras da experiência comum.

Ganham, assim, especial relevo os dados recolhidos da experiência que nos revelam a
multiplicidade e a sofisticação das estratégias de fuga aos credores, merecendo destaque a
transferência de bens para pessoas ligadas aos interessados por relações de confiança ou a
intervenção de "testas de ferro" que formalmente assumem a titularidade dos bens que, de
facto, continuam na disponibilidade dos transmitentes, a favor de quem subscrevem
geralmente procuração irrevogável.
Mais elaborada e tecnicamente mais difícil de detecção é a utilização de sociedades off
shore (por vezes, incentivadas por entidades bancárias) obedecendo a um regime favorável no
que concerne à sua constituição e ao regime fiscal vigente em determinados (e bem
publicitados) "paraísos fiscais", possibilitam complementarmente, através do secretismo
adoptado quanto à identificação dos verdadeiros titulares do capital social, a ocultação de
bens que, de outro modo, ficariam à mercê dos credores.
É da experiência da vida que nestas e noutras circunstâncias os implicados não emitem
uma declaração confessória da realidade que se esconde por detrás da modificação da
titularidade jurídica dos bens. Tal elemento de prova objectivo pura e simplesmente não existe

316
Nótula sobre a Jurisdição Cível

ou não se mostra acessível, razão pela qual o sistema deve consentir que os interessados
façam prova dessa realidade por outras vias menos evidentes mas, ainda assim, que permitam,
com razoável segurança, a afirmação da veracidade de determinados factos controvertidos.
Ganham, assim, especial relevo as presunções definidas pelo art. 349º, do CC, como
“ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto
desconhecido”, e que incluem ainda as presunções judiciais ou “ad hominem”.
Condicionadas a uma utilização prudente e sensata, isenta de excessivo voluntarismo, as
presunções judiciais constituem um instrumento precioso a empregar, quando necessário e
quando tal for legalmente admitido (art. 351º, do CC), na formação da convicção que antecede
a resposta à matéria de facto, o que se torna premente quando se trata de proferir decisão
que, como ocorre relativamente à impugnação pauliana, se tornam dificilmente atingíveis
através de meios de prova directa.
Conquanto nem sempre resulte explícita a sua intervenção na formação da convicção
jurisdicional, constituem um importante mecanismo que pode levar o Tribunal a afirmar a
verificação de certo facto controvertido, suprindo as lacunas de conhecimento ou de
informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova; podem servir ainda
para valorar os meios de prova produzidos”.

k) Incumprimento das regras da motivação da matéria de facto, sem a devida apreciação


crítica dos meios de prova ou opção errada pelo resumo dos depoimentos prestados.
Num apreciado em que tal incumprimento se verificou expus o seguinte:
“No caso concreto, estamos no âmbito de uma acção em cuja audiência de julgamento
foram inquiridas diversas testemunhas, em várias e arrastadas sessões de julgamento, tendo
cujos depoimentos ficaram gravados.
Ora, apesar da evidente contrariedade dos factos alegados por ambas as partes (que
fundamentalmente se podem condensar nos dois quesitos que condensam as versões das
partes quanto à (in)capacidade de E.) e malgrado os meios de prova apresentados
(basicamente integrados por prova testemunhal, com depoimentos divergentes quanto ao
estado psíquico de E. na ocasião em que foram outorgados os actos jurídicos impugnados), o
Mº Juiz a quo praticamente se limitou a referir, relativamente aos factos não provados, que os
depoimentos das testemunhas identificadas teriam sido “inconsistentes, inconclusivos, não
convencendo o tribunal de modo diferente do das respostas dadas”; e, em relação aos factos
provados, que outras ou as mesmas testemunhas teriam respondido “com segurança,

317
Nótula sobre a Jurisdição Cível

demonstrando conhecimento pessoal dos factos, convencendo assim o Tribunal no sentido das
respostas dadas”.
Decerto que o esforço desenvolvido pelas partes na fase de instrução, a importância do
processo e o grau de litigiosidade que através dele se detecta mereciam do Tribunal a que se
dirigiram melhor resposta. O número de testemunhas, a quantidade e a duração das sessões
de julgamento (com interrogatórios, instâncias e perguntas feitas, respectivamente, pelos
Exmºs mandatários e pelo Mº Juiz a quo) não encontram eco na forma utilizada pelo Mº Juiz a
quo para expressar os motivos da sua decisão.
Face a tão inusitada motivação (pela natureza formal e pela notória incompatibilidade da
justificação), abriu-se o flanco a justificadas e escusadas dúvidas quanto ao acerto do
julgamento ou, ao menos, quanto aos reais motivos que terão levado o Tribunal a responder
da forma como o fez, sendo naturais a perplexidade e as dificuldades da apelante quanto à
compreensão do fio lógico que conduziu ao resultado declarado.
Dificuldades que também a este Tribunal se suscitam na ocasião em que, em sede de
recurso, lhe é solicitado que reaprecie a decisão da matéria de facto. Com efeito, tal
motivação, feita por quem acompanhou e mediou a produção da prova oralmente produzida
não consegue superar as dúvidas quanto ao valor intrínseco que terá sido atribuído a cada um
dos depoimentos ou quanto ao valor probatório atribuído a documentos (sentença e relatório
pericial elaborado por dois médicos psiquiatras), designadamente aos que foram extraídos do
processo de interdição e que directamente respeitam à capacidade de entendimento da
declarante E.
Tendo em conta o princípio da imediação que envolve a condução da audiência de
julgamento onde os depoimentos foram prestados, o Mº Juiz a quo estava em condições e
tinha o dever de deixar claros os motivos que o levaram a responder positiva ou
negativamente aos quesitos formulados, sendo fundamental para a correcta tramitação dos
processos judiciais que esses sinais sejam deixados bem visíveis para que as partes possam
reagir pelos meios de que dispõem e para que o Tribunal ad quem possa sindicar
correctamente a decisão impugnada.
Num processo em que uma tão grande riqueza de depoimentos se colhe da simples
leitura das transcrições feitas a partir das gravações, de modo algum se compreende a opção
manifestada na motivação da decisão sobre a matéria de facto caracterizada pela sua natureza
genérica, tabelar, enfim, vazia de conteúdo, aliás, bem longe da prática que, ao abrigo do novo
regime, se constata pela análise dos processos que sobem a esta Relação.

318
Nótula sobre a Jurisdição Cível

Noutra situação alertei para o uso incorrecto dessa prática:


“Demandando a lei que o juiz, no final da audiência de discussão e julgamento, proceda à
análise crítica das provas produzidas e que especifique os fundamentos que se revelaram
decisivos para a formação sua convicção, não basta (como, aliás, já não bastava
anteriormente) que se enunciem apenas os meios de prova, sem alusão às razões de ciência
invocadas pelas testemunhas ou sem a necessária explicitação dos reais motivos que levaram
o Tribunal a atribuir credibilidade a uns depoimentos e não a outros ou a desvalorizar certos
meios de prova em face de outros que foram produzidos.
Foi, aliás, por causa do prolongado desrespeito desses deveres que o sistema recebeu as
mais severas críticas e que determinaram a alteração da lei processual civil.
Por isso, o necessário acatamento da lei positiva, associado à necessidade de garantir a
transparência das decisões judiciais, impõe um maior esforço na racionalização do processo de
formação da convicção, sendo ilegítimo esconder, por detrás de meras justificações formais, os
reais motivos da decisão, ou optar pela mera enunciação dos meios de prova, sem qualquer
concretização que deixe transparecer o esforço desenvolvido na execução da tarefa de
apreciação da prova.
Que se leia o que a este respeito tem sido escrito ultimamente acerca do dever de
fundamentação das decisões judiciais, reparando, por exemplo, naquilo que ensina Teixeira de
Sousa, para quem “o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das
regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela
convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da
decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz,
mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da
fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente”.
Atente-se ainda no que ensina Lebre de Freitas, para quem “o tribunal deve, por exemplo,
explicitar porque acreditou em determinada testemunha e não em outra, porque se afastou
das conclusões dum relatório pericial para se aproximar das de outro, por que razão o
depoimento de uma testemunha com qualificações técnicas o convenceu mais do que um
relatório pericial divergente ou por que é que, não obstante vários depoimentos produzidos
sobre certo facto, não se convenceu de que ele se tivesse realmente verificado”.
Ou o que também a este respeito escreve Lopes do Rego quando refere que o juiz deve
proceder à indicação dos fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, com
especificação dos meios de prova e das razões ou motivos substanciais por que relevaram ou
obtiveram credibilidade.

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Nótula sobre a Jurisdição Cível

Afinal, razões que já eram anunciadas por Antunes Varela, para quem mesmo antes da
reforma do processo civil já se impunha a indicação das razões de credibilidade ou da força
decisiva reconhecida aos meios de prova, de modo que, por exemplo, havendo depoimentos
testemunhais contraditórios sobre a mesma ocorrência, o Tribunal necessitaria de indicar as
razões por que preferiu o depoimento A ao depoimento B.
Neste contexto, impondo-se, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, que se
estabeleça o fio condutor entre os meios de prova usados na aquisição da convicção
(fundamentos) e a decisão da matéria de facto (resultado), fazendo a apreciação crítica
daqueles, nos seus aspectos mais relevantes, a decisão encontrar-se-á viciada quando não
forem observadas as regras contidas no art. 653º, nº 2.”.

l) Não valorização autónoma de documentos sem força probatória plena.


Por diversas vezes verifiquei a recusa de apreciação livre de meios de prova objectivos,
como os documentos particulares, como se houvesse necessidade de invariavelmente ser
produzida prova testemunhal sobre os mesmos factos.
Ora, tais documentos, quando não estejam cobertos por força probatória plena
decorrente do reconhecimento de determinados factos, estão sujeitos a livre apreciação pelo
juiz. Sem embargo dos casos em que sejam impugnados, não existe qualquer regra que
imponha que o seu teor seja corroborado por testemunhas, prática que em grande parte é
responsável pelo relevo excessivo que acaba por ser atribuído à prova testemunhal, mesmo
em situações em que não seria natural que a mesma fosse produzida.

m) Adesão a uma tese jurisprudencial minoritária, em vez da tese largamente maioritária.


O juiz não está sujeito à jurisprudência dos Tribunais Superiores. Mas, sem embargo da
autonomia decisória que lhe é atribuída, é natural que essa jurisprudência constitua um
referencial importante, designadamente quando seja maioritária e mais ainda quando seja
sustentada em Acórdão de Uniformização do Supremo Tribunal de Justiça. Em qualquer dos
casos, a eventual divergência não se justifica por si só, devendo ser o resultado de uma firme
convicção que não corresponda simplesmente a uma atitude de rebeldia ou de voluntarismo
que, além de potenciar o tratamento diferenciado de questões idênticas, abra uma brecha
escusada no vector da certeza do Direito.
Num caso em que estava em discussão a questão da necessidade de protesto da letra em
relação ao avalista do aceitante, com resposta negativa praticamente unânime na

320
Nótula sobre a Jurisdição Cível

jurisprudência e na doutrina, mas em que na sentença recorrida se enveredara, sem


justificação alguma, pela tese manifestamente minoritária, expressei o seguinte:
“Cumpre deixar claro que não é o facto de a decisão apelada revelar a adesão a uma tese
minoritária que constitui fundamento primário de repúdio. A exclusiva obediência dos juízes à
Lei, nos termos do art. 4º do EMJ, transporta consigo a possibilidade e a legitimidade de uma
opção divergente, desde que, em consciência, seja julgada mais adequada. Ponto é que a
solução seja metodologicamente sustentável em face dos critérios de interpretação normativa.
A Jurisprudência, no seu sentido mais lato, que abarca também a Doutrina, não constitui
fonte imediata do Direito. Por isso, inexiste imposição de obediência a entendimentos, ainda
que maioritários, sendo sustentável a defesa de teses contrárias, desde que fundadas em
sólida e ponderada argumentação.
Diga-se ainda que a evolução do Direito, através da Jurisprudência, pode exigir o sacrifício
de soluções aparentemente estabilizadas mas que, por exemplo, correspondam a uma mera
cristalização de entendimentos que se revelem insustentáveis em face das circunstâncias que
se verificam no momento da aplicação da lei aos factos, nos termos do art. 9º do CC.
Todavia, sem embargo da verificação de justificados motivos de divergência, não poderá
deixar de se ponderar também a necessidade de contribuir para a aplicação uniforme do
Direito, ponderando o valor da segurança jurídica que só se consegue quando se respeita o
factor da previsibilidade.
É o que decorre do art. 8º, nº 3, do CC, segundo o qual “nas decisões que proferir, o
julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de
obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, norma que visa fundamentalmente
evitar interpretações casuísticas e que vincula o juiz a adoptar, em concreto, a solução que
perfilharia perante casos semelhantes, com o apelo ao princípio da igualdade na resolução dos
conflitos de interesses que conjugam idênticas razões de facto e de direito.
A liberdade de julgamento que constitui um dos pilares do nosso ordenamento jurídico,
não prescinde da ponderação séria dos resultados e da necessidade de se atentar também
noutros valores fundamentais em qualquer Estado de Direito, tais como a segurança jurídica, a
certeza do Direito, a justiça material ou a eficácia do sistema.
Razões de ordem ética ou deontológica (inconfundíveis com pura subserviência
intelectual ou com uma postura acrítica relativamente a opiniões alheias) deverão ser
convocadas para que possam existir os necessários ajustamentos.
Por isso, se o sentido de uma determinada norma recebe, em determinado
circunstancialismo, a generalizada aceitação da jurisprudência e da doutrina, mais se impõe

321
Nótula sobre a Jurisdição Cível

uma atitude reflexiva que evitem soluções que, no contexto judiciário, acabem por constituir
verdadeiras decisões surpresa.

Assim, a adesão a uma tese minoritária, sem argumentação jurídica substancialmente


convincente, num quadro fáctico que não contém qualquer circunstância que apele a um
outro sentido, para além da falta de apoio na letra da lei, conduziria a uma quebra da
uniformidade na interpretação e aplicação da lei que não encontra no caso qualquer razão
justificativa”.

n) Opção por uma solução de cariz formal, em lugar de outra de natureza substancial.
Considero paradigmática a situação que a seguir relato emergente de um litígio em redor
de um contrato de seguro de grupo, do Ramo Vida, em que se colocava a questão da
legitimidade activa do segurado, e onde deixei expresso o seguinte:
“O simples facto de a R., empresa seguradora, integrar o mesmo grupo do Banco
financiador deveria ter servido de travão a uma solução como a que decorre da decisão
agravada e cujo pendor formal da argumentação não pode deixar de ser realçado.
Considerar-se que relativamente à relação material controvertida era unicamente o Banco
que concedeu os créditos e que foi constituído beneficiário do seguro o detentor de
legitimidade para reclamar a liquidação do seguro de vida constitui um resultado
insustentável, na medida em que a correspondente absolvição da instância, com fundamento
na ilegitimidade dos AA., acabaria por se traduzir em benefício exclusivo da seguradora que
integra o grupo económico do Banco.
Potenciar-se-ia, assim, uma situação paradoxal: mesmo que fosse incontroversa a
verificação de todos os pressupostos da exigibilidade do capital seguro, continuaria a recair
sobre os AA. a obrigação de pagamento das prestações acordadas, a qual apenas cessaria se e
quando a entidade bancária resolvesse accionar a seguradora ... do seu próprio grupo.
Ao invés do que ficou expresso na decisão recorrida, deve reconhecer-se aos AA. um
interesse legítimo, porque directo e não meramente reflexo, para, na presente acção,
discutirem com a R. a verificação ou não dos pressupostos de que depende o accionamento do
referido contrato de seguro.
O reconhecimento da legitimidade processual, como mero pressuposto formal, não
implica naturalmente a procedência da pretensão. Basta que permita a manutenção da
instância para no âmbito da posterior tramitação se discutirem e apurarem os aspectos ligados

322
Nótula sobre a Jurisdição Cível

ao mérito da pretensão material. Repare-se que, no caso concreto, os AA. não reclamam para
si o pagamento do capital seguro. No seu segmento essencial, pretendem apenas que o
mesmo seja entregue ao banco mutuante para ser aplicado na liquidação dos empréstimos
que perante o mesmo contraíram.
Ora, na medida em que, pela eventual procedência da acção, os AA. vejam saldadas as
dívidas que assumiram perante o Banco, ficarão definitivamente exonerados do pagamento
das prestações que ficaram convencionadas nos contratos de mútuo, pois que, nos termos do
art. 767º do CC, nada obsta a que a prestação seja feita por terceiro. A presença do referido
interesse directo na demanda torna-se ainda mais evidente quando se verifica que os
contratos de mútuo celebrados com o Banco beneficiário do seguro ficaram garantidos por
hipoteca, sendo que o pagamento do capital mutuado, por via do accionamento do contrato
de seguro, é passível de determinar a extinção dessa garantia real, nos termos do art. 730º do
CC”.
Noutro caso – processo de insolvência – decidi que:
“Para além de se revelar a insuficiência de bens, verifica-se que o requerido, tendo para
isso oportunidade, não se esforçou por demonstrar que, apesar do diferencial aparente entre
o seu activo e o seu passivo, reúne condições (v.g. ao nível da obtenção de crédito, de
desenvolvimento de negócios futuros, etc.) para cumprir com as suas obrigações, maxime a
obrigação exequenda, elidindo, deste modo, a presunção de insolvência reflectida por aquele
factoíndice.
Tendo sido dada ao requerido a possibilidade de ilustrar com factos e meios de prova uma
diversa situação patrimonial ou a verificação de circunstâncias demonstrativas de uma
situação de solvência, nos termos e para efeitos do nº 3 do art. 30º, do CIRE, nada adiantou
para além de confirmar a titularidade da fracção hipotecada e de alegar que a mesma ainda
não foi penhorada. Nem sequer alegou, e tão pouco provou, que o seu valor seja suficiente
para suportar o pagamento das suas dívidas, facto de todo implausível tendo em conta, por
um lado, a natureza da bem (fracção autónoma), a sua localização e a pendência de hipotecas
sobre a mesma.
Nestas circunstâncias, não parecem ajustadas as conjecturas de valor meramente
especulativo formuladas pelo Mº Juiz a quo quando aludiu à possibilidade de a única fracção
referida potenciar o cumprimento das obrigações do requerido.
Se nem o requerido, conhecedor da concreta realidade, foi a tal ponto, muito menos essa
possibilidade, directamente contrariada pelos dados da experiência relacionados com a
natureza e localização da fracção autónoma, poderia ser adiantada pelo Tribunal.

323
Nótula sobre a Jurisdição Cível

Também não se admitem semelhantes conjecturas feitas a partir de uma eventual


possibilidade de a dívida exequenda ser suportada pelo património integrante da massa
insolvente da T. aceitante da letra em que o requerido interveio como avalista e que
entretanto foi declarada em estado de insolvência.
O quotidiano dos tribunais, maxime quando lida com processos de insolvência, não
permite que se façam tais extrapolações sobre a capacidade da massa insolvente para suportar
as dívidas que na mesma se integram. Muito menos tal conclusão pode ser extraída num caso
como o presente em que se ignora por completo se existe algum activo nessa massa insolvente
ou qual a sua dimensão em termos absolutos e em relação com o passivo existente”.

o) Demasiada morosidade em determinados processos que exigem tratamento


preferencial, como os procedimentos cautelares ou processos relativos a menores.
Não se compreende de modo algum que certos processos a que legalmente é atribuída
natureza urgente acabem por ter um tratamento semelhante aos demais no que concerne à
sua tramitação e morosidade.
Incompreensão que acompanha uma certa passividade em relação aos incidentes que são
suscitados ou em relação às diligências probatórias que são requeridas, mesmo quando a lei
prescreve que o juízo decisório seja formulado a título provisório e, por isso, passível de
posterior modificação quando, na acção principal, for apreciado o litígio.

p) Excessiva amplitude dos relatórios das sentenças, com extensas reproduções dos
articulados ou com relato de todas as incidências processuais, contrariando a
metodologia prevista na norma que regula a sentença e que claramente aponta para a
sintetização.
q) Falta de equilíbrio na fundamentação, variando entre a fundamentação excessiva e a
ausência de fundamentação ou a omissão de pronúncia.
Sendo obrigatória a fundamentação das decisões judiciais, o certo é que o maior ou
menor investimento nessa área exige que se abrevie a fundamentação em casos em que tal se
justifique (falta de efectiva litigiosidade, falta de oposição, carácter repetitivo da questão
apreciada, pacificação da solução a nível doutrinal ou jurisprudencial), guardando o maior
investimento (através de maior investigação, estudo e reflexão) para questões ou casos que
verdadeiramente exijam uma pronúncia judicial.

324
Nótula sobre a Jurisdição Cível

r) Rejeição oficiosa da execução sem que a questão tenha sido levantada e sem que os
autos revelem elementos suficientes.
Numa questão desta natureza tive a oportunidade de enunciar o seguinte:
“Mas uma tal intervenção tem de ser necessariamente encarada com parcimónia por
parte do juiz, ponderando sempre o facto de ao executado ter sido dada a oportunidade de
deduzir oposição e reservando a actuação de natureza complementar para situações-limite em
que a irregularidade da acção executiva não deixe margem para dúvidas. O uso do mecanismo
do art. 820º do CPC tem que ser necessariamente reservado para situações excepcionais em
que a ocorrência de alguma das situações abstractamente previstas decorra da mera análise
dos elementos fornecidos pelos autos, sem necessidade de intervenção judicial, de pendor
inquisitório”.

s) Ausência de um discurso autónomo em relação às questões sob apreciação, com mera


reprodução de entendimentos alheios extraídos de acórdãos ou de obras jurídicas,
ainda assim muitas vezes sem menção das fontes.
Mais do que seria desejável, são frequentes estas situações. A facilidade de recolha de
elementos via Internet propicia muitas vezes o simples aproveitamento de considerações
jurídicas, nem sempre apropriadas às circunstâncias do caso e, além disso, sem o cuidado de
identificar a sua origem.
A situação é mais frequente quando se trata de reproduzir argumentos extraídos de
acórdãos (alguns deles afectados pelo mesmo vício) e torna-se ainda mais intolerável quando
são apresentados como próprios argumentos que pura e simplesmente são copiados de obras
jurídicas.

t) Colocação de entraves injustificados à antecipação da resolução definitiva do litígio no


âmbito do procedimento cautelar de apreensão de bem na locação financeira.
Sobre esta matéria já expressei o seguinte:
“O presente caso é verdadeiramente paradigmático no que concerne à inversão de
valores que o legislador estabeleceu e que aos tribunais cumpre preservar. A decisão deixa
clara a sobrevalorização de aspectos de natureza puramente tributária, claramente marginais
e acesso rios, em detrimento dos de ordem substancial que deveriam se prioritariamente
atendidos.
Revela ainda que certos entendimentos, de pendor burocratizante, acabam por impedir a
consecução dos objectivos do processo civil reflectidos através de princípios gerais que

325
Nótula sobre a Jurisdição Cível

privilegiam, com base em padrões de eficácia, de economia de meios e de simplificação


processual, a substância sobre a forma.
Na tese assumida na decisão recorrida considerou-se que a antecipação do juízo definitivo
da acção constituía um incidente sujeito ao prévio pagamento de uma taxa de justiça não
abarcada pela taxa de justiça prevista para a apresentação do requerimento inicial do
procedimento cautelar.
Trata-se de conclusão sem base legal, não se compreendendo o esforço desenvolvido
para sustentar uma resposta de todo inadequada aos objectivos propostos pelo legislador
quando, nos termos concretizados pelo art. 21º, nº 7, do Dec. Lei nº 145/95, de 24-6, e no
seguimento do que já fora anunciado pelo art. 16º do Dec. Lei nº 108/06, de 8-6 (que prevê o
regime processual experimental), promoveu o aproveitamento do procedimento cautelar para
a emanação de um juízo definitivo sobre a pretensão material, dispensando a propositura de
uma acção declarativa.
Com tal medida o legislador pretendeu garantir a eficácia, a economia e a celeridade dos
meios processuais, não fazendo sentido impedir a obtenção de tais efeitos a partir da duvidosa
invocação de aspectos de natureza meramente tributária.
Com efeito, o reclamado juízo definitivo surge enxertado no próprio procedimento
cautelar que, apesar disso, não perde a sua natureza, de modo que a taxa de justiça paga pela
interposição de tal procedimento abarca também a actividade jurisdicional correspondente à
eventual prolação da decisão definitiva”.

António Santos Abrantes Geraldes

326
Da sentença cível

[Manuel Tomé Soares Gomes]


Da sentença cível

Da sentença cível
Manuel Tomé Soares Gomes

Nota Introdutória

Ao elaborar este trabalho, intitulado Da Sentença Cível, no contexto da recente Reforma


do Código de Processo Civil, aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, ressoaram, no
meu espírito, as palavras do proeminente biólogo e naturalista Edward O. Wilson, escritas no
seu livro, em tradução portuguesa, A Conquista da Terra – A nova história da evolução
humana, 2012, quando observa que:

“Hoje o homem é como um sonâmbulo, preso entre as fantasias do sono e o caos do


mundo real. O espírito procura mas não logra encontrar o local e o tempo exacto. Criámos
uma civilização ao estilo de Guerra das Estrelas, com emoções da Idade da Pedra, instituições
medievais e tecnologia quase divina”.

Tais palavras exprimem bem o que hoje sentimos, ao sermos agitados pelos ventos da
Reforma do CPC, em busca de novos procedimentos para lidarmos com comportamentos
eivados de emoções remotas, ante a transmutação de um quadro normativo que se vem
revelando desfasado dos nossos tempos e, quiçá, inebriados pelas invenções tecnológicas
emergentes da “Revolução Informática” que, senão olímpica, pelo menos, reveladora de um
mundo virtual nunca dantes imaginado.
Como é sabido, em geral, a sentença tem por função obter o conhecimento da matéria
dos litígios e proceder à sua justa resolução. É, pois, um ato de racionalidade prático-jurídica,
através do qual o juiz julga os factos provados e os não provados e, nessa base, convoca o
quadro normativo aplicável, declarando o direito em concreto para valer com força de caso
julgado.
Ora, a produção de um conhecimento sólido, qualquer que seja a sua natureza, requer a
prévia definição dos parâmetros por que se rege a sua elaboração, pois deles deriva a
consistência e validade do conhecimento assim produzido. O método a seguir é, por
conseguinte, uma garantia de qualidade do resultado que se pretende.

329
Da sentença cível

Foi nesta linha de pensamento que procurei orientar o presente trabalho na mira de
contribuir, de forma modesta, mas com apelo à minha experiência profissional, para a reflexão
que se impõe sobre a economia do ato de julgar.
Estou em crer que a tão desejada simplificação das decisões judiciais melhor se alcança
com o aprimoramento racional do método decisório do que por via de simplismos redutores,
ao sabor de experimentalismos imaginativos, algo difusos, que, em vez de conduzir a uma
compreensão mútua dos critérios do agir processual, pode gerar um clima de incerteza e de
desconfiança entre os agentes judiciários e, em última análise, aos olhos dos cidadãos em
geral.
Não pretendo que as ideias e observações aqui veiculadas sejam entendidas como
modelos de actuação. Longe disso, procuro tão só partilhar o empenhamento numa aposta de
maior racionalidade no agir judiciário que contribua para uma realização mais célere e
proficiente da Justiça. É certo que essa racionalidade não se deve cingir à singularidade
estrutural do ato de julgar, mas antes abarcar todo o fenómeno processual como quadro
complexo e dinâmico em que se edificam os alicerces da decisão. Todavia, será a partir do
plano decisório que talvez melhor se descortine e perspetive a racionalidade teleológica do
processo.
Ganhar essa aposta depende do esforço comum. Deixo-vos o meu lance, nessa jogada, e
fico na expectativa de que seja coberto por melhores trunfos.
Talvez assim possamos, em conjunto, despertar do sono das fantasias e afrontar o
aparente caos do mundo real.

Da sentença cível

1. Função e Natureza da Sentença

A sentença 1 é, na sua essência, um ato de racionalidade prático-jurídica, através do qual o


juiz julga os factos provados e os não provados e, com base naqueles, convoca o quadro
normativo aplicável, declarando o direito em concreto, com força de caso julgado. Consiste,

1
Segundo o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de JOSÉ PEDRO MACHADO, a palavra sentença
deriva do vocábulo latino sententia, que significa, etimologicamente, “sentimento, opinião, ideia, maneira
de ver, opinião (dada no senado), voto, sufrágio (dado nos comícios); falando de juízes: sentido, significação,
ideia, pensamento ...”. De notar que o termo sententia, no sistema das legis actiones do Direito Romano
Antigo, “significava ... simplesmente a opinião ou a convicção jurídica do iudex privatus sobre a questão
litigiosa” – vide SANTOS JUSTO, in Direito Privado Romano – I Parte Geral, Coimbra Editora, 2000, pag. 303.

330
Da sentença cível

pois, na tomada da decisão final sobre o objeto da causa principal ou do procedimento


cautelar ou incidental que tenha a estrutura de uma causa, como decorre da noção dada no
n.º 2 do artigo 152.º do Código de Processo Civil (CPC), na redacção dada pela Lei n.º 41/2013,
de 26 de junho 2.
Por sua vez, a fase processual da sentença consiste na etapa terminal do processo
declarativo, em primeira instância, que tem por finalidade a prolação da sentença, mas
compreende também os trâmites subsequentes para a respetiva notificação às partes, bem
como os procedimentos para eventual retificação, suprimento de nulidades e reforma da
mesma, quando admissível, perante o juiz que a proferiu. Já a impugnação daquela decisão
perante um tribunal superior constitui uma nova fase processual – a fase de recurso.

2. Do Objeto da Sentença
Os requisitos relativos ao delineamento periférico do objeto da sentença têm a sua sede
legal, essencialmente, nos artigos 5.º e 608.º a 612.º do CPC.
Assim, a sentença tem por objecto:
a) em primeira linha, as questões processuais, mormente as que possam determinar a
absolvição da instância – n.º 1 do artigo 608.º do CPC;
b) em seguida, as questões de mérito suscitadas pelas partes e as que a lei permita ou
imponha que o juiz conheça oficiosamente, excetuadas as que se considerem
prejudicadas pela solução dada a outras – n.º 2 do citado artigo 608.º.
Para tal efeito, por questão entende-se o efeito pretendido pelo autor (pedido) e os
respectivos fundamentos (causa de pedir), bem como as exceções dilatórias ou perentórias e
seus fundamentos, arguidas ou de que cumpra ao juiz conhecer oficiosamente 3. No domínio
de cada questão em apreço, podem aduzir-se diversos argumentos ou linhas de raciocínio a
sustentar o enquadramento jurídico pertinente à solução do caso, mas que não constituem em
si mesmo uma questão. Ao juiz impõe-se apreciar todas as questões em causa, não tendo de
ocupar-se de todos os argumentos expendidos pelas partes, mas somente dos que se afigurem
relevantes para a dilucidação dos pontos controvertidos.

2
Doravante, a indicação de artigos do CPC ou de artigos sem qualquer outra menção refere-se ao Código de
Processo Civil português na redação dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.
3
Sobre a noção de questões, mormente para os efeitos dos atuais artigos 608.º e 615.º n.º 1, alínea d), do
CPC, correspondentes, respetivamente aos artigos 660.º e 668.º, n.º 4, do CPC de 1939, vide, por todos,
ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pp. 51 a
58.

331
Da sentença cível

No âmbito das questões prejudicadas pela solução dada a outras, importa destacar
aquelas que devem ser apreciadas a título subsidiário ou de reforço. Se, por exemplo, se
concluir pela prescrição do direito peticionado, mas também tiverem sido invocadas outras
exceções perentórias igualmente procedentes, é recomendável que o juiz as aprecie, ainda
que a título subsidiário, em particular quando a questão da prescrição corra risco de insucesso
em eventual recurso que se vier a interpor; o mesmo se dirá quando se conclua, desde logo,
pela improcedência do fundamento do direito invocado, mas em que tenha sido também
suscitada a exceção de prescrição e que esta se mostre procedente, podendo assim ser
tomada em consideração, a título subsidiário.
Outrossim, quando se invoquem causas de pedir concorrentes ou múltiplas 4, deverão ser
todas objeto de apreciação, mesmo que qualquer delas determine, por si só, a procedência da
acção, até porque a procedência de algumas não prejudica o conhecimento das demais, se
tivermos em linha de conta que está também em causa o âmbito ou a latitude do fundamento
do caso julgado.
É certo que, nos termos dos n.º 2 e 3, do artigo 665.º, do CPC, se o tribunal recorrido
deixar de conhecer de certas questões por considerar que ficam prejudicadas pela solução
dada ao litígio, o tribunal de recurso deve conhecer delas, se entender que conduzem à
procedência do recurso e dispuser dos elementos necessários para tal, ouvindo previamente
as partes. De qualquer modo, a apreciação feita logo pelo tribunal de 1.ª instância dá mais
garantias de efetivação do princípio do duplo grau de jurisdição e evita a dilação decorrente da
reabertura do contraditório.
Em rigor, só ficam verdadeiramente prejudicadas as questões cuja apreciação seja
incompatível ou destituída de qualquer alcance útil, na perspetiva da solução dada ao litígio.
Por exemplo, se houver lugar à absolvição da instância não se poderá entrar na apreciação do
mérito da causa, salvo na hipótese prevista no n.º 3, do artigo 278.º, do CPC. Também caso se
conclua pela procedência de uma exceção dilatória ou de uma excepção perentória, com a
consequente absolvição do réu da instância ou absolvição do réu do pedido, respetivamente,
não tem, em princípio, qualquer efeito prático conhecer da mera improcedência de outras
exceções, na medida em que desta improcedência não se retiraria qualquer alcance útil da
decisão do julgado.

4
Importa não confundir causas de pedir concorrentes ou múltiplas com a causa de pedir complexa: no
âmbito daquelas, cada causa de pedir serve de fundamento autónomo à pretensão deduzida, enquanto que
a causa de pedir complexa é corporizada numa factualidade composta de vários elementos que, na sua
aglutinação, constituem o fundamento da pretensão.

332
Da sentença cível

Quanto à delimitação do objeto da sentença, o juiz:


a) Deve confinar-se ao âmbito das pretensões formuladas pelas partes, aferível pelo
efeito prático-jurídico pretendido, não podendo condenar o demandado em
quantidade superior ou em objecto diverso do peticionado, como decorre dos artigos
3.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, e 609.º, n.º 1, do CPC; pode, porém, qualificar o efeito
pretendido em base legal diversa da indicada pelo autor, nos termos que abaixo se
analisarão, e em particular nas hipóteses previstas no n.º 3, do artigo 609.º
(manutenção/restituição da posse) e no artigo 901.º, n.º 1 (interdição/ inabilitação);
b) Está sujeito aos factos que as partes alegam a título de causa de pedir ou como
fundamento de exceções (art.º 5.º, n.º 1, CPC), mas deve tomar em consideração:
(i) - os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, nos termos do artigos
5.º, n.º 2, alínea a), e 411.º e 413.º, do CPC,
(ii) – os factos que, embora essenciais à procedência da ação sem implicar alteração da
causa de pedir, sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado
e resultem da instrução, desde que sobre eles tenham tido a oportunidade de se
pronunciar - art.º 5.º, n.º 2, alínea b);
(iii) – os factos notórios e os que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício
das suas funções – artigos 5.º, n.º 2, al.c), e 412.º;
(iv) – e ainda os respeitantes ao uso anormal do processo, nos termos do art.º 612.º;
c) Pode conhecer, oficiosamente, de exceções perentórias que não dependam da
invocação do interessado (as chamadas exceções impróprias), desde que os factos que
lhe servem de fundamento constem do processo – artigos 413.º, 2.ª parte, e 579.º, a
contrario sensu, do CPC;
d) Tem poderes de indagação alargada sobre factos não alegados, nos casos previstos no
artigo 572.º, 2.ª parte, do CC e nos artigos 360.º, n.º 4 (incidente de liquidação), 901.º,
n.º 4, (processo especial das interdições e das inabilitações) e 986.º, n.º 2 (processos
de jurisdição voluntária), todos do CPC;
e) Não está, porém, sujeito ao enquadramento normativo invocado pelas partes,
podendo indagar, interpretar e aplicar as normas jurídicas que considerar adequadas à
solução do caso – na linha da velha máxima iura novit curia -, desde que se inscrevam
no âmbito do efeito prático-jurídico pretendido, como resulta das disposições
conjugadas dos artigos 5.º, n.º 3, e 608.º e 609.º, do CPC.
No que respeita ao enquadramento jurídico, quando se mostre ao juiz aplicável um
quadro normativo não equacionado pelas partes, deve ser dada, previamente, a estas

333
Da sentença cível

oportunidade para se pronunciarem, por forma a evitar decisões-surpresa e a salvaguardar o


princípio do contraditório, nos termos do n.º 3, do artigo 3.º, do CPC.
Quando tiver sido deduzido pedido genérico, ao abrigo do disposto no artigo 556.º, do
CPC, ou, sendo deduzido pedido específico, não houver elementos para fixar o respetivo
objeto ou quantidade, a sentença condenará o réu no que vier a ser liquidado em incidente
declarativo posterior, nos termos dos artigos 358.º, n.º 2, 360.º, n.º 3 e 4, e 609.º, n.º 2, do
CPC. No âmbito deste incidente de liquidação póstumo, incumbe ao juiz fixar a quantia que se
mostre devida, ainda que tenha de recorrer a indagação oficiosa de prova, nos termos do n.º
4, do artigo 360.º, do CPC e, em última análise, a juízos de equidade, em conformidade com o
preceituado no n.º 3, do artigo 566.º, do CC.

3. Da Fase da Sentença
3.1. Preliminar

Como foi referido, a fase da sentença compreende a sequência dos atos processuais
respeitantes à prolação da decisão final da causa e à sua subsequente notificação às partes,
bem como os meios de eventual retificação e impugnação perante o juiz que a proferiu.
Esquematicamente, a fase processual em referência:
• tem início, após o encerramento da audiência final, com a conclusão do processo ao
juiz, nos termos do n.º 1, do art.º 607.º, do CPC;
• atinge o seu momento nobre com a prolação da sentença;
̶ compreende também os procedimentos subsequentes da secretaria relativos ao
registo da sentença e à sua notificação às partes (arts. 153.º, n.º 4, 220.º, 252.º e
253.º, do CPC);
• e pode comportar ainda procedimentos eventuais de retificação, suprimento de
nulidades e reforma da sentença, previstos nos artigos 613.º a 617.º, do CPC.

3.2. Procedimentos
3.2.1. Conclusão do processo ao juiz

Encerrada a audiência final, a secretaria deve fazer o processo concluso ao juiz para
proferir sentença, nos termos dos artigos 162.º, n.º 1, e 607.º, n.º 1, do CPC.

334
Da sentença cível

3.2.2. Elaboração da sentença


3.2.2.1. Prazo

No domínio do processo declarativo comum, o juiz deve proferir a sentença, por escrito,
dentro do prazo máximo de 30 dias, mas se não se julgar suficientemente esclarecido, pode
ainda ordenar a reabertura da audiência para ouvir as pessoas que entender ou ordenar as
diligências que tenha por necessárias (art. 607.º, n.º 1, do CPC). Nos processos de jurisdição
voluntária, a sentença deve ser proferida no prazo de 15 dias (art.º 986.º, n.º 3).
Nos incidentes da instância e nos procedimentos cautelares, a decisão final deve ser
proferida de imediato, por escrito, após a produção da prova seguida de uma breve alegação
oral (artigos 295.º e 365.º, n.º 3, do CPC); mas nos alimentos provisórios e no arbitramento de
reparação provisória, a sentença é proferida oralmente, a consignar na ata, logo após a
produção da prova (artigos 385.º, n.º 3, e 389.º, n.º 1, do CPC).
Mesmo nas hipóteses em que disponha do prazo máximo acima referido, o juiz deverá
gerir essa disponibilidade no sentido de ajustá-la ao grau de complexidade ou de simplicidade
de cada caso, reservando mais tempo para os casos complexos que careçam de estudo
aprofundado e despendendo menos tempo nos casos mais simples ou de ocorrência mais
repetida.
Ainda neste capítulo, há que referir a norma inovadora do n.º 4, do art.º 605.º, do CPC,
que reforça o princípio da plenitude da assistência do juiz, ao determinar que “nos casos de
transferência ou promoção, o juiz elabora também a sentença”, impondo assim a identidade
do juiz que realize o julgamento e do que profere a sentença, o que se justifica, além do mais,
pela simples razão de que a decisão de facto passa agora a estar integrada na sentença.

3.2.2.2. Requisitos externos da sentença

A sentença deve, em regra, ser proferida por escrito, designadamente mediante o uso de
meios informáticos, e deve ser datada e assinada pelo próprio punho do juiz, o qual rubricará
também as folhas não manuscritas, como se preconiza nos artigos 153.º, n.º 1, do CPC. A
assinatura do juiz pode ser aposta com o nome abreviado, mas não com a mera rubrica (artigo
153.º, n.º 2, do CPC).
Porém, segundo o artigo 19.º, da Portaria n.º 280/2013, de 26 e agosto 5, em vigor desde
01-09-2013, os atos dos magistrados são praticados em suporte informático, com aposição de

5
Esta Portaria revogou as anteriores Portarias n.º 114/2008, de 06-02, e n.º 109/2006, de 13-10.

335
Da sentença cível

assinatura electrónica qualificada ou avançada, que substitui e dispensa, para todos os efeitos,
a assinatura autografada em suporte de papel.
Nalguns casos a sentença deve ou pode ser proferida oralmente no decurso da audiência,
ficando então consignada na respetiva ata, cuja assinatura pelo juiz garante a fidelidade da
reprodução (art. 153.º, n.º 3, do CPC), como, por exemplo, na hipótese prevista no artigo
385.º, n.º 3, do CPC.
A redação deve ser expressa em língua portuguesa (art. 133.º, n.º 1, do CPC) e deve
pautar-se pela clareza do conteúdo, observando-se o disposto nos artigos 131.º, n.º 3 e 4, e
153.º, n.º 1, do CPC, quanto às ressalvas e à utilização de abreviaturas e de algarismos.

3.2.2.3. Estrutura lógica da sentença


3.2.2.3.1. Quadro geral

A estrutura da sentença integra, nos termos definidos nos artigos 607.º, n.º 2 e 3, e 608.º,
do CPC, os seguintes segmentos:
a) O relatório a identificar as partes e o objeto do litígio, bem como a enunciar as
questões a resolver;
b) O saneamento, se for caso disso, em sede de conhecimento de exceções dilatórias ou
nulidades processuais;
c) A fundamentação de facto e de direito, que compreende:
(i) – em primeira linha, a enunciação dos factos provados e dos factos não provados;
(ii) – seguidamente, a motivação do julgamento de facto mediante a análise crítica das
provas e a especificação dos fatores que foram decisivos para a convicção sobre cada
facto, com a indicação dos concretos meios de prova convocados para tal efeito;
(iii) – e a rematar com a fundamentação de direito, indicando, interpretando e
aplicando as normas jurídicas correspondentes;
d) A decisão ou dispositivo, contendo o juízo de procedência ou de improcedência da
ação e da reconvenção, quando deduzida, bem como os consequentes comandos e
efeitos a decretar, em caso de procedência, e ainda a condenação nas custas que
sejam devidas; se for julgada procedente alguma exceção dilatória, a decisão consistirá
no juízo de absolvição do réu, ou eventualmente do reconvindo, da respetiva instância.

336
Da sentença cível

A este propósito, importa referir que, apesar de a lei ser omissa relativamente a estrutura
lógica dos despachos 6, para além do disposto, em geral, nos artigos 131.º, 133.º, 153.º e 154.º,
do CPC, afigura-se conveniente seguir o esquema paradigmático da sentença, com as devidas
adaptações simplificadoras, na medida em que tal esquema se revele adequado à
compreensibilidade da decisão, o que, obviamente, deixa de fora os despachos de mero
expediente.
Com alguma frequência, se proferem despachos que, começando logo pela decisão,
alinham, de seguida, a respetiva análise argumentativa, sem uma definição prévia e precisa da
questão a resolver e, quanto vezes, sem fixar sequer o contexto ou as vicissitudes processuais
relevantes.
Assim, na metodologia da elaboração dos despachos ditos jurisdicionais 7, dever-se-á:
a) começar por enunciar a questão a resolver, tal como vem formulada pelas partes ou
for reformulada ou suscitada, oficiosamente, pelo tribunal;
b) seguidamente, fixar os elementos circunstanciais do contexto e das vicissitudes
processuais relevantes para a resolução da questão;
c) depois, proceder à respetiva análise jurídica;
d) por fim, formular a decisão.

Cada um dos segmentos integradores da estrutura da sentença merece abordagem


específica relativamente aos seus perfis e conteúdos e, até em relação a alguns deles, a análise
das suas condicionantes.

6
Só quanto ao regime legal dos vícios dos despachos, o n.º 3, artigo 613.º, do CPC, manda aplicar, com as
necessárias adaptações, o preceituado naquele artigo e seguintes.
7
Os despachos jurisdicionais são as decisões, normalmente interlocutórias, que, não se ocupando da
decisão final de uma causa ou de um incidente com estrutura de causa, versem sobre questões que sejam
susceptíveis de ofender os direitos das partes ou de terceiros, ainda que de natureza puramente processual,
podendo assumir a natureza de: a) - despachos discricionários, se proferidos no uso legal de um poder de
decidir segundo o prudente arbítrio do tribunal (art. 152º, nº 4, do CPC); b) - despachos vinculados, quando
devam ser proferidos segundo critérios de legalidade ou de razoabilidade não confinada ao livre poder
discricionário do tribunal.

337
Da sentença cível

3.2.2.3.2. Desenvolvimento
3.2.2.3.2.1. O relatório

O relatório é a parte inicial ou cabeçalho da sentença, de matriz expositiva, em que, de


forma sintética, são identificadas as partes e o objeto da causa e se fixam ou enunciam as
questões que cumpre ao tribunal apreciar e decidir.
Na economia do relatório, não cabe reproduzir as exposições de facto e as razões de
direito feitas pelas partes nos articulados, nem tão pouco consignar o desenvolvimento
processual, salvo quando se revele útil mencionar alguma vicissitude que complemente os
contornos iniciais da causa 8. Importa somente traçar de forma sucinta o perfil do litígio, ou
seja, indicar a pretensão ou as pretensões formuladas, quanto ao efeito pretendido (o pedido)
e ao quadro genérico da sua fundamentação mediante identificação categorial da respetiva
causa de pedir. Também, de forma igualmente resumida, se indicará a defesa impugnativa,
excetiva ou reconvencional deduzida, devendo esta última ser identificada em termos
similares aos da ação.
A referência às posições substancialmente assumidas pelas partes nos articulados, ou
porventura na audiência prévia, sobre as diversas questões e argumentos em apreço terá
lugar, na medida do que se afigure necessário, no quadro dos tópicos da fundamentação
respeitante à análise fáctico-jurídica.
A linguagem a utilizar na identificação do objeto da causa deve ser, no que for possível, de
preferência, em terminologia de recorte elementar.
Por sua vez, as questões a equacionar versam sobre as pretensões deduzidas, integradas
pelo pedido e pela causa de pedir, incluindo a eventual pretensão reconvencional, e as
exceções invocadas no terreno da defesa ou de que o juiz deva conhecer oficiosamente, nos
termos do art.º 608.º, do CPC. Todavia, no âmbito de tais questões, devem ainda ser
enunciados os tópicos específicos que importe identificar como configuração da grelha da

8
O n.º 1, do art. 659.º, do CPC, na versão anterior à Reforma Intercalar introduzida pelo Dec.-Lei n.º
242/85, de 9 de Julho, exigia que o relatório contivesse, para além de uma exposição concisa do pedido e
dos seus fundamentos, bem como dos fundamentos e conclusões da defesa, de forma resumida as
ocorrências processuais cujo registo pudesse interessar para o conhecimento do litígio e que concluísse pela
descrição da causa tal como tivesse emergido da discussão final, fixando então com precisão as questões a
resolver. Dada a prática de alguma prolixidade na feitura dos relatórios, nomeadamente com a reprodução,
quase integral, do teor dos articulados, a Reforma Intercalar pretendeu imprimir maior simplificação nessa
formalidade e assim obter mais celeridade.

338
Da sentença cível

análise jurídica a empreender 9. Por consequência, aqui a linguagem terá de ser,


necessariamente, de matriz mais técnica, como umbral que é para o discurso jurídico da
fundamentação.
A enunciação na sentença das questões a decidir não fica condicionada pelo teor do
despacho identificativo do objeto do litígio proferido na fase da audiência prévia, previsto no
n.º 1, do artigo 596.º, do CPC. Mas, em caso de se suscitarem questões jurídicas não
envolvidas nesse despacho, devem as partes ser prevenidas, oportunamente, dessa
eventualidade para evitar a ocorrência de uma decisão-surpresa, nos termos do n.º 3, do art.º
3.º, do CPC.

3.2.2.3.2.2. Do saneamento

Antes de entrar no exame do objeto da causa, o juiz deve conhecer das nulidades
processuais ou das questões que determinem a absolvição do réu da instância (falta de
pressupostos processuais), desde que sejam de apreciação oficiosa ou que as partes hajam
arguido, salvo nos casos de preclusão, como os previstos, nomeadamente, nos artigos 97.º, n.º
2, 200.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC. Deve, pois, o juiz assegurar-se de que não foram suscitadas
pelas partes questões prévias ainda por decidir e de que não ocorrem questões dessa natureza
que importem conhecimento oficioso.
Como forma de certificar a observância desse controlo, era prática habitual consignar, de
forma destacada, logo após o relatório, que “a instância mantêm-se válida e regular, não
existindo questões prévias de que cumpra conhecer”, fórmula esta que, embora dispensável,
tem o efeito prático de evitar qualquer distração na atuação daquela função de controlo.
Verificando-se a procedência de exceção dilatória que importe a absolvição do réu da
instância, a sentença assim o declarará, nos termos dos artigos 278.º, 576.º, n.º 2, e 577.º, do
CPC, pondo termo ao processo mediante uma decisão de forma.
Porém, ainda que subsistam exceções dilatórias destinadas a tutelar o interesse de uma
das partes, não se decretará a absolvição da instância se, não existindo outro motivo que obste
ao conhecimento de mérito, tal conhecimento conduzir a uma resolução do litígio

9
O delineamento dessas questões no despacho identificativo do objeto do litígio a que se refere o n.º 1, do
art.º 596.º, do CPC é como que a rosa-dos-ventos, pela qual as partes norteiam o coeficiente de esforço
probatório que lhes incumbe.

339
Da sentença cível

inteiramente favorável a essa parte, como se dispõe no n.º 3, parte final, do artigo 278.º, do
CPC 10.

3.2.2.3.2.3. Da fundamentação

A sentença deverá ser fundamentada através da exposição dos factos relevantes e das
razões de direito em que se estriba a decisão, como impõem os artigos 205.º, n.º 1, da
Constituição e 154.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3 e 4, do CPC.

A fundamentação da sentença desdobra-se:


A – na enunciação, de forma discriminada, dos factos licitamente admitidos por acordo,
provados por documento e por confissão, com força probatória plena, dos factos provados em
resultado da prova livre produzida, declarando-se ainda os factos julgados não provados;
B – na subsequente motivação dos factos que se consideram provados e dos não
provados;
C – por fim, no enquadramento normativo dessa factualidade, na perspetiva da pretensão
do autor e dos meios de defesa.

A – A enunciação discriminada dos factos pertinentes


A enunciação factológica tem por objeto os factos que se consideram admitidos por
acordo, provados por documento ou por confissão, com eficácia probatória plena, bem como
os factos que forem julgados por provados e por não provados, em resultado da prova livre
produzida, mormente na audiência final – artigo 659.º, n.º 3 e 4, do CPC.

Essa enunciação suscita, no entanto, problemas metodológicos, técnicos e práticos, tais


como:
a) o critério de seleção dos factos a enunciar: factos essenciais, simples e complexos, e
factos instrumentais;
b) o critério de aferição da relevância dos factos para a resolução do litígio;

10
Sobre a prevalência da decisão de mérito, vide, TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil,
Lex, 2.ª Edição, Lisboa, 1997, pags. 82 e segs; do mesmo autor, Sobre o sentido e a função dos pressupostos
processuais (Algumas reflexões sobre o dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais na acção
declarativa, ROA nº 49 (1989), pp. 85 e segs..

340
Da sentença cível

c) a questão da necessidade de se formular ou não um juízo probatório específico sobre


os factos instrumentais;
d) a textura vocabular dos enunciados de facto;
e) a segmentação dos factos.

Analisemos, pois, cada um desses problemas.

a) O critério de seleção dos factos a enunciar

Quanto ao critério de seleção dos factos a submeter a juízo probatório, importa reter que
o julgamento da matéria de facto controvertida, submetida a instrução e discussão em
audiência final, sob a forma de temas de prova, deve ser formulado através de juízos
probatórios, tendo por objeto os factos alegados pelas partes nos respetivos articulados ou na
audiência prévia, bem como aqueles de que for lícito ao tribunal conhecer nos termos do n.º 2,
do artigo 5.º, do CPC, mormente os factos complementares ou concretizadores de outros
oportunamente alegados e que tenham decorrido da instrução. Mas o tribunal só deve
atender aos factos que, tendo sido oportunamente alegados ou licitamente introduzidos
durante a instrução, forem relevantes para a resolução do pleito, não cabendo pronunciar-se
sobre factos que se mostrem inequivocamente desnecessários para tal efeito.

Assim, desde logo, são relevantes:


• os factos essenciais à procedência das pretensões deduzidas, ou seja, aqueles que
têm a virtualidade de preencher a previsão normativa (facti species) favorável a tais
pretensões, na perspetiva do efeito pretendido, segundo as regras de repartição do
ónus da prova;
• os factos essenciais suscetíveis de integrar os fundamentos de exceção perentória
deduzida ou que deva ser objeto de conhecimento oficioso.

De entre os factos essenciais, há que destacar os que respeitam a factualismos complexos


tendentes a preencher conceitos de direito indeterminados ou cláusulas gerais (culpa,
necessidade do locado para habitação, justa causa, abuso de direito, boa fé, alteração normal
das circunstâncias, posse, sinais vísiveis e permanentes para efeitos de servidão de passagem,
etc.).

341
Da sentença cível

Nesse tipo de factualidade, o facto essencial não é consubstanciado num núcleo definido
e cerrado, mas irradia-se numa multiplicidade de circunstâncias moleculares que, na sua
aglutinação, preenchem o conceito indeterminado ou a cláusula genérica da facti species
normativa. É sobretudo no âmbito deste tipo de factos complexos que podem ocorrer
concretizações ou complementaridades dimanadas da produção da prova em audiência,
suscetíveis de levar ao ajustamento do contexto narrativo dos articulados ao contexto
histórico do litígio.
Tais concretizações ou complementaridades fácticas podem ser introduzidas no objeto da
prova, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, mas, pelo
menos, têm de encontrar-se respaldadas em factualidade nuclear já alegada, não sendo
legítimo que subvertam esta factualidade em termos de contender com os princípio do
contraditório e da igualdade substancial das partes.

Uma outra preocupação a ter é a de referenciar os juízos probatórios com os factos


alegados nos articulados, ou porventura na audiência prévia, ou com a sua introdução já em
sede de audiência final.
Com efeito, na medida em que os temas da prova são hoje enunciados mediante fórmulas
mais genéricas, sob a forma de tópicos, se, na sentença, não se conectarem os juízos
probatórios com a respetiva alegação ou com o modo como foram introduzidos no processo, a
falta dessa conexão dificultará a sua reapreciação em sede de recurso, em particular, quando
se questione a exorbitância daqueles juízos probatórios em relação ao perímetro dos factos
alegados ou introduzidos durante a atividade instrutória.
Por isso, é conveniente que, pelo menos nos casos mais complexos, os enunciados dos
factos provados e não provados sejam referenciados com os artigos sob os quais foram
alegados ou, não tendo sido alegados, com as circunstâncias em que foram introduzidos
durante a instrução.
Também os factos provados por acordo e por confissão ou documento com eficácia
probatória plena devem ser referenciados, na sentença, como tal, face ao disposto no artigo
574.º e 607.º, n.º 3, do CPC.

b) O critério de aferição da relevância dos factos para a resolução do litígio

A aferição da relevância dos factos para a resolução do caso deverá ser feita em função de
três vectores confluentes:

342
Da sentença cível

(i) – Em primeiro lugar, o referencial normativo traçado na facti species legal, simples,
complexa ou concorrente, em que se inscreve a pretensão deduzida ou a exceção
perentória em causa, atentas as regras, gerais ou especiais, de distribuição do ónus da
prova, numa perspetiva aberta do quadro de soluções de direito plausíveis que o tribunal
possa vir, a final, a considerar, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º do CPC 11;
(ii) – Em segundo plano, o contexto factológico narrativo alegado pelas partes na fase dos
articulados e complementado, conforme os casos:
• por via de articulados supervenientes – artigos 588.º, 589.º e 611.º, do CPC;
• através de articulados complementares ou corretivos, deduzidos na sequência de
despacho de aperfeiçoamento - art.º 590.º, n.º 2, alínea b), 4, a 6, do CPC);
• em sede de discussão dos termos do litígio na audiência prévia - artigos 3.º, n.º 4,
e 591.º, n.º 1, alínea c), do CPC;
• ou mesmo durante a instrução da causa, na audiência final, nos termos do art.º
5.º, n.º 2, alínea b), do CPC;
(iii) – Por fim, o contexto histórico ou real do litígio, que, em regra, emerge da produção
da prova.

Os três vectores referidos – o referencial normativo, o contexto factológico narrativo e o


contexto factual histórico – representam um esquema de base, triangular, fundamental para
delinear tanto o objeto da prova a submeter a instrução na audiência final como para
administrar as provas, no sentido de apurar tudo o que se revele necessário e útil para a
decisão da causa.
Com efeito, o referencial normativo indica o quadro das soluções de direito plausíveis,
incluindo a repartição do ónus da prova, para que melhor se possa divisar o alcance jurídico de
cada facto submetido a prova e o coeficiente de esforço probatório exigido a cada uma das
partes.
Por sua vez, o contexto factológico narrativo permite situar dada espécie factual no
universo de cada uma das versões apresentadas pelos litigantes, de modo a ter presente o
sentido que ali lhe é dado e a sua coerência como os restantes segmentos fácticos em causa.

11
Este referencial normativo deve também nortear a identificação do objeto do litígio feita quer no
despacho a que se refere o art.º 596.º, do CPC, quer na enunciação das questões a resolver inserida no
relatório da sentença nos termos do art.º 607.º, n.º 2, parte final, do mesmo Código, tanto mais que, na
configuração daquele despacho, às partes podem divisar, de antemão, o coeficiente de esforço probatório
que lhe é exigido.

343
Da sentença cível

Tal perspetiva integrada evitará sobreposições, aporias ou mesmo contradições entre os juízos
probatórios e proporcionará maior economia na própria atividade instrutória.
Por fim, o contexto histórico do litígio, que, em regra, emerge da produção da prova,
permite pôr em linha o contexto narrativo das partes com a sua matriz factológica, no sentido
de um maior apego à dimensão real dos factos, possibilitando, consequentemente, uma
concretização ou complementação dos juízos probatórios, quando tal se afigura útil para a
subsequente análise jurídica.
A este propósito, convém recordar que a jurisprudência tem alinhado no sentido de
considerar que a decisão de facto não se deve ficar por enunciados demasiadamente secos,
mas que, na medida do possível e do necessário, sejam complementados por extensões
concretizadoras, de modo, dir-se-á, a ajustar o contexto narrativo dos factos no processo ao
contexto histórico que deflui da prova, tendo em vista o referencial normativo das questões se
direito a resolver. Assim, a arte de valorar a prova passa, portanto, pela habilidade do julgador
nesse jogo triangular.

c) Da formulação de juízo probatório específico sobre os factos instrumentais

Pode colocar-se a questão de saber se, na enunciação dos factos provados e não
provados, o tribunal deve cingir-se apenas aos factos essenciais à procedência da acção ou de
exceção perentória, ou se também deve formular juízos probatórios sobre factos se afigurem
meramente instrumentais daqueles factos essenciais.
Ora o n.º 4, do artigo 607.º, do CPC, prescreve que:
Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados
e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as
ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que
foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que
estão admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a
escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida, extraindo dos factos
apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

Por sua vez, o artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código, consigna que:
Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) – Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa.

344
Da sentença cível

Do artigo 574.º, n.º 2, parte final, colhe-se também que a admissão de factos
instrumentais pode ser afastada por prova posterior.

Acresce que o artigo 449.º, n.º 2, manda incluir, nos temas da prova enunciados, a
matéria do incidente respeitante à ilisão da autenticidade ou da força probatória de
documento, que como é sabido, versa sobre factos auxiliares da prova, os quais respeitam à
admissibilidade, idoneidade e valoração de determinados meios de prova 12.
Da conjugação do disposto nos citados artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 607.º, n.º 4, colhe-se
que o tribunal deve tomar em consideração os factos instrumentais e extrair deles as ilações
em sede de presunções judiciais, mas de tais normativos não consta, pelo menos
expressamente, que sobre tais factos deva recair um juízo probatório específico.
Perante isso, poderá pensar-se que sobre os factos instrumentais não tem de recair um
específico juízo probatório, bastando indicá-los na motivação da decisão de facto a propósito
dos factos essenciais que deles se inferem, ou seja, como mero argumento probatório.
Afigura-se, no entanto, que uma tal degradação do juízo probatório em mero argumento
probatório, em sede de factos instrumentais, tem de ser equacionada com algumas cautelas 13.
Em primeiro lugar, há que ter presente que, na prática, nem sempre é nítida a linha de
fronteira entre a essencialidade e a instrumentalidade de um facto, podendo até suceder que
determinado facto se mostre, à partida, instrumental, e que, a final, acabe por se assumir
como essencial. Por exemplo, no caso de um acidente de viação, um rasto de travagem pode
ser instrumental enquanto indício de uma velocidade superior a determinado limite legal
(excesso de velocidade), mas a sua prova não ser conclusiva nesse sentido; no entanto, pode
bem acontecer que aquele mesmo rasto de travagem conjugado com outros elementos de
facto - como a força do impacto dos veículos e a sua posição relativa após o embate -, permita
preencher o conceito indeterminado de velocidade excessiva (art.º 24.º, n.º 1, do CE) e levar,
por consequência, ao juízo de culpabilidade do condutor do veículo, o que o torna agora num
elemento do facto essencial em que se traduz tal factualismo complexo.
Por outro lado, há factos de determinada natureza, nomeadamente os factos do foro
psicológico – cognitivos (v.g. o erro), afetivos (v.g. o abalo psíquico, o desgosto, a tristeza, a
jovialidade) e volitivos (vontade negocial, o animus possessório) – que não são, em regra,
12
Sobre os factos auxiliares da prova, vide o estudo do ora signatário, intitulado Um Olhar sobre a Prova em
Demanda da Verdade no Processo Civil, Separata da Revista do CEJ (2005), número 3, Almedina, pp.150-151.
13
A este propósito, no sentido da sujeição dos factos instrumentais a juízo probatório, vide LEBRE DE
FREITAS, A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, Coimbra Editora,
pag. 315 e seguintes.

345
Da sentença cível

suscetíveis, de perceção direta, sendo, frequentemente, inferidos, à luz da experiência


comum, a partir de factos instrumentais ou indiciários. Nestes casos, a valoração probatória
decisiva incide precisamente sobre tais factos instrumentais.
Quanto à necessidade de formular juízos probatórios sobre os factos instrumentais,
também designados pela doutrina por factos secundários, atente-se no ensinamento de
Michele Taruffo 14, quando escreve que:
“… se debe observar que la decisión no versa sólo los llamados hechos principales, es
decir, los hechos que son calificados jurídicamente, sino también sobre los llamados
hechos secundarios (o simples), que son lógicamente relevantes en la medida que
constituyen las premissas de inferências probatorias relativas a los hechos principales.
También los hechos secundarios son objeto de decisión, entre otras razones porque
deben ser determinados (…) para poder constituir las premissas para a formulacion de
inferencias válidas relativas a otros hechos…”
“Es necesario, entonces, que respecto de cada enunciado singular se identifiquem las
pruebas que se refieren específicamente a él, y se determine el grado de confirmación
que ellas le atribuyen. Esto vale para las ciscunstancias que constituyen los hechos
principales de la causa, dado que estos enunciados representan el objetivo final de
todo el conjunto de las inferencias probatorias. Pero el mismo discurso vale también
respecto de los enunciados relativos a los hechos secundários, ya que también
respecto de estos enunciados debe existir una confirmación probatoria adecuada, sin
la cual éstos no podrían constituir premisas de inferencias referidas a los enunciados
sobre hechos principales.”

Com efeito, se os factos instrumentais com tal relevo forem apenas disseminados na
motivação dos factos essenciais que indiciam, sem sobre eles recair um juízo probatório
específico, corre-se o risco de, por um lado, se eclipsar a sua conexão com os concretos meios
de prova em que se baseiam e, por outro, de se diluir o respectivo critério de valoração, tanto
mais que tal critério pode variar em função da natureza de cada facto indiciário, sabido como é
que alguns deles podem ser colhidos por via percetiva, enquanto outros o serão de um modo
mais fragmentário ou ténue com maior apelo às regras da experiência, o que poderá tornar a
sua reapreciação, em sede de recurso de apelação, mais problemática. Aliás, a não submissão
de tais factos instrumentais a um juízo probatório expresso pode dar azo à manipulação das

14
In Simplesmente la verdad – El juez y la construcción de los hechos, tradução espanhola, Marcial Pons,
2010, pp. 223 e 252.

346
Da sentença cível

presunções judiciais, em sede de mera argumentação probatória, mas sem ter presente a base
factual objetiva e segura em que assentam.
Não quer isto dizer que tenha de haver pronúncia expressa sobre todos os factos
instrumentais, mas tão só que deverá ser formulado juízo probatório sobre aqueles em que
repousa a essência do julgamento do facto fundamental, a ponderar no contexto de cada caso.
Assim, parece curial que se formulem juízos probatórios sobre os factos instrumentais
mais decisivos para servir de base às presunções judiciais e que devam ser concretamente
conectados com determinados meios de prova.
De igual modo, devem formular-se juízos probatórios sobre alguns dos factos auxiliares
da prova, como aqueles que respeitam a impugnação ou arguição de falsidade de documentos.
Já os factos auxiliares da prova decorrentes, por exemplo, da razão de ciência do testemunho,
da contradita ou da acareação deverão ser integrados como meros argumentos probatórios
em sede de motivação da decisão de facto.

d) Da linguagem dos enunciados de facto

A enunciação da matéria de facto traduz-se na exposição descritivo-narrativa tanto da


factualidade assente por efeito legal da admissão por acordo ou da eficácia probatória plena
de confissão ou de documentos, como dos factos provados ou não provados durante a
instrução, devendo ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de
excessos de adjetivação.
Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a
retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção
sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve
pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido
vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente
excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento
de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º,
n.º 2, alínea c), do CPC.

Como é sabido, a linguística deixou, hoje, de ser confinada às suas duas dimensões
primárias – a dimensão gramatical (lógico-sintática) e a dimensão semântica – para se
alcandorar, agora, numa nova dimensão, que é a dimensão pragmática, a qual relaciona a
linguística com os contextos vivenciais e com as estratégias comunicacionais. Esta nova

347
Da sentença cível

dimensão foi brilhantemente versada por Jürgen Habermas na sua “teoria da acção
comunicativa”, com a distinção entre “agir estratégico” e “agir comunicacional” 15.
Para Habermas:
“Os discursos práticos têm de fazer com que os conteúdos lhe sejam dados. Sem o
horizonte do mundo da vida de um determinado grupo social e sem conflitos de acção num
determinada situação, na qual os participantes considerem como sua tarefa a regulação
consensual de uma matéria social controversa, não teria sentido querer empreender um
discurso prático”.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais
deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra
adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance
semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam
portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a
controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente
epidérmico dos seus modos de expressão linguística.
Os enunciados de facto devem também ser expostos numa ordenação sequencial lógica e
cronológica que facilite a conjugação dos seus diversos segmentos e a compreensão do
conjunto factual pertinente, na perspetiva das questões jurídicas a apreciar. Com efeito, a
ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de
inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e
sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou
fragmentário. Por isso mesmo, na sentença, cumpre ao juiz ordenar a matéria de facto – que
se encontra, de algum modo parcelada, em virtude dos factos assentes por decorrência da
falta de impugnação – na perspetiva do quadro normativo das questões a resolver. De resto,
só uma adequada ordenação dos factos provados permite compatibilizar toda a matéria
factual adquirida, como se determina no artigo 607.º, n.º 4, parte final, do CPC.
Por exemplo, numa ação emergente de responsabilidade contratual, devem enunciar-se,
em primeiro plano, os factos respeitantes à formação do contrato, incluindo o respetivo
clausulado, e só depois enunciar as vicissitudes da sua execução relacionadas com o
incumprimento; numa ação emergente de responsabilidade civil por acidente de viação, deve
consignar-se, em primeiro lugar, a factualidade concernente à infraestrutura do acidente

15
“Teorias da Verdade”, in Teorias de la Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos, Madrid,
Ediciones Cátedra, 1994.

348
Da sentença cível

(local, tempo, condições viárias, etc.), depois os factos respeitante aos comportamentos ilícitos
ou aos factores de risco da manobra efectuada e só por fim os danos causados.
Além disso, como já foi dito, os enunciados dos juízos de prova devem nortear-se pela
completude, clareza e coerência possíveis, em face dos resultados da prova, de forma a
prevenir os vícios formais de deficiência, obscuridade e contradição, que constituem
fundamento de anulação do julgamento nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.

e) Da segmentação dos factos

Sob este tópico, importa atentar no critério prático a seguir na segmentação dos factos.
Ora, dos artigos 452.º, n.º 2 (prova por confissão), 475.º, n.º 2 (prova pericial) e 516.º, n.º
1 e 2 (prova testemunhal), todos do CPC, decorre que a a actividade probatória, embora se
inscreva nos delineados temas da prova, nos termos do art.º 596.º, n.º 1, deve incidir sobre os
factos concretamente alegados ou licitamente emergentes da instrução. Por sua vez, do
disposto no artigo 607.º, n.º 3 a 5, do CPC colhe-se que a convicção do julgador se forma e a
sua enunciação se formaliza sobre a singularidade de cada facto. Ponto é saber como se deve
proceder à segmentação ou fragmentação textual desses enunciados, atenta a exigência de tal
singularidade factológica.
Segundo as regras gerais da sintaxe, o discurso descritivo-narrativo expressa-se mediante
proposições verbais (ou orações) integradas em frases, por sua vez, organizadas em conjuntos,
como são os períodos e os parágrafos, em harmonia com a maior ou menor proximidade das
ideias ou do fio de pensamento ali veiculado, tendo em vista uma adequada compreensão da
matéria exposta, por parte dos respetivos destinatários. Assim a sintaxe, mormente no campo
literário, obedece a regras linguísticas, de estética e de comunicação.
Contudo, a narrativa factológica processual requer especificidades ditadas pelo seu
próprio contexto e funcionalidade, em que predominam exigências de objetividade, clareza e,
em suma, de suficiente compreensibilidade para os destinatários das decisões judiciais.
Nessa linha, a segmentação dos factos tem de ser ponderada não em função de
arquétipos abstratos, porventura de pendor estético, nem de simplismos redutores, mas
atentando no concreto contexto do litígio, em especial na intensidade impugnativa que tenha
recaído sobre cada ponto de facto e na conjugação com os concretos meios de prova
convocados para a sua demonstração e até mesmo em vista das exigências de
operacionalidade na articulação do argumentário probatório com os enunciados fácticos nele
reportados.

349
Da sentença cível

Assim, por exemplo, no âmbito do clausulado de um contrato, pode ocorrer uma


particular intensidade impugnativa sobre algumas das cláusulas dele constantes e ter sido
produzida prova de determinada espécie ou diferenciada por conjuntos de testemunhas, que
imponham o destaque ou a atomização dessas cláusulas, de modo a melhor se poder articular
o juízo probatório com os concretos meios de prova produzidos nesse âmbito. Também,
quando estamos perante um factualismo complexo integrador de um conceito indeterminado
ou de uma cláusula geral, pode suceder que algum dos elementos moleculares ou acessórios
desse factualismo tenha sido objeto de impugnação intensa e de produção de prova de
determinada espécie ou diferenciada, que torne necessária a sua fragmentação em relação ao
conjunto em que se integra.
Se, porventura, se concentrarem num só enunciado factual vários segmentos que
mereceram impugnação e produção de prova específica ou diferenciada, tal concentração
dificultará, sem dúvida, o reporte a fazer em sede de argumentação probatória, bem como o
exercício do ónus de impugnação exigido ao recorrente e ao recorrido pelo artigo 640.º, n.º 1,
alíneas a) e b), e n.º 3, do CPC, e, por fim, a identificação e reapreciação dos pontos
impugnados por parte do tribunal de recurso.
Em suma, a segmentação dos enunciados de facto deve ter por base a natureza dos factos
em causa, a sua estrutura morfológica empírico-normativa, o seu contexto impugnativo e
probatório, e ainda as exigências de objetividade e clareza requeridas pela sua conjugação com
a respetiva motivação em 1.ª instância e pela impugnação e reapreciação em sede de recurso.

O teor dos enunciados de facto correspondentes aos juízos probatórios deve ser depurado
de referências aos meios de prova ou às respectivas fontes de conhecimento, sendo de banir
dizeres como provado apenas que “a testemunha... viu o réu a entrar na casa do autor” ou, no
caso em se discuta a origem de um incêndio, provado apenas que “os bombeiros verificaram
não existir no local sinais do foco de incêndio”. Estas referências aos meios de prova, quando
muito, podem constituir argumento probatório, a consignar na motivação, para fundamentar
um juízo afirmativo ou negativo, pleno ou restritivo, do facto em causa.
Nessa linha, o que se requer é que o julgador assuma uma posição clara sobre o
julgamento de facto, decidindo o que deve decidir, sem evasivas. Por exemplo, se o que está
em causa é apurar a origem de um incêndio, o que o juiz tem de ajuizar é se o facto para tal
alegado está ou não provado, sendo que a verificação pelos bombeiros de não existir sinais do
foco de incêndio é apenas um dos meios de prova nesse sentido. Igualmente, se o que está em
discussão é indagar sobre a vontade real, expressa ou tácita, manifestada num contrato

350
Da sentença cível

escrito, o que tem de ser decidido é se está ou não provada a alegada vontade real, pelo que,
muitas vezes, o dar como provado apenas o que consta do documento se traduz numa forma
evasiva de julgar aquela questão.
Por outro lado, há que usar de muita cautela na remissão para o teor de documentos
juntos ao processo, devendo-se, em princípio, transcrever os conteúdos do teor do documento
que reproduzam factos considerados provados. Nessa linha, o juízo probatório deve refletir, de
modo inequívoco, as declarações negociais ou de ciência constante de documento que se
considerem ou não assumidas pelos seus autores, sem deixar margem para especular sobre
essa assunção, como sucede quando se afirma “provado apenas o que consta do documento
x”. O grau de precisão do juízo probatório deverá ser aferido, por um lado, em função e no
contexto narrativo do que vem alegado e, por outro lado, de harmonia com os resultados da
produção de prova e da convicção que o julgador sobre eles formar. Porém, quando se esteja
em presença de documentos em que se registam dados de leitura e definição inequívocas,
como, por exemplo, uma fatura donde conste as espécies, quantidades, datas e importâncias
de fornecimento de bens, não se vê inconveniente em que o juízo probatório se faça por
remissão para tais dados. Neste domínio, dada a diversidade dos casos concretos, não será
possível estabelecer critérios rígidos, devendo o julgador pautar-se por parâmetros de ordem
prática que confiram ao juízo de prova uma inteleção objetiva e precisa.

B – A motivação do julgamento de facto

Depois da enunciação dos factos provados e dos factos não provados, a sentença deverá
conter a respetiva motivação, nos termos do artigo 607.º, n.º 4, do CPC, de modo a:
a) por um lado, indicar, de forma sintética, o fundamento dos factos assentes admitidos
por acordo e os provados por confissão ou documento com eficácia probatório plena,
com a mera referência a tal circunstância, bem como dos factos notórios e daqueles de
que o tribunal tem conhecimento por virtude das suas funções (factos judicialmente
notórios);
b) por outro lado, relativamente aos factos controvertidos submetidos a prova livre,
proceder à análise crítica do resultado probatório, extraindo as ilações pertinentes dos
factos instrumentais, especificando os fundamentos que foram decisivos para a
convicção do julgador, com a indicação dos meios concretos de prova em que se haja
fundado essa convicção.

351
Da sentença cível

c) e compatibilizar toda a matéria de facto adquirida, extraindo dos factos apurados as


presunções legais e judiciais.

Importa, antes de mais, considerar que a valoração da prova, por parte do tribunal, se
consubstancia na formação de juízos de razoabilidade sobre os factos controvertidos
relevantes para a resolução do litígio, em função do material probatório obtido através da
atividade instrutória, à luz das regras da experiência e da coerência lógica dum raciocínio
pragmático sobre as ocorrências da vida.
Neste capítulo, tem sido colocada a questão de saber o que se deve entender por objeto
da prova: se é a verdade material qua tal ou se é a factualidade alegada pelas partes no
processo, consistente no que se designa por dados de facto. Significa isto saber se o objeto da
prova se deve centrar na investigação dessa verdade material ou, diversamente, se se deve tão
só ajuizar sobre a correspondência entre a factualidade alegada e os resultados da prova do
acontecer histórico retratado nesta factualidade.
Como é sabido, em termos gnoseológicos, a dita “verdade material ou absoluta”, exterior,
é praticamente inatingível em qualquer domínio do saber. O entendimento humano versa
sobre a realidade fenoménica que, por sua vez, esconde uma realidade velada.
Assim, os mecanismos de perceção, de sensibilidade e de elaboração do pensamento
captam os múltiplos sinais dessa realidade fenoménica, interpretam-nos e assimilam-nos, com
base na experiência adquirida e nas próprias estruturas cognitivas, e convertem-nos em
conhecimento empírico e inteletivo, pelo que a realidade assimilada não é a reprodução pura e
simples da realidade fenoménica, mas antes um constructus dessa realidade elaborado pelo
próprio entendimento humano.
Ora a “reconstrução cognitiva” da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia
ter, a finalidade de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do
acontecido, nem tão pouco tal sucede sequer nos domínios da verdade história ou da verdade
científica. Muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e
íntima do julgador. Diversamente, a prova judicial tem como objetivo lograr uma compreensão
suficientemente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições
humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso 16.

16
Sobre a natureza do conhecimento judicial dos factos, seu carácter ideográfico, e as condicionantes
práticas e normativas da averiguação judicial, vide MARINA GASCÓN ABELLÁN, Los Hechos en el Derecho –
Bases argumentales de la prueba, Marcial Pons, Barcelona, 1999, pag. 97 a 123. Sobre o contexto da pro-va

352
Da sentença cível

Nessa linha de entendimento, a verdade judicial constrói-se a partir da narrativa dos


factos alegados pelas partes, no sentido de apurar o grau de correspondência entre essa
narrativa e a realidade empírica, extraprocessual, versada por aquela e revelada através dos
meios de prova produzidos 17. Trata-se, pois, de uma “reconstrução cognitiva” desta realidade
empírica, num contexto problemático e polémico sobre a mesma, cuja legitimação advém
precisamente da dialética contraditória das versões apresentadas perante o tribunal, como
decisor imparcial, segundo regras legais pré-estabelecidas.
A heurística probatória da verdade judicial assenta em dois vectores fundamentais:
a) uma adequada investigação da factualidade relevante com base nas narrativas
apresentadas pelas partes;
b) um grau de suficiência exigido pelos padrões de probabilidade por que se rege a prova
livre, como são, por exemplo, os critérios da prova bastante (art. 346.º, do CC) ou,
nalguns casos, o da verosimilhança (art. 368.º, n.º 1, do CPC) 18.
Quanto à adequação do nível de investigação, importa que, na abordagem probatória do
facto controvertido, se atente bem na natureza e alcance do troço de realidade em foco, não
só no plano da sua estrita dimensão sociológica, mas ainda no que dela factualmente pode
relevar para o enquadramento jurídico do litígio. Isto implica que, como já acima referido, os
enunciados de facto não devem ser considerados numa leitura meramente literal, mas
sobretudo no alcance semântico da sua conexão com a realidade sobre que incidem. Como
afirma G. Carrió 19, “o significado das palavras está em função do contexto linguístico em que
aparecem e da situação humana em que é aplicada”, o mesmo é dizer vivenciada.

No que respeita à formação do juízo probatório, já longe vão os tempos da tradição


empírico-narrativista, em que dominava o lema de que factos são factos e não necessitam de
ser argumentados. Com efeito, a verdade judicial é fruto de um raciocínio problemático,

judicial e o objectivo institucional da verdade aí prosseguida, vide JORDI FERRER BELTRÁN, La valoración
racional de la prueba, Marcial Pons, 2007, pag. 29 e seguintes.
17
Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a
realidade empírica, vide MICHELE TARUFFO, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à
configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide EDUARDO GAMBI, A Prova
Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e
seguintes; LLUÍS MUÑOZ SABATÉ, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor,
Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
18
A este propósito, vide LARRY LAUDAN, in Prólogo à monografia de Jordi Ferrer Beltrán citada na nota
precedente.
19
In Notas sobre Derecho e lenguaje, Buenos Aires, 1990, pag. 90.

353
Da sentença cível

sustentado na razão prática mediante a análise crítica dos dados de facto veiculados pela
atividade probatória, em regra, por via de inferências indutivas ou analógicas pautadas pelas
regras da experiência comum, colhidas da normalidade social, ou mesmo da experiência
qualificada em determinado sector de atividade, que não pelo mero convencimento íntimo do
julgador, não podendo assim a intuição deixar de passar pelo crivo de uma razoabilidade
persuasiva e suscetível de objetivação, sem excluir, de todo, a interferência de fatores de
índole intuitiva, compreensíveis ainda que porventura inexprimíveis 20. No entanto, a intuição
não é um dado, mas um estímulo, qual motor de pesquisa, devendo ser ponderada com o
sentido crítico da reflexão. Ponto é que a motivação se paute pelo princípio da completude
racional, de forma a esconjurar o arbítrio 21.
Neste campo, há que estar prevenido contra a ocorrência de dois perigos frequentes 22:
por um lado, a tendência de generalização fácil do conhecimento empírico; por outro, o perigo
da obnubilação do abstrato, que ofusca a concreticidade dos factos sob o véu tanslúcido de
arquétipos categoriais. Como afirma Gaston Bachelard, “no ser humano predomina a
obscuridade do “eu sinto” sobre a clareza do “eu vejo” 23, o que pode conduzir à referida
generalização. Mas também, por vezes, irrompe o deslumbramento pelas fórmulas abstratas
redutoras dos fenómenos percepcionados.
Na valoração e formulação do juízo probatório deve, pois, procurar-se o equilíbrio entre o
sentido do real e a sua razão prática.
É nessa linha que se deve inscrever a ponderação dos depoimentos colhidos, tendo em
conta o respetivo teor, o seu nicho contextual, bem como as razões de ciência e a credibilidade
dos testemunhos. Só assim se poderá satisfazer o critério da prudente convicção na apreciação
da prova livre, ditado pelo n.º 5, do artigo 607.º, do CPC, e obter uma decisão que se possa ter
por justa e legítima.

20
Sobre o modelo cognitivo racional da prova, em detrimento de modelo puramente empírico, vide, entre
outros autores, MARINA GASCÓN ABELLÁN, Los Hechos en el Derecho – Bases argumentales de la prueba,
Marcial Pons, Barcelona, 1999, pag. 97 a 123.
21
Sobre o princípio da completude da motivação da decisão judicial ditado, pela necessidade da justificação
cabal das razões em que se funda, com função legitimidora do poder judicial, vide acórdão do STJ, de 17-01-
2012, relatado pelo Exm.º Juiz Cons. Gabriel Catarino, no processo n.º 1876/06.3TBGDM.P1.S1, disponível
na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
22
GASTON BACHELARD, A Formação do Espírito Científico – Contribuição para uma Psicanálise do
Conhecimento, tradução de Estela dos Santos Abreu, Dinalivro, 2006, pp. 33 a 109.
23
In ob. cit. na nota precedente, pag. 196.

354
Da sentença cível

Já no campo da motivação da decisão de facto, importa ter presente que a reapreciação


dessa decisão, em sede de recurso, não se traduz propriamente num novo julgamento da
causa, mas sim numa sindicância sobre o invocado erro de julgamento da 1.ª instância, no
sentido de que compete ao tribunal de recurso formar a sua própria convicção sobre a prova
produzida com vista a concluir pela existência ou não desse erro. O juiz da 1.ª instância não é
um mero instrutor da prova, mas um julgador em primeira linha. Em tal medida, a motivação
da decisão de facto deve fornecer os argumentos probatórios ou os fatores que foram
decisivos para a convicção do julgador em 1.ª instância.
Não satisfaz essa exigência o tipo de motivação meramente conclusiva como aquela em
que se consiga pura e simplesmente que os factos provados resultaram da análise crítica e
conjugada das testemunhas em referência. Uma motivação deste género apenas indica que se
procedeu à dita análise, mas nada diz sobre o seu conteúdo.
Outro erro a evitar é o que consiste em consignar apenas que dos depoimentos das
testemunhas indicadas nada se provou, importando antes explicitar as razões essenciais pelas
quais tais depoimentos, tendo versado sobre a matéria em questão, não convencerem o
tribunal.
Também ocorrem, por vezes, situações em que se consigna, na motivação da decisão de
facto, que nada há a pronunciar sobre “a restante matéria alegada” por se tratar de matéria
conclusiva ou de direito, quando não se mostra claro qual a matéria que assim foi considerada,
sabido como é que a natureza conclusiva de determinada alegação é, por vezes, problemática.
Nestes casos, é conveniente, desde logo, que as partes sejam, oportunamente, alertadas pelo
tribunal, na audiência prévia ou mesmo no decurso da instrução, sobre o carácter conclusivo
ou normativo de certos enunciados, de modo a não gerar falsas expectativas sobre a sua
pretensa factualidade e a evitar uma decisão-surpresa.
De qualquer modo, quando se entenda que determinada alegação, pretensamente
alegada como facto, tem natureza conclusiva ou meramente normativa, há que circunscrevê-la
de forma a que, em sede de recurso, se possa divisar sobre que enunciados recaiu essa
qualificação.

As boas práticas aconselham a que, na motivação, o juiz explicite as razões que o levaram,
por exemplo, a dar mais crédito a uma testemunha do que a outra, quando os seus
depoimentos sejam divergentes, salientando a razão de ciência ou a consistência e maturidade
reveladas pelo depoente. De igual modo, quando o argumento probatório repouse em

355
Da sentença cível

presunções judiciais, importa identificar os factos instrumentais tidos em conta e consignar as


ilações deles extraídas, à luz das regras da experiência.
Ademais, a economia da motivação do julgamento de facto obtém-se por via de um
método criterioso de seleção dos argumentos probatórios centrado nos concretos meios de
prova convocados e nas ilações a extrair dos resultados colhidos na instrução, de forma a
especificar os fatores que se revelem decisivos para consubstanciar as razões em que se
ancoram os juízos de prova.
Na motivação da decisão de facto, em vez de se sumariarem, de forma aberta e livre, os
diversos depoimentos prestados, dever-se-á, em primeira linha, individualizar os pontos de
facto em causa e, no âmbito de cada um deles ou até da sua agregação em conjuntos
coerentes, identificar então os concretos meios de prova sobre os mesmos produzidos,
especificando os que foram decisivos para a convicção do julgador e as respetivas razões de
ciência e de teor.
Assim, se, por exemplo, os depoimentos convocados forem convergentes não se justifica,
em princípio, um extenso desenvolvimento argumentativo, bastando assinalar essa
convergência e as razões de ciência em que se estribam. Já se os depoimentos forem
divergentes, haverá que precisar quais os factores que levaram a preferir um depoimento em
detrimento de outro, expondo as razões de teor, com a sinalização dos trechos mais
pertinentes do seu conteúdo, e as razões de ciência mais específicas tidas em conta.
Há, no entanto, que não confundir a argumentação probatória com o processo psicológico
de decisão. O que se impõe na motivação da decisão de facto é a exposição seletiva das razões
objetivas em que se baseia a convicção do julgador e não a descrição do iter prosseguido nesse
processo decisório nem das suas vicissitudes.

Em síntese, a motivação do julgamento de facto tem como matriz um discurso


argumentativo problemático, parcelado na órbita de cada juízo probatório, sem prejuízo da
sua compatibilização no universo da trama factual, e rege-se por razões práticas firmadas na
análise dos resultados probatórios, à luz das regras da experiência comum ou qualificada e dos
padrões de valoração (prova bastante e prova de verosimilhança) estabelecidos na lei.

356
Da sentença cível

C – Da análise jurídica

A análise jurídica faz-se mediante a indicação, interpretação e aplicação das normas


jurídicas relevantes, podendo ainda envolver o exame crítico global dos factos tomados em
consideração.
Nalguns casos, a fundamentação da sentença poderá ser simplificada ou sucinta, como
por exemplo, nas hipóteses previstas nos artigos 154.º, n.º 2, 385.º, n.º 3, 567.º, n.º 3, do CPC.
De qualquer modo, a extensão e a densidade da fundamentação, mesmo fora das
hipóteses em que a lei impõe a sua simplificação, devem ser calibradas com as exigências
concretas do litígio, numa dosimetria que, de forma mais simples, de adeqúe à sua finalidade e
não mais do que isso (art. 131.º, n.º 1, do CPC).

A fundamentação da sentença tem sido, tradicionalmente, reconduzida ao esquema


aristotélico do silogismo judiciário, segundo o qual os factos provados constituíam a premissa
menor, a norma jurídica a premissa maior e a decisão a conclusão silogística.
Atualmente vem sendo reconhecido que a fundamentação da sentença não é assim tão
linear e unidirecional, mas que o método de interpretação e aplicação das normas aos factos
provados se desenvolve de forma mais circular ou até pendular – o chamado círculo
hermenêutico 24.
Com efeito, se é certo que a indagação e interpretação da norma aplicável se faz a partir
de determinada factualidade, também não é menos verdade que a seleção dos factos
relevantes depende, em muito boa medida, do quadro normativo convocável em face do
efeito prático-jurídico pretendido, o que pode exigir uma recursividade argumentativa 25,
biunívoca ou pendular, por exemplo, quando ocorram situações de convolação jurídica.
Assim, já em sede de fundamentação jurídica, pode haver lugar a um exame crítico,
global, de toda a factualidade provada e não provada, em face do quadro normativo em
referência, incluindo a repartição do ónus probatório. É a esta ponderação que se refere,
basicamente, a parte final do n.º 4, do artigo 607.º, do CPC.

24
Sobre o método do “círculo hermenêutico”, vide, entre outros, o Professor Doutor ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO, na Introdução ao livro de CLAUS CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na
ciência do Direito, Lisboa, 3.ª Edição, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
25
Sobre a recursividade na circularidade dos saberes como método de abordar o pensamento complexo,
vide ROBIN FORTIN, Compreender a Complexidade – Introdução ao Método de Edgar Morin, publicado, em
tradução portuguesa, pelo Instituto Piaget, 2007.

357
Da sentença cível

Essa análise pode contemplar presunções judiciais baseadas na conjugação ou


compatibilização de toda aquela f,actualidade provada ou até de factos notórios ou de outros
que sejam de conhecimento oficioso, relevantes para a decisão. Tal análise crítica revela-se
pertinente, por exemplo, nos casos em que a factualidade é complexa ou apoiada num acervo
de factos indiciários (v.g. no âmbito do acordo simulatório de um contrato, na determinação da
vontade conjetural para efeitos de redução ou de conversão do negócio jurídico, na apreciação
da boa fé como regra de conduta, nalguns casos de aferição da culpa ou da exigência do ónus
probatório). O que está vedado ao juiz, neste campo, é sobrepor o exame crítico global das
provas de modo a subverter os juízos probatórios específicos formulados em sede de
enunciação de facto.
A fundamentação respeitante ao enquadramento jurídico integra juízos classificatórios da
realidade em apreço e juízos interpretativos dos normativos convocados, à luz da dogmática,
da doutrina e da jurisprudência, para culminar na caracterização jurídica da espécie factual
apurada e na concretização do efeito jurídico correspondente. Consubstancia-se, por
conseguinte, num tipo de discurso de compleição argumentativa, à luz da lógica jurídica, mas
que não deve ser reduzido a operações de mera subsunção silogística, como já ficou dito.
Recorrendo aos cânones de interpretação e de aplicação jurídica, o julgador deverá, como
o acima exposto, proceder a uma análise dinâmica biunívoca entre o facto e a norma, de forma
a convocar, a partir do factualismo dado, o quadro normativo aplicável, ponderando o sentido
da norma, à luz dos princípios e dos valores jurídicos que lhe estão subjacentes, mas também
ajuizando sobre a sua adequação à espécie factual em presença e sopesando as consequências
práticas da sua aplicação.
Cumpre, pois, ao julgador fazer a concatenação entre a razão jurídica abstratamente
acolhida na lei e a razão prática latente no caso, sob o influxo dinamogénico do sentido
comunitário de justiça. Como já alguém afirmou, “é o conhecimento compartilhado do senso
comum que nos protege contra a insensatez intelectual” 26. Por via desse círculo hermenêutico,
o juiz extrai da norma abstrata, na confrontação do caso, o critério decisório sobre a pretensão
deduzida.
Quer na interpretação e desenvolvimento dos conceitos normativos, quer na ponderação
da sua aplicação prática, o intérprete-aplicador socorre--se da dogmática jurídica e dos
ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, na medida do que for estritamente necessário
para conferir racionalidade aos argumentos expendidos. Fá-lo-á com vista a persuadir os seus
destinatários do mérito da decisão, a permitir que exerçam sobre ela, em sede de impugnação,

26
Vide JOHN RALSTON, SAUL, On equilibrium, Penguin Canada, 2002, pag. 284.

358
Da sentença cível

um contraditório esclarecido ou ainda a proporcionar uma melhor compreensão por parte do


tribunal de recurso.

Neste conspecto, a economia da fundamentação depende, em larga escala, do rigor com


que é aplicado o método judiciário, mormente no que respeita:
• à prévia enunciação das questões a resolver;
• à determinação do quadro normativo aplicável e à interpretação dos dispositivos
legais;
• ao arrimo da argumentação de facto e de direito suficiente para suportar a conclusão
jurídica, com recurso aos contributos da doutrina e da jurisprudência, na exata medida
necessária à boa compreensão do julgado.

Desde logo, na enunciação das questões, partindo dos termos em que as partes as
suscitam ou em que devam ser suscitadas oficiosamente, há que proceder com clareza,
reformulando-as ou desdobrando-as nos diversos ângulos ou segmentos em que,
concretamente, importa abordá-las.

Na determinação do quadro normativo aplicável e na interpretação dos dispositivos legais


impõe-se ao intérprete-aplicador recorrer aos critérios da hermenêutica jurídica, guiando-se
pelos diversos fatores de interpretação (nomeadamente os dos art.º 9.º do CC), conforme já
foi referido, tomando como horizonte referencial a unidade do sistema, o universo dos
princípios e dos valores fundamentais que norteiam a ordem jurídica e a dimensão sociológica
envolvente.

A argumentação jurídica e o apelo à doutrina e à jurisprudência devem ser ajustados ao


grau de complexidade das questões sob o ponto de vista prático-jurídico, que não teórico-
especulativo. Por exemplo, a citação de um ensinamento doutrinário ou de uma orientação
jurisprudencial deve revelar-se proficiente na definição de determinado conceito normativo,
na densificação de um princípio jurídico ou mesmo na caracterização dos factos em análise, e
não ser motivada por razões de erudição, o que não significa que, por vezes, não se tenha de
recorrer a argumentos de autoridade, nomeadamente em situações inovatórias.

No campo argumentativo, convém ainda distinguir, por um lado, as razões que assumem
a função de considerandos, elementos essenciais, indispensáveis, do tecido discursivo; por

359
Da sentença cível

outro, as afirmações de caráter acessório, os chamados obiter dicta, elementos secundários de


mero reforço ou de contextualização dos argumentos essenciais. A sobriedade no uso de obter
dicta é um princípio salutar para que se evitem extrapolações que possam ofuscar,
enfraquecer ou desautorizar as razões fundamentais do julgado.

Em resumo, a análise fáctico-normativa da sentença deve ser orientada, segundo os


cânones da hermenêutica jurídica, mediante o jogo flexível dos factores de interpretação e
aplicação, tomando como horizonte de referência a unidade do sistema jurídico, o seu
universo axiológico e a base histórico-social do caso, numa dialética de circularidade recursiva
ou pendular, entre facto, norma e valor, ajustada à tridimensionalidade do fenómeno jurídico.
Nessa análise, a argumentação deve seguir um rumo de confluência para a solução do caso, a
partir das questões pertinentes enunciadas e deve ser seletiva nos tópicos a desenvolver, na
medida do que for estritamente necessário à estratégia da decisão. Neste aspecto,
argumentação judiciária revela uma feição bem distinta do discurso jurídico científico ou
doutrinário, que é, por natureza, mais irradiante, sistémico e exploratório, conforme as
estratégias de investigação teórica ou de prospeção doutrinária que se tenham em vista.
Por seu lado, o estilo de linguagem a adotar deverá ser claro e preciso, conjugando os
requisitos de compreensibilidade com as exigências de rigor técnico-jurídico e de certeza.

3.2.2.3.2.4. A decisão

A decisão, também designada por dispositivo da sentença, consiste na conclusão final, em


que o juiz determina, de forma clara e concisa, os efeitos jurídicos reconhecidos e dita os
comandos concretos correspetivos, ou nega a providência peticionada.

Trata-se de um discurso prescritivo, através do qual o juiz, consoante o caso:


• ou dita um comando concreto de conduta, tendo por objeto uma prestação de dar ou
de fazer;
• ou declara a existência ou inexistência de um facto ou de um direito;
• ou ainda decreta a produção de um efeito jurídico constitutivo, modificativo ou
extintivo.
O dispositivo da sentença não deve, em princípio, conter menções dos normativos
aplicáveis, uma vez que estes devem constar da parte respeitante à fundamentação jurídica.

360
Da sentença cível

O dispositivo da sentença de mérito decompõe-se, analiticamente:


a) Na formulação de um juízo de procedência ou de improcedência da acção, da
reconvenção ou da exceção perentória em causa;
b) Em caso de procedência, total ou parcial, das pretensões deduzidas:
• nas ações de simples apreciação, declara-se o efeito jurídico reconhecido ;
• nas ações de condenação, condena-se o réu na prestação ou prestações de dare ou de
facere que forem concretamente devidas;
• nas ações constitutivas, decreta-se o efeito constitutivo, modificativo ou extintivo a
operar;
c) Em caso de improcedência, absolve-se o réu do pedido.

O teor literal do dispositivo da sentença deve apresentar a clareza e a precisão


necessárias e suficientes à definição das prestações ou dos efeitos jurídicos concretos, objeto
da providência decretada, por forma a não suscitar dúvidas sobre a realização prática do
cumprimento ou da execução da decisão. Aliás, é uma exigência ditada por razões de certeza
jurídica do caso julgado e de compreensão objetiva do veredito.
Essa definição coloca-se com particular acuidade no domínio das prestações de facto, em
relação às quais se impõe uma adequada precisão dos contornos da prestação a efetuar, em
especial para efeitos de execução da sentença.
O dispositivo compreende ainda a condenação em custas da parte ou partes que por elas
forem responsáveis (art. 527.º e seguintes do CPC) com a fixação da responsabilidade
respetiva (art. 607.º, n.º 5, CPC) e, se for caso disso, a condenação em litigância de má fé, nos
termos dos artigos 542.º a 545.º, do CPC).

3.2.3. Registo e notificação da sentença

Encerrada a audiência final, a secretaria deve fazer o processo concluso ao juiz para
proferir sentença, nos termos dos artigos 162.º, n.º 1, e 607.º, n.º 1, do CPC.
As sentenças logo que proferidas são objecto de registo em livro próprio, como impõe o
n.º 4, do artigo 153.º, do CPC, e são notificadas às partes e ao Ministério Público (artigos 220.º,
252.º e 253.º, do CPC).
A notificação, as comunicações obrigatórias e o registo da sentença são de cumprimento
oficioso pela secretaria, pelo que não necessitam de ser ordenados na sentença. Todavia, nas
decisões da 1.ª instância é ainda uma prática persistente, embora dispensável, ao que

361
Da sentença cível

supomos, com a justificação de que é uma forma expedita de alertar o funcionário para o
cumprimento desse dever. No entanto, é de admitir que, em caso de se anteverem
dificuldades práticas, por parte da secretaria, em divisar as notificações ou comunicações a
fazer, o juiz o possa indicar.

4. Da Validade e Eficácia da Sentença


4.1. Esgotamento do poder jurisdicional

Proferida a sentença, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da


causa, de harmonia com o preceituado no artigo 613.º, n.º 1, do CPC.
Como excepções a esse princípio enumeram-se as seguintes hipóteses:
a) a retificação de erros materiais, nos termos dos artigos 613.º, n.º 2, e 614.º, do CPC;
b) o suprimento de nulidades da sentença, em conformidade com o disposto nos artigos
613.º, n.º 2, 615.º e 617.º, n.º 1, do CPC;
c) a reforma da sentença quanto a custas e a multa, nos termos dos artigos 613.º, n.º 2,
616.º, n.º 1, e 617.º, do CPC;
d) a reforma da sentença, em caso de erro de julgamento, de direito ou de facto,
manifesto, nos termos preconizados nos artigos 613.º, n.º 2, 616.º, n.º 2, e 617.º, do
CPC;
e) a homologação da desistência do pedido, da confissão ou da transacção, após a
prolação da sentença mas antes do respectivo trânsito, como decorre do estatuído no
artigo 283.º, do CPC.

Por outro lado, mesmo depois de transitada, a sentença pode ainda ser objecto de
revogação pelo próprio tribunal que a proferiu, mas já em sede dos recursos extraordinários
para uniformização de jurisprudência e de revisão, respectivamente nos termos previstos e
regulados dos 688.º a 695.º e 696.º a 702.º, do CPC.

4.2. Vícios da sentença


4.2.1. Quadro geral

A sentença pode padecer de vícios ou de diversos tipos 27, a saber:

27
Sobre esta matéria vide, entre outros, PAULO CUNHA, Processo Comum de Declaração, Apontamentos de
Artur Costa e Jaime Lemos, Tomo II, 2.ª Edição, Augusto Costa & C.ª L.ª, Braga, 1945, pp 347 e seguintes;

362
Da sentença cível

A – Vícios formais, em sentido lato, decorrentes da inobservância das regras que


garantem a idoneidade e disciplinam a elaboração da sentença, enquanto ato processual,
traduzindo-se em error in procedendo ou erro de actividade, que afetam a existência, a
perfectibilidade material ou a validade da mesma, o que pode, nos casos insupríveis,
prejudicar a própria apreciação do seu objeto;
B – Vícios substanciais, decorrentes da incorrecta ou ilegal apreciação das questões
solvendas, traduzida em error in judicando ou erro de julgamento, tanto em matéria
processual (v.g. apreciação de exceções dilatórias) como em matéria substantiva, de facto ou
de direito.
Os erros formais implicam, consoante as hipóteses, a inexistência, a retificação ou a
nulidade da sentença. Os vícios substanciais importam a sua revogação total ou parcial.

4.2.2. Dos vícios formais em sentido lato


4.2.2.1. Vícios de inexistência da sentença

A existência jurídica de uma sentença implica a verificação de quatro pressupostos


essenciais 28:
a) que seja proferida por pessoa investida no exercício da Função Jurisdicional, ainda que
se trate porventura de tribunal materialmente incompetente;
b) que contenha, no limite, uma decisão;
c) que essa decisão diga respeito a pessoas ou entidades equiparadas reais, que não
partes fictícias;
d) que revista uma forma legal mínima, ainda que não se tenha observado a forma
legalmente exigida.

Assim, são jurídico-processualmente inexistentes como sentença os actos que se traduzam


em:
• decisão com pretensão de sentença proferida por pessoa ou instituição destituída em
absoluto de poder judicial;

ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pp. 113 e
seguintes; CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Vol. II, Obras Completas, 2012, AAFDL, pp. 535 a 547.
28
Sobre o vício de inexistência da sentença, vide, em especial, CASTRO MENDES, Direito Processual Civil,
Vol. II, Obras Completas, 2012, AAFDL, pp. 535 a 537 e 543.

363
Da sentença cível

• emissão de um mero parecer ou opinião jurídica, por muito fundamentado que se


revele, ou ainda na hipótese extrema de um dispositivo absolutamente ininteligível;
• decisão reportada a pessoas fictícias ou inexistentes;
• decisão sem a mínima documentação nos autos; já a sentença ditada para a acta em
vez de proferida por escrito nos termos da lei não padece do vício de inexistência
jurídica, mas, quando muito, de uma irregularidade que pode não afectar a sua
validade processual, de harmonia com o disposto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC.

Uma questão que aqui se deixa ligeiramente enunciada é a que se refere à validade de
uma sentença transitada em julgado que incida sobre objeto física ou legalmente impossível,
contrário à lei, indeterminável, ou contrária à ordem pública ou ofensiva dos bons costumes.
Basta pensar em casos de sentenças proferidas em matérias que extravasam claramente do
âmbito da função jurisdicional. Ou então supor um caso em que, numa acção de divórcio que
correra termos à revelia do réu, se vem mais tarde a apurar que este já tinha falecido antes do
trânsito em julgado da sentença que decretou o divórcio; ou um caso em que, depois de
decretada a adoção plena, seja proferida sentença a estabelecer a filiação natural do
adoptado, contra a proibição do artigo 1987.º, do CC.
Ora, a sentença enquanto ato jurídico que é não pode deixar de cair no âmbito de
aplicação do artigo 280.º, aplicável por força do art. 297.º, do CC.
Assim sendo, afigura-se que, quando o objeto da sentença colida com o preceituado no
citado art. 280.º, deverá ser nula e de nenhum efeito, havendo mesmo autores que sustentam
a sua inexistência jurídica, mormente quando verse sobre matérias subtraídas à função
jurisdicional.
Nesta linha de entendimento, uma sentença que decrete o divórcio de pessoa já falecida
versa sobre objecto legalmente impossível, dado que a morte de um dos cônjuges já operou a
dissolução do casamento (art. 1788.º, do CC). O mesmo sucede com a sentença que estabeleça
a filiação natural em relação a uma pessoa já adoptada plenamente. Num e noutro caso
estaremos perante sentenças nulas e de nenhum efeito por impossibilidade legal.

4.2.2.2. Erros materiais


4.2.2.2.1. Caracterização

Os erros materiais da sentença, para os efeitos disposto nos artigos 613.º, n.º 2, e 614.º,
do CPC, podem consistir:

364
Da sentença cível

a) na omissão do nome das partes;


b) na omissão da condenação em custas imposta pelo artigo 527.º e seguintes e 607.º,
n.º 6, do CPC;
c) na verificação de erro de escrita ou de cálculo ou em qualquer inexatidão devida a
outra omissão ou lapso manifesto.
De referir que o erro de escrita ou de cálculo não se confunde com o erro de julgamento:
naquele, a vontade real diverge da vontade declarada – o juiz quis uma coisa e escreveu outra;
no erro de julgamento, a vontade real coincide com a vontade declarada – o juiz quis o que
escreveu, só que errou na formação dessa vontade.
De todo o modo, o erro material só é relevante quando seja ostensivo no contexto literal
da sentença ou das circunstâncias em que foi exarada (artigo 249.º, do CC). Nas palavras do
Prof. Alberto dos Reis, torna-se necessário que “as circunstâncias sejam de molde a fazer
admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro material; quis escrever uma coisa
e escreveu outra”.

4.2.2.2.2. Forma de suprimento

O suprimento dos erros materiais em referência faz-se por mera retificação nos termos e
segundo o procedimento previstos no artigo 614.º, do CPC:
a) Quanto à iniciativa (art. 614.º, n.º 1, parte final, do CPC

A iniciativa do suprimento dos erros materiais tanto pode ser desencadeada


oficiosamente como a requerimento das partes.

b) Quanto ao momento

Relativamente ao momento em que pode ocorrer tal suprimento, há que considerar o


seguinte:
• não havendo recurso, a todo o tempo (n.º 3 ,do art. 614.º);
• em caso de interposição de recurso, só até à subida deste, sem prejuízo da invocação
do erro material pelas partes perante o tribunal de recurso (n.º 2, do art. 614.º).

365
Da sentença cível

c) Quanto ao procedimento

No caso de sentença, a retificação faz-se mediante despacho subsequente, que a


complementa e passa a integrar, sendo suscetível, porém, de impugnação no recurso que dela
se interponha, nos termos do artigo 617.º, n.º 2, do CPC, se a ele houver lugar;
Se a retificação só ocorrer após o trânsito em julgado da sentença, ao abrigo do artigo
614.º, n.º 3, poderá a parte a quem a retificação for desfavorável, recorrer do despacho
retificativo, mas só nos termos gerais e de harmonia com o preceituado na alínea g), do n.º 2,
do artigo 644.º, do CPC;

d) Quanto aos efeitos

A decisão de retificação considera-se complemento da sentença retificada, passando a


integrá-la.
A decisão que indefira a retificação não é susceptível de recurso (art. 617.º, n.º 1, parte
final), sem prejuízo do direito de recorrer da decisão retificanda, nos termos gerais.
O despacho retificativo é passível de ser impugnado no âmbito do recurso que se
interpuser da sentença retificada, nos termos do artigo 617.º, n.º 2, parte final, do CPC.

4.2.2.3. Erros formais em sentido restrito


4.2.2.3.1. Quadro geral

A violação das normas que disciplinam, em geral (artigos 131.º, 133.º, n.º 1, 137.º, n.º 1,
153.º e 154.º, do CPC) e em particular (arts. 607.º a 609.º, do CPC), a elaboração da sentença,
enquanto ato processual que é, constitui o que se costuma designar por vício formal ou error
in procedendo, também designado “erro de atividade”, pode importar:
a) alguma das nulidades típicas da sentença previstas nas diversas alíneas do n.º 1, do
artigo 615.º, do CPC;
b) ou, subsidiariamente, as nulidades secundárias nos termos dos artigos 195.º e 199.º,
do CPC.
Porém, há que ter presente que das decisões proferidas pelo juiz da causa sobre as
nulidades previstas no art.º 195.º, do CPC, não cabe recurso, salvo se contenderem com os
princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a

366
Da sentença cível

admissibilidade de meios probatórios, como se prescreve no art.º 630.º, n.º 2, do mesmo


Código.
Além disso, como hoje a decisão de facto é integrada na sentença, também neste capítulo
se devem incluir os vícios formais da decisão de facto, traduzidos em deficiência, obscuridade
e contradição dos respetivos enunciados, previstos no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC,
bem com na falta de motivação da mesma, nos termos da alínea d), do mesmo normativo.

4.2.2.3.2. Das nulidades típicas da sentença


4.2.2.3.2.1. A falta de assinatura do juiz

O artigo 153.º, n.º 1, do CPC, impõe que a sentença seja assinada pelo juiz, sendo que a
falta deste requisito externo importa a nulidade da sentença, que é, porém, suscetível de
suprimento, oficiosamente ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível
colher essa assinatura, devendo o juiz declarar no processo a data em que apôs a assinatura,
nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do CPC. Mas, se a assinatura for
electrónica, não haverá lugar a essa declaração (art.º 615.º, n.º 3, do CPC)
Não sendo possível colher a assinatura, a sentença deve ser anulada e proferida nova
sentença.

4.2.2.3.2.2. A falta de fundamentação de facto e de


direito

Segundo o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, as decisões dos tribunais que não sejam de
mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei. Esta directriz constitucional está
concretizada no artigo 154.º, do CPC, que reza o seguinte:
1 - As decisões sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada são
sempre fundamentadas.
2 – A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no
requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a
contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta
simplicidade.
Todavia a lei admite formas simplificadas de fundamentação das decisões, nas hipóteses
previstas nos artigos 385.º, n.º 3, 567.º, n.º 3, do CPC, nomeadamente por adesão aos
fundamentos alegados pelo autor.

367
Da sentença cível

Em regra, como já foi referido, na fundamentação da sentença, o juiz deve discriminar os


factos licitamente admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão com
eficácia probatória plena e os factos provados e não provados em sede de instrução, motivar
esta decisão de facto, como exige o artigo 607.º, n.º 3 e 4, do CPC. Além disso, deve fazer o
exame crítico global da factualidade relevante e proceder ao seu enquadramento jurídico,
indicando, interpretando e aplicando as disposições legais pertinentes (art. 607.º, n.º 4).
A fundamentação das decisões é, aliás, uma exigência de racionalidade postulada pela
sistematicidade do Direito e pelo princípio constitucional da submissão dos Tribunais à
Constituição e à lei (arts. 203.º e 204.º, da CRP), garantia essencial de um Estado de direito
democrático. Só assim é que as decisões dos Tribunais são susceptíveis de convencimento ou
de oposição esclarecida sobre o seu mérito, por parte dos destinatários da justiça.
Ora o artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, sanciona com a nulidade da sentença as
hipóteses de violação grave do dever de fundamentação.
Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se
mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente
é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica
adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível
de um juízo de mérito negativo.
A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo
factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de
forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.
Com efeito, a falta ou a ininteligibilidade da fundamentação de facto ou de direito da
sentença, na perspectiva do vício em foco, é similar ao vício respeitante à falta ou à
ininteligibilidade da causa de pedir prevista na alínea a), do n.º 2, do artigo 186.º, do CPC,
devendo, nessa medida, ser aferida em função da inviabilidade de suportar um juízo de mérito
positivo ou negativo e, por consequência, de traçar o limite objetivo do caso julgado nos
termos requeridos pelo artigo 619.º e 621.º, do CPC. Trata-se, por conseguinte, de um vício
formal ou de error in procedendo, que importa a anulação da sentença enquanto acto
processual 29.

29
A este propósito, sobre a distinção entre nulidade e revogabilidade da sentença, associadas,
respectivamente, aos vícios formais e ao erro de julgamento, vide CASTRO MENDES, Direito Processual Civil,
Vol. II, Obras Completas, 2012, AAFDL, pags. 543 a 547.

368
Da sentença cível

4.2.2.3.2.3. Oposição entre os fundamentos e a


decisão

Segundo o artigo 607.º, n.º 3, parte final, do CPC, o juiz na sentença deverá concluir pela
decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação
discursiva entre:
• a base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável
– a dita premissa maior;
• a factualidade dada como provada – a dita premissa menor;
• e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro
normativo.
Entre tais premissas e conclusão deve existir portanto um nexo lógico que permita, no
limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se
verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa
relação de recíproca exclusão lógica. Na verdade, sobre dois termos excludentes nem tão
pouco é viável formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de
uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito.
Ora a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício
formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º, do CPC,
quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer
desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar
sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera
inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de
julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da acção.

4.2.2.3.2.4. Omissão e excesso de pronúncia

De harmonia com o artigo 608.º, n.º 1, do CPC, o juiz na sentença deve conhecer de todas
as questões processuais, suscitadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso, e não
se encontrem precludidas, que determinem a absolvição do réu da instância – são as
chamadas excepções dilatórias. Ainda nesta sede, o juiz deve conhecer das nulidades
processuais arguidas pelos litigantes ou que sejam de conhecimento oficioso, ajuizando sobre
a sua relevância anulatória, ao abrigo do disposto nos artigos 196.º e 200.º, do CPC, a não ser
que as considere sanadas ou precludidas, nos termos da lei.

369
Da sentença cível

O juiz deve, seguidamente, conhecer das questões de mérito – pretensão ou pretensões


do autor, pretensão reconvencional, pretensão do terceiro oponente, e exceções perentórias –
, só podendo ocupar-se das questões que forem suscitadas pelas partes ou daquelas cujo
conhecimento oficioso a lei permite ou impõe, como no caso das chamadas exceções
impróprias, salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras questões, de acordo
com o, preceituado no n.º 2, do artigo 608.º, do CPC.
Nesta linha, constituem questões, por exemplo, cada uma das causas de pedir múltiplas
que servem de fundamento a uma mesma pretensão, ou cada uma das pretensões, sob
cumulação, estribadas em causas de pedir autónomas, ou ainda cada uma das exceções
dilatórias ou perentórias invocadas pela defesa ou que devam ser suscitadas oficiosamente.
Porém, já não integra o conceito de questão, para os efeitos em análise, as situações em
que o juiz porventura deixe de apreciar algum ou alguns dos argumentos aduzidos pelas partes
no âmbito das questões suscitadas. Neste caso, o que ocorrerá será, quando muito, o vício de
fundamentação medíocre ou insuficiente, qualificado como erro de julgamento, traduzido
portanto numa questão de mérito.
Também não constitui vício de omissão de pronúncia, mas erro de julgamento, os casos
em que o juiz deixou de atender a factos alegados pelas partes ou licitamente introduzidos
durante a instrução da causa, nos termos do art.º 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, quando tais
factos se mostrem indispensáveis para a decisão. Perante esta hipótese, a sua invocação em
sede de recurso, sendo procedente, impõe que o tribunal de recurso atenda ao facto em falta,
se o mesmo se encontrar provado, ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 3, e 4, 2.ª parte,
aplicável por força da norma remissiva do n.º 2, do artigo 663.º, ambos do CPC.
Mas se o facto em falta não se encontrar provado e for indispensável para a resolução da
causa, então haverá que anular a sentença e determinar a ampliação da matéria em foco,
ordenando a baixa do processo à primeira instância para repetição do julgamento, nessa parte
sem prejuízo de apreciação de outros pontos da matéria de facto, de modo a evitar
contradições, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), parte final, e n.º 3, alínea c), do CPC.
Neste caso, o que releva, ao fim e ao cabo, é o erro de procedimento consistente em não se
ter submetido a prova o facto em falta; daí que a consequência seja a anulação da sentença.

A omissão ou a exorbitância de pronúncia quanto às questões suscitadas pelas partes ou


àquelas de que cumpra ao juiz conhecer oficiosamente, constitui fundamento de nulidade da
sentença, por força do disposto na alínea d), do n.º 1, do artigo 668.º, do CPC.

370
Da sentença cível

4.2.2.3.2.5. Condenação em quantidade superior ou


em objecto diverso do pedido

O n.º 1, do artigo 609.º, do CPC, prescreve que a sentença não pode condenar em
quantidade superior (limite quantitativo) ou em objeto diverso do que se pedir (limite
qualitativo).
Porém, se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade do pedido, o n.º 2,
do artigo 609.º, do CPC, permite que o juiz profira decisão genérica, mormente, condenando o
réu no que vier a ser liquidado em ulterior incidente processual, nos termos previstos nos
artigos 358.º, n.º 2, e 360.º, n.º 3, do CPC. A decisão genérica tanto pode ocorrer nos casos em
que foi formulado pedido genérico, ao abrigo do n.º 1, do artigo 556.º, do citado Código, como
ainda nos casos em que, muito embora tenha sido deduzido pedido específico, da instrução da
causa não se apuraram elementos de prova que permitam fixar em concreto o objeto ou o
quantum em apreço.
A este propósito, tem-se suscitado o problema de saber como articular o n.º 2, do artigo
609.º, do CPC com o disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, que permite ao tribunal julgar
equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, quando não puder ser averiguado
o valor exato dos danos; ou seja, qual a hierarquia de aplicação dos dois normativos.
Importa, assim, distinguir os dois planos em que se inscrevem tais normativos 30.
Em primeiro lugar, aquando da prolação da sentença, o juiz deverá ponderar se ainda se
mostra viável averiguar o valor dos danos em sede do incidente póstumo de liquidação e, em
caso afirmativo, proferirá condenação genérica, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do CPC. Se,
contudo, no âmbito do incidente de liquidação a prova produzida pelos litigantes for ainda
assim insuficiente, ao juiz incumbe completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando,
designadamente, a produção de prova pericial, como preceitua o n.º 4, do artigo 360.º, do
CPC. Só, em último caso, usará do critério da equidade na fixação do montante dos danos, nos
termos do n.º 3, do artigo 566.º, do CC.
Se, face aos elementos em análise, se mostrar, desde logo, de todo desnecessário ou
inviável tal apuramento subsequente, o juiz procederá então à imediata fixação do valor dos
danos, segundo critérios de equidade, dentro dos limites tidos por provados, ao abrigo do n.º
3, do artigo 566.º, do CC. Neste sentido, tenha-se presente o acórdão da Relação de Évora, de
22-11-1985, cujo sumário se encontra publicado no BMJ n.º 343.º, pag. 390, em que se decidiu
que: O recurso à equidade previsto no art. 566.º, n.º 3, do CC, depende da verificação dos

30
A este propósito, vide comentário do Professor Doutor VAZ SERRA, RLJ Ano 114º, pags. 278.

371
Da sentença cível

requisitos seguintes: a) – que esteja apurado um mínimo de elementos sobre a natureza dos
danos e a sua extensão, que permita ao julgador computá-los em valores próximos daqueles
que realmente lhes correspondem; b) – que já não seja possível averiguar o valor exacto dos
danos.
Em qualquer dos casos, convém não confundir as situações de insuficiência de prova
quanto à existência de dano com a insuficiência de prova apenas quanto ao respectivo
montante, ou melhor dizendo, não confundir a espécie de dano com a determinação do seu
quantum. Só nesta última hipótese é que se coloca a questão da fixação do montante do dano
em liquidação posterior ou segundo a equidade, já que na primeira hipótese estamos perante
uma situação de improcedência da ação por insuficiência de prova quanto à verificação de um
facto essencial relativo à pretensão indemnizatória, o que importará a absolvição do pedido.
Outro ponto controverso tem sido o de saber se, no domínio das dívidas de valor, como
sucede no âmbito das ações de indemnização, o juiz pode, oficiosamente, na sentença,
proceder à atualização do valor inicialmente peticionado, sem violação do disposto no artigo
609.º, n.º 1, do CPC. Existe divergência doutrinária e jurisprudencial sobre essa matéria,
havendo quem sustente que a atualização oficiosa ainda se situa nos limites do valor real do
pedido, sendo por isso legalmente admissível.
Todavia, o STJ, no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 13/96, de 15-10, fixou o
entendimento de que “o tribunal não pode, nos termos do art. 661.º, n.º 1 (atual 609.º), do
CPC, quando condenar em dívida de valor, proceder à sua actualização em montante superior
ao pedido”.
Também no que respeita à fixação ou condenação em objeto diferente do pedido se tem
suscitado dúvidas sobre o alcance prático deste limite, em particular nos casos em que a
solução passa por uma qualificação jurídica diversa da sustentada pelo autor ou reconvinte. É
o que acontece quando, por exemplo, o autor pede a declaração de resolução de um contrato
com fundamento em incumprimento, mas em que se verifica que o contrato em crise é nulo
por falta de forma; ou quando, por exemplo, o autor instaura uma ação de impugnação
pauliana, concluindo, erradamente, pela invalidade (nulidade ou anulabilidade) do negócio
impugnado, sendo que o efeito adequado é o da ineficácia relativa, à luz do disposto no artigo
616.º, n.º 1 e 4, do CC. Será que o tribunal poderá, na primeira hipótese, declarar a nulidade
do contrato e decretar a respectiva consequência restituitória, ao abrigo do disposto nos
artigos 286.º e 289.º, do CC, e, na segunda hipótese, decretar a ineficácia do negócio
impugnado, dando ainda provimento à pretensão do autor?

372
Da sentença cível

A solução desta questão pressupõe, antes de mais, a interpretação do pedido e o


entendimento de que este consiste no efeito prático-jurídico pretendido e não tanto na
coloração jurídica que lhe é dada pelo autor. Na verdade, é unânime a doutrina de que o
tribunal não está adstrito à qualificação jurídica dada pelas partes, já que, à luz do disposto no
artigo 5.º, n.º 3, do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação,
interpretação e aplicação das regras de direito.
Assim sendo, se a situação se reconduzir a um mero erro de qualificação jurídica na
formulação do pedido, aferido em função do contexto da pretensão, parece que nada obsta a
que o tribunal decrete o efeito prático pretendido, ainda que com fundamento em base
jurídica diversa. Quando muito, importará ouvir previamente as partes sobre a solução
divergente, na medida em que tal se mostre necessário a evitar uma decisão-surpresa, nos
termos do n.º 3, do artigo 3.º, do CPC.
De resto, há mesmo hipóteses em que a própria lei permite a convolação para efeito
jurídico diverso, como sucede no âmbito das acções possessórias, em que o tribunal pode
decretar a manutenção ou a restituição da posse conforme a situação realmente verificada,
mesmo que o autor tenha pedido o outro efeito (art. 609.º, n.º 3, do CPC); ou no domínio das
ações de interdição e de inabilitação, em que o tribunal decretará a interdição ou a
inabilitação, consoante o grau de incapacidade do requerido, independentemente de se ter
pedido uma ou outra (art. 901.º, n.º 1, do CPC). Também, no domínio dos procedimentos
cautelares, o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida, podendo
decretar a medida cautelar adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado, como se
alcança do disposto no n.º 3, do artigo 376.º, do CPC, sendo, porventura, discutível se ou em
que medida é que esta norma é aplicável aos procedimentos cautelares especificados. Uma
outra hipótese de condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido é a
que se encontra prevista no artigo 74.º, do Código de Processo do Trabalho.
A este propósito, importa referir que o STJ fixou jurisprudência no sentido de admitir a
convolação jurídica nos casos da impugnação pauliana, quando o autor tenha pedido a
anulação ou a nulidade do contrato, sendo de decretar a mera eficácia relativa nos termos do
art. 616.º, do CC 31 e da verificação da nulidade de um contrato 32.

31
AUJ n.º 3/2001, de 23 de janeiro, publicado no DR, de 9-12-2001.
32
AUJ de 28/3/95,publicado no DR, de 17/5/95.

373
Da sentença cível

Fora dos parâmetros referidos, a sentença que fixar quantidade superior ou objeto
diverso do que for pedido será afetada de nulidade, conforme o consignado na alínea e), do
n.º 1, do artigo 668.º, do CPC.

4.2.2.3.3. Vícios formais da decisão de facto

Os enunciados dos factos considerados provados podem padecer de deficiência,


obscuridade ou contradição, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, ou ainda de
excesso, se exorbitarem do âmbito da matéria alegada ou licitamente introduzida durante a
instrução da causa.
Os enunciados serão deficientes quando expressem um sentido incompleto do juízo
probatório, nos seus próprios termos, não abranjam toda a factualidade relevante ou quando
não cubram, de forma positiva ou negativa, todo o facto enunciado como provado. Serão
obscuros, quando sejam vagos, ininteligíveis, equívocos ou imprecisos. Serão contraditórios,
quando exprimam sentidos reciprocamente excludentes.
Os referidos vícios de deficiência, obscuridade, de contradição ou de excesso da
factualidade enunciada na sentença podem ser arguidos como fundamento do recurso de
apelação que dela se interponha e mesmo conhecidos oficiosamente pelo tribunal superior,
nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), e também, em sede de revista, quando se
traduzam em necessidade de ampliação ou de eliminação de contradição, nos termos do n.º 3,
do art.º 682.º, do CPC.

Outro vício formal da decisão de facto, previsto no citado artigo 662.º, n.º 2, alínea d), é a
falta de fundamentação devida da decisão proferida sobre algum facto essencial para o
julgamento da causa.
Em tal hipótese, o tribunal de recurso poderá determinar, oficiosamente, que o tribunal
de 1.ª instância fundamente a decisão, naquela parte, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea
d), e n.º 3, alínea b), do CPC.
Das decisões da Relação sobre os vícios em referência não cabe recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça (n.º 4, do art.º 662.º, do CPC).

Vício distinto dos anteriores, no contexto da decisão de facto, é o que consiste em o


tribunal nela incluir questões de direito, ou então factos que só se possam provar por
documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou

374
Da sentença cível

confissão das partes, o que implica que tal pronúncia se considere como não escrita ou
irrelevante, nos termos gerais.

4.2.2.3.4. Nulidades secundárias ou irregularidades da


sentença

A par dos vícios acima identificados, a sentença pode ainda enfermar de outros vícios ou
irregularidade, por inobservância de requisitos formais que disciplinam em geral, a prática dos
actos processuais e, em particular, dos atos dos magistrados, nos termos conjugados dos
artigos 131.º e segs., 153.º e segs. e 195.º, do CPC. Tais vícios ou irregularidades só geram
nulidade processual quando a lei o declare ou quando possam influir no exame ou na decisão
da causa, como prescreve o n.º 1, do citado art. 195.º.
Face à ocorrência de nulidade secundária da sentença, assiste às partes o direito de argui-
la, nos termos dos arts. 196.º, 2.ª parte e 199.º, do CPC.
Porém, como já foi dito, da decisão do juiz da causa sobre essa nulidade não cabe recurso,
salvo se contender com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição
processual de factos ou com a admissibilidade de meios de prova, nos termos do art.º 630.º,
n.º 2, do CPC.

4.2.3. Erro de Julgamento (error in judicando)


4.2.3.1. Caraterização geral

O erro de julgamento na sentença pode traduzir-se em duas espécies bem distintas: erro
de direito e erro de facto.

A – O erro de direito ocorre quando o juiz, ao decidir as questões em apreço, falha na


determinação das normas aplicáveis ou com base em interpretação ou aplicação incorreta das
mesmas – erro de determinação, erro de interpretação ou erro de aplicação.
O erro de julgamento em matéria de direito tanto pode respeitar à violação de normas do
direito substantivo, incluindo as disposições legais expressas que exijam certa espécie de prova
para a existência de um facto ou que fixem a força de determinado meio de prova, como
também a normas de direito adjetivo em que se estriba a decisão, o que significa que tanto
pode suceder em sede de decisão de mérito, como no âmbito de uma decisão de forma, por
exemplo, quando se conhece de uma exceção dilatória determinativa da absolvição do réu da

375
Da sentença cível

instância. Incorre-se também em erro de julgamento, na modalidade referida, quando se


atende a factos não alegados pelas partes, nem suscetíveis de conhecimento oficioso, em
violação do preceituado no artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

B – O erro de facto ocorre nos casos em que o juiz valore erradamente os factos ou ainda
quando não atenda a factos pertinentes alegados ou licitamente introduzidos na causa e que
se encontrem provados.
O erro de julgamento de facto por incorreta valoração da prova é apreciado à luz do
critério da livre convicção do julgador, incluindo os casos de erro nas ilações extraídas de
presunções judiciais (arts. 349.º e 351.º, do CC).

Qualquer das espécies de erro de julgamento em destaque pode radicar em manifesto


lapso do juiz, no termos definidos no art. 616.º, n.º 2, do CPC, seja na determinação da norma
aplicável ou na qualificação jurídica dos factos (erro de direito manifesto), seja por não tomar
em consideração documentos ou quaisquer outros elementos constantes do processo que, por
si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida (erro de facto manifesto). A
relevância autónoma do erro de julgamento manifesto prende-se com a suscetibilidade de ser
reparado pelo próprio tribunal que proferiu a decisão, quando houver lugar a recurso
ordinário ou de ser passível de reclamação para o mesmo tribunal, se não houver lugar a este
recurso.
A ocorrência do erro de facto coloca-se, hoje, no âmbito da própria sentença. Daí que
importe, antes de mais, ter presente o tipo de vícios que podem infirmar a decisão de facto.

4.2.3.2. Do erro de julgamento quanto à decisão de facto

O erro de julgamento da decisão de facto ocorre quando o juiz aprecia incorretamente a


prova, de forma a viciar o juízo probatório formado sobre cada facto. Este erro é sindicável
perante o tribunal superior, nos termos dos artigos 640.º, n.º 1 e 2, e 662.º, n.º 1, do CPC.
Para tanto, o artigo 640.º, n.º 1, exige como ónus de impugnação, sob pena de rejeição do
recurso, na parte afetada, que o recorrente especifique: a) – os concretos pontos de facto que
considera incorretamente julgados; b) – os concretos meios probatórios, constantes do
processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da
matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) – a decisão que, no seu entender, deverá
ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

376
Da sentença cível

O sobredito ónus de impugnação é ainda aplicável ao recorrido, quando pretenda alargar


o âmbito do recurso (n.º 3, do art.º 640.º).
Assim, a apreciação do erro de julgamento da decisão de facto é confinada aos pontos
impugnados, mas já quanto ao âmbito da investigação probatória o tribunal de recurso tem
amplo poder inquisitório sobre a prova produzida ou documento superveniente
oportunamente junto (art.º 425.º), que imponham decisão diversa, como decorre do
preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, bem como de ordenar a renovação da prova ou
mesmo a produção dos novos meios de prova, nos exatos termos do n.º 2, alíneas a) e b), do
mesmo artigo, sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas
partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido.
Além disso, como é hoje jurisprudência seguida, a reapreciação da decisão de facto
impugnada não se reduz à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a
quo. Consiste antes numa reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de
formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame
das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda produzir, para só, em face dessa convicção,
decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos
probatórios em causa.

Quando o erro do julgamento consista no não atendimento de facto alegado pelas partes
ou licitamente introduzido durante a instrução e que se encontre provado, compete ao
tribunal de recurso integrá-lo na factualidade provada, nos termos do art.º 607.º, n.º 3,
aplicável por via dos art.º 663.º, n.º 2, do CPC.

5. Impugnação da Sentença
5.1. Noção de trânsito em julgado

Segundo o disposto o art. 628.º do CPC, a decisão considera-se passada ou transitada em


julgado, logo que não seja suscetível de recurso ordinário, ou de reclamação.
Após o trânsito, a decisão ganha estabilidade, só podendo ser alterada, excecionalmente,
por via dos recursos extraordinários para uniformização de jurisprudência e de revisão,
respectivamente nos termos previstos e regulados nos artigos 688.º a 695.º e 606.º a 702.º, do
CPC. E atinge a sua estabilidade máxima, tornando-se então imutável, quando decorram os
prazos previstos nos artigos 689.º, n.º 1, e 697.º, n.º 2 e 3, do CPC, para a interposição desses
recursos extraordinários.

377
Da sentença cível

Em resumo, as decisões judiciais podem ser impugnadas por três meios:


a) em regra, por via de recurso ordinário, antes de transitarem em julgado, interposto
para o tribunal superior;
b) mediante reclamação deduzida perante o próprio tribunal que tenha proferido a
decisão, também antes de esta transitar em julgado, quando não haja lugar a recurso
ordinário, sem prejuízo dos casos especiais de retificação ou reforma quanto a custas
e multa, em que pode ser deduzida reclamação independentemente da interposição
do recurso, nos termos dos artigos 614.º e 616.º, nº 1, do CPC;
c) por meio de recurso extraordinário após transitarem em julgado.

5.2. Meios de impugnação da sentença


5.2.1. Reclamação

A – Âmbito
A impugnação da decisão judicial mediante reclamação só pode fundar-se na arguição de
vício formal ou de procedimento que a afete enquanto ato processual, nos casos de:
a) nulidades da sentença, nos termos previstos no art. 615.º, aplicável aos despachos
por via do n.º 3, do art. 613.º, ambos do CPC;
b) erro manifesto de direito ou de facto, quando não haja lugar a recurso ordinário, nos
termos do n.º 2, do art. 616.º, do CPC;
c) nulidades secundárias, nos termos previstos nos artigos 195.º, 196.º, parte final, e
199.º, do CPC.

A reclamação pode ter ainda por fundamento o erro de julgamento quanto as custas e
multa, nos termos do n.º 1, do art. 616.º, do CPC. Mas, se couber recurso da decisão, tal erro
terá de ser suscitado na alegação desse recurso (art. 616.º, n.º 3, CPC). Note-se que o erro de
julgamento quanto a custas respeita à determinação do responsável por elas e (ou) à medida
dessa responsabilidade, mormente por violação dos critérios de incidência subjetiva
estabelecidos nos arts. 527.º e seguintes do CPC, o que é bem distinto da hipótese de reforma
da conta prevista no art.º 31.º, do RCP.

Quando da sentença couber recurso ordinário, tanto as nulidades da sentença previstas


nas alíneas b) a e) do n.º 1 do art. 615.º, como a reforma de custas e multa, previstas no n.º 1,

378
Da sentença cível

do artigo 616.º, ou ainda o erro manifesto de facto ou de direito previsto no n.º 2, deste
mesmo artigo, terão de ser suscitados por via de recurso, como decorre do disposto nos
artigos 615.º, n.º 4, 616.º, n.º 2 e 3, e 617.º, n.º 1, do CPC, observando-se depois o preceituado
nos n.º 2 a 6, do citado artigo 617.º Assim, a reclamação autónoma só é admissível quando a
decisão não admita recurso ordinário, salvo se a parte a ele renunciar.

B – Oportunidade

A reclamação, quando não haja lugar a recurso ordinário, deve ser deduzida no prazo
geral de dez dias previsto no art.º 149.º, do CPC. A nulidade da sentença por falta de
assinatura do juiz pode ser, no entanto, suprida, oficiosamente ou a requerimento das partes,
enquanto for possível colher essa assinatura (n.º 2, do art. 615.º, do CPC).
A reclamação da decisão com fundamento em nulidade secundária, nos termos previstos
no n.º 1, do art. 195.º, do CPC, será deduzida no prazo geral previsto no art. 149.º, mas com a
aplicação do disposto no n.º 1, do art. 199.º, do mesmo Código.

C – Procedimento

Deduzida a reclamação com fundamento nas nulidades previstas alíneas b) a e) do art.


615.º, ou pedida a sua reforma nas hipóteses previstas no artigo 616.º, n.º 1 e 2, do CPC, a
secretaria deverá notificar, oficiosamente, a parte contrária para responder no prazo geral,
após o que o juiz decidirá da reclamação.
A decisão que defira a arguição de nulidade ou de reforma constitui complemento
integrante da decisão reclamada (art.º 617.º, n.º 2 CPC); do despacho que indefira tal arguição
não cabe recurso (art. 617.º, n.º 1, parte final, do CPC).
Como já foi referido, quando da sentença couber recurso ordinário, tanto as nulidades
previstas nas alíneas b) a e), do n.º 1, do artigo 615.º como a reforma de custas e multa,
previstas no n.º 1, do artigo 616.º, ou ainda o erro manifesto de facto ou de direito previsto no
n.º 2, deste último artigo, só são arguíveis em sede desse recurso, observando-se os
procedimentos previstos nos n.º 2 a 6, do artigo 617.º.
A reclamação fundada em nulidade secundária da decisão segue o regime previsto nos
artigos 196.º, 2.ª parte, e seguintes do CPC. Da decisão dessa reclamação só caberá recurso,
como já foi dito, quando aquela contender com os princípios da igualdade ou do contraditório,

379
Da sentença cível

com a aquisição processual ou com a admissibilidade de meios probatórios (art.º 630.º, n.º 2,
CPC).

5.2.2. Recurso

A impugnação de decisão judicial não transitada em julgado com fundamento em erro de


julgamento, ou com fundamento nas nulidades da sentença previstas nas alíneas b) a e), do n.º
1, do art. 615.º, do CPC, ou ainda nos termos do artigo 616.º, só poderá ser deduzida por meio
de recurso ordinário para tribunal superior, como estatui o n.º 1, do art. 627.º, do CPC, mas só
nos casos em que tal for admissível.
Segundo o n.º 2, do referido art.º 627.º, existem duas espécies de recurso ordinário:
apelação e revista.
A decisão judicial já transitada em julgado é, excepcionalmente, passível de impugnação
por via dos recursos para uniformização de jurisprudência e de revisão e de oposição de
terceiro (art. 627º, nº 2, in fine, CPC).

Quanto ao requisitos do ónus de impugnação, importa distinguir os relativos à decisão de


direito e os respeitantes à decisão de facto.

No domínio da impugnação sobre a matéria de direito, o artigo 639.º, n.º 1 e 2, do CPC,


exige que o recorrente, nas alegações recursórias, formule conclusões, de forma sintética,
indicando os fundamentos pelos quais pede a alteração ou a anulação da decisão,
especificando:
a) as normas jurídicas violadas;
b) o sentido com que entende que as normas que servem de fundamento à decisão
devem ser interpretadas e/ou aplicadas;
c) a norma jurídica que entende dever ser aplicada, em caso de invocação de erro na
determinada dessa norma.
Tais requisitos não se aplicam, porém, ao Ministério Público, quando recorra por
imposição legal (art.º 639.º, n.º 5).
As conclusões delimitam assim o âmbito do recurso, nos termos do artigo 635.º, n.º 2 a 5,
do CPC, sendo que a sua falta absoluta implica indeferimento imediato do recurso, por força
do art.º 641.º, n.º 2, alínea b), parte final.

380
Da sentença cível

Já nos casos de conclusões deficientes, obscuras, complexas ou quando nelas se não


tenha procedido às especificações exigidas pelo n.º 2, do art.º 639.º, o relator deve convidar o
recorrente a completá-las, esclarecê-las, ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de
não se conhecer do recurso, na parte afetada, como preceitua o n.º 3, daquele normativo.
Não obstante isso, o tribunal de recurso não fica vinculado ao enquadramento jurídico
invocado pelo recorrente, podendo julgar o recurso em conformidade com o quadro
normativo que considere aplicável, ao abrigo da norma geral do n.º 3, do artigo 5.º, do CPC.
Também, em sede da impugnação da decisão de facto, o artigo 640.º, n.º 1 e 2, do CPC,
exige que o recorrente, sob pena de rejeição do recurso na parte afetada:
a) especifique os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especifique os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou
gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos impugnados diversa
da recorrida;
c) especifique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de
facto impugnadas;
d) no caso de especificação dos meios probatórios que tenham sido gravados, indique
com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de
poder proceder à transcrição dos excertos que considere importantes.
Os requisitos em referência são também aplicáveis, nos termos do artigo 640.º, n.º 2,
alínea c), e n.º 3, do CPC, consoante os casos, ao recorrido:
(i) – quando convoque meios de prova com vista a infirmar as conclusões do recorrente,
aqui sem prejuízo dos poderes de investigação do tribunal;
(ii) – e ainda quando pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2, do
artigo 636.º.
Questão duvidosa, e que não encontra solução unânime na jurisprudência, é saber se as
especificações a que se referem os n.º 2 e 3, alínea a), do citado artigo 640.º, devem ser
incluídas nas conclusões do recurso ou se bastará inseri-las no corpo das alegações.
Segundo certa linha de orientação, uma vez que a lei não contém norma expressa sobre
essa exigência formal, bastará incluí-las no corpo das alegações.
Noutra linha de entendimento, se situam os que entendem que, sendo o âmbito do
recurso traçado pelo teor das conclusões, devem estas conter também os requisitos do ónus
de impugnação da decisão de facto, por aplicação subsidiária no n.º 1, do artigo 639.º.
Perante esta divergência, afigura-se que, na verdade, pelo menos a especificação dos
concretos pontos de facto impugnados e da decisão a proferir sobre eles, delimita o objeto do

381
Da sentença cível

recurso sobre a decisão de facto, pelo que não se vislumbram razões para não exigir tal
especificação em sede de conclusões. Já no domínio da especificação dos meios probatórios e
da indicação das passagens da gravação, não divisamos razões ponderosas para as levar ao
quadro conclusivo, tanto mais que as mesmas nem sequer confinam o campo de investigação
do tribunal, como, aliás, decorre, do disposto no n.º 1, do artigo 662.º, do CPC.
Seja como for, mesmo na linha mais restritiva, em face da pouca clareza da lei, será
recomendável que, na falta da especificação conclusiva tida por necessária, desde que feita no
corpo das alegações, o relator convide então o recorrente a aperfeiçoar as conclusões,
lançando mão da aplicação analógica do n.º 3, do artigo 639.º
Outro ponto duvidoso prende-se com o rigor com que deve ser aplicada a sanção prevista
no n.º 2, alínea a), do art.º 640.º, do CPC, para a falta de indicação exata das passagens das
gravações dos depoimentos em causa.
Em termos práticos essa indicação, em regra, não obsta à fácil pesquisa e leitura das
gravações, não se mostrando até muito operacional uma indicação saltitante dos depoimentos
gravados, tendo em conta a intercorrência dos interrogatórios e das respetivas instâncias.
Nessa medida, afigura-se mais curial flexibilizar aquela exigência, reservando-a para os
casos graves em que a falta de tal indicação obste à audição do recorrido na organização da
sua defesa ou porventura ao exame do tribunal de recurso, embora seja recomendável que o
recorrente se paute sempre pelo rigor legal para evitar que seja arguida essa nulidade.

6. Efeitos da Sentença
6.1. Efeitos de natureza processual

Proferida a sentença, esgota-se o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa,


como prescreve o n.º 1, do artigo 613.º, do CPC, o que se traduz num primeiro nível de
estabilidade do julgado, o qual só poderá ser modificado nos casos especialmente previstos na
lei já acima referidos.

O segundo nível de estabilidade é atingido com o trânsito em julgado, na noção dada pelo
artigo 628.º, do CPC, isto é, quando a decisão já não seja suscetível de recurso ordinário ou de
reclamação.
O trânsito em julgado da sentença, seja qual for o seu âmbito, provoca a extinção da
instância, como consigna o art.º 277.º, alínea a), do CPC, sem prejuízo das hipóteses de

382
Da sentença cível

renovação prevista, genericamente, nos artigos 261.º, n.º 2, 282.º e 358.º, n.º 2, do mesmo
Código.

Não obstante isso, haverá ainda lugar a procedimentos ulteriores, tais como:
• aos procedimentos de contagem do processo e de eventual reclamação da conta, nos
termos dos artigos 29.º e seguintes, do RCP;
• aos atos de pagamento das custas em dívida (arts. 32.º e seguintes, do RCP);
• ao visto de fiscalização do Ministério Público e ao subsequente visto em correição do
juiz, nos termos do n.º 2, do artigo 156.º, n.º 2, da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto,
correspondente ao art. 126º, da Lei nº 3/99, de 13 de janeiro (LOFTJ);
• por fim, o arquivamento dos autos, que se consideram, para este efeito, findos três
meses após o trânsito em julgado da decisão final (nº 1, alínea a), do citado art. 156º,
da Lei n.º 52/2008, salvo quando deve neles prosseguir a respetiva execução, nos
temos 626.º, do CPC.

O terceiro nível de estabilidade do julgado ocorre quando se esgotem os prazos previstos


nos artigos 689.º, n.º 1, e 697.º, n.º 1 e 2, do CPC, para a interposição dos recursos
extraordinários para uniformização de jurisprudência e de revisão. A partir de então, a
sentença torna-se imutável, ressalvadas as raras hipóteses de alteração do julgado por
emergência de circunstâncias supervenientes (art. 619.º, n.º 2, e 988.º, n.º 1, do CPC).

Transitada em julgado, a sentença forma caso julgado formal, nos termos definidos no
artigo 620.º, do CPC, quando recaia unicamente sobre a relação processual, tornando-se
obrigatória dentro no processo.

Assim, é dotada apenas de caso julgado formal a sentença em que se:


a) decrete a absolvição do réu da instância com fundamento em falta de pressupostos
processuais, nos termos do n.º 1, do artigo 277.º, do CPC;
b) julgue válido o compromisso arbitral, nos termos dos artigos 277.º, alínea b) e 280.º,
n.º 2, do CPC;
c) julgue deserta a instância, quando for caso disso, nos termos dos artigos 277.º, alínea
c) e 281.º, n.º 1 e 4, do CPC;
d) homologue a desistência da instância – art. 277.º, alínea d), e 285.º, n.º 2, do CPC;

383
Da sentença cível

e) declare extinta a instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide –


artigo 287.º, alínea e) do CPC;
f) declare extinta a instância por falta de indicação do valor da causa – art. 305.º, n.º 3,
do CPC.

O caso julgado formal não alcança o direito que através da ação se pretendia fazer valer,
pelo que não obsta a que se proponha nova ação entre as mesmas partes e sobre a mesma
pretensão. Isso não significa que a extinção da instância não tenha qualquer interferência na
relação material controvertida.
Com efeito, a desistência ou a absolvição da instância, bem como a deserção ou a
ineficácia do compromisso arbitral, desencadeiam, nos termos do n.º 2, do artigo 327.º, do CC,
o reinício do prazo de prescrição da obrigação litigiosa interrompido na decorrência da
propositura da acção (que se opera com a citação ou cinco dias após a instauração da ação,
nos termos do artigo 323.º, n.º 1 e 2, do CC), sem prejuízo do disposto nos artigos 327.º, n.º 3,
do CC e 279.º, n.º 2, do CPC. O reinício do prazo prescricional atua retroativamente desde o
ato interruptivo.
No caso de o direito litigioso estar sujeito a prazo de caducidade, que fica suspenso com a
propositura da acção (art. 331.º, n.º 2, do CC), esse prazo retoma o seu curso logo após a
deserção da instância, nos termos estatuídos no n.º 2, do artigo 332.º, do CC, sem prejuízo
também do disposto no n.º 3, do artigo 327.º, ex vi do n.º 1, do citado artigo 332.º, ambos do
CC.

Um efeito especificamente mais extenso da decisão de absolvição da instância é o que


decorre do preceituado no artigo 101.º, n.º 1, do CPC.
De acordo com o referido normativo, quando se suscite uma questão de incompetência
em razão da matéria ou da hierarquia, e o Tribunal da Relação decidir, em via de recurso, que
o tribunal recorrido é incompetente para conhecer de determinada causa, no recurso que vier
a ser interposto desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, decidir-se-á qual o tribunal
competente; neste caso, é previamente ouvido o Ministério Público, e a decisão do Supremo
vincula o tribunal que for declarado competente.
Porém, se a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por entender que a
causa está no âmbito da jurisdição administrativa e tributária, o recurso destinado a fixar o
tribunal competente será interposto para o Tribunal de Conflitos – artigo 101.º, n.º 2, do CPC.

384
Da sentença cível

Trata-se de uma solução normativa que visa prevenir conflitos de competência ou de


jurisdição.

Ainda em sede de absolvição da instância por incompetência absoluta do tribunal, há que


ter em conta o disposto no n.º 2, do artigo 99.º, do CPC, que permite o aproveitamento dos
autos da instância extinta, mediante a sua remessa para o tribunal competente, desde que as
partes estejam de acordo com esse aproveitamento.

Também quando ocorra absolvição da instância com fundamento em qualquer exceção


dilatória diversa das especificadas nas alíneas a) a d), do n.º 1, do artigo 277.º, do CPC, na nova
ação que porventura corra entre as mesmas partes, poderão estas aproveitar as provas
produzidas no primeiro processo, sendo que as decisões aí proferidas mantêm o seu valor,
como resulta do disposto no artigo 279.º, n.º 4, com referência à alínea e), do n.º 1, do artigo
277.º, do CPC. Diferente disso é a hipótese prevista no artigo 421.º, do CPC, que atribui valor
extraprocessual às provas produzidas em processo já extinto, permitindo, dentro de certos
limites, o aproveitamento de depoimentos e de arbitramento produzidos num outro processo.

6.2. Efeitos substantivos

Transitada em julgado, a sentença que decida sobre o mérito da causa alcança o fim
normal da ação, qual seja, o pronunciamento definitivo do órgão jurisdicional sobre a relação
material controvertida, pondo assim termo ao litígio. É o que se designa por caso julgado
material definido no artigo 619.º, n.º 1, do CPC. Ao caso julgado material atribui-se duas
funções distintas: uma função positiva e uma função negativa.

A função positiva do caso julgado opera o efeito de autoridade do caso julgado, o qual
vincula o tribunal e demais entidades públicas e privadas, nos precisos limites e termos em que
julga, nos termos consignados nos artigos 205.º, n.º 2, da Constituição e 9.º, n.º 1, da Lei n.º
52/2008, de de 28 de agosto, correspondente ao art. 8.º, nº 1, da Lei n.º 3/99, bem como nos
artigos 619.º, n.º 1, e 621.º e seguintes do CPC.

A função negativa do caso julgado opera por via da exceção dilatória do caso julgado, nos
termos previstos nos artigos 577.º, alínea i), 580.º e 581.º, do CPC, impedindo que uma nova
causa possa ocorrer sobre o mesmo objeto – pedido e causa de pedir – e entre as mesmas

385
Da sentença cível

partes, cuja identidade se afere pela sua qualidade jurídica, ainda que em posição diversa da
que assumiram na causa anterior.
Nas palavras do Prof. Castro Mendes, os efeitos de autoridade do caso julgado e a
excepção do caso julgado, ainda que constituindo duas formas distintas de eficácia deste, mais
não são do que duas faces da mesma moeda 33.

Questões bem mais complexas no âmbito do instituto do caso julgado, e que excedem o
propósito deste trabalho, são as que se prendem com a sua natureza e com os respetivos
limites objetivos e subjetivos, nomeadamente o seu alcance quanto aos fundamentos de facto,
a preclusão quanto aos factos que podiam ter sido alegados pelo autor até ao encerramento
da discussão da causa em primeira instância, a preclusão dos meios de defesa não suscitados
oportunamente pelo réu, a extensão e a eficácia reflexa do caso julgado quanto a terceiros e
ainda o momento a que se reporta o trânsito em julgado.

33
Prof. CASTRO MENDES, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pag. 36 e segs.

386
Videogravação da comunicação

387
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

[Henrique Araújo]
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto


Henrique Araújo

Sumário:
1. O sistema da oralidade pura e o DL 39/95, de 15 de Fevereiro
2. A consagração do duplo grau de jurisdição em matéria de facto
3. O papel da Relação na apreciação da prova (síntese jurisprudencial)
4. A matéria de facto passível de impugnação recursória
5. A alteração da matéria de facto à luz do NCPC (análise dos artigos 640º e 662º)

Bibliografia:
Pontos 1. e 2.
• Laborinho Lúcio, “O Julgamento”
• Armindo Ribeiro Mendes, Revista Julgar, n.º 16
• Pessoa Vaz, “Direito Processual Civil”
Pontos 3.
• Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, Volume I
• Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, 2ª edição, Volume I
Ponto 4.
• Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil”
• Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997
• António Montalvão Machado, “O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à luz do
Novo Código de Processo Civil”
• Paula Costa e Silva, “Acto e Processo”, páginas 152/153.
Ponto 5.
• Mouraz Lopes, “A Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português:
Legitimar, Diferenciar, Simplificar, Almedina, 2011.
• Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, Almedina, 2013.
• Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”
• João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, “Introdução ao Estudo e à
Aplicação do Código de Processo Civil de 2013.

391
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

1. Chegaram bem tarde ao direito processual civil português os ventos que já há muito
sopravam nas nações mais civilizadas, no que se refere à documentação da prova em
audiência, à motivação da decisão da matéria de facto e à possibilidade de se recorrer desta.
O legislador português, que adoptara o sistema de oralidade pura em 1932 e que o
revigorara em 1939, deixou passar, inexplicavelmente, a reforma de 1961 sem tocar nesses
vectores estruturais do processo civil.
Fosse por errada interpretação da doutrina de Klein e Chiovenda – como avança o
Prof. Pessoa Vaz – fosse por transmissão osmótica duma visão marcadamente autoritária das
funções do Estado, o que sabemos hoje é que Portugal foi dos últimos países a introduzir no
ordenamento processual civil as alterações necessárias ao reconhecimento das garantias
judiciárias mais básicas.
O sistema de oralidade pura, não permitindo a documentação da prova oral produzida
em audiência, não impondo ao julgador uma motivação de facto séria, objectiva e controlável,
nem possibilitando o recurso da decisão sobre a matéria de facto, atentava, efectivamente,
contra as garantias judiciárias fundamentais do Estado de Direito.
Assim, desde 1932 a 1995, vivemos num sistema com uma única instância de facto e
três instâncias de direito, com a agravante de que não havia qualquer imposição legal no
sentido de que as decisões da matéria de facto fossem adequadamente motivadas na 1ª
instância.
Em 1995, vencidas algumas resistências 1, pôs-se fim a esse anacronismo.
Tudo começou com um diploma avulso, mas cuja importância há-de perdurar na
história do direito processual civil: o DL 39/95, de 15 de Fevereiro.
Nesse diploma passou a estar prevista e regulamentada a possibilidade da
documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, por regra em
gravação sonora, abrindo-se caminho para a criação de um verdadeiro e efectivo 2º grau de
jurisdição na apreciação da matéria de facto. Reconheceu-se, enfim, o direito ao recurso em
matéria de facto como integrando o núcleo essencial do direito constitucional de acesso à
justiça.

2. O artigo 522º-B, ali aditado, estabeleceu que as audiências finais e os depoimentos,


informações e esclarecimentos nelas prestados seriam gravados sempre que alguma das
partes o requeresse, por não prescindir da documentação da prova nelas produzida, ou
quando o tribunal oficiosamente determinasse a gravação. Esta última possibilidade encontrou

1
Laborinho Lúcio, “O Julgamento”, páginas 327 e seguintes.

392
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

a sua motivação na necessidade de o registo áudio poder auxiliar o julgador, no momento da


decisão de facto, a confirmar com maior segurança as impressões colhidas ao longo de
julgamentos demorados, fraccionados no tempo e comportando a inquirição de numerosos
depoentes sobre matérias complexas 2.
Deixou também o legislador bem claro que a garantia do duplo grau de jurisdição em
sede de matéria de facto, nunca poderia envolver a reapreciação sistemática e global de toda a
prova produzida em audiência, visando apenas a detecção e correcção de pontuais e concretos
erros de julgamento, devida e fundadamente sinalizados pelo recorrente. Por essa razão, o
diploma acrescentou ao CPC o artigo 690º-A, como mecanismo de controlo da seriedade do
recurso sobre a matéria de facto.
As inovações introduzidas quanto à possibilidade de reapreciação da matéria de facto
obrigaram ainda à adaptação da redacção do artigo 712º, de modo a que neste ficasse
devidamente regulamentada a intervenção da Relação nesse domínio.
Passou-se, portanto, de um sistema em que vigorava a oralidade pura para um sistema
de oralidade mitigada ou motivada, que foi objecto de aperfeiçoamento em sucessivas
intervenções legislativas, de que se destacam os DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, 180/96, de
25 de Setembro e 183/2000, de 10 de Agosto 3.

3. A interpretação do papel da Relação nesse novo sistema originou alguma discussão.


Gerou-se uma corrente, claramente restritiva, que defendia competir-lhe apenas sindicar a
convicção expressa pelo tribunal da 1ª instância de acordo com a prova gravada, estando
vedado à Relação formar a sua própria convicção. Esta corrente apoiava-se normalmente num
argumento com duas vertentes: a de que o n.º 2 do artigo 712º, ao dizer que a Relação
“reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão”, limitava o grau de
cognoscibilidade da matéria de facto ao controlo da convicção formada na 1ª instância 4; e a de
que a gravação sonora da prova, não permitia à Relação captar todos os sinais não verbais dos
depoentes, estando, nesse aspecto, em clara desvantagem perante o tribunal da 1ª instância
que beneficiava da imediação da prova.
Consideramos haver uma inconsistência lógica logo na primeira das referidas
vertentes. A circunstância de constar do segmento da norma indicada que a Relação reaprecia
2
Cfr. Preâmbulo do DL 39/95.
3
Ver a propósito das sucessivas reformas do processo civil português o trabalho de Armindo Ribeiro
Mendes, publicado na Revista Julgar, n.º 16, páginas 80 e seguintes.
4
O que, a ser verdade, levaria a que se reconhecesse, nesse particular, a aplicação do sistema de cassação,
com a consequente anulação da decisão impugnada.

393
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

as provas, em resultado da adopção, como regra, do modelo do recurso de reponderação, não


impedia que se formasse sobre um determinado ponto de facto uma convicção diversa da
recorrida. Negar à Relação a possibilidade de formar a sua própria convicção a partir da prova
gravada e da sua valoração segundo o princípio da livre apreciação, corresponderia, na prática,
à subalternização do sistema do duplo grau de jurisdição em matéria de facto,
circunscrevendo-o praticamente aos casos em que a alteração da decisão de facto resultasse
do acordo das partes, da confissão reduzida a escrito e da análise da prova documental ou
pericial presente nos autos.
Foi isto mesmo que o STJ foi dizendo em vários arestos 5, esclarecendo num deles 6,
numa fórmula bastante impressiva, que “a alteração que a Relação introduza terá subjacente a
nova e diferente convicção entretanto formada e, ao confirmar a decisão da 1ª instância,
estará, numa formulação verbal mais correcta, a aderir à convicção que àquela subjaz e não,
simplesmente, a ter como razoável o que aí se consagrou (…)”.
A segunda vertente, de certo modo coadjuvante da primeira, baseava-se em que o
registo da prova não garantia a percepção dos aspectos comportamentais e das reacções dos
depoentes (o entusiasmo, as hesitações, o nervosismo, a excessiva segurança ou a falta dela,
etc.) que pudessem ter influenciado o julgador da 1ª instância.
Concede-se que o registo sonoro não espelha a integralidade do depoimento, que,
tendo uma preponderante componente verbal, é também composto por elementos oralmente
intraduzíveis que só a imediação da prova proporciona. Todavia, a menor expressividade do
registo não podia impedir – como não impede – que a Relação desempenhasse a tarefa de
reapreciação efectiva da decisão da matéria de facto, desde que, naturalmente, os meios de
prova gravados lhe permitissem concluir, com a prudência e segurança devidas, em sentido
diverso do seguido pela 1ª instância.
Mais à frente voltaremos a este ponto.

Estabilizado este entendimento – cuja validade está hoje fortalecida nos nºs 1 e 2,
alíneas a) e b) do artigo 662º – nem por isso deixaremos de questionar por que razão o
legislador não aproveitou esta reforma para erigir como regra a gravação simultânea de som e
imagem. O acoplamento da imagem ao registo sonoro da prova beneficiaria a diluição da
5
Cfr., entre outros, os Acórdãos de 19.04.2001, no processo n.º 435/01, de 16.04.2002, no processo n.º
02498, e o de 08.07.2003, no processo n.º 1832/03, estando o primeiro publicado nos Sumários de
Jurisprudência do STJ, 2001, 2º volume, o segundo disponível no sítio www.dgsi.pt e o terceiro na CJ Ano XI,
Tomo II, páginas 151 e seguintes.
6
O primeiro da nota anterior.

394
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

desvantagem decorrente da não imediação da prova pela Relação e potenciaria uma maior
aproximação à verdade material. É este tipo de incongruências entre as intenções declaradas e
a não consagração dos mecanismos legais para as concretizar 7 que frequentemente
compromete o sucesso integral das reformas, em qualquer área do direito.
Klein, autor do Código Austríaco de 1895, já no tempo advertia que “o importante
como corolário decisivo de uma lei que regula o processo civil são todas aquelas disposições
legislativas e administrativas que são necessárias para reunir todas as forças e organizar as
novas estruturas com as quais as dificuldades da nova matéria processual devem ser
vencidas” 8.
E, já agora, a propósito do momento escolhido para a entrada em vigor do NCPC, não
podemos deixar de reproduzir o que o mesmo autor dizia, na sua intemporal lucidez: seria “o
maior erro que se poderia cometer, se não se introduzissem na organização judiciária … todas
aquelas alterações e completações que pela natureza e fim do processo são
incondicionalmente exigidas”.

4. No novo diploma desconstruiu-se a dogmática que envolvia a vertente fáctica,


adoptando-se, em nome do efectivo apuramento da verdade, um novo modelo, menos
formalista, mas seguramente muito mais sujeito a controvérsia.
Antecipamos um intenso labor jurisprudencial na interpretação e aplicação de algumas
das inovações normativas, mormente a do artigo 410º.
Para introdução do tema que nos propomos tratar, importa determinar previamente o
que deve entender-se por matéria de facto passível de impugnação recursória.
Uma das chaves para resolver essa questão está no enunciado do n.º 4 do artigo 607º,
onde se refere que, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga
provados e os que julga não provados. Tal como decorre desse preceito, integrarão o conjunto
dos factos provados: aqueles cuja demonstração resultou da prova produzida em juízo;
aqueles que se mostrem admitidos por acordo; aqueles que resultem da prova documental; e
aqueles que decorram de confissão reduzida a escrito.
Cada um desses factos – provados e não provados – poderá ser objecto de
impugnação, seja isoladamente, seja em conjunto com outros.

7
Cfr. artigo 155º, n.º 2, que mantém a regra do registo sonoro.
8
Pessoa Vaz, “Direito Processual Civil”, página 29.

395
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Mas, para a seriação dos factos que relevem para a decisão da causa – quer resultem
provados ou não provados – tem de atentar-se no que dispõe o artigo 5º, que corresponde em
larga medida ao antigo 264º.
Assim, de acordo com o n.º 1 desse artigo, competirá às partes a alegação dos factos
essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções
invocadas – cfr. artigos 552º, n.º 1, alínea d) e 572º, alínea c).
Consideram-se factos essenciais (ou principais) aqueles que aparecem delimitados pela
norma como fundamentais para a procedência ou improcedência da acção. É a norma que
opera como critério de selecção das conotações do facto que são consideradas relevantes e da
exclusão daquelas que à mesma não interessam. A sua alegação deve ser feita com “um
mínimo de concretização e densificação” 9 de modo a que seja permitida a sua prova na
audiência final, sendo portanto de evitar uma descrição toldada por conceitos genéricos e/ou
conclusivos.
A obrigação de alegação dos factos essenciais é o corolário do acolhimento pelo nosso
direito processual civil da teoria da substanciação, que implica para o autor a necessidade de
articular os factos de onde deriva a sua pretensão, formando-se o objecto do processo e, por
arrastamento, o caso julgado, apenas relativamente aos factos integradores da causa de pedir
invocada 10.
A par desses, devem ser considerados, na decisão final, outros factos, subtraídos ao
ónus de alegação, a saber: os factos notórios (artigos 5º, n.º 2, alínea c) e 412º, n.º 1); os factos
de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções (artigos 5º, n.º
2, alínea c) e 412º, n.º 2); os factos reveladores de uso reprovável do processo (artigo 612º); os
factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa (artigo 5º, n.º 2, alínea
a)); e os factos complementares ou concretizadores de outros que as partes tenham
oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que às partes
tenha sido dada a oportunidade de sobre eles se pronunciarem (artigo 5º, n.º 2, alínea b)).
Em comparação com o anterior código, nota-se, também aqui, um esbatimento do
princípio do dispositivo em favor de um maior pendor inquisitório, designadamente no que
concerne aos factos complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados. O
julgador pode agora conhecer oficiosamente desses factos quando resultem da instrução da

9
Como defende Lopes do Rego, Revista Julgar, n.º 16, página 125.
10
Cfr., entre outros, Alberto dos Reis, ob. cit., Volume II, 3ª edição, pág. 354, Anselmo de Castro, “Direito
Processual Civil Declaratório”, Vol. I, página 207, e Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo
Civil”, 2ª edição, Vol. I, página 193.

396
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

causa e desde que se mostre cumprido o contraditório, deixando de ser necessário que a parte
interessada manifeste vontade em deles se aproveitar.
Para finalizar este capítulo deixaremos apenas breves indicações para ajudar à
caracterização de factos notórios, instrumentais e complementares ou concretizadores.
Factos notórios (514º, n.º1) são os de conhecimento geral no país, os conhecidos pelo
cidadão comum, pelas pessoas regularmente informadas, com acesso aos meios normais de
informação 11.
Não basta, assim, qualquer conhecimento; “é indispensável um conhecimento de tal
modo extenso, isto é, elevado a tal grau da difusão que o facto apareça, por assim dizer,
revestido do carácter de certeza” 12.
Por outro lado, é necessário que se trate de factos concretos, elementos estruturantes
da causa de pedir da acção, da reconvenção ou das excepções, o que implica não poderem ser
considerados como tal as meras ilações ou conclusões fáctico-jurídicas ou meramente jurídicas
(ex.: a indivisibilidade de um prédio urbano) 13.
Factos instrumentais são aqueles de que não depende a procedência ou
improcedência da acção, mas do seu conhecimento, pelo mecanismo das presunções, quer
legais quer judiciais, infere-se a certeza ou a prova dos factos essenciais. A sua função é,
portanto, a de permitir atingir a prova destes factos 14.
Os factos são considerados complementares ou concretizadores quando se têm por
imprescindíveis ou, pelo menos, relevantes à procedência ou improcedência das pretensões,
mas não à viabilidade da acção ou da excepção 15. Eles completam uma causa de pedir (ou de
uma excepção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma excepção) aglutinadora de
vários elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros constitutivos do seu
núcleo complementar 16.

11
Rodrigues Bastos, em “Notas ao CPC”, Volume II, edição de 1972, página 514, distingue o facto notório do
facto evidente, fazendo corresponder este último à aplicação de verdades axiomáticas próprias das várias
ciências; o facto evidente apresenta-se ao juiz como provindo das fontes comuns do saber humano, v.g. o
conhecimento de que o calor dilata os corpos.
12
Alberto dos Reis, “CPC Anotado”, Volume III, páginas 259/260.
13
Acórdão do STJ de 01.07.2004, no processo n.º 04B2285.
14
Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, página 135.
15
Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997, páginas 70 e 71, onde são
descritos alguns exemplos deste tipo de factos.
16
António Montalvão Machado, “O Dispositivo e os Poderes do Tribunal à luz do Novo Código de Processo
Civil”, página 349.

397
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

5. Entrando definitivamente no tema, pode-se afirmar, já à partida, que o NCPC não traz
alterações de vulto ao regime instituído pela revisão operada pelo DL 303/2007, de 24 de
Agosto, respeitando-o nas suas linhas essenciais 17.
É certo que, como se referiu mais acima, há um reforço dos poderes da Relação na
apreciação da matéria de facto, o que se aceita em função do reconhecimento de que a
relação jurídica estabelecida entre a parte que exerce o direito de acção e o tribunal, obriga a
que este desenvolva uma actuação concreta e eficaz em ordem à protecção dos direitos e
interesses legalmente tutelados 18.
A finalidade última desse reforço é, portanto, a aproximação da verdade
processualmente declarada à verdade extraprocessual.
São dois os preceitos em que centraremos a nossa atenção, cada um deles com um
específico campo de análise, mas interligados: o artigo 640 e o artigo 662º.
O primeiro trata dos ónus impostos ao recorrente que impugne a matéria de facto.

Artigo 640.º
Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto

1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente
especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada,
que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas
tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva
parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de
poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido
designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem
sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo,
à transcrição dos excertos que considere importantes.

17
João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, “Introdução ao estudo e à aplicação do Código de
Processo Civil de 2013”, página 95.
18
Paula Costa e Silva, “Acto e Processo”, páginas 152/153.

398
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

3 — O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do


recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.

Como já se disse, a instituição de um duplo grau de jurisdição para apreciação dos


erros de prova ou de fundamentação dos factos levados ao processo, obrigou o legislador a
rodear-se de algumas cautelas normativas com o objectivo de prevenir impugnações genéricas
e/ou desorganizadas. Não pode conceber-se como verdadeira impugnação da matéria de facto
aquela em que não são identificados os factos tidos por erroneamente julgados ou sem a
cuidada menção dos meios probatórios que deviam ter sido ponderados ou melhor valorados.
Disto trata a norma do artigo 640º, que constitui quase uma sobreposição do anterior
artigo 685º-B.
Senão vejamos.
Mantém-se a obrigação de o recorrente identificar os concretos pontos de facto que
considera incorrectamente julgados – alínea a), do n.º 1.
Até agora essa indicação fazia-se, em regra, por referência aos artigos da base
instrutória ou, mais raramente, através da identificação concreta (numérica ou outra) dos
factos elencados na sentença. Suprimida, na actual reforma, a fase da condensação, os pontos
de facto impugnados devem agora ser reportados aos factos alegados pelas partes que
tenham sido objecto de apreciação na sentença.
Mantém-se igualmente a obrigação de o recorrente especificar os concretos meios de
prova que, em seu entender, justifiquem decisão diversa da recorrida sobre os pontos de facto
impugnados. Tais meios de prova podem já constar do processo – como será, por exemplo, o
caso da prova documental ou pericial – ou de registo ou gravação nele realizada. Nesta última
hipótese, incumbe ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação em que se
funda o recurso, sem prejuízo de apresentar, querendo, a respectiva transcrição. Esta
obrigação estende-se agora ao recorrido, quando faça repousar a sua oposição às conclusões
do recorrente em depoimentos gravados na audiência, sendo igualmente facultativa a
apresentação da transcrição dos excertos que considere mais relevantes – n.º 1, alínea b) e n.º
2, alínea a).
Permanece ainda a possibilidade de investigação oficiosa pelo tribunal, mas agora sem
o espartilho da 2ª parte do n.º 2 do artigo 712º. A Relação já não está limitada, na sua
apreciação, aos elementos probatórios indicados pelas partes ou que hajam servido de
fundamentação à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, devendo
investigar tudo quanto, em seu critério, se afigure necessário para formular o seu juízo sobre
os pontos de facto impugnados – 1ª parte, da alínea b), do n.º 2.

399
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A alteração mais visível à antiga norma do artigo 685º-B, traduz-se no aditamento da


alínea c), que impõe também ao recorrente a obrigação de indicar o sentido que preconiza
para os pontos de facto impugnados.
Em boa verdade isto já acontecia na prática, ainda que, não raras vezes, o recorrente
se limitasse a dizer que determinados pontos de facto mereciam respostas diferentes, mas
sem dizer quais. O acrescentamento agora feito parece-nos, por isso, justificado, na medida
em que completa o ciclo processual da impugnação.
O incumprimento pelo recorrente de qualquer um dos referidos ónus constitui causa
de rejeição do recurso no que concerne à impugnação da decisão de facto – n.º 1, alíneas a), b)
e c) e n.º 2, alínea a).
Várias questões se têm levantado na doutrina e, sobretudo, na jurisprudência, sobre a
avaliação desse incumprimento.
Bastará que os ónus impostos ao recorrente se concretizem no corpo das alegações ou
será necessária a sua reprodução, ainda que sintética, nas conclusões? Será de considerar
válida a impugnação quando se dividam pelo corpo das alegações e pelas conclusões os
referidos ónus?
A quem pretenda recorrer duma decisão, a lei do processo impõe dois encargos: o de
alegar, ou seja, o de desenvolver de forma fundamentada as razões da sua discordância
quanto ao decidido; e o de concluir, ou seja, o de indicar de forma sintética, as razões dessa
discordância – cfr. artigo 639º, n.º 1. As conclusões assumem-se, portanto, como as ilações ou
deduções lógicas terminais de um ou vários argumentos ou proposições parcelares, finalizando
um raciocínio 19.
A imposição do ónus de concluir justifica-se pela necessidade da indicação resumida
daquilo que na opinião do recorrente é fundamento de alteração ou anulação da decisão
recorrida, evitando que a parte contrária se veja numa situação insustentável na preparação
do contraditório, por não entender convenientemente os motivos da divergência do
recorrente.
Tentando agora responder à primeira questão acima colocada, começa por dizer-se
que são as conclusões do recurso que efectivamente delimitam o seu objecto – artigos 684º,
n.º 3 e 685º-A, n.º 1, do CPC e artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do NCPC.
Por isso, para que se tenha por bem executada a impugnação da decisão sobre a
matéria de facto, deve cada um dos ónus impostos ao recorrente – alíneas a), b) e c) do n.º 1 –

19
João Aveiro Pereira, “O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, página 3, em
www.trl.mj.pt

400
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

estar devidamente espelhado nas conclusões do recurso, nem que seja por remissão expressa
para o corpo das alegações 20. Se não for este o caso, terá o recorrente, na nossa opinião, de
especificar nas conclusões os pontos concretos de facto que pretende impugnar, indicar os
meios de prova em que, para esse efeito, se baseia, e, na actual configuração legal, apontar
com o mínimo de clareza o sentido que pretende para a decisão de cada um desses pontos de
facto.
Pela própria função das conclusões, nunca seria de impor ao recorrente que, por
exemplo, procedesse nas conclusões a uma descrição detalhada dos depoimentos em que
funda a sua discordância em relação ao decidido na 1ª instância. Será suficiente, segundo
cremos, a indicação nominativa dos concretos meios de prova que considera decisivos para a
alteração da matéria de facto (documento de fls. …, testemunha …, relatório pericial de fls. …,
etc).
O que não pode é desvirtuar-se o efeito pretendido com a imposição daqueles ónus ao
recorrente, sob pena de não fazer qualquer sentido o que resulta articuladamente das normas
dos artigos 635º, n.º 4, 639º, n.º 1, e 640º, do NCPC. (artigos 684º, n.º 3, 685º-A, n.º 1, e 685º-
B, do anterior CPC).
Apesar de ser também este, segundo nos quer parecer, o entendimento mais recente
do STJ 21, este tribunal tem demonstrado uma maior flexibilidade no tratamento desta questão,
de que é exemplo, o acórdão de 08.11.2006, tirado ainda antes da alterações ao CPC
introduzidas pelo DL 303/2007, de 24 de Agosto, de cujo sumário se extrai o seguinte pedaço:
“O artigo 690º-A do Código de Processo Civil, impondo um especial ónus de alegação, quando
se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, não exige que o recorrente leve às
conclusões a indicação dos concretos meios probatórios em que se baseia a sua discordância

20
Quanto à obrigação da indicação exacta das passagens da gravação – alínea a), do n.º 2 –, cuja omissão
tem como consequência a imediata rejeição do recurso na respectiva parte, quer-nos parecer que essa
indicação pode ser feita apenas no corpo das alegações (não sendo necessária a sua inclusão nas
conclusões), uma vez que o objectivo que se pretende com essa imposição legal é o de tornar localizável, no
registo sonoro, os segmentos dos depoimentos ou esclarecimentos que o recorrente considera relevantes
para o sucesso da impugnação da decisão de facto.
21
Cfr. o acórdão de 04.07.2013, no processo n.º 1727/07.1TBSTS-L.P1.S1, em www.dgsi.pt, em cujo sumário
se escreveu: A delimitação concreta dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e demais
ónus impostos pelo art. 685.º-B, do CPC, há-de ser efectuada no corpo da alegação; nas conclusões bastará
fazer referência muito sintética aos pontos de facto impugnados, e às razões porque se pretende a sua
alteração, sem necessidade de transcrever (ou copiar) o que a respeito se escreveu no corpo da alegação
sobre a matéria.

401
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

relativamente à decisão de primeira instância, e, quando muito, apenas justifica que o


recorrente, de modo a precisar mais concretamente a questão que coloca em recurso,
identifique os pontos de facto que pretende ver reapreciados” 22
O que se desenvolveu quanto à primeira questão permite responder negativamente à
segunda, não obstante o STJ ter decidido, num acórdão de 21.04.2010 23, que, quando o
recorrente indica nas conclusões os pontos da matéria de facto que entende incorrectamente
julgados e no corpo das alegações indica os meios probatórios que impunham decisão diversa
da recorrida, devem-se dar-se por cumpridos os ónus a que estava sujeito.
Este entendimento do STJ parece suportar-se na seguinte construção: o ‘pedido’ do
recorrente é a impugnação da decisão da matéria de facto relativamente a certos pontos
concretos; a ‘causa de pedir’ associada a esse pedido é constituída pelo conjunto dos meios
probatórios destinados à procedência daquele pedido. Por isso, o pedido deve constar das
conclusões, em consequência do princípio de que são as conclusões que balizam o objecto do
recurso, mas a indicação dos meios probatórios pode apenas constar da motivação do recurso
(corpo das alegações), não sendo obrigatória a sua inclusão nas conclusões.
Não se acreditando que o legislador ignorasse a instabilidade jurisprudencial que agita
as Relações e o STJ – e que, com toda a probabilidade, persistirá – teria sido preferível a
identificação das conclusões obrigatórias no recurso de impugnação da matéria de facto, tal
como fez a propósito do recurso em matéria de direito – cfr. corpo do n.º 2, do artigo 639º.
Na decorrência do que vem sendo dito, uma outra questão surge: se o relator verificar
qualquer deficiência no cumprimento dos sobreditos ónus, poderá deitar mão do convite ao
aperfeiçoamento?
A resposta negativa a esta questão não se presta a dúvidas.
Na verdade, se fosse intenção do legislador dar uma oportunidade ao recorrente para
aperfeiçoar o recurso de impugnação da matéria de facto, tê-lo-ia dito expressamente,
conforme fez em relação às conclusões da matéria de direito, nos nºs 2 e 3, do artigo 639º –
cfr. artigo 9º, n.º 3, do Código Civil.

22
Decidiu-se do mesmo modo no acórdão de 08.03.2006, no processo n.º 05S3823, e no acórdão de
13.07.2006, no processo n.º 06S1079, ambos em www.dgsi.pt. Ver também o acórdão de 27.10.2009, tirado
no processo n.º 1877/03.3TBCBR.C1.S1, também na referida base de dados, em que se decidiu que não se
inclui no ónus estabelecido pelo art. 690.º-A, n.º 1, do CPC, o dever de levar às conclusões da alegação a
indicação, mesmo resumida, dos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.
23
Acórdão proferido no processo n.º 3473/06.4TJVNF-A.P1.S1, disponível no mesmo sítio electrónico.

402
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

De tudo se conclui que, se o recorrente não fizer constar das conclusões as menções
inscritas no n.º 1, do artigo 640º, terá de rejeitar-se o recurso nessa parte, não se conhecendo
do seu objecto 24.
Uma derradeira nota: se o recorrido pretender ampliar o âmbito do recurso, nos
termos do artigo 636º, n.º 2, ficará sujeito aos mesmos ónus e às mesmas consequências que
já referimos quanto ao recorrente – artigo 640º, n.º 3.

O outro preceito que nos propomos analisar é o do artigo 662º, que tem como
epígrafe “A modificabilidade da decisão de facto”.

Artigo 662.º
Modificabilidade da decisão de facto

1 — A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos
como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 — A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a
credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de
prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os
elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a
matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da
matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum
facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os
depoimentos gravados ou registados.
3 — Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma:
a) Se for ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias
adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância;
b) Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-
se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da
matéria de facto, com o fim de evitar contradições;

24
Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, páginas 127/128.

403
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

c) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange


a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de
facto, com o fim de evitar contradições;
d) Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova,
o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade.
4 — Das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça.

No âmbito desta norma, a Relação pode assumir as seguintes atitudes quanto à


apreciação da matéria de facto: alterar ou anular a decisão da 1ª instância, ordenar a
renovação da produção da prova, ordenar a produção de novos meios de prova, ou, ainda,
determinar a fundamentação da decisão.
Correspondendo ao anterior artigo 712º, detectam-se em relação a este algumas
alterações, umas mais substanciais que outras.
A primeira é logo visível no início do enunciado do n.º 1: “A Relação deve alterar a
decisão proferida sobre a matéria de facto”, quando anteriormente constava “A Relação pode
alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto”.
A substituição do verbo “poder” por “dever” decorre, seguramente, do objectivo
programático que atravessa toda a reforma e que se manifesta também no propósito de o
legislador orientar o actual quadro de modificabilidade da decisão da matéria de facto pela
Relação em função do efectivo apuramento da verdade material.
Como veremos, existem no texto da norma em análise outras manifestações claras
dessa intenção.
No n.º 1, onde se aglutinam, de forma mais genérica, as situações que dantes
constavam das alíneas a) a c), do n.º 1, do artigo 712º, prevê-se a possibilidade de alteração da
decisão de facto com base em três hipóteses: nos factos tidos como assentes, na prova
produzida ou em documento superveniente – n.º 1.
Há que convir que a fórmula usada para a primeira das hipóteses não prima pela
clareza. Em nosso entender, na expressão “factos tidos por assentes”, incluem-se os factos
não impugnados pela parte contrária nos articulados da acção e que, nessa medida, devessem
ter sido julgados como provados por acordo (desde que, obviamente, se não verifiquem as
salvaguardas legais ao efeito da não impugnação) – artigo 574º, n.º 2. Nela se incluirão
também as situações em que o tribunal tenha negligenciado ou desconsiderado a força
probatória de certo meio de prova, idóneo à aquisição definitiva do facto em questão, como
sucederá, por exemplo, quando não tenha atentado em que determinado documento

404
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

autêntico, não atacado de falsidade, faz prova plena de certo facto (artigo 371º, do CC), ou
quando tenha considerado que a prova decorrente das declarações impressas em documento
particular, com autoria reconhecida e livre de qualquer vício, apesar de contrárias aos
interesses do declarante, não produziam o efeito confessório atribuído por lei (artigo 376º, n.º
2, do CC).
Na malha da mesma previsão, não obstante a ambiguidade deste segmento da norma,
cairá a situação em que o tribunal da 1ª instância tenha indevidamente valorizado a força
probatória de meio de prova insuficiente para a prova de determinado facto, o que, nesse
caso, levará a que a Relação proceda à retirada desse facto da plataforma dos factos provados
– artigo 364º, n.º 1, do CC.
Em todas as situações narradas, a alteração da decisão de facto pela Relação decorre
da omissão ou da errada ponderação das regras de direito probatório material.
No conceito de ‘prova produzida’ cabe todo o acervo probatório recolhido no processo
susceptível de ser livremente apreciado, designadamente documentos sem valor probatório
pleno, relatórios periciais e, bem entendido, os depoimentos orais, prestados e gravados na
audiência de julgamento 25, cujo conteúdo seja susceptível de provocar a alteração requerida,
desde que cumpridas as condições estabelecidas no artigo 640º, acima tratado.
Mas, antes de avançarmos, impõem-se algumas considerações a respeito da avaliação
da prova testemunhal.
Já acima referimos que a Relação não goza da prerrogativa da imediação, sendo sabido
que esta cumpre um papel fundamental na aferição da sinceridade e veracidade do
depoimento. A prova testemunhal que chega à Relação contém apenas o relato verbal,
gravado em suporte áudio ou transcrito, o que não permite qualquer interacção com o emissor
do relato nem a apreensão das componentes não verbais do depoimento.
Sendo irrecusável que o contacto directo do juiz com a testemunha permite que
aquele, com base no comportamento não verbal desta, infira sensações utilizáveis como
instrumento de valoração do depoimento, então isso mesmo deve constar da fundamentação
da decisão de facto. Disponibilizado esse elemento ao tribunal de recurso, por via de uma
motivação que aprimore a força persuasiva do julgamento dos factos, estará este em
condições de formular um juízo mais substanciado sobre a valoração feita na 1ª instância. Por
isso se diz que a imediação não é um método, mas tão só uma técnica, um meio necessário ao
25
A obrigatoriedade da gravação da prova em todas as audiências finais das acções, incidentes e
procedimentos cautelares – artigo 155º, n.º 1 – vai alargar, sem a mínima dúvida, o âmbito de incidência
das impugnações da matéria de facto em recurso.

405
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

desenvolvimento da prova que, no entanto, não é suficiente para garantir em definitivo a sua
valoração e o seu tratamento adequado 26.
Por outro lado, como tem sido admitido, a análise feita a partir do canal verbal é mais
fiável e eficaz do que aquela que é feita a partir dos comportamentos não verbais 27.
A falta da imediação da prova não pode, pois, constituir obstáculo à formação de uma
convicção diversa, e necessariamente autónoma, da que se formou na 1ª instância. Os vários
ângulos de avaliação do depoimento e a possibilidade de recurso a qualquer outro elemento
de prova, designadamente no âmbito dos poderes de investigação oficiosa conferidos no
artigo 640º, n.º 2, alínea b), podem habilitar a Relação à formulação plena de uma apreciação
diferente sobre a lógica do raciocínio empregue pelo juiz da 1ª instância.
Devem, porém, observar-se redobrados cuidados nos casos em que a impugnação da
matéria de facto se baseia em depoimentos prestados e gravados no próprio local do litígio 28.
Como é regra nessas situações, as perguntas feitas às testemunhas relacionam-se com a
apreciação directa e objectiva de elementos físicos do local, numa dialéctica que nem a prova
fotográfica ou pericial – quando existam – conseguem acompanhar.
Finalmente, a terceira hipótese do n.º 1 prevê a alteração fundada em documento
superveniente.
Esta situação equivale praticamente à alínea c), do anterior n.º 1, do artigo 712º, da
qual constava a referência a documento novo superveniente.
É superveniente o documento que à parte não foi possível juntar até ao encerramento
da discussão na 1ª instância, ou por ainda não existir ou, existindo, por a parte dele não ter
conhecimento ou dele não poder dispor 29 - cfr. artigos 425º e 651º, n.º 1.
O documento superveniente terá de possuir força bastante para criar uma
convicção diferente da que se formou na 1ª instância sobre um determinado facto.

O reforço dos poderes da Relação mostra-se bem evidenciado nas duas primeiras
alíneas do n.º 2, do artigo 662º, completamente inovadoras.
Até agora, a renovação dos meios de prova na Relação apenas poderia ter lugar
quando, em relação à matéria de facto impugnada, se afigurasse que os mesmos eram
indispensáveis ao apuramento da verdade – 1ª parte, do n.º 3, do artigo 712º.
26
Mouraz Lopes, “A Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português: Legitimar, Diferenciar,
Simplificar”, Almedina, 2011, página 248.
27
Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, Almedina, 2013, página 396.
28
Cfr. Acórdão do STJ de 20.05.2010, no processo n.º 73/2002.S1, em www.dgsi.pt
29
Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, página 201.

406
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Actualmente, é dever da 2ª instância promover, ex officio, a renovação da produção da


prova quando houver dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu
depoimento – alínea a), do n.º 2 –, o que projecta o papel da Relação para horizontes
inimagináveis até há bem pouco tempo.
Assim, se a audição da prova gravada transmitir ao relator a ideia de que determinada
testemunha não é credível ou que o seu depoimento não é esclarecedor ou isento de
equívocos, deve ser ordenada a renovação desse meio de prova.
A credibilidade de uma testemunha resultará da não verificação de quaisquer factores
que diminuam o seu depoimento. Entre os factores susceptíveis de afectar essa credibilidade,
contam-se, por exemplo, o estado, a vida e costumes da pessoa, o interesse no litígio, o
parentesco ou o relacionamento com as partes 30.
De igual modo se procederá quando persistam dúvidas sérias sobre o sentido de
determinado depoimento, ou seja, sobre o conteúdo do depoimento em função da sua
estruturação. Se na avaliação da Relação, feita segundo os critérios da livre apreciação, o
depoimento estiver marcado por incoerências, contradições ou obscuridades que contaminem
de forma irremediável a perceptibilidade do sentido do testemunho, deve a 2ª instância
ordenar a renovação desse meio de prova.

Mas o legislador foi ainda mais longe: levando ao limite o princípio do inquisitório
(artigo 411º) e aproximando-se cada vez mais do modelo do recurso do reexame 31, atribuiu à
Relação o dever de ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção
de novos meios de prova – alínea b), do n.º 2.
Não nos parece ser esta a melhor ocasião para discutir esta opção legislativa.
Colocando-nos apenas no plano da sua exequibilidade, não podemos deixar de dizer que o
deficitário quadro de meios físicos, humanos e financeiros das Relações, e, sobretudo, o
modelo em que assenta o funcionamento das secções cíveis, não auguram o normal
cumprimento destas novas responsabilidades.
Ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias
adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância – alínea

30
Antunes Varela e …, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, página 627, nota 3.
31
O sistema de reexame permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidida pelo tribunal da 1ª
instância, ao passo que o sistema da reponderação apenas lhe possibilita o controlo da sentença recorrida.
O primeiro tem raízes no Código Napoleónico e o segundo no Código Austríaco de 1895 – Amâncio Ferreira,
ob. cit., página 131.

407
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

a), do n.º 3 – o que significa, na nossa leitura, que terá de ser o desembargador relator a
presidir à realização das respectivas diligências de prova – artigo 652º, n.º 1, alínea d).

A alínea c), corresponde, quase ipsis verbis, à primeira parte do n.º 4, do antigo artigo
712º.
Não constando do processo todos os elementos probatórios que, nos termos do
referido n.º 1, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, deve a
Relação anular oficiosamente a decisão de facto proferida na 1ª instância, em dois casos: a)
quando considere deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados
da matéria de facto; b) quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto.
A decisão será deficiente quando determinado ponto da matéria de facto ou algum
seu segmento não tenha sido objecto de pronúncia; será obscura quando padeça de
ininteligibilidade, equivocidade ou imprecisão, gerando dúvidas sobre o sentido e alcance das
proposições linguístico-gramaticais utilizadas; será contraditória quando na decisão se
evidencie oposição material entre diversos pontos de facto dados como provados. Não se
antevê a possibilidade de haver contradição entre um facto provado e um facto não provado, a
não ser que neste se não acolha o antecedente lógico provado naquele (ex: numa acção
relacionada com um acidente de viação, dar-se como provado que o autor auferia o
vencimento mensal de 800,00€ como marceneiro e dar-se como não provado, noutro ponto,
que, à data do acidente, o autor trabalhasse).
Verificado qualquer um destes vícios, a decisão terá de ser anulada.
A anulação oficiosa da decisão de facto ocorrerá, igualmente, quando não tenham sido
contemplados, na enunciação dos temas de prova (ou mesmo quando não haja lugar a essa
enunciação – cfr., artigo 410º), factos alegados pelas partes que se mostrem indispensáveis
para a resolução do litígio. Impõe-se, nesse caso, a ampliação da matéria de facto, a fim de que
se estenda a discussão a pontos de facto omitidos pela 1ª instância.
A repetição do julgamento, por efeito da anulação da decisão de facto motivada por
qualquer uma das situações tratadas, não abrange a parte da decisão não viciada, sem prejuízo
de o tribunal da 1ª instância voltar a apreciar outros pontos da matéria de facto já
anteriormente decididos, acomodando-os, se for caso disso, à decisão da questão referenciada
pela Relação, a fim de que se evitem contradições – alíneas b) e c), do n.º 3.

Regista-se uma atenta e oportuna intervenção do legislador na consagração da norma


do artigo 218º, na qual se prescreve:

408
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

“Se, em consequência de anulação ou revogação da decisão recorrida ou do exercício


pelo Supremo Tribunal de Justiça dos poderes conferidos pelo n.º 3, do artigo 682º, tiver sido
proferida nova decisão no tribunal recorrido e dela for interposta e admitida nova apelação ou
revista, o recurso é, sempre que possível, distribuído ao mesmo relator”.
Com tal medida obtêm-se seguramente ganhos de celeridade e alcança-se também
uma inegável homogeneidade decisória. Na verdade, e como facilmente se compreende, o
relator que anulou primeiramente a decisão do tribunal inferior está indiscutivelmente em
melhores condições de decidir a questão que novamente lhe é apresentada em recurso.

Para completar a análise do n.º 2, do artigo 622º, falta abordar a alínea d).
Retirado do iter processual o julgamento autónomo da matéria de facto, é agora na
sentença que o juiz tem o dever de indicar, de modo objectivo, as razões que o levaram a dar
como provados determinados factos e como não provados outros – artigo 607º, n.º 4. Ou seja,
tem de analisar criticamente a prova, explicando por que motivo deu mais valor ao
depoimento de certa testemunha, por que motivo considerou relevantes ou irrelevantes
certas conclusões dos peritos, por que motivo achou satisfatória, ou não, a prova resultante de
documentos particulares, etc. 32.
Quando não se mostrar devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum
facto essencial para o julgamento da causa, a Relação determina que o tribunal da 1ª instância
a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
No n.º 5, do anterior artigo 712º, este tipo de intervenção estava dependente de um
pedido expresso do requerente. Não o havendo, não podia a Relação, por sua iniciativa,
ordenar à 1ª instância a adequada fundamentação de determinado facto essencial.
A supressão dessa condição, com a concretização, por via oficiosa, do poder de
interferir no cumprimento da obrigação de motivar cabalmente a decisão sobre a matéria de
facto, vem contribuir para uma clarificação dos fundamentos decisórios em matéria de facto,
dentro da lógica já indicada de prevalência da verdade material sobre a verdade formal.
Poderá suceder que o tribunal da 1ª instância não esteja em condições de cumprir a
determinação da Relação, em virtude de, por exemplo, o juiz que fundamentou a decisão estar
permanentemente impossibilitado – artigo 605º, n.º 1. Nesse caso, terá de ser repetida a
produção da prova relativa a esse facto. Se nem isso for possível (por exemplo, falecimento da
única testemunha indicada a essa matéria), o juiz da 1ª instância limita-se a justificar a razão
da impossibilidade – alínea d), do n.º 3.

32
Abrantes Geraldes, ob. cit., II Volume, página 259.

409
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

Não se justifica, por outro lado, a determinação da 2ª instância para que se cumpra a
fundamentação sobre determinado facto, se esse facto for de todo indiferente à decisão da
causa 33.
Do mesmo modo, se a 1ª instância se não pronunciar sobre um determinado facto
alegado nos articulados e isso for causa impugnação em sede de recurso, a Relação não
anulará a decisão se o referido facto se mostrar irrelevante para a sorte da acção 34.

À semelhança do que ditava o n.º 6, do artigo 712º, nenhuma das decisões da Relação
de que falámos até aqui é passível de recurso para o STJ – n.º 4, do artigo 662º.
No entanto, o STJ pode proceder a correcções da matéria de facto em três situações:
quando entenda que para a solução de direito se mostra necessária a averiguação de factos
alegados pelas partes, que não tenham sido apreciados nas duas instâncias – artigo 682º, n.º
3; quando detecte a presença de contradições na decisão da matéria de facto que inviabilizem
a resolução jurídica do litígio; e quando julgue não observada pelas instâncias uma disposição
legal que exija certa espécie de prova ou verifique a desconsideração de norma que defina a
força de determinado meio de prova – artigo 674º, n.º 3.
Ocorrendo tais situações, o STJ ordena a baixa do processo à Relação para que se
proceda em conformidade.

33
Acórdão do STJ de 14.06.1972, BMJ 218, página 208.
34
Acórdão da Relação de Coimbra, de 10.11.1992, BMJ 421, página 517.

410
Videogravação da comunicação

411
Os Títulos Executivos e as formas do processo de
execução. Alguns reparos à reforma da execução na Lei
nº 41/2013, de 26 de junho

[Rui Pinto]
Os Títulos Executivos e as formas do processo de execução. Alguns reparos à reforma da
execução na Lei nº 41/2013, de 26 de junho

Os Títulos Executivos e as formas do processo de execução.


Alguns reparos à reforma da execução na Lei nº 41/2013,
de 26 de junho
Rui Pinto

Sumário:
§ 1º Introdução. 1. Tema. A intrínseca relação entre título executivo e forma
executiva. 2. O caráter aparentemente substantivamente neutro da temática. §
2º Títulos executivos. 1. Conceito, e função; natureza e relação com a causa de
pedir. 2. A supressão dos documentos particulares simples, como categoria
genérica. — A. Alteração. — B. Consequências substantivas. 3. A expressa
concessão de força executiva aos meros quirógrafos. — A. Alteração. — B.
Consequências substantivas. 4. Regime transitório. § 3º As formas de processo.
1. Sentido de forma de processo na ação executiva: inadequação do conceito; a
(impossível de conter) multiplicidade de vias procedimentais (“tracks”). 2. Vias
procedimentais na execução para pagamento de quantia certa. — A. A
bipartição legal. A via ou forma sumária como forma especial e frequente.
Especialidades — B. Via ordinária como regra residual: forma ordinária
necessária e forma ordinária eventual. — C. Vias inominadas: em especial, os
casos dos artigos 727º e 855º nº 5. — D. Execução de sentença nos próprios
autos. — E. Apreciação crítica: excessivo favor debitoris? 3. Vias procedimentais
na execução para entrega de coisa certa. — A. Enunciado; especialidades na
execução de sentença. — B. Articulação com as regras especiais da execução
para entrega de coisa imóvel arrendada. 4. Vias procedimentais na execução
para prestação de facto; especialidades na execução de sentença. 5. Vias
procedimentais na cumulação de execuções. — A. Execuções com fins
idênticos— B. Execuções com fins diferentes. § 4º Conclusões finais. 1.
Constitucionalidade das regras de formalização de títulos executivos, acesso à
tutela jurisdicional e intensidade do exercício do direito de defesa em sede de
títulos executivos.2. Presença do despacho liminar e momento de citação em
sede de vias procedimentais executivas.

415
Videogravação da comunicação

Vídeo 1 Vídeo 2

416
ANEXOS

Jurisprudência
 Jurisprudência do Tribunal Constitucional
 Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
 Jurisprudência dos Tribunais de Relação
 Tribunal da Relação de Coimbra
 Tribunal da Relação de Évora
 Tribunal da Relação de Guimarães
 Tribunal da Relação de Lisboa
 Tribunal da Relação de Porto
Jurisprudência do Tribunal Constitucional
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
NÚCLEO DE APOIO DOCUMENTAL E INFORMAÇÃO JURÍDICA

[Novo Código de Processo Civil / Temas da Prova / Dever de gestão processual / Poderes
de cognição do juiz / Princípio do dispositivo / Princípio da adequação formal / Ónus de Alegação /
Factos instrumentais / Factos complementares e concretizadores / Réplica / Ampliação da causa de
pedir / Alteração da causa de pedir / Objeto do litígio / Erro na forma do processo / Declarações de
parte / Depoimento de parte / Confissão / Verificações não judiciais qualificadas / Impugnação da
matéria de facto / Audiência prévia / Dispensa da audiência prévia / Compensação / Reconvenção /
Arresto / Inversão do Contencioso / Tutela da personalidade /Art. 878º CPC (ou NCPC) / Aplicação da
lei processual no tempo / Princípio da confiança / Título executivo / Art. 857º, CPC (ou NCPC) /
Reclamação de Créditos]

Jurisprudência constitucional relacionada, posterior a Setembro de 2013,


apreciando normas do NCPC:

Acórdão n.º 714/2014 - Julga inconstitucional o artigo 857.º, n.º 1, do Código de


Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, quando
interpretado no sentido de limitar os fundamentos de oposição à execução
instaurada com base em requerimentos de injunção à qual foi aposta a fórmula
executória. [Ver ainda Acórdãos n.ºs 828/14 e 112/15]. (Apreciação de norma do
NCPC, com referência ao descritor título executivo).

Acórdão n.º 777/14 - Não julga inconstitucional o artigo 642.º, n.º 2, do Código de
Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, interpretado no
sentido de que, havendo o recorrente sido notificado para apresentar
comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e da multa, e liquidando o
mesmo apenas a multa, deve o tribunal determinar o desentranhamento do
requerimento apresentado, sem dele conhecer. (Apreciação de norma do NCPC,
com referência a prova).

Acórdão n.º 847/14 - Julga inconstitucional a norma resultante dos artigos 703.º
do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na
interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares
emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil
e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo
Civil de 1961. Ver ainda Acórdão n.º 161/15. (Apreciação de norma do NCPC, com
referência aos descritores título executivo, princípio da confiança, aplicação da
lei processual no tempo e temas da prova).

Abril 2015
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
NCPC
Temas vários
Jurisprudência do STJ

Lisboa, 15 de Maio de 2015

GABINETE DE ASSESSORES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


ASSESSORIA CÍVEL
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

Távora Victor
Temas da prova

Dever de gestão processual

Temas da prova
Factos conclusivos
Insolvência
Poderes do juiz
Reclamação de créditos
Poderes da Relação
Lista de créditos reconhecidos e não
Interpretação da declaração negocial
reconhecidos
Teoria da impressão do destinatário
Sentença
Homologação

I- Perante uma enunciação puramente conclusiva dos


temas da prova, cabe ao juiz, na fase de julgamento, I- A ausência de impugnação da lista definitiva de

ao considerar provada ou não provada a concreta créditos não implica sem mais a produção de uma

matéria de facto a que eles se reportam, especificar e sentença homologatória «cega» por um eventual

densificar tal factualidade concreta, fundamentando efeito cominatório pleno.

a sua decisão, não podendo limitar-se a considerar II- O art. 130.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com os

provada ou não provada a matéria, puramente princípios processuais gerais que conferem ao juiz

conclusiva, que na fase de saneamento e poderes de gestão e de direcção do processo, permite

condensação havia sido enunciada, cabendo à e impõe que este afira da bondade formal e

Relação, na sequência da impugnação da decisão substancial dos créditos constantes da lista

sobre a matéria de facto, sindicar e corrigir tal apresentada pelo administrador de insolvência.

deficiência. III- O conceito de «erro manifesto» a que alude o

II- Em aplicação do critério normativo da impressão mencionado normativo não se reduz apenas à

do destinatário, deve qualificar-se como assunção categoria do mero erro formal, podendo abranger

cumulativa de dívida a declaração, constante de razões ligadas à substância dos créditos em apreço o

documento escrito e enviado à contraparte, em que – que poderá ser objecto de censura por parte do

perante a existência de dúvidas objectivas acerca da tribunal, mesmo que os aludidos créditos não tenham

existência da obrigação de determinada autarquia de sido objecto de qualquer impugnação.

suportar o sobrecusto de determinada obra pública


urgente em certa infra-estrutura ferroviária – a 30-09-2014

entidade declarante se compromete, caso a autarquia Revista n.º 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1 - 6.ª Secção

o não faça em tempo oportuno, a garantir a Ana Paula Boularot (Relatora) *

cobertura de tal sobrecusto considerado Pinto de Almeida

tecnicamente razoável, vindo ulteriormente a assumir Nuno Cameira

comportamentos que, de forma concludente,


revelam a convicção de que se considerava
juridicamente vinculada, de modo autónomo, ao
cumprimento de tal obrigação.

13-11-2014
Revista n.º 444/12.5TVLSB.L1.S1 - 7.ª Secção
Lopes do Rego (Relator) *
Orlando Afonso
426
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

Poderes de cognição do juiz Revista n.º 2800/04.3TBMAI.P1.S1 - 7.ª Secção


Salazar Casanova (Relator) *
Lopes do Rego
Princípio da livre apreciação da prova Orlando Afonso
Poderes da Relação
Fundamentação
Matéria de facto Nulidade de acórdão
Depoimento da parte Omissão de pronúncia
Doação
Acessão industrial Pedido
Bens próprios Limites da condenação
Bens comuns
Base instrutória
Ampliação da base instrutória
I- O conteúdo da liberdade de julgamento a que alude
Poderes do tribunal
o art. 655.º do CPC, ou seja, o âmbito dos poderes de
Factos conclusivos
cognição das instâncias em matéria de facto é
Matéria de facto
exactamente o mesmo, seja a matéria de facto
Anulação de acórdão
apreciada pela 1.ª instância, seja ela apreciada pelo
Baixa do processo ao tribunal recorrido
Tribunal da Relação.
II- Não deve confundir-se liberdade de julgamento
com o dever de fundamentação em matéria de facto;
I- Os pedidos têm de ser discriminadamente
fundamentada pela Relação a alteração da matéria de
formulados na parte final da petição inicial – sendo
facto, aquilo que a parte considera «meras razões de
esta formulação a delimitação formal que confina o
convicção pessoal» outra coisa não é senão
poder de cognição qualitativa e quantitativa do
discordância incidente sobre o próprio critério legal
tribunal; inexiste, assim, omissão de pronúncia
da livre apreciação das provas, não se devendo
relativamente a uma pretensão dos autores que não
confundir liberdade com arbitrariedade;
tenha sido objecto de tal discriminação.
precisamente, por isso, a lei impõe o dever de
II- A base instrutória, eliminada pelo NPCP 2013 mas
fundamentação (art. 205.º, n.º 1, da CRP e art. 158.º
existente enquanto decorreu o processo, não tem,
do CPC).
seja ou não objecto de reclamação, carácter de
III- O depoimento de parte, quando não resulte em
definitividade podendo ser ampliada (i) por decisão
confissão, é um simples elemento probatório a
tomada em audiência final (art. 650.º, n.º 2, al. f), do
apreciar segundo o prudente critério do julgador –
CPC); (ii) em recurso de apelação (art. 712.º, n.º 4, do
uma prova livre, portanto (art. 361.º do CC).
CPC); (iii) ou por determinação do STJ (art. 729.º. n.º
IV- Construído em terreno rústico dos pais da ré,
4, do CPC).
estes doaram à ré, antes do seu casamento com o
III- Não necessita de ser anulado, e pode ser
autor, um edifício que nele se incorporou ainda antes
interpretado na sua dimensão fáctica, o quesito
do casamento, não se provando a propriedade desse
constante do art. 8.º da base instrutória no qual se
imóvel foi adquirida pelo marido da ré com
perguntava se «Ao derrubarem o muro de pedra e
fundamento em acessão industrial imobiliária (art.
edificarem um outro, em local diferente, os réus
1340.º do CC) é questão, fora do objecto do litígio,
acrescentaram, ao seu prédio, 28 m2 que,
saber se estamos face a um bem comum ou bem
anteriormente, integravam a unidade dos prédios dos
próprio da ré.
autores, com origem num dos seus três
constituintes».
13-02-2014
427
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

IV- A eliminação do referido quesito (levada a cabo I- A ineptidão da petição inicial deve ser arguida até à
pela Relação), sem a sua substituição por outro, contestação ou neste articulado, pelo que é
impediria, na prática, os autores de fazerem prova extemporânea a sua invocação, pela primeira vez, nas
sobre a localização da área ocupada dentro do alegações de recurso para o STJ, não sendo, ademais,
conjunto de prédios, inviabilizando assim a aquela nulidade principal passível de conhecimento
procedência do pedido de reconhecimento de oficioso em sede de recurso de revista (cfr. arts.
propriedade dessa área. 202.º, 206.º, n.º 2 e 508.º, todos do CPC).
V- O referido em III e IV determina a anulação do II- Como decorre dos arts. 722., n.º 2 e 729.º, ambos
acórdão recorrido, nos termos do art. 682.º, n.º 3, do do CPC, os poderes de cognição do STJ são restritos,
CPC, para que se julgue da falta de especificação da não lhe sendo lícito sindicar eventuais erros na
fundamentação da resposta e a impugnação da apreciação das provas ou na fixação dos factos
resposta correspondente, não sendo possível – sem materiais, salvo quando ocorra ofensa de disposição
isso – definir desde já a solução jurídica aplicável (art. expressa que exija certa espécie de prova para
683.º, n.º 2, do CPC). demonstrar a existência de um facto ou que fixe a
força de determinado meio de prova.
24-04-2014 III- Concluindo-se que as respostas a artigos da base
Revista n.º 24/09.2TBMDA.C2.S1 - 7.ª Secção instrutória constituem um minus em relação ao que
Maria dos Prazeres Beleza (Relator) ali se indagava e que tem um conteúdo concretizador,
Salazar Casanova não se justifica que se exerça o poder contido no art.
Lopes do Rego 646.º, n.º 4, do CPC.
IV- Não tendo o depoente – à data, advogado
Ineptidão da petição inicial
estagiário –, tido intervenção nos assuntos da ré e
Matéria de facto
limitando-se o mesmo, no testemunho que prestou, a
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
dar conta dos ensinamentos do seu então patrono a
Respostas explicativas
respeito da fixação de honorários, é inviável
Advogado
considerar que haja incorrido em revelação de dado
Testemunha
abrangido pelo sigilo profissional a que está obrigado.
Dever de sigilo
V- Tendo a ré, no âmbito do contrato de mandato
Contrato de mandato
forense que ajustou com o autor, procedido ao
Honorários
pagamento, em moldes faseados, dos honorários
Usura
acordados em função dos serviços – que foram
Bons costumes
autonomizados pelas partes – que este lhe prestou,
Cumprimento defeituoso
satisfez a obrigação de lhe pagar a retribuição,
Má fé
extinguindo-a (arts. 762.º, 763.º, n.º 1, 769.º e
Responsabilidade contratual
1167.º, al. b), todos do CC), pelo que não pode
Ónus da prova
questionar a bondade do valor entregue, sendo, pois,
Litigância de má fé
irrelevante a menção a esses serviços no laudo da
Sociedade comercial
Ordem dos Advogados.
Caso julgado
VI- A usura tem como elemento subjectivo essencial a
Recurso de revista
posição de inferioridade do lesado no momento em
Inadmissibilidade
que celebra o negócio ou pratica o acto, a qual
justifica a protecção do ordenamento jurídico para o

428
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

salvaguardar de um desequilíbrio inaceitável entre XI- Impendia sobre a reconvinte o ónus de


essa posição e a posição da contraparte que se traduz demonstrar que a via encontrada pelo reconvindo
na concessão de benefícios excessivos ou não assegurava os interesses daquela e que inserira,
injustificados a favor deste, i.e. do usurário. no contrato-promessa de compra e venda, uma
VII- Emergindo dos factos provados que a ré é uma cláusula com o propósito de elevar os seus honorários
sociedade comercial que se dedica à compra de com a propositura subsequente de uma acção.
imóveis e que efectua negócios de vulto, é manifesto XII- Resultando provado que a reconvinte, depois de
que não se configura a posição de inferioridade em ter sido esclarecida pelo reconvindo acerca das
relação ao seu mandatário referida em VI, tanto mais implicações jurídicas, subscreveu livremente o
que a generalidade das opções tomadas por este contrato-promessa de compra e venda e que, ao não
mereceram a concordância daquela. propor a competente acção na sequência do
VIII- A referência aos bons costumes, contida no art. decretamento de um procedimento cautelar, agiu
280.º, n.º 2, do CC, deve ser entendida por reporte à segundo as instruções daquela, há a concluir que
moral enquanto condicionante da liberdade de aquela conhecia e deu o seu assentimento à
fixação de conteúdos negociais, devendo os negócios estratégia por ele seguida e que é inviável considerar
jurídicos ser integrados moralmente e não sendo que a conduta daquele é temerária ou negligente.
indiferente o que se passa ao nível da sua execução e XIII- Não revelando os factos provados que o
cumprimento. reconvindo actuou com o propósito de protelar a
IX- A fixação da quantia de Esc. 5.000.000$00 a título resolução do litígio e granjear honorários vultuosos e
de honorários pela prestação de serviços relacionados faltou ao cumprimento das exigências próprias da sua
com as negociações e celebração de um contrato- actividade profissional de advogado por referência a
promessa de compra e venda não colide com os um padrão de um advogado medianamente zeloso e
valores éticos e morais que, em 1998 e na competente, mostram-se inverificados a ilicitude e a
actualidade, eram e são dominantes e vivenciados na culpa que fundariam a responsabilidade civil
sociedade, não sendo curial apelar à retribuição contratual.
mínima nacional então praticada – dado que esta XIV- Inexiste fundamento para a condenação do autor
nunca se guindou a montantes compatíveis com um como litigante de má fé se este demandou a ré no
nível de vida condigno e que não é possível que a convencimento de que lhe assistia razão e se logrou,
remuneração de um advogado (que exerce uma no essencial, demonstrá-la.
actividade profissional diferenciada que requer XV- Não tendo sido impugnado o segmento decisório
formação superior e investimentos pessoais e do acórdão recorrido em que se concluiu pela
profissionais contínuos) seja fixada por referência a existência de má fé por parte da ré e se considerou
esse valor –, tanto mais que a ré aceitou esse que a inerente responsabilidade recaía sobre os seus
montante e conhecia a finalidade dos pagamentos representantes legais, as razões de certeza e
que efectuou. segurança jurídica que estão na base do instituto do
X- No âmbito do contrato referido em V, a caso julgado formal que se formou impedem que se
responsabilidade civil do autor/reconvindo funda-se aprecie a questão por estes colocada – a imediata
na violação do dever de utilizar, com diligência e aplicabilidade do art. 544.º do NCPC (2013) – para
cuidado os seus conhecimentos técnicos de forma a colocar em crise a subsistência dessa condenação,
defender, segundo as leges artis, os interesses da não sendo, por isso, admissível o recurso de revista
ré/reconvinte (cfr. art 83.º, n.º 2, al. d), do EOA e art. fundado numa invocada contradição entre aquele
798.º do CC).

429
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

aresto e um outro da mesma Relação (cfr. art. 629.º, Impugnação pauliana


n.º 2, al. d), do mesmo diploma). Reapreciação da prova
Poderes da Relação
30-10-2014 Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
Revista n.º 1075-C/2002.P1.S1 - 7.ª Secção Gravação da prova
Fernanda Isabel Pereira (Relatora) Actas de julgamento
Pires da Rosa Atas de julgamento
Maria dos Prazeres Beleza Rejeição de recurso
Contrato-promessa
Revista excepcional Incumprimento do contrato
Insolvência Má fé
Reclamação de créditos
Lista de créditos reconhecidos e não I- O controlo da reapreciação da prova realizada pela
reconhecidos Relação não cabe no âmbito dos poderes de cognição
Sentença deste STJ (arts. 722.º, n.º 3, e 729.º do CPC, actuais
Homologação arts. 674.º e 682.º do NCPC (2013)), apenas lhe sendo
permitido sindicar o uso feito por esta dos poderes
I- A ausência de impugnação da lista definitiva de que lhe permitem modificar a decisão de 1.ª
créditos não implica sem mais a produção de uma instância, uma vez que constitui matéria de direito
sentença homologatória «cega» por um eventual averiguar se houve violação da lei do processo.
efeito cominatório pleno. II- Traduzindo a acta a demonstração da realização e
II- O art. 130.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com os do conteúdo dos actos processuais presididos pelo
princípios processuais gerais que conferem ao juiz juiz – como decorre do disposto no art. 159.º do CPC
poderes de gestão e de direcção do processo, permite –, e sendo a sua elaboração da responsabilidade do
e impõe que este afira da bondade formal e tribunal, não é curial fazer repercutir sobre a parte a
substancial dos créditos constantes da lista falta de consignação em acta dos elementos
apresentada pelo administrador de insolvência. identificadores do início e termo dos depoimentos,
III- O conceito de «erro manifesto» a que alude o em caso de prova gravada.
mencionado normativo não se reduz apenas à III- Nestas circunstâncias, a falta de indicação dos
categoria do mero erro formal, podendo abranger elementos a que se reporta o n.º 2 do art. 690.º-A do
razões ligadas à substância dos créditos em apreço o CPC, por referência ao exarado em acta, não pode
que poderá ser objecto de censura por parte do desencadear a rejeição do recurso.
tribunal, mesmo que os aludidos créditos não tenham IV- A rejeição do recurso apenas deverá acontecer
sido objecto de qualquer impugnação. caso a omissão de cumprimento do disposto no n.º 2
do art. 690.º-A do CPC seja imputável à parte que
30-09-2014 deduz a impugnação da decisão sobre a matéria de
Revista n.º 3045/12.4TBVLG-B.P1.S1 - 6.ª Secção facto, a qual – devendo e podendo fazê-lo – omite
Ana Paula Boularot (Relatora) * por incúria sua a menção dos excertos ou passagens
Pinto de Almeida em que se funda, por referência ao assinalado em
Nuno Cameira acta.
V- As respostas à matéria de facto – onde se
encontram as expressões sabiam que com tal negócio

430
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

tornavam objectiva e definitivamente impossível a I- Para efeitos de exercício dos poderes de cognição
celebração dos prometidos contratos e previram que devem ter-se como não definitivos aqueles juízos de
a celebração dos contratos prometidos se tornaria valor sobre os factos materiais que a Relação
impossível, aceitando esse resultado – contêm formulou em função da sensibilidade ou intenção
materialidade destinada a provar o estado de jurídica, os quais, por traduzirem valorações legais já
consciência e intenção das rés, versando sobre factos podem ser sindicados pelo STJ.
do foro interno dos intervenientes no negócio objecto II- O conceito de “exploração agrícola de tipo familiar"
de impugnação pauliana, não envolvendo matéria é um conceito de direito cujo preenchimento há-de
conclusiva que deva ser desconsiderada. resultar da conjugação dos vários elementos factuais
VI- O exercício da impugnação pauliana depende, nos a que a lei faz referência, consistindo o mais
termos do art. 610.º do CC, da verificação dos importante na efectiva afectação do prédio, ou
seguintes requisitos: (i) ser o crédito anterior ao acto conjunto de prédios, a exploração agrícola através do
ou, sendo posterior, ter o acto sido realizado trabalho próprio do cultivador ou de pessoas do seu
dolosamente com o fim de impedir a satisfação do agregado familiar, circunstância esta que faz caber
direito do futuro credor; (ii) resultar do acto a dentro dos poderes de cognição deste STJ a
impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação apreciação e decisão sobre o preenchimento ou não
integral do seu crédito, ou o agravamento dessa preenchimento factual desse conceito jurídico.
impossibilidade; (iii) sendo o acto oneroso, exige-se III- Não é razoável, sobretudo no actual contexto de
ainda a má fé dos respectivos sujeitos. desenvolvimento agrário, pensar-se que a unidade
VII- A lei não impõe, para a procedência da agrícola familiar apenas existe quando se torna
impugnação pauliana, o prévio reconhecimento efectivamente produtiva, desprezando para efeitos
judicial do direito de crédito e condenação do de integração daquele conceito jurídico
devedor no cumprimento da obrigação. (nomeadamente para efeitos da previsão normativa
VIII- Quando o direito de crédito nasce do próprio do art. 1381.º, al. b) – esta normatividade tem que
incumprimento do devedor – e nesse preciso ser compaginada e entendida em conjunto e não
momento –, sem qualquer intervenção do credor, fragmentariamente conforme comanda a unidade
não é exigível a demonstração de que o acto lesivo da sistemática para que aponta o art. 9.º do CC) – toda a
garantia patrimonial foi dolosamente realizado, mas fase temporal de investimentos, de preparação dos
apenas a prova de que aquele acto foi realizado com solos e de plantações efectuadas.
a finalidade de obstar à satisfação do crédito do IV- Na sua variante de exercício em desequilíbrio –
autor, posteriormente constituído. desproporção grave entre o exercício do titular
exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem –, o
05-02-2015 abuso de direito resultará da prática de uma acção
Revista n.º 14434/05.0TBMAI.P2.S1 - 7.ª Secção que pelas circunstâncias ultrapasse os limites
Fernanda Isabel Pereira (Relator) razoáveis do exercício de um direito, provocando
Pires da Rosa danos a um terceiro – apresenta-se, desta forma,
Maria dos Prazeres Beleza como um resultado do princípio da
proporcionalidade, conatural à própria ideia de

Direito de preferência justiça, intuída como proporção ou justa medida.

Prédio rústico V- Enquanto instrumento medidor de ponderação e

Exploração agrícola mediação, a proibição de excesso (ou principio da

Matéria de direito proporcionalidade) cumpre uma função específica na

Abuso do direito
431
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

operação de optimização das possibilidades jurídicas Ineptidão da petição inicial


e fácticas, devendo merecer observância nas decisões Nulidade
judiciais pautadas por uma aplicação da lei que Conhecimento oficioso
pondere elementos como os relativos à necessidade e Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
à adequação, subjacentes ou inerentes à própria Factos essenciais
proporcionalidade. Princípio da aquisição processual
V- A hipótese de desproporção de exercício pode Factos complementares
revestir a forma de desequilíbrio grave entre o
beneficio que da procedência da acção poderá advir
para o titular exercente e o correspondente sacrifício I- A ineptidão da petição inicial – nulidade principal
que é imposto a outrem pelo exercício de tal direito, que não pode ser oficiosamente suscitada e
surgindo, assim como possibilidade legalmente conhecida na fase de recurso – supõe que o autor não
prevista de correcção de soluções que, ainda que haja definido factualmente o núcleo essencial da
legalmente suportadas, se apresentariam em causa de pedir invocada como base da pretensão que
concreto contrárias ao normal sentimento de justiça. formula, obstando tal deficiência a que a acção tenha
VII- Sempre que a paridade das pessoas no âmbito do um objecto inteligível.
direito civil, que emana do princípio de igualdade II- A mera insuficiência na densificação ou
originária, seja afectada por regimes especiais de concretização adequada de algum aspecto ou
protecção ou de privilégio legal – neste, o exercício da vertente dos factos essenciais em que se estriba a
preferência de proprietário de prédio contíguo – dê pretensão deduzida (implicando que a petição,
origem a um aproveitamento perverso desse regime caracterizando, em termos minimamente
tornando-o um regime de protecção injustificado, satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da
deve precisamente intervir o instituto do abuso de causa petendi, omite a densificação, ao nível tipo por
direito como uma forma de adaptação do direito à adequado à fisionomia do litígio, ou de algum aspecto
evolução da vida, servindo como válvula de escape a caracterizador ou concretizador de tal factualidade
situações que os limites apertados da lei não essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas
contemplam por forma considerada justa pela podendo implicar a improcedência, no plano de
consciência social e evitando que, observada a mérito, se o autor não tiver aproveitado as
estrutura formal do poder que a lei confere, se oportunidades de que beneficia para fazer adquirir
excedam manifestamente os limites que se devem processualmente os factos substantivamente
observar, tendo em conta a boa fé e o sentimento de relevantes, complementares ou concretizadores dos
justiça em si mesmo. alegados, que originariamente não curou de
densificar em termos bastantes.
24-02-2015
Revista n.º 283/2002.P2.S1 - 1.ª Secção 26-03-2015
Mário Mendes (Relator) * Revista n.º 6500/07.4TBBRG.G2.S2 - 7.ª Secção
Sebastião Póvoas Lopes do Rego (Relator) *
Moreira Alves Orlando Afonso
Távora Victor

432
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

de convite do tribunal –, em relação ao facto


Princípio do dispositivo
essencial alegado pelo autor na petição inicial.

Princípio dispositivo 29-01-2014


Limites da condenação Revista n.º 447/03.0TBBCL.G1.S1 - 6.ª Secção
Excesso de pronúncia João Camilo (Relator)
Fonseca Ramos
I- O princípio da congruência, enquanto princípio Fernandes do Vale
referente ao desenvolvimento do processo que colhe
Contrato-promessa de compra e venda
assento nos arts. 264.º e 661.º do CPC, desdobra-se
Execução específica
em três vertentes: a adequação da sentença às
Direito de retenção
pretensões das partes, de maneira que aquela dê
Herança
arrimada resposta a todas estas; correlação entre as
Personalidade judiciária
petições de tutela e os pronunciamentos da decisão;
Administração da herança
harmonia entre o solicitado e o decidido.
Confissão
II- A nulidade prevista no art. 668.º, n.º 1, al. d), do
Depoimento de parte
CPC (excesso de pronúncia), está directamente
Princípio dispositivo
relacionada com o comando previsto no art. 660.º,
n.º 2, do mesmo código – para que este dever seja
cumprido é preciso que haja identidade entre a causa I- O que identifica e define a pretensão material do
petendi e a causa judicandi, entre a questão posta autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar,
pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e enquanto elemento individualizador da acção, é o
causa de pedir, e a questão resolvida pelo juiz, efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a
identificada por estes mesmos elementos. caracterização jurídico-normativa da pretensão
material que lhe atribui.
05-11-2013 II- Peticionada a declaração judicial de transferência
Revista n.º 454/10.7TBSEI.C1.S1 - 1.ª Secção de metade dos imóveis para a herança e da outra
Gabriel Catarino (Relator) metade para a própria autora, no seguimento do
Sebastião Póvoas pedido de prévio reconhecimento de o direito ao
Moreira Alves cumprimento coercivo do contrato-promessa
(execução específica) a favor dos representantes do
Respostas à base instrutória falecido, aqueles pedidos apresentam-se como
Factos instrumentais meramente consequenciais ou dependentes,
Factos essenciais constituindo como que um desenvolvimento ou
Princípio dispositivo consequência do pedido principal, sendo ilícito ao
tribunal proceder, ele próprio, na sentença e a título
I- Não há contradição entre os factos se a resposta ou oficioso, à pertinente correcção desse efeitos
respostas dadas a um quesito não colidem com as mediatos, sem violação dos princípios do pedido e do
dadas a outro ou outros. dispositivo.
II- Não viola o disposto no art. 664.º do CPC, o III- O direito de crédito gerado pelo contrato-
acórdão recorrido que aditou um facto instrumental – promessa transmite-se aos herdeiros sucessores do
extraído de documento junto aos autos na sequência falecido promitente-comprador os quais, como

433
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

titulares dos direitos e obrigações da herança e em 04-02-2014


sua representação, gozam de legitimidade Revista n.º 360/09.8TCGMR.G1.S1 - 1.ª Secção
substantiva e processual para o executarem Alves Velho (Relator) *
forçadamente, mesmo contra outro sucessor co- Paulo Sá
herdeiro, que mantém a qualidade de devedor. Garcia Calejo
IV- O art. 2091.º do CC, ressalvando os casos
Prestação de contas
declarados nos artigos anteriores, exclui do seu
Conta bancária
âmbito de previsão e aplicação, por regulada
Pedido
especialmente no art. 2074.º, a forma de exercício
Princípio dispositivo
dos direitos e obrigações entre a herança e os
Omissão de pronúncia
herdeiros, atendendo à separação de patrimónios,
Abuso do direito
por forma a que apenas haja lugar à resolução de
Boa fé
conflito, mediante nomeação de curador especial,
quando o cabeça-de-casal for, ele próprio, o herdeiro
credor ou devedor. I- A acção de prestação de contas tem por objecto o
V- Para efeito de admissão por acordo dos factos apuramento e aprovação das receitas obtidas e das
articulados e não impugnados, à não contradição com despesas realizadas por quem administra bens
o conjunto do articulado da parte é assimilável a não alheios e a eventual condenação no pagamento do
contradição com o alegado, pela parte que saldo que venha a apurar-se, pelo que, sendo alegado
eventualmente omita a impugnação, em articulado pela autora que a partir de determinado momento
anterior, designadamente na petição inicial, de sorte existiu uma conta bancária titulado pelo falecido
que não carecerá o autor de repetir na réplica o que marido e pala ré, não viola o princípio do dispositivo
já deixou articulado na petição inicial. nem incorre em excesso de pronúncia a decisão que
VI- Se a declaração confessória, obtida em considera que o dever de prestação de contas existe
depoimento de parte, não foi reduzida a escrito, independentemente do uso e natureza dessa conta
existindo apenas uma declaração, na acta, do julgador bancária.
da 1.ª instância no sentido de que o depoente II- O decurso do tempo, por si só, não integra abuso
confessou a matéria do quesito, não se satisfazem as de direito – o titular de um direito exerce-o no tempo
exigências legais de forma, que são condição legal de que acha adequado –, para que tal ocorra necessário
eleição da possibilidade de excepcional reapreciação se torna que da factualidade provada resulte que essa
desse meio de prova pelo tribunal de revista, sendo a falta de exercício do direito atenta contra os ditames
decisão da Relação que alterou a resposta, porque da boa fé, a qual exige que esse lapso de tempo
tomada em apreciação de meio de prova de livre provoque um convencimento de que o direito não
apreciação, ao abrigo da al. a) do art. 712.º, n.º 1, do será exercido.
CPC, insusceptível de censura.
VII- O direito de retenção é um direito real de 03-04-2014
garantia das obrigações – e não um direito real de Revista n.º 2040/07.0TJVNF.P1.S1 - 2.ª Secção
gozo – que visa garantir o crédito resultante do não Bettencourt de Faria (Relator)
cumprimento do contrato-promessa, surgindo e Pereira da Silva
existindo apenas para garantia do crédito gerado por João Bernardo
um incumprimento definitivo desse contrato.

434
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

Revista excepcional Princípio dispositivo


Revista excepcional Direito de propriedade
Relevância jurídica Servidão de passagem
Direitos de personalidade Prédio dominante
Princípio dispositivo Prédio serviente
Princípio da substanciação
Limites da condenação
I- O princípio do dispositivo, que comete às partes a
adução do material de facto a utilizar pelo juiz para a
I- O conceito de “relevância jurídica” com clara decisão do litígio, encontra-se consagrado na ordem
necessidade “para uma melhor aplicação do direito”, jurídica nacional, em termos, progressivamente, mais
é aberto devendo ser casuisticamente densificado, mitigados, por força da temperança introduzida com
mas sendo sempre juridicamente relevante o pôr em o reforço do princípio do inquisitório, como acontece
causa direitos de personalidade, como subjectivos com os factos que sejam complemento ou
absolutos, oponíveis “erga omnes” e credores de concretização dos que as partes hajam alegado e
protecção judicial. resultem da instrução da causa, desde que sobre eles
II- Outrossim, tem relevância jurídica a questão tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
controversa na doutrina e na jurisprudência, com II- A ideia do exercício, tendencialmente, pleno do
complexidade de subsunção jurídica ou resultante de direito real de propriedade é compatível com a
inovação legislativa ainda não sedimentada ou, compressão do seu núcleo essencial, que só deverá,
finalmente, por estarem em causa conceitos em princípio, considerar-se legítima até onde o
indeterminados. “sacrifício”, ónus ou encargo imposto sobre a coisa se
III- O juiz está limitado pelo princípio do dispositivo, revele necessário para assegurar a terceiros uma
mas a substanciação (ou consubstanciação) permite- fruição “normal” do seu próprio direito, mas que já
lhe definir livremente o direito aplicável aos factos não é admissível quando tal sacrifício se mostrar
que lhe é lícito conhecer, buscando e interpretando exorbitante ou anómalo, face ao quadro objetivo das
as normas jurídicas. circunstâncias que, em dado momento, se
IV- Tal princípio pode implicar uma convolação da verifiquem.
situação jurídica alegada pelas partes e a sua III- Não basta que, para além da passagem objeto da
submissão a diferentes normas. servidão, exista outra via de acesso do prédio
V- Perante uma causa de pedir complexa, o julgador dominante para a via pública, porquanto é necessário
pode inseri-los em qualquer dos institutos desde que, que este outro acesso ofereça condições de utilização
a final, não condene quantitativamente ou similares, ou, pelo menos, não desproporcionalmente
qualitativamente para além do pedido, isto é, se agravadas, ficando ao prudente alvedrio do julgador a
mantenha nos limites do n.º 1 do artigo 609.º do avaliação, no momento considerado, segundo um
Código de Processo Civil. juízo de prognose de proporcionalidade subjacente
aos interesses em jogo, da existência de alternativa
20-06-2014 que, sem ou com um mínimo de prejuízo para o
Revista excepcional n.º 3193/10.5TJVNF.P1.S1 prédio encravado, permita que venha a ser eliminado
Sebastião Póvoas (Relator) * o encargo incidente sobre o prédio serviente,
Moreira Alves garantindo uma acessibilidade, em termos de
Nuno Cameira comodidade e regularidade, ao prédio dominante,

435
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente. de qualquer uma das hipóteses em que, de acordo
IV- Se o prédio dominante pode, facilmente, sem com o disposto no art. 721.º, n.º 3, do CPC, na
excessivo incómodo ou dispêndio obter comunicação redacção aplicável, o STJ deva intervir no julgamento
com o centro da freguesia, através da via pública, sem da matéria de facto, não cabe a este tribunal alterá-
ter de utilizar o carreiro objeto da servidão, que, la.
apenas permite o encurtamento da distância na ida III- Perante o facto de o menor, filho do autor e da ré
ao centro da freguesia, e que onera o prédio – que viveram em união de facto – ter sido, por
serviente, não se justifica a manutenção da servidão, decisão judicial, confiado à guarda do primeiro e dada
como já não encontraria suporte, neste momento, a a ausência de factologia referente às necessidades de
sua constituição inicial, pela simples, mas decisiva cada uma das partes, bem andou a Relação, em face
razão de que esse prédio não pode ser considerado do disposto no art. 1105.º do CC (aplicável “ex vi” art.
encravado. 4.º da Lei n.º 7/2001, de 11-05), ao considerar o
V- Realizando-se o acesso à via pública, através de um interesse do menor como único elemento relevante
prédio, entretanto, adquirido pelos titulares do para a decisão sobre a atribuição do arrendamento da
prédio dominante, ligado, materialmente, a este, casa de morada de família, sendo que este se
justifica-se que deixe de ser onerado com a servidão sobrepõe aos interesses do recorrente, aliás apenas
pedonal de passagem o prédio serviente alheio, e que invocados em sede recursória.
se declare extinta, por desnecessidade, a IV- O DL n.º 166/97, de 07-05, não pode ser
correspondente servidão. interpretado no sentido de subverter a atribuição da
casa de morada de família se estiver em causa a
25-06-2014 cessação de união de facto e o interesse de um
Revista n.º 3474/06.2TBBCL.G1.S1 - 1.ª Secção menor confiado à guarda do progenitor a quem se
Helder Roque (Relator) * atribuiu a sua guarda.
Gregório Silva Jesus
Martins de Sousa 03-07-2014
(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo Revista n.º 1360/11.3T2AMD.L1.S1 - 7.ª Secção
Acordo Ortográfico) Orlando Afonso (Relator)
Távora Vítor
Falta de contestação Granja da Fonseca
Ónus de impugnação especificada
Matéria de facto Processo de jurisdição voluntária

Poderes do Supremo Tribunal de Justiça Princípio inquisitório

União de facto Princípio dispositivo


Pedido

I- Como principal corolário do princípio do dispositivo,


I- Nos processos de jurisdição voluntária, o princípio
do princípio da auto-responsabilidade das partes e do
da actividade inquisitória do juiz prevalece sobre o
princípio do contraditório, o réu fica constituído no
princípio da actividade dispositiva das partes – art.
ónus de contestar a acção sob pena de se terem por
1409.º, n.º 2, do CPC, na versão de 1995/96 [art.
confessados os factos alinhados na petição inicial.
986.º, n.º 2, do NCPC (2013)] –, e nas decisões a
II- Dado que a ré não contestou, as instâncias
tomar o juiz não está sujeito a critérios de legalidade
decidiram com base na factualidade alegada na
estrita, devendo adoptar, em cada caso, a solução
petição inicial, pelo que, não se estando em presença
436
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

que julgue mais conveniente e oportuna. versão do DL n.º 303/2007, correspondente ao art.
II- A natureza do processo de jurisdição voluntária 682.º do NCPC).
permite e obriga o tribunal a realizar as diligências III- A ampliação da base instrutória tem de referir-se a
necessárias ao apuramento do pedido e factos factos alegados pela parte e não a factos novos sob
correlativos que o suportem, pois, neste tipo de pena de violação do princípio do dispositivo; a
processos, o requerente não tem o ónus de alegar e faculdade concedida pela lei processual civil ao STJ só
provar a matéria de facto. pode ser exercida quando as instâncias seleccionarem
III- O juiz não está vinculado ao pedido, podendo imperfeitamente a matéria da prova, amputando-a
afastar-se dele, na medida em que aquilo que lhe é de elementos que consideraram dispensáveis, mas
exigido é a regulação do interesse fundamental em que se verifica serem indispensáveis para o Supremo
questão (no caso dos processos tutelares cíveis, o definir o direito.
interesse do menor) pela forma que seja mais IV- A lei processual civil portuguesa tem vindo a
conveniente e oportuna e sem estrita vinculação aos evoluir no sentido do reforço do princípio do
factos que lhe foram apresentados e ao pedido que inquisitório, no plano da instrução, com a
lhe foi formulado. correspondente restrição ao princípio do dispositivo;
não obstante esta evolução, cabe às partes alegar os
09-09-2014 factos principais da causa, que integram a causa de
Reclamação n.º 4289/12.4TBALM.L1-A.S1 - 1.ª Secção pedir e que fundam as excepções (art. 264.º, n.º 1, do
Paulo Sá (Relator) CPC revogado) ou, na formulação do NCPC, os factos
Garcia Calejo essenciais que constituam a causa de pedir (art. 5.º,
Helder Roque n.º 1).
V- A alegação dos factos essenciais é feita nos
Matéria de facto articulados (art. 147.º, n.º 1, do NCPC), incluindo não
Base instrutória só os articulados normais do processo (petição inicial,
Ampliação da base instrutória contestação e réplica), mas também o articulado
Factos essenciais superveniente (art. 588.º, n.º 1, do NCPC). O juiz
Factos instrumentais pode, contudo, convidar as partes a aperfeiçoar os
Princípio dispositivo articulados, quando contenham insuficiências ou
Princípio inquisitório imprecisões na exposição da matéria de facto (arts.
590.º, n.º 2, al. b), e n.ºs 3 e 4, e 591.º, n.º 1, al. c), do
NCPC), mas não pode substituir-se-lhes na introdução
I- A base instrutória, eliminada pelo NCPC (2013), não dos factos na causa.
tem carácter de definitividade, podendo ser ampliada VI- Factos instrumentais são aqueles que, por
por decisão tomada em audiência final (art. 650.º, n.º natureza, não carecem de alegação e, por isso, são
2, al. f), do CPC, na versão do DL n.º 303/2007, de 24- oficiosamente considerados na decisão de facto,
08), em recurso de apelação (art. 712.º, n.º 4, do CPC) desde que resultem da instrução da causa;
ou por determinação do STJ (art. 729.º, n.º 3, do CPC). diversamente dos factos principais, não constituem
II- Para que tais poderes possam ser exercidos pelo condicionantes directas na decisão, sendo a sua
STJ, é necessário que os factos fixados pelas função, antes, a de permitir atingir a prova dos factos
instâncias sejam insuficientes para a decisão da principais.
questão de direito ou que ocorram contradições na VII- Os factos instrumentais destinam-se a realizar
decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a prova indiciária dos factos essenciais, já que através
decisão jurídica do pleito (art. 729.º, n.º 3, do CPC, na
437
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, particulares.


à demonstração dos factos essenciais II- É vedado ao STJ sindicar as conclusões ou ilações
correspondentes – assumindo em exclusivo uma extraídas pelas instâncias a partir da factualidade
função probatória e não uma função de provada (bem como o seu esclarecimento e
preenchimento e substanciação jurídico-material das interpretação, desde que não a alterem) por tal
pretensões e da defesa. consistir ainda em matéria de facto, sem prejuízo de
poder censurar o recurso a presunções judiciais,
02-12-2014 verificando a correcção do método discursivo e, em
Revista n.º 295/04.0TBVFR.P2-A.S1 - 1.ª Secção geral, de averiguar se os critérios legais de utilização
Maria Clara Sottomayor (Relatora) de tal meio de prova foram respeitados, o que
Sebastião Póvoas constitui matéria de direito.
Moreira Alves III- Cabendo apenas às partes, de acordo com o
princípio dispositivo, a formação da matéria de facto,

Matéria de facto o tribunal só se pode servir de factos alegados pelas

Poderes do Supremo Tribunal de Justiça partes (art. 5.º do NCPC (2013)), pelo que a inclusão

Presunções judiciais de factos não articulados na matéria de facto provada

Princípio dispositivo (excedendo assim a matéria quesitada) deve ser

Facto não articulado sindicada pelo STJ e tem como consequência que a

Respostas excessivas mesma se dê por não escrita.

Doação IV- A doação é um contrato (repare-se que só se

Aceitação da doação perfectibiliza pela aceitação do donatário) pelo qual

Boa fé uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do

Revogação do negócio jurídico seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa,

Indignidade possuindo um cariz pessoal (art. 949.º do CC).

Deserdação V- Dado que a aceitação implica, desde logo por

Alimentos imposição do princípio da boa fé, a contracção tácita,

Obrigação de alimentos pelo donatário, de uma obrigação moral de gratidão,

Abuso do direito a doação pode ser revogada, além do mais, por

Contestação ingratidão do donatário (art. 974.º do CC), tendo o

Litigância de má fé legislador, para evitar incongruências legislativas,


disposições inúteis e o arbítrio do julgador, feito
reportar o sentido jurídico daquela expressão aos
I- O STJ apenas pode modificar a decisão da matéria casos de incapacidade para suceder por indignidade e
de facto quando esteja em causa ofensa de prova às causas justificativas da deserdação, o que equivale
vinculada ou de disposição expressa da lei que exija por dizer que irreleva o seu sentido comum.
certa espécie de prova para a demonstração de VI- Para efeitos do disposto no art. 2166.º, al. c), do
determinado facto (art. 674.º, n.º 3, e art. 682.º, n.º 1 CC, deve-se ter em conta a noção de alimentos
e n.º 2, ambos do NCPC (2013)) –, sindicando, nesse contida no art. 2003.º do mesmo diploma, i.e., tudo o
caso, a aplicação das regras de direito probatório que é necessário à satisfação das necessidades de
material –, o que implica que não deva intervir vida do alimentando, devendo-se evitar critérios
quando esteja em causa a apreciação de meios de excessivamente amplos que ponham a cargo do
prova sem valor tabelado, como sejam documentos obrigado a alimentos a realização de objectivos do

438
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

primeiro que nada tem que ver com aquelas corresponderia a sancionar um abuso de direito e a
carências. abrir a porta a que, depois de garantida a doação pela
VII- Se bem que a obrigação de alimentos tenha por aceitação, qualquer donatário pudesse perpetrar as
fundamento uma natureza afectiva (já que a gratidão maiores perversidades contra o doador (desde que
do donatário tem que se traduzir num apoio às não integrassem as causas que despoletam a
necessidades do doador), ela não compreende o ingratidão) sem que tal beliscasse a vantagem
respeito e a consideração devidos pelo réu – patrimonial assegurada, quem sabe, por uma
donatário –, à autora nem tudo aquilo que seja simpatia e dedicação hipócritas ou de fachada.
destinado a manter a dignidade humana da mesma
(incluindo actos destinados a suprir as crescentes 11-12-2014
limitações físicas e psíquicas desta) não se podendo, Revista n.º 25908/11.4T2SNT.L1.S1 - 2.ª Secção
pois, obrigar aquele a acarinhar a doadora e a Serra Baptista (Relator)
acompanhá-la na velhice, o que equivale por dizer Fernando Bento
que a falta de apoio afectivo a esta não integra a João Trindade
causa de revogação da doação referida em VI.
Princípio dispositivo
VIII- Resultando dos factos provados que i) a doadora
Pedido
conta com 87 anos de idade; ii) é viúva e não tem
Reconhecimento do direito
herdeiros; iii) que os réus não a visitavam e deixaram-
Direito de propriedade
na só quando esteve acamada, iv) que lhe dirigiu
Prédio confinante
imprecações que a deixaram triste; e v) que os réus se
Muro
apropriaram da quantia de Esc. 10.000.000$00 que
Presunção
àquela pertencia; é evidente que o réu adoptou uma
Compropriedade
conduta que defraudou as expectativas legítimas de
Princípio do contraditório
gratidão por parte da autora.
IX- A contestação de uma acção tem de se fundar
num inerente direito mas não pode afrontar os I- O princípio do dispositivo impede que o tribunal
valores fundamentais da ordem jurídica pelo que, não decida para além ou diversamente do que foi pedido,
se podendo limitar as exacções processuais ao mas não obsta a que profira decisão que se inscreva
instituto da litigância de má fé, há que, como válvula no âmbito da pretensão formulada.
de escape, convocar o instituto do abuso do direito – II- Pedindo os autores o reconhecimento do direito de
enquanto manifestação da boa fé que torna ilegítimo propriedade de um muro que delimita os quintais dos
o exercício de certas posições jurídicas quando as dois prédios urbanos confinantes, não constitui
mesmas, embora conformes à legalidade, são excesso de pronúncia, nem fere o princípio do
inadmissíveis por contender com o sistema jurídico na dispositivo a decisão judicial que, com fundamento na
sua globalidade – para as reprimir. presunção legal do art. 1371.º, n.º 2, do CC,
X- As exigências da boa fé e o sistema considerado no reconhece que o muro é compropriedade de ambas
seu conjunto não toleram que, perante uma actuação as partes.
do donatário como a descrita em VIII, este possa III- Considerando que ao réu foi conferida a
pugnar pela plena eficácia e irrevogabilidade da possibilidade de se defender, sem exclusão, sequer,
doação feita num momento em que não seria de da possibilidade de ilidir a presunção legal de
supor que tal conduta se verificaria, sendo que o comunhão prevista no art. 1371.º, n.º 2, do CC, a
reconhecimento da sua intangibilidade decisão que reconheceu a situação de

439
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

compropriedade relativamente ao muro divisório não Ana Paula Boularot


traduz a violação do princípio do contraditório.

Ónus de alegação (recurso)


11-02-2015
Revista n.º 607/06.2TBCNT.C1.S1 - 2.ª Secção
Abrantes Geraldes (Relator) * Relevância jurídica

Tomé Gomes Interesses de particular relevância social

Bettencourt de Faria Ónus de alegação


Baldios

Princípio da adequação formal


I- O n.º 2 do art. 672.º do NCPC (2013) faz recair sobre
quem recorre, sob pena de rejeição, a indicação da
Separação judicial de pessoas e bens concreta questão jurídica cuja apreciação seja
Divórcio claramente necessária (e não apenas necessária) para
Conversão da separação em divórcio uma melhor aplicação do direito.
Princípio da adequação II- Não existe a relevância jurídica a que se alude em I
se a questão colocada pelas recorrentes se situa
I- Tendo o cônjuge separado judicialmente de pessoas estritamente dentro do conflito em apreciação no
e bens proposto acção de divórcio, nos termos do art. processo e não extravasa para fora dele
1407.º do agora revogado CPC, com fundamento em possibilitando ou exigindo uma orientação
ruptura do casamento previsto na al. d) do art. 1781.º jurisprudencial que a outros processos possa servir de
do CC, mas onde alegou a separação judicial de guia.
pessoas e bens e a não reconciliação do casal, onde a III- É questão de relevante interesse social a definição
ré contestou apenas alegando pretensas deficiências da natureza jurídica dos baldios, mas já não a questão
de alegação factual na petição inicial e a sua vontade quando circunscrita a uma disputa concreta entre
de não se querer divorciar, não há qualquer vizinhos, sem qualquer transposição para o tema dos
impedimento processual a que o tribunal mande baldios enquanto realidade social que importe, ao
seguir a acção sob a forma prevista no art. 1417.º do direito e à sociedade, definir.
mesmo código processual e, consequentemente,
decrete o divórcio peticionado, por conversão da 25-02-2014
separação judicial. Revista excepcional n.º 196/1999.P2.S1
II- Este procedimento está legitimado no princípio da Pires da Rosa (Relator)
adequação formal previsto no art. 265.º-A do citado Silva Salazar
diploma processual, e não resulta dele a violação de Sebastião Póvoas
qualquer legítimo direito da ré, nomeadamente,
Revista excepcional
decorrente do princípio do contraditório ou da
Relevância jurídica
confiança da mesma num processo civil equitativo.
Interesses de particular relevância social
Ónus de alegação
10-12-2013
Revista n.º 3590/12.1TBCSC.L1.S1 - 6.ª Secção
João Camilo (Relator) I- Invocando a recorrente, como fundamento de
Fernandes do Vale admissibilidade da revista excepcional, a al. a) do n.º

440
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

1 do art. 672.º do NCPC (2013) não basta a alegação comunidade, situações essas capazes de gerar alarme
de meras discordâncias quanto ao decidido pela ou intranquilidade social.
Relação, e à aplicação do direito por esta efectuada, III- Não reveste a relevância referida em I e II a
sendo necessário que a recorrente localize e alegue questão de saber se os membros honorários de uma
uma questão jurídica, dotada de pragmatismo e cooperativa têm ou não direito de propor à direcção a
abstracção, susceptível de ser transponível para adesão de novos associados.
outras situações. IV- Por outro lado, a questão referida em III não
II- A circunstância de estarmos perante um contrato ultrapassa o caso singular, nem versa sobre matéria
obrigatório, eventualmente qualificável como de que contenda com interesses de ordem pública.
adesão, num mercado fechado e pouco concorrencial
não é, só por si, suficiente para justificar que o STJ 13-03-2014
volte a analisar uma questão que mereceu Revista excepcional n.º 585/11.6TVPRT.P1.S1
tratamento uniforme por parte das instâncias. Moreira Alves (Relator)
Sebastião Póvoas
06-03-2014 Pires da Rosa
Revista excepcional n.º 25382/10.2T2SNT.L1.S1
Pires da Rosa (Relator) Impugnação da matéria de facto

Sebastião Póvoas Reapreciação da prova

Moreira Alves Ónus de alegação


Alegações de recurso

Revista excepcional Conclusões

Relevância jurídica
Cooperativa I- Cumpre o ónus imposto pelo n.º 1 do art. 640.º do
Interesses de particular relevância social NCPC (2013), o recorrente que, nas conclusões das
Ónus de alegação alegações, refere expressamente que o recurso visava
«principalmente a impugnação da matéria de facto
I- A densificação do conceito aberto constante da al. dada como provada», e, nas alegações, referem os
a) do n.º 1 do art. 672.º do NCPC (2013) passa concretos pontos de facto considerados
estarmos perante uma questão de direito complexa, incorrectamente julgados, bem como os concretos
cuja subsunção jurídica imponha um importante e meios probatórios, que, em sua opinião, impunham,
detalhado exercício de exegese, um longo debate decisão diversa, expressando o sentido da alteração
pela doutrina e jurisprudência com o objectivo de se pretendida.
obter um consenso em termos de servir de II- As conclusões são proposições sintéticas que
orientação para quem tenha interesse jurídico ou emanam do que se expôs ao longo das alegações,
profissional. sendo que é nestas que se devem indicar as razões da
II- Por seu turno, a densificação do conceito de discordância com o julgado, nomeadamente, as
“interesses de particular relevância social” passará razões pelas quais se entende que a decisão deve ser
pela circunstância de se colocar à decisão situações anulada ou alterada.
que digam respeito à estrutura familiar, aos direitos
dos consumidores, ao ambiente, ecologia, qualidade 20-11-2014
de vida, saúde, património histórico e cultural, ou Revista n.º 110/10.6TVPRT.P1.S1 - 2.ª Secção
quando se discutam interesses importantes da Oliveira Vasconcelos (Relator)

441
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

Serra Baptista Factos instrumentais


Fernando Bento
(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo
Recurso de revista
Acordo Ortográfico)
Matéria de facto
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
Recurso de apelação
Insolvência
Impugnação da matéria de facto
Graduação de créditos
Ónus de alegação
Crédito laboral
Alegações de recurso
Privilégio creditório
Conclusões
Bem imóvel
Local de trabalho
I- Satisfazem o ónus de alegação imposto pelo art.
Ónus de alegação
640.º, n.º 1, do NCPC (2013), os apelantes que
Factos instrumentais
referem que a apelação visava também a impugnação
Princípio da aquisição processual
da decisão sobre a matéria de facto, indicam os
pontos da mesma que têm por incorretamente
julgados e os meios probatórios (mormente, I- Não é sindicável, no âmbito de um recurso de
depoimentos registados) que, em seu entender, revista, a decisão das instâncias que, com base na
impunham decisão diversa relativamente a cada um valoração dos elementos constantes de um processo
desses pontos e apontam o sentido da alteração. de insolvência e no resultado de diligências
II- As conclusões são proposições sintéticas que complementares oficiosamente ordenadas,
contêm a emanação lógica do que se expôs e nomeadamente a audição do administrador da
considerou ao longo das alegações, onde devem insolvência, conclui que, em termos factuais, os ex-
constar mais exaustivamente os fundamentos de trabalhadores da empresa insolvente exerciam a sua
discordância face ao julgado. actividade laboral em determinado imóvel àquela
III- Constando apenas das conclusões que os pertencente, verificando-se, por isso, os pressupostos
recorrentes pretendiam ver alterada a matéria de (art. 377.º do CT) que condicionam a titularidade do
facto, haveria que atender às alegações dos privilégio creditório imobiliário aí previsto.
recorrentes – onde se continham as menções II- Configurando-se tal elemento factual,
referidas em I – para sindicar o cumprimento do ónus substantivamente relevante, como complementar ou
de alegação mencionado em I. concretizador do núcleo essencial da causa de pedir
invocada pelo trabalhador/reclamante, sempre seria
17-12-2014 admissível a sua ulterior aquisição processual, em
Revista n.º 1786/12.5TVLSB-A.L1.S1-A - 2.ª Secção função dos resultados da instrução do processo –
Oliveira Vasconcelos (Relator) apesar de não alegados no requerimento inicial – ao
Fernando Bento abrigo do regime constante do n.º 3 do art. 264.º do
Serra Baptista CPC, correspondente ao actual art. 5.º do Código, na
(Acórdão e sumário e redigidos ao abrigo do novo versão emergente da Lei n.º 41/2013.
Acordo Ortográfico)
23-01-2014
Revista n.º 1938/06.7TBCTB-E.C1.S1 - 7.ª Secção
Lopes do Rego (Relator) *

442
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

Orlando Afonso I- A base instrutória, eliminada pelo NCPC (2013), não


Távora Victor tem carácter de definitividade, podendo ser ampliada
por decisão tomada em audiência final (art. 650.º, n.º

Pedido 2, al. f), do CPC, na versão do DL n.º 303/2007, de 24-

Condenação em objecto diverso do pedido 08), em recurso de apelação (art. 712.º, n.º 4, do CPC)

Poderes da Relação ou por determinação do STJ (art. 729.º, n.º 3, do CPC).

Documento II- Para que tais poderes possam ser exercidos pelo

Factos instrumentais STJ, é necessário que os factos fixados pelas

Factos admitidos por acordo instâncias sejam insuficientes para a decisão da


questão de direito ou que ocorram contradições na
I- Não ocorre violação do princípio processual do decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a
pedido, se a Relação condenou os réus nos pedidos decisão jurídica do pleito (art. 729.º, n.º 3, do CPC, na
formulados pela autora, a título principal – versão do DL n.º 303/2007, correspondente ao art.
pagamento de rendas – e a título subsidiário – 682.º do NCPC).
restituição do preço pago pela fracção autónoma –, III- A ampliação da base instrutória tem de referir-se a
quando, relativamente a este último, tendo-se factos alegados pela parte e não a factos novos sob
provado que a autora pagou dois preços diferentes pena de violação do princípio do dispositivo; a
pela mesma fracção (aos réus e ao tribunal, no faculdade concedida pela lei processual civil ao STJ só
âmbito de processo de execução), a Relação pode ser exercida quando as instâncias seleccionarem
entendeu dever condenar os réus a restituir à autora imperfeitamente a matéria da prova, amputando-a
o valor menor, reconhecendo ter sido este o seu real de elementos que consideraram dispensáveis, mas
prejuízo. que se verifica serem indispensáveis para o Supremo
II- A Relação não cometeu qualquer nulidade, nem definir o direito.
proferiu decisão surpresa, ao aditar à matéria assente IV- A lei processual civil portuguesa tem vindo a
factos constantes de documentos apresentados pelas evoluir no sentido do reforço do princípio do
partes, não impugnados, os quais, sendo inquisitório, no plano da instrução, com a
instrumentais, não carecem de ser alegados, podendo correspondente restrição ao princípio do dispositivo;
o julgador considerá-los, desde que resultem da não obstante esta evolução, cabe às partes alegar os
instrução da causa (art. 5.º, n.º 2, do NCPC e art. factos principais da causa, que integram a causa de
264.º, n.º 2, do CPC revogado). pedir e que fundam as excepções (art. 264.º, n.º 1, do
CPC revogado) ou, na formulação do NCPC, os factos
25-02-2014 essenciais que constituam a causa de pedir (art. 5.º,
Revista n.º 15682/98.3TVLSB.L1.S1 - 6.ª Secção n.º 1).
Salreta Pereira (Relator) V- A alegação dos factos essenciais é feita nos
João Camilo articulados (art. 147.º, n.º 1, do NCPC), incluindo não
Fonseca Ramos só os articulados normais do processo (petição inicial,
contestação e réplica), mas também o articulado
Matéria de facto superveniente (art. 588.º, n.º 1, do NCPC). O juiz
Base instrutória pode, contudo, convidar as partes a aperfeiçoar os
Ampliação da base instrutória articulados, quando contenham insuficiências ou
Factos essenciais imprecisões na exposição da matéria de facto (arts.
Factos instrumentais 590.º, n.º 2, al. b), e n.ºs 3 e 4, e 591.º, n.º 1, al. c), do
Princípio dispositivo
Princípio inquisitório 443
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

NCPC), mas não pode substituir-se-lhes na introdução I- Não se produzem contra o avalista os efeitos da
dos factos na causa. vinculação cambiária por ele assumida em livrança
VI- Factos instrumentais são aqueles que, por subscrita em branco enquanto esta não for
natureza, não carecem de alegação e, por isso, são preenchida, não podendo, assim, ser decretada a
oficiosamente considerados na decisão de facto, insolvência do avalista pelo incumprimento dessa
desde que resultem da instrução da causa; obrigação cambiária.
diversamente dos factos principais, não constituem II- O preenchimento de livrança efetuado no decurso
condicionantes directas na decisão, sendo a sua dos autos de insolvência com data de vencimento
função, antes, a de permitir atingir a prova dos factos anterior (17-5-2012) à data do encerramento da
principais. audiência final (19-07-2012) constitui facto
VII- Os factos instrumentais destinam-se a realizar objetivamente superveniente (facto complementar –
prova indiciária dos factos essenciais, já que através ver art. 264.º do CPC de 1961 e 5.º, n.º 2, al. b), do
deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, CPC de 2013) cuja atendibilidade é admissível nos
à demonstração dos factos essenciais termos do art. 663.º do CPC (art. 611.º do CPC de
correspondentes – assumindo em exclusivo uma 2013).
função probatória e não uma função de III- Tal facto não carece de ser alegado para que, no
preenchimento e substanciação jurídico-material das processo de insolvência, o juiz nele possa fundar a sua
pretensões e da defesa. decisão (art. 11.º do CIRE).

02-12-2014 16-01-2014
Revista n.º 295/04.0TBVFR.P2-A.S1 - 1.ª Secção Revista n.º 1094/12.1TBTVD.L1.S1 - 7.ª Secção
Maria Clara Sottomayor (Relatora) Salazar Casanova (Relator) *
Sebastião Póvoas Lopes do Rego
Moreira Alves Orlando Afonso
(Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo
Acordo Ortográfico)
Factos complementares e concretizadores

Matéria de facto
Aval Matéria de direito ~
Obrigação cambiária Factos supervenientes
Avalista Articulado superveniente
Insolvência Alteração da causa de pedir
Incumprimento Factos complementares
Livrança em branco Factos concretizadores
Pacto de preenchimento
Factos supervenientes I- Compete ao STJ, no âmbito de um recurso de
Ónus de alegação revista, sindicar a decisão da Relação referente à
Princípio dispositivo interpretação de certo segmento da sentença, na
Princípio inquisitório parte em que a mesma elenca a factualidade
provada, de modo a aferir se a interpretação acolhida
é conforme aos padrões ou critérios interpretativos
que devem nortear a interpretação das decisões

444
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

judiciais – e que não pode deixar de conduzir à dele se prevalecer.


fixação de um sentido interpretativo objectivável que
tem de fluir razoavelmente do teor literal da 13-02-2014
sentença, avaliada globalmente à luz dos respectivos Revista n.º 2081/09.2TBPDL.L1.S1 - 7.ª Secção
fundamentos. Lopes do Rego (Relator) *
II- Compete identicamente ao STJ sindicar o critério Orlando Afonso
normativo extraído pelas Relações do estatuído no Távora Victor
n.º 4 do art. 646.º do CPC, enquanto fundamento da
Ineptidão da petição inicial
distinção entre questões de facto e matéria de
Nulidade
direito, cujo julgamento era tradicionalmente
Conhecimento oficioso
atribuído a órgãos jurisdicionais diversos – o tribunal
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
colectivo e o juiz singular, dotados de diferentes
Factos essenciais
competências funcionais.
Princípio da aquisição processual
III- Nas causas em que não haja tido intervenção o
Factos complementares
tribunal colectivo – cabendo, por isso, a apreciação da
matéria do litígio, quer nos seus aspectos fácticos,
quer na vertente jurídica, ao juiz singular – deverá I- A ineptidão da petição inicial – nulidade principal
aplicar-se com particulares cautelas esse regime que não pode ser oficiosamente suscitada e
normativo, não se decretando o radical efeito conhecida na fase de recurso – supõe que o autor não
preclusivo aí estatuído quando a matéria quesitada – haja definido factualmente o núcleo essencial da
apesar de padecer de algum défice de densificação e causa de pedir invocada como base da pretensão que
concretização no plano factual – não se reconduza ao formula, obstando tal deficiência a que a acção tenha
uso de puros conceitos normativos, de que um objecto inteligível.
dependeria – de forma imediata – o desfecho no II- A mera insuficiência na densificação ou
plano jurídico da causa, manifestamente concretização adequada de algum aspecto ou
insusceptíveis de apreensão na realidade da vida vertente dos factos essenciais em que se estriba a
social e, por isso, absolutamente inidóneos e pretensão deduzida (implicando que a petição,
imprestáveis para servir de base às diligências de caracterizando, em termos minimamente
instrução e de enunciação e descrição inteligível do satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da
substrato factual do litígio. causa petendi, omite a densificação, ao nível tipo por
IV- Apesar de a parte interessada não ter cumprido, adequado à fisionomia do litígio, ou de algum aspecto
de modo processualmente adequado, o ónus de caracterizador ou concretizador de tal factualidade
deduzir articulado superveniente, nos termos essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas
estabelecidos no art. 506.º do CPC, provocando a podendo implicar a improcedência, no plano de
aquisição processual de facto constitutivo mérito, se o autor não tiver aproveitado as
superveniente, tal facto pode ser considerado na oportunidades de que beneficia para fazer adquirir
decisão quando (art. 264.º, n.º 3, do CPC) – processualmente os factos substantivamente
configurando-se como complementar ou relevantes, complementares ou concretizadores dos
concretizador do núcleo essencial da causa de pedir alegados, que originariamente não curou de
invocada – haja resultado da instrução da causa e sido densificar em termos bastantes.
submetido ao contraditório da outra parte,
mostrando a parte a quem aproveita interesse em 26-03-2015

445
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

Revista n.º 6500/07.4TBBRG.G2.S2 - 7.ª Secção João Bernardo


Lopes do Rego (Relator) * Oliveira Vasconcelos
Orlando Afonso Matéria de facto XE "Matéria de facto"
Távora Victor

Base instrutória
Réplica Ampliação da base instrutória
Factos essenciais
Factos instrumentais
Matéria de facto
Princípio dispositivo
Poderes do Supremo Tribunal de Justiça
Princípio inquisitório
Factos admitidos por acordo
Factos conclusivos

I- A base instrutória, eliminada pelo NCPC (2013), não


I- O art. 674.º, n.º 3, do NCPC (2013), mantém o tem carácter de definitividade, podendo ser ampliada
princípio de que o STJ só aprecia o erro na apreciação por decisão tomada em audiência final (art. 650.º, n.º
das provas e na fixação dos factos materiais quando 2, al. f), do CPC, na versão do DL n.º 303/2007, de 24-
houver ofensa de uma disposição expressa de lei que 08), em recurso de apelação (art. 712.º, n.º 4, do CPC)
exija certa espécie de prova para a existência do facto ou por determinação do STJ (art. 729.º, n.º 3, do CPC).
ou que fixe a força de determinado meio de prova, o II- Para que tais poderes possam ser exercidos pelo
que exclui a possibilidade de sindicar a convicção do STJ, é necessário que os factos fixados pelas
julgador das instâncias. instâncias sejam insuficientes para a decisão da
II- Como derivava do art. 502.º, n.º 1, do CPC anterior, questão de direito ou que ocorram contradições na
apenas era necessária a impugnação, na réplica, dos decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a
factos respeitantes à matéria das excepções, pelo que decisão jurídica do pleito (art. 729.º, n.º 3, do CPC, na
a falta de resposta aos factos invocados na versão do DL n.º 303/2007, correspondente ao art.
contestação para contraditar os que foram alegados 682.º do NCPC).
na petição inicial não tinha como efeito a admissão, III - A ampliação da base instrutória tem de referir-se
por acordo entre as partes, dos mesmos. a factos alegados pela parte e não a factos novos sob
III- A expressão “suave”, quando usada para fazer pena de violação do princípio do dispositivo; a
referência a uma realidade que precisa de ser medida faculdade concedida pela lei processual civil ao STJ só
(no caso, o ângulo de inclinação) para sobre ela se pode ser exercida quando as instâncias seleccionarem
poder exprimir tal qualificativo, constitui uma imperfeitamente a matéria da prova, amputando-a
conclusão, pelo que, independentemente do acordo de elementos que consideraram dispensáveis, mas
das partes, não podia ser tomada como um facto. que se verifica serem indispensáveis para o Supremo
IV - Nos termos do art. 712.º, n.ºs 5 e 6, do anterior definir o direito.
CPC, e do art. 662.º, n.º 2, al. d), e n.º 4 do NCPC IV - A lei processual civil portuguesa tem vindo a
(2013), é vedado ao STJ conhecer da indevida evoluir no sentido do reforço do princípio do
fundamentação da decisão da matéria de facto. inquisitório, no plano da instrução, com a
correspondente restrição ao princípio do dispositivo;
03-07-2014 não obstante esta evolução, cabe às partes alegar os
Revista n.º 408/04.0TBAMR.G1.S1 - 2.ª Secção factos principais da causa, que integram a causa de
Bettencourt de Faria (Relator) pedir e que fundam as excepções (art. 264.º, n.º 1, do

446
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

CPC revogado) ou, na formulação do NCPC, os factos


Causa de pedir (alteração e ampliação)
essenciais que constituam a causa de pedir (art. 5.º,
n.º 1).
V - A alegação dos factos essenciais é feita nos Alteração da causa de pedir
articulados (art. 147.º, n.º 1, do NCPC), incluindo não Admissibilidade
só os articulados normais do processo (petição inicial, Alegações de recurso
contestação e réplica), mas também o articulado Enriquecimento sem causa
superveniente (art. 588.º, n.º 1, do NCPC). O juiz Omissão de pronúncia
pode, contudo, convidar as partes a aperfeiçoar os Contrato de mandato
articulados, quando contenham insuficiências ou Condenação em quantia a liquidar
imprecisões na exposição da matéria de facto (arts.
590.º, n.º 2, al. b), e n.ºs 3 e 4, e 591.º, n.º 1, al. c), do
I- Na vigência do CPC anterior à Lei n.º 41/2013, de
NCPC), mas não pode substituir-se-lhes na introdução
26-06, era permitida a alteração da causa de pedir na
dos factos na causa.
réplica, mas não posteriormente, salvo se resultasse
VI - Factos instrumentais são aqueles que, por
de aproveitamento de confissão do réu ou de acordo
natureza, não carecem de alegação e, por isso, são
das partes.
oficiosamente considerados na decisão de facto,
II- Tendo a autora alterado bruscamente a causa de
desde que resultem da instrução da causa;
pedir, em sede de alegações do recurso de apelação –
diversamente dos factos principais, não constituem
invocando a figura do enriquecimento sem causa –,
condicionantes directas na decisão, sendo a sua
não tinha a Relação que indagar da verificação dos
função, antes, a de permitir atingir a prova dos factos
pressupostos dessa fonte de obrigações, sob pena de
principais.
incorrer em nulidade por excesso de pronúncia.
VII - Os factos instrumentais destinam-se a realizar
III- A falta de prova da existência de um acordo
prova indiciária dos factos essenciais, já que através
quanto à forma de pagamento, não obstante se ter
deles se poderá chegar, mediante presunção judicial,
provado que o réu fez determinadas despesas a
à demonstração dos factos essenciais
pedido do autor, não determina a improcedência da
correspondentes – assumindo em exclusivo uma
reconvenção – a qual tem como causa de pedir o
função probatória e não uma função de
mandato e as despesas feitas no seu âmbito –, antes
preenchimento e substanciação jurídico-material das
impõe a condenação do autor no respectivo
pretensões e da defesa.
pagamento.
IV- Não estando determinado o valor das despesas
02-12-2014
efectuadas, mas estando comprovada a sua
Revista n.º 295/04.0TBVFR.P2-A.S1 - 1.ª Secção
existência, cumpre remeter para liquidação o
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
respectivo apuramento (arts. 609.º, n.º 2, e 358.º e
Sebastião Póvoas
ss. do NCPC (2013)).
Moreira Alves

27-02-2014
Revista n.º 172/07.3TBCCH.E1.S1 - 7.ª Secção
Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)
Salazar Casanova
Lopes do Rego
Insolvência XE "Insolvência"

447
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

Concurso de credores 09-07-2014


Direito de retenção Revista n.º 2089/11.8TBLLE-H.E1.S1 - 6.ª Secção
Caso julgado Pinto de Almeida (Relator)
Causa de pedir Azevedo Ramos
Terceiro Nuno Cameira
Inutilidade superveniente da lide
Causa de pedir
Servidão
I- A identidade da causa de pedir – um dos requisitos
Usucapião
da repetição de uma causa, nos termos do art. 581.º
Princípio da preclusão
do NCPC (2013) – existe, na expressão legal, “quando
Princípio da concentração da defesa
a pretensão deduzida nas duas acções procede do
Extensão do caso julgado
mesmo facto jurídico”. Releva o conjunto de factos
que integram o núcleo da norma que estabelece o
efeito de direito material pretendido que, no caso do I- Radicando o fundamento de uma acção antes
direito de retenção, respeitam à detenção lícita, ao intentada pelos ora réus na aquisição, por usucapião,
dever de entrega de uma coisa e à existência de um de uma servidão e o fundamento da reconvenção –
crédito que resulte de despesas efectuadas com essa pelos mesmos deduzida na presente acção – na
coisa. constituição da mesma servidão por destinação do
II- É inútil apreciar a impugnação da decisão de facto, pai de família, estamos perante causas de pedir
se, na segunda acção, não se provou algum destes distintas, o que obvia à verificação do caso julgado,
factos constitutivos do direito de retenção, quando tanto mais que o pedido formulado naqueloutra
existe decisão anterior transitada sobre o mesmo acção não chegou a ser apreciado.
objecto e entre os mesmos sujeitos, cujo teor se iria II- O princípio da preclusão impõe que o direito que o
reproduzir (o que seria inútil) ou contradizer (o que autor viu reconhecido judicialmente não possa ser
contenderia com a sua eficácia). infirmado em nova acção pela dedução de novos
III- Para além das partes da acção em que a decisão é argumentos de defesa, sendo o princípio da
proferida, a eficácia subjectiva do caso julgado concentração da defesa na contestação (art. 573.º do
estende-se a terceiros – terceiros juridicamente NCPC (2013)) um dos seus corolários.
indiferentes –, que têm de acatar a sentença III- O princípio da preclusão não impede que o autor,
proferida entre aquelas, quando esta “não lhes causa que não viu reconhecido o seu direito, intente uma
qualquer prejuízo jurídico, porque deixa íntegra a nova acção com o mesmo fim, mas com diferente
consistência jurídica do seu direito, embora lhes causa de pedir, pois tal não belisca a decisão anterior.
cause um prejuízo de facto ou económico”: é o caso IV- A extensão do caso julgado é uma consequência
dos credores da insolvência, com direitos do mesmo e não uma sua causa, o que equivale por
reconhecidos e graduados. dizer que supõe a sua verificação.
IV- Não ocorre inutilidade superveniente da lide de
acção declarativa se o acórdão proferido nesta, já 17-12-2014
transitou em julgado na pendência de apenso de Revista n.º 726/12.6TBTVR.E1.S1 - 2.ª Secção
concurso de credores do processo de insolvência, Bettencourt de Faria (Relator)
impondo-se, com autoridade de caso julgado, à João Bernardo
decisão a proferir nos correspondentes autos. Oliveira Vasconcelos

448
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

I- A dupla conforme aludida no art. 671.º, n.º 3, do


Objecto do litígio
NCPC (2013), verifica-se, além do mais, nos casos em
que, na Relação, o recorrente foi condenado no
Competência
pagamento de uma quantia inferior àquela que foi
Recurso de revisão
fixada em 1.ª instância, por esse valor já estar, de um
Recurso de revista
ponto de vista de um incontornável critério de
coerência lógico-jurídica, compreendido no montante
I- A competência de um tribunal deve ser aferida em primeiramente fixado e por tal constituir uma
função da relação jurídica objecto do litígio tal como é pronúncia em sentido mais favorável, não se
configurada pelo autor, atendendo à causa de pedir e justificando que se vede o recurso quando a decisão
ao respectivo pedido. da Relação confirme inteiramente a sentença e se
II- Se a recorrente organizou a causa de pedir (e o permita o mesmo quando o recorrente obtém, em 2.ª
pedido) de forma a pedir a revisão de uma sentença instância, uma decisão mais favorável.
que não tinha transitado em julgado, fixando assim os II- Verifica-se, igualmente, dupla conforme se a
termos da lide e o objecto do litígio, a questão não se decisão sobre determinado ponto de facto na
coloca no plano da incompetência do tribunal mas sentença e no acórdão da Relação é a mesma assim
sim na desconformidade ou impossibilidade de como a sua justificação.
decisão pretendida rever. III- Não tendo a recorrente invocado os requisitos da
III- Se a apelação julgou, sem voto de vencido, a revista excepcional e não sendo estes perceptíveis
decisão proferida na 1.ª instância, quanto ao mérito nas alegações de recurso, é inviável descortinar a
da causa, ela foi obtida com a decisão final proferida existência de erro na forma do processo que careça
no tribunal da Relação mediante a conformidade – de sanação ou de adequada subsunção, não se
deliberação sem voto de vencido –, pelo que o justificando a convolação da revista para aquele
recurso de revista apenas seria admissível se a recurso.
recorrente pretendesse submeter a sua
admissibilidade ao crivo a que alude o art. 721.º-A do 30-09-2014
CPC – cf. art. 672.º do NCPC (2013). Reclamação n.º 2098/11.7TBPBL.C1-A.S1 - 6.ª Secção
Pinto de Almeida (Relator)
07-05-2014 Nuno Cameira
Revista n.º 536-A/2002.C1.S1 - 1.ª Secção Sousa Leite
Gabriel Catarino (Relator)
Maria Clara Sottomayor Declarações de parte
Sebastião Póvoas

Depoimento de parte
Erro na forma do processo
Confissão
Valor probatório
Recurso de revista Princípio da livre apreciação da prova
Dupla conforme
Inadmissibilidade
I- O depoimento de parte constitui, tão-só, um
Revista excepcional
instrumento hábil a provocar a confissão judicial
Revista excecional
provocada que, como meio de realização de prova
Erro na forma do processo
Rejeição de recurso 449
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

plena contra o confitente, pressupõe o Gregório Silva Jesus


reconhecimento que uma parte faz sobre a realidade Martins de Sousa
de um facto cuja prova incumbiria à outra parte, (Acórdão e sumário redigidos ao abrigo do novo
sendo, assim, a confissão um testemunho qualificado Acordo Ortográfico)
pelo objecto, por ser contrário aos interesses do seu
autor.
Depoimento de parte
II- A confissão visada pelo depoimento de parte não
faz prova plena contra o confitente, designadamente
quando for declarada insuficiente por lei, como Prescrição presuntiva

acontece quando não seja reduzido a escrito o Sociedade anónima

segmento em que houver confissão do depoente, ou Poderes do Supremo Tribunal de Justiça

em que este narre factos ou circunstâncias que Respostas à base instrutória

impliquem indivisibilidade da declaração confessória, Depoimento de parte

quer o julgamento se faça oralmente, quer quando


tiver ocorrido gravação da prova, encontrando-se I- O art. 317.º, al. c), do CC, consagra a prescrição
sujeito ao princípio da livre apreciação da prova. presuntiva, que se funda numa presunção de
III- As declarações desprovidas de força probatória cumprimento, justificada na dificuldade do
plena contra o confitente, por não terem sido consumidor provar o cumprimento das obrigações
reduzidas a escrito, não têm ainda a virtualidade de assumidas no seu quotidiano, face à prática
constituir confissão, quando não se traduzirem num generalizada de não exigir documento de quitação ou
reconhecimento de factos desfavoráveis para a de não o guardar.
respectiva parte, ficando sujeitas ao princípio da livre II- Não beneficia desta presunção de cumprimento o
apreciação pelo tribunal, como se tratasse do devedor, sociedade anónima, que, possuindo
reconhecimento de factos desfavoráveis, que não contabilidade organizada, tem o dever de
possa valer como confissão. documentar nesta todos os pagamentos efectuados,
IV- Não tendo a declaração confessória probatória maxime, os de valor avultado, como é o caso dos
plena, e não valendo como confissão o autos.
reconhecimento dos factos favoráveis à respetiva III- A resposta dada pelas instâncias ao único quesito
parte, constitui um elemento probatório sujeito ao da base instrutória – que deviam ter dado como
princípio da livre apreciação do tribunal. provado –, exclusivamente motivada na assentada de
V- As “declarações de parte” sobre factos favoráveis depoimento de parte do representante legal da ré,
ao depoente, fora do esquema típico do depoimento quando existe discrepância essencial entre este e o
de parte dirigido à obtenção de uma confissão, seu real depoimento pessoal, produzido em
podiam, no âmbito do CPC de 1961, ser apreciadas, julgamento e não reduzido a escrito, possibilita a
pelo tribunal, ao abrigo do princípio da livre valoração intervenção do STJ na fixação da matéria de facto,
da prova, em conjugação com os demais elementos nos termos do art. 722.º, n.º 3, do CPC.
probatórios, maxime, as presunções judiciais e as
regras de experiência, prudentemente, aplicáveis. 14-01-2014
Revista n.º 355/11.1TBSTS.P1.S1 - 6.ª Secção
20-05-2014 Salreta Pereira (Relator)
Revista n.º 900/12.5TVPRT.P1.S1 - 1.ª Secção João Camilo
Helder Roque (Relator) * Fonseca Ramos

450
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça

pedir, em sede de alegações do recurso de apelação –


Confissão
invocando a figura do enriquecimento sem causa –,
não tinha a Relação que indagar da verificação dos
Caso julgado pressupostos dessa fonte de obrigações, sob pena de
Caso julgado formal incorrer em nulidade por excesso de pronúncia.
Inventário III- A falta de prova da existência de um acordo
Confissão judicial quanto à form