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ano 6 - nº 11, dezembro/2019

Ministério Público do Estado do Paraná.


Associação Paranaense do Ministério Público.
Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná.

Revista Jurídica do
Ministério Público
do Estado do Paraná
ano 6 - nº 11, dez/2019
Conselho Editorial:

Ana Teresa Silva de Freitas Mateus Eduardo Siqueira Nunes Bertoncini


Claudio Franco Felix Mauro Sérgio Rocha
Cláudio Smirne Diniz Nicolau Eládio Bassalo Crispino
Eduardo Augusto Salomão Cambi Paulo Cesar Busato
Eduardo Diniz Neto Petronio Calmon Filho
Eliezer Gomes da Silva Renato de Lima Castro
Emerson Garcia Rodrigo Leite Ferreira Cabral
Fábio André Guaragni Rodrigo Régnier Chemim Guimarães
Fernando da Silva Mattos Ronaldo Porto Macedo Júnior
Flavio Cardoso Pereira Samia Saad Gallotti Bonavides
Hermes Zaneti Júnior Sergio Luiz Kukina
Isaac Newton Blota Sabbá Guimarães Vitor Hugo Nicastro Honesko
Marcelo Pedroso Goulart Walter Claudius Rothenburg
Marcos Bittencourt Fowler

Equipe Editorial:

Editor-Chefe: Editoras-Executivas:
Eduardo Augusto Salomão Cambi Andrea Camargo Dias
Paola Carolina Polo

Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Paraná,


ano 6 - nº 11, dezembro / 2019. Curitiba, Paraná.

ISSN 2595-6515 (Eletrônico)

1. Direito - periódicos. 2. Ministério Público do Estado do Paraná.

A responsabilidade dos trabalhos publicados é exclusivamente de seus autores.

Ministério Público do Estado do Paraná.


Associação Paranaense do Ministério Público.
Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná.

Projeto Gráfico e Diagramação: Sintática Editorial Comunicação Ltda.


Sumário
1. Apresentação
DE OLHO NO FUTURO ................................................................................................... 08
Eduardo Cambi

2. Entrevista
ENTREVISTA COM CORREGEDOR-GERAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DO PARANÁ MOACIR GONÇALVES NOGUEIRA NETO .............................................. 11
Por Mauricio Cirino dos Santos e Heloise Bettega Kuniyoshi Casagrande

3. Artigos
A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO NO DESASTRE DE
BRUMADINHO/MG E A OMISSÃO FISCALIZATÓRIA NAS ATIVIDADES DE
MINERAÇÃO NO BRASIL ............................................................................................... 17
Giovani Ferri
Patrícia Rangel Balensiefer

PROVA DO DOLO: EM BUSCA DE UM SIGNIFICADO.................................................. 56


Heric Stilben
Huber Pereira Cavalheiro
Julio Gonçalves Mello

AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS COMO UMA ALTERNATIVA À PERSECUÇÃO


PENAL: DA RESSIGNIFICAÇÃO DO CASO PENAL A UMA NECESSÁRIA
CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ULTIMA RATIO ................................................ 74
Mário Edson Passerino Fischer da Silva
Samia Saad Gallotti Bonavides

ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ NA EXIGIBILIDADE DO


DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA: UMA CONTRIBUIÇÃO DO
SERVIÇO SOCIAL ............................................................................................................ 102
Roselene Sonda
Jucimeri Isolda Silveira

IMPOSIÇÃO DAS MEDIDAS CAUTELARES ATÍPICAS PARA ASSEGURAR O


CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES DE EFEITOS PATRIMONIAIS DETERMINADAS
POR FORÇA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA DEFINITIVA PROFERIDA EM AÇÕES
DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA .......................................................................... 130
Simone Berci Françolin

A APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO CRIME DE LAVAGEM


DE DINHEIRO E SUA INCORPORAÇÃO PELA LEI BRASILEIRA .................................... 154
Tâmera Padoin Marques Marin
Larissa Salla Freitas
PROPOSTAS CONTEMPORÂNEAS PARA UM COMBATE EFETIVO E INTEGRAL À
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER ....................................... 185
Thimotie Aragon Heemann

4. Seção Estudante
A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA
PENHA: TRANSEXUAIS, DANOS MORAIS E A CRIMINALIZAÇÃO DO
DESCUMPRIMENTO DAS MEDIDAS DE PROTEÇÃO .................................................. 214
Cristina Tonet Colodel

PERSPECTIVAS DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE SOB A ÓTICA DA


ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO .......................................................................... 244
Lucas Carli Cavassin

5. Resenha
O DIREITO A FAVOR DA ESPERANÇA: O USO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS
PARA A EFETIVAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ................................... 272
Eduardo Cambi
Lucas Paulo Orlando de Oliveira

6. Jurisprudência Comentada
ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO DECORRENTE DE OCUPAÇÃO IRREGULAR
DE IMÓVEL PÚBLICO ..................................................................................................... 279
Hugo Evo Magro Corrêa Urbano
Leonardo Dumke Busatto

MULTIPARENTALIDADE: CONSIDERAÇÕES À LUZ DA REPERCUSSÃO GERAL


Nº622 DO STF E DOS PROVIMENTOS Nº63/17 E Nº83/19 DO CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA ................................................................................................. 292
André Vieira Saraiva de Medeiros
Amanda Caroline Andriguetto Santos

7. Espaço Institucional
A CONFIGURAÇÃO DA OMISSÃO MUNICIPAL EM FACE À POLÍTICA
HABITACIONAL .............................................................................................................. 317
Alberto Vellozo Machado
Laura Esmanhoto Bertol
Matheus Mafra
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino

CONTROLE DO TABACO: PUBLICIDADE E COMERCIALIZAÇÃO DE CIGARROS


ELETRÔNICOS ................................................................................................................. 337
Ciro Expedito Scheraiber
8. Espaço Memorial do Ministério Público
BREVE HISTÓRIA DO CEAF E DA ESMP ....................................................................... 360
Vitor Lemes de Resende
Cristiano de Oliveira Viana Correia
Rodrigo Bonatto Dall’Asta
1. Apresentação
DE OLHO NO FUTURO
“Quem sabe onde quer chegar escolhe
o caminho certo e o jeito de caminhar”.
Thiago de Mello

O Ministério Público do Paraná realizou, pela primeira vez, o seu planejamento


estratégico para os anos 2010-2018. Finalizado esse ciclo, muitos resultados positivos
foram obtidos. O elevado investimento no capital humano, na atuação regionalizada e
na infraestrutura física também foram sentidos na qualificação funcional.

Nesse período, foram realizados 525 eventos e cursos, com a participação de


45.634 pessoas. O ensino a distância se tornou realidade na instituição, tendo sido
oferecidos 32 cursos, desde a sua implantação em 2015. Foram instituídos grupos de
Pesquisa. A biblioteca teve um incremento de mais de 9 mil exemplares e passou a contar
com novas ferramentas de pesquisa (como a RT online, Fórum Digital, Biblioteca Digital
e Pro View). Trezentos membros e servidores foram beneficiados com auxílio financeiro
a cursos. O número de estagiários saltou de 794 para 1965. A Revista Jurídica do MPPR
se consolidou como um periódico semestral, com fluxo editorial (recebimento –
avaliação – publicação) dentro dos ditames do double blind review e passou a integrar,
nos moldes das mais avançadas instituições de ensino do mundo, a plataforma Open
Journal Systems (OJS). Em 2018, o Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF)
obteve o credenciamento como instituição de Ensino Superior, podendo ser
denominada de Escola Superior do MPPR.

A inovação deve ser perseguida pelo Ministério Público do Paraná para


acompanhar as rápidas e constantes transformações tecnológicas, culturais e sociais. A
excelência dos serviços prestados pela instituição depende de novos conhecimentos e
ações resolutivas.

Nesse sentido, a Escola Superior do MPPR vem buscando aperfeiçoar seus


produtos, testando novas mídias (como o PodCast Julgados e Comentados e programas
como o MP Debate), ampliando a discussão de teses institucionais (nos Seminários
Virtuais, realizados a cada dois anos), tornando mais rápido o trâmite eletrônico de
processos no estágio, no serviço voluntariado e para a concessão de auxílio financeiro
(com a utilização do Sistema Eletrônico de Informações – SEI), economizando dinheiro
público (com a realização de cursos EAD e testes seletivos online), aprimorando as ações

8
educacionais (com o oferecimento de eventos mais focados ao público interno, com a
transformação do Curso de ingresso em pós-graduação e fazendo novas parcerias com
outras instituições de ensino).

Os desafios para o próximo ciclo do planejamento estratégico são enormes. A


falta de tempo e excesso de trabalho foram indicados, como resposta dos 609
questionários online para a Oficina de Planejamento realizada em 8 de dezembro de
2019, como a causa principal para a não participação das ações ofertadas pela Escola
Superior. Novas estratégias precisam ser pensadas para aprimorar a qualificação dos
integrantes do MPPR e, dentre os desafios, estão temas como a gestão do conhecimento
e dos talentos, a implementação de Núcleo de Audiovisual, o aporte de inovações na
educação a distância, a análise preditiva de perfil e demandas dos membros, servidores
e estagiários do MPPR para o oferecimento de produtos diferenciados, bem como a
discussão da possibilidade de assegurar carga horária mínima anual como um dever
institucional e fator de progressão na carreira.

O futuro deve ser assumido como uma grande oportunidade que construímos a
partir do planejamento, da organização e das ações que fazemos no presente. É a soma
de pequenos esforços repetidos, dentro de uma diretriz determinada, que pode
assegurar melhores resultados.

A Revista Jurídica do MPPR é um espaço de comunicação privilegiado para que


teoria e prática se revelem em textos que permitam o diálogo contínuo entre os
integrantes da instituição e com a comunidade. A doutrina do Ministério Público deve
buscar explorar todas as potencialidades possíveis de transformação social e realização
da justiça, dentro dos limites da ordem jurídica.

Por isso, é importante agradecer a edição de mais uma Revista, cuja


periodicidade vem sendo, rigorosamente, mantida, com a integração e a cooperação dos
integrantes do MPPR, a colaboração de juristas e estudantes, e a organização conjunta
da Escola Superior, da Associação Paranaense do Ministério Público (APMP) e da
Fundação Escola do Ministério Público do Paraná (FEMPAR).

Boa leitura!

Eduardo Cambi
Promotor de Justiça
Coordenador da ESMPPR

9
2. Entrevista
ENTREVISTA COM CORREGEDOR-GERAL
DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DO PARANÁ MOACIR GONÇALVES
NOGUEIRA NETO
Por Mauricio Cirino dos Santos e Heloise Bettega Kuniyoshi Casagrande

1. Qual o papel da Corregedoria-Geral do


Ministério Público do Estado do Paraná para
o avanço da instituição?

Conforme o estabelecido no artigo 34 da Lei


Orgânica do Ministério Público paranaense
(Lei Complementar Estadual n. 85, de 27 de
dezembro de 1999), existem duas funções
primordiais da Corregedoria-Geral, que são
orientar e fiscalizar as atividades funcionais e
a conduta dos membros do Ministério Público
do Paraná. No entanto, entendo que existe e
merece destaque uma terceira atribuição, que
não está na lei e que, no meu modo de ver, é igualmente importante, qual seja, o papel
da Corregedoria-Geral como órgão motivador da atuação de membros e servidores para
que o trabalho por eles realizado contribua para a garantia dos interesses sociais da
população paranaense.

A partir dessa ideia, a Corregedoria-Geral contribui não apenas para fiscalizar e orientar
os membros e servidores do Ministério Público, mas também tem a perspectiva de
fomentar o incremento na qualidade dos serviços prestados à população, sem descurar
da celeridade e transparência que devem sempre nortear nosso mister. O enfoque na
orientação e motivação também permite que a faceta fiscalizatória e de
responsabilização por prática de falta funcional, permaneça vigorosa e firme, com sua

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óbvia relevância, porém seja naturalmente aplacada por ações de viés preventivo. Trata-
se de enxergar a Corregedoria-Geral como órgão que zela pela conduta responsável dos
membros, para que, quando forem detectados indícios de problemas, atue-se de forma
preventiva, se for possível. É preciso que exista um pensamento, ou melhor, um
sentimento unívoco de que fazemos parte de uma instituição forte, independente,
desatrelada dos poderes constituídos da nação, e que defende, sobretudo, o regime
democrático, reguardando os direitos sociais, ouvindo e fazendo ouvir a voz do povo e
seus anseios em cada Comarca do Estado, e foi com base em tal horizonte que conduzi
a terceira gestão como Corregedor-Geral do Ministério Público do Estado do Paraná, com
lastro no apoio do E. Colégio de Procuradores e em conjunto com o amigo e colega
Procurador de Justiça Antonio Staut Nunes - que ao meu lado atua como Subcorregedor-
Geral.

2. Ao final de 2019 completa-se sua terceira gestão como Corregedor-Geral do


Ministério Público do Estado do Paraná, quais foram os desafios deste mais recente
biênio?

Desde a solenidade de posse da atual gestão, em dezembro de 2017, até o presente


momento, surgiram inúmeros desafios, que foram enfrentados, um a um, com muito
comprometimento, dedicação e constante apoio da equipe de Promotores-
Corregedores e servidores, essenciais para o bom desenvolvimento dos trabalhos na
Corregedoria-Geral. No entanto, tais desafios não se mostram superados ou finitos, pelo
contrário, eles são diários. O cenário de trabalho mostrou-se muito diferente na atual
gestão (se comparada aos biênios de 2010/2011 e 2012/2013, quando anteriormente
atuei no comando da Corregedoria-Geral), fruto, por certo, dos avanços tecnológicos,
normativas e sistemas do Conselho Nacional do Ministério Público, acesso facilitado a
dados e informações, investimento da E. Procuradoria-Geral e Subprocuradorias-Gerais
no planejamento institucional e incremento em equipamentos, bem como a propagação
das redes sociais. Os avanços apontam para uma necessidade de rapidez, seja na
atividade-fim de cada membro, seja nos trabalhos de fiscalização e orientação da
Corregedoria-Geral. No entanto, mostra-se de suma importância um equilíbrio entre o
trabalho realizado com primor e o necessário dinamismo. A busca de tal equilíbrio vem

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pontuando o cotidiano dos trabalhos na Corregedoria-Geral, seja na condução dos
trabalhos administrativos internos, na realização de correições e inspeções por todo o
Estado do Paraná e confecção dos respectivos relatórios, no acompanhamento dos
estágios probatórios, participação ativa no curso de formação dos Promotores
Substitutos organizado pela Escola Superior do Ministério Público, análise das questões
disciplinares, regularização e validação de relatórios de inspeção (área criminal e infância
e juventude) nos sistemas do CNMP e acompanhamento da integração de sistemas que
possibilitaram a implementação do Inquérito Eletrônico. Por certo que a vontade de
realizar é sempre maior do que se mostra possível diante das circunstâncias, mas tal
condição, se não for considerada como um problema, transforma-se em mais um
motivador da constante necessidade de dedicação, trabalho árduo e comprometimento
com a instituição. No biênio 2018/2019, além de todas as mencionadas atividades de
fiscalização e orientação, buscou-se enfoque no controle e medidas para
aceleração/otimização dos trabalhos dos membros do Ministério Público nos
procedimentos extrajudiciais, com a expedição de recomendações específicas e a
participação direta e ativa na elaboração do Ato Conjunto n. 001/2019-PGJ/CGMP, que
consolida e sistematiza, no âmbito da atuação extrajudicial cível do Ministério Público
do Estado do Paraná, o rito da Notícia de Fato, do Inquérito Civil, do Procedimento
Preparatório, do Procedimento Administrativo, da Recomendação e do Compromisso de
Ajustamento de Conduta, com vistas a aprimorar, cada vez mais, a importante atuação
extrajudicial dos Promotores e Promotoras de Justiça paranaenses nas mais variadas
áreas.

3. Durante sua atual gestão como Corregedor-Geral do Ministério Público do Estado do


Paraná, o senhor também assumiu a presidência do Conselho Nacional de
Corregedores-Gerais. De que forma é composto o Conselho Nacional de Corregedores-
Gerais, assim como a sua diretoria diretiva, qual período de mandato respectivo e a
frequência das reuniões colegiadas?

O CNCG tem como membros conselheiros integrantes os Corregedores-Gerais em


exercício nos Ministérios Públicos de todos os Estados da Federação e do Distrito Federal,
além dos Ministérios Públicos Federal, do Trabalho e Militar. A diretoria diretiva é eleita

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pelos próprios membros conselheiros, na última reunião de cada ano, para o mandato
de um ano, com gestão ao início do exercício do ano seguinte, e as reuniões colegiadas
ocorrem ao longo do ano, com periodicidade entre 2 (dois) a 3 (três) meses,
aproximadamente. Exemplificando, a atual diretoria é composta pelos seguintes
Corregedores-Gerais: Presidente: Moacir Gonçalves Nogueira Neto – MPPR; 1º Vice-
Presidente: Marcos Antonio Martins Sottoriva – MPMS; 2º Vice-Presidente: Eduardo
Jorge Hiluy Nicolau – MPMA; 1ª Secretária: Estela Maria Pinheiro do Nascimento Sá –
MPAP; 2ª Secretária: Luciana Sapha Silveira – MPRJ; Diretor Financeiro: Paulo Roberto
Moreira Cançado – MPMG; Diretor de Comunicação Social: Ivan Saraiva Melgaré – MPRS.
O mandato, inciado em 1º.01.2019, encerra-se em 31.12.2019, com previsão de eleição
da nova diretoria na próxima reunião do órgão colegiado, agendada para 05.12.2019,
em Florianópolis/SC.

4. Quais os principais objetivos do CNCG?

Dentre os principais objetivos e finalidades do CNCG, destaca-se: contribuir para a


defesa dos princípios, prerrogativas e funções institucionais do Ministério Público;
incentivar a integração das Corregedorias-Gerais do Ministérios Público dos Estados e
da União; promover o intercâmbio de experiências funcionais e administrativas;
respeitadas as peculiaridades locais, traçar políticas e planos de atuação uniforme ou
integrada, mediante a análise de dados estatísticos e sociais levantados nos diversos
pontos do país; promover o intercâmbio entre os métodos de correições, inspeções e
levantamentos estatísticos das atividades das Promotorias e Procuradorias de Justiça;
eleger metas e estabelecer diretrizes relacionadas ao aperfeiçoamento funcional dos
integrantes da instituição; editar súmulas acerca de questões relevantes à atuação
ministerial, contribuindo para a expedição de sugestões e recomendações, sem caráter
vinculativo, aos órgãos do Ministério Público; promover estudos relacionados à natureza
e conteúdo das infrações de caráter disciplinar, observadas as legislações estaduais e
federal.

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5. Quais foram os principais temas de debate e enfrentamento durante sua gestão
como Presidente do CNCG?

Diversos foram os temas de discussão e reflexão por parte do CNCG ao longo das
reuniões periódicas realizadas neste ano de 2019, podendo-se indicar as de maior
relevo/repercussão: (1) discussão a respeito da possível regulamentação do
denominado “teletrabalho”, e de seus reflexos negativos no âmbito do Ministério
Público brasileiro, o que culminou com a edição de nota técnica a respeito do tema,
encaminhada a Ministros do STJ e do STF, assim como a conselhos e lideranças do
Ministério Público brasileiro, dentre as quais a Procuradora-Geral da República, com
produção de reflexos, inclusive, na vedação à sua admissão regulamentada no âmbito
do Ministério Público Federal; (2) discussões em torno da importância de reafirmação
do dever constitucional de residência na Comarca e de regular comparecimento ao local
de trabalho, por parte de membros do Ministério Público, o que redundou na edição de
nota técnica a respeito, encaminhada a Ministros do STJ e do STF, assim como a
conselhos e lideranças do Ministério Público brasileiro; (3) discussões sobre a
importância da defesa intransigente das disposições da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica
Nacional do Ministério Público), com especial enfoque na legitimação e preservação do
processo de escolha dos integrantes dos órgãos da administração superior do Ministério
Público, objetivando a manutenção dos princípios da unidade, indivisibilidade e
independência funcional de seus membros, o que culminou, inclusive, com provocação
e respectiva intervenção da Procuradoria-Geral da República, na propositura de ação
direta de inconstitucionalidade com tais propósitos, perante o STF.

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3. Artigos
Giovani Ferri1
Patrícia Rangel Balensiefer2

A VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA
PREVENÇÃO NO DESASTRE DE
BRUMADINHO/MG E A OMISSÃO
FISCALIZATÓRIA NAS ATIVIDADES DE
MINERAÇÃO NO BRASIL

THE VIOLATION OF THE PREVENTION PRINCIPLE IN THE


DISASTER OF BRUMADINHO, MG, AND THE ABSENCE OF
INSPECTION OF MINING ACTIVITIES IN BRAZIL

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Os interesses metaindividuais na tutela ambiental; 3. Os


conflitos urbanísticos, sociais, econômicos e ambientais oriundos das atividades
industriais potencialmente perigosas; 4. A responsabilidade objetiva empresarial pelo
dano ambiental e a violação ao princípio da prevenção no desastre de Brumadinho; 5. A
responsabilidade estatal pelo evento danoso. Omissão na fiscalização dos
empreendimentos minerários. Os riscos das barragens pelo método de alteamento a
montante; 6. A necessidade de modernização e efetividade do sistema fiscalizatório para
as atividades de mineração no Brasil; 7. Conclusão; 8. Referências.

1
Promotor de Justiça no Estado do Paraná, Coordenador Regional do Gaema - Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente,
Habitação e Urbanismo do MPPR, Professor de Direito Ambiental da Escola da Magistratura do Paraná (2010/2015), Especialista em
Direito Ambiental pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: gferri@mppr.mp.br.
2 Assessora do Ministério Público do Estado do Paraná, bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná –

Unioeste, Especialista em Direito Processual Civil pelo Centro Universitário de Cascavel - Univel. E-mail: prbalensiefer@mppr.mp.br.

* A data de submissão do presente artigo foi no dia 03/04/2019 e a aprovação ocorreu no dia 24/10/2019.

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RESUMO: Em 25 de janeiro de 2019, o Brasil assistiu, pela segunda vez consecutiva, a um
grave desastre ambiental que ceifou a vida de centenas de pessoas e provocou uma das
maiores catástrofes já ocorridas no território brasileiro. Apenas três anos depois da
tragédia de Mariana, o Estado de Minas Gerais novamente foi assolado pelo desastroso
rompimento de uma das barragens do Complexo da Mina Córrego Feijão, no Município de
Brumadinho, provocando o vazamento de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos de
mineração e a morte de centenas de pessoas. O presente estudo pretende abordar os
imensuráveis impactos socioambientais oriundos do desastre de Brumadinho, a violação
ao Princípio da Prevenção, a omissão dos órgãos estatais na fiscalização dos
empreendimentos mineradores, além da necessidade de efetiva fiscalização do setor.

ABSTRACT: On January 25th, 2019, the country of Brazil watched, for the second
consecutive time, a grave environmental disaster that claimed the lives of hundreds, and
caused one of the greatest catastrophes in Brazilian territory. Only three years after the
tragedy of Mariana, the state of Minas Gerais was once again struck by a disastrous
rupture of one of its dams, which was part of the Mina Corrego Feijão Complex in the
municipality of Brumadinho, MG, causing the discharge of 12 million cubic meters of
wastewater from nearby mining operations and the subsequent deaths of hundreds of
people. The present study aims to approach the immeasurable socio-environmental
impacts caused by the disaster of Brumadinho, MG; the violation of the prevention
principle; the absence of the state’s regulatory agencies in the inspection of mining
operations; and the need for effective inspection in the mining sector.

PALAVRAS-CHAVE: Meio Ambiente; Setor de Mineração; Atividades Potencialmente


Perigosas; Princípio da Prevenção; Fiscalização.

KEYWORDS: Environment; Mining Sector; Potentially Hazardous Activities; Prevention


Principle; Inspection.

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1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas a degradação ambiental avançou vertiginosamente,


afetando o ecossistema e a qualidade de vida dos seres humanos, demandando
urgente implementação, a nível global, de uma ação instrumentalista para a
concretização de políticas públicas de proteção ambiental e adoção de um
planejamento estratégico que concilie preservação ambiental, sustentabilidade e
desenvolvimento socioeconômico.

Essa visão instrumentalista defendida desde 1973 por Naess (1984, p.


265/270) enfatiza que os movimentos superficiais (shallow) limitam-se a tentar
resolver os problemas ambientais de forma isolada, ao passo que a chamada ‘Ecologia
Profunda’ (deep) requer uma compreensão da raiz dos problemas, num amplo
processo de inserção do homem como ser integrante da natureza (Deep Ecology).

Nessa vertente, a tragédia de Brumadinho/MG demanda análise sob um


enfoque mais amplo, de caráter sistêmico, pois os dados técnicos envolvendo o
desastre ambiental evidenciam uma problemática previsível e evitável, que ocasionou
uma gama de consequências danosas não apenas à natureza, mas também à
comunidade regional, exigindo uma análise mais aprofundada da temática ante a
dimensão do evento danoso.

Nessa ótica, insta ressaltar que o direito constitucional ao meio ambiente


ecologicamente equilibrado demanda intervenção estatal não apenas nos bens
naturais diretamente atingidos, devendo ser também contextualizada nos campos
ambiental, político, social, econômico e cultural, conforme acentua Canotilho (1998, p.
23), ao destacar que o Estado de Direito contemporâneo deve apresentar as dimensões
fundamentais da juridicidade, democracia, sociabilidade e sustentabilidade ambiental.

Portanto, a análise do tema afeto à mineração no Brasil exige um confronto


entre o direito constitucional do exercício de atividade econômica, estampado no art.
170, parágrafo único, da Constituição da República (BRASIL, 1988), com os impactos
que envolvem empreendimentos de elevado risco ambiental, como no caso em exame,
objetivando harmonizar os interesses ambientais e econômicos.

19
Dando ênfase ao meio ambiente como bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, a Carta Magna (BRASIL, 1988) impôs ao Poder
Público e à sociedade o dever de preservá-lo e defendê-lo para as presentes e futuras
gerações (art. 225 ‘caput’), princípio basilar que José Afonso da Silva (2010, p. 112)
denomina norma-matriz do direito ambiental.

Seguindo essa tônica, a Constituição Federal estabeleceu o direito


fundamental ao meio ambiente equilibrado como princípio norteador, diretamente
relacionado ao próprio direito a vida (art. 5º, caput), que segundo o Ministro Celso de
Mello, do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2016), consiste em:

(…) um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão),


que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo o gênero
humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação que
incumbe ao Estado e à própria coletividade (PAULO AFFONSO LEME
MACHADO, “Direito Ambiental Brasileiro”, p. 121-123, item n. 3.1,
13ª ed., 2005, Malheiros) – de defendê-lo e de preservá-lo em
benefício das presentes e futuras gerações, evitando-se, desse modo,
que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos
intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de
solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso
comum de todos quantos compõem o grupo social (STF, Recurso
Extraordinário 627.189/SP, voto do Ministro Celso de Mello, DJ
08.06.2016).

Essa previsão constitucional coloca o ser humano no epicentro da proteção


ambiental, delimitando a exata compreensão deste direito fundamental, pois conforme
acentua Rammê, “pode-se afirmar com segurança, que há uma nítida relação entre
equilíbrio ecológico, direitos humanos e justiça ambiental. Afinal, muitas das injustiças
ambientais contemporâneas decorrem de grave violação a direitos humanos” (2004,
p.64).

Tanto é verdade que a Resolução nº 1990/41 da Organização das Nações


Unidas, denominada Human Rights and the environment, destaca que a degradação
ambiental pode provocar alterações irreversíveis ao meio ambiente, ameaçando os
ecossistemas que sustentam a vida, a saúde e o bem-estar humanos, estando
diretamente relacionada a um direito existencial da humanidade.

20
Seguindo essa vertente mundial, a Constituição de 1988 estratificou princípios
consagrados na Declaração de Estocolmo e na Declaração do Rio/92, evidenciando-se
que o direito ao meio ambiente equilibrado constitui não apenas uma diretriz
principiológica, mas também condição essencial à preservação da vida humana,
conforme reconhecido durante a emissão do relatório final da Conferência das Nações
Unidas sobre Meio Ambiente, de 1972.3

Destarte, a preocupação com o desequilíbrio ecológico deve ser tratada como


condição essencial à própria existência humana, sendo certo que um dos grandes
desafios do século XXI é compatibilizar as atividades econômicas com a preservação
ambiental, pois a proteção ao meio ambiente deve integrar o rol de valores
indisponíveis da sociedade, sendo pertinente a adoção de um novo modelo de
desenvolvimento econômico que consagre o meio ambiente equilibrado como um
direito fundamental, conforme destacado no voto do Ministro Celso de Mello, no voto
acima referido (BRASIL, 2016):

A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por


interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de
índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a
atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a
rege, está subordinada, entre outros princípios gerais, àquele que
privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, art. 170, VI), que traduz
conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural,
de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço
urbano) e de meio ambiente laboral (STF, Recurso Extraordinário
627.189/SP, voto do Ministro Celso de Mello, 08.06.2016).

2. OS INTERESSES METAINDIVIDUAIS NA TUTELA AMBIENTAL

A tutela ambiental difere dos demais campos de interesses transindividuais,


por envolver os chamados direitos indivisíveis, os quais apresentam características
peculiares em decorrência da transcendência do tema, tal como ocorrido no desastre
de Brumadinho.

3Na longa e tortuosa evolução da raça humana nesse planeta chegou-se a uma etapa na qual, em virtude de uma rápida aceleração
da ciência e da tecnologia, o homem adquiriu o poder de transformar, por inúmeras maneiras e numa escala sem precedentes, tudo
quando o rodeia. Os dois aspectos do meio humano, o natural e o artificial são essenciais para o bem-estar do homem e para que
ele goze de todos os direitos humanos fundamentais, inclusive o direito à vida’ (Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio
Ambiente, Estocolmo, 1972).

21
Destaca Mazzilli (2015, p.7) que a partir dos estudos de Mauro Cappelletti, a
tradicional dicotomia entre o interesse público (o indivíduo em relação ao Estado) e o
interesse privado (os indivíduos em interrelação) sofreu profundas alterações, criando-
se uma categoria intermediária de interesses denominados metaindividuais.

A peculiaridade do tema, erigido a direito transindividual, foi reforçada pela


Lei nº 7.347/85, que regulou a ação civil pública, recebendo nova roupagem através da
Lei nº 8.078/90, que definiu a categoria de interesses difusos e coletivos, verdadeira
matriz do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, cuja proteção envolve
interesses variados.

Nesse mesmo prisma, justamente por envolver interesses difusos, a proteção


ao meio ambiente sofreu mutação no tempo e espaço, cujos titulares não são
identificados, conforme pontua Moreira, cuja máxima pode ser aplicada ao desastre de
Brumadinho, em que uma gama indeterminada de pessoas foi atingida pelo evento
danoso, intensificando os conflitos socioambientais:

os interesses difusos, por sua vez, apresentam um conteúdo diluído


no campo do embate político da sociedade civil, com uma grande
tendência à transição e mutação no tempo e no espaço, pois
representam interesses de fruição comum, o que leva à existência de
um alto índice de conflituosidade, à medida que implica definições
acerca de aspectos estruturais de organização social, fato do qual
decorre uma politização profunda de seus conhecimentos. (2004,
p.32).

A mesma concepção é sustentada por Figueiredo (2011, p. 34) pelo fato de


que a tutela ambiental também envolve a defesa de interesses que transcendem a
própria existência humana, circunstância que revela sua transindividualidade, tese ora
demonstrada pela extensão do desastre de Brumadinho, que ceifou a vida de centenas
de pessoas, alterou o ecossistema regional, afetando a fauna, a flora, as nascentes, os
rios, as belezas naturais, o patrimônio turístico e paisagístico da região, além de
provocar graves danos urbanísticos e à economia regional.

Nessa perspectiva, o direito a um meio ambiente sadio e equilibrado


configura-se extensão ou corolário lógico do direito à vida, sem o qual nenhum ser

22
humano pode vindicar a proteção de seus direitos fundamentais violados, conforme
assinala Mazzuoli (2010, p. 131).

Portanto, tais interesses ultrapassam a esfera de atuação dos indivíduos


isoladamente considerados, alcançando dimensão coletiva, tal como ocorrido no
desastre em análise, que ocasionou danos coletivos imensuráveis, com número de
mortos estimado em 243 pessoas, entre funcionários do empreendimento e
moradores locais, conforme dados oficiais da Defesa Civil do Estado de Minas Gerais,
divulgados em 27 de maio de 2019.4

Acerca dessa dimensão coletiva de direitos, Vitorelli (2018, p. 333-369),


citando o similar desastre de Mariana/MG, enfatiza o fenômeno do ‘litígio coletivo
irradiado’, tendo em vista a extensão desse tipo de evento danoso:

Essa categoria representa a situação em que as lesões são relevantes


para a sociedade envolvida, mas ela atinge, de modo diverso e
variado, diferentes subgrupos que estão envolvidos no litígio, sendo
que entre eles não há uma perspectiva social comum, qualquer
vínculo de solidariedade. A sociedade que titulariza esses direitos é
fluída, mutável e de difícil delimitação, motivo pela qual se identifica
com a sociedade como criação. O litígio decorrente do desastre
ambiental de Mariana, ocorrido em 5 de novembro de 2015, é o
exemplo prototí pico de um litígio coletivo irradiado. Nesses casos, a
conflituosidade é elevada, uma vez que as pessoas sofrem lesões
significativas o bastante para querer terem suas vozes ouvidas, mas
essas lesões são distintas em modo e intensidade, o que potencializa
as diferenças em suas pretensões. A sociedade está em conflito não
apenas com o causador do dano, mas também consigo mesma.

Destarte, pode-se afirmar que esse direito coletivo inalienável foi colocado em
segundo plano no desastre de Brumadinho, pois o presente estudo pretende
demonstrar, através de dados técnicos, que houve uma dissociação entre proteção
humana, meio ambiente equilibrado e desenvolvimento econômico na atividade
minerária.

Nesse contexto, o direito ao meio ambiente equilibrado deve ser inserido no


conceito de bem-estar da pessoa humana como imperativo de justiça social, conforme

4 http://www.defesacivil.mg.gov.br/index.php/component/gmg/page/669-Brumad_27_05_19. Acesso em 08.08.2019.

23
acentua Piovesan (2011, pg. 65), alertando que a compreensão do art. 225 da Carta
Magna deve ser teleológica, pois a análise fragmentada dessa garantia pode gerar sério
desequilíbrio, evidenciando-se que este conceito também deve ser aplicado ao
desenvolvimento de atividades de risco ambiental, como no caso das atividades de
mineração.

Portanto, sob essa nova vertente doutrinária e jurisprudencial elevando a


proteção ambiental a um direito de terceira geração, surgem enormes desafios para a
consolidação desse ‘novo modelo’ de Estado de Direito, já que a proteção ao meio
ambiente apresenta um novo horizonte jurídico-constitucional, sendo erigido a
condição de macrobem, consolidando o chamado ‘Estado Socioambiental de Direito’
para fins de convergência de agendas política, social, jurídica e ambiental num mesmo
projeto de desenvolvimento, conforme assinalam Fensterseifer e Sarlet (2011,
p. 42-43).

3. OS CONFLITOS URBANÍSTICOS, SOCIAIS, ECONÔMICOS E AMBIENTAIS ORIUNDOS


DAS ATIVIDADES INDUSTRIAIS POTENCIALMENTE PERIGOSAS

Os episódios de Mariana e Brumadinho traduzem um verdadeiro conflito


econômico, social, urbanístico e ambiental provocado pelas atividades potencialmente
perigosas desenvolvidas pelo homem, fragmentando direitos fundamentais,
ocasionando um desequilíbrio ambiental nas zonas urbanas e rurais habitáveis em
decorrência de atividades industriais de potencial risco.

Esse conflito restou amplamente caracterizado no desastre de Mariana e mais


recentemente no episódio de Brumadinho, realçando a inobservância do Princípio da
Prevenção ao se permitir o desenvolvimento de atividades de risco em áreas povoadas,
em cabal descumprimento às licenças de operação e sem efetiva fiscalização
ambiental, acentuando a responsabilidade pelo evento danoso.

O tema em debate demanda um retorno à década de 1990, quando o


sociólogo Beck (2008, p. 108-129) apresentou a Teoria da Sociedade de Risco,
formulando uma tese sobre a mutação da antiga sociedade de classes sociais para uma
nova concepção de divisão social, caracterizada pela Sociedade de Risco.

24
Sob a ótica de Beck, esta nova sociedade, caracterizada pelo fenômeno da
modernização, tende a criar perigos ambientais, sendo apontada como uma sociedade
preocupada com o desempenho econômico, tecnológico e científico, colocando em
segundo plano a proteção ambiental e o próprio ser humano, gerando um efeito
reverso, conforme destaca Oliveira (2019, p. 36):

É o que Ulrich Beck chamou de efeito bumerangue, ou seja, o efeito


indesejado que muitas das soluções econômicas e tecnológicas que
adotamos na contemporaneidade provocam na vida social e no
planeta que, se por um lado, trazem respostas positivas a muitos de
nossos problemas, por outro lado se voltam contra nós trazendo
incalculáveis riscos tanto para a nossa segurança social, ambiental
quanto ontológica.

Nessa mesma linha de pensamento, Ayala e Leite (2010, pg.113) destacam


que a sociedade de risco pode ser caracterizada pelo contínuo crescimento econômico
sem uma necessária política de gestão, ensejando a chamada irresponsabilidade
organizada.

Por essa diretriz teórica, Beck (2008, p.115) ressalta que a sociedade de risco
designa um estágio da modernidade na qual começam a tomar corpo as incertezas e
ameaças produzidas até então pelo modelo econômico da sociedade industrial,
propiciando o aumento dos riscos.

Nessa mesma vertente, Sparemberger e Copetti (2010) afirmam que a


incerteza dos fenômenos socioambientais fazem da coletividade pós moderna uma
sociedade mergulhada nos riscos que ela mesma construiu por meio de uma formação
complexa do Estado de Direito, cujo progresso caminha para uma incerteza:

A sociedade de risco representa uma depauperação civilizatória, uma


vez que as bases da vida se encontram sob ameaça e também como
meios para tal ameaça. Além da disparidade entre as percepções
científica e social dos riscos - níveis de tolerância de substâncias
tóxicas são estabelecidos de acordo com as necessidades produtivas,
não de acordo com a salubridade real. Além disso, a ciência é
contraproducente no tocante ao reconhecimento dos riscos, tendo-se
em vista que a sua imprecisão, a dificuldade em compreender sua

25
linguagem é sistemática ou até mesmo a manipulação de dados a
favor do progresso e da produção favorecem a incerteza quanto a
eles, tornando a realidade especulativa, criando-se a incerteza.

Essa complexa difusão de novas atividades de risco reacende a necessidade de


estabelecer novos dogmas entre as relações socioambientais que envolvem a
preservação da natureza, a qualidade de vida humana e as atividades econômicas,
tendo em vista que a tutela do meio ambiente, em sua forma mais ampla, deve mitigar
os riscos criados pela sociedade contemporânea, dentre elas as atividades industriais
de grande porte, tais como a mineração.

Essa nova visão pragmática da proteção ambiental também deu ensejo ao


surgimento da chamada ‘criminologia verde’, proposta por Lynch e Stretesky (2003),
objetivando ampla punição criminal para condutas danosas insolúveis ao meio
ambiente e à sociedade.

Na mesma vertente, como consectário da criminologia verde, tomou corpo


nas últimas décadas o movimento da ‘vitimologia ambiental’, objetivando punir de
forma mais ampla possível os danos ambientais de grande e prolongado impacto,
denominados “desastres rastejantes”, conforme destacam Colognese e Reginato (2016,
p. 128/129):

Esse panorama é o que justifica o desenvolvimento da vitimologia


ambiental. O termo foi cunhado por Christopher Williams em 1998.
Refere-se Williams (2013) a formas específicas de danos provocados
por atos ou omissões que causam a presença ou ausência de agentes
ambientais associados com prejuízo humano. Para o autor, há
necessidade urgente de tratar a vitimização ambiental não só nas
formas óbvias como elas se apresentam, mas também o que ele
convencionou chamar de “desastres rastejantes”, que se perpetuam
no tempo, insolúveis.

Nessa vertente, a precaução de desastres ambientais previsíveis traz a lume o


forte movimento ambientalista destinado à implementação das “Cidades Sustentáveis”,
alavancado pelo Programa da Organização das Nações Unidas (ONU) através dos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS, 2015), cujas diretrizes devem ser

26
aquelas voltadas à prevenção e segurança contra riscos ambientais que possam
ameaçar ou prejudicar o desenvolvimento das comunidades urbanas e rurais, como
ocorrido no desastre em análise.

Nesse sentido, as expressões “cidades sustentáveis” e “assentamentos


humanos sustentáveis” passaram a ser utilizadas com maior ênfase a partir do 2ª
Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, realizada em Istambul
em junho de 2006.

Tais diretrizes foram previstas expressamente no Estatuto da Cidade (Lei nº


10.257/2001), cujo artigo 2º, inciso VI, alíneas ‘b’, ‘g’ e ‘h’ reafirmam a necessidade de
planejamento de atividades econômicas para evitar danos ambientais, cujos conceitos
se aplicam ao evento de Brumadinho, com especial destaque a alínea ‘h’, inserida pela
Lei nº 12.608/2012, que criou o Sistema de Informações e Monitoramento de
Desastres, cuja alteração legal teve o condão de evitar a exposição da população a
riscos de desastres:

Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno


desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

(...)

VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

(...)

b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;

(...)

g) a poluição e a degradação ambiental;

h) a exposição da população a riscos de desastres; (Incluído pela Lei


nº 12.608, de 2012)

Referida tendência de planejamento territorial também foi amplamente


discutida durante a conferência Rio+20, onde se alertou que os projetos urbanos ainda
são baseados num modelo ultrapassado do século XX e resultam em vários problemas

27
de ordem urbanística, os quais precisam adotar novas estratégias de crescimento e
desenvolvimento, integrando conceitos modernos de infraestrutura urbanística, social
e ambiental.

Essa interrelação entre o direito urbanístico e o direito ambiental revela a


conexão entre planejamento urbano, meio ambiente e desenvolvimento
socioeconômico, sendo que a instalação e operacionalização de barragens de rejeitos
próximas de núcleos populacionais, tal como em Brumadinho, constitui fator de
elevado risco, devendo ser repensadas quando da concessão de licenças ambientais,
inclusive com prévio e aprofundado Estudo de Impacto Ambiental para antever riscos
de desastres e apontar soluções pragmáticas para a proteção da população residente
nas áreas do entorno.

4. A RESPONSABILIDADE OBJETIVA EMPRESARIAL PELO DANO AMBIENTAL E A


VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO NO DESASTRE DE BRUMADINHO

Pela dicção literal do artigo 14, §1º, da Lei nº 6.938/81 e do artigo 225, §§ 2º e
3º, da Constituição Federal, infere-se que o Brasil adotou a Teoria do Risco Atividade,
estabelecendo a reparação integral do dano ambiental, bem como a responsabilidade
objetiva do degradador.

Essa conjugação de princípios que envolvem a responsabilidade objetiva e a


reparação integral do dano ambiental tende à reafirmação da ideia do risco-atividade,
conforme salienta Gonçalves (2016, p. 143): “quem aufere os cômodos (lucros) deve
suportar os incômodos (riscos)”.

Não difere deste entendimento Figueiredo, ao destacar que o Brasil acolheu a


Teoria do Risco para impedir que atividades de elevado potencial danoso pudessem
invocar causas excludentes de caso fortuito e força maior na hipótese de incidentes:

Nosso País adotou a teoria do risco integral: o exercício de uma


atividade potencialmente lesiva ao meio ambiente torna o
empreendedor responsável civilmente por quaisquer prejuízos que
tal atividade venha a causar, não se admitindo a alegação de qualquer
causa excludente de sua responsabilidade, como por exemplo o caso
fortuito e a força maior. (2011, p.147)

28
A seu turno, necessário compreender tecnicamente o conceito de risco, que
segundo Cavalieri (2010, p. 142), representa perigo, probabilidade de dano,
importando dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve assumir os riscos
e reparar o dano dela recorrente, bastando a relação de causalidade entre a atividade
desenvolvida e o resultado danoso.

Resumidamente, a responsabilidade civil ambiental se resolve na relação de


causalidade, não se questionando se o causador do dano agiu ou não com culpa,
conforme entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça:

A responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela


teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator
aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato,
sendo descabida a invocação, pela empresa responsável pelo dano
ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar sua
obrigação de indenizar." (REsp 1.374.284/MG, Rel. Ministro Luis
Felipe Salomão, 3a Seção, julgado em 27/08/2014, DJe 05/09/2014).

Sobre o tema, importante destacar a lição de Costa Neto (2003, p.72) ao frisar
que, “à luz do princípio da prevenção, verifica-se o dever de impedir a cristalização de
danos ao meio ambiente, conferindo-se contornos jurídicos ao popular aforismo ‘mais
vale prevenir que remediar”.

Referida conclusão pode ser extraída de uma verdadeira previsão da


catástrofe pelos Lacaz, Porto e Pinheiro, que logo após o evento de Mariana alertaram
para o risco de um novo desastre ambiental no setor de mineração no Brasil, em artigo
publicado na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional em 2017 (p.5-6):

A megamineração não traz somente bilhões de dólares de lucro, mas


está eivada de perigos, mortes e destruição ambiental. O sistema de
lavra a céu aberto, típico na extração de ferro que predomina no
Brasil, não provoca “acidentes” como os que ocorrem em minas
subterrâneas, que já mataram inúmeros trabalhadores de uma única
vez. Esse processo de trabalho continua acarretando mortes em
mineiros, sendo frequentemente acompanhado de grandes áreas
desmatadas, construção de usinas de beneficiamento de aço que
geram poluição atmosférica, destruição de aquíferos formados em
regiões ferríferas e produção de quantidades gigantescas de rejeitos

29
acumulados nos grandes lagos das barragens, cujo rompimento pode
produzir tragédias como a de Mariana” (...) Com tantos riscos
conhecidos relacionados à megamineração, o que explica a
ocorrência da tragédia da Samarco? E o papel do Estado e empresas
reguladoras que devem licenciar, fiscalizar e realizar a gestão
ambiental dos processos de trabalho com tantos riscos como o da
megamineração? (...) A licença ambiental acaba por ser concedida
com inúmeros condicionantes, uma espécie de “confiança” dos
órgãos de controle ambiental oficiais nos “empreendedores” de que
medidas não apresentadas nos estudos de impacto ambiental serão
futuramente observadas. A isso soma-se o fato de que empresas de
mineração “investem” no financiamento de campanhas eleitorais,
formando bancadas que atuam no Executivo, Congresso Nacional,
Assembleias e Câmaras Municipais. Ademais, vencido o ritual do
licenciamento, as empresas autorizadas maximizam lucros operando
“dentro da lei” (...) Exigências de segurança são supostamente
cumpridas, em boa medida autorreguladas, sem fiscalização
adequada das instituições públicas responsáveis, sejam do setor
ambiental, trabalhista, mineral e da saúde, cuja carência de recursos
humanos, técnicos, financeiros é notória. Planos de emergência para
eventuais desastres inexistem, ou, mesmo quando previstos, não são
cobrados, como no caso da Samarco1. A tragédia dos territórios e
populações atingidas começa com as concepções dos projetos das
obras e continua com a operação da mina, aspectos que a mídia dá
pouca ênfase até que tragédias ocorram. Com o advento das
tragédias, mortes e destruição ambiental são difundidas no jogo de
cena midiático, surgindo versões que minimizam impactos: diz-se que
a “lama [é] atóxica”; naturalizam-se as causas do “acidente” explicado
por “abalo sísmico”, com esclarecimentos referendados por políticos
e instituições que apoiaram o empreendimento e o licenciaram.
Quando mortes, destruição ambiental, contrainformações, incertezas
e avaliações de cenários de sombrios futuros tornam-se mais e mais
escancaradas, surgem multas aparentemente elevadas e declarações
públicas de que é preciso “rever procedimentos e tecnologias. (...)
Promessas de mudanças no marco legal e de maiores investimentos
nas instituições reguladoras e fiscalizadoras acabam não se
cumprindo ou são esquecidas. Esses são aspectos fundantes do
chamado Estado Patrimonialista, característico da realidade
brasileira. O desafio da sociedade brasileira diante do desastre da
barragem de Fundão é reverter a trágica sina do esquecimento e da
naturalização.

O alerta dos referidos especialistas evidencia uma tragédia previsível diante da


omissão empresarial e estatal que resultaram no grave desastre ambiental, realçando o
descaso na fiscalização deste tipo de empreendimento no Brasil, pois as lições de
Mariana não foram capazes de mover os responsáveis a adotarem medidas
preventivas, dando causa a um segundo evento mais dramático em Brumadinho.

30
Portanto, o delicado cenário no setor de mineração brasileira demonstra a
responsabilidade direta do empreendimento pelo desastre, mas também a inoperância
estatal ao não fiscalizar adequadamente as atividades do setor minerário, podendo dar
ensejo a novos desastres no Brasil, conforme abordagem no tópico seguinte.

5. A RESPONSABILIDADE ESTATAL PELO EVENTO DANOSO. OMISSÃO NA


FISCALIZAÇÃO DOS EMPREENDIMENTOS MINERÁRIOS. OS RISCOS DAS BARRAGENS
PELO MÉTODO DE ALTEAMENTO A MONTANTE

As informações técnicas reveladas após o grave desastre demonstram sólidos


indicativos de que o episódio de Brumadinho também envolveu uma clara omissão dos
órgãos fiscalizadores, sob a responsabilidade direta do poder público, cuja adoção de
medidas preventivas poderiam ter evitado ou quiçá minimizado o desastre.

A inoperância fiscalizatória sobre a Barragem de Brumadinho traduz a


reiteração de erros passados, tal como ocorrido no evento de Mariana, realçando a
violação ao Princípio da Prevenção, que também se relaciona com o dever de agir do
Estado, cuja inércia pode ensejar sua responsabilização, conforme destaca Freitas
(2009, p. 99/101):

(...) a Administração Pública, ou quem faça as suas vezes, na certeza


de que determinada atividade implicará dano injusto, se encontra na
obrigação de evitá-lo (...) quer dizer, tem o dever incontornável de
agir preventivamente, não podendo invocar juízos de conveniência ou
de oportunidade.

A omissão estatal na fiscalização do empreendimento pode ser aferida por


informações técnicas fornecidas pela própria empresa Vale5, ao indicar que a barragem
havia sido construída há mais de 40 anos, pelo método de alteamento a montante,
pela Ferteco Mineração no ano 1976, sendo adquirida pela Vale em 27 de Abril de
2001.

5https://brumadinho.vale.com/Esclarecimentos-sobre-a-barragem-I-da-Mina-de-Corrego-do-feijao.html. Acesso em 2 de setembro


de 2019.

31
A altura da barragem rompida era de 86 metros e o comprimento da crista de
720 metros. Os rejeitos dispostos ocupavam uma área de 249,5 mil m² e o volume
depositado era de 11,7 milhões de m³, demonstrando o grau de potencialidade da
Barragem de Brumadinho.

Mais grave ainda é a informação técnica de que a barragem estava desativada


desde o ano de 2015, sem efetiva fiscalização para antever seus riscos, evidenciando-se
que seu descomissionamento era necessário para garantir a estabilidade da obra e
evitar ruptura, medidas que não foram adotadas de forma preventiva.

Por conta dos riscos é que países como Chile e Peru proibiram a construção de
barragens pela técnica de alteamento a montante, destacando-se nessa ótica relevante
estudo de Thomé e Passini (2018, p.60-61), os quais advertem para os riscos de tal
método, ainda adotado no Brasil:

O alteamento é utilizado para ampliar a capacidade de barragens de


rejeito. O método para montante, menos oneroso aos
empreendimentos, é apontado como o mais suscetível a rupturas, e
está relacionado a todos os acidentes de grande impacto envolvendo
estruturas de contenção de rejeitos de minério em Minas Gerais,
desde o ano de 2001 (...). Esse método é caracterizado pelo menor
custo de construção, maior velocidade de alteamento e pouca
utilização de equipamentos de terraplanagem. Em contrapartida, as
desvantagens do método para montante se devem à menor
segurança, sobretudo devido à capacidade de liquefação da massa de
rejeitos saturada e em virtude da proximidade da linha freática ao
talude de jusante, o que pode ocasionar o fenômeno de
entubamento, quando a água é capaz de atravessar determinadas
regiões do talude e aparecer a montante da estrutura,
enfraquecendo-a.

Somente após o desastre de Brumadinho é que a Agência Nacional de


Mineração aprovou a Resolução nº 13, de 8 de agosto de 2019, determinando a desativação,
em todo o país, de barragens construídas pelo método de alteamento a montante.

Neste sentido, a própria Agência Nacional de Mineração, em Nota Explicativa


publicada em 15 de fevereiro de 2019, reconheceu o risco potencial de tais barragens
ao fundamentar a decisão:

32
O modelo construtivo a montante proporcionava a edificação de
barragens com menor custo ao empreendedor. Contudo, os acidentes
colocam em xeque a eficiência desse método construtivo e
estabilidade real das barragens construídas ou alteadas a montante.

Endossando tal decisão técnica, Peixoto (2012, p.7) alerta para os riscos das
barragens que utilizam o método de alteamento a montante, evidenciando-se que logo
após ter sido desativada, a Barragem de Brumadinho deveria ter sido descomissionada
de forma preventiva:

As barragens de rejeitos baseadas na técnica de aterro têm


proporcionado uma crescente reação dos órgãos ambientais e das
comunidades afetadas, em função dos elevados riscos ambientais
inerentes ao processo e às catastróficas consequências de uma
ruptura. Particularmente as barragens alteadas para montante
tendem a ser potencialmente críticas e a liberação descontrolada das
massas retidas, em eventual ruptura, implica graves consequências
não apenas nas vizinhanças do empreendimento, mas também em
áreas distantes a montante.

A seu turno, deve-se gizar que, somente após os desastres de Mariana e


Brumadinho, o Estado de Minas Gerais decidiu normatizar de forma mais específica as
barragens de rejeitos e resíduos, aprovando a Lei Estadual nº 23.291, de 25 de
fevereiro de 2019, que instituiu a Política Estadual de Segurança de Barragens.

Referida lei tornou mais rígido o sistema de fiscalização e o processo de


licenciamento ambiental das barragens de resíduos, inclusive vedando a concessão de
licença ambiental para operação ou ampliação de barragens de rejeitos industriais ou
de mineração pelo método de alteamento a montante (artigo 13), além de determinar
que as barragens que utilizam esse método sejam descaracterizadas no prazo de três
anos (artigo 13, § 2o).

Portanto, a omissão normativa e fiscalizatória dos órgãos estatais no setor


minerário é inquestionável, pois tais providências tardias já deveriam ter sido adotadas
há vários anos, fator que poderia ter evitado as tragédias de Mariana e Brumadinho,

33
bem como precaver a população de novos desastres semelhantes, os quais podem
voltar a ocorrer no Brasil.

Diante de todo esse contexto, na esteira da Política Nacional do Meio


Ambiente (Lei Federal nº 6.938/81), a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº
12.305/2010) também estabelece em seu artigo 51 a responsabilidade por ação ou
omissão das pessoas físicas ou jurídicas por eventos danosos:

Sem prejuízo da obrigação de, independentemente da existência de


culpa, reparar os danos causados, a ação ou omissão das pessoas
físicas ou jurídicas que importe inobservância aos preceitos desta Lei
ou de seu regulamento sujeita os infratores às sanções previstas em
lei.

Referida previsão legal enfatiza de forma genérica que a inércia de qualquer


pessoa jurídica também ocasiona sua responsabilidade, tal como no episódio em
exame, em que há evidências sólidas de que o desastre poderia ter sido evitado
mediante efetiva ação fiscalizatória dos órgãos públicos responsáveis, incluindo a
ordem de descomissionamento da barragem desativada e de elevado risco.

Acerca do tema em voga, Milaré destaca que o poder público também assume
responsabilidade pela reparação ambiental caso se omita em seu dever fiscalizatório:

O poder público poderá sempre figurar no polo passivo de qualquer


demanda dirigida à reparação do meio ambiente: se ele não for
responsável por ter ocasionado diretamente o dano, por intermédio
de um de seus agentes, o será ao mesmos solidariamente, por
omissão no dever de fiscalizar e impedir que tais danos aconteçam. A
propósito, vale lembrar que a Constituição Federal impôs ao poder
público o dever de preservar e defender o meio ambiente para as
presentes e futuras gerações. (2011, p. 1262)

Considerando que as atividades de mineração são objeto de outorga e


licenciamento ambiental concedidos pelo Poder Público, sobressai o dever estatal em
fiscalizar tais atividades para evitar desastres, sob pena de responder por culpa in
vigilando, conforme enfatiza Porfírio Júnior :

34
Se o dano ao meio ambiente decorre de ato ou atividade ilícita que
devia ser obrigatoriamente controlada pela Administração e ela não o
fez, ou agiu tardiamente ou ineficazmente, é possível cogitar da sua
responsabilidade solidária, sendo imprescindível, porém, a
demonstração de culpa in vigilando ou in omittendo. (2002. p. 67)

Aliás, conforme determinação expressa contida no artigo 2º, § 2º, da Lei da


Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC (Lei Federal nº 12.608/12),
mesmo que o risco de desastre seja incerto, isto não impede a adoção de medidas
preventivas: “§ 2º. A incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a
adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco.”

Referida lei também prevê que são objetivos da Política Nacional de Proteção
e Defesa Civil, dentre outros: a redução dos riscos de desastres; a identificação e
avaliação das ameaças, suscetibilidades e vulnerabilidades, de modo a evitar ou reduzir
a ocorrência de desastres; o monitoramento de eventos meteorológicos, hidrológicos,
geológicos, biológicos, nucleares, químicos e outros potencialmente causadores de
desastres; a produção de alertas antecipados sobre a possibilidade de ocorrência de
desastres naturais (artigo 5º, incisos I, VII, VIII e IX).

Destarte, verifica-se que medidas preventivas e mitigadores de risco de


desastres já estão previstas desde o ano de 2012 pela Política Nacional de Proteção e
Defesa Civil, mas vêm sendo literalmente ignoradas pelos órgãos fiscalizadores.

Dentro desse contexto pragmático, constitui dever da Administração Pública,


através de seus órgãos reguladores e fiscalizatórios, adotar medidas para corrigir
omissões e prevenir desastres, pois o controle de tais atividades é de responsabilidade
do Poder Público.

Segundo adverte Mirra (1999, p. 61), se por um lado, o Estado é o responsável


por elaborar e executar políticas públicas ambientais e exercer o controle e a
fiscalização das atividades potencialmente degradadoras do meio ambiente, por outro
lado, ele também é o responsável direto ou indireto pela degradação da qualidade
ambiental ao omitir-se no dever de fiscalizar as atividades que causam danos ao

35
ambiente e de adotar as medidas legislativas e administrativas necessárias à
preservação da qualidade ambiental.

Desta forma, por força do Princípio da Intervenção Estatal Obrigatória na


defesa do meio ambiente, é inegável que o Poder Público está atrelado a um
compromisso indeclinável com a eficiência de sua atuação, em consonância com os
objetivos da Carta Magna (BRASIL, 1988), com o escopo de garantir um meio ambiente
ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida.

Nessa tônica, surge o poder-dever da Administração Pública em fiscalizar de


forma efetiva os empreendimentos de mineração no Brasil, notadamente pela
informação da existência de outras barragens em situação de risco espalhadas pelo
País, ensejando normatização tardia de desativação somente após duas tragédias
consecutivas em barragens deste modelo, fortalecendo a responsabilidade do Estado
pela omissão ao não fiscalizar adequadamente o setor minerário no Brasil.

Acerca do tema, registre-se que o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o


Estado é solidariamente responsável pela poluição causada por atividade mineradora
quando restar comprovada sua omissão no dever de fiscalizar o empreendimento:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POLUIÇÃO AMBIENTAL.


EMPRESAS MINERADORAS. CARVÃO MINERAL. ESTADO DE SANTA
CATARINA. REPARAÇÃO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR
OMISSÃO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. RESPONSABILIDADE
SUBSIDIÁRIA. 1. A responsabilidade civil do Estado por omissão é
subjetiva, mesmo em se tratando de responsabilidade por dano ao
meio ambiente, uma vez que a ilicitude no comportamento omissivo
é aferida sob a perspectiva de que deveria o Estado ter agido
conforme estabelece a lei. 2. A União tem o dever de fiscalizar as
atividades concernentes à extração mineral, de forma que elas sejam
equalizadas à conservação ambiental. Esta obrigatoriedade foi alçada
à categoria constitucional, encontrando-se inscrita no artigo 225, §§
1º, 2º e 3º da Carta Magna. 3. Condenada a União a reparação de
danos ambientais, é certo que a sociedade mediatamente estará
arcando com os custos de tal reparação, como se fora auto-
indenização. Esse desiderato apresenta-se consentâneo com o
princípio da eqüidade, uma vez que a atividade industrial responsável
pela degradação ambiental – por gerar divisas para o país e contribuir
com percentual significativo de geração de energia, como ocorre com
a atividade extrativa mineral – a toda a sociedade beneficia. 4.
Havendo mais de um causador de um mesmo dano ambiental, todos
respondem solidariamente pela reparação, na forma do art. 942 do

36
Código Civil. De outro lado, se diversos forem os causadores da
degradação ocorrida em diferentes locais, ainda que contíguos, não
há como atribuir-se a responsabilidade solidária adotando-se apenas
o critério geográfico, por falta de nexo causal entre o dano ocorrido
em um determinado lugar por atividade poluidora realizada em outro
local. (REsp 647.493, 2ª Turma, Relator Ministro João Otávio de
Noronha, Julgamento em 22 de maio de 2007)

Portanto, verifica-se que tanto o desastre de Mariana quanto o de


Brumadinho são clássicos exemplos concretos da ausência de intervenção estatal
obrigatória na defesa do meio ambiente, pois o Poder Público omitiu-se no
cumprimento do seu dever preventivo e fiscalizatório, contribuindo para a consumação
do evento danoso.

6. A NECESSIDADE DE MODERNIZAÇÃO E EFETIVIDADE DO SISTEMA FISCALIZATÓRIO


PARA AS ATIVIDADES DE MINERAÇÃO NO BRASIL

As atividades ligadas à mineração ocupam posição de destaque para a


economia interna, pesando fortemente na balança comercial brasileira, gerando
milhares de empregos, além de contribuir para o desenvolvimento econômico do país.

Por ser um ramo historicamente presente na realidade brasileira, o setor


mereceu destaque em vários dispositivos na Constituição Federal de 1988, dentre eles
o artigo 22, que estabelece a competência da União para legislação sobre “jazidas,
minas, outros recursos minerais e metalurgia” (inciso XII).

Já o artigo 23, em seu inciso XI, impõe competência comum a todos os entes
federativos quanto à necessidade de se proceder ao registro, acompanhamento e
fiscalização das concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e
minerais em seus territórios (BRASIL, 1988).

Mais adiante, especificamente no capítulo destinado à proteção do meio


ambiente, dispõe o artigo 225, §2º, que “Aquele que explorar recursos minerais fica
obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica
exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.” (BRASIL, 1988)

37
No âmbito infraconstitucional, merecem destaque algumas normas que regem
o setor de mineração no Brasil, dentre elas o Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de
1967, também conhecido como Código de Minas ou Código de Mineração, que foi
recepcionado pela nova ordem constitucional com status de lei ordinária, disciplinando
os temas afetos à pesquisa mineral, lavra, servidões, garimpagem, faiscação, cata,
entre outros (BRASIL, 1967).

Ressalte-se que o Código de Minas sofreu substancial alteração pela Lei nº


9.314, de 14 de novembro de 1996, tendo grande parte de seus dispositivos originários
revogados, sem que houvesse uma preocupação com a segurança nas atividades de
mineração no Brasil, pois o foco principal da normatização foi delinear os regimes de
aproveitamento e exploração das substâncias minerais (BRASIL, 1996).

A seu turno, registre-se que a par do Código de Minas, ainda vige no Brasil a
Lei Federal nº 6.567, de 24 de setembro de 1978, que dispõe sobre regime especial
para exploração e o aproveitamento das substâncias minerais (BRASIL, 1978).

Entretanto, verifica-se que durante a edição e alteração de tais leis, não houve
qualquer preocupação do Governo Federal em criar mecanismos rígidos de fiscalização
para o setor minerário no Brasil, sendo a questão colocada em segundo plano,
priorizando-se os regimes de exploração e a regulação das atividades do setor.

Justamente por tal omissão legislativa é que nas últimas décadas referidas leis
foram reguladas através de vários Decretos e Portarias, expedidas em sua grande
maioria pelo Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, que foi extinto
através da Medida Provisória n° 791, de 25 de julho de 2017, posteriormente
convertida na Lei nº 13.575, de 26 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017).

Referida lei criou a Agência Nacional de Mineração (ANM), regulada pelo


Decreto nº 9.587, de 28.11.2018 e extinguiu o Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM), revogando expressamente a Lei Federal nº 8.876/1994.

A criação da ANM gerou novas expectativas na regulação e fiscalização do


setor de mineração no Brasil, notadamente com o objetivo de permitir maior
independência e autonomia do órgão, em face da obrigatoriedade de que seu quadro

38
diretivo fosse formado por membros de notório saber e especialidade, privilegiando o
conhecimento técnico.

Todavia, em virtude dos últimos episódios catastróficos envolvendo o setor de


mineração no Brasil, ainda se debate a necessidade de implementação de um eficiente
sistema fiscalizatório para o setor, inclusive com a modernização e alteração da
legislação pátria, demonstrando-se pelos dados oficiais da própria Agência Nacional de
Mineração que o segmento minerário no Brasil não vem sendo fiscalizado de modo
eficaz.

Há muitos anos o tema vem sendo objeto de discussão entre profissionais de


vários setores, especialmente geólogos, mineradores e juristas, tendo em vista que ao
longo das últimas décadas as reformas foram tímidas, mantendo-se a legislação
praticamente inalterada no que tange aos aspectos preventivos e fiscalizadores, ao
contrário dos estudos e das tecnologias já aplicadas no mercado internacional,
demonstrando-se que o Brasil precisa avançar no tema.

Nesta seara, a fim de ajustar a realidade nacional ao contexto global,


caracterizado pela crescente dependência por insumos minerais, é que se concluiu pela
necessidade de um novo arcabouço que regule de forma mais enfática a fiscalização do
segmento de mineração no Brasil.

Nesse sentido, em meados de 2013, após mais de cinco anos de debates entre
o Ministério de Minas e Energia, as associações empresariais e a sociedade civil, o
governo federal apresentou ao Congresso Nacional projeto de lei que tem por objetivo
estabelecer a nova base jurídica para a mineração no país.

Este projeto de lei recebeu na Câmara de Deputados o número 5.807/2013,


sendo que, nos três primeiros meses após sua apresentação, o projeto tramitou de
forma célere, pois estava submetido ao regime de urgência constitucional. Já em
setembro de 2013, o governo federal apresentou pedido de cancelamento da urgência,
o que foi acolhido pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, causando lentidão na
tramitação do projeto.

O atraso no andamento desta proposta legislativa também ocorreu pelo fato


de que outros projetos de lei foram englobados, tumultuando sua tramitação, com

39
especial destaque aos PL 37/2011, PL 3726/2015, PL 5263/2016, PL 6.195/2016, PL
8800/2017 e PL 10094/2018, passando todos a tramitar em bloco, por envolver a
atividade de mineração.

As ideias centrais dos referidos projetos destacam a modernização das regras


do setor, mas o projeto de lei também foi alvo de críticas, pois estudo publicado pela
Consultoria Legislativa do Senado apontou a ausência de diretrizes básicas para a
formulação de regulamentos ao setor de mineração:

Ao centralizar o controle do setor no Executivo federal, a proposta


pode afastar outros atores e dificultar a atração de investimentos. A
proposta também não estabelece diretrizes básicas para a formulação
dos regulamentos, além de deixar estados e municípios à mercê das
iniciativas do governo federal. E, se mal conduzida, alertam, a
exploração mineral pode gerar impactos significativos no meio
ambiente. (2014)

Avançando no tema após o desastre de Brumadinho, em junho de 2019, o


Plenário da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 2.791/19, atualmente
enviado ao Senado, cujo texto pretende alterar vários dispositivos da Política Nacional
de Barragens (Lei nº 12.334/10) e do Código de Minas (Decreto-Lei nº 227/67),
tornando mais seguros os empreendimentos de mineração, aumentando multas,
especificando obrigações dos empreendedores e proibindo as barragens pelo método
de alteamento a montante, fixando o prazo de três anos para o descomissionamento
das barragens construídas por tal modelo.

O projeto de lei também avança na questão atinente à segurança da população


residente no entorno das barragens, definindo no artigo 2º a chamada ‘zona de
autossalvamento’ (ZAS), caracterizada como aquela situada topograficamente abaixo
da barragem para fins de intervenção das autoridades em situação de emergência.

Na seara urbanística, o projeto também pretende impedir os municípios a


promover o parcelamento, o uso e a ocupação do solo urbano na ZAS, sob pena de
caracterização de improbidade administrativa (artigo 3º).

40
Outra importante alteração envolve a confiabilidade do serviço de auditoria
independente, pois o projeto estabelece que os órgãos fiscalizadores de segurança das
barragens devem criar um sistema de credenciamento de pessoas físicas e jurídicas
habilitadas a atestar a segurança e a certificação das obras (artigo 3º).

Quanto ao tema da segurança, registre-se que a Lei Federal nº 12.334, de 20 de


setembro de 2010, já trouxe grandes avanços para a área, pois estabeleceu a Política
Nacional de Segurança de Barragens, criou o Sistema Nacional de Informações sobre
Segurança de Barragens e definiu o Plano de Segurança de Barragens como um de seus
instrumentos.

Entretanto, mesmo com o advento da referida lei, cujo objetivo primordial é a


segurança preventiva de barragens, os recentes desastres do setor minerário brasileiro
demonstram, quantum satis, que a omissão fiscalizatória no segmento ainda é um
dilema, pois conforme já frisado, as tragédias de Mariana e Brumadinho poderiam ter
sido evitadas caso houvesse eficiente ação fiscalizadora do poder público, conforme
determina a Lei nº 12.334/2010.

Consoante informado pelo Ministério do Meio Ambiente (2015), tal norma


dividiu as obrigações envolvendo segurança de barragens em quatro grupos, conforme
a natureza da barragem: as barragens para geração de energia são fiscalizadas pela
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel); as de contenção de rejeitos minerais
eram acompanhadas pelo DNPM, autarquia extinta e substituída pela Agência Nacional
de Mineração (ANM); as barragens para contenção de rejeitos industriais são de
responsabilidade do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama) e órgãos ambientais estaduais; por fim, as barragens de usos
múltiplos estão sob a tutela da Agência Nacional de Águas (ANA) ou de órgãos gestores
estaduais de recursos hídricos.

Assim, compete ao órgão fiscalizador regulamentar, manter cadastro das


barragens ativas, prestar informações e, obviamente, executar atos regulares de
fiscalização, dentre elas a emissão de licenciamento ambiental para empresas cujas
atividades são potencialmente poluidoras (artigo 16).

41
Por seu turno, compete à Agência Nacional de Águas elaborar relatório anual
de segurança de barragens, a partir das informações prestadas pelo órgão fiscalizador
regulamentar, além de implementar sistema de informações e fiscalizar de forma
suplementar a correta aplicação da lei.

Já o empreendedor fica obrigado a garantir, gerir e prover recursos para a


segurança de barragem, organizando e mantendo em bom estado de conservação as
informações e a documentação referente ao projeto, à construção, à operação, à
manutenção, à segurança e, quando couber, à desativação da barragem (artigo 17).

Frise-se que, dando cumprimento ao artigo 7° da Lei n° 12.334/2010, o


Conselho Nacional de Recursos Hídricos expediu, em 10 de julho de 2012, a Resolução
nº 143, que estabelece critérios gerais de classificação de barragens por categoria de
risco, dano potencial associado e pelo volume.

A título de exemplo, as barragens de Fundão, em Mariana/MG, e a do Córrego


do Feijão, em Brumadinho/MG, foram classificadas como categorias de baixo risco e
alto dano potencial associado, evidenciando-se que tal classificação não corresponde
às consequências geradas pelo rompimento dos diques, realçando as falhas no sistema
de fiscalização do setor.

Tanto é verdade que ambas não foram citadas no Relatório de Segurança de


Barragens, da Agência Nacional de Águas publicado em 2018, relativo aos trabalhos do
ano de 2017, o que leva a concluir que a fiscalização e a comunicação de dados entre
os órgãos públicos estaduais e federal contêm falhas, dando ensejo aos desastres que
ceifaram centenas de vidas.

Conforme artigo 4º da Resolução nº 143/2012, o enquadramento como “baixo


risco” leva em conta os aspectos da própria barragem, associados a outros critérios
técnicos como altura do barramento, comprimento do coroamento, tipo de barragem
quanto ao material de construção, tipo de fundação, idade da barragem, estado de
conservação da barragem e cumprimento dos itens relativos ao Plano de Segurança
das Barragens.

Não obstante essa classificação, ambos os empreendimentos que originaram


os dois maiores desastres no setor de mineração no Brasil foram considerados pelos

42
especialistas como estruturas seguras, cuja possibilidade de acidente era ínfima,
contrariando os desastres ocorridos, cujos fatores demonstram de forma clarividente
que a fiscalização do setor minerário é ineficiente e demanda urgente reformulação.

Além desta classificação, existem outros seis instrumentos da Política Nacional


de Segurança de Barragens (PNSB), descritos no artigo 6º da Lei n° 12.334/2010, quais
sejam, o Plano de Segurança de Barragem, o Sistema Nacional de Informações sobre
Segurança de Barragens (SNISB), o Sistema Nacional de Informações sobre o Meio
Ambiente (Sinima), o Cadastro Técnico Federal de Atividades e Instrumentos de Defesa
Ambiental, o Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras ou
Utilizadoras de Recursos Ambientais e o Relatório de Segurança de Barragens.

Entretanto, malgrado a existência de todo esse plexo normativo, a fiscalização


do setor minerário no Brasil se revela ineficiente, conforme se evidencia pelas graves
informações contidas no Relatório de Segurança de Barragens elaborado em 2018 pela
ANA, relativamente aos trabalhos empreendidos no ano de 2017:

Existem hoje no país 31 órgãos efetivamente fiscalizadores de


segurança de barragens. Em seus cadastros constam 24.092
barragens para os mais diversos usos. (...) A identificação do
empreendedor já foi feita em 97% delas, mas ainda há muito trabalho
a se realizar pelos órgãos fiscalizadores nos processos de regulari-
zação e definição se as barragens se submetem ou não à PNSB. Não
há nenhum ato de autorização, outorga ou licenciamento em 42% das
barragens, e em 76% dos casos não está definido se a barragem é ou
não submetida à PNSB por falta de informação.

O Relatório da ANA – Agência Nacional de Águas também destaca que existem


3.543 barragens classificadas por Categoria de Risco e 5.459 quanto ao Dano Potencial
Associado, sendo 723 classificadas simultaneamente como Categoria de Risco e Dano
Potencial Associado altos.

O próprio órgão estatal revela que apenas 3% do total de barragens


cadastradas foram vistoriadas pelos agentes fiscalizadores. O relatório aponta ainda
que o número de barragens vistoriadas pelas equipes de fiscalização de âmbito

43
estadual foi semelhante ao ano de 2016, enquanto houve diminuição no número de
barragens vistoriadas pelos órgãos federais.

Importante esclarecer que estes números se referem às barragens em geral,


como aquelas destinadas para geração de energia hidrelétrica, contenção de resíduos
industriais, rejeitos de minérios, abastecimento de áreas urbanas, irrigação, entre
outras.

Outro dado também apontado pela Agência Nacional de Águas (ANA) em


2018 envolve o número de barragens sobre as quais não se têm informações
suficientes para saber se estão submetidas ou não à Política Nacional de Segurança de
Barragens - PNSB.

Nesse sentido, destaque-se o teor do Relatório de Segurança de Barragens de


2017, em se indica que mais de 18.000 barragens espalhadas pelo Brasil não possuem
informações suficientes para adequado enquadramento:

Por fim, pelas informações enviadas pelos órgãos fiscalizadores, é


possível dizer que 4.510 barragens (ou 18,7% do total cadastrado)
submetem- -se à PNSB, isto é, apresentam pelo menos uma das
características estabelecidos no art. 1º da Lei nº 12.334/2010. Outras
1.258 (ou 5,2%) não apresentam nenhuma das características,
portanto não são submetidas à PNSB. As demais 18.324 (ou 76% das
barragens cadastradas) não possuem informações suficientes para
dizer se elas se submetem ou não à PNSB. Por exemplo, 18.446
barragens não possuem informação de altura, 9.584 não possuem
informação de capacidade e 18.663 barragens não foram classificadas
quanto ao DPA. Sem esta definição toda a implementação da PNSB é
prejudicada, pois muitos empreendedores não começam a aplicar os
dispositivos da PNSB em suas barragens por não saber se elas se
submetem ou não à PNSB e, consequentemente, aos regulamentos
existentes. Este é um dado preocupante, pois definir se uma
barragem se submete ou não à PNSB é o trabalho básico de todas as
entidades fiscalizadoras, e sete anos após a implementação da Lei nº
12.334/2010 esta tarefa deveria estar praticamente finalizada. É
possível concluir que, infelizmente, ainda não se sabe qual é o
universo de barragens que devem ser fiscalizadas quanto à PNSB
(2018, p.20)

Em resumo, o cenário envolvendo o segmento é preocupante e demanda


urgente remodelação dos métodos de construção de novas barragens, redefinição das

44
áreas de risco, além da intensificação nos sistemas de controle, acompanhamento e
fiscalização dos empreendimentos atualmente espalhados pelo País.

7. CONCLUSÃO

Apesar da existência de vários instrumentos legais envolvendo o setor minerário


brasileiro, nenhum deles foi capaz de evitar os desastres de Mariana e Brumadinho,
acentuando a problemática que envolve o segmento, sendo premente a remodelação
de todo o sistema fiscalizatório do setor, notadamente pelo fato de que a legislação
mineraria no Brasil é ampla, diluída e esparsa, ao passo que a fiscalização do setor é
ineficiente.

O último Relatório Técnico de Segurança de Barragens demonstra a ineficácia


da fiscalização governamental sobre o setor, pois revelou que no Brasil existem 18.446
barragens sem informação de altura, 9.584 sem informação de capacidade e 18.663
barragens sem classificação quanto ao DPA – Dano Potencial Associado, evidenciando-
se que sequer os órgãos fiscalizadores possuem exata dimensão do problema, fator
que pode ensejar novos desastres no Brasil caso não sejam adotadas medidas
fiscalizatórias emergenciais.

Portanto, tais dados demonstram de forma inquestionável que não há


controle eficiente das barragens de rejeitos de mineração e outras espécies de
barragens implantadas no Brasil nas últimas décadas, demonstrando-se que sem os
enquadramentos obrigatórios, toda a implementação da PNSB torna-se ineficaz pelo
descumprimento dos dispositivos da Lei n° 12.334/2010.

Em resumo, o desastre de Brumadinho demonstra que as atividades de


mineração no Brasil demandam atenção máxima, evidenciando-se que o Poder Público,
as autoridades ambientais e toda a sociedade organizada, devem exigir modificações
emergenciais neste preocupante cenário, sendo impositivo que tais atividades sejam
alvo de efetivo controle e fiscalização pelo poder público para que possam operar com
segurança e eficiência, evitando-se novas catástrofes.

Esse panorama negativo pode ser alterado na hipótese de aprovação do Projeto


de Lei nº 2.791/19, que trará substanciais modificações na Política Nacional de

45
Segurança de Barragens (PNSB) e no Código de Minas, propiciando a criação de um
novo modelo de gerenciamento de riscos e a modernização do sistema fiscalizatório
das atividades minerárias no Brasil, tornando mais rígido o licenciamento, a
construção, a operacionalização e a fiscalização das barragens de rejeitos.

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BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Agência Nacional de Mineração. Resolução nº


13, de 8 de agosto de 2019. Estabelece medidas regulatórias objetivando assegurar a
estabilidade de barragens de mineração, notadamente aquelas construídas ou alteadas
pelo método denominado "a montante" ou por método declarado como desconhecido
e dá outras providências. Brasília, DF: Imprensa Nacional, [2019]. Disponível em:
http://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-13-de-8-de-agosto-de-2019-210037027.
Acesso em: 3 set. 2019.

BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Nota explicativa – 15/02/2019: segurança de


barragens focada nas barragens construídas ou alteradas pelo método a montante,
além d eoutras especificidades referentes. Brasília, DF: Agência Nacional de Mineração,
[2019]. Disponível em: http://www.anm.gov.br/noticias/nota-explicativa-sobre-tema-
de-seguranca-de-barragens-focado-nas-barragens-construidas-ou-alteadas-pelo-
metodo-a-montante-alem-de-outras-especificidades-referentes. Acesso em: 3 set.
2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Agravo Regimental em Recurso


Extraordinário com Agravo 808.356-SP. Agravo regimental no recurso extraordinário
com agravo. Direito Ambiental. Vazamento de óleo. Dano ambiental. Dever de
indenizar. Pressupostos. Demonstração. Discussão. Legislação infraconstitucional.
Ofensa reflexa. Fatos e provas. Reexame. Impossibilidade. Precedentes. 1. Inadmissível,
em recurso extraordinário, a análise da legislação infraconstitucional e o reexame dos
fatos e das provas dos autos.
Incidência das Súmulas nºs 636 e 279/STF. 2. Agravo regimental não provido.
Agravante: Petróleo Brasileiro S/A – Petrobras. Agravado: Ministério Público Federal.
Relatório: Min. Dias Toffoli, 30 de junho de 2015. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=9185294. Acesso
em: 01 out. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2. Seção). Recurso Especial 1.354.536/SE.


Responsabilidade civil por dano ambiental. Recurso especial representativo de

48
controvérsia. Art. 543-c do CPC. Danos decorrentes de vazamento de amônia no rio
sergipe. acidente ambiental ocorrido em outubro de 2008. 1. Para fins do art. 543-C do
Código de Processo Civil: a) para demonstração da legitimidade para vindicar
indenização por dano ambiental que resultou na redução da pesca na área atingida, o
registro de pescador profissional e a habilitação ao benefício do seguro-desemprego,
durante o período de defeso, somados a outros elementos de prova que permitam o
convencimento do magistrado acerca do exercício dessa atividade, são idôneos à sua
comprovação; b) a responsabilidade por dano ambiental é objetiva, informada pela
teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator aglutinante que permite
que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a invocação, pela empresa
responsável pelo dano ambiental, de excludentes de responsabilidade civil para afastar
a sua obrigação de indenizar; c) é inadequado pretender conferir à reparação civil dos
danos ambientais caráter punitivo imediato, pois a punição é função que incumbe ao
direito penal e administrativo; d) em vista das circunstâncias específicas e
homogeneidade dos efeitos do dano ambiental verificado no ecossistema do rio
Sergipe - afetando significativamente, por cerca de seis meses, o volume pescado e a
renda dos pescadores na região afetada -, sem que tenha sido dado amparo pela
poluidora para mitigação dos danos morais experimentados e demonstrados por
aqueles que extraem o sustento da pesca profissional, não se justifica, em sede de
recurso especial, a revisão do quantum arbitrado, a título de compensação por danos
morais, em R$ 3.000,00 (três mil reais); e) o dano material somente é indenizável
mediante prova efetiva de sua ocorrência, não havendo falar em
indenização por lucros cessantes dissociada do dano efetivamente demonstrado nos
autos; assim, se durante o interregno em que foram experimentados os efeitos do
dano ambiental houve o período de “defeso” - incidindo a proibição sobre toda
atividade de pesca do lesado -, não há cogitar em indenização por lucros cessantes
durante essa vedação; f) no caso concreto, os honorários advocatícios, fixados em 20%
(vinte por cento) do valor da condenação arbitrada para o acidente - em atenção às
características específicas da demanda e à ampla dilação probatória -, mostram-se
adequados, não se justificando a revisão, em sede de recurso especial. 2. Recursos
especiais não providos. Recorrente: Maria Gomes de Oliveira e Petróleo Brasileiro S/A
Petrobras. Recorrido: Os mesmos. Relator: Min. Luis Felipe Salomão, 26 de março de
2014, DJe 05/05/2014. Disponível em: http://portaljustica.com.br/acordao/86133.
Acesso em: 01 out. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). Recurso Especial 647.493/SC. Recurso
especial. Ação civil pública. Poluição ambiental. Empresas mineradoras. Carvão
Mineral. Estado de Santa Catarina. Reparação. Responsabilidade do estado por
omissão. Responsabilidade solidária. Responsabilidade subsidiária. 1. A
responsabilidade civil do Estado por omissão é subjetiva, mesmo em se tratando de
responsabilidade por dano ao meio ambiente, uma vez que a ilicitude no
comportamento omissivo é aferida sob a perspectiva de que deveria o Estado ter agido
conforme estabelece a lei. 2. A União tem o dever de fiscalizar as atividades
concernentes à extração mineral, de forma que elas sejam equalizadas à conservação
ambiental. Esta obrigatoriedade foi alçada à categoria constituição, encontrando-se
inscrita no artigo 225, §§1º, 2º e 3º da Carta Magna. 3. Condenada a União a reparação
de danos ambientais, é certo que a sociedade mediatamente estará arcando com os

49
custos de tal reparação, como se fora auto indenização. Esse desiderato apresenta-se
consentâneo com o princípio da equidade, uma vez que a atividade industrial
responsável pela degradação ambiental por gerar divisas para o país e contribuir com o
percentual significativo de geração de energia, como ocorre com a atividade extrativa
mineral a toda sociedade beneficia. 4. Havendo mais de um causador de um mesmo
dano ambiental, todos respondem solidariamente pela reparação, na forma do art. 942
do Código Civil. De outro lado, se diversos forem os causadores da degradação ocorrida
em diferentes locais, ainda que contíguos, não há como atribuir-se a responsabilidade
solidária adotando-se a apenas o critério geográfico, por falta de nexo causal entre o
dano ocorrido em um determinado lugar por atividade poluidora realizada em outro
local. 5. A desconsideração da pessoa jurídica consiste na possibilidade de se ignorar a
personalidade jurídica autônoma da entidade moral para chamar à responsabilidade
de seus sócios ou administradores, quando utilizam-na como objetivos fraudulentos ou
diversos daqueles para os quais foi constituída. Portanto, (i) na falta do elemento
“abusivo de direito”; (ii) não se constituindo a personalização social obstáculo ao
cumprimento da obrigação de reparação ambiental; e (iii) nem comprovando-se que os
sócios ou administradores têm maior poder de solvência que as sociedades, a
aplicação da disregard doctrive não tem lugar e pode constituir, na última hipótese,
obstáculo ao cumprimento da obrigação. 6. Segundo o que dispões o art. 3º, IV, c/c o
art. 14, §1º, da Lei n. 6938/81, os sócios/administradores respondem pelo
cumprimento da obrigação de reparação ambiental na qualidade de responsável em
nome próprio. A responsabilidade será solidária com os entes administrados, na
modalidade subsidiária. 7. A ação de reparação/recuperabilidade ambiental é
imprescritível. 8. Recursos de Companhia Siderúrgica Nacional, Carbonífera Criciúma
S/A, Carbonífera Metropolitana S/A, Carbonífera Barro Branco S/A, Carbonífera
Palermo Ltda., Ibramil – Ibracoque Mineração Ltda. Não-conhecidos. Recurso da União
provido em parte. Recurso de Coque Catarinense Ltda., Companhia Brasileira
Carbonífera de Ararangua (massa falida), Companhia Carbonífera Catarinense,
Companhia Carbonífera Urussanga providos em parte. Recursos do Ministério Público
provido em parte. Recorrente: União e outros. Recorrido: Augusto Baptista Pereira
(espólio) e outros. Relator: Min. João Otávio de Noronha, 22 de maio de 2007, DJ
22/10/2007. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19221820/recurso-especial-resp-647493-sc-
2004-0032785-4?ref=juris-tabs. Acesso em: 01 out. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Seção). Recurso Especial 1.374.284/MG.


Responsabilidade civil por dano ambiental. recurso especial representativo de
controvérsia. Art. 543-c do CPC. danos decorrentes do rompimento de barragem.
Acidente ambiental ocorrido, em janeiro de 2007, nos municípios de Miraí e Muriaé,
estado de Minas Gerais. Teoria do risco integral. Nexo de causalidade. 1. Para fins do
art. 543-c do código de processo civil: a) a responsabilidade por dano ambiental é
objetiva, informada pela teoria do risco integral, sendo o nexo de causalidade o fator
aglutinante que permite que o risco se integre na unidade do ato, sendo descabida a
invocação, pela empresa responsável pelo dano ambiental, de excludentes de
responsabilidade civil para afastar sua obrigação de indenizar; b) em decorrência do
acidente, a empresa deve recompor os danos materiais e morais causados e c) na

50
fixação da indenização por danos morais, recomendável que o arbitramento seja feito
caso a caso e com moderação, proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível
socioeconômico do autor, e, ainda, ao porte da empresa, orientando-se o juiz pelos
critérios sugeridos pela doutrina e jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de
sua experiência e bom senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada
caso, de modo que, de um lado, não haja enriquecimento sem causa de quem recebe a
indenização e, de outro, haja efetiva compensação pelos danos morais experimentados
por aquele que fora lesado. 2. No caso concreto, recurso especial a que se nega
provimento. Relator: Min. Luis Felipe Salomão, 27 de agosto de 2014. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/137672283/recurso-especial-n-
1374284-mg-do-stj. Acesso em: 01 out. 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Mandado de Segurança 22.164-SP.


Reforma agraria - imóvel rural situado no pantanal mato-grossense - desapropriação-
sanção (cf, art. 184)- possibilidade - falta de notificação pessoal e previa do proprietário
rural quanto a realização da vistoria (lei n. 8.629/93, art. 2., par.2.)- ofensa ao
postulado do due process of law (cf, art. 5., liv)- nulidade radical da declaração
expropriatória - mandado de segurança deferido. Reforma agraria e devido processo
legal. - o postulado constitucional do due process of law, em sua destinação jurídica,
também esta vocacionado a proteção da propriedade. Ninguém será privado de seus
bens sem o devido processo legal (cf, art. 5., liv). A união federal - mesmo tratando-se
de execução e implementação do programa de reforma agraria - não esta dispensada
da obrigação de respeitar, no desempenho de sua atividade de expropriação, por
interesse social, os princípios constitucionais que, em tema de propriedade, protegem
as pessoas contra a eventual expansao arbitraria do poder estatal. A cláusula de
garantia dominial que emerge do sistema consagrado pela constituição da republica
tem por objetivo impedir o injusto sacrificio do direito de propriedade [...] Relatório:
Min. Celso de Mello, 30 de outubro de 1995, DJ de 17/11/1995. Disponível em:
https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14703003/mandado-de-seguranca-ms-
22164-sp?ref=juris-tabs. Acesso em: 01 out. 2019.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário 627.189/SP.


Recurso extraordinário. Repercussão geral reconhecida. Direito Constitucional e
Ambiental. Acórdão do tribunal de origem que, além de impor normativa alienígena,
desprezou norma técnica mundialmente aceita. Conteúdo jurídico do princípio da
precaução. Ausência, por ora, de fundamentos fáticos ou jurídicos a obrigar as
concessionárias de energia elétrica a reduzir o campo eletromagnético das linhas de
transmissão de energia elétrica abaixo do patamar legal. Presunção de
constitucionalidade não elidida. Recurso provido. Ações civis públicas julgadas
improcedentes. 1. O assunto corresponde ao Tema nº 479 da Gestão por Temas da
Repercussão Geral do portal do STF na internet e trata, à luz dos arts. 5º, caput e inciso
II, e 225, da Constituição Federal, da possibilidade, ou não, de se impor a
concessionária de serviço público de distribuição de energia elétrica, por observância
ao princípio da precaução, a obrigação de reduzir o campo eletromagnético de suas
linhas de transmissão, de acordo com padrões internacionais de segurança, em face de
eventuais efeitos nocivos à saúde da população. 2. O princípio da precaução é um
critério de gestão de risco a ser aplicado sempre que existirem incertezas científicas

51
sobre a possibilidade de um produto, evento ou serviço desequilibrar o meio ambiente
ou atingir a saúde dos cidadãos, o que exige que o estado analise os riscos, avalie os
custos das medidas de prevenção e, ao final, execute as ações necessárias, as quais
serão decorrentes de decisões universais, não discriminatórias, motivadas, coerentes e
proporcionais. 3. Não há vedação para o controle jurisdicional das políticas públicas
sobre a aplicação do princípio da precaução, desde que a decisão judicial não se afaste
da análise formal dos limites desses parâmetros e que privilegie a opção democrática
das escolhas discricionárias feitas pelo legislador e pela Administração Pública. 4. Por
ora, não existem fundamentos fáticos ou jurídicos a obrigar as concessionárias de
energia elétrica a reduzir o campo eletromagnético das linhas de transmissão de
energia elétrica abaixo do patamar legal fixado. 5. Por força da repercussão geral, é
fixada a seguinte tese: no atual estágio do conhecimento científico, que indica ser
incerta a existência de efeitos nocivos da exposição ocupacional e da população em
geral a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de
energia elétrica, não existem impedimentos, por ora, a que sejam adotados os
parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde, conforme estabelece a Lei
nº 11.934/2009. 6. Recurso extraordinário provido para o fim de julgar improcedentes
ambas as ações civis públicas, sem a fixação de verbas de sucumbência. Recorrente:
Eletropaulo Metropolitana – Eletricidade de São Paulo S/A. Recorrido Sociedade
Amigos do Bairro City Boaçava e outros. Relator: Min. Dias Toffoli, 08 de junho de
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55
Heric Stilben1
Huber Pereira Cavalheiro2
Julio Gonçalves Mello3

PROVA DO DOLO:
EM BUSCA DE UM SIGNIFICADO

THE PROOF OF MENS REA: IN SEARCH FOR A MEANING

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Concepções Cognitivas do Dolo; 3. Concepções


Normativas e Prova do Dolo; 3.1 Teoria dos Indicadores Externos do Conceito de
Disposição - Winfried Hassemer; 3.2 Teoria do Dolo Adscritivo – Hans-Joachim
Hruschka; 3.3 Teoria do Sentido Social – Ramón Ragués i Vallés; 3.4 Concepção do Dolo
sob Influência da Filosofia da Linguagem; 4. Considerações finais; 5. Referências.

1
Promotor de Justiça - Ministério Público do Estado do Paraná. Graduação pela Universidade Cândido Mendes - Centro/RJ.
Mestrando em Direito na Universidade Federal do Paraná. Professor de Direito Penal e Processo Penal no Curso Ênfase.
E-mail: hstilben@mppr.mp.br.
2 Juiz de Direito no Estado do Paraná.
3 Promotor de Justiça no Estado de Goiás. Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília – Uniceub.

* A data de submissão do presente artigo foi no dia 26/08/2019 e a aprovação ocorreu no dia 07/10/2019.

56
RESUMO: O presente trabalho tem a pretensão de abordar as principais teorias que de
alguma forma explicam o elemento subjetivo nas condutas humanas tipificadas como
delitos, utilizando-se, em grande medida, referenciais teóricos provenientes da
doutrina penal alemã e espanhola, e seu reflexo no direito brasileiro. Além disso, este
trabalho também aborda aspectos processuais que se relacionam com o elemento
subjetivo do tipo penal, mormente questões relacionadas à sua prova, concluindo por
uma revisão do Código Penal de forma a atender uma concepção de dolo baseado na
Teoria Significativa da Ação.

ABSTRACT: The present paper aims to address the main theories that somehow explain
the subjective element in human conducts typified as crimes, using theoretical
references from the German and Spanish criminal Law, with its reflection in our own
Law. In addition, this paper also discusses, in a second part, procedural aspects related
to the subjective element of the crime itself, especially issues related to proof and
evidence in Court, concluding for a necessary review of the concept of mens rea in the
brazilian criminal law based on a theory of meaningful action.

PALAVRAS-CHAVE: Dolo; teorias; ação significativa.

KEYWORDS: Mens Rea; theories; meaningful action.

57
1. INTRODUÇÃO

Há certos temas da teoria do crime que, apesar de antigos, têm ganhado


bastante destaque da doutrina recentemente, em especial na Alemanha. Por mais que
seja um assunto bastante explorado pelos manuais, percebe-se que, nas últimas
décadas, têm sido repensados e adquirido outros contornos, provocando novas
definições, com consequências práticas significativas.

Um desses temas, sem dúvida, é o dolo. No que tange aos seus elementos,
doutrina tradicional4 o definia partindo puramente de um elemento relativo à
consciência psíquica do sujeito, tratando-o no âmbito da culpabilidade.

Em seguida, em especial ante as contribuições de Hans Welzel5, relacionando


o conceito de ação a um conceito ôntico-ontológico, a teoria finalista da ação defendia
que a “estrutura final da conduta humana deve necessariamente ser levada em conta
pelas normas de direito penal”6, exigindo-se não apenas a produção de um resultado,
mas também que este ocorra direcionado pela vontade do agente7. Desta forma, agiria
com dolo todo aquele que, além de conhecer as circunstâncias do fato, desejasse sua
realização. Era preciso, portanto, que o agente do crime tivesse consciência do que
fazia e quisesse a produção das consequências de seu comportamento.

Essa posição é a que ainda predomina, tanto na doutrina quanto na


jurisprudência, inclusive na Alemanha8.

No entanto, com novos estudos, vem sendo retomada a defesa de teses


relativas ao dolo de valor puramente cognitivo, muitas das vezes, como se verá abaixo,
por conta da impossibilidade de demonstração do elemento vontade.

4
BUSATO, Paulo. Direito Penal. 2018. 4 ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Atlas. 2018. p. 378
5 WELZEL, Hans. Derecho Penal. Parte General. BALESTRA, Carlos Fontán [trad.]. Buenos Aires: Roque Depalma. 1956.
6
GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte geral. 11. ed. Bel Horizonte: D’Plácido. 2019. p. 213.
7 Em Portugal, DIAS, Jorge Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral. Tomo I. 2. ed. Coimbra. 2007. p. 349; no Brasil, BITTENCOURT,

Cézar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo. 2002. p. 55; SANTOS. Juarez Cirino dos. Direito Penal - parte geral. 5. ed.
Florianópolis: Conceito Editorial, 2012; REALE JR., Miguel. Instituições de Direito Penal: Parte Geral. vol. I. Rio de Janeiro. 2002. p.
219-221; na Argentina ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal. Parte General. 2. ed.
Buenos Aires. 2002. p. 519.
8 “En Alemania, la opinión mayoritaria sigue partiendo de la premisa de que el dolo requiere conocer y querer el resultado típico.

Éste es también, fundamentalmente, el punto de partida del Tribunal Supremo alemán. (...). Este elemento volitivo falta, según la
jurisprudencia, cuando el autor ‘a pesar de la reconocida peligrosidad objetiva del hecho, confía seria y no solo vagamente en que
no se produzca el resultado mortal’. Si éste es el caso, se deducirá de una ‘visión global de todas las circunstancias objetivas y
subjetivas del hecho’”. ROXIN, Claus. Sobre la delimitación del dolo y la imprudencia, especialmente en los delitos de homicídio. en
Estudios jurídico penales y criminológicos: En homenaje a Lorenzo Morillas Cueva/LOPEZ, José Maria Suarez et. al. (coord.). vol. 2.
2018. p. 1579-1598.

58
Tal discussão colocou às claras a necessidade de teorizar acerca do dolo sob
uma perspectiva interdisciplinar com o direito processual penal, especificamente em
relação à teoria da prova, conclusão há muito sustentada por Ramón Ragués i Vallés
em sua célebre obra “El dolo y su prueba en el processo penal”9.

Pretende-se, aqui, traçar um panorama destas teorias cognitivas, de


respeitáveis defensores, apontando benefícios e críticas. Após, serão analisadas
determinadas teorias que, na esteira do dito acima, seriam mais adequadas sob uma
perspectiva de uma concepção racionalista da prova.

2. CONCEPÇÕES COGNITIVAS DO DOLO

Em temos recentes10, em especial pelas lições da professora Ingeborg


Puppe11, retomou-se a defesa acerca da desnecessidade do elemento volitivo para fins
de caracterização do dolo, propondo uma concepção de dolo a partir da ideia de
perigo qualificado, qualitativamente diferenciado em relação à imprudência, onde a
relevância jurídica daquele é estabelecida pelo direito.

Acerca deste critério do perigo qualificado, Roxin diz que

depende de la dimensión y evidencia [Anschaulichkeit] del peligro


creado por el autor. Un peligro suficientemente grande existe, según
este planteamiento, ‘cuando una persona sensata, en la situación del
autor, no lo correría si no aceptara la aparición del resultado. La
evidencia del peligro se caracteriza por el hecho de que los factores
de riesgo que el autor coloca deliberadamente... o cree colocar,
representan, según los critérios [Maßstäben] de la actuación práctica,
un método de causar el resultado’.12.

Outro posicionamento de grande influência é a teoria do risco de Wolfgang


Frisch para a qual, segundo Juarez Cirino, dolo seria o conhecimento da conduta típica,

9 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo y su prueba en el processo penal. Barcelona: J. M. Bosch Editor, 1999.
10
Considerando o espaço, não trataremos das diversas concepções cognitivas e volitivas elaboradas ao longo das décadas. Para
aprofundamento, cf. PÉREZ, Gabriel Barberá. El dolo eventual. Buenos Aires: Hammurabi. 2011.
11 PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad: Luis Greco. São Paulo: Manole. 2004.
12 PUPPE, Ingeborg, Strafrecht, Allgemeiner Teil im Spiegel der Rechtsprechung, 3. ed. 2016, §9 nm. 11. p. 122. Apud ROXIN, Claus.

Sobre la delimitación del dolo y la imprudencia, especialmente en los delitos de homicídio. en Estudios jurídico penales y
criminológicos: En homenaje a Lorenzo Morillas Cueva / LOPEZ, José Maria Suarez et. al. (coord.). vol. 2. 2018. p. 1579.

59
“excluindo do objeto do dolo o resultado típico porque a ação de conhecer não pode
ter por objeto realidades ainda inexistentes no momento da ação”13. Em assim sendo,
seria desnecessário aferir a vontade do agente em relação ao resultado, mas tão
somente sua consciência quanto ao risco não permitido advindo de seu
comportamento, o que exigiria a presença de três requisitos, conforme Díaz Pita:

Deve aparecer como um dado que revela a contradição existente


entre o comportamento praticado pelo sujeito e o Direito – Deve
singularizar uma especial periculosidade do sujeito agente frente aos
bens jurídicos; - Deve demonstrar que a ação que o sujeito pratica
constitui uma decisão qualificada da pessoa frente as exigências do
ordenamento jurídico.14

Tem-se ainda, partindo de uma normatização do dolo dada pelas normas


penais, a tese de Feijóo Sanchez, onde “o injusto doloso se caracteriza porque uma
pessoa toma a decisão de realizar um fato apesar de conhecer (abarcar
intelectualmente) todas as circunstâncias fáticas que vão converter este fato em um
fato típico”.15

A diferença para o tipo imprudente, no entanto, não seria a ausência de uma


decisão, visto que esta também se encontra presente naquele, mas sim a tomada
desta decisão “não tendo o autor ao seu alcance todos os dados relevantes para a
norma, mas sendo essa decisão desvalorada por supor uma falta de cuidado”16.

Desta forma, bastaria fosse provado tão somente aspectos relacionados ao


conhecimento do sujeito e que o grau desse conhecimento é que justificaria uma
maior reprovação da conduta dolosa, motivo pelo qual, não estaria correta a conclusão
de que se trata de uma tese volitiva, mas sim cognitiva, já que é este o elemento
identificador do dolo17.

13 SANTOS. Juarez Cirino dos. Direito Penal - Parte Geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. p. 153.
14 DÍAZ PITA, Maria del Mar El dolo eventual. Valencia: Tirant lo blanch. 1994. apud CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira em O elemento
volitivo do dolo in Dolo e Direito Penal: modernas tendências. BUSATO, Paulo César [coord.]. 3. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch.
2019. p. 222.
15 FEIJOÓ SANCHÉZ, Bernardo José. “La distinción entre dolo e imprudencia em los delitos de resultado lesivo. Sobre la

normativización del dolo”, in Cuardernos de Política Criminal, n. 65. Madrid: Edersa. 1998. apud DÍAZ PITA, Maria del Mar. A
presumida inexistência do elemento volitivo no dolo e sua impossibilidade de normativização In Dolo e Direito Penal: modernas
tendências. BUSATO, Paulo César [coord.]. 3. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch. 2019. p. 17
16 DÍAZ PÍTA, Maria del Mar. op. cit. p. 19
17 Id. ibidem. p. 19

60
Na mesma linha cognitiva, utilizando-se de regras sociais para determinação
do conhecimento do agente, encontra-se a teoria de Ramón Ragués i Vallés, que será
mais aprofundada no segundo bloco, onde tais regras se distinguem

entre aquellas formas de comportamiento específicamente


adecuadas para alcanzar determinados resultados, y las que –
aunque objetivamente pueden causar determinadas consecuencias
lesivas – en la valoración social no necesariamente van ligadas a su
aparición.18

Diversas críticas são dirigidas às teorias cognitivas, sendo a principal o fato de


impossibilitar a diferenciação entre condutas culposas e dolosas, repousando, afinal,
na exclusiva apreciação judicial, em um juízo puramente normativo acerca da conduta
praticada19.

E mais, segundo Cabral, parcela das teorias cognitivas partem de critérios de


matiz kantiana, metafísicos, como “perigo desprotegido”, “perigo qualificado”,
“representação do perigo”, “sério risco de resultado”, dentre outros20.

A adoção de tais conceitos, para Vivés Antón, seria originária de uma ilusão
gramatical, possibilitando o tratamento uniforme a situações distintas, já que
decorrentes do caráter unitário dos termos utilizados21.

Desta forma, tratando situações distintas de maneira similar, afastar-se-ia o


Direito Penal de sua expressão democrática, violando o princípio da igualdade, além de
ser “demasiado débil”22.

Ultrapassadas as críticas, a teoria da decisão pela lesão de bens jurídicos –


majoritariamente sustentada pela doutrina na Alemanha23 - de cunho volitivo, entende

18 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. Überlegungen zum Vorsatzbeweis, en: Goltdammer’s Archiv für Strafrecht (= GA), 151. Jahrgang, 2004,
p. 257 y p. 258. apud. ROXIN, Claus. Sobre la delimitación del dolo y la imprudencia, especialmente en los delitos de homicídio. en
Estudios jurídico penales y criminológicos: En homenaje a Lorenzo Morillas Cueva / LOPEZ, José Maria Suarez et. al. (coord.). vol. 2.
2018. p. 1579.
19 Assim, Rodrigo Cabral, afirmando que a presunção de um elemento cognitivo, independentemente do que o agente tenha

conhecido “compromete gravemente o princípio da culpabilidade, pois autoriza a incriminação de um sujeito a título de dolo por
algo que não tenha efetivamente querido, como acontecem com os argumentos de Jakobs, Feijoo, Hezberg e Puppe”. (CABRAL,
Rodrigo Leite Ferreira. op. cit. p. 224.)
20 CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. op. cit. p. 225.
21 VIVÉS ANTÓN, Tomás. S. Fundamentos del Sistema Penal. 2. ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2011. p. 317.
22 DÍAS PITZ, Maria del Mar. A presumida inexistência do elemento volitivo no dolo e sua impossibilidade de normatização In Dolo e

Direito Penal: modernas tendências. BUSATO, Paulo César [coord.]. 3. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch. 2019. p. 35.

61
que o dolo estaria configurado sempre que o autor incluísse em seus cálculos a
realização tida como possível de um tipo penal, sem que a ocorrência dos resultados
ligados ao fato fosse capaz de dissuadi-lo da prática de sua conduta, pois ficaria
comprovado que o autor havia se decidido conscientemente contra o bem jurídico,
cuja proteção era feita pela lei. Em outras palavras, para o reconhecimento do dolo, a
teoria analisa se o autor levou a sério a possibilidade de ocorrência do resultado e se,
mesmo assim, decidiu-se contra o bem jurídico.

Diaz Pita, sobre a decisão contrária ao bem jurídico, esclarece que esta seria a
“seleção entre alternativas de comportamento realizada com algo mais que o mero
conhecimento e que, ademais, justifica a imposição de uma sanção de maior
gravidade”24. Em sentido semelhante, encontra-se a posição de Vivés Antón, que
configura “o conhecimento como domínio de uma técnica e decisão como
compromisso com o resultado lesivo”25.

3. CONCEPÇÕES NORMATIVAS E PROVA DO DOLO

Passado, portanto, o plano da identificação dos elementos relevantes ao dolo,


necessário se faz abordagem quanto a própria prova do elemento subjetivo, afinal,
fundamentar sua a existência pressupõe a necessidade de prová-lo no curso do
processo, sob pena de teorizações inúteis, um problema atual, segundo Ragués i
Vallés:

La dogmática tradicional no ha manifestado un especial interés por


analizar el traslado de los conceptos teóricos a la práctica forense,
argumentando a menudo que ésta es una tarea que compete a la
ciencia procesal. Sin embargo, los procesalistas tampoco se han
mostrado muy dispuestos a desarrollar su teoría general de la prueba
o de los medios probatorios pensando en los concretos elementos de
la infracción punible...26

23
ROXIN, Claus. Strafecht: Allgemeiner Teil. 4. ed. München: C.H. Beck, 2006.
24 DÍAZ PITA, Maria del Mar. op. cit. p. 30.
25 ibidem. p. 30.
26 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. Consideraciones sobre la prueba del dolo. In Revista de Estudios de la Justicia – No 4 – Año 2004.

Disponível em http://web.derecho.uchile.cl/cej/recej/recej4/archivos/PRUEBA%20DEL%20DOLO%20RAGUES%20_8_.pdf. Acesso


em 20 de fevereiro de 2019. p. 17.

62
As correntes ontológicas esbarraram em um muro intransponível do ponto de
vista argumentativo, qual seja, a de que “quando se propõe um dolo como realidade
ontológica, não é possível esquecer que é necessário demonstrar quais os meios que
tornam possível a identificação do dolo como tal realidade”27.

Dessa intransponibilidade28, surgiram correntes de concepção normativa do


dolo, onde este não é algo que exista no mundo real, tratando-se de uma concepção
jurídica acerca de fatos da vida. Valoram-se estes, a fim de se imputar a
responsabilidade penal.

Porém, mesmo dentre essas teorias houve críticas, em especial quanto a uma
suposta “crise de legitimidade”29, caraterizada por uma ausência de coincidência entre
o vínculo psicológico do agente com o fato e a imputação acerca do elemento
subjetivo, fatores que levariam a uma insegurança jurídica e descontrole da decisão,
segundo Roxin30.

No intuito de afastar a crítica, ainda que reste uma insegurança residual31,


José Carlos Porciúncula32 aponta diversas teorias – volitivas e cognitivas – que se
propuseram a estabelecer critérios normativos a fim de legitimar a decisão do
intérprete33.

Ante o espaço limitado, serão abordadas as teorias de Winfried Hassemer,


Ramón Ragués i Vallés e Hans-Joachim Hruschka, considerando as que mais se

27 BUSATO, Paulo César. Dolo e Significado. In BUSATO, Paulo César (coord.). Dolo e direito penal: modernas tendências. BUSATO,
Paulo César [coord.]. 3. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch. 2019. p. 81.
28 DÍAZ PITA, Maria del Mar. op. cit. p. 32.
29
RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo y su prueba en el processo penal. Barcelona: J. M. Bosch Editor, 1999, p. 302; BUSATO. Paulo
César. Direito penal: parte geral 4. ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 383. Assim também, SOUZA SANTOS, Humberto. Problemas
estruturais do conceito volitivo de dolo. In Temas de direito penal – parte geral. GRECO, Luiz; LOBATO, Danilo (coord.). Rio de
Janeiro: Renovar. 2008. p. 287.
30
ROXIN, Claus. Sobre la delimitación del dolo y la imprudencia, especialmente en los delitos de homicídio...op. cit. p. 1579-1598.
31 MARTÍNES-BUJÁN PÉREZ, Carlos. O conceito significativo de dolo: um conceito volitivo normativo In BUSATO, Paulo César

(coord.). Dolo e direito penal: modernas tendências. BUSATO, Paulo César [coord.]. 3. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch. 2019. p.
70.
32 PORCIÚNCULA, José Carlos. Lo objetivo y lo subjetivo en el tipo penal: hacia la exteriorización de lo interno”. Barcelona: Atelier,

2014. p. 301-310. apud LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1. ed.
São Paulo: Marcial Pons. 2018. p. 141.
33 Dentre muitas, PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad: Luis Greco. São Paulo: Manole. 2004. No mesmo sentido,

VIVÉS ANTÓN, Thomás. Fundamentos del Sistema Penal. p. 657; GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte geral. 11. ed. Bel
Horizonte: D’Plácido. 2019. p. 280; ROXIN, Claus Strafecht: Allgemeiner Teil. 4. ed. München: C.H. Beck, 2006, B. 1, p. 445 e ss;
FLETCHER, George. Basics Concepts of Criminal Law. New York/Oxford: Oxford University press, 1998; LAGIER, Daniel González em
Los hechos bajos sospecha: sobre la objetividade de los hechos y el razonamiento judicial. In: Questio Facti (Ensayos sobre prueba,
causalidade y acción: Lumen Juris. 2009. p. 98. apud PRADO, Geraldo. A prova do dolo. In Crise no processo penal contemporâneo:
escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988. SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; MALAN, Diogo Rudge;
MADURO, Flavio Mirza (orgs.) Belo Horizonte: Editora D’Plácido. 2018. p. 192

63
relacionam a um plano processual, sendo as duas últimas consideradas por
Porciúncula como “teorias capazes de apontar a uma completa exteriorização do
dolo”34.

Após, em vias de conclusão, serão analisados argumentos de autores que


adotam uma perspectiva normativa do dolo de concepção significativa, baseados nas
lições de Vivés Antón.

3.1 Teoria dos Indicadores Externos do Conceito de Disposição - Winfried Hassemer

Segundo Roxin, foi Hassemer o primeiro35 a identificar o problema acerca da


falta de legitimação no momento em que o intérprete imputa o dolo, partindo de que

el dolo como hecho interno “se sustrae a la vista del observador” y,


por tanto, solo puede deducirse de circunstancias externas. Como
decisión por la lesión del bien jurídico...el dolo solo se infiere
mediante indicadores.36

Assim, e considerando a relevância do elemento vontade, propõe o autor


alemão que a atribuição deva ser feita através de dados nos quais o juiz possa se
apoiar, denominados de indicadores37, que devem ser observáveis, contornando a
vagueza dos conceitos de disposição38; completos, de maneira que, faltando um
elemento importante dentre os indicadores, a conclusão do intérprete será
equivocada; e relevantes, que, como o próprio termo sugere, devem se referir ao
elemento subjetivo39.

34 LUCCHESI, Guilherme Brenner. op. cit. 143.


35 Motivo pelo qual decidimos por iniciar a exposição pelas lições do professor alemão, mas também considerando “a oportunidade
e a atualidade da proposta de Hassemer, na medida em que cada vez mais se aprimoram os estudos relacionando a aproximação
das disciplinas do Direito penal e do Processo Penal, antes estudadas de modo demasiado compartimentalizado”. (BUSATO, Paulo
César. Dolo e Significado...op. cit. p. 85).
36 ROXIN, Claus. Sobre la delimitación del dolo y la imprudencia, especialmente en los delitos de homicídio...op. cit. p. 1584.
37 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal. Tradução da 2. ed. de: SILVA, P. R. A. Porto Alegre: Sergio

Antonio Fabris, 2005. p. 252.


38 Conceito que inclui “tendências, aspirações humanas, o ‘lado interno do ato’”, não sendo objetos concretos, do mundo.

HASSEMER, Winfried, op. cit. p. 251.


39 HASSEMER, Winfried. op. cit. p. 253.

64
Diferentemente de Kaufmann40, cuja linha claramente seguiu, Hassemer não
resume a atribuição a apenas um elemento, no caso a “ação de evitação”, inclusive por
conta de um viés volitivo, admitindo diversos fatores indicadores não taxativos,
ficando a cargo do processo a finalidade de “descobrir se há indicadores no caso
concreto e quais são eles”41.

Uma das críticas que se faz a Hassemer é sobre a adoção de um conceito


disposicional do dolo, visto que “apenas dados empíricos como conhecimento e
intenções podem ser conceitos disposicionais, a se demonstrar por indicadores
externos. O dolo, ao revés, é conceito jurídico, normativo”42.

Ainda, seria errônea a opção de Hassemer de inserir no conceito de dolo os


indicadores externos, visto que estes são relacionados a fatos que se subsomem ao
conceito, com este não se confundindo.

Por fim, Luis Greco reputa que “de nada adianta propor uma série de indícios,
se a relação entre eles, a importância relativa de cada qual, permanece obscura.
Porque estas zonas de imprecisão significam nada menos que uma carta branca para o
arbítrio judicial”43.

Em que pese as críticas, Hassemer teve o mérito de elaborar sua teoria,


baseado na premissa da inevitabilidade de se vincular o direito material ao direito
processual penal, sendo a separação um “erro fundamental na formação dos
juristas”.44

40KAUFMANN, Armin. Der dolus eventualis im Deliktsaufbau. Die Auswirkungen der Handlungs und der Schuldlehre auf die
Vorsatzgrenze, in: Strafrechtsdogmatik zwischen Sein und Wert

41 COSTA, Pedro Jorge. Dolo penal e sua prova. Coleção Ciência Criminal Contemporânea; v. 3 / BRANDÃO, C. (Coord.). São Paulo:
Atlas, 2015. 144.
42
COSTA, Pedro. op. cit. p. 144
43 GRECO, Luis. Cumplicidade através de ações neutras: a imputação objetiva na participação. Rio de Janeiro: Renovar. 2004. p. 54.

Um contra argumento ao professor da Humboldt-Universität de Berlin seria de que o juiz sempre tem o dever de fundamentar suas
decisões, e isso não seria diferente na que atribui o elemento subjetivo. Os critérios abertos permitiriam a dialética entre acusação
e defesa a respeito da suficiência, ou não, dos indicadores externos. Seria justamente o reducionismo às fórmulas que levaria ao
arbítrio judicial.
44 HASSEMER, Winfried. op. cit. p. 167/168.

65
3.2 Teoria do Dolo Adscritivo – Hans-Joachim Hruschka

Segundo Hruschka, “el dolo no se constata y se prueba, sino que se imputa”45.

Para o autor, não haveria uma desconsideração do elemento volitivo, assim


também como não estaria desconsiderado na teoria de Günther Jakobs, mas sim uma
necessária relação de subordinação com o elemento cognitivo46, de maneira que
“siempre que un autor lleva a cabo una determinada conducta bajo unas determinadas
circunstancias, conociendo el carácter de la acción y las circunstancias, quiere también
realizar tanto la conducta como las circunstancias” 47.

Em termos de prova acerca do elemento intelectual também se vale de


indicadores externos, sustentando que o modo de raciocinar a partir destes
corresponde ao modo de agir das pessoas em relação aos estados mentais e intenções
de terceiros48. No mesmo sentido, são as lições de Anderson, Schum e Twining:

Todos realizan inferencias a partir de pruebas. El perro ladra, usted


infiere que alguien se acerca a la casa; uma bocina suena flerte detrás
de mí, infiero que el conductor está impaciente o enojado; (...) Hay
nubes negras, huellas em la arena, lápis labial em la camisa, huellas
dactilares em el volante de um coche robado. Todos son indicadores.
El razonamiento inferencial es uma habilidad humana básica.49

Se para Hassemer, “o dolo e a culpa não são apenas fenômenos descritivos


(...) são também fenômenos normativos”50, a crítica estaria afastada em Hruschka,
visto que para este, dolo é conceito puramente normativo, segundo as concepções de
Wittgenstein, pois, assim como a liberdade, as ações, responsabilidade e culpabilidade

45HRUSCHKA, Joachim. Imputación y Derecho penal. Estudios sobre la teoría de la imputación. Buenos Aires: B de F Euros. 2009. p.
195.

46 ibidem. p. 185.
47 ibidem. p. 183.
48
ibidem. 196.
49 ANDERSON, Terrence; SCHUM, David; TWINING, William. Análisis de la prueba. Madrid: Marcial Pons; Ediciones Jurídicas y

Sociales. 2016. p. 79. Segundo Taruffo, “mesmo os pós-modernistas, na verdade, interessam-se em estabelecer a verdade sobre o
horário de partida de seu avião, sobre as traições dos respectivos cônjuges, sobre a data do Concílio de Viena, sobre a velocidade da
luz e sobre muitas outras circunstâncias – banais ou não – do contexto real em que vivem”. (TARUFFO, Michele. Uma simples
verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução de: RAMOS, Vitor de Paula. São Paulo: Marcial Pons. 2016. p. 101).
50 HASSEMER, Winfried. op. cit. p. 298.

66
“no aparecen em el juego del lenguaje de los científicos de la natureza. Por lo tanto, no
podemos tratarlos como hechos...”.51

Isto posto, não há que se falar em prova do fato interno, mas apenas
atribuição do dolo, o que já leva a concepção aqui adotada de que o objeto da prova
são enunciados sobre fatos52, não o dolo em si. A prova daqueles, sim, permite a
imputação deste.

De todo modo, não passou despercebida a crítica em considerar o


conhecimento também como conceito normativo, tal qual o dolo, bem como por “não
ser suficientemente claro a respeito do conceito de dolo adotado, limitando-se a
estabelecer o que ele não é”.53

3.3 Teoria do Sentido Social – Ramón Ragués i Vallés

Ainda numa mesma perspectiva processual, Ragués i Vallés desenvolve sua


teoria do sentido social da ação considerando a premissa da impossibilidade de se
provar elementos psíquicos, considerando como uma conduta dolosa aquela que, “de
acuerdo com sus características externas y perceptibles, se valore socialmente como
negación consciente de uma concreta norma penal”.54

Ragués i Vallés diz que a condenação deve fortalecer a norma violada, na qual
se funda a pena como meio para proteção de bens jurídicos. Isto pois, a necessidade
de maior sancionamento do crime doloso relativamente ao culposo se fundamenta na
necessidade de punir mais gravosamente quem, com sua conduta, afeta de maneira
mais gravosa a vigência das normas, e não pelo grau de afetação ao bem jurídico55. Tal
perspectiva se aproxima amplamente da corrente funcionalista de Günther Jakobs56.

51 HRUSCHA, Joaquim. op. cit. p. 195.


52 TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de: COUTO, J. G. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 19. Segundo Jordi Ferrer Beltrán, “Não
se pode provar uma mesa (...) A única coisa que se pode provar é o enunciado que afirma a existência de uma mesa em minha sala”.
(BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prova e verdade no direito...op. cit. p. 74).
53 PÉREZ, Gabriel Barberá. El dolo eventual. Buenos Aires: Hammurabi. 2011. p. 592. Críticas estas que, ao nosso ver, restam

superadas ao serem adotados critérios de racionalidade na justificação da atribuição do dolo pelo intérprete.
54 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. El dolo y su prueba em el processo penal. Barcelona: Librería Bosch. 1999. p. 324.
55 ibidem. p. 323.
56 Fato que não passou despercebido por LUCCHESI, Guilherme Brenner. op. cit. p. 143, bem como por GRECO, Luís. Dolo sem

vontade. In: SILVA DIAS e outros [coords.]. Liber Amicorum de José de Sousa e Brito. Coimbra: Almedina, 2009, p. 890.

67
O professor espanhol não desconhece, e aceita como inevitável, os riscos de
que a decisão do intérprete acerca do elemento subjetivo pode não coincidir com a
realidade. Porém, diz que esse não é um problema que afeta apenas a prova do dolo,
mas de toda a atividade probatória57. Para amenizar este risco inerente, sugere uma
série de critérios racionais e uniformes, conferindo maior grau de racionalidade na
decisão e uniformidade nas soluções58.

Em que pese a adoção de uma corrente cognitiva, com as críticas feitas acima,
Ragués i Vallés tem o grande destaque em afirmar a necessidade de se construir “una
nueva teoría de la prueba pensada para la aplicación procesal de los diversos
elementos conceptuales que conforman la infracción penal”59, visto que “la pretensión
de que lo igual se trate de igual manera no puede limitarse a la aplicación del Derecho
penal sustantivo, sino que debe extenderse también a la valoración de la prueba.”60

Carlos Martínez-Buján Pérez, porém, vai além e expõe o diferencial em


relação a uma concepção do dolo calcada na filosofia da linguagem, adotada por Vivés
Antón, conforme se verá abaixo.

3.4 Concepção do Dolo sob Influência da Filosofia da Linguagem

Segundo Carlos Martínez-Bujá Pérez, nas teorias de Puppe e Ragués i Vallés


haveria uma “mera atribuição generalizadora” em relação ao dolo, pois, para que fosse
configurado o juízo de atribuição do conhecimento (lembrando tratarem-se de teorias
cognitivas), que decorre de “uma compreensão intersubjetiva da realidade por quem
faz parte da sociedade, baseado em regras sociais de imputação ou atribuição de
conhecimentos das quais se extrai o sentido social da conduta”61.

Além, porém, da exigência do conhecimento acerca das regras sociais


relevantes para o Direito Penal, ou seja, as técnicas dominadas pelo autor, seria

57 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. Consideraciones sobre la prueba del dolo. In Revista de Estudios de la Justicia – No 4 – Año 2004. p. 22.
Disponível em http://web.derecho.uchile.cl/cej/recej/recej4/archivos/PRUEBA%20DEL%20DOLO%20RAGUES%20_8_.pdf. Acesso
em 20 de fevereiro de 2019.
58 Critérios que permitiram “alcanzar los dos objetivos trazados: máxima reducción, en la medida de lo posible, del riesgo de error y

uniformidad en el tratamiento de los casos.” (RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. op. cit. p. 23).
59 RAGUÉS I VALLÉS, Ramón. op. cit. p. 23.
60 ibidem. p. 26.
61 MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. O conceito significativo de dolo: um conceito volitivo normativo In Dolo e Direito Penal...op. cit.

p. 67.

68
necessário atribuir a concreta competência do agente, com base nessas técnicas, para
atuar comprometidamente contra o bem jurídico protegido, possibilitando uma
valoração da conduta externada.

Segundo tal concepção, o elemento vontade estaria representado por um


“compromisso com a lesão – ou perigo – de tal bem (jurídico)”62, atribuído
normativamente, compromisso este que exigiria o conhecimento do sujeito acerca das
regras sociais e jurídicas fixadas.

E ao se trabalhar com um processo comunicacional, que depende de regras


socialmente compartilhadas e aceitas, trata-se de opção que leva a uma maior
legitimidade na decisão de atribuição do dolo, nota caraterística da proposta de Vivés
Antón em relação às demais teorias normativas do dolo.

Em solo pátrio, no entanto, o conceito adotado pelo Código Penal no artigo


18, inciso I, obsta o próprio desenvolvimento doutrinário do tema, na medida em que
“nem o dolo direto corresponde unicamente à ideia de querer, nem o dolo eventual
pode ser representado simplesmente pela ideia de assunção do risco.”63

Considerando-se o dolo, portanto, como um compromisso para a produção do


resultado, a concepção tripartida (dolo direto, eventual e de primeiro grau) apenas
teria sentido em relação aos diferentes graus de desvaloração, quantitativa, e não
qualitativa.

E já que a nota comum entre as três concepções de dolo seria, para Vivés
Antón, uma “decisão contra o bem jurídico”, a adoção de um conceito de dolo pelo
Código Penal que remetesse à tal critério, desamarraria a doutrina de conceitos
rígidos, fechados pelo legislador, possibilitando sua evolução.

62 BUSATO, Paulo. Dolo e significado...op. cit. p. 93.


63 idem. Direito Penal...op. cit. p. 396.

69
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no trabalho, tenta-se demonstrar a necessidade de se construir


uma teoria do dolo em atenção a uma teoria da prova de matiz anticartesiana64,
compatibilizando premissas teóricas interdisciplinarmente, com vistas a evitar juízos
casuísticos, ignorantes da reconstrução dos fatos, muitas vezes justificada na “intime
conviction, ou seja, de uma espécie de persuasão interior, imperscrutável e impassível
de racionalização (e, portanto, não analisável ou controlável), sobre os fatos da causa
que se trata a apurar.”65

Ausente, portanto, uma decisão qualitativamente66 justa, gera-se no seio


social, não apenas insegurança quanto à eventual e descriteriosa atuação estatal
violadora de seus direitos fundamentais, como um reforço a sensação de ausência de
força das normas, impedindo uma convivência pacífica em sociedade67.

Segundo Busato:

a doutrina vem dando mostras crescentes de que persiste em busca


de soluções. O próximo passo, consoante se evidencia de uma
tendência crescente de admissão dos seus postulados68, parece ser a
assunção da Filosofia da Linguagem como teoria de base para a
reformulação dos fundamentos do sistema de imputação penal,
especialmente no que tange aos seus elementos subjetivos.69

Ao que se expôs, a concepção do dolo mais adequada em termos racionais


seria aquela com base nas lições de Vivés Antón, no que dependeria, por óbvio, da
reestruturação da teoria do delito conforme a Teoria Significativa da Ação, bem como
de uma desejável alteração da redação do artigo 18, inciso I do Código Penal.

64
PORCIÚNCULA, José Carlos. Capítulo VI: Lo objetivo y lo subjetivo en el tipo penal: hacia la exteriorización de lo interno”.
Barcelona: Atelier, 2014. p. 301-310 apud PRADO, Geraldo. A prova do dolo...op. cit. p. 194.
65 TARUFFO, Michele. Uma simples verdade...op. cit. p. 110. No mesmo sentido, PRADO, Geraldo. A prova do dolo...op. cit. p. 192.
66 PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por

métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons. p. 39.


67 BUSATO, Paulo César. Fundamentos para um direito penal democrático. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 2. Assim também,

PASTOR, Daniel. Proceso penal latino-americano. in AMBOS, Kai (ed.) Ciencias criminales en Alemania desde una perspectiva
comparada e internacional: cuarta escuela de verano en ciencias criminales y dogmática penal alemana. Serie CEDPAL, vol 2.
Göttingen: Centro de Estudos de Direito Penal Latino-Americano do Instituto de Ciências Criminais da Georg-August-Universität
Göttingen; Göttingen University Press, 2018. p. 104.
68 “Além do próprio Vivés (Antón) e de Carlos Martinez-Buján Pérez, também Henrique Orts Berenguer, José Luis González Cussac,

Juan Carlos Carbonell Matteu e, em Portugal, Maria Fernanda Palma…” (BUSATO, Paulo César. Dolo e Significado...op. cit. p. 90).
69 BUSATO, Paulo César. Dolo e Significado...op. cit. p. 90.

70
5. REFERÊNCIAS

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73
Mário Edson Passerino Fischer da Silva1
Samia Saad Gallotti Bonavides2

AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS COMO


UMA ALTERNATIVA À PERSECUÇÃO
PENAL: DA RESSIGNIFICAÇÃO DO CASO
PENAL A UMA NECESSÁRIA
CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
ULTIMA RATIO

RESTORATIVE PRACTICES AS AN ALTERNATIVE TO


CRIMINAL PROSECUTION: FROM THE RESIGNIFICATION
OF THE CRIMINAL CASE TO A NECESSARY
CONCRETIZATION OF THE ULTIMA RATIO PRINCIPLE

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 2.1 Justiça restaurativa, entre o purismo


e o maximalismo; 2.2 Sobre a racionalização jurídica dos conflitos atrelados aos casos
penais e a proposta restaurativa; 2.3 Ponderações o sobre o escopo último do direito e
do processo penal; 2.4 A ausência de justa causa para o exercício da persecução penal
quando as práticas restaurativas tenham resultado na responsabilização do ofensor e na
harmonização das relações e condutas com a legalidade; 2.5 Sobre os institutos jurídicos
que permitem o uso de práticas restaurativas de acordo com o entendimento majoritário;
3. Conclusão; 4. Referências.

1 Bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná, mestrando em Direito do Estado pela mesma universidade, assessor
jurídico no Núcleo de Prática e Incentivo à Autocomposição do Ministério Público do Estado do Paraná.
E-mail: mariofmppr@gmail.com.
2 Bacharela em direito pela Faculdade Estadual do Norte Pioneiro, mestra em direito processual civil pela mesma instituição de ensino

superior e doutoranda no programa de pós-graduação da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP, Procuradora de Justiça
do Ministério Público do Estado do Paraná, Coordenadora do Núcleo de Prática e Incentivo à Autocomposição do MPPR.
E-mail: samia@mppr.mp.br.

* A data de submissão do presente artigo foi no dia 23/09/2019 e a aprovação ocorreu no dia 12/11/2019.

74
RESUMO: O trabalho aborda possibilidades que o ordenamento jurídico brasileiro
oferece para que as práticas restaurativas possam atuar como alternativa à persecução
penal e, consequentemente, à eventual aplicação de pena, iniciando-se por uma opção
inovadora e, posteriormente, apresentando-se caminhos compreendidos como
ortodoxos pela doutrina majoritária A hipótese norteadora foi a existência de
permissivos normativos e principiológicos no ordenamento, aptos a possibilitar a
alternatividade entre as práticas restaurativas e o processo penal. Pela dedução de suas
funcionalidades declaradas, compreendeu-se que o fim último do direito e do processo
penal seria promover a harmonização das condutas e expectativas em conformidade
com o ordenamento jurídico. Esse fim pode ser atingido pelas práticas restaurativas
previamente à persecução penal, quando resultam na construção coletiva, pela vítima,
autor da ofensa e pessoas indiretamente afetadas pelo crime, de uma resposta ao caso
penal que acarrete na responsabilização do ofensor por meio de uma censura pública,
na reparação, ainda que simbólica, à vítima, e na harmonização das relações sociais com
o direito e os sentimentos, necessidades e expectativas destes envolvidos, tornando
juridicamente desnecessária a persecução penal da conduta por falta de justa causa, em
respeito ao princípio da ultima ratio.

ABSTRACT: This work approaches the possibilities which Brazilian legal system offers so
that the execution of restorative practices may be used as an alternative to criminal
prosecution and, consequently, to an eventual punishment, starting with an innovative
option and, later, presenting paths comprehended as orthodox by the majority doctrine.
The guiding hypothesis of the research was the existence of norms and principles in the
legal order, those able to provide an alternative between restorative practices and
criminal proceedings. By deducing its stated functionalities, it was compreended that the
purpose of the law and criminal procedure would be to promote the harmonization of
conduct and expectations in accordance with the legal system. This aim can be achieved
by restorative practices prior to criminal prosecution, when they result in the collective
construction by the victim, the perpetrator of the offense and persons indirectly affected
by the crime, of a response to the criminal case that entails the accountability of the
offender through public censorship, promotes a reparation, albeit symbolic, of damages
suffered by the victim, and result in the harmonization of social relations with the law
and the feelings, needs and expectations of those involved, rendering the criminal
prosecution of the conduct unjustified, in respect of the principle of ultimate ratio.

PALAVRAS-CHAVE: justiça restaurativa; processo penal; justa causa; ultima ratio.

KEYWORDS: restorative justice; criminal process; just cause; ultima ratio.

75
1. INTRODUÇÃO

O problema abordado diz respeito à identificação das possibilidades que o


ordenamento jurídico brasileiro oferece para que as práticas restaurativas possam atuar
como alternativa à persecução penal e, consequentemente, à eventual aplicação de
pena. Trata-se mais de uma reflexão provocativa, do que propriamente uma tentativa de
esgotar o tema, o qual é complexo e demandaria, reconhece-se, uma abordagem mais
profunda acerca dos fundamentos do processo penal, da pena e do direito em si. Isso,
no entanto, resultaria em uma dissertação ou tese, razão pela qual se optou por priorizar
a exposição básica dos raciocínios adotados, do que fazer um aprofundamento
minucioso em cada teoria e conceito.

A metodologia adotada foi a hipotético-dedutiva, sendo a hipótese norteadora


a existência de permissivos normativos e principiológicos no ordenamento brasileiro,
aptos a possibilitar a alternatividade entre as práticas restaurativas e o processo penal,
a partir da inserção do imprescindível requisito da “ausência de pacificação social” ao
conceito de “justa causa’” para a propositura de uma denúncia e da ampliação da
incidência do princípio da ultima ratio em relação à persecução penal em casos
concretos. Em relação a este último aspecto, defende-se que este princípio não seja
invocado apenas como um limitador da atividade legislativa penal, mas que seja aplicado
também aos agentes do sistema justiça, no que toca à averiguação da real necessidade
de persecução criminal, quando outros meios se mostrem capazes de produzir um
tratamento adequado ao caso penal.

O exercício dedutivo consistirá em testar esta hipótese a partir da dedução da


função da pena, do direito penal e do processo penal, instrumentalmente conexo a esse.

A primeira premissa é que o sistema penal brasileiro, embora declaradamente


se justifique a partir da ideia de promoção da segurança pública e da proteção de bens
jurídicos universais, ainda que de forma latente, atua, em verdade, para reproduzir as
desigualdades e assimetrias sociais, incorrendo na violação de direitos fundamentais, a
partir das precárias condições que oferece a sua clientela, e da estigmatização que
promove (ANDRADE, 2007, p. 59-60). Nessa linha, Vera Regina Pereira de Andrade,
afirma, com base nas reflexões de Foucault, que a prisão, além de fracassar no aspecto
de cumprir seu o objetivo declarado de combate à criminalidade, ainda logra êxito em

76
contribuir para estabelecer uma ilegalidade visível, deixando na sombra as ilegalidades
que são toleradas e incitando, a partir de suas condições, a reprodução da ilegalidade
visível mediante a segregação (ANDRADE, 2015, p. 254).

A segunda premissa é de que as provocações aqui feitas têm como escopo


atentar para as possibilidades de intervenção que produzam efeitos imediatos na
realidade, de modo tal que, mesmo tomando ciência das assimetrias e injustiças do
sistema penal, entende-se que o negaciosismo e ideias que visam ao seu abolicionismo
são, para o momento, algo utópico, enquanto a necessidade de frear sua violência é
providência que se mostra imediata. Por isso que, as construções hermenêuticas e
propostas deste trabalho não navegam à margem do sistema que é criticado, mas dentro
dele e com o fito de resgatar os ideais de aplicação da lei penal como ultima ratio, do
tom constitucional relativo à primazia da solução pacífica de controvérsias na ordem
interna, da dignidade da pessoa humana e da construção de uma sociedade solidária,
conforme o preâmbulo da Constituição.

A terceira premissa, assenta-se na necessidade da sociedade e do Estado,


enquanto gestor desse sistema, encontrarem alternativas e soluções humanitárias
juridicamente viáveis para solucionar os efeitos negativos produzidos pelo sistema penal.
Como efeitos negativos, leia-se (i) segregação daqueles que se enquadram em um perfil
mais propenso à criminalização e à persecução penal, (ii) estigmatização dos indivíduos
submetidos ao processo penal e à pena, (iii) reincidência criminal, (iv) aumento da
violência, entre as pessoas submetidas à pena, (v) desconsideração das necessidades e
exclusão da vítima do processo decisório envolvendo a censura do autor da ofensa, (v)
infantilização e reificação das pessoas submetidas ao processo, que pouco, ou nada
participam dele, e são tratadas como instrumentos de extração probatória em uma luta
fictícia entre acusação para convencer o juiz da sua verdade dos fatos.

A quarta premissa é que as práticas restaurativas, sem se referir aqui a uma


metodologia específica, são ferramentas aptas a promoverem uma melhor
sensibilização e compreensão do conflito atrelado ao caso penal pelos sujeitos,
correspondendo a uma alternativa empoderadora, construtiva e pedagógica de resposta
ao crime. O controle social e a produção de censura tornam-se mais democráticos
quando os próprios cidadãos podem se inserir em um espaço seguro de diálogo

77
fornecido pelas instituições. Dessa maneira, respeitando-se as fronteiras da legalidade,
vítima e autor da ofensa poderão optar, voluntariamente, pela via restaurativa e, de
forma mediada, atuar como protagonistas na gestão do caso penal, previamente a
instauração. A figura estatal, portanto, assumiria o papel de fiscal e promovente dos
princípios que regem as práticas restaurativas, utilizando-as como ferramentas que
barrem ou, ao menos, diminuam a violência sistêmica, em prol de possibilitar uma
ressignificação saudável do crime pelos sujeitos nele envolvidos (vítima, ofensor e
pessoas indiretamente afetadas).

Findando esta introdução, reconhecemos que a interlocução entre práticas


restaurativas e sistema penal aumenta o risco de cooptação dessas como mais uma
ferramenta apta a oprimir (ainda que de modo envernizado) a clientela do sistema penal,
podendo, a depender do modo como são conduzidas, espelhar as violências que dele
provêm. Inegavelmente há um risco que pode ser mais ou menos abrandado, a depender
dos princípios e da forma de interação entre um “‘modelo restaurativo de justiça” e o
“modelo convencional”. Aqui está a última premissa: entende-se que processo penal e
as práticas restaurativas possuem racionalidades diversas, o que demanda, então, uma
organização alternativa/complementar entre ambos, pois as práticas não poderão ser
inseridas como parte do processo. Assim sendo, defende-se que a interlocução entre
práticas e processo deve ocorrer apenas no que toca aos resultados que as práticas
produzam na realidade material. Há alternatividade entre elas e o sistema penal
convencional como forma de promover a harmonia social, compreendendo-se as
práticas como ferramentas mais efetivas, enquanto o sistema penal é um aparato
subsidiário violento de resguardo da coesão social, que deve ser acionado apenas
quando todas as demais vias de resposta ao crime tiverem sido exauridas.

Para entender melhor esse modelo de complementariedade estrutural e a


percepção adotada de práticas restaurativas, a primeira parte da pesquisa será destinada
a esclarecimentos de ordem conceitual, a segunda, a tratar do fenômeno da
racionalização jurídica de conflitos, a terceira, a expor nossa visão acerca do necessário
resgate do que se entende como o fim último do processo e do direito penal, a quarta,
para tratar da possibilidade jurídica de as práticas restaurativas afastarem a necessidade

78
de persecução penal e a quinta, trará uma relação dos institutos jurídicos que já
permitem o uso de práticas restaurativas como alternativas ao processo e à pena.

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 Justiça restaurativa, entre o purismo e o maximalismo

O entendimento aqui adotado é de que a justiça restaurativa pode ser


apresentada como um paradigma (ZEHR, 2008, p.89-90) que redefine, em relação à
concepção institucional, a ideia de justiça, de cidadania, de conflito e de crime. Assim, a
justiça seria concebida como uma experiência construída de forma dialógica e horizontal,
em cada caso concreto, a partir da participação direta das pessoas envolvidas em um
conflito, na linha do que descreve John Paul Lederach: “a justiça é um conceito relacional,
ou seja, é a forma como organizamos nossa interdependência e, portanto, como
escolhemos moldar nossa comunidade humana” (DIETRICH, 2013, p. XI).

Em relação à cidadania, a justiça restaurativa pressupõe que seu exercício


depende do empoderamento e do compartilhamento de responsabilidades, para que os
sujeitos se percebam como agentes relacionais capazes de promover mudanças na
realidade. O conflito é tido como uma oportunidade de tensionar as convicções e
preconceitos e de viabilizar a construção de respostas a partir do diálogo, do respeito
mútuo e da corresponsabilização.

Nesse diapasão, são oportunas as colocações de Wolfang Dietrich, no sentido


de que o conflito é um produto natural da interação humana e inerente a qualquer
relacionamento, sendo uma força motora para a mudança e não um distúrbio em si, mas
sim um elemento atávico à vida social que pode vir a se tornar violento se persistirmos
na sua condição desagregadora, o que o tornará disfuncional (DIETRICH, 2013, p. 6-7).
Para tato, Dietrich aponta que o trabalho com a paz representa a arte de atuar
construtivamente e transformar a energia que dispendemos no conflito em uma força
direcionada a um fluxo criativo de soluções que maximizem o bem-estar das pessoas
(DIETRICH, 2013, p. 7), como é o enfoque das práticas restaurativas ligadas à vertente
que aqui será apresentada.

79
A justiça restaurativa também é vinculada ao empoderamento e reparação do
mal causado às vítimas na área penal, tratando o crime não apenas como uma ofensa à
norma jurídica, mas igualmente como um dano causado por uma pessoa a outra, dano
esse que abala vidas e relacionamentos, de modo que a reposta ao delito deve primar
pela transformação da experiência do crime em um objeto de narrativa,
responsabilizando-se o autor da ofensa e buscando restaurar os relacionamentos
afetados.

Para os defensores do “modelo restaurativo” atrelado à vertente maximalista,


a justiça restaurativa seria concretizada independentemente da interação entre vítima e
autor do delito, pois a restauração se confundiria com a reparação do mal causado à
vítima, ou à comunidade afetada, por meio, por exemplo, de uma indenização, do
cumprimento de uma obrigação de fazer de outra natureza, de uma retratação pública,
etc (BAZEMORE; WALGRAVE 1999A, p. 48) (MCOLD, 1999, p. 14).

O modelo maximalista destina praticamente todo o seu enfoque à chamada


reparative theory, que entende a reparação de danos como o aspecto mais relevante de
uma prática autocompositiva e como aquilo que a diferencia do modelo convencional
de tutela de casos penais (REGGIO, 2010, p. 101,163).

Já o modelo purista não desconsidera a possibilidade de reparação, tendo-a


inclusive como requisito para fins de eventual consequência jurídica das práticas
restaurativas. Ele é pautado na participação voluntária, tanto do autor da ofensa quanto
do ofendido, voluntariedade essa que se estende ao dever de cumprir determinada
reparação que venha a ser acordada entre ambos (MCOLD, 1999, p. 12-13).

Além disso, o purismo pressupõe a interação dialógica entre vítima e ofensor,


como pessoas responsáveis pela produção da resposta ao crime, porém, ao contrário da
percepção maximalista, esse compreende que a restauração é concretizada por meio da
interação mediada entre os envolvidos no caso penal, na qual os participantes poderão
ressignificar os fatos, desconstruir traumas, medos e receios, fazendo-o pelo
compartilhamento de narrativas e da expressão de seus sentimentos, necessidades e
expectativas em relação ao ocorrido.

80
Portanto, é comum dizer que, embora o modelo purista não rejeite e inclusive
englobe a reparative theory, seu enfoque principal está vinculado aos pressupostos da
encounter theory, que compreende a experiência dialógica e a alteridade como as
principais forças motrizes responsáveis por eventual restauração, a qual se concretiza
mediante a responsabilização do ofensor, a expressão dos participantes e a
compreensão das causas e consequências do crime (GIAMBERARDINO; SILVA, 2017, p.
15).

Na proposta ora adotada, buscar-se-á uma maior aproximação com o “modelo


purista”, uma vez que se entende que o maximalismo propõe, em verdade, uma
substituição da lógica penal pela cível, desconsiderando as rupturas que o crime provoca
no tecido social e na vida das pessoas, para além de danos materiais, enquanto o
purismo efetivamente busca consolidar um novo paradigma de concepção de justiça,
trazendo os cidadãos para atuarem diretamente na sua administração, e este
empoderamento, a nosso ver, só ocorrerá mediante a observância do princípio da
voluntariedade.

O modelo purista que se apregoa será de complementariedade estrutural,


pois os órgãos que realizam as práticas restaurativas não se confundiriam com os órgãos
que julgam, ou acusam. Há porém o reconhecimento de uma complementariedade
funcional no que toca à promoção da harmonização das relações sociais, ainda que as
práticas restaurativas busquem fazê-la de modo horizontal, e o sistema de justiça tente
concretizá-la vertical e prescritivamente, conforme será descrito adiante.

2.2 Sobre a racionalização jurídica dos conflitos atrelados aos casos penais e a proposta
restaurativa

O sistema de justiça penal pauta-se na racionalização jurídica de conflitos


(ACHUTTI, 2012, p. 15), configurando uma visão abstrata e míope dos embates
humanos, e desconsiderando a complexidade das múltiplas causas e implicações do ato
delituoso na vida dos indivíduos.

Na tradição jurídica contemporânea, o acertamento do caso penal dá-se por


meio de um rito processual baseado no contraditório (COUTINHO, 1989, p. 29-30, 134)

81
e com pressupostos que naturalmente o afastam da pauta subjetiva relativa aos conflitos
atrelados a tais casos. Em primeiro lugar, porque o processo criminal volta-se à
verificação do dever de aplicação (ou não) da norma penal sobre a esfera jurídica do réu.
Em segundo, porque a sublimação do conflito entre indivíduos ampara-se na concepção
de que a norma jurídica é a “real ofendida”, sendo o crime concebido como uma ofensa
a um “bem jurídico”. Em terceiro, pelo pressuposto de que a permeabilização de
elementos irracionais (emotivos, subjetivos) no âmbito do processo, ou em interlocução
com este, poderia, além de incitar a autotutela, provocar decisões não isonômicas,
pautadas na arbitrariedade, e não no referencial normativo preexistente ao caso penal.

Assim é que, autor da ofensa e vítima, aqueles diretamente interessados na


condução e desfecho do caso penal, ocupam no processo uma posição de instrumento
de extração probatória, tendo seus momentos de expressão direcionados ao
abastecimento de dados que embasem o desenredo procedimental (GIAMBERARDINO;
SILVA, 2017, p. 15).

A dinâmica processual reflete essa perspectiva, sendo o processo penal público


uma arena de combate jurídico entre o Ministério Público (representando o Estado) e o
defensor do réu (representando a resistência deste à aplicação de eventual sanção
penal). Ato contínuo, a abstração jurídica, do conflito de ordem penal, dá-se em nome
da supressão da autotutela e da contaminação da racionalidade procedimental, de
modo que a vítima é substituída, materialmente, pelo ordenamento jurídico e,
processualmente, pelo Ministério Público, enquanto o ofensor é intimado a desconstruir
a acusação de ter descumprido um preceito normativo penal (CHRISTIE, 1977, p. 3).

Ressalta-se que o maior âmbito de protagonismo que a legislação concede ao


ofendido para atuar processualmente é teleologicamente relativo à concretização da
norma penal, seja quando o permite atuar na condição de substituto processual, ou
como parceiro do Ministério Público (assistente), ou mesmo como detentor do veto da
reação estatal a uma suposta ofensa penal (casos de ação penal pública condicionada à
representação).

Então, a racionalidade jurídica penal ofuscou a dimensão humana dos conflitos


subjacentes aos casos submetidos ao sistema de justiça, colaborando para incrementar
a incomunicabilidade do mundo do dever-ser, no qual se concebe o crime como uma

82
ação típica, ilícita e culpável, com o mundo do ser, onde os crimes, com vítimas, resultam
em ofensas a indivíduos dotados de sentimentos, necessidades e expectativas.

Num contexto em que a estratégia penal de reagir ao crime tem sido claramente
insuficiente, tanto para combater a criminalidade, quanto para restabelecer a paz social
e os vínculos afetados pelo delito, desvanece-se a sensação de segurança e de justiça,
enfraquecendo-se a legitimidade do sistema, que é o responsável por afirmar uma
legalidade que deveria ser imperativa e presente.

Quando se observa, por exemplo, que a Lei nº 9.099/1995 possibilita que nos
processos iniciados mediante queixa seja, previamente ao recebimento da própria
querela, realizada a conciliação entre vítima e ofensor (arts. 72 e 73), existe aí um gancho
para que se vislumbre no processo penal uma preocupação declarada em promover a
pacificação social, de um modo diferente daquele que se dá por meio da aplicação de
pena.

Nesse sentido, entendemos que o acertamento do caso penal, embora


juridicamente independente das consequências disruptivas provocadas na realidade, só
se justifica quando, na prática, assegura a harmonia na convivência social e perpetua a
estabilidade das relações humanas, adequando as expectativas sociais e individuais aos
preceitos normativos do ordenamento jurídico. Isso pode ser depreendido da
Constituição (1988), no seu preâmbulo, quando esta dispõe que o Estado democrático
de direito brasileiro está comprometido, na ordem interna, com a solução pacífica das
controvérsias, e quando, dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, estão indicados “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o
bem de todos (...)” (art. 3º, I e IV). Além disso, é fundamental relembrar dos pressupostos
do princípio da ultima ratio, da intervenção mínima e da noção de justa causa para o
ajuizamento de uma ação penal, o que será feito adiante.

Por consequência, e partindo de premissas como essas, o sistema de justiça,


reconhecendo os custos financeiros e sociais gerados pela pena, tem buscado
alternativas de gestão de conflitos que mirem efetivamente as causas e consequências
do caso penal na vida das pessoas, sendo que entre essas opções estão as práticas
restaurativas, inseridas, inclusive, na regulamentação do Conselho Nacional do
Ministério Público (Res. nº 118/2014) para uso na prática institucional.

83
Além disso, o Conselho Nacional de Justiça, pela resolução nº 225 de 2016,
dispõe sobre a política nacional judicial sobre justiça restaurativa, reconhecendo a
possibilidade do uso de dessas práticas em casos de conflitos penais (art. 2º, §1º),
mesmo que elas sejam incomunicáveis com a instrução processual.

Como alguns dos requisitos para participação e condução da prática


restaurativa, a resolução estipulou: (i) o reconhecimento por parte dos envolvidos
(vítima e suposto autor da ofensa), dos fatos essenciais atrelados ao caso como fatos
verdadeiros, (ii) o prévio consentimento de todos os convidados a participar da
abordagem, assegurado a retratação até a homologação de eventual acordo
restaurativo, (iii) a informação qualificada acerca das consequências da participação na
abordagem, (iv) a condução da prática por facilitadores previamente qualificados (art.
13) e (v) a proporcionalidade das obrigações que venham a ser assumidas pelos
participantes e o respeito à autonomia da vontade e expressão.

Na linha aqui adotada, as abordagens de cunho restaurativo correspondem a


propostas dialógicas de administração de conflitos, as quais possibilitam a restauração
de vínculos e o empoderamento dos envolvidos para que formulem coletivamente uma
resposta ao caso penal, transformando a experiência da vítima num objeto de narrativa
(GIAMBERARDINO; SILVA, 2017, p. 15), para assim promover, mediante a participação
de outros membros da coletividade indireta e eventualmente afetada (familiares,
vizinhos, e afins), a compreensão e responsabilização pública do causador do dano, que
deve repará-lo, se possível.

Então não é de hoje que as instituições que compõem o sistema de justiça vêm
investindo em formas alternativas, não-traumáticas e pedagógicas de resolução dos
conflitos, tendo como clara a possibilidade de se atingir resultados socialmente mais
benéficos e condizentes com o ordenamento jurídico, mediante a implementação de
modelos dialógicos de resposta a condutas ilícitas, e de buscar, por este meio, a
consolidação de uma cultura de paz (BONAVIDES; LOPES, 2016, p. 623-627).

A Resolução CNJ nº 225/2016, por exemplo, atenta para o fato de que diante da
“complexidade dos fenômenos conflito e violência, devem ser considerados, não só os
aspectos relacionais individuais, mas também, os comunitários”, de tal maneira que, as
práticas restaurativas vão além da mera consideração dos termos da lei, como faz o

84
limitado processo judicial, tendo o foco centrado nos fatores relacionais dos sujeitos, e,
buscando, sempre que possível, promover a reparação dos danos causados por meio de
um acordo ou plano de ação, elaborado conjuntamente pela vítima, autor da ofensa e
pelos apoiadores destes que estejam participando.

A Resolução CNMP nº 118/2014, em seu art. 13, dispõe que:

As práticas restaurativas são recomendadas nas situações para as quais


seja viável a busca da reparação dos efeitos da infração por intermédio
da harmonização entre o (s) seu (s) autor (es) e a (s) vítima (s), com o
objetivo de restaurar o convívio social e a efetiva pacificação dos
relacionamentos (BRASIL, 2014).

O fomento ao uso dessas práticas em casos penais é também uma diretriz da


ONU, materializada na Resolução nº 2002/12, na qual se estipula que os países-
membros, respeitando seus ordenamentos pátrios, deverão formular estratégias e
políticas nacionais objetivando o desenvolvimento da justiça restaurativa e a promoção
de uma cultura favorável ao seu uso, pelas autoridades.

Isso mostra que é prudente que o sistema penal opte por formas de
responsabilizar condutas, para além da cominação e imposição da pena, adotando,
quando oportuno, medidas desprovidas de caráter aflitivo, como é o caso das censuras
promovidas com a utilização de diálogos e reflexões coletivas (GIAMBERARDINO, 2015,
p. 114). Estas implicam e partem da responsabilização dos ofensores, mas possibilitam
que a vítima e seus familiares possuam um espaço de fala, e, portanto, de
empoderamento, para terem a oportunidade de se expressar sobre o que houve, quais
foram as consequências para suas vidas, bem como o que esperam que seja feito a
respeito disso.

No Brasil, contudo, o espaço de interação entre as abordagens restaurativas e o


processo penal ainda é limitado, estando mais evidente no âmbito dos juizados especiais
criminais, ainda que o princípio da aplicação do direito penal como ultima ratio seja
extensivo a todos os crimes, sejam eles leves ou não.

85
2.3 Ponderações o sobre o escopo último do direito e do processo penal

O processo penal é um instrumento necessário de legitimação da aplicação (ou


não) da pena, e, consequentemente, da legitimação (ou não) de um juízo institucional
de reprovabilidade (penal) sobre uma conduta. Por meio dele o Estado é compelido e
freado, de modo pretensamente previsível, a obedecer a uma série de garantias e ritos
previamente ao exercício de seu poder punitivo, as quais, se ignoradas, tornam este
exercício ilícito.

A jurisdição penal corresponde à instância de controle da pretensão estatal de


aplicação da pena, o que, ante da gravidade dessa possibilidade, torna tal controle
indefectível, indeclinável e necessário, independentemente da vontade de vítima, de
quem lhe faça as vezes, ou do autor do crime (COUTINHO, 1989, p. 41). A pena, portanto,
não tem como escopo atender aos interesses individuais, ou reparar um dano causado,
mas, em termos de função declarada, operará como modo de expressar a reprovação
social em face do desrespeito à norma penal, a qual expressaria os valores sociais
consolidados na forma de bens jurídicos que o legislador decidiu por penalizar a lesão
(JARDIM, 2002, p.77).

À vista disso, o Estado não pode oferecer uma solução penal fora da jurisdição
oficial (GIACOMOLLI, 2006, p. 55), pois, uma vez que as decisões penais têm potencial
para cercear o direito à liberdade, bem jurídico indisponível, os casos penais devem,
nessa lógica, ser submetidos a um juiz, o qual zelará pela observância da legalidade,
preservando as garantias do réu e sentenciando em conformidade com o ordenamento.

Trata-se do princípio da jurisdição, cujo conteúdo dispõe, segundo Aury Lopes


Jr., que a solução de casos de natureza penal provenha do Estado, por um juiz imparcial,
competente para geri-lo, e comprometido com a máxima efetivação da Constituição (juiz
natural), (LOPES JR., 2011, p. 109). Isso posto, supõe-se que a vinculação do rito
processual e da atuação jurisdicional à lei, conjuntamente com a qualificação técnica do
magistrado, previamente testada em concurso público, tornam a condução e o resultado
do processo lícitos e previsíveis (SILVA, 2016, p. 1069).

Para além desse binômio barragem/permissão, quanto à punição penal, se o


operador do direito realizar um exercício cognitivo regressivo, a fim de aferir qual a razão

86
última de ser do processo e do próprio direito penal, perceberá que “a proteção de bens
jurídicos”, “a punição de delitos”, “a preservação da legalidade”, “o asseguramento de
garantias ao réu”, “o acertamento do caso penal”, “a expiação do delito”, “a
responsabilização do ofensor”, são fins imediatos, que não justificam, por si só (mesmo
no campo dos fins declarados), a missão da persecutio criminis.

Considerando que o direito penal é a forma mais severa de violência


institucional, tanto o legislador, quanto os que atuam no sistema, precisam considerar
que qualquer intervenção penal deve ocorrer somente quando não se mostrarem viáveis
outras maneiras de: (i) promover a pacificação social, (ii) restabelecer a legitimidade do
referencial normativo que veda a conduta delituosa, e (iii) respaldar a crença na
autoridade das instituições. Essa é a lógica dos princípios basilares e contentores desta
violência, como a ultima ratio e a intervenção mínima.

Ocorre que, os mencionados princípios são comumente atrelados a vetores


relativos à criminalização primária, ou seja, à atividade legislativa. Entretanto, não
haveria como o legislador cogitar toda situação em que a utilização de meios alternativos
à pena seria possível. O legislador não poderia, portanto, elencar em pormenor todas as
circunstâncias para aferir a existência de interesse social e jurídico na punição penal de
uma conduta, em virtude das peculiaridades e repercussões de cada caso concreto,
razão pela qual os referidos princípios, por uma questão de lógica dedutiva (e não de
mera política criminal) devem também nortear a atuação do Ministério Público e do
Poder Judiciário. Entende-se também que esse é um dos motivos para os quais a “justa
causa” é apresentada como uma condição à persecução penal.

Assim sendo, é preciso refletir sobre a presença/ausência de interesse jurídico,


racional ou social, que eventualmente persistiria, para o exercício da pretensão
acusatória, em casos nos quais houve efetiva harmonização das relações sociais, com a
responsabilização pública do autor da ofensa, e com o consequente aplacamento dos
efeitos disruptivos e danosos da conduta delitiva; pois, admitir a necessidade
incondicional da persecução penal, incorreria na provocação do efeito inverso daquilo
que legitima, em último grau, a existência do direito penal e, por uma conexão
instrumental necessária, do processo penal.

87
Entende-se também que independentemente do entendimento que se adote,
mesmo aqueles (maioria) que discordam ser possível a autocomposição como
alternativa ao processo e à pena, admitem que o processo penal tem como escopo
último promover a pacificação social, ao frear a “justiça pelas próprias mãos” mediante
o fornecimento de uma resposta institucional acerca da reprovabilidade (ou não) da
conduta praticada.

Supõe-se que deixar nas mãos dos indivíduos este acertamento do caso
provocaria mais insegurança e fomento à violência, do que uma intervenção institucional
controlada, dentro dos limites estipulados para o ritual processual e para a pena
positivada e aplicada, se for o caso, somente após um processo que observe garantias
contextualizadas em um embate jurídico que mira o convencimento de um terceiro
imparcial (juiz).

Segundo Roberto Antônio Darós Malaquias “o processo é a produção humana


para atender a uma função essencial que é a pacificação social dos cidadãos em conflito”,
dessa forma o autor, referindo-se ao processo penal e civil, ressalta que seu fim é a paz
social (2012, p. 214-216). Ele também cita Maria Thereza de Assis Moura, para dizer que
ela, mesmo discordando da assimilação de técnicas autocompositivas pelo processo
penal, acompanha essa perspectiva afirmando que "o fim último do poder-dever de
punir é a paz social" (MALAQUIAS, 2012, p. 211).

Esse reconhecimento da finalidade mediata do direito penal e do processo


provém da compreensão lógica de sua razão de ser, o que se dá a partir da adoção de
um pensamento regressivo sobre os fins declarados do direito penal.

O retributivismo clássico, por exemplo, define a pena como um fim em si


mesmo, por entender como necessária a reprovação da conduta ilícita, ainda que tal
reprovação provoque mais alarme social e não tenha utilidade alguma. A lógica de
harmonização das relações sociais também está presente nessa concepção, apesar da
aparente incoerência, pois se o objetivo da sanção penal é punir alguém, simplesmente
porque cometeu uma conduta tida como ontologicamente errada, mas que optou,
racionalmente, por realizá-la, o que se espera do sujeito é que ele não cometa atos
reprováveis, e se cometer, merecerá uma pena (GÜNTHER, 2006, 190-193).

88
Portanto, a reprovabilidade penal, a partir da visão retributivista, existe para
afirmar que há práticas inaceitáveis, e que os cidadãos devem agir de acordo com as leis,
ou estarão escolhendo o caminho da punição. Permitir o contrário comprometeria a
estabilidade social, sendo imperiosa a responsabilização por meio da pena, para
diferenciar o que é aceitável, do que não é. Logo, apesar da tentativa de limitar a
justificativa da aplicação da pena, usando o argumento de que “ela é um fim em si
mesmo”, basta descer mais um degrau, na escada da dedução, para chegar à conclusão
de que essa finalidade engloba o ideal de harmonização da conduta e das expectativas
humanas, a partir do ordenamento jurídico. Tal constatação, de certa forma, equivale a
dizer “o direito possui sanções para fazer valer a si mesmo”, e ela pode parecer óbvia e
mesmo inócua quando pensada isoladamente, mas se torna funcionalmente relevante
quando se trata de averiguar a legitimidade jurídica do uso de alternativas à persecução,
com vistas a frear efeitos negativos do seu exercício e da aplicação de uma pena.

No retributivismo clássico o sujeito é punido porque merece, por “escolher” a


pena ao cometer conduta vedada pelo tipo penal. A postura delitiva adotada então não
pode ser utilizada como um imperativo categórico, pois se ela fosse regra, não haveria
paz social, ou seja, não seria possível conviver em sociedade, nos moldes da
previsibilidade que o referencial normativo visa a conferir aos comportamentos
humanos, a partir do engessamento de expectativas (GÜNTHER, 2006, p. 198). Assim, é
possível perceber que mesmo no retributivismo, que tem na pena sua referência, é
possível aferir que o fim último desta sanção é o atingimento da paz social, tanto em
relação à vítima, que foi lesada, quanto em relação à sociedade como um todo, que teve
seus valores e expectativas maculadas pelo delito.

O mesmo vale com relação às teorias prevencionistas, posto que, na prevenção


geral positiva, a aplicação da pena dá-se pela justificativa de que os demais cidadãos,
que não cometeram o crime, não devem perder a fé na autoridade da norma, do
contrário, estar-se-ia admitindo a possibilidade de desrespeitá-la sem consequências,
colocando em risco a autoridade de todo um referencial deontológico que rege as
interações e expectativas humanas. A prevenção geral negativa, por sua vez, baseia-se
na produção do medo da sanção, a qual, se não fosse aplicada quando cometido um
delito, teria como consequência, em tese, o desrespeito generalizado às normas

89
(GÜNTHER, 2006, p. 193-194, 199-201). Novamente, evidencia-se o desejo da paz social
fincando sua base no respeito ao ordenamento.

As prevenções especiais também se fundam na lógica da harmonização, de


modo eticamente reprovável, seja a prevenção especial positiva, na perspectiva de
formatar a subjetividade do indivíduo, no sentido deste adequar seu comportamento,
deixando de praticar atos penalmente sancionáveis; ou ainda, a prevenção especial
negativa, que busca anular o sujeito para que não pratique mais crimes, pois isto
desrespeita o dever-ser das relações humanas na ótica jurídica (GÜNTHER, 2006, p. 195-
198).

Na primeira, o sujeito é retirado do meio social para se adaptar às expectativas


do direito, e na segunda é retirado porque não se ajusta a ela, o que legitimaria a sua
neutralização. Logo, mais uma vez está presente a ideia básica da promoção da
harmonização de condutas com o direito, seja essa pacificação atingida pela formatação
do sujeito, seja pela sua neutralização, para que não venha a cometer crimes.

A própria justificativa do direito penal como ramo jurídico destinado a proteger


bens tidos como fundamentais, não foge à referida razão de ser, na medida em que ele
se aplica post factum, ou seja, quando o bem jurídico já se encontra violado, e tal
perspectiva, para que exista coerência no raciocínio, funda-se também em uma noção
prevencionista, ou seja, evitar que as pessoas atinjam bens jurídicos, ao associarem sua
lesão com a aplicação da pena.

Por conclusão, a primeira tese aqui defendida é de que o fim último do direito
penal e, por conexão instrumental, do processo penal, é a preservação da paz social, lida
como a preservação do respeito às normas sociais que regem as expectativas e o
convívio em sociedade.

2.4 A ausência de justa causa para o exercício da persecução penal quando as práticas
restaurativas tenham resultado na responsabilização do ofensor e na harmonização
das relações e condutas com a legalidade

Feitas as ponderações anteriores surge a perquirição necessária sobre a


existência (ou não) de justa causa para o exercício da persecução penal, quando

90
harmonizadas as relações sociais, depois de uma prática restaurativa em um caso penal,
com a devida responsabilização do ofensor e consequente reprovação pública de sua
conduta.

Marco Aurélio Nunes da Silveira afirma que a conciliação e a transação penal


jamais poderiam ser consideradas meios extraprocessuais de acertamento do caso
penal, pois admitir isso equivaleria a aceitar a aplicação da pena sem o prévio devido
processo legal, o que é inconstitucional (2016, p. 161).

Ressalva-se que, em se tratando da adoção de práticas dialógicas de


gerenciamento de conflitos, o que se faz não é efetivamente acertar o caso, porque isso
depende da imposição de uma pena e, portanto, da atuação da jurisdição. Logo, não se
trata aqui de aplicar uma pena pela mediatio, mas da mediatio como alternativa à pena,
ou seja, da possibilidade de harmonização e pacificação das relações sociais, por meio
de técnicas mais pedagógicas e dialógicas, de maneira tal que a intervenção penal torne-
se desnecessária.

Quando se fala de harmonização das condutas de acordo com o ordenamento


jurídico, não se pressupõe que, para que haja tal conformidade, deva ser aplicada uma
pena, mas que as relações humanas tenham se estabilizado, evidenciando que a
aplicação da sanção penal, apesar do conflito pacificado, produziria o efeito inverso do
que o plano institucional almeja.

Veja-se ainda que a racionalidade extraída dos princípios da ultima ratio e da


intervenção mínima colaboram para a interpretação previamente realizada, ainda que
tais princípios sejam direcionados à atuação legislativa.

Sendo a ultima ratio um mandado de otimização, que remete ao fato de as


intervenções penais serem necessárias somente no caso de outros ramos do direito não
oferecerem resposta apta a promover a citada harmonização, é juridicamente coerente
que esta lógica oriente a atividade jurisdicional, não apenas no que toca à seleção da
norma aplicável, mas também na avaliação de fatos que permitam aferir a
desnecessidade da persecução penal.

Em se tratando da intervenção mínima, esta alude à diretriz básica relativa à


legitimidade da criminalização primária apenas quanto aos bens jurídicos da mais alta

91
relevância. Considerando que o legislador não tem contato com a conduta
criminalmente reprovável, a intervenção mínima vincularia também a criminalização
secundária (ou a persecução penal como um todo), sob pena de desvirtuar a função
social do processo penal, como já foi realçado anteriormente neste artigo.

Propor uma interpretação dessa natureza gera desconforto, e este geralmente


está atrelado a três questões principais (i) a suposta ausência de legitimidade
democrática do magistrado e do promotor de justiça para decidirem pelo não
processamento penal de uma conduta que aparenta ser típica, ilícita e culpável, (ii) a
realização de um possível exame de mérito durante o momento de análise da
admissibilidade da denúncia e (iii) a impossibilidade de realização do acertamento do
caso penal por outro modo que não seja o processo (questão já esmiuçada).

Quanto à ausência de legitimidade, observa-se que o art. 28 do Código de


Processo Penal, ao prever situação em que não haja concordância do juiz com as “razões
invocadas” pelo membro do Ministério Público, aponta ser possível que o pedido de
arquivamento do inquérito policial contenha outras justificativas, que não a “ausência
de indícios de autoria e materialidade”, o que é, inclusive, uma construção doutrinária
(BRASIL, 1941).

Em assim sendo, o próprio legislador concedeu oportunidade ao promotor de


justiça e ao juiz de acordarem pelo arquivamento do inquérito e, caso não o façam,
caberá ao Procurador-Geral de Justiça, chefe do Ministério Público, decidir por manter,
ou não, o arquivamento. Não se está pensando em discricionariedade, pois tudo isto
deve estar amparado juridicamente, em respeito à isonomia e a uma motivação idônea,
a fim de fundamentar a ausência de necessidade da persecução penal, o que se daria
pela prévia harmonização (dialógica) das relações sociais com o direito e a
responsabilização do ofensor, somada, se possível, à reparação do dano. Tudo isso, como
já visto aqui nesta pesquisa, está legitimado pela própria Constituição e pelos fins
últimos do direito.

A Constituição, em face do contexto histórico de violência estatal prévia à sua


promulgação, e que persiste até hoje, garantiu que no seu projeto de Estado democrático
de direito tivesse o cidadão um protagonismo e uma liberdade sem precedentes, e isto
coaduna-se com a possibilidade de fazer composição também em matéria penal, por

92
meio de práticas dialógicas que materializem esse empoderamento, evitando-se danos
e gastos advindos de um processo penal e da eventual aplicação de pena, quando meios
menos traumáticos estiverem à disposição.

Repise-se que, separar as pessoas, o conflito entre elas e o caso penal, é,


apenas, uma estratégia jurídica para maximizar as chances de conformar a conduta
humana com o direito, com o fito de promover a estabilidade das interações
intersubjetivas, de acordo com o ordenamento. Em sendo viável a concretização da
harmonia social a partir de uma solução pacífica do conflito, da responsabilização do
ofensor e da reparação do dano mediante uma abordagem autocompositiva, cumpre-
se, por tabela, a missão social do direito, não havendo, consequentemente, justa causa
(art. 395, inc. III, do CPP) para se instaurar um processo penal (BRASIL, 1941).

Nesse sentido, tem-se que a harmonização das relações afetadas por uma
prática prescrita na lei penal, com a responsabilização do ofensor e uma censura ao
crime produzida pelo consenso entre os envolvidos, mais o cumprimento de eventual
acordo que culmine na reparação da ofensa |(ainda que simbólica), bem como na
demonstração de assimilação da reprovabilidade da conduta, possui respaldo
constitucional e infraconstitucional para operar como ausência de justa causa à
persecução penal.

Com relação à crítica sobre a averiguação da “harmonização social” estender o


exame de admissibilidade da denúncia, isso não ocorre, simplesmente pelo fato de que
o conceito de “harmonização” deve integrar o conceito de “justa causa'”, como condição
da ação nos termos do art. 395 do CPP.

O exame atualmente realizado para se aferir a “justa causa”, refere-se à


existência, ou não, de indícios de autoria e materialidade, e é justificado pelo fato de
recair somente sobre o exame do material probatório apresentado inicialmente pelo
Ministério Público, sem se adentrar no mérito da causa (COUTINHO, 1989, p. 150).

Da mesma maneira, verificar a ocorrência de responsabilização do agente, o


cumprimento de um acordo restaurativo, a harmonização das relações afetadas pela
ofensa a partir destes dois critérios e de estudos psicossociais realizados com as pessoas
direta e indiretamente atingidas pela ofensa penal, por exemplo, não implica dizer que

93
houve análise do mérito, ou seja, se houve ou não um crime. Então, se o juízo acerca da
justa causa não significa um acertamento do caso penal sem processo, tampouco seria
este o resultado concretizado a partir do cumprimento de um acordo restaurativo, visto
que, em nenhum dos casos, o indivíduo deverá cumprir uma pena, ou algo equivalente.

Oportuna, nessa passagem, a definição de Massimo Pavarini acerca das


características fundamentais da pena: (i) o caráter aflitivo (que remete à produção
intencional de dor); (ii) o caráter expressivo (que remete à expressão de um juízo de
reprovação emitido por uma autoridade da qual emana o poder punitivo) e (iii) o caráter
estratégico (finalidade de perseguição de condutas específicas sob a roupagem de uma
punição legítima e justa), (2004, p. 4).

No que diz respeito ao resultado das práticas restaurativas, quando se fala em


cumprimento de um acordo, André R. Giamberardino reflete acerca deste resultado
ideal e recorre à perspectiva de Gargarella sobre a censura, no sentido de que seria
prudente que o sistema penal optasse por uma reprovação desprovida de pretensões
aflitivas, a fim de promover uma censura pela responsabilização do seu autor, por meio
do diálogo entre ele, a vítima e os membros da comunidade afetada (2015, p. 214). Tal
processo comunicativo rejeitaria um enfoque moralista, sendo efetuado em sede de
uma concepção de democracia deliberativa e do reconhecimento do dano causado,
produzindo-se uma censura (juízo de reprovação sem caráter aflitivo intencional) e não
um castigo (2015, p. 114).

Assim, a segunda tese defendida é que o uso de práticas restaurativas,


previamente a qualquer intervenção penal, que se mostre capaz de permitir aos
envolvidos a construção coletiva de uma resposta ao caso penal, com a
responsabilização do ofensor e reparação, ainda que simbólica, à vítima; “e de promover
harmonização” das relações sociais, tanto com o direito quanto em relação aos
sentimentos, necessidades e expectativas destes envolvidos, tornaria juridicamente
desnecessária a persecução penal da conduta, supostamente delitiva, por falta de justa
causa.

94
2.5 Sobre os institutos jurídicos que permitem o uso de práticas restaurativas de
acordo com o entendimento majoritário

Até aqui se construiu a perspectiva de inovação quanto à ressignificação do caso


penal, como tarefa cuja gestão não deve ficar somente adstrita ao sistema de justiça.
Além disso, também se abordou a extensão do conceito de justa causa sendo que agora
a pesquisa também elencará os institutos jurídicos existentes que são aptos a
recepcionar práticas restaurativas, ainda que com algumas limitações.

O art. 89 da Lei nº 9.099/1995, por exemplo, permite que o Ministério Público,


ao oferecer a denúncia, proponha a suspensão condicional do processo por dois até
quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado, ou não tenha sido
condenado por outro crime, devendo estar presentes também os demais requisitos que
autorizariam a suspensão condicional da pena (BRASIL, 1995). Isso é possível para
questões envolvendo crimes cuja pena mínima prevista em abstrato seja igual ou inferior
a um ano, de tal maneira que, cumpridas as condições estipuladas para a suspensão do
processo durante o período de prova, a punibilidade será extinta.

O §1º, inc. I, do citado dispositivo indica a reparação do dano como condição


da suspensão, e o §2º dispõe que o juiz poderá especificar outras condições adequadas
ao fato ou à situação pessoal do acusado. Há assim a possibilidade do uso das práticas
restaurativas e os termos da suspensão condicional podem ser vinculados ao
cumprimento de acordo resultado da abordagem restaurativa.

As práticas, regidas pela voluntariedade e confidencialidade, seriam realizadas


antes da apresentação da denúncia, quando fosse o caso desta ser oferecida. Por
exemplo, quando um acordo for realizado, o agente ministerial, ao propor a ação penal,
poderia utilizar os termos acordados para formular as condições da suspensão
condicional do processo, o que se daria com maior legitimidade perante a vítima e o
ofensor, aumentando as chances do cumprimento e garantindo, ainda, que as práticas
restaurativas atuem como uma alternativa ao processo e à pena, e não como pena
alternativa.

Esta última ressalva é fundamental para a compreensão da justiça restaurativa,


visto que as práticas a ela vinculadas não podem (ou não deveriam) funcionar como uma

95
espécie de soft punishment, uma vez que são: responsabilização pautada na censura,
voluntariedade e diálogo. Isso significa dizer que seus resultados não equivalem à pena.
Primeiro porque as práticas são um rito para atingir a um fim, e não o fim de um rito; e,
segundo, porque não possuem, ou não se propõem a possuir, caráter aflitivo.

Quanto ao princípio da confidencialidade, importante apontar que tudo que é


discutido entre vítima, autor de ofensa e apoiadores, não é divulgado ao plano
institucional, a menos que todos os envolvidos acordem nesse sentido. O diálogo entre
os participantes, facilitado por pessoas previamente capacitadas a conduzir essas
práticas, mira a compreensão das várias dimensões do conflito, sendo o acordo uma
mera consequência.

No mais, embora haja uma clara distinção entre barganha penal (realizada entre
acusação e investigado) e práticas restaurativas (realizadas entre ofendido e ofensor), a
Resolução CNMP nº 181 de 2017, alterada pela Resolução CNMP nº 183 de 2018,
permite que em casos de crimes praticados sem violência ou grave ameaça, cuja pena
mínima seja de até 4 anos, como o furto qualificado e o tráfico de drogas privilegiado, e
que também se enquadrem nas demais condições dos incisos do §1º do art. 18, possam,
mediante a confissão e entrega de provas pelo investigado, ser objeto de acordo de não-
persecução penal, respeitadas as formalidades do §2º (BRASIL, 2017).

O acordo possui natureza de negócio jurídico público extrajudicial entre o


Ministério Público e o investigado, na perspectiva de buscar alternativas para conferir
respostas mais céleres e adequadas aos casos penais de baixa e média gravidade
(CABRAL, 2017, p. 15).

Nessa linha, as práticas restaurativas podem ser utilizadas, conforme permissivo


do inc. V do art. 18, se houver a concordância do ofendido e também do investigado,
hipótese em que, atingido o consenso, o cumprimento das medidas acordadas serviria
de justificativa para a satisfação do acordo, ressaltando-se que a efetiva participação do
investigado nas abordagens restaurativas deve ser considerada para o fim de abrandar
condição subsidiária do cumprimento do acordo de não-persecução penal à proposta
restaurativa caso não seja obtido o consenso (ESTADO DO PARANÁ, 2018).

96
Finalizando, a terceira tese aqui defendida é que já existem meios jurídicos,
atrelados ao entendimento majoritário, que permitem o uso de práticas restaurativas
como alternativa à persecução penal, sendo possível dar esta maior atenção às
necessidades da vítima, bem como promover a responsabilização do ofensor de modo
construtivo a partir dos exemplos citados.

3. CONCLUSÃO

Partindo das cinco premissas apontadas na introdução, conclui-se que um


modelo restaurativo purista de justiça pode operar como uma via alternativa pré-
processual de abordagem institucional de casos penais sem que haja a necessidade da
persecução penal e, consequentemente, de eventual aplicação de pena.

Isso, evidentemente, em uma perspectiva de complementariedade estrutural,


representada pela condução das práticas restaurativas se dar por órgão diverso da
acusação e do juiz natural do caso, e de uma complementariedade funcional se, a partir
de uma dedução lógica da função declarada do direito penal, compreender-se que a
harmonização das condutas e expectativas humanas de acordo com o ordenamento
jurídico representa a paz social que justifica a existência do direito e do processo penal.

Desse modo, sendo possível atingir o consenso entre os envolvidos por meio de
uma prática restaurativa voluntária, que implica na admissão da autoria do fato,
reparação ou minimização do dano, com a consequente responsabilização pública do
autor da ofensa e consequente harmonização das relações sociais, tem-se que, em
respeito ao princípio da ultima ratio há que se compreender ausente a justa causa, não
sendo necessária a persecução penal do delito, até porque o art. 28 do CPP não veda
que o titular da ação penal pública invoque razões neste sentido para arquivar uma
investigação criminal.

A justiça restaurativa ressignifica o conceito de caso penal, atentando-se para


os impactos do crime na vida das pessoas e do fato do conflito corresponder a algo digno
de transformação e não supressão. Dessa forma, o crime não é visto apenas como uma
agressão à norma penal, mas ao bem-estar e à vida dos cidadãos, de modo que estes,

97
como diretamente afetados pelo delito, devem ter a oportunidade de participar de sua
gestão de modo empoderador e dialógico, como respalda a ratio constitucional.

Ainda, mesmo que não haja adesão à proposta de ampliação do princípio da


ultima ratio e do conceito de justa causa, o ordenamento jurídico possui institutos que
tornam o sistema penal permeável ao uso de práticas restaurativas como alternativas ao
processo, ainda que em casos mais restritos.

Entende-se que os pressupostos adotados por este trabalho possam ser


questionáveis, à luz de determinadas vertentes, especialmente ligada à criminologia
crítica e do abolicionismo. Da mesma forma, um restaurativista, que fosse purista ao
extremo, também poderia questionar o quanto a interlocução entre as práticas
restaurativas e o sistema penal comprometeriam a efetiva voluntariedade das pessoas
em participar das abordagens, em razão, por exemplo, de uma coação institucional
implícita. Não se ignoram estes fatos, mas se entende que o apego à pureza da teoria,
embora contribua para a cautela no momento de se realizar escolhas, não pode barrar
avanços passíveis de serem atingidos mediante tentativas de modificar o que está posto.

Negar o sistema, por si só, não soluciona as assimetrias que ele provoca, e
apostar nas práticas restaurativas e sua interlocução com o sistema penal é uma aposta
de risco, que pode tanto culminar na inoculação de um intruso paradigmático que, aos
poucos, realizará modificações sistêmicas benéficas, freando a violência, quanto poderá
ser usada para, ainda que de modo menos potente, reproduzir a segregação e o controle
social verticalizado de maneira envernizada. Todavia, por todos os argumentos já
descritos, entendemos que esta aposta, considerando a chance de mudar o que está
posto e se aproximar dos ideais constitucionais, valha a pena ser feita.

4. REFERÊNCIAS

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101
Roselene Sonda1
Jucimeri Isolda Silveira2

ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO


DO PARANÁ NA EXIGIBILIDADE DO
DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO
ADEQUADA: UMA CONTRIBUIÇÃO DO
SERVIÇO SOCIAL

PERFORMANCE OF THE PUBLIC MINISTRY OF PARANÁ


IN THE ENFORCEABILITY OF THE HUMAN RIGHT TO
ADEQUATE FOOD: A CONTRIBUTION OF THE SOCIAL
SERVICE

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O Direito Humano à Alimentação Adequada: base legal e


desafios na sua efetividade; 2.1. Aspectos históricos e institucionais da Segurança
Alimentar e Nutricional; 3. A efetivação do Direito Humano à Alimentação Adequada no
Paraná: processo histórico e protagonismo do Ministério Público; 4. Atuação do
Ministério Público em Defesa do Direito à Segurança Alimentar e Nutricional no Paraná;
5. Considerações finais; 6. Referências.

1 Assistente Social. Atua no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos
do Ministério Público do Paraná. Pós-graduada em Filosofia e Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná - PUCPR. E-mail: rsonda@mppr.mp.br.
2 Graduada em Serviço Social pela FIES (1997), Mestre em Sociologia pela UFPR (2004) e Doutora em Serviço Social

pela PUCSP (2013). Exerceu atividades de gestão como assessora técnica – Secretaria de Estado do Trabalho Emprego
e Promoção Social. Exerceu atividades como consultora do Ministério de Desenvolvimento Social, por meio do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – Pnud, e assessora técnica do Fórum Nacional de Secretários(as)
Estaduais de Assistência Social. Foi pesquisadora no Centro Interdisciplinar de Pesquisa e Consultoria em Políticas
Públicas – CIPEC. É professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e coordenadora geral do Núcleo de Direitos
Humanos. Atua como superintendente de planejamento da Fundação de Ação Social em Curitiba. Desenvolve trabalhos
e pesquisa, especialmente, sobre os temas direitos humanos, planejamento e gestão de políticas públicas, participação,
gestão e trabalho social. E-mail: jucimeri.silveira@pucpr.br.

* A data de submissão do presente artigo foi no dia 02/04/2019 e a aprovação ocorreu no dia 14/10/2019.

102
RESUMO: Este artigo aborda o papel do Ministério Público do Paraná na efetivação do
Direito Humano à Alimentação Adequada, enquanto direito fundamental, em sintonia
com as lutas sociais democráticas, e a partir de uma concepção contemporânea de
direitos humanos. Para tanto, resgata-se o histórico de implementação da Política de
Segurança Alimentar no Brasil e no Paraná e sua conformação histórica, considerando o
papel dos movimentos e organizações da sociedade civil. O objetivo deste estudo foi
identificar a correspondência entre as previsões legais para a exigibilidade do Direito
Humano à Alimentação Adequada (DHAA) e a centralidade nas ações do Ministério
Público do Paraná na área de Direitos Humanos para o aumento das adesões municipais
ao sistema. Utilizou-se da pesquisa do tipo exploratória com a análise documental para
identificar os resultados parciais do processo de implantação do sistema nos municípios
paranaenses. Conclui-se que a atuação do Ministério Público do Paraná, realizada por
meio da execução de ações institucionais coordenadas e planejadas, em articulação com
gestores, instâncias de controle social, movimentos e organizações da Política de
Segurança Alimentar e Nutricional, e a partir de uma perspectiva crítica de Direitos
Humanos, possibilitou resultados parciais positivos, especialmente quanto o número de
adesões municipais ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN)
no Paraná. Entretanto, constata-se que é preciso fortalecer os mecanismos políticos e
institucionais democráticos, considerando as lutas em defesa do direito humano à
alimentação adequada, engendrados nas lutas mais gerais em defesa dos direitos
humanos e do Estado Democrático de Direito.

ABSTRACT: This paper addresses the role of the Public Prosecution of Paraná in the
realization of the Human Right to Adequate Nutrition, as a fundamental right, in line
with the democratic social struggles. For this purpose, it gives a historical review of the
implementation of Food Safety Policy in Brazil and in Paraná and its historic
conformation, considering the contributions of social movements and civilian
organizations. The aim of this study was to identify the correspondence between the
legal provisions for the demandability of the Human Right to Adequate Nutrition and the
action of the Public Prosecution of Paraná on the Human Rights area, in order to increase
municipal accessions to the system. The type of research used is exploratory with
document analysis in order to identify partial results of the process of implantation of
the system in municipalities of Paraná. It concludes that the action of the Public
Prosecution of Paraná, carried out in conjunction with the public policy board,
movements and organizations of the Food and Nutrition Safety Policy, through the
execution of coordinated and planned institutional actions, from a critical perspective of
Human Rights, obtained very positive partial results. However, it points out that is
necessary to strengthen political and democratic institutional mechanisms, considering
the struggles in defense of the human right to food, along with more general struggles
in defense of the Human Rights of the democratic state.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos; Alimentação Adequada; Segurança Alimentar e


Nutricional.

KEYWORDS: Human Rights; Adequate Nutrition; Food and Nutrition Safety; Public
Prosecution.

103
1. INTRODUÇÃO

Este artigo aborda a centralidade das políticas públicas e de ações institucionais,


notadamente o Ministério Público, que contribuam na materialização do Direito
Humano à Alimentação Adequada enquanto direito fundamental, portanto,
constitucionalizado e conquistado a partir das lutas sociais de movimentos e
organizações da sociedade civil. Para tanto, resgata-se o histórico de implementação da
Política de Segurança Alimentar no Brasil e no Paraná, com ênfase em sua
institucionalidade no campo das políticas públicas, a partir da atuação da sociedade civil,
de coalizações políticas, na esfera pública do Estado.

A centralidade do presente estudo está no desenvolvimento de algumas ações


por parte do Ministério Público do Paraná (MPPR) na perspectiva da exigibilidade do
direito humano à alimentação adequada. Tal finalidade subsidiou a elaboração e a
execução de projeto setorial de acompanhamento e monitoramento da adesão dos
municípios paranaenses ao Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(SISAN). Importante destacar que as medidas institucionais adotadas pelo MPPR
respondem ao desafio de consolidar o Estado Democrático de Direito e os direitos
conquistados, o que requer o fortalecimento das instâncias de controle social e os
processos democráticos de formulação e implementação de políticas públicas amplas e
permanentes, orientadas pelos princípios da universalidade e da indivisibilidade dos
direitos.

Para a realização da presente pesquisa utilizou-se da metodologia pesquisa


exploratória com a análise documental, visando a identificação dos resultados parciais
do processo de implementação do sistema nos municípios paranaenses a partir da
atuação do MPPR. Nesse sentido, o objetivo deste estudo foi identificar a
correspondência entre as previsões legais para a exigibilidade do Direito Humano à
Alimentação Adequada (DHAA) e o aumento das adesões municipais ao sistema.

A estrutura do presente artigo parte da concepção teórico-metodológica crítica


para qualificar a alimentação adequada como um direito humano; em seguida,
apresentaa o processo histórico de implementação do Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional; e identifica os resultados e desafios no papel institucional do

104
MPPR, visando a consolidação de políticas públicas e a materialização do direito humano
à alimentação adequada.

2. O DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA: BASE LEGAL E DESAFIOS NA SUA


EFETIVIDADE

A questão alimentar e nutricional se relaciona com diferentes aspectos da vida


social, cultural, política e econômica. Assim, as concepções relacionadas à segurança
alimentar e nutricional e ao Direito Humano à Alimentação Adequada foram e são
construídas socialmente e, por isso, são dinamizados pelas relações sociais e de poder,
na direção de condições políticas e institucionais na esfera pública do Estado.

O Direito à Alimentação Adequada tem origem no artigo 25 da Declaração


Universal dos Direitos Humanos e foi reafirmado no Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) em vigor desde 1976. Em seu artigo 11,
identifica-se a afirmação do dever do Estado no asseguramento do direito humano à
alimentação para todos os indivíduos. Neste contexto, em 1999, o Comitê de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas (ONU), quando da divulgação do Comentário Geral nº
12, entendeu que o direito à alimentação adequada está diretamente ligado à dignidade
inerente à pessoa humana, sendo indissociável de demais direitos humanos.

Na publicação da Secretaria de Estado do Trabalho, Emprego e Economia


Solidária, “Referencial Teórico e Metodológico para Implantação da Política e do Sistema
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional nos Municípios: experiência do Paraná”
(2013, p. 13), o direito humano à alimentação adequada se caracteriza por ser:

(...) um direito humano inerente a todas as pessoas de ter acesso


regular, permanente e irrestrito, quer diretamente ou por meio de
aquisições financeiras, a alimentos seguros e saudáveis, em
quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes às
tradições culturais do seu povo e que garantam uma vida livre do
medo, digna e plena nas dimensões física e mental, individual e
coletiva. Portanto se realiza quando todo homem, mulher e criança,
sozinho ou em comunidade com outros, tem acesso físico e
econômico, ininterruptamente, a uma alimentação adequada ou aos
meios necessários para a sua obtenção. (apud LEÃO; RECINE, 2011)

105
Este conceito se aproxima muito da definição de Ziegler (2002, apud BURITY;
FRANCESCHINI; VALENTE. p. 8), previsto no Relatório do Relator Especial das Nações Unidas
sobre o Direito à Alimentação:

O Direito à Alimentação Adequada é um direito humano inerente a


todas as pessoas de ter acesso regular, permanente e irrestrito, quer
diretamente ou por meio de aquisições financeiras, a alimentos
seguros e saudáveis, em quantidade e qualidade adequadas e
suficientes, correspondentes às tradições culturais do seu povo e que
garanta uma vida livre do medo, digna e plena nas dimensões física e
mental, individual e coletiva.

O conceito de DHAA envolve muito mais que o combate à fome e se realiza a


partir de duas dimensões indivisíveis: o direito a estar livre da fome e da má nutrição; e
o direito à alimentação adequada. Importante afirmar que a realização desse direito
somente se dará com a garantia de todos os demais Direitos Humanos, como o direito à
terra, ao meio ambiente, à saúde, à educação, à cultura, ao emprego e renda, entre
outros. Assim, diz respeito a todas as pessoas, de todas as sociedades e sua promoção e
realização envolvem elementos de transformação social e econômica, na direção da
justiça social e de práticas de promoção dos direitos; da superação do assistencialismo
e da desigualdade.

O Brasil ratificou o PIDESC em 2012, e, além do respaldo dos tratados


internacionais, constitucionalizou o direito à alimentação em 2010, por meio de uma
emenda à Constituição Federal no artigo 6º, que trata dos direitos sociais.

Com a instituição da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN)


em 2006 (Lei n. 11.346/2006), o conceito de alimentação adequada no art. 2º, foi
disposto com a seguinte redação:

A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano,


inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização
dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder
público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para
promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.

106
Dessa forma, entende-se que as bases para o conceito de DHAA são sólidas e
legitimadas pela legislação nacional e internacional. No Brasil, a efetivação dos direitos
deve se realizar pela implantação e execução de políticas públicas, com programas e
ações que incluam desde a fase do planejamento até sua implementação,
monitoramento e avaliação. No contexto do Estado Democrático de Direito,
considerando os mecanismos e dispositivos da democracia participativa, tal processo se
concretiza mediante a participação popular, o controle social, especialmente no âmbito
dos conselhos de políticas públicas.

Assim, o direito humano à alimentação adequada, numa perspectiva


contemporânea e crítica, requer, especialmente: a definição legal, normatividade
jurídica; a materialização deste direito na vida da população, com alteração positiva de
suas condições de vida; a indissociabilidade com demais direitos; o enfrentamento da
desigualdade; a participação social, com atuação e incidência dos movimentos sociais; e
um projeto emancipatório que oriente as práxis (LIMA; SILVEIRA, 2016).

Dentre os desafios postos ao pensamento crítico na América Latina, destaca-se a


necessária identificação das pegadas coloniais contidas nos planos normativos e
culturais dos direitos humanos evitando-se, assim, a mera recepção acrítica de "modelos
intelectuais ocidentais, que dispensa o processo de recepção criativa, [produção de
discurso próprio]”. (CARBALLIDO, 2014, p.46). Segundo o autor, a teoria crítica
reconhece a complexidade da vida social e busca compreender, intervir, transformar e
orientar escolhas numa direção emancipatória. Para além do esforço em estabelecer
relações entre conceitos, as teorias produzem "consequências práticas nos distintos
âmbitos da ação". Este é o caso, por exemplo, das concepções reducionistas (legalistas)
dos direitos humanos que servem à consagração dos sistemas normativos geridos pelo
Estado, sem o acompanhamento de sua efetiva proteção (mecanismos de garantia). A
efetivação dos direitos humanos implica, do ponto de vista da teoria crítica, a
combinação “de um processo bastante complexo no qual se intervém aspectos
normativos, políticos, ideológicos, sociais, culturais e econômicos". (CARBALLIDO, 2014,
p.48). A efetivação de tais direitos, que não se esgotam nos processos de judicialização
internacional e nacional, supõe, portanto, desconstruir a cultura de insensibilidade
coletiva reinante (LIMA; SILVEIRA, 2016).

107
Tal concepção coincide com o pensamento de Gallardo sobre “o que se diz e o
que se faz” em direitos humanos, isto é, a disparidade entre as previsões legais, formais,
e a realidade da maioria da população, da classe trabalhadora, daqueles que vivem as
consequências das “pegadas da colonização”. A partir desta concepção de direitos
humanos, a sociedade civil não se caracteriza, tão somente, como um espaço de
interesses da sociedade burguesa, mas como espaço conflituoso e no âmbito dos
movimentos sociais emergentes, bem diferente da “sociedade civil” da produção
moderna que acabou se tornando um braço do Estado, mas constituída historicamente
como espaço de ação e desafios às instituições e o éthos sociopolítico dominante
(GALLARDO, p. 43-46).

A compreensão dos direitos humanos como sendo resultado das lutas sociais
pela dignidade, como afirma Herrera Flores (2009), além de ressaltar o papel central das
organizações da sociedade civil, dos movimentos sociais, pressupõe a implementação de
condições políticas e institucionais na esfera pública do Estado. No caso do direito
humano à alimentação, tal efetividade requer a consolidação da Soberania e da
Segurança Alimentar e Nutricional, por meio, sobretudo, de políticas públicas.

2.1 Aspectos históricos e institucionais da Segurança Alimentar e Nutricional

Historicamente, a segurança alimentar foi tratada apenas como insuficiência de


disponibilidade de alimentos, principalmente após a Primeira e a Segunda Guerra
Mundial. A partir deste entendimento, surgiram iniciativas para o aumento da produção
de alimentos com o uso de plantas geneticamente modificadas, associado a aplicação
de fertilizantes e pesticidas com sementes altamente dependentes de insumos químicos.
A denominada Revolução Verde tinha por objetivo principal a apropriação do excedente,
ao tempo em que atendia aos interesses do mercado e do agronegócio.

As consequências desse modelo de produção de alimentos foram conhecidas


pelo seu impacto ambiental, econômico e social, com redução da biodiversidade,
contaminação do solo e dos alimentos pelo uso dos agrotóxicos. Neste contexto,
percebe-se a evidente lógica do mercado lucrativo, sem alterações dos padrões que
reproduzem a fome em grande parte do mundo, resultando em aprofundamento da

108
injustiça social e da desigualdade social e de direitos, sobretudo pela falta de acesso à
terra, insuficiência de renda para compra de alimentos (ABRANDH, 2013).

Na década de 1970, a partir da crise mundial de produção de alimentos, ocorreu


a Conferência Mundial de Alimentação, momento em que se identifica que a garantia da
segurança alimentar consistia na implementação de uma política estratégica de
armazenamento e oferta de alimentos, além do aumento da produção, com foco no
produto. Neste mesmo tempo histórico, chegava no Brasil a chamada a Revolução Verde,
com a ampliação da produção de soja e outros alimentos, gerando excedentes de
produção e aumento de estoques, sem que isso impactasse na oferta de alimentos para
um grande contingente de pessoas (ABRANDH, 2013).

Na década de 1980, o conceito de segurança alimentar avançou e foi relacionado


diretamente com a garantia de acesso físico e econômico aos alimentos e aos meios de
produzi-los, o que supõem, especialmente, o direito à terra e à renda. Este processo está
relacionado ao ativismo político de organizações da sociedade civil.

A partir da década de 1990, ocorrem avanços importantes em termos da


concepção de segurança alimentar pela incorporação de noções de acesso a alimentos
seguros, não contaminados (biológica e quimicamente), produzidos de forma
sustentável e com respeito a cultura alimentar da população.

O direito humano à alimentação adequada inscrito na Declaração Universal dos


Direitos Humanos (1948) e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais (PIDESC) (1966) teve como grande marco histórico e político a realização da
Conferência Internacional de Direitos Humanos de Viena (1993). O conceito evoluiu
tanto no âmbito internacional, quanto nacional, e passou a se caracterizar como um
processo. (ABRANDH, 2013).

No Brasil, o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) vem sendo


debatido historicamente. Sua consolidação legal se deu por ocasião da II Conferência
Nacional de SAN, realizada em Olinda, Pernambuco, em 2004. É, portanto, fruto de
processos de lutas, de articulações e atuação de movimentos e organizações da área,
como o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional, criado em 1998,
replicado posteriormente por muitos Estados brasileiros, como sendo um espaço de

109
debate e articulação de entidades, instituições, movimentos sociais da sociedade civil
organizada.

Outras dimensões foram incorporadas ao conceito de SAN, como o conceito de


soberania alimentar, surgido pela atuação e incidência dos movimentos sociais
camponeses em resposta às políticas agrícolas neoliberais desenvolvidas em todo o
mundo. Esses movimentos sociais, ainda na década de 1990, contestavam o conceito de
Segurança Alimentar e Nutricional imposto pela Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO) em 1996, que limitava-se apenas à garantia do
alimento sem considerar as condições e os processos de produção, visto que favoreceu
o agronegócio, entendido como um modelo de produção agrícola baseado em
monocultivos em grandes extensões de terra, com pouca utilização de força de trabalho
e caracterizada pelo uso de agrotóxicos. (CAMPOS apud ABRANDH, 2013)

Assim, a concepção de Segurança Alimentar e Nutricional se amplia, no sentido


de garantir o respeito às múltiplas características culturais, a autonomia e a soberania
das nações em definir políticas que garantam a segurança alimentar e nutricional de seus
povos, a partir da preservação de práticas de produção e alimentares tradicionais, com
bases ambientais, econômicas, sociais e sustentáveis. Desse modo, a vida, a autonomia
e as condições de trabalho dos agricultores familiares e camponeses estão
intrinsecamente ligados ao conceito de soberania alimentar.

No Brasil, a política de SAN foi instituída pelo artigo 3º, da Lei n. 11.346/2006,
intitulada Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional:

Segurança Alimentar e Nutricional consiste na realização do direito de


todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em
quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras
necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares
promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam
ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.

Dessa forma, entende-se que os conceitos apresentados se articulam entre si, e


possuem convergência, sendo, portanto, interdependentes. Nesse sentido, o conceito
de Segurança Alimentar e Nutricional se caracteriza como uma conquista e foi

110
implementado no Brasil em tempos de avanços do Estado brasileiro em termos de
políticas públicas, pois a garantia e a promoção do DHAA acabou se tornando objetivo e
meta de uma Política Pública.

Exigir a efetividade dos Direitos Humanos requer a adoção e a apropriação de


uma linguagem e uma abordagem inseridas na cultura e nas políticas públicas. Portanto,
a ação da exigibilidade deve ser exercida pelos titulares dos direitos perante o Estado. A
finalidade principal neste processo é a criação e a implementação de mecanismos e de
instrumentos que tornem esse direito reconhecível no âmbito Executivo, Legislativo e
Judiciário.

A base legal para a exigibilidade dos direitos humanos está presente e


fundamentada nos Tratados Internacionais ratificados pelos Estados e em normas
constitucionais, leis e dispositivos administrativos. Os Estados, ao reafirmarem os
tratados internacionais, reconhecem a obrigação de elaborar leis e políticas públicas;
desenvolver ações que promovam a equidade e reduzam desigualdades; e de não tomar
qualquer medida que ameace ou viole os Direitos Humanos.

Em termos de Direitos Humanos, as obrigações recaem sobre o Estado, visto que


este controla os recursos públicos. Assim, é obrigação do Estado usar este poder para:
não violar os direitos humanos dos habitantes de seu território (respeito); proteger os
direitos humanos dos habitantes de seu território contra violações (proteção); promover
ações que reduzam a discriminação e as desigualdades sociais (promoção); e garantir
que todos os seres humanos vivam com dignidade, mesmo em situações adversas que
fogem ao controle (provimento) (BURITY; FRANCESCHINI; VALENTE, 2007)

Dessa forma, a defesa e proteção ao Direito Humano à Alimentação Adequada e


aos Direitos Humanos deve “seguir o entendimento de que sempre que esse direito não
é respeitado, protegido, promovido ou provido, estão ocorrendo violações ao DHAA, por
ação ou omissão”. Nesse caso, é necessário “criar mecanismos de exigibilidade para que
estas violações sejam reparadas”. Importante ressaltar que tais violações ocorrem com
muito mais frequência com a população socialmente excluída do acesso aos bens,
serviços e poder, em contextos e situações que ensejam violações diversas e
vulnerabilidades. (BURITY; FRANCESCHINI; VALENTE, 2007, p.9)

111
Segundo os artigos 2º e 11º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (PIDESC), o Estado tem a obrigação de efetivar o DHAA e dentre estas
estão:

a) obrigação de adotar medidas, com o máximo de recursos


disponíveis, para realizar progressivamente o Direito Humano à
Alimentação Adequada;

b) obrigação de adotar as medidas necessárias para assegurar o direito


fundamental de todos de estarem livre da fome;

c) obrigação de não discriminação.

Esses artigos expressam obrigações do Estado e responsabilidades dos diferentes


atores sociais envolvidos na realização desse direito, o que condiciona uma relação entre
titulares de direitos e portadores de obrigações.

No Brasil, os principais marcos históricos e normativos que conformaram o DHAA


e a Segurança Alimentar e Nutricional, iniciaram em 1932 com o lançamento do
inquérito de denúncia feito por Josué de Castro intitulado “As condições de vida das
classes operárias no Recife”, com relato da situação de extrema pobreza e fome da
população. Após este acontecimento, em 1973 e 1976, vieram o I e o II Programa
Nacional de Alimentação e Nutrição (I e II PRONAN) e o Programa de Alimentação do
Trabalhador (PAT), sendo este último coordenado pelo Ministério do Trabalho.

Em 1986, foi realizada a Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição no


âmbito da 8ª Conferência Nacional de Saúde. A década de 1990, por sua vez, foi marcada
por diversos acontecimentos que visibilizaram os processos de lutas relacionados ao
Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), como o lançamento, pelo Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), do Mapa da Fome produzido em 1992, que
denunciou a situação de fome de 32 (trinta e dois) milhões de pessoas no Brasil. Em
1993, uma das ações mais significativas foi a “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria
e pela Vida”, cujo principal líder foi Herbert de Souza (Betinho), sob o lema “A fome não
pode esperar”. Destaca-se, ainda, a aprovação da proposta de criação do primeiro

112
Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), no governo do então Presidente
Itamar Franco.

Em 1994, realizou-se a I Conferência Nacional de Segurança Alimentar com a


difusão do documento intitulado “Declaração em defesa de uma Política Nacional de
Segurança Alimentar”, com a produção diretrizes para uma Política Nacional de
Segurança Alimentar. Entretanto, em 1995, é possível identificar retrocessos desse tema
na agenda nacional, pois, o governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso
extinguiu o primeiro CONSEA nacional e no lugar criou o Comitê Setorial de Segurança
Alimentar e Nutricional no âmbito do Conselho da Comunidade Solidária. Ainda neste
ano, foi criado o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
Apesar da realidade de retrocessos, a sociedade civil manteve forte mobilização em
torno do tema da segurança alimentar e nutricional, e no ano de 1998 foi criado o Fórum
Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN), que em 2009 passou a ser
designado como Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
(FBSSAN), como desdobramento da mobilização social e com repercussão nas esferas
estadual e municipal.

A década de 2000 expressou avanços mais significativos para a Segurança


Alimentar e Nutricional com o lançamento, em 2001, do Programa Fome Zero, uma
política nacional de Segurança Alimentar para o Brasil, pelo Instituto Cidadania, que se
tornou mais tarde a base do Programa Fome Zero e do Programa Bolsa Alimentação,
coordenados pelo governo federal.

Em 2003, no governo do então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi recriado o
CONSEA Nacional, lançado o Programa Fome Zero, instituído o Ministério Extraordinário
de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA) e o Programa de Aquisição de
Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), o qual promove o fortalecimento da agricultura
familiar, ao mesmo tempo em que beneficia populações em situação de insegurança
alimentar.

Em 2004, foi criado o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome


(MDS), que transformou o MESA em Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (SESAN); realizada a II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (CNSAN); e criado o Programa Bolsa Família (PBF) pelo Governo Federal, no

113
âmbito da política da Assistência Social, programa este que contribuiu
consideravelmente para a superação da vulnerabilidade social, pela provisão de serviços
e benefícios, além de objetivar o acesso às demais políticas públicas e o
desenvolvimento local.

Em 2006, foi aprovada a Lei n° 11.346 (LOSAN), que criou o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), representando a consagração de uma
concepção abrangente e intersetorial da segurança alimentar e nutricional, de modo a
incluir o conceito de Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA).

Em 2008, instalou-se a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e


Nutricional (CAISAN) como instância do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (SISAN), sob a coordenação do Ministro de Estado do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome.

Finalmente, em 2010, após a campanha de 2009 denominada “Alimentação:


direito de todos”, promovida pelo CONSEA, ocorreu a aprovação da proposta de Emenda
Constitucional (PEC) n° 047/2003 pelo plenário da Câmara dos Deputados em segundo
turno, incluindo explicitamente no artigo 6° a alimentação entre os direitos sociais da
Constituição Federal de 1988. Neste mesmo ano, em 25 de agosto de 2010, o Presidente
da República regulamentou a Lei n° 11.346 (LOSAN) e instituiu a Política Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), definindo diretrizes e objetivos e dispondo
sobre a sua gestão, mecanismos de financiamento, monitoramento e avaliação, no
âmbito do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN).

Assim, quanto a exigibilidade do DHAA no Brasil, é importante destacar que:

Em nível nacional, os titulares do direito devem ter a possibilidade de


exigir a realização de seus direitos e reclamar sobre a existência de
violações ao DHAA junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário
por meio de instrumentos de exigibilidade: Administrativos; Políticos;
Quase Judiciais e Judiciais. (BURITY; FRANCESCHINI; VALENTE, 2007, p.
15 e 16)

Importante destacar que a exigibilidade política do direito humano à alimentação


adequada se refere a possibilidade de incidir junto aos órgãos de gestão das políticas

114
públicas e dos programas no âmbito do poder executivo, incluindo instâncias de controle
social e organismos de gestão compartilhada, ou ainda, junto ao poder legislativo, por
meio da cobrança e denúncias de violações às Comissões de Direitos Humanos, assim
como a elaboração de projetos de lei. Em resumo, expressa uma conduta política e
institucional que demanda respostas de agentes políticos, contemplando a participação
social e os princípios fundantes dos Direitos Humanos.

Já a exigibilidade administrativa se caracteriza pela reclamação direta por parte


dos titulares do direito aos organismos públicos responsáveis pela garantia e promoção
do DHAA, bem como a prevenção, correção ou reparação das ameaças ou violações a tal
direito. A exigibilidade em fase administrativa, portanto, compreende a exigência dos
direitos junto a órgãos do sistema de justiça, que não fazem parte do poder judiciário,
mas que possuem atribuições e prerrogativas constitucionais para atuar na indução e na
fiscalização de políticas públicas, por meio de instrumentos legitimados, como
requisições de informações, recomendações e outros dispositivos, ou ainda, em última
instância, acionam a Justiça, como é o caso do Ministério Público.

Já a exigibilidade judicial importa no acionamento direto ao Poder Judiciário, por


meio de Ações Civis Públicas, instrumentos processuais de defesa de direitos difusos e
coletivos, constitucionalmente legitimados para serem utilizado pelo Ministério Público,
assim como por pessoas jurídicas da administração pública, direta e indireta, associações
e organizações não governamentais, conforme a Lei n.º 7.347 de 1985.

O Estado brasileiro tem gerido políticas públicas por meio de sistemas integrados
e participativos, possibilitando à sociedade civil, o monitoramento, como por exemplo o
Sistema Único da Saúde – SUS e o Sistema Único da Assistência Social – SUAS. Assim,
também ocorreu com a política de segurança alimentar e nutricional, que criou no
âmbito da execução de políticas públicas, o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional – SISAN (Lei nº 11.346/2006-LOSAN), e dispôs em seu artigo 10, sobre os
objetivos do Sistema:

O SISAN tem por objetivos formular e implementar políticas e planos


de segurança alimentar e nutricional, estimular a integração dos
esforços entre governo e sociedade civil, bem como promover o

115
acompanhamento, o monitoramento e a avaliação da segurança
alimentar e nutricional do País.

Esse sistema, previsto na LOSAN, foi a forma eleita pelo Estado brasileiro de
assegurar o DHAA e sua consecução se deu no artigo 7º, ao prever que os órgãos
governamentais de todos os entes federados e as organizações da sociedade civil devem
“atuar para a formulação e implementação de políticas, planos, programas e ações a fim
de promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população” (ABRANDH,
2013, p. 153).

São instâncias do SISAN, definidas na LOSAN: a) A Conferência Nacional de SAN;


b) O CONSEA Nacional; c) A CAISAN Nacional; d) Os governos, órgãos e entidades da
União, Estados, Distrito Federal e Municípios e as Instituições Privadas, com ou sem fins
lucrativos que atuem em SAN e desejem integrar o Sistema.

A Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), tanto em âmbito


nacional como estadual ou municipal, é a instância responsável pela avaliação e
construção de diretrizes e prioridades para a política e o plano de segurança alimentar e
nutricional.

O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) é a


instância de articulação entre o governo e a sociedade civil na área de SAN e sua
composição se diferencia de outros Conselhos de Políticas Públicas, pois, de acordo com
o artigo 11, § 2º, da LOSAN, deve respeitar os seguintes critérios: 1 (um) terço de
representantes governamentais; 2 (dois) terços de representantes da Sociedade Civil,
escolhidos a partir dos critérios de indicação aprovados em conferência; e observadores,
incluindo-se representantes de outros conselhos, organismos nacionais e internacionais
e do Ministério Público. As presidências do conselho serão sempre exercidas por
representantes da sociedade civil.

A Câmara Intersetorial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) é uma


instância governamental e intersetorial que deve funcionar sempre em articulação com
o CONSEA, na elaboração de diretrizes, metas, fontes de recursos, coordenação e
execução da Política e do Plano, além de dar encaminhamento às proposições das
conferências e do CONSEA.

116
O Sistema atende aos seguintes princípios, elencados no art. 8º da LOSAN:
universalidade e equidade no acesso à alimentação adequada, sem qualquer espécie de
discriminação; preservação da autonomia e respeito à dignidade das pessoas;
participação social na formulação, execução, acompanhamento, monitoramento e
controle das políticas e dos planos de segurança alimentar e nutricional em todas as
esferas de governo; e transparência dos programas, das ações e dos recursos públicos e
privados e dos critérios para sua concessão.

Já as diretrizes do Sistema estão previstas no artigo 9º: promoção da


intersetorialidade das políticas, programas e ações governamentais e não-
governamentais; descentralização das ações e articulação, em regime de colaboração,
entre as esferas de governo; monitoramento da situação alimentar e nutricional, visando
a subsidiar o ciclo de gestão das políticas para a área nas diferentes esferas de governo;
conjugação de medidas diretas e imediatas de garantia de acesso à alimentação
adequada, com ações que ampliem a capacidade de subsistência autônoma da
população; articulação entre orçamento e gestão; e estímulo ao desenvolvimento de
pesquisas e à capacitação de recursos humanos.

Para aderir ao SISAN, os municípios devem criar ou regulamentar a Lei Orgânica


Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional; instituir o Conselho Municipal de
Segurança Alimentar e Nutricional, com a realização de fórum para indicação de
conselheiros da sociedade civil até que se realize a conferência de SAN; criar a Câmara
Intersetorial Municipal de SAN (composta por gestores das secretarias mais afetas à área
de SAN); providenciar um termo de compromisso de elaboração do plano municipal de
SAN no prazo de um ano. Caso o município já tenha criado o CONSEA, poderá instituir
os demais componentes do SISAN via decreto municipal ou revogar a lei de instituição
do CONSEA e propor outra que contemple todos os componentes. A orientação do
Departamento de Segurança Alimentar e Nutricional/SEAB-PR e do MPPR é para que,
preferencialmente, os componentes do SISAN sejam instituídos por lei, visto que
Decretos são passíveis de anulação.

A implementação da LOSAN desencadeou processos diferenciados nos Estados e


municípios, considerando os contextos locais e regionais e as conjunturas de avanços e
retrocessos. Tal descentralização política e administrativa do sistema nacional implica na

117
implementação de políticas públicas e na efetiva participação da sociedade civil e se
torna mais efetiva com a atuação de organismos públicos como o Ministério Público,
quando cumpre sua função na defesa e garantia do direito humano à alimentação
adequada.

3. A EFETIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA NO PARANÁ:


PROCESSO HISTÓRICO E PROTAGONISMO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O processo de implementação da política de segurança alimentar e nutricional


no Paraná iniciou-se com a criação do Conselho Estadual de Segurança Alimentar e
Nutricional (CONSEAPR) pelo Decreto nº 1.556/2003 e da Coordenadoria de
Enfrentamento à Pobreza e Combate à Fome, responsável pela gestão dos programas de
SAN instituídos pelo governo federal, bem como de programas de iniciativa estadual,
como o Programa Leite das Crianças. Tais ações ficaram abrigadas na Secretaria de
Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social (SETP).

Em maio do mesmo ano de 2003, efetivou-se, por diversos segmentos da


sociedade civil paranaense, o Fórum Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional
(FESAN-PR, atualmente denominado Fórum Estadual de Soberania e Segurança
Alimentar e Nutricional, ou FESSAN-PR), organização fundamental e de representação
significativa no cenário paranaense com o objetivo de contribuir na construção
participativa da Política de SAN. Este Fórum foi responsável pela indicação da primeira
gestão do CONSEA-PR em 2004, quando ocorreu a I Conferência Estadual de Segurança
Alimentar e Nutricional – I CESAN (SETP, 2010, p. 12).

Em 2006, realizou-se a II CESAN e em 2007 foi formada uma Frente Parlamentar


de SAN, no âmbito legislativo, que junto ao CONSEA-PR encaminhou a proposta de Lei
Estadual de instituição da Política Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (PESAN).
Após esse movimento articulado entre a sociedade civil, atores políticos de defesa de
direitos humanos e a gestão de SAN no Paraná, a Lei Estadual nº 15.791 de 04 de abril
2008, que dispõe sobre a Política de Segurança Alimentar e Nutricional do Paraná, foi
sancionada.

118
Em 31 de agosto de 2010, foi sancionada a Lei Estadual nº 16.565/2010, que criou
o Sistema Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), com a instituição, em
16 de novembro do mesmo ano, da Câmara Governamental Intersetorial de Segurança
Alimentar do Paraná (CAISAN-PR).

Finalmente, em 2011, o governo do Estado do Paraná assinou a adesão ao SISAN,


tendo realizado conferências municipais e vinte conferências regionais de SAN, que
precederam a III CESAN e elegeram os membros das Comissões Regionais de SAN, órgão
colegiado vinculado ao CONSEA-PR, objetivando a descentralização das ações e a
consolidação da política de SAN.

Concomitante aos acontecimentos descritos no âmbito estadual, o Ministério


Público do Paraná, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Direitos
Constitucionais (atual Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de
Proteção aos Direitos Humanos ou CAOPJDH), iniciou sua atuação neste tema e entre os
anos de 2011 e 2013, já com algumas iniciativas nesse processo de construção, passou
a delimitar sua ação na área, com a criação de um eixo de atuação, atualmente
denominado Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Tais iniciativas estão
demonstradas numa publicação organizada pela Secretaria de Estado do Trabalho,
Emprego e Economia Solidária em 2013, denominada “Referencial Teórico e
Metodológico Para Implantação da Política e do Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional nos Municípios. A Experiência do Paraná”, que descreve:

O compromisso em efetivar esse processo, que muito já avançou, mas


que ainda demanda inúmeros desafios vem sendo cumprido com a
adesão de outras instâncias, como o Ministério Público do Estado do
Paraná que já estabeleceu área específica de atuação junto à
Promotoria Pública, em todas as Comarcas do Poder Judiciário para
promoção do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA),
direito este considerado como fundamental, pois garantido na
Constituição Federal (2013, p. 34).

Assim, a implementação do SISAN no Paraná contou com esforços coletivos de


todos os atores já nominados desta política, bem como do Ministério Público do Paraná
que passou a acompanhar a política de Segurança Alimentar e Nutricional do Paraná de

119
forma mais sistemática no ano de 2011. Esse primeiro esforço coletivo se realizou entre
os anos de 2012 e 2013, quando foi realizada uma Oficina Estadual de Segurança
Alimentar e Nutricional, que reuniu 137 participantes e realizou 36 Oficinas Regionais
em duas etapas, com a participação de 4.290 atores comprometidos com a implantação
do SISAN. (SETP, 2013, p. 51)

A partir desse contexto, até os dias atuais, o Ministério Público, em atuação


inédita no Brasil, passou a intensificar sua atuação na área, com intervenções
institucionais em diversas frentes e em âmbito extrajudicial.

As atribuições do Ministério Público no Estado brasileiro estão consignadas no


artigo 127 da Constituição Federal de 1988, que dispõe: o Ministério Público é “uma
instituição permanente, essencial a função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais
indisponíveis”. Além disso, lhe foi garantida atuação independente e desvinculada dos
três Poderes, com asseguramento de autonomia funcional, administrativa e financeira.

A partir dessa legitimidade constitucional e a consequente ampliação de suas


atribuições, o Ministério Público brasileiro e o Ministério Público do Estado do Paraná
em especial, instituiu órgãos auxiliares, como os Centros de Apoio Operacionais, para
o apoio técnico e assessoria às Promotorias de Justiça, constituídas como órgãos de
execução da instituição. Esta organização possibilitou a criação de uma estrutura
político-administrativa mais adequada para atender as novas demandas
constitucionais, ampliando o quadro de servidores com profissionais de nível superior
e de formação diferenciada da área do Direito, como por exemplo o Serviço Social,
que passou a compor a instituição em 1989. Importante ressaltar que o Projeto Ético-
Político da profissão em muito se aproxima da missão institucional do Ministério
Público, como foi demonstrado no primeiro documento produzido e apresentado à
instituição, pelo Grupo de Estudos dos Assistentes Sociais do MPPR (GEAS-MP),
intitulado “O Serviço Social no Contexto do Ministério Público”, em 1998:

[...] Com a aprovação de seu Código de Ética de 1993, os Assistentes


Sociais, lastreados nos pressupostos acima enunciados, assumem um
firme compromisso com a defesa e o aprofundamento da democracia,

120
enquanto ampliação da participação política e distribuição equitativa
da riqueza socialmente produzida.

Vale destacar que esse compromisso ético dos Assistentes Sociais com
a democracia, a cidadania, a liberdade, o pluralismo e com uma vida
digna para cada brasileiro encontrará amplo respaldo nos
fundamentos da República Federativa do Brasil, contidos na
Constituição Federal de 1988, que por sua vez constitui-se também na
fonte da legitimidade do Ministério Público. (1998, p. 03)

Nesta estrutura, atualmente, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias


de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos tem o locus institucional voltado para a
defesa de Direitos Humanos, sendo que um dos eixos de atuação deste CAOPJDH se
refere a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada. O eixo conta com
equipe interdisciplinar nas áreas do Direito e Serviço Social e é composta por um
Procurador de Justiça 3 , um Promotor de Justiça; uma Assessora Jurídica; uma
Assistente Social; um estagiário de Pós-Graduação e outro de Graduação na área do
Direito.

Dentre as ações institucionalizadas por procedimentos administrativos do eixo


estão: acompanhamento do orçamento e recursos destinados à política de SAN;
acompanhamento dos efeitos dos agrotóxicos contidos na alimentação humana pelos
poderes públicos diante dos desafios do II Plano Estadual de SAN; monitoramento do
cumprimento da Lei nº 16.751/2010, no âmbito do ensino fundamental e médio do
Paraná (alimentação escolar 100% orgânica) 4 ; acompanhamento sistemático das
reuniões e comissões do CONSEA-PR; implementação de dois projetos setoriais,
relacionado ao monitoramento do cumprimento dos 30% dos recursos do Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para compra de produtos oriundos da
agricultura familiar; e acompanhamento e monitoramento dos municípios
paranaenses ao SISAN, referência deste estudo.

3 Olympio de Sá Sotto Maior Neto, coordenador do Centro de Apoio e Procurador-Geral de Justiça em quatro
mandatos.
4 Esta intervenção ensejou a criação do Grupo de Trabalho Intersetorial Estadual – GTI-E, por meio do Decreto n° 9117
de 2018, que está elaborando a proposta de regulamentação da Lei.

121
4. ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DO DIREITO À SEGURANÇA
ALIMENTAR E NUTRICIONAL NO PARANÁ

O Ministério Público do Paraná tem atuado na defesa e proteção do Direito


Humano à Alimentação Adequada (DHAA) desde 2011. Porém, tal atuação se tornou
mais efetiva a partir da implementação de projetos setoriais que possibilitaram uma
atuação planejada e monitorada. O projeto setorial “Direito Humano à Alimentação
Adequada e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE” trouxe, no ano de
2018, alguns resultados significativos com a intervenção das Promotorias de Justiça
nas comarcas do Paraná envolvidas no projeto, como uma redução significativa do não
cumprimento do artigo 14, da Lei nº 11.497/2009 (PNAE), por parte do Estado e
Municípios, que se refere a obrigatoriedade em utilizar no mínimo 30% dos recursos
da alimentação escolar na compra de gêneros alimentícios oriundos da agricultura
familiar.

O projeto setorial “Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema


Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN”, foco desta pesquisa, foi
formulado em 2016, no âmbito do Ministério Público, a partir de ações que iniciaram
em 2014, com a instauração de um Procedimento Administrativo 5 , tendo sido
institucionalizado pela Subprocuradoria-Geral de Justiça para Assuntos de
Planejamento Institucional em 2017. O projeto tem como objetivo “atuar na
implementação, acompanhamento e monitoramento da adesão ao Sistema Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN pelos municípios paranaenses”. O
projeto estabelece macro etapas metodológicas para seu desenvolvimento, das quais
destacam-se a macro etapa 4: “realização de palestras em oficinas regionais de
capacitação dos agentes públicos municipais, em conjunto com as CORESANS -
Comissões Regionais de Segurança Alimentar e Nutricional, e CONSEA”, para fomentar
a adesão dos municípios ao SISAN e orientar na elaboração do Plano Municipal de
Segurança Alimentar”; e a macro etapa 5: “levantamento dos resultados das oficinas
através da atualização do quadro de municípios que aderiram ao SISAN (relatório
periódico)” (CAOPJDH/MPPR, 2018, fls. 1432-1435).

5 Procedimento Administrativo MPPR-0046.14.010558-9.

122
Após a realização da macro etapa 4, ficou sob a responsabilidade do Serviço
Social o acompanhamento da macro etapa 5, e para tal, foram realizados
levantamentos, sistematizações e análises de informações contidas no procedimento,
a saber: respostas dos Núcleos Regionais da Secretaria de Estado da Agricultura e
Abastecimento (SEAB-PR) e das CORESANS, oficiadas pelo CAOPJDH em 2016 e 2017
em ocasião da adesão dos municípios ao SISAN; tabela atualizada e encaminhada pela
CAISAN Estadual, contendo uma lista de municípios com adesão concluída e/ou em
processo de adesão, até 19 de agosto de 2018; tabela sistematizada e elaborada pela
equipe técnica do CAOPJDH, contendo quadro comparativo das informações de
adesões advindas de duas fontes oficiais; relatório de avaliação das oficinas realizadas,
elaborado pela UNESP-SP, instituição de ensino superior contratada por meio de
convênio com o governo federal, para a realização das oficinas ocorridas entre maio e
setembro de 20176.

A representação do MPPR nas oficinas realizadas em parceria com o gestor


estadual, a UNESP-SP e as instâncias de controle social da política de SAN abordaram
o tema “Direito Humano à Alimentação Adequada e o Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional – SISAN”, explicitando ao público-alvo presente 7 as bases
legais para a efetivação do DHAA, incluindo a legislação nacional e os tratados
internacionais.

O posicionamento institucional teoricamente fundamentado, repassado aos


gestores municipais foi de que, embora a Lei nº 11.346/2006, que instituiu o SISAN,
não estabeleça dispositivos que obrigam os municípios a aderirem ao sistema, a
obrigação em garantir o DHAA permanece como sendo um dever do Estado e direito
da população. Dessa forma, a escolha pela adesão ao SISAN se configura como a
melhor alternativa para esta garantia, tendo em vista a existência de mecanismos e
instrumentos já instituídos e regulamentados pelo aparelho estatal por meio do SISAN.

Neste contexto, foram realizadas 22 (vinte e duas) oficinas de capacitação de


gestores municipais com o objetivo de fortalecer o SISAN. Ressalta-se que a

6 UNESP. Relatório Oficinas: Fortalecimento do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) nos
Estados de São Paulo e Paraná e seus respectivos municípios. Cord. Maria Marques de Oliveira.
7 Segundo o relatório da UNESP-SP, participaram das oficinas 1.470 pessoas, em sua maioria gestores municipais.

123
oportunidade em realizar esta ação institucional surgiu a do acompanhamento do
MPPR das reuniões do CONSEA-PR, espaço democrático de exercício do controle social,
instância em que o Ministério Público exerce o seu papel constitucional de fiscalizar
políticas públicas, articulando e acolhendo demandas da sociedade.

A incidência do MPPR nas oficinas se deu da seguinte forma: a participação


presencial, ocorreu em 9 (nove) oficinas e contou com exposições de Promotoras/es
de Justiça e Servidoras/es do MPPR; em 6 (seis) oficinas, o material preparado pela
equipe técnica do Centro de Apoio foi disponibilizado e apresentado pela própria
UNESP-SP; em outras 5 (cinco) oficinas, essa participação se deu por vídeo-aula8. O
material elaborado pela equipe técnica do projeto, só não foi apresentado em 1 (uma)
das 22 (vinte e duas) oficinas regionais realizadas.

Analisando os resultados da execução da macro etapa 4 (quatro) do projeto,


especificamente quanto a mudanças no quadro de adesão dos municípios paranaenses
ao SISAN, observa-se que os esforços conjuntos do Estado e sociedade civil, contando
com incidências apenas pontuais do Ministério Público para a implementação do SISAN
no Paraná, alcançou, em dez anos, a adesão de 78 (sessenta e oito) dos 399 (trezentos e
noventa e nove) municípios paranaenses.

Após a realização das oficinas e diante da participação mais efetiva do MPPR,


com uma ação institucional estratégica e em parceria com os atores da política de SAN,
constatou-se que 45 (quarenta e cinco) municípios tiveram adesões publicadas em
Diário Oficial. Isto é, houve uma mobilização do Estado e dos gestores municipais
visando finalizar os processos de adesão já iniciados, mas com pendências e/ou maior
agilidade para início e fim do processo de adesão. Somam-se a estes mais 51
(cinquenta e um) municípios em processo avançado de adesão9, também mobilizados
após a realização das oficinas.

Dessa forma, tendo como referência os 45 (quarenta e cinco) municípios que


haviam encerrado, mais os 51 (cinquenta e um) municípios em processo avançado de

8 Elaborado pela Promotora de Justiça Ana Paula Pina Gaio, disponibilizado pela FEMPAR no link:
https://vimeo.com/225403870 (vídeo privado).
9 São considerados em processo avançado de adesão, municípios que já instituíram todos os componentes necessários
para adesão.

124
adesão, pode-se afirmar que, após a incidência do Centro de Apoio nas oficinas, o
número de adesões municipais ao SISAN no Estado do Paraná aumentou de 78
(setenta e oito) para 174 (cento e setenta e quatro) municípios. Tais dados significam
uma porcentagem de adesões de 24%, entre o ano de 2017 até 19 de julho de 2018,
em comparação com a porcentagem de adesões de 19,55 % constatadas ao longo de
dez anos de implementação do SISAN no Paraná.

Os resultados parciais relacionam-se aos indicadores de processo, e se mostram


bastante significativos na avaliação da execução do projeto setorial do Ministério Público
do Paraná, por meio do CAOPJDH, quanto aos objetivos definidos, evidenciando que uma
atuação de âmbito extrajudicial, executada em articulação com a sociedade civil e
agentes públicos de forma planejada, possibilita avanços importantes para a política de
segurança alimentar e nutricional no estado do Paraná, além de demonstrar que a
intervenção institucional do Ministério Público contribuiu para a efetivação do Direito
Humano à Alimentação Adequada.

Dentre os desafios no aprimoramento das ações do MPPR destaca-se:


implantação de avaliação de impacto das políticas adotadas nos municípios e estado;
adequação das ferramentas de acompanhamento dos municípios para monitoramento
dos sistemas de segurança alimentar e nutricional; construção de espaços de diálogo
com movimentos sociais e organizações da sociedade civil na área; fortalecimento dos
conselhos e demais espaços de participação; divulgação das “boas práticas” aos outros
Ministérios Públicos brasileiros.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 instituiu o pacto social e federativo que


responsabiliza os entes federados a implantar políticas públicas que cumpram os
objetivos de justiça social, redução da desigualdade e da pobreza, garantia dos direitos
humanos e sociais, orientado pelo princípio da dignidade humana. Tal processo é
caracterizado por avanços e retrocessos, na dinâmica entre demandas por direitos e
condições políticas, econômicas, sociais, culturais e institucionais para a efetivação deste

125
direito. Depende, centralmente, da sociedade civil ocupar a esfera pública do Estado e
conquistar direitos.

A conjuntura atual revela retrocessos que afetam diretamente o direito humano


à alimentação adequada, com destaque para: o congelamento dos recursos públicos por
20 anos, por meio da Emenda Constitucional nº 95/16; as contrarreformas,
especialmente a trabalhista e previdenciária, que intensificam o neoliberalismo, com
efeitos de redução do Estado na provisão de políticas sociais; a extinção do Conselho
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, por meio da Medida Provisória 870/2019.
Sobressai a importância da sociedade civil e dos órgãos de defesa de direitos humanos
para o fortalecimento das lutas sociais na direção da primazia do Estado, da construção
de políticas públicas e sistemas estatais, sustentados pelos princípios da universalidade,
da interdependência e da indissociabilidade dos direitos.

O Direito Humano à Alimentação Adequada é resultado das lutas socais e sua


efetividade se impõe pela força da sociedade civil no alargamento da esfera pública
estatal, o que precisa ser fortalecido, especialmente por órgão de defesa dos direitos.
Nesse sentido, o Ministério Público do Paraná adotou estratégias importantes para a
implementação do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional no Paraná,
considerando as finalidades institucionais, e sobretudo, as demandas legítimas da
sociedade.

Conclui-se que a atuação do Ministério Público do Paraná, realizada em


articulação com as instâncias de controle social, movimentos e organizações da Política
de Segurança Alimentar e Nutricional, por meio da execução de ações institucionais
coordenadas e planejadas, a partir de uma perspectiva crítica de Direitos Humanos,
obteve resultados parciais bastante positivos para a realização do Direito Humano à
Alimentação Adequada. Pode-se afirmar que a indução institucional possibilitou adesão
expressiva dos municípios, compondo o que pode ser chamado de indicadores de
processo.

A produção de estudos e pesquisas e a implantação das iniciativas institucionais


que promovam políticas públicas contribuem para impulsionar processos que resultem
na efetivação dos direitos, a partir da compreensão do direito para além das previsões
legais, o que supõe sua materialização por meio de serviços, programas, benefícios e

126
ações, a participação popular, a garantia da dignidade na relação e efetivação dos demais
direitos, em direção a uma sociedade justa e igualitária.

6. REFERÊNCIAS

BRASIL. Emenda Constitucional n.º 64, de 4 de fevereiro de 2010. Altera o art. 6º da


Constituição Federal, para introduzir a alimentação como direito social. Brasília, DF:
Presidência da República, [2018]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc64.htm. Acesso
em: 31 ago. 2018.

BRASIL. Emenda Constitucional n.º 95 de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das


Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá
outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2018]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm. Acesso
em: 16 set. 2018.

BRASIL. Lei n.º 11.346 de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de


Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à
alimentação adequada e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República,
[2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11346.htm. Acesso em: 19 ago. 2018.

BRASIL. Lei n.º 7.347 de 1985 de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de
responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá
outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2018]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7347orig.htm. Acesso em: 23 ago. 2018.

BRASIL. Lei n.º 11.947 de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da


alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação
básica; altera as Leis nos 10.880, de 9 de junho de 2004, 11.273, de 6 de fevereiro de
2006, 11.507, de 20 de julho de 2007; revoga dispositivos da Medida Provisória no
2.178-36, de 24 de agosto de 2001, e a Lei no 8.913, de 12 de julho de 1994; e dá
outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2018]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11947.htm. Acesso
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definições, princípios,
diretrizes, objetivos e composição do Sistema Estadual de Segurança Alimentar e
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http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/16565SISANPR.pdf. Curitiba, PR:
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PARANÁ. Ministério Público. Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça


de Proteção aos Direitos Humanos. Procedimento Administrativo n.º 0046.14.010558-
9. Relatório de Monitoramento do Projeto Setorial “Direito Humano à Alimentação
Adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN”.
Elaborado por Roselene Sonda. Procedimento instaurado em: 19 de setembro de
2014. v. 6, fls. 1432-1435.

PARANÁ. Ministério Público. Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça


de Proteção aos Direitos Humanos. SISNAN: Sistema Nacional de Segurança Alimentar
e Nutricional. Elaborado por Ana Carolina Brolo de Almeida; Roselene Sonda.
Disponível em:
http://www.direito.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=193.
Acesso em: 30 ago. 2018.

129
Simone Berci Françolin1

IMPOSIÇÃO DAS MEDIDAS CAUTELARES


ATÍPICAS PARA ASSEGURAR O
CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES DE
EFEITOS PATRIMONIAIS
DETERMINADAS POR FORÇA DE
SENTENÇA CONDENATÓRIA DEFINITIVA
PROFERIDA EM AÇÕES DE
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

SUMÁRIO: 1. Introdução: o combate ao fenômeno da corrupção; 2. A ação de


improbidade administrativa no Brasil; 3. Da aplicação das cautelares atípicas como forma
de conferir efetividade às decisões judiciais condenatórias transitadas em julgado; 4. Das
medidas cautelares atípicas; 5. Conclusão; 6. Referências.

1Promotora de Justiça. Pós-Graduada em combate ao crime organizado e combate à corrupção pelo Complexo de Ensino Renato
Saraiva (CERS). Mestranda em criminologia e execução penal junto à Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona (UPF).
Email: sbfrancolin@mppr.mp.br.

* A data de submissão do presente artigo foi no dia 23/09/2019 e a aprovação ocorreu no dia 17/10/2019.

130
RESUMO: O trabalho visa demonstrar aos aplicadores do Direito a importância de se
conferir efetividade às obrigações patrimoniais concebidas nas decisões judiciais
definitivas proferidas na seara da improbidade administrativa, destacando a
possibilidade de aplicação de medidas cautelares atípicas com o propósito de induzir o
cumprimento das penas de natureza patrimonial previstas no artigo 12, da Lei 8.249/92.
Inicia-se pela abordagem do fenômeno da corrupção, passando-se a delinear sua
conceituação e evolução, bem como os seus atuais mecanismos de combate,
ressaltando a importância de uma sociedade ser provida de instrumentos jurídicos
repressivos e preventivos eficazes no combate à corrupção. Após destacar a existência
de instrumentos internacionais, o presente estudo segue então para constatações sobre
a aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92) no combate à corrupção
no Brasil. E, ao final, ora se sustenta a aplicação de medidas cautelares atípicas como
forma de conferir maior eficiência às decisões judiciais transitadas em julgado,
abordando critérios de aplicação e as espécies de cautelares atípicas aceitas pelos
Tribunais pátrios.

ABSTRACT: The purpose of this article is to demonstrate the applicators of the Law the
importance of conferring effectiveness on the patrimonial obligations conceived in the
final judicial decisions pronounced in the area of administrative improbity, highlighting
the possibility of applying atypical precautionary measures with the purpose of inducing
compliance with the penalties of a patrimonial nature provided for in article 12 of Law
8.249 / 92. It begins by approaching the phenomenon of corruption, starting to delineate
its conceptualization and evolution, as well as its current mechanisms of combat,
emphasizing the importance of a society to be provided with effective legal and
preventive legal instruments in the fight against corruption. After highlighting the
existence of international instruments, the present study is followed by findings on the
application of the Administrative Improbity Law (Law 8.429 / 92) in the fight against
corruption in Brazil. And, at the end, the application of atypical precautionary measures
is supported as a way of giving greater efficiency to the judgments that have become
final, applying criteria of application and the species of atypical precautionary measures
accepted by the Courts.

PALAVRAS-CHAVES: corrupção; improbidade administrativa; impunidade; medidas


cautelares atípicas; eficiência.

KEYWORDS: corruption; administrative misconduct; impunity; atypical protective


measures; efficiency.

131
1. INTRODUÇÃO: O COMBATE AO FENÔMENO DA CORRUPÇÃO

No Brasil, o estudo sobre o fenômeno da corrupção nunca esteve tão em voga.


Trata-se de tema que diariamente é posto em pauta, sob os mais variados enfoques –
políticos, jurídicos, econômicos e sociais – e que abrange múltiplos interlocutores, que
são ou foram em grande parte influenciados pelos efeitos e ações da “Operação Lava
Jato”.

Tanto espaço para discussão revela a complexidade do fenômeno multifacetado


da corrupção, cuja delimitação de sua origem ainda não é objeto de consenso entre os
estudiosos do assunto. Tem-se defendido que o surgimento e sua propagação mantém
conexão direta com elementos relacionados à colonização, à natureza do ser humano e
da vida em sociedade, apontando como sua essência a natureza egoística do indivíduo e
a aparição da pobreza e das classes sociais como um problema social.

Nos estudos sobre o assunto, também são mencionados outros fatores que
contribuem para a ampliação do fenômeno da corrupção num determinado local. Cita-
se, a título exemplificativo, os quanto seguem: (i) a ampla tolerância social aos atos
ímprobos, (ii) a existência de uma cultura de ilegalidade, (iii) a falta de uma clara
delimitação entre o que é público e o que é privado, (iv) a inoperância prática das
instituições públicas e (v) a existência de um ordenamento jurídico inadequado à
realidade social.

Mas não é só.

Além de a origem do instituto e de seus fatores de propagação gerarem grande


controvérsia na seara das ciências humanas, sociais e econômicas, a delimitação de seu
conceito é igualmente passível de discussão, eis que no âmbito acadêmico sustenta-se
que não há um conceito único para aquilo que se entende por corrupção, conforme bem
delineado por Pedro Evandro de Vicente Rufato: “Derivado do latim corruptus, que
significa o ato de quebrar aos pedaços, o ato de decompor ou deteriorar algo, o termo
corrupção, em sua acepção atual, está ligada à ideia de desonestidade, improbidade e
espoliação”2

2RUFATO, Pedro Evandro de Vicente. Combate à Corrupção na Visão do Ministério Público. Leme: São Paulo Editora: JHMizzuno, 2018,
pag. 96.

132
Denota-se, ainda, que as condutas consideradas corruptas variam de acordo
com a evolução da sociedade e de seus aspectos culturais e temporais, encontrando-se
sua delimitação em atual e constate construção. Fator este que frisa-se não inviabiliza o
estudo de tal fenômeno, mas sim gera o alerta sobre a possibilidade da criação e
melhoria de mecanismos de controle até então conhecidos, extraindo-se daí a
necessidade de os estudiosos se dedicarem de forma contínua a análise do tema.

Sabe-se que grande parte dos mecanismos de controle atualmente existentes


no Brasil foram concebidos na seara internacional, e estão sendo progressivamente
inseridos no ordenamento jurídico interno, por força e influência de assinaturas de
diplomas internacionais. Nessa linha de raciocínio, consigna-se a existência de
convenções que buscam definir e identificar atos de corrupção e impulsionar os países
participantes a adequarem suas legislações internas aos estândares internacionais.

Cita-se, por exemplo, a Convenção Interamericana contra a Corrupção (OEA


1997) 3 , Convenção para combater o suborno de Servidores Públicos em Transações
Comerciais Internacionais (OCDE - Organização para a Cooperação Econômica e
Desenvolvimento – 1999)4, e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (ONU
2003) - Convenção de Mérida5.

Da análise dos referidos documentos, tem-se o aprendizado de que os diplomas


internacionais analisam o combate ao fenômeno da corrupção sob dois enfoques: (i) o
de ordem preventiva, que é a análise dos institutos que tipificam atos de corrupção –
stricto e lato sensu, e, também daqueles que conferem e asseguram transparência aos
atos do poder público, e (ii) o de ordem repressiva, que consiste na análise dos
mecanismos sancionatórios vinculados aos instrumentos jurídicos disponíveis aos
operadores do direito, e de sua eficácia.

Isso ocorre porque, de acordo com especialistas, os aspectos preventivos e


repressivos são complementares para a formação de um ambiente menos favorável à

3 No Brasil, a Convenção foi aprovada pelo Decreto Legislativo nº 152, de 25 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto Presidencial
nº 4.410, de 7 de outubro de 2002. Disponível em: <https://www.cgu.gov.br/sobre/perguntas-frequentes/articulacao-
internacional/convencao-da-oea>. Acesso em 05 de abril de 2019.
4 No Brasil, a Convenção foi ratificada em 15 de junho de 2000 e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 3.678, de 30 de novembro

de 2000. Disponível em: <https://www.cgu.gov.br/sobre/perguntas-frequentes/articulacao-internacional/convencao-da-ocde>.


Acesso em 05 de abril de 2019.
5 No Brasil, a Convenção da ONU contra a Corrupção foi ratificada pelo Decreto Legislativo nº. 348, de 18 de maio de 2005, e

promulgada pelo Decreto Presidencial nº. 5.687, de 31 de janeiro de 2006. Disponível em: <https://www.cgu.gov.br/sobre/perguntas-
frequentes/articulacao-internacional/convencao-da-onu>. Acesso em 05 de abril de 2019.

133
prática de atos ilícitos. Tratam-se de fatores complementares entre si, que influenciam
diretamente quando da análise de risco pelo agente corrupto, que poderá ser motivado
ou desestimulado a depender das consequências negativas de seus atos, e, em grande
parte da probabilidade de elas virem a efetivamente se concretizar.

Nessa equação, tem-se constatado que quanto maior é o risco de o infrator


sofrer uma punição séria do Estado, menor será a incidência de atos ímprobos numa
determinada sociedade, como bem esclarece Luis de Souza, em sua obra “Corrupção”:

O esquema de corrupção é por definição um plano de segurança de


rendimentos ilícitos. Tudo é pensado e concebido para minimizar riscos
antes, durante e depois da transação ilegal. A segurança passa por
mecanismos de lavagem de capitais ou de eliminação de registros,
compra de proteção, silêncio ou cumplicidade e outras técnicas para
despistar detalhes da trama6

Aliás, tal sistemática de análise de oportunidades e riscos foi explicada com


maestria por Matthew C. Stephenson, professor da Harvard Law School, HLS, no evento
“A Luta Global Contra a Corrupção”7:

Existem muito fatores que contribuem para a corrupção. A ameaça da


punição não é o único fator. Contudo, quando se tem uma situação de
impunidade, por definição, é muito difícil tratar a corrupção das
pessoas que são impunes. Nessa situação, as pessoas podem agir sem
probabilidade de punição. E pior, a impunidade pode permitir que as
pessoas acumulem dinheiro e influência política, e com isso cada vez
mais podem eles comprometer os alicerces da justiça (…). Primeiro, há
de existir uma possibilidade real de o governo descobrir o fato. Caso
contrário, não há necessidade de preocupação. Segundo, há de existir
uma ameaça de sanção grande.

Posto isto e transferindo-se tal sistemática para o Brasil, tem-se que no


ordenamento jurídico interno não se faz constar um conceito jurídico-penal ou jurídico
civil para a conceituação adequada do termo corrupção. Até mesmo, conforme bem

6 SOUZA, Luis de apud CARDOSO, Flávio. In: Curso de Pós Graduação -MBA – Prevenção e Repressão à Corrupção – aspectos teóricos
e práticos - Introdução ao Estudo do Fenômeno da Corrupção (Origem, Causas, Efeitos, Relação com a Democracia, Direitos Humanos
e Legitimidade dos Políticos), Primeira Aula, módulo 2.
7 O evento foi realizado em parceria pelo Ministério Público do Estado do Paraná e o Ministério Público Federal, no dia 18 de janeiro

de 2019. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=605&v=PUZchhFhmGc>. Acesso em 19 de janeiro de


2019.

134
delineado por Alexandre da Rocha, o próprio Código Penal quando se utiliza da referida
expressão, o faz com significados diferentes, conforme se verifica da simples leitura dos
artigos 218-A, 218-B, 271, 272, 273, 317-A, 337-B, todos do Código Penal8.

Contudo, seguindo a linha internacional, como signatário dos diplomas que


visam combater a corrupção, tem-se na legislação interna diplomas normativos
promulgados com tal mister, tanto na área penal, como na área civil e administrativa.

Tais instrumentos, embora passíveis de crítica, estão em constante


questionamento pelos juristas, sendo, inclusive, objeto de discussão no chamado
“Projeto de Lei Anticrime”, apresentado pelo atual Ministro da Justiça9 e o Projeto de Lei
108/2016, que tem por objeto agilizar a tramitação da ação de improbidade
administrativa10.

A preocupação dá-se em momento oportuno, eis que o Brasil, em 2018,


apresentou alto índice de percepção da corrupção – IPC, índice que analisa aspectos
como propina, desvio de recursos públicos, burocracia excessiva, nepotismo e habilidade
dos governos em conter a corrupção. De acordo com o relatório divulgada pela
Transparência Internacional, o Brasil, oitava maior economia do mundo, ficou empatado
com países de notório subdesenvolvimento econômico, tais como, Argélia, Armênia,
Costa do Marfim, El Salvador, Peru, Timor Leste e Zâmbia11.

Pois bem. Demonstrada a importância da existência de instrumentos jurídicos


para o combate à corrupção, e também contextualizado o fenômeno da corrupção no
cenário internacional e nacional, o presente artigo dedica-se ao estudo da Lei 8.429/92
(Lei de Improbidade administrativa), diploma que, dentre outros institutos, dispõe sobre
as sanções de ordem patrimonial aplicáveis aos agentes públicos ímprobos nos casos de
enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na
administração pública direta, indireta ou fundacional12, em especial, a fim de se verificar

8 ROCHA, Alexandre Sergio da. Corrupção: conceitos e reflexões/ Curitiba. Juruá, 2018. Versão digital, não paginada, capítulo 6
9 A íntegra do Projeto de lei pode ser consultada no seguinte endereço eletrônico: <https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-
content-1555510204.13/pl-882-2019.pdf>, acessado em 02/05/2019.
10
A íntegra do Projeto de Lei pode ser consultada no seguinte endereço eletrônico: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=4727431&disposition=inline>, consultado em 02/05/2019.
11 Endereço eletrônico em que o relatório encontra-se integralmente disponível: <https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-

downloads/CPI-2018.pdf>, acesso em 02/05/2019.


12 Existem no ordenamento jurídico brasileiro outros diplomas legais que preveem a aplicação da Lei 8.429/92, tal qual o Estatuto da

Cidade e a Lei 9.504/97. Nelas o Poder Legislativo remete o operador do direito à Lei 8.429/92, daí porque a essência da
responsabilização dos agentes é idêntica, sem qualquer especificidade.

135
a eficiência do cumprimento de sentenças judiciais condenatórias que tenham tal
diploma como suporte normativo.

2. A AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA NO BRASIL

A lei de improbidade administrativa veio de encontro com os anseios sociais,


eis que, à época, uma considerável parcela da população já conseguia visualizar a
depredação do erário pelos agentes públicos. Tanto assim é verdade que na exposição
de motivos do PL 1.446/91, o então ministro da Justiça, Jarbas Passarinho, assinalava
que "uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o país é a prática
desenfreada e impune de atos de corrupção no trato com os dinheiros públicos".

Passados 30 (trinta) anos de sua promulgação, a ação de improbidade


administrativa, não obstante sua alta carga sancionatória, tem se mostrado na prática
como um instrumento extremamente ineficaz, em especial, quando se trata do
cumprimento das penas de cunho patrimonial aplicadas ao agente ímprobo, quais sejam,
a reparação do dano ao erário e a multa civil, não servindo, por si só, como um juízo de
certeza de punição ao infrator.

De imediato, imperioso consignar severas críticas quanto ao rito processual


especial nela concebido.

Trata-se de ação escalonada, que, numa primeira fase, faz-se um juízo de


prelibação, e, numa segunda fase, sendo a inicial recebida pelo juiz, passa-se ao juízo de
instrução propriamente dito. Frisa-se que, não obstante a complexidade das duas fases,
tem-se a necessidade de se promover dois atos de chamamento do réu ao processo, o
primeiro, sendo a notificação, e o segundo a citação.

Tal sistemática, em uma análise de ações civis públicas distribuídas pelo


Ministério Público do Estado do Paraná, cria um cenário em que o trânsito em julgado
das ações demoram anos, podendo chegar até a décadas, Cita-se, exemplificativamente,
os seguintes casos: (i) 4.201 dias sem a prolação de sentença (0002482-
28.2007.8.16.0074); (ii) 918 dias sem a prolação de sentença (0003316-
50.2016.8.16.0192); (iii) 1.155 dias sem a prolação de sentença (0000131-

136
54.2016.8.16.0143 e 0000130-69.2016.8.16.0143)13.

A primeira dificuldade é superar a fase preliminar, prevista, de acordo com o


legislador, para evitar demandas temerosas. Contudo, somente nesta fase, não raro tem-
se demorado aproximadamente um ano. Citam-se, os seguintes autos: (i) decorridos 184
dias da distribuição, a inicial não foi recebida pelo Poder Judiciário (0001348-
14.2018.8.16.0192), (ii) 284 dias da distribuição, a inicial não foi recebida (0001336-
97.2018.8.16.0192); (iii) 300 dias para o recebimento da inicial (Processo 0003316-
50.2016.8.16.0192) 14 , mas, tem-se registros de prazos superiores em ações de
repercussão nacional, como é o caso de ações cíveis distribuídas no bojo da Operação
“Lava Jato” e do caso dos Correios15.

Além disso, denota-se que não é incomum instaurar-se prazo para novo e
genérico contraditório nesta fase inicial, abrindo o magistrado nova vista ao legitimado
ativo, com o objetivo de que este trate de eventuais documentos ou argumentos
processuais utilizados pelas partes. Trata-se de fase processual não prevista em lei, que
apenas causa efeitos procrastinatórios, dada a opção pelo rito já prolongado elegido pelo
Poder Legislativo. Cita-se, a título exemplificativo, as seguintes ações em curso no Estado
do Paraná: 0001070-97.2018.8.16.0067, 0001348-14.2018.8.16.0192 e 0001336-
97.2018.8.16.019216.

Mas, não é só.

Após o recebimento das ações de improbidade, há de se concretizar a citação


pessoal do figurante do polo passivo, para oferecimento de contestação, na forma do
artigo 17, §9º, da Lei de Improbidade Administrativa. Nesta fase, surgem as mais diversas
artimanhas para a procrastinação do feito, eis que o agente obviamente já ciente da

13
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ação civil pública pela prática de ato de improbidade administrativa. Consulta realizada em
05 de abril de 2019, no sistema eletrônico Projudi.
14 Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ação civil pública pela prática de ato de improbidade administrativa. Consulta realizada em

19 de janeiro de 2019, no sistema eletrônico Projudi.


15 Veja-se a ação de improbidade administrativa relacionada ao caso do Projeto Correio Híbrido Postal, um dos desdobramentos do

famigerado esquema de fraudes nas licitações dos Correios, envolvendo, dentre outros, Maurício Marinho, que ganhou notoriedade
nacional a partir da divulgação de registro de vídeo em que recebia propina. A ação, com sete réus, foi proposta em 29 de julho de
2010. A fase de notificação preliminar dos réus somente foi concluída em julho de 2013, ou seja, três anos depois da propositura da
ação. Em seguida, em 12 de novembro de 2013 foi proferida a decisão de recebimento da petição inicial e ordenada a realização da
citação dos réus. Desde então, decorrido bem mais de um ano desde a decisão de recebimento, o processo ainda se encontra na fase
de citação, conforme razões do Projeto de Lei 106/2018, acesso em <https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=4727431&disposition=inline>, consulta em 02/05/2019.
16 Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, ação civil pública pela prática de ato de improbidade administrativa. Consulta realizada em

05 de abril de 2019, no sistema eletrônico Projudi.

137
existência da causa, engendra esforços para se furtar de sua responsabilidade.

Sobre o tema, a leitura da exposição de motivos do Projeto de Lei 108/2016, de


autoria do Senador Randolf Rodrigues é obrigatória, tal como o trecho que ora se
transcreve:

Esse procedimento esdrúxulo constitui verdadeiro obstáculo à


celeridade na tramitação das ações de improbidade administrativa
porque os dois atos – notificação preliminar e citação – devem ser
dirigidos à pessoa do réu, não se podendo sequer fazê-lo pelo
advogado constituído. É comum que, após diversas tentativas de
localizar o réu para receber a notificação para manifestação preliminar,
tais tentativas tenham que ser refeitas após o recebimento da ação,
apenas para que o réu possa ser agora citado pessoalmente. A situação
é agravada quando há diversos réus na ação, já que o recebimento da
inicial somente poderá ocorrer após a notificação preliminar de todos
eles. Muitas vezes, a citação somente vem a ocorrer anos após a
primeira notificação, quando o réu já mudou seu endereço”17.

E, um passo a diante, a prática mostra que as audiências de instrução e


julgamento são igualmente caóticas. Pela demora em se superar a fase inicial, a prova
oral não se conclui adequadamente, seja pela não localização das pessoas, seja por atos
de perseguição política dos gestores em relação às testemunhas ouvidas pelo Ministério
Público.

Além disso, não raro as testemunhas acabam aceitando benefícios políticos em


troca de seu silêncio, tais como cargos comissionados ou benefícios assistenciais, e isso,
muitas vezes, sem que as pessoas se sintam envergonhadas socialmente por tal fato,
dada a corrupção sistêmica vivenciada em algumas localidades.

Nota-se que, ao final de tantos desdobramentos, indiscutível a enorme


dificuldade enfrentada para se obter uma decisão judicial desfavorável ao agente
ímprobo. De modo que, o mínimo que a sociedade espera, é que o título executivo
judicial condenatório, que venha a ser proferido com a imposição da obrigação de
reparar o dano ou de arcar com a multa civil, institutos previstos no art. 12, da Lei
8.429/92, seja efetivamente cumprido.

17
Acesso integral ao Projeto de Lei: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4727431&disposition=inline>, consulta
em 02/05/2019.

138
Pugna-se, em resumo, que a condenação, ainda que tardia, seja analisada como
um fator de risco, e, portanto, de desestímulo à prática de condutas, e, com efeito,
funcionem como uma possibilidade gravosa na equação quanto a análise feita pelo
agente no momento anterior à prática do ato ímprobo.

No entanto, consoante se passa a demonstrar, no Brasil, a exceção – que deveria


ser o não cumprimento da ordem judicial – torna-se regra, sendo raras as ações de
improbidade administrativa que resultam em efetiva reparação do dano ao erário e/ou
no efetivo pagamento da multa civil arbitrada pelo Poder Judiciário, o que, em última
instância, prejudica e compromete a implementação de direitos sociais mínimos para a
população.

3. DA APLICAÇÃO DAS CAUTELARES ATÍPICAS COMO FORMA DE CONFERIR


EFETIVIDADE ÀS DECISÕES JUDICIAIS CONDENATÓRIAS TRANSITADAS EM JULGADO

Com o trânsito em julgado da condenação, caso não se verifique o cumprimento


espontâneo da obrigação prevista no título executivo judicial, o Ministério Público ou a
pessoa jurídica lesada, conforme previsão do art. 17, da Lei 8.429/92, tem legitimidade
para inaugurar a fase de cumprimento definitivo de sentença, na forma prevista pelos
art. 513, do Código de Processo Civil, sendo observada a ordem prioritária de institutos,
na forma do art. 835, do referido diploma legal, sendo eles:

I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição


financeira; II - títulos da dívida pública da União, dos Estados e do
Distrito Federal com cotação em mercado; III - títulos e valores
mobiliários com cotação em mercado; IV - veículos de via terrestre; V
- bens imóveis; VI - bens móveis em geral; VII – semoventes; VIII -
navios e aeronaves; IX - ações e quotas de sociedades simples e
empresárias; X - percentual do faturamento de empresa devedora; XI
- pedras e metais preciosos; XII - direitos aquisitivos derivados de
promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia; XIII
- outros direitos.

De imediato, imperioso consignar que não obstante a pluralidade de


instrumentos disponíveis à fase de cumprimento de sentença, a prática revela que o

139
êxito das ações de improbidade em grande monta está diretamente relacionado a
existência de valores decretados indisponíveis liminarmente pelo Poder Judiciário,
quando da distribuição da ação de improbidade administrativa, na forma como
preceituada pelo art. 7o, da Lei 8.429/92.

Trata-se de cautelar admitida pela jurisprudência em todas as espécies de atos


ímprobos, sejam por atos que causarem enriquecimento ilícito, dano ao erário, e/ou
violação aos princípios, e alcança montantes patrimoniais suficientes tanto para a futura
reparação do dano, como para o pagamento da multa civil18, sendo um dos instrumentos
mais eficazes na prática forense.

Contudo, a problemática surge quando se verifica, desde a propositura da ação,


que o agente ímprobo não ostenta bens suficientes à reparação do dano causado ao
erário e/ou ao pagamento da multa civil que eventualmente lhe for aplicada. Ou, então,
quando passado infindáveis anos de transcurso judicial, se denota que não há
movimentação do condenado em cumprir com as obrigações patrimoniais que lhe foram
impostas pelo Poder Judiciário.

Na prática, sabe-se que os agentes públicos mal intencionados têm adotado a


postura de esvaziar seu patrimônio antes mesmo de ingressar na vida pública, e,

18 ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. MEDIDA CAUTELAR DE


INDISPONIBILIDADE DE BENS. PERICULUM IN MORA IMPLÍCITO. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO INAUDITA ALTERA PARS. FINALIDADE.
RESULTADO ÚTIL DO PROCESSO. MULTA CIVIL. SANÇÃO AUTÔNOMA. 1. A decretação da medida cautelar de indisponibilidade de bens,
em casos como o presente, não reclama o reexame de fatos ou provas. Com efeito, o juízo que se impõe restringe-se ao
enquadramento jurídico, ou seja, à consequência que o Direito atribui aos fatos e provas que, tal como delineados pelas instâncias
ordinárias, darão suporte (ou não) à providência. 2. A Primeira Seção desta Corte Superior firmou orientação no sentido de que a
decretação da indisponibilidade de bens, na ação de improbidade administrativa, prescinde da demonstração da dilapidação do
patrimônio do réu, ou de que tal esteja para ocorrer, visto que o periculum in mora se acha implícito no comando normativo do art.
7º da Lei 8.429/92, daí porque, a tal desiderato (indisponibilização de bens), basta a concreta demonstração da fumaça do bom direito,
decorrente de fortes indícios da alegada prática do ato ímprobo (REsp 1.366.721/BA, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/
Acórdão Ministro Og Fernandes, Primeira Seção, DJe 19/09/2014). 3. A indisponibilidade e o sequestro de bens constituem medidas
destinadas a assegurar o resultado útil da tutela jurisdicional pretendida, podendo pode ser concedidas inaudita altera pars, antes
mesmo do recebimento da petição inicial da ação de improbidade administrativa. 4. Ainda que inexistente prova de enriquecimento
ilícito ou lesão ao patrimônio público, faz-se plenamente possível a decretação da providência cautelar, notadamente pela
possibilidade de ser cominada, na sentença condenatória, a pena pecuniária de multa civil como sanção autônoma, cabendo sua
imposição, inclusive, em casos de prática de atos de improbidade que impliquem tão somente violação a princípios da Administração
Pública. 5. Agravo interno improvido.(AgInt no REsp 1500624/MG, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em
03/05/2018, DJe 05/06/2018)
RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. (…)
POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DA CONSTRIÇÃO PATRIMONIAL SOBRE BENS ADQUIRIDOS EM DATA ANTERIOR À SUPOSTA CONDUTA
ÍMPROBA EM MONTANTE SUFICIENTE PARA O RESSARCIMENTO INTEGRAL DO AVENTADO DANO AO ERÁRIO. PRECEDENTES DESTA
CORTE. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (…) 2. É pacífica no Superior Tribunal de Justiça a orientação de que a medida constritiva
deve recair sobre o patrimônio dos réus em ação de improbidade administrativa, de modo suficiente a garantir o integral ressarcimento
de eventual prejuízo ao erário, levando-se em consideração, ainda, o valor de possível multa civil como sanção autônoma (REsp.
1.347.947/MG, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJe 28.08.2013). 3. A indisponibilidade acautelatória prevista na Lei de Improbidade
Administrativa tem como finalidade a reparação integral dos danos que porventura tenham sido causados ao erário; trata-se de
medida preparatória da responsabilidade patrimonial, representando, em essência, a afetação de todos os bens necessários ao
ressarcimento, podendo, por tal razão, atingir quaisquer bens ainda que adquiridos anteriormente ao suposto ato de improbidade.
Precedentes. 4. Recurso Especial desprovido. (REsp 1176440/RO, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA,
julgado em 17/09/2013, DJe 04/10/2013)

140
também se tem consciência de que, após serem demandados, não reservam qualquer
valor para o cumprimento de uma sentença condenatória que, não raro, é vista como
um simples resultado de um ato de perseguição política, dada a corrupção sistêmica e
difusa vivenciada no país.

Para estas situações, os instrumentos típicos previstos no art. 835, do Código


de Processo Civil são totalmente ineficientes.

Assim, o que ora se sustenta é que seja admitida na fase de cumprimento do


título judicial proferido com base na Lei de Improbidade Administrativa o reforço de
medidas concebidas no novo Código de Processo Civil, em seu artigo 139, inciso IV, que
conferiu expressamente poderes ao magistrado no sentido de se adotar “todas as
medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para
assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto
prestação pecuniária”.

Trata-se de inovação legislativa que veio de encontro com os anseios dos


juristas e dos jurisdicionados, ante os reiterados processos de cumprimento de
sentenças que restaram infrutíferos, seja em razão do longo decurso do tempo para a
formação do título executivo, seja em razão de comportamentos dolosos e silenciosos
do devedor, que, salvo raríssimas exceções, no decorrer do trâmite processual esvazia
ou não repõe seu patrimônio com o fito de não se submeter à determinação judicial.

Na doutrina, Daniel Amorim Assumpção Neves discorre que:

“trata-se da consagração legislativa do princípio da atipicidade das


formas executivas, de forma que o juiz poderá aplicar qualquer medida
executiva, mesmo que não expressamente consagrada em lei, para
efetivar suas decisões (…) como o dispositivo ora comentado não faz
qualquer distinção entre as espécies de obrigação executáveis é
possível se concluir que a resistência à aplicação das astreintes nas
execuções de pagar quantia certa perdeu sua fundamentação legal,
afastando-se assim o principal entrave para a aplicação dessa espécie
de execução indireta em execuções dessa espécie de obrigação” 19.

19NEVES, Daniel Amorim Assumpção Neves, Novo Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo, São Paulo: Editora JusPodivm,
2017, p. 231.

141
E, assim, nessa linha de raciocínio, a aplicação das astreintes deixou de ter seu
campo de atuação restrito às obrigação de fazer e não fazer, passando a ser legalmente
admitida para a indução ao cumprimento pelo devedor de obrigação de pagar quantia
certa, num claro intento de conferir eficácia e eficiência as decisões judiciais de
consequências essencialmente patrimoniais, tais como, pagamento de pensão
alimentícia e dívidas decorrentes de aluguéis.

Quando de sua promulgação, o art. 139, inciso IV, do Código de Processo Civil
não sofreu críticas da doutrina e da jurisprudência em relação à sua constitucionalidade
ou legalidade perante o regime jurídico vigente a partir da Constituição de 198820, sendo
visto pelos processualistas e operadores do direito como um dispositivo apto a conferir
concretude aos efeitos da coisa julgada, eis que as decisões judiciais são
reconhecidamente de difícil cumprimento no Brasil.

Nessa linha de raciocínio, ora se sustenta que o art. 139, inciso IV, do Código de
Processo Civil também confira suporte à promoção de atos executivos patrimoniais na
seara das ações civis públicas de improbidade administrativa, adaptando-se a aplicação
das cautelares atípicas aos casos concretos, com um propósito maior, qual seja, o de se
evitar a impunidade, eis que, ainda com maior razão, tratam de direitos difusos e
coletivos.

Isso porque, em pesquisas realizadas em Comarcas de Entrância Inicial no


Estado do Paraná, ou seja, cidades de pequeno porte, denota-se que o trânsito das ações
de improbidade carecem a chegar, e, ainda, quando o chegam a ineficácia das decisões
é extremamente preocupante21. Inserindo-se, indubitavelmente, dentre o rol de títulos
executivos patrimoniais de difícil cumprimento.

Os motivos para tal cenário são os mais variados. Cita-se, por exemplo, o
condenado por ato de improbidade que se furta dolosamente do cumprimento da
ordem judicial promovendo atos de esvaziamento patrimonial, e, também, o caso

20A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, a respeito do assunto, aprovou o Enunciado 48, diz que: “O art.
139, inciso IV, traduz um poder geral de efetivação, permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o cumprimento de
qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do cumprimento de sentença e no processo de execução baseado em títulos”.
21 (i) na Comarca de Nova Aurora/PR, foram encontradas três ações em fase de cumprimento de sentença, sendo que em nenhuma

delas logrou-se a concretização do mínimo, qual seja, a reparação do dano ao erário; (ii) na Comarca de Iretama/PR, constatou-se um
universo de 31 ações de improbidade em fase de cumprimento, sendo que todas restaram infrutíferas; e (iii) na Comarca de Cerro
Azul/PR, constatou-se a existência de 16 (dezesseis) ações civis de improbidade, sendo que até 05 de abril de 2019, não se registra o
início formal dos cumprimentos de sentença.

142
daquele que não demonstra cooperação para com o seu cumprimento - tais como
propostas de pagamento ou parcelamento - mesmo após longos anos de disputa judicial.

No Estado do Paraná, é até mesmo possível verificar a existência de demandas


judiciais fracassadas, cujos réus encontram-se em atual exercício de mandato político
como Chefe do Poder Executivo local, e estão a receber valores vultuosos, sem que nesse
ínterim tenha o agente ímprobo se proposto a arcar com os valores que lhe foram
impostos por força de título executivo judicial proferido em seu desfavor.

Assim, no cenário de impunidade ora delineado, entende-se que o art. 139,


inciso IV, do Código de Processo Civil vem a conferir energia ao cumprimento das ordens
judiciais, evitando que o réu seja beneficiado por sua própria torpeza ou por seu
descompromisso com a eficácia da decisão judicial, sugerindo-se pelo presente estudo
que a sua incidência seja aplicada desde que presente requisitos que demonstrem sua
imprescindibilidade.

Numa primeira etapa, sustenta-se o esgotamento dos meios cautelares típicos


no cumprimento da sentença, que são aqueles previstos no art. 835, do Código de
Processo Civil. Ora se propõe como critérios balizadores para a configuração do
exaurimento dos meios típicos: (i) o tempo em que a demanda tramitou; (ii) os esforços
realizados para a quitação do débito, tais como a realização de atos de penhora e
expropriação; (iii) a prévia promoção do protesto do título; (iv) e a análise da forma pela
qual o executado manteve e mantém a sua sobrevivência e a de sua família.

E, posteriormente, constatada a ineficiência dos meios cautelares típicos - salvo


se existir prova nos autos em contrário no sentido de colaboração ou de
impossibilidade de o fazê-lo produzida pelo devedor - compreende-se restar
configurada a situação fática autorizadora da incidência das medidas cautelares atípicas.

Nesse cenário, imperioso consignar que aquele que foi condenado deve
contribuir com o juízo, e demonstrar que não teve ele condições de se preparar para o
cumprimento da sentença condenatória que contra ele recai.

Propondo-se, com efeito, ótica diferente da que vem sendo atualmente


adotada na prática forense, pela qual se atribuí o ônus de tal prova exclusivamente ao
legitimado ativo da ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Isso porque,

143
do conteúdo de precedentes jurisprudenciais, verificou-se que, em algumas situações, o
principal argumento para o indeferimento da aplicação das cautelares atípicas pelo
Poder Judiciário foi a inexistência de produção de provas complementares por parte do
credor no sentido de que o devedor teria boa capacidade financeira ou de que teria ele
praticado atos dolosos de esvaziamento patrimonial22.

Ocorre que, na prática, tal posicionamento vai totalmente contra a eficácia das
ações de improbidade administrativa. Afinal, pautando-se no princípio da boa-fé
objetiva, deve-se partir da premissa de que a condenação fora imposta ao agente
ímprobo, sendo no mínimo razoável que a ele seja imposto o dever de demonstrar os
motivos pessoais pelos quais não arcou com sua obrigação, e que tais escusas são
suficientes a afastar a incidência das cautelares atípicas.

Ao exigir a produção probatória complementar para a incidência das cautelares


atípicas aos legitimados ativos, o Poder Judiciário está a impor aos entes públicos o dever
de instaurar, para todo cumprimento de sentença um procedimento com o fim de se
apurar, via prova testemunhal ou documental, se o executado tem condições de arcar
com os valores da condenação que lhe fora imposta. Procedimento este, frisa-se, que
não encontra expressa previsão legal.

Além disso, esta produção probatória, como se sabe, é de difícil ou extrema


complexidade, sem falar que tal apuração exige o acesso a dados pessoais do devedor,
que demandam prévia interpelação judicial, tais como quebra de sigilo de dados –
bancários, fiscais - e, até mesmo dados de localização do executado, a fim de melhor
delimitar o seu modo de vida. Fatores estes que tornam ainda mais complexo o
cumprimento de obrigação já imposta por sentença transitada em julgado, e que, ao

22
“Ação de execução de título extrajudicial - Decisão que indefere pedido formulado pelo exequente de apreensão dos passaportes,
suspensão de CNH e cancelamento de cartões de crédito - A apreensão de passaportes, suspensão de CNH e cancelamento de cartões
de crédito de executados não permitirá, por si só, alcançar o resultado prático almejado pelo exequente (quitação do débito), além de
violar o direito fundamental da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), e caracterizar negativa de vigência às próprias disposições
do NCPC - Com o inadimplemento, e da forma menos gravosa ao devedor, deve o credor buscar a satisfação do seu crédito pleiteando
medidas destinadas à persecução dos bens do executado, de cunho patrimonial - Precedentes - Decisão mantida - Recurso desprovido”
(AI nº 2102610-85.2018.8.26.0000, de São Paulo, 15ª Câmara de Direito Privado, v.u., Rel. Des. JOSÉ WAGNER DE OLIVEIRA MELATTO
PEIXOTO, j. em 29.6.2018).

“Cumprimento de sentença Atipicidade dos meios executivos Bloqueio permanente de contas bancárias, passaporte, CNH e cartões
de crédito - Impossibilidade Ausência de proporcionalidade em sentido estrito Respeito à dignidade da pessoa humana e observância
ao Estatuto do Patrimônio Mínimo O princípio da proporcionalidade deve ser observado Ainda que o preceito deontológico determine
que todo cidadão arque com as suas dívidas, a pretensão à atipicidade dos meios executivos não pode ser deferida porque implicaria
em interpretação desarrazoada Ademais, por estabelecer, ainda que por via oblíqua, restrição significativa à liberdade de ir e vir da
agravada, o indeferimento das medidas pleiteadas é de rigor Recurso não provido” (AI nº 2077497-66.2017.8.26.0000, de São Paulo,
2ª Câmara de Direito Privado, v.u., Rel. Des. ROSANGELA TELLES, j. em 21.6.2017).

144
final, geram um maior número de demandas aos órgãos públicos, incluindo-se o Poder
Judiciário.

Nessa ótica, a colaboração para o cumprimento de uma condenação não deve


ser analisada somente ao final da ação, mas desde quando o agente ímprobo teve
conhecimento das investigações e passou a figurar no polo passivo da ação de
improbidade que deu azo a sua condenação.

A corrente jurisprudencial que exige a produção de provas complementares


pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica prejudicada é notoriamente gravosa à
sociedade, que diariamente vê a dilação do patrimônio público sem que os responsáveis
efetivamente sejam atingidos, alimentando o sentimento no agente ímprobo e na
sociedade de que o ilícito compensa.

Na prática, compreender que a prova é exclusivamente do legitimado ativo,


traduz-se na obrigação de impor ao parquet e aos demais agentes a instauração de
procedimento voltado para o acompanhamento patrimonial de todos os réus - antes,
durante e depois da prolação das sentenças de tal natureza. Demanda esta que
dificilmente poderia ser introduzida ao universo de trabalho dos órgãos responsáveis por
tutelar o erário, incluindo-se nesse rol o Poder Judiciário.

Frisa-se que, não obstante seja o Ministério Público e os demais legitimados os


ocupantes do polo ativo do processo de cumprimento de sentença, fato é que no avançar
dos atos processuais, o Poder Judiciário também tem o dever de se faça cumprir o teor
de suas próprias decisões, sendo parte integrante na dinâmica do Processo Civil
Colaborativo. Casso assim não fosse, não haveria a necessidade das disposições
constantes no art. 319, inciso IV, do Código de Processo Civil.

Conclui-se, com efeito, no cenário exposto e pelos precedentes colacionados no


presente estudo, que a não colaboração do executado para o cumprimento de suas
obrigações, e o esgotamento dos meios cautelares típicos, já são suficientes para a
aplicação do art. 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, sem que seja necessária a
produção de elementos probatórios complementares.

145
4. DAS MEDIDAS CAUTELARES ATÍPICAS

Admitindo-se a incidência das medidas cautelares como forma de se conferir


eficiência ao cumprimento das decisões judiciais definitivas proferidas em ações de
improbidade administrativa, passa-se a analisar as espécies de medidas cautelares
atípicas admitidas pelos Tribunais pátrios, quando da aplicação do art. 139, inciso IV, do
Código de Processo Civil.

Da análise da jurisprudencial, verificou-se a aplicação da suspensão do


passaporte, a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, e também o cancelamento
de cartões de crédito como medidas cautelares atípicas suficientes e proporcionais à
indução ao cumprimento de ordens judiciais.

Por essa linha de raciocínio, entende-se, com base na experiência habitual de


vida, que o exercício de tais direitos está diretamente relacionado com sinais externos
de riqueza, salvo expressa demonstração do devedor em sentido contrário, uma vez que
são condicionantes para a compra, uso e gozo de bens de alto valor, aquisição e gozo de
viagens ao exterior, bem como o uso de veículos automotores, que, ainda, contam com
gastos de manutenção, seguro e impostos.

Nessa linha de raciocínio, presume-se que aquele que não tem meios de
restituir o erário, encontra-se em dívida com a sociedade, e, portanto, não dispõe de
patrimônio para arcar com viagens internacionais, sendo-lhe desnecessário o passaporte,
e, pela mesma linha de raciocínio outros elementos que demonstram boas condições
financeiras, tais como Carteira Nacional de Habilitação e uso de cartões de crédito.

Nesse sentido, já foram proferidos os seguintes precedentes jurisprudenciais:

Ação Civil Pública por improbidade administrativa. sentença


condenatória em fase de execução. Frustração no cumprimento da
obrigação pecuniária. Determinada a suspensão da CNH do executado
até o pagamento da dívida, com base na regra trazida pelo art. 139, IV,
do CPC. Cabimento da medida. Utilizados os meios típicos de execução,
como penhora online, bloqueio de veículos e constatação de bens na
residência do devedor, tendo sido os resultados absolutamente
infrutíferos. Ademais, respeitados os princípios norteadores do direito
processual, como a razoabilidade, proporcionalidade e menor
onerosidade da execução. Necessário observar o princípio da
efetividade do processo. (…) Não demonstrada irregularidade ou
arbitrariedade na providência determinada pelo D. Juízo de primeiro

146
grau. Decisão mantida. Recurso não provido. (TJSP, AI 2.251.477-
88.2016.8.26.0000, Des. Rel. Evaristo dos Santos, j. 22/05/2017).
Insurgência contra decisão que indeferiu o pedido de apreensão da
CNH, passaporte e cartão de crédito do devedor. É certo que o inciso
IV, do art. 139 do Código de Processo Civil, ao dispor que o juiz
determinará todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais
ou sub-rogatórias necessárias, impõe ao magistrado atuar de modo a
assegurar que os efeitos das decisões se produzam, inclusive, nas
ações que tenham por objeto prestação pecuniária. A decisão não
restringe liberdade pessoal do executado, nem afronta os direitos e
garantias fundamentais, assegurado no art. 5º, inciso XV da
Constituição Federal. Recurso provido. (TJSP, AI nº 2035712-
27.2017.8.26.0000, Des. Rel. José Luiz Gavião de Almeida, j. em
20/02/2018)

“Ação civil pública em fase de cumprimento de sentença. Pretensão


ministerial de apreensão da CNH e passaporte do executado, com a
finalidade de compeli-lo ao pagamento do débito. Admissibilidade
Poder geral de cautela. Inteligência do art. 139, inciso IV, do NCPC
Medida coercitiva excepcional, que se mostra razoável e justificável
no caso e não viola o direito de ir e vir do devedor - Reforma da r.
decisão - Recurso provido, com determinação.” (TJSP, AI nº 2184837-
06.2016.8.26.0000, Rel. Des. Sílvia Meirelles, j. em 20.03.2017);

Execução de título judicial - Pleito de suspensão da Carteira Nacional


de Habilitação, passaporte e cartões de crédito da parte devedora.
Indeferimento na origem. Insurgência manifestada pela parte credora.
Cabimento. Medidas coercitivas que mostram-se efetivas e que não
ferem os direitos essenciais do agravado. Possibilidade de utilização
de transporte público, não essencialidade da realização de viagens
internacionais nem da contração de dívidas em cartões de crédito.
Decisão reformada. “(,,,) Iniciada a fase de execução da multa civil,
em 2011, foram realizadas inúmeras tentativas de localização de bens
passíveis de constrição, bem como pesquisas perante o Bacenjud,
Renajud, Cartório de Imóveis, Cartório de Registro de Notas, Receita
Federal, Jucesp e outros. Todos infrutíferos, o Ministério Público do
Estado de São Paulo pleiteou a apreensão da Carteira Nacional de
Habilitação, passaporte e cartões de crédito do executado. (… ) O
agravado possui uma dívida com a sociedade, por ato de
improbidade que, de livre e espontânea vontade, cometeu. Acerca
disso, mostram-se necessárias as medidas coercitivas requeridas pelo
Ministério Público do Estado de São Paulo com a finalidade de
proporcionar ao agravado a oportunidade de honrar a dívida
decorrente de sua conduta”. (TJSP, AI Nº 2066949-79.2017.8.26.0000,
Des. Rel. OSVALDO DE OLIVEIRA, j. em 13/12/2017)

AÇÃO CIVIL POR ATO DE IMPROBIDADE EM FASE DE CUMPRIMENTO


DE SENTENÇA. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. ARTIGO 139, INCISO IV,
DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. DECISÃO QUE INDEFERIU PEDIDO DE
SUSPENSÃO DO PASSAPORTE E DA CNH DA AGRAVADA. Possibilidade
de utilização das medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou
sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem

147
judicial. Exaurimento das tentativas de localização de bens que
pudessem assegurar o pagamento da multa civil. Prevalência do
interesse coletivo na satisfação da prestação pecuniária, mormente
porque restou patente a intenção da executada em furtar-se ao
cumprimento de sua obrigação. Decisão reformada. (TJSP, AGRAVO DE
INSTRUMENTO Nº 2244200-84.2017.8.26.0000, Des. Rel. Souza Nery,
j. em 10/04/2018).

Conforme bem delineado pelos precedentes que as autorizam, o Poder


Legislativo, quando da edição do novo Código de Processo Civil, concedeu autorização
ao juízo para que este, analisando o caso concreto, adote as medidas que compreender
como de maior eficácia para forçar o cumprimento da obrigação principal, conforme se
verifica da simples redação do art. 319, do CPC, inexistindo um rol taxativo acerca das
espécies das medidas juridicamente admitidas.

Nessa linha de raciocínio, não haveria óbice à aplicação ao executado das


medidas cautelares de suspensão de passaporte, cartões de crédito e carteira nacional
de habilitação, como forma de forçar o cumprimento da obrigação principal, que, in casu,
consistiria na reparação ao erário e ao pagamento da multa civil advinda de uma
sentença condenatória transitada em julgado.

Já, em sentido contrário, para os operadores do direito que não as admitem, a


adoção das cautelares suscitadas ofenderia o princípio da menor onerosidade e o
princípio de que o devedor responde com seu patrimônio por suas dívidas. Para eles, a
previsão legal do Código de Processo Civil não permite que se ultrapasse os limites do
Direito Processual Civil, o que inviabilizaria a aplicação de instrumentos concebidos no
Direito Penal.

Argumento este que, com a devida vênia, não deve prevalecer, sob pena de se
afastar a incidência do art. 319, inciso IV, do Código de Processo Civil, e igualmente se
comprometer a eficiência das decisões judiciais, conforme preceitua o artigo 8o, do novo
Código de Processo Civil, de forma incisiva:

“Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às


exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade
da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade,
a legalidade, a publicidade e a eficiência”.

148
Prega-se, num juízo de ponderação, que considerando os valores em conflito
quando do cumprimento das sentenças proferidas com fundamento da Lei 8.429/92,
que a proteção dos direitos individuais do cidadão não sirva de escudo protetivo de
responsabilidade, ainda mais quando está a se falar em reparação do erário num país
em que grande parcela da população não desfruta do mínimo constitucional em razão
de ilícitos praticados em prejuízo do patrimônio público.

Na prática, a suspensão do passaporte, da carteira nacional de habilitação e/ou


de cartões de crédito no cenário de não colaboração do agente ímprobo para o
cumprimento de suas obrigações visa compelir tão somente que ele cumpra com aquilo
que deve para a sociedade, para só então passar a gozar de facilidades inerentes à vida
em sociedade, tais como, o uso de carros, viagens e facilitação de compras via cartão de
crédito, salvo se expressamente demonstrar que se utiliza de tais circunstâncias como
meio de sua própria subsistência.

Com isso, busca-se conferir eficiência a decisões judiciais proferidas após


intensa atuação dos entes legitimados, fazendo-se valer todo o dispêndio de recursos
públicos - patrimoniais e pessoais - dispendidos desde os atos investigatórios até a
prolação de uma decisão judicial estável em prejuízo do agente ímprobo, aumentando-
se consideravelmente o risco de ser ele atingido pelos efeitos da coisa julgada.

5. CONCLUSÃO

Nesses termos, após demonstradas as angústias provenientes da aplicação da


Lei de Improbidade Administrativa, conclui-se que a eficácia do cumprimento do título
judicial condenatório, proferido com base na Lei de Improbidade Administrativa junto
ao Poder Judiciário, deve estar diretamente associada à incidência das medidas
cautelares atípicas, quando o caso concreto demonstrar que o agente público executado
não está a colaborar para o cumprimento de sua obrigação.

Nesse raciocínio, sustenta-se, num primeiro momento, o esgotamento dos


meios cautelares típicos no cumprimento da sentença, que são aqueles previstos no art.
835, do Código de Processo Civil, sugerindo-se aos operadores do direito os seguintes
elementos balizadores: (i) o tempo em que a demanda tramitou; (ii) os esforços

149
realizados para a quitação do débito, tais como a realização de atos de penhora e
expropriação; (iii) a prévia promoção do protesto do título; (iv) e a análise da forma pela
qual o executado manteve e mantém a sua sobrevivência e a de sua família.

E, num segundo momento, identificada a recalcitrância do agente condenado


ou sua omissão dolosa, tem-se que resta legitimada a adoção de medidas cautelares
atípicas, citando-se como exemplo, a suspensão da carteira de habilitação, a suspensão
do passaporte e até o bloqueio de cartão de crédito, sem prejuízo de se impor outras
obrigações, tudo como forma de induzir o agente ímprobo condenado ao cumprimento
das decisões judiciais definitivas proferidas com base na Lei 8.429/92.

Destacou-se no estudo, em relação a este ponto específico, que o ônus da


produção probatória acerca das circunstâncias fáticas de inexistência de meios
econômicos suficientes para o cumprimento da ordem judicial deve ser atribuída ao
agente ímprobo condenado, eis que a ele estão mais acessíveis os dados necessários à
tal demonstração em juízo, sem que tal obrigação seja exclusivamente atribuída aos
órgão legitimados, e sem que seja exigido a pluralidade de ações de quebra de sigilo –
fiscal, bancário e de geolocalização.

Além disso, frisou-se que afora o Ministério Público, os demais legitimados para
a propositura da ação civil pública não detém instrumentos que viabilizem investigação
patrimonial.

E que atribuir exclusivamente o ônus da prova quanto à ausência de meios


econômicos pelo devedor para o cumprimento das obrigações judiciais impostas em
decisões definitivas proferidas em processos que duraram anos ou décadas seria o
mesmo que impor ao parquet o dever de instaurar procedimentos administrativos de
acompanhamento patrimonial em relação a todas as ações de tal natureza que forem
distribuídas numa Comarca. Prática inviável e demasiadamente custosa ao erário, e, até
mesmo, ao Poder Judiciário.

Por fim, sustentou-se que a adoção das medidas cautelares defendidas no


presente estudo atende ao princípio da proporcionalidade. Certo é que quando se está
a falar em danos patrimoniais sofridos pelo ente público, tem-se invariavelmente na
outra ponta a proteção de direitos fundamentais, principalmente dos cidadãos mais

150
carentes, que diretamente dependem da eficiência dos serviços públicos, como os de
saúde, segurança e educação, para o exercício de uma vida digna num Estado
Democrático de Direito.

Por essa sistemática, em última instância, resta evidente que se estará a majorar
a eficiência das decisões judiciais condenatórias proferidas com base na Lei 8.429/92 em
prejuízo do agente ímprobo, eis que atualmente tem-se que a não incidência das
medidas cautelares atípicas reduzem consideravelmente as chances de os agentes serem
efetivamente atingidos pelos efeitos um decreto condenatório, o que vem a colocar em
risco, em última instância, os direitos mínimos dos cidadãos socialmente vulneráveis.

6. REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 25.


ed. São Paulo: Método, 2017.

A LUTA GLOBAL CONTRA A CORRUPÇÃO. Palestra de Matthew C. Stephenson. [S. l.: s.


n.], 2019. 1 vídeo (2h06min). Publicado pelo canal Escola Superior do MPPR. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=605&v=PUZchhFhmGc. Acesso:
19 jan. 2019.

AZAMBUJA, Edson; BALLAN JUNIOR, Octahydes; SILVA, Vinícius de Oliveira (Coord.).


Combate à corrupção na visão do ministério público. Leme, SP: JH.Mizuno, 2018.

BRASIL. Congresso. Senado Federal. Projeto de lei nº 108, de 2016. Altera os §§ 7º, 8º,
9º e 10 do art. 17 da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, para agilizar a tramitação da
ação de improbidade administrativa. Brasília, DF: Senado Federal, [2019]. Disponível
em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-
getter/documento?dm=4727431&disposition=inline. Acesso em: 02 maio 2019.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01
out. 2019.

BRASIL. Decreto-lei nº 2848, 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF:


Presidência da República, [2019]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em:
01 out. 2019.

BRASIL. Lei complementar nº 64 de 18 de maio de 1990. Estabelece, de acordo com o


art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e

151
determina outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2019].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp64.htm. Acesso em: 01
out. 2019.

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF:
Presidência da República, [2019]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso
em: 01 out. 2019.

BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos
agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo,
emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional e dá
outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm. Acesso em: 01 out. 2019.

BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Projeto de lei anticrime. Altera o


Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o Decreto-Lei nº
3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, a Lei nº 7.210, de 11 de
julho de 1984 - Lei de Execução Penal, a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, a Lei nº
8.429, de 2 de junho de 1992, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei nº 9.613, de
3 de março de 1998, a Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, a Lei nº 11.343, de
23 de agosto de 2006, a Lei nº 11.671, de 8 de maio de 2008, a Lei Nº 12.037, de 1º de
outubro de 2009, a Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, e a Lei nº 13.608, de 10 de
janeiro de 2018, para estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os
crimes praticados com grave violência a pessoa. Brasília, DF: Ministério da Justiça e
Segurança Pública, [2019]. Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-
nitf-content-1555510204.13/pl-882-2019.pdf. Acesso em: 02 maio 2019.

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152
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NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil: comentado artigo
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ROCHA, Alexandre Sergio da. Corrupção: conceitos e reflexões. Curitiba: Juruá, 2018. E-
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WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso avançado de processo civil: cognição jurisdicional


(processo comum de conhecimento e tutela provisória). 16. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016. v. 2.

153
Tâmera Padoin Marques Marin1
Larissa Salla Freitas2

A APLICAÇÃO DA TEORIA DA
CEGUEIRA DELIBERADA NO CRIME
DE LAVAGEM DE DINHEIRO E SUA
INCORPORAÇÃO PELA LEI
BRASILEIRA

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Origem, conceito e características da Lavagem de Dinheiro;


3. A lei brasileira de combate à Lavagem de Dinheiro (lei nº 9.613/98): aspectos gerais;
4. Criação da lei nº 12.683/12 e a alteração dada no que se refere ao art. 1º, § 2º,
inciso I; 5. Aplicação da teoria da cegueira deliberada; 6. A teoria da cegueira deliberada
e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça;
7. Conclusão; 8. Referências.

1 Mestre em Direito Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR. Promotora de Justiça do Ministério Público
do Estado de Rondônia. E-mail: tamera.padoin@mpro.mp.br.
2 Graduada em Direito pelas Faculdades Associadas de Ariquemes. Servidora pública do Ministério Público do Estado de Rondônia.

E-mail: larissa.freitas@mpro.mp.br.

* A data de submissão do presente artigo foi no dia 24/05/2019 e a aprovação ocorreu no dia 04/07/2019.

154
RESUMO: O presente artigo tem por finalidade a análise da aplicação da teoria da
cegueira deliberada no crime de lavagem de dinheiro e sua incorporação na lei
brasileira. Busca-se apresentar os aspectos gerais da lei brasileira de combate à lavagem
de dinheiro, bem como a edição da lei nº 12.683/12, a alteração e o tratamento legal no
que refere ao artigo 1º, § 2º, inciso I, discutindo-se a aplicação da referida teoria.
Menciona-se a origem da teoria, aspectos no sistema common law e a aplicação no
sistema civil law, havendo o destaque para equiparação da teoria da cegueira deliberada
ao dolo eventual. É abordada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Superior
Tribunal de Justiça acerca do assunto. Discute-se se a aplicação da teoria da cegueira
deliberada equiparada ao dolo eventual fortalece o enfrentamento do combate ao
crime de lavagem de dinheiro no Brasil, evitando a terceirização da prática do referido
crime, bem como obstando a criação de vantagens competitivas para empresas e
pessoas físicas que se utilizam de recursos provenientes de meios criminosos. No que
refere à metodologia, utilizou-se a abordagem qualitativa, procedimento bibliográfico e
o objetivo descritivo.

ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze the application of the theory of
deliberate blindness in the crime of money laundering and its incorporation into Brazilian
law. It seeks to present the general aspects of the Brazilian anti-money laundering law,
as well as the enactment of Law No. 12,683 / 12 and the amendment and legal treatment
with regard to article 1, paragraph 2, item I, discussing the application of said theory in
the article and section quoted. It mentions the origin of the theory, aspects in the
common law system and the application in the civil law system, emphasizing to equate
the theory of deliberate blindness with eventual deceit. Jurisprudence of the Supreme
Federal Court and Superior Court of Justice on the subject is approached. Regarding the
methodology, it has a basic nature, that is, it has no immediate purpose, however, it
produces knowledge to be used in other researches, with the descriptive objective,
qualitative approach and bibliographic procedure. It is discussed if the application of the
theory of deliberate blindness equates to eventual fraud will strengthen the fight against
the crime of money laundering in Brazil, avoiding the outsourcing of the practice of said
crime, as well as hindering the creation of competitive advantages for companies and
individuals resources from criminal means.

PALAVRAS-CHAVE: Lavagem de Dinheiro; Criminalização; Teoria da Cegueira


Deliberada; Dolo Eventual.

KEYWORDS: Money Laundering; Criminalization; Willfull Blindness; Eventual Pledge.

155
1. INTRODUÇÃO

No ano de 1988, a Organização das Nações Unidas promulgou a Convenção


Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, também conhecida
Convenção de Viena, sendo o Brasil signatário em 1991 através do Decreto nº 154.

Com a ratificação da referida Convenção, o Brasil assumiu o compromisso de


normatizar penalmente o ilícito praticado com bens, direitos e valores oriundos do
narcotráfico. Contudo, em 03 de março de 1998, publicou a Lei nº 9.613, que tipificou o
crime de lavagem oriundo do tráfico de drogas e de outras condutas penais, conforme
rol previsto na norma em referência, que foi além da tipificação da lavagem oriunda do
tráfico de drogas, tratando de norma penal classificada como de segunda geração.

Ao criminalizar a lavagem de dinheiro, nasce uma nova concepção de enfrentar


a criminalidade, ou seja, a tipificação penal dessa conduta resulta em uma
implementação de inédita política de enfrentamento das graves e incisivas
manifestações criminosas que decorrem e envolvem a lavagem de dinheiro.

Sabe-se que, com o fenômeno da globalização, a lavagem de dinheiro adquiriu


dimensões maiores, transpondo fronteiras nacionais, de forma a se estender à ilimitadas
jurisdições. Os envolvidos em condutas dessa natureza, rapidamente, desenvolveram
técnicas ainda mais eficazes. Percebe-se que as operações são realizadas com um alto
grau de sofisticação e as modernas estruturas criminais não atuam de forma isolada,
havendo uma forte conexão entre elas.

Algumas investigações de grande repercussão no cenário mundial trouxeram à


tona esquemas envolvendo transferências de valores, com aprimoradas técnicas de
lavagem de dinheiro (money laundering), onde em apenas “um click” milhões são
repassados para uma rede de múltiplos beneficiários, localizados nos variados países e
continentes. Pode-se mencionar, exemplificativamente, o método do “dólar-cabo”, em
que “um doleiro abre conta em uma instituição no exterior, movimentando-a por
simples ordens bancárias. Para tanto, é suficiente o acesso ao telefone ou a um ponto
de internet” (Supremo Tribunal Federal. RE nº. 876.692)3.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Ag. Reg. no Recurso 876.692 Paraná. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID =8531210>. Acesso em: 09.11.2017.

156
Recentemente, a disciplina da lavagem de dinheiro foi modernizada pelo
legislador brasileiro, com importantes avanços no tratamento desse delito, o que
possibilitou o ingresso do Brasil no rol de países com legislação antilavagem de terceira
geração, ou seja, qualquer infração penal poderá ser caracterizada como crime
antecedente ao delito de lavagem, independentemente de rol legal prevendo tipos
específicos.

Além disso, destaca-se a atual redação do artigo 1º, §2º, inciso I, operada por
meio da Lei n° 12.683/2012, que dispõe que “incorre, ainda, na mesma pena quem: I -
utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos e valores provenientes de
infração penal”. Com essa previsão, o legislador brasileiro seguiu a tendência de
acrescentar ao tipo, além do dolo direto, o dolo eventual para aqueles que utilizam na
atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de origem
criminosa.

Na primeira parte da presente pesquisa, o foco será abordar a lavagem de


dinheiro de forma mais ampla, como a origem da expressão, o conceito, as suas
características, as fases e as gerações das legislações que dispõe sobre o assunto. Após,
num segundo momento, dedicar-se-á à apresentação dos aspectos gerais da lei
brasileira de combate à lavagem de dinheiro, bem como de alterações operadas por
meio da Lei nº 12.683/12, especialmente no que refere ao artigo 1º, § 2º, inciso I, que
possibilitou a punição pelo dolo eventual para aqueles que utilizam na atividade
econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de origem criminosa.

Ainda, analisar-se-á a aplicação da teoria da cegueira deliberada de acordo com


a atuak previsão no ordenamento jurídico, fazendo um esboço acerca da origem da
teoria, aspectos no sistema common law e a aplicação no sistema civil law, havendo o
destaque para equiparação da teoria da cegueira deliberada ao dolo eventual.

Por fim, será abordada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e Superior


Tribunal de Justiça acerca do assunto.

157
2. ORIGEM, CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA LAVAGEM DE DINHEIRO

Na atualidade, o crime de Lavagem de Dinheiro tem ganhado destaque nos


noticiários do Brasil, uma vez que tem se buscado, principalmente, através de órgãos de
controle, a apuração, de forma mais eficiente, de condutas delituosas dessa natureza. A
obtenção de lucros a partir da lavagem de recursos de origem criminosas,
inequivocamente, viola a ordem econômica financeira.

2.1 Origem da expressão "Lavagem de Dinheiro"

A conduta delituosa de Lavagem de Dinheiro faz parte da história há muito


tempo, embora a expressão “Lavagem” tenha uma origem recente, uma vez que, na
Idade Média, piratas já procuravam desvincular capitais provenientes de atividades
criminosas.

A expressão em si, surgiu nos Estados Unidos, por volta de 1920, ocasião em
que gângsteres norte-americanos usavam lavanderias, comércio formalmente
legalizado, com a finalidade de ocultar a origem ilícita do dinheiro adquirido.

Segundo Tondini (2008) a expressão Lavagem de Dinheiro foi judicializada em


1982 quando os Estados Unidos apreenderam dinheiro advindo do contrabando de
cocaína colombiana4. Em países como Portugal, França e Espanha, o crime de Lavagem
de Dinheiro é conhecido por “Branqueamento de Capitais”. Já no Brasil, houve a adoção,
pelo legislador, da nomenclatura “Lavagem de Dinheiro”, por se encontrar consagrada
na linguagem popular.

2.2 Conceito de Lavagem de Dinheiro

A “Lavagem de Dinheiro”, consoante Habib, consiste na atividade revestida de


objeto lícito que tem por finalidade a transformação de recursos financeiros obtidos de
forma ilícita em lícitos” (2011, p. 185).5

4TONDINI, Bruno. Blanqueo de capitales y lavado de dinero: su concepto, historia y aspectos operativos. Buenos Aires: Centro
Argentino de Estudios Internacionales, 2008.
5HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais: Tomo I. 3 ed. Salvador: Jus Podivm, 2011.

158
Para De Barros (2007)6, a Lavagem de Dinheiro constitui-se em um conjunto de
operações comerciais e financeiras, que possuem por finalidade a incorporação, na
economia, de forma transitória ou permanente, de recursos, bens e valores de origem
ilícita para conceder-lhes aparência legal.

Para Mendroni (2015, p.21)7, a Lavagem de Dinheiro poderia ser definida como
“o método pelo qual um indivíduo ou uma organização criminosa processa os ganhos
financeiros obtidos com atividades ilegais, buscando trazer a sua aparência para obtidos
licitamente”.

Outrossim, a Lavagem de Dinheiro, como todo crime econômico, deve ser


visualizada como um negócio que tem como escopo gerar lucro, mas que também
possui perdas em decorrência do custo de produção de suas operações (DE CARLI,
2012)8. Segundo Baltazar Júnior (2006, p. 405)9 a Lavagem de Dinheiro é caracterizada
pela:

Desvinculação ou afastamento do dinheiro da sua origem ilícita para


que possa ser aproveitado. O que fundamentou a criação desse tipo
penal é que o sujeito que comete esse tipo de crime, que se traduz
num proveito econômico, tem que disfarçar a origem desse dinheiro,
ou seja, desvincular o dinheiro de sua origem criminosa e conferir-lhe
uma aparência lícita a fim de poder aproveitar os ganhos ilícitos,
considerado que o móvel de tais crimes é justamente a acumulação
material.

Comprometidos na repressão do crime de Lavagem de Dinheiro, os organismos


internacionais possuem definições próprias desse crime. Consoante a INTERNATIONAL
POLICE ORGANIZATION – INTERPOL (2017)10 a Lavagem de Dinheiro representa
qualquer ato ou tentativa de ocultar ou mascarar o ganho ilícito, de maneira que
aparente ter sido originado de fontes legítimas. Para o INTERNATIONAL MONETARY
FUND – IMF (2017)11 a Lavagem de Dinheiro representa o processo pelo qual a fonte

6DE BARROS, Marco Antônio. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com comentário, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. 2.
ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
7MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de Dinheiro. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2015.
8DE CARLI, Carla Veríssimo. Lavagem de Dinheiro: Ideologia da Criminalização e análise do discurso. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2012.
9 BALTAZAR JUNIOR, Jose Paulo. Crimes Federais. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
10INTERPOL. Money laundering. Disponível em: <https://www.interpol.int/Crimeareas/Financial-crime/Money-laundering> Acesso
em: 10.10.2017.
11 IMF. IMF and the Fight Against Money Laundering and the Financing of Terrorism. Disponível em: <

159
ilícita de bens adquiridos ou gerados pela atividade criminosa é ocultada para mascarar
a ligação entre os capitais e o delito original.

A Convenção de Viena, ao tratar da Lavagem de Dinheiro, menciona a


conversão ou a transferência de bens oriundos da atividade criminosa conexa como
tráfico de substância estupefaciente ou psicotrópica, com a finalidade de esconder ou
encobrir atividade ilícita.

Consoante o Grupo de Ação Financeira – GAFI, a Lavagem de Dinheiro é o


processo que tem por objetivo disfarçar a origem criminosa dos proveitos do crime, o
que faz denotar uma convergência quanto à noção conceitual.

2.3 Características da Lavagem de Dinheiro

O poder disruptivo do dinheiro de origem criminosa em uma economia não


pode ser subdimensionado, resta evidente que empresas ou pessoas físicas que atuam
no domínio econômico e que para a prática de suas atividades se valham de recursos
provenientes de meios criminosos, vão desfrutar, dentro desse mercado, de vantagens
econômicas que a movimentação financeira de origem lícita torna difícil obter.

Com o processo de globalização cada dia mais avançado e a economia cada vez
mais tecnológica, a Lavagem de Dinheiro ganha proporções maiores, sobrepassando as
fronteiras dos países e se desenvolvendo em outros, ou seja, estendendo-se o seu
âmbito de atuação à ilimitadas jurisdições.

Observa-se que os países, no combate à Lavagem de Dinheiro, com o passar


dos anos, vêm adotando novas medidas, o que faz com que as organizações criminosas
que atuam na prática desse delito estabeleçam e desenvolvam novas técnicas para
eliminá-las.

Há uma facilidade de adaptação das organizações criminosas às novas


situações, bem como existe rapidez no desenvolvimento de técnicas mais eficazes,
ganhando, as operações realizadas, alto grau de sofisticação. O grande problema está

http://www.imf.org/en/About/Factsheets/Sheets/2016/08/01/16/31/Fight-Against-Money-Laundering-the Financing -of-Terrorism >


Acesso em: 10.10.2017.

160
em as organizações criminosas serem mais rápidas que as autoridades, superando as
técnicas empregadas por essas, tornando-se assim, mais difíceis o controle e o
descobrimento das operações realizadas (SOTERAS apud CALLEGARI; WEBER, 2017)12.

Consoante o relatório do UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME -


UNODC, o volume financeiro lavado mundialmente chegou a US$ 1,6 trilhão em 2009
(UNODC, 2011)13, o que é preocupante.

As modernas estruturas criminais não atuam de maneira isolada, pelo


contrário, há uma forte conexão entre elas, as quais se estruturam por meio de
coordenação e subordinação, entre famílias e cartéis empenhados em áreas delitivas
das mais diversas índoles, que se expande por todo o mundo. Isso sem falar da relação
muito próxima entre corrupção e lavagem de dinheiro, o que já seria tema para outra
pesquisa.

2.4 Fases da Lavagem de Dinheiro

As três fases que compõe o processo da lavagem de dinheiro são baseadas em


recomendações do Grupo de Ação Financeira - GAFI, que se constituem em um guia para
países que adotam padrões e promovam efetivas implementações de medidas legais,
regulatórias e operacionais para suprimir esse crime, bem como outros, também já
definidos, que ameaçam a integridade do sistema financeiro.

Observa-se, entretanto, que seus contornos nem sempre podem ser


reconhecidos de maneira precisa, uma vez que na prática, é comum a sobreposição
entre as etapas, tornando-se difícil a identificação do término de uma e o início de outra.

A primeira fase, conhecida por ocultação (placement, colocação, conversão),


trata-se do momento em que os criminosos fazem desaparecer as grandes somas que
suas atividades ilícitas geraram, separando os ativos da ilegalidade, proporcionando o
seu distanciamento.

12CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.
13UNODC. Estimando os fluxos financeiros ilícitos decorrentes do tráfico de drogas e outras organizações criminais transnacionais.
Disponível em: <https://www.unodc.org/ documents/data-and-analysi/studies/illict_financial_flows_2011_web.pdf>. Acesso em:
30.08.2017.

161
Durante a colocação os infratores se encontram mais vulneráveis. Trata-se da
fase mais arriscada para o agente “lavador”, diante da sua proximidade com a origem
ilícita, sendo justamente nesse movimento financeiro inicial que as autoridades estão
focadas, quando muito dinheiro é convertido, facilitando assim a descoberta. Consoante
Maiorovitch (apud MACEDO, 2009, p. 37)14 é o momento “de apagar a mancha
caracterizadora da origem ilícita”.

Já na segunda fase, denominada estratificação (layering, mascaramento,


dissimulação), o capital que está inserido no mercado deve se livrar de qualquer marca
de ilicitude, dando aparência de licitude. Os criminosos tentarão, através do uso de
complexas operações, afastar de forma definitiva o dinheiro das atividades ilícitas que
os originaram (MENDRONI, 2015, p. 182).15

Superadas as duas primeiras fases, tem-se a terceira fase chamada de


integração (integration, reversão), esse é o momento para dar uma justificativa acerca
do dinheiro que o criminoso possui, utilizando-se de diversos meios para explicar a sua
riqueza. Disponível o capital, empregando mecanismos de reversão, os produtos da
lavagem de dinheiro se transformam em investimentos corriqueiros e necessários, em
variados setores da economia.

Finalizando-se as fases, se as autoridades não rastrearam as operações desde


o começo do processo, dificilmente lograrão êxito em definir a extensão desse crime
que envolve vultuosas quantias, formalmente incorporadas ao sistema econômico.

2.5 As gerações das legislações que dispõem sobre a Lavagem de Dinheiro

A doutrina classifica em três gerações as legislações que versam sobre o


assunto de Lavagem de Dinheiro, entretanto, salienta-se que não se trata de uma
evolução cronológica linear, já que ainda há países, como Alemanha e Portugal, que
possuem legislação considerada de segunda geração.

A primeira geração relaciona-se com a Convenção de Viena - Convenção contra

14MACEDO, Carlos Márcio Rissi. Lavagem de dinheiro: Análise crítica das Leis 9.619, de 03 de março de 1998 e 10.701 de 09 de julho
de 2003. Curitiba: Juruá, 2009. p. 37.
15MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime de Lavagem de Dinheiro. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2015.

162
o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, promulgada no ano de
1988 pela Organização das Nações Unidas, abrangendo países que somente previam o
Tráfico de Drogas como crime antecedente da Lavagem de Dinheiro.

Já a segunda geração, na qual a legislação brasileira passou a fazer parte em 03


de março de 1998 quando publicou a Lei n° 9.613/98, foi mais abrangente, trazendo um
rol de condutas a serem consideradas crimes antecedentes, dos quais se podia lavar
dinheiro.

A terceira geração, por sua vez, admite qualquer delito como crime
antecedente do crime de Lavagem de Dinheiro, assim, qualquer infração penal poderá
ser conectada aos procedimentos caracterizadores da lavagem, garantido um combate
mais eficiente. Parâmetro esse que foi adotado pela Lei nº 12.683/12.

3. A LEI BRASILEIRA DE COMBATE À LAVAGEM DE DINHEIRO (LEI Nº 9.613/98):


ASPECTOS GERAIS

A criminalização da Lavagem de Dinheiro trouxe uma nova perspectiva de


enfrentar a criminalidade, pois ao atingir a renda da atividade ilícita, procura-se ao
mesmo tempo, desestimular a prática da atividade que a gerou. A tipificação penal dessa
conduta não representou simplesmente a adição de um delito ao catálogo legal, mas
sim a implementação de inédita política de enfrentamento das graves e incisivas
manifestações criminosas que, de regra, precedem e envolvem a Lavagem de Dinheiro
(MORO, 2010)16.

Quando do surgimento da Lei n° 9.613/98, o Brasil seguiu uma tendência


contemporânea de tipificação penal em lei especial, o que contribuiu para um
tratamento mais aprofundado do tema, embora ainda se enquadrasse na segunda
geração de legislações antilavagem (CALLEGARI; WEBER, 2017)17.

Destaca-se uma alteração na perspectiva de tratamento, tanto de investigação


como persecução penal, o que difere do objetivo clássico, uma vez que vai além da

16MORO, Sérgio Fernando. Crime de Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.
17CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.

163
identificação do autor do delito, da garantia do devido processo legal e da eventual
punição, ou seja, é necessário privar o criminoso do produto da sua atividade ilícita,
eventualmente, trazendo para o campo do Direito Penal novos desafios.

4. CRIAÇÃO DA LEI Nº 12.683/12 E A ALTERAÇÃO DADA NO QUE SE REFERE AO ART.


1º, § 2º, INCISO I

A antiga redação do art. 1º, §2º, inciso I, da Lei nº 9.613/98 dispunha que
“Incorre, ainda, na mesma pena quem: I - utiliza, na atividade econômica ou financeira,
bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes
antecedentes referidos neste artigo” (Lei nº 9.613, 1998).18 In caso, verificava-se no tipo
apenas a configuração do dolo direto, uma vez que o sujeito ativo precisava ter
consciência da proveniência ilícita dos bens (“que sabe”).

Com a nova redação, trazida pela Lei nº. 12.683/12 (art. 1º, § 2º, I), há a
supressão da expressão “que sabe”, autorizando também a punição mesmo em
situações nas quais o agente não tem ciência plena de que os bens que recebe tem
origem infracional, contudo, deveria sabê-lo em razão da atividade por ele
desempenhada. A partir dessa alteração legislativa, tem-se que passou a ser autorizada
a aplicação do dolo eventual para essas hipóteses delitivas.

4.1 Dolo eventual e culpa consciente

Para o estudo do tema, é preciso diferenciar dolo eventual de culpa consciente.

O tipo penal se divide em objetivo (elementos normativos, valorativos, etc) e


subjetivo (elementos anímicos do agente, especiais motivos, etc). O tipo penal subjetivo
se divide em dois elementos necessários para sua plenitude, sendo o elemento cognitivo
(consciência) e o elemento volitivo (vontade).

É necessário, além da previsão do resultado, uma resolução de vontade por


parte do agente, raciocínio esse que foi incorporado ao Direito Penal Brasileiro com a
sua inclusão expressa no Código Penal, em específico no artigo 18, inciso I, ao afirmar-

18BRASIL, Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998.

164
se a ocorrência do dolo quando se estiver diante de um “querer” a produção de um
resultado e de um “assumir o risco” dessa produção (WESSELS, 1976)19.

Para haver a concretização do dolo eventual, em detrimento da culpa


consciente, não basta apenas o agente conhecer o risco do resultado lesivo e não fazer
nada para que ele não ocorra, ou não agir para diminuir o risco ou o resultado lesivo, há
a necessidade que o agente, ao conhecer o risco, pouco se importe com a ocorrência da
lesão ao bem jurídico penalmente tutelado.

De Jesus (2014, p. 330)20 ensina que “ocorre o dolo eventual quando o sujeito
assume o risco de produzir o resultado, isto é, admite e aceita o risco de produzi-lo”.

Reale Júnior (2012, p. 226)21 afirma que:

O dolo é eventual quando o agente inclui o resultado possível, de


forma indiferente, como resultado da ação que decide realizar,
assentindo em sua realização, que confia possa se dar. Diante de um
resultado nocivo possível, o agente arrisca e prefere agir, admitindo e
não lhe repugnando, assim, a ocorrência do resultado.

No que refere à culpa consciente, ela irá se consubstanciar quando o agente


age ou deixa de agir, prevê que a conduta poderá acarretar uma lesão a um bem jurídico
tutelado, porém, acredita de forma sincera na sua não ocorrência. Greco (2006, p. 218)
22assim explica: “na culpa consciente, o agente, embora prevendo o resultado, acredita
sinceramente na sua não ocorrência; o resultado previsto não é querido ou mesmo
assumido pelo agente.”

Destaque-se o conceito de dolo eventual, juntamente com a sua distinção de


culpa consciente, mencionado por Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 430)23:

Quando uma pessoa planeja a causalidade para obter uma finalidade,


faz uma representação dos possíveis resultados concomitantes de sua
conduta. Em tal caso, se confia em que evitará ou que não sobrevirão

19WESSELS, Johannes. Direito Penal: Parte Geral: Aspectos Fundamentais (Tradução Juarez Tavares). Porto Alegre: Fabris, 1976.
20 DE JESUS, Damásio. Direito penal, volume 1: parte geral. 35 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
21REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
22GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2007.
23ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 7 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007.

165
estes resultados, deparamo-nos com uma hipótese de culpa com
representação, mas se age admitindo a possibilidade de que
sobrevenham, o caso será de dolo eventual.

De acordo com as bases do Direito Penal, a verificação da aceitação ou não da


ocorrência do resultado lesivo pelo agente deve ser retirada através das circunstancias
do fato que resultou na ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado. Em determinadas
situações, os fatos responderão, por si só, se o indivíduo assumiu ou não o risco de
produzir o resultado lesivo.

4.2 A possibilidade do dolo eventual após a alteração legislativa

A extinção da expressão “que sabe”, com o advento da Lei 12.683/2012, teve o


evidente objetivo de agregar a punição pelo dolo eventual, como já explanado
anteriormente. Antes de tudo, para Bottini e Badaró (2016)24, é essencial e indispensável
perceber que o dolo eventual, mesmo que careça da vontade de resultado e da ciência
plena da origem ilícita do bem, requer uma consciência concreta do contexto no qual se
atua.

É necessária uma percepção clara das circunstâncias, uma compreensão de


forma consciente dos elementos objetivos que indiquem uma provável ilicitude dos
bens. Ainda que os contornos não sejam claros, deve o interprete reconhecer um
contexto de suspeita robusta na qual o agente nota o risco efetivo de que tais bens
provenham de atos ilícitos, e assume a possibilidade de contribuir para um ato de
lavagem de dinheiro (ROXIN apud BOTTINI; BADARÓ, 2016)25.

É exatamente nesse ponto que se destaca a Teoria da Cegueira Deliberada


(willfull blindness), igualmente conhecida como a Doutrina das Instruções do Avestruz
(ostrich instructions) e Doutrina da Evitação da Consciência (concious avoidance
doctrine), a qual será abordada no próximo capítulo.

24BOTTINI, Pierpaolo; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro. 3 ed. São Paulo: RT (Revista dos Tribunais), 2016.
25Ibidem.

166
5. APLICAÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA

A Teoria da Cegueira Deliberada, embora considerada de origem inglesa e


norte-americana, tem se desenvolvido em países que adotam o sistema jurídico civil law
e consagram textualmente a possibilidade de sansão pelo dolo eventual, como é o caso
do Brasil, que não vislumbra obstáculo que impeça o acolhimento dessa teoria, já que
possui base legal prevista no artigo 18, inciso I, in fine, do Código Penal.

Tal doutrina foi criada para os casos em que um agente atua como se não
enxergasse a ilicitude da procedência de bens, direitos e valores com o objetivo de
auferir vantagens. Como dito pela doutrina, o agente irá se comportar como uma
avestruz, que enterra sua cabeça na terra para não tomar conhecimento da natureza ou
extensão do seu ilícito praticado.

Observa-se que a aplicação da referida teoria trouxe instrumentalidade às


instituições judiciárias para punir agentes que utilizam, na atividade econômica ou
financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal.

5.1 Origem

A Teoria da Cegueira Deliberada foi primeiramente aplicada no sistema jurídico


common law, nas cortes inglesas, sendo originada, em 1861, do caso de Regina v. Sleep.

Consoante Robbins (1990, p.191)26:

Sleep era um ferrageiro, que embarcou em um navio contêineres com


parafusos de cobre, alguns dos quais continham a marca de
propriedade do Estado Inglês. O acusado foi considerado culpado pelo
júri por desvio de bens públicos - infração esta que requeria
conhecimento por parte do sujeito ativo. Ante a arguição da defesa do
réu, de que não sabia que os bens pertenciam ao Estado, Sllep foi
absolvido pelo juiz, sob a justificação de que não restou provado que
o réu tinha deveras conhecimento.

26ROBBINS, Ira P. The ostrich instruction: deliberate ignorance as a criminal means rea. The Journal of Criminal Law Criminology.
Northwestern University School of Law, USA, V.81, Summer 1990, p.191-234.

167
O referido julgamento trouxe a conclusão de que, caso restasse provado que o
indiciado tivesse se abstido de obter algum conhecimento da origem de tais bens, a pena
cabível poderia equiparar-se àquela aplicada aos casos de conhecimento (BECK, 2011)27.
Assim, o agente poderia ser condenado por sua ignorância deliberada.

A partir daquele caso em diante, as cortes inglesas, em diversos outros


julgamentos, passaram a invocar a Teoria da Cegueira Deliberada para responsabilização
subjetiva do agente criminoso, como substituta ao conhecimento pleno.

Afere-se que a referida teoria não teve, inicialmente, sua aplicação na


responsabilização dos criminosos especificamente no delito de Lavagem de Dinheiro,
mas sim no próprio Direito Penal em geral. Isso se deu porque esse delito ganhou
maiores atenções somente na segunda metade do século XX.

5.2 Noções quanto à tipicidade subjetiva e à culpabilidade no Sistema Common Law

Para o sistema common law a “mente culpada” engloba os elementos


subjetivos da tipicidade e a culpabilidade, dentro dos quais está a intenção, que se divide
em quatro categorias de atitudes mentais, quais sejam, intenção, conhecimento,
imprudência e negligência (CALLEGARI; WEBER, 2017)28.

A teoria da cegueira deliberada amplia os padrões de conhecimento exigível


para o sistema jurídico common law, já que um ato não faz uma pessoa culpada a menos
que o pensamento seja culpado. A exigência da mente culpada é satisfeita quando, no
momento em que o indivíduo cometeu a infração penal, ele tinha o estado mental
juridicamente previsto em lei para a existência de responsabilidade criminal
(CALLEGARI; WEBER, 2017)29.

5.3 O conhecimento para o direito penal nos Estados Unidos

No direito penal estadunidense, onde a teoria da cegueira deliberada está mais

27BECK, Francis. A doutrina da cegueira deliberada e sua aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Sapucaia do Sul: Revista de
Estudos Criminais, 2011.
28CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.
29Ibidem.

168
solidificada, a culpabilidade exige o elemento subjetivo e, dentre os requisitos mínimos
para a condenação, verifica-se, junto à negligência e imprudência, o necessário
conhecimento.

5.3.1 Conhecimento

O termo “conhecimento” surge como um requisito da “mente culpada” por ser,


às vezes, necessário para a definição de um crime particular ou porque às vezes é um
fator determinante no estabelecimento de um estado mental diferente, de intenção, de
malícia (CALLEGARI; WEBER, 2017)30.

O conhecimento provoca uma tomada de consciência por parte do autor que


esteja cometendo um ato considerado infração penal. Considera-se a principal distinção
entre as figuras da intenção direta e da consciência ou conhecimento o fato de que o
primeiro implica desejo consciente de causar um resultado particular, enquanto o
segundo implica uma tomada de consciência de que o resultado é “praticamente certo”,
caso seja praticada tal conduta (CALLEGARI; WEBER, 2017)31.

5.3.2 Diferenciação entre o Conhecimento e a Imprudência

Embora, no direito penal norte-americano, a imprudência se assemelhe ao


conhecimento, uma vez que ambos exigem uma consciência subjetiva real do indivíduo,
existem aspectos diferenciadores entre eles.

O conhecimento se consubstancia em um processamento complexo e subjetivo


da informação absolvida por uma pessoa (MARQUES, 2017)32. Nesse sentido afirma
Probst, Raub e Romhardt (apud ALMEIDA; FREITAS e SOUZA, 2011, p. 4)33:
“conhecimento é o conjunto total incluindo cognição e habilidades que os indivíduos
utilizam para resolver problemas. Ele é construído por indivíduos e representa suas

30Ibidem.
31CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.
32MARQUES, José Roberto. Você sabe o que é conhecimento?. Disponível em: <
https://www.ibccoaching.com.br/portal/portal/comportamento/voce-sabe-o-que-e-conhecimento/> Acesso em: 08.10.2017.
33ALMEIDA, Mário de Souza; FREITAS, Claudia Regina; DE SOUZA, Irineu Manoel. Gestão do conhecimento para tomada de decisão.
São Paulo: Atlas, 2011.

169
crenças sobre relacionamentos causais”.

Para Estefam, (2017, P. 236)34 significa “a culpa manifestada de forma ativa,


que se dá́ com a quebra de regras de conduta ensinadas pela experiência; consiste no
agir sem precaução, precipitado, imponderado”.

Em suma, o conhecimento requer a crença de que um fato é certo ou altamente


provável, já a imprudência requer uma consciência de que o fato seja, sim, uma
possibilidade, contudo, a consciência exigível jamais será a de que o fato é mais do que
substancialmente provável (CALLEGARI; WEBER, 2017)35.

Para caracterização do conhecimento é preciso uma crença correta e agir com


conhecimento de causa, entretanto, na imprudência, a crença não precisa ser correta.

5.4 A teoria da cegueira deliberada e o Sistema Common Law

Conforme o Dicionário Norte-Americano Black (apud CALLEGARI; WEBER,


2017)36, Cegueira Deliberada ocorre em situações em que um indivíduo deixa de fazer
uma pergunta razoável de suspeita de irregularidades, apesar de estar ciente de que é
altamente provável que a ação seja ilegal.

Quando o conhecimento de uma pessoa é um elemento de uma infração, esse


conhecimento é estabelecido se a pessoa está ciente da alta probabilidade da existência
do ilícito, a menos que acredite realmente que não exista uma infração. Salienta-se a
exigência da alta probabilidade da existência de um fato sem o conhecimento real de
que o mesmo não existia (CALLEGARI; WEBER, 2017)37.

A Teoria da Cegueira Deliberada é objeto de grande reflexão na dogmática


penal moderna e muitos doutrinadores do Sistema Jurídico Commom Law buscam
defini-la e, consequentemente, possibilitar a sua aplicação no caso concreto.

Segundo Gordon (apud CALLEGARI; WEBER, 2017, p.177)38:

34ESTEFAM, André. Direito penal: parte geral (arts. 1o a 120). 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017
35CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.
36Ibidem.
37Ibidem.
38Ibidem.

170
Cegueira Deliberada existe quando um indivíduo fecha
deliberadamente os olhos para os meios de conhecimento, porque ele
prefere permanecer na ignorância. Cegueira intencional deve ser
restrita à situação em que o acusado acredita que um determinado
estado de coisa existe, sabe que ele pode confirmar essa crença,
tomando um simples passo como fazer uma pergunta, ou andando em
volta de um canto para ler um quadro de avisos, mas não o faz, porque
ele quer ser capaz de permanecer na ignorância.

Considera-se negligente ou imprudente um indivíduo que está alheio a fatos


que uma pessoa razoável prestaria atenção. Diferentemente, o indivíduo que é cego
deliberadamente não é totalmente alheio à verdade de uma proposição, ele deve
acreditar ou pelo menos suspeitar.

Para Williams (apud CALLEGARI; WEBER, 2017, p.177)39 acha-se, embutido na


Cegueira Deliberada, a necessária intenção de evitar a efetiva administração da justiça,
utilizando-se da negativa de conhecimento que a lei penal possa requerer:

Um tribunal pode adequadamente aplicar a teoria da Cegueira


Deliberada só se puder quase dizer que o réu realmente sabia. Ele
suspeita do fato; ele percebeu sua probabilidade; mas ele se absteve
de obter a confirmação final, porque ele queria ser capaz de negar o
conhecimento. Isso, e somente isso, é cegueira voluntária. Exige, com
efeito, a conclusão de que o réu tinha a intenção de enganar a
administração da justiça.

Contudo, não se deve confundir a imprudência, dentro do conceito do sistema


common law, com a cegueira deliberada, para isso, antes da aplicação da referida teoria,
deve-se haver a percepção de que o fato em questão é provável ou pelo menos possível
acima da média (CALLEGARI; WEBER, 2017)40.

5.5 A justificativa para aplicação da teoria da cegueira deliberada no Sistema


Common Law

A justificativa normativa central para aplicação da doutrina da Cegueira

39Ibidem.
40Ibidem.

171
Deliberada reside na tese denominada “Culpabilidade Igualitária”. Consoante as Cortes
que aplicam a teoria em análise, é justificada pois igualmente reprovável agir
deliberadamente evitando o conhecimento e agir conhecendo a ilicitude da conduta ou
de elementos que a circundam, o que torna a ignorância deliberada o equivalente moral
ao conhecimento pleno (CALLEGARI; WEBER, 2017)41.

São três principais vertentes que sustentam a culpabilidade paritária. A


primeira considera a cegueira deliberada uma espécie dentro do gênero conhecimento;
já a segunda aduz a igual reprovabilidade da conduta daquele que age evitando
deliberadamente obter o conhecimento pleno da ilicitude do seu ato em relação àquele
que age sabendo da ilegalidade de sua ação; a terceira e última defesa da tese, mais
restritiva, exige a motivação inidônea da manutenção deliberada do agente na
ignorância (SARCH apud CALLEGARI; WEBER, 2017)42.

A alta probabilidade de uma ilegalidade equipara a conduta de um indivíduo


com dolo de comissão de um delito e, partindo dessa premissa, o Guia de
Sentenciamento Federal dos Estados Unidos da América (apud CALLEGARI; WEBER,
2017, p.139)43 em vez de fechar o conceito, termina por abri-lo ainda mais, inserindo
então a figura da cegueira deliberada.: “Um indivíduo é deliberadamente ignorante de
uma ofensa se ele não investigou a possível ocorrência de uma conduta ilegal a despeito
de conhecimento de circunstâncias que levariam uma pessoa razoável a investigar se a
conduta ilegal ocorreu.”

Afere-se que o conceito de conhecimento do Código Modelo dos EUA e o Guia


de Sentenciamento abrem a possibilidade de condenação dolosa para muitos casos,
equiparando-se a suspeita não investigada ao conhecimento.

5.6 Fundamentos da utilização da cegueira deliberada no Sistema Civil Law

A utilização da teoria da cegueira deliberada no direito continental passa por


questões mais complexas que nos Estados Unidos. Como já mencionado, existem quatro

41Ibidem.
42CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.
43Ibidem.

172
formas possíveis de “mente culpada” no direito norte-americano, enquanto que no
direito continental se divide entre dolo e culpa (CALLEGARI; WEBER, 2017)44.

Essa teoria surgiu no sistema common law para punir o acusado que apenas
contava com a alta suspeita ou elevado grau de possibilidade de que participava de um
ato ilícito. Contudo, observa-se que para o sistema civil law, não é tão importante tal
exigência, já que o dolo eventual já se presta a punir aquele indivíduo que conta com
um grau de representação suficiente da tipicidade de sua conduta e, mesmo assim,
assume o risco de leva-la a cabo (CALLEGARI; WEBER, 2017)45.

5.6.1 Tradição do Sistema Jurídico Civil Law

O Sistema Civil Law é o mais antigo e bem distribuído, cuja origem remonta a
450 a.C. Contudo, mesmo sendo o mais velho dos dois sistemas, levou
exponencialmente mais tempo para se desenvolver do que o sistema Common Law.
Vieira (2007, p.270)46 assim explica:

O termo Civil Law refere-se ao Sistema Legal adotado pelos países da


Europa Continental (com exceção dos países escandinavos) e por,
praticamente, todos os outros países que sofreram um processo de
colonização, ou alguma outra grande influência deles - como os país
da América Latina. O que todos esses países têm em comum é a
influência do Direito Romano, na elaboração de seus códigos,
constituições e leis esparsas. É claro que cada qual recebeu grande
influência do direito local, mas é sabido que, em grande parte desses
países, principalmente os que são ex-colônias, o direito local cedeu
passagem, quase que integralmente, aos princípios do Direito
Romano. E, por isso, a expressão Civil Law, usada nos países de língua
inglesa, refere-se ao sistema legal que tem origem ou raízes no Direito
da Roma antiga e que, desde então, tem-se desenvolvido e se formado
nas universidades e sistemas judiciário da Europa Continental, desde
os tempos medievais; portanto, também denominado sistema
Romano-Germânico.

Nas jurisdições do sistema civil law, a principal fonte do direito é a norma


positiva, e grandes áreas são codificadas de uma maneira sistêmica. Ocorre que, não há

44Ibidem.
45CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.
46 VIEIRA, Andréia Costa. Civil Law e Common Law: Os Dois Grandes Sistemas Legais Comparados. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2007.

173
dúvidas quanto a influência externa de vários fatores na construção de legal frame
(CALLEGARI; WEBER, 2017)47. O processo legal transnacional ainda que possa ser fruto
de intensas interações entre fronteiras, além dessas, geralmente é dirigido por atores
com determinado objetivo.

Observa-se que quanto mais a norma transnacional for clara, vinculante, e seu
conteúdo interpretado e aplicado, maior é o interesse de incorporação por estados e
outros atores. Os processos legais internacionais apresentam efeitos maiores do que
apenas moldar o direito nacional substancial (CALLEGARI; WEBER, 2017)48.

No que se refere à teoria da Cegueira Deliberada, o referido fenômeno parte


de um discurso norte-americano para coibir a prática de crimes de colarinho branco e o
narcotráfico, muitas vezes de difícil prova e condenação se consideradas as garantias
mencionadas em determinados sistemas jurídicos (CALLEGARI; WEBER, 2017)49.

5.7 Equiparação da teoria da cegueira deliberada ao dolo eventual: Artigo 1º, § 2º,
inciso I, da Lei de Lavagem de Dinheiro

Observa-se que a Teoria da Cegueira Deliberada possui como escopo punir por
dolo aquele que voluntariamente se coloca em estado de desconhecimento, de forma a
ignorar fatos suspeitos para optar por uma situação que lhe é mais vantajosa.

Nesse sentido, da mesma forma que o avestruz vê e finge que não viu, o
indivíduo também vê, há uma desconfiança, mas ele ignora a suspeita de que o ato que
está praticando é ilícito, com o objetivo de tirar algum proveito.

No caso em análise, a pessoa tem algum conhecimento, ou pelo menos uma


forte suspeita de que está perante de um negócio ilícito, entretanto, ela caminha em
sentido oposto àquele que se espera, para auferir lucro, decidindo deliberadamente por
não averiguar as transações que tenham indícios de crime.

Segundo Cabral (apud BONA JUNIOR, 2016)50 apesar do investigado não obter

47CALLEGARI, André Luiz; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2017.
48Ibidem.
49Ibidem.
50BONA JUNIOR, Roberto. É preciso discutir teoria da cegueira deliberada em crimes de lavagem. Disponível em:
<https://www.conjur.com.br/2016-nov-19/roberto-bona-preciso-discutir-cegueira-deliberada-crimes-lavagem>. Acesso em: 29.11.
2017.

174
conhecimento pleno dos fatos, essa falta de conhecimento pleno tende-se a prática de
atos afirmativos de sua pessoa para evitar a descoberta de uma situação suspeita.

A alteração legislativa no artigo 1º, § 2º, inciso I, da Lei de Lavagem de Dinheiro


advinda com a Lei nº 12.683/2012 permitiu a punição pelo dolo eventual e,
consequentemente, a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada.

Fato é que aquele que suspeitar da origem ilícita no meio em que atua e se
safar de apurar os fatos de forma proposital, para justificar a atividade econômica ou
financeira, assumirá o risco de praticar o delito de lavagem de capitais (CORDEIRO, apud
BONA JUNIOR, 2016)51.

Salienta-se que para que haja equiparação entre a Teoria da Cegueira


Deliberada e o dolo eventual, é indispensável a consciência voluntária de criar
obstáculos que impeçam o conhecimento efetivo sobre a origem ilícita da atividade
(BADARÓ; BOTTINI apud BONA JUNIOR, 2016)52.

Portanto, deve ser reconhecido o perigo de agir e assumir o risco de colaborar


para tal atividade, ou seja, a simples imprudência, negligência ou imperícia na formação
dos obstáculos não é permissível.

Há a necessidade do dolo, da vontade da pessoa se colocar em situação de


ignorante para obter algum benefício, bem como que a formação dos filtros de cegueira
seja voltada para evitar o conhecimento pleno de ilícitos penais (BONA JUNIOR, 2016)53.

Nascimento (2010)54, seguindo esse mesmo raciocínio, sustenta que:

Para a teoria da cegueira deliberada o dolo aceito é o eventual. Como


o agente procura evitar o conhecimento da origem ilícita dos valores
que estão envolvidos na transação comercial, estaria ele incorrendo
no dolo eventual, onde prevê o resultado lesivo de sua conduta, mas
não se importa comesse resultado. Não existe a possibilidade de se
aplicar a teoria da cegueira deliberada nos delitos ditos culposos, pois
a teoria tem como escopo o dolo eventual, onde o agente finge não
enxergar a origem ilícita dos bens, direito e valores com a intenção de
levar vantagem. Tanto é que, para ser supostamente aplicada a

51Ibidem.
52Ibidem.
53Ibidem.
54NASCIMENTO, André Ricardo Neto. Teoria da Cegueira Deliberada: Reflexos de sua aplicação à Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº
9.613/98). Disponível em: <http://repositorio.uniceub.br/bitstream/123 456789/800/1/20570516.pdf>. Acesso em: 29.11.2017.

175
referida teoria aos delitos de lavagem de dinheiro exige-se a prova de
que o agente tenha conhecimento da elevada probabilidade de que os
valores eram objeto de crime e que isso lhe seja indiferente.

Bottini (2012, p.114)55 se refere à Cegueira Deliberada” como uma “espécie de


dolo eventual em que o agente sabe a possível prática de ilícitos no âmbito em que atua
e cria mecanismos que o impedem de aperfeiçoar a sua representação do fato”.

É necessária uma percepção clara das circunstâncias, um entendimento


consciente dos elementos objetivos que indicam uma provável ilicitude dos bens.
Mesmo que seus contornos não sejam evidentes, obriga o interprete reconhecer um
contexto de suspeita robusta, na qual o indivíduo percebe o rico efetivo de que os
referidos bens provenham de atos ilícitos, e assume a possibilidade de colaborar para
uma conduta de lavagem de dinheiro (BADARÓ; BOTTINI, 2016)56.

Ainda, Badaró e Bottini (2016, p. 145)57 afirmam:

O diretor de uma instituição financeira não está em cegueira


deliberada se deixa de tomar ciência dos detalhes de todas as
operações do setor de contabilidade a ele subordinado, e se contenta
apenas com relatórios gerais. A otimização da organização funcional
da instituição não se confunde com a cegueira deliberada. Da mesma
forma não se reconhece o instituto nos casos em que o mesmo diretor
deixa de cumprir com normas administrativas - como a instituição de
comitê de compliance - por negligência. A falta de percepção da
violação da norma de cuidado afasta o dolo eventual. Por outro lado,
se o mesmo diretor desativa o setor de controle interno, e suspende
os mecanismos de registro de dados sobre transações de clientes, com
a direta intenção de afastar os filtros de cuidado, pode criar uma
situação de cegueira deliberada.

Uma vez presentes os requisitos exigidos pela teoria da cegueira deliberada,


consistente na prova de que o agente tinha o conhecimento da elevada probabilidade
da natureza e origens criminosas dos bens, direitos e valores envolvidos e ele escolheu
agir e permanecer alheio ao conhecimento pleno desses fatos, não se vislumbra objeção

55BOTTINI, Pierpaolo; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro. 3 ed. São Paulo: RT (Revista dos Tribunais), 2016.
56Ibidem.
57Ibidem.

176
jurídica ou moral para reputá-lo pelo resultado delitivo (MORO, 2010)58.

Se não houver a consciência de que tais filtros impedirão de ter ciência de atos
infracionais penais, fica excluído o dolo eventual (CORDERO apud BADARÓ; BOTTINI,
2016)59.

Enfim, grande parte da doutrina defende a equiparação da teoria da Cegueira


Deliberada ao dolo eventual, entretanto, há a necessidade, como já exposto, do
preenchimento dos pressupostos à sua caracterização. Ao aplicar a referida teoria, os
julgadores brasileiros assumem um papel importantíssimo. É notório que estamos
diante de um grande instrumento dado ao Poder Judiciário para coibir a impunidade de
criminosos que se utilizam dessa prática, os quais, muitas vezes se escondiam sob as
brechas da lei.

A investigação criminal é fundamental para averiguar se houve ou não o dolo


eventual. A qualidade dessa investigação é que permitirá determinar a indiferença do
agente criminoso à lei penal, bem como o nível de barreiras que ele criou artificialmente
para não ter ciência do crime, assumindo o risco de praticar o delito de lavagem de
capitais.

6. A TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL


FEDERAL E SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No âmbito do Direito Penal Brasileiro, a Teoria da Cegueira Deliberada está


sendo utilizada em diversos casos como fundamentação da condenação de indivíduos.
Em alguns, especificamente, para a condenação pelo crime de Lavagem de Dinheiro.

Na pesquisa realizada, constatou-se a existência de decisões em que houve a


aplicação da teoria em análise pelo Supremo Tribunal Federal e Egrégio Superior
Tribunal de Justiça.

Cita-se a Ação Penal nº 47060, conhecida popularmente como “Mensalão”,

58MORO, Sérgio Fernando. Crime de Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.
59BOTTINI, Pierpaolo; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro. 3 ed. São Paulo: RT (Revista dos Tribunais), 2016.
60BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Embargos Infringentes na AP 470. Lavagem de Dinheiro. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id =252395734&tipoApp=.pdf.> Acesso em: 29.11.2017.

177
quando então alguns ministros do STF fizeram apontamentos no sentido de equiparação
da teoria ao dolo eventual. Veja-se que essa posição vai ao encontro do que tem sido
discutido no âmbito internacional acerca da necessidade dos ordenamentos jurídicos se
ajustarem ao combate ao crime de lavagem de dinheiro, reforçado por uma
interpretação que repele a terceirização da prática desse crime, admitindo a aplicação
do dolo eventual como equiparado à teoria da Cegueira Deliberada.

Em alguns julgamentos, o Superior Tribunal de Justiça também tem citado a


Teoria da Cegueira Deliberada equiparando-a ao dolo eventual. Na pesquisa,
encontraram-se decisões em que não se vislumbrou, por parte do colegiado, obstáculo
que impedisse o acolhimento do raciocínio então exposto nesse trabalho, havendo base
legal na redação do artigo 18, I, in fine, do Código Penal. Os casos detectados foram os
seguintes: AREsp: 785584 PR 2015/0236771-2, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data
de Publicação: DJ 05/09/201761; RHC: 47524 PA 2014/0105510-3, Relator: Ministra
MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 12/02/2015, T6- SEXTA TURMA,
Data de Publicação: DJe 26/02/201562; Resp: 1620209 RS 2016/0214790-9. Relator:
Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Publicação: DJ 15/02/201763;
Resp:1587233 PR 2016/0070815-7, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data da
Publicação: DJ 11/12/201764; e AgRg no AREsp: 1009274 MG 2016/0288729-2, Relator:
Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 18/04/2017, T5 -Quinta Turma, Data de
Publicação: DJe 03/05/201765.

Enfim, a aplicação da teoria da cegueira deliberada equiparada ao dolo


eventual nos revela uma expansão do Direito Penal no Brasil, sendo esse um dos pontos
mais debatidos na atualidade, diante da impunidade, na maioria das vezes, de

61BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Agravo em Recurso Especial nº 785.584/ PR. Disponível em:
<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/495927147/agravo-em-recurso-especial-aresp-785584-pr-2015-0236771-2>. Acesso
em: 29.11.2017.
62BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Recurso Ordinário em Habeas Corpus: RHC 47524 PA 2014/0105510-3. Disponível em: <

https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudência /178152145/recurso-ordinario-em-habeas-corpus-rhc-47524-pa-2014-0105510-
3/relatorio-e-voto-178152156>. Acesso em: 29.11.2017.
63BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Recurso Especial: REsp 1620209RS 2016/0214790-9. Disponível em: <

https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/449541101 /recurso-especial-resp-1620209-rs-2016-0214790-9>. Acesso em: 30.11.2017.


64BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Recurso Especial: REsp 1587233 PR2016/0070815-7. Disponível em:

<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia /530141159/recurso-especial-resp-1587233-pr-2016-0070815-7/decisao-
monocratica5301411 70?ref=juris-tabs>. Acesso em: 30.11.2017.
65
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial: AREsp 1009274 MG 2016/0288729-
2. Disponível em:<https://stj.jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/449673810/agravo-em-recurso-especial-aresp-1009274-mg-2016-
0288729-2>. Acesso em: 30.11.2017.

178
poderosos que cometiam os chamados crimes de colarinho branco e ficavam à margem
da justiça.

7. CONCLUSÃO

A Lavagem de Dinheiro é uma conduta delituosa que pertence à história há um


bom tempo, conquanto a expressão em si tenha uma origem recente. Ela surgiu nos
Estados Unidos, por volta de 1920, quando gângsteres norte-americanos usavam
lavanderias, comércio formalmente legalizado, com a finalidade de ocultar a origem
ilícita do dinheiro adquirido.

A Lavagem de Dinheiro trata-se de uma prática comum, ela sempre existiu, o


que modificaram foram os instrumentos e mecanismos empregados para se consumar
os desígnios criminosos, os quais foram se aperfeiçoando e se rebuscando, tornando-se
em maiores proporções.

Tal como nos delitos financeiros, a Lavagem de Dinheiro deve ser interpretada
como um negócio que tem como objetivo gerar lucro, contudo também apresenta
perdas em decorrência do alto custo de produção de suas operações. Ela mobiliza um
grande volume de recursos e, sendo uma atividade dinâmica e complexa, gera
consequências que ultrapassam as fronteiras de países.

É de se observar, através da modificação das gerações das legislações de


lavagem de dinheiro no Brasil, a preocupação no aprimoramento das normas penais
com a finalidade de se buscar eficiência na elucidação de condutas criminais,
especialmente as oriundas de organizações criminosas, que se utilizam de meios ilícitos
para inserirem bens, valores e direitos no Sistema Econômico Financeiro.

Grandes foram as alterações trazidas pela Lei n° 12.683/12 e, é óbvio, tanto a


doutrina quanto a jurisprudência ainda vão ter que enfrentar diversas questões,
considerando que o tema é de grande relevância e atual no cenário brasileiro.

No artigo 1º, §2º, inciso I, da referida Lei, o legislador seguiu a tendência de


acrescentar ao tipo o dolo eventual para aqueles que utilizam na atividade econômica ou
financeira, bens, direitos ou valores provenientes de origem criminosa, e grande parte da
doutrina defende a equiparação da teoria da Cegueira Deliberada ao dolo eventual.

179
Aquiescem os doutrinadores e a jurisprudência que a verificação da aceitação
ou não da ocorrência do resultado lesivo pelo agente criminoso deve ser retirada através
das circunstancias do fato que resultou na ofensa ao bem jurídico penalmente tutelado.
Os fatos responderão, por si só, se o indivíduo assumiu ou não o risco de produzir o
resultado lesivo.

Acha-se, portanto, diante de um grande instrumento dado ao Poder Judiciário


para coibir a impunidade de agentes que se utilizam dessa prática delituosa. Todavia,
afere-se que a investigação criminal aprofundada e técnica é ferramenta essencial para
averiguar se houve ou não o dolo eventual em cada caso. Uma investigação qualificada
autorizará definir, de forma segura, a aplicação da teoria ao caso concreto.

Fato é que aquele que tem a suspeita da origem ilícita no meio em que atua e
se escapa de apurar os fatos de forma proposital, para justificar a atividade econômica
ou financeira, assumirá o risco de praticar o delito de lavagem de capitais. É
indispensável a consciência voluntária de criar obstáculos que impeçam o conhecimento
efetivo sobre a origem ilícita da atividade.

A aplicação da teoria da cegueira deliberada equiparada ao dolo eventual nos


mostra uma nova dimensão do Direito Penal, notadamente vocacionada à punição dos
chamados crimes de colarinho branco (White colar crimes).

Observa-se que a referida matéria já foi abordada em julgamentos do Supremo


Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, que aplicaram a teoria em menção,
pelo que, como dito no decorrer do trabalho, empresários, políticos e diretores que se
valham dessa prática criminosa estão vivenciando o alvorecer de um novo grau de
comprometimento, exigindo um controle maior de suas atividades, ou seja, de tudo o
que ocorre no governo ou organização.

Enfim, a aplicação da teoria da cegueira deliberada equiparada ao dolo


eventual fortalece o enfrentamento do combate ao crime de lavagem de dinheiro no
Brasil, evitando a terceirização da prática do referido crime, bem como obstando a
criação de vantagens competitivas para empresas e pessoas físicas que se utilizam
recursos provenientes de meios criminosos.

180
8. REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Mário de Souza; FREITAS, Claudia Regina; SOUZA, Irineu Manoel de. Gestão
do conhecimento para tomada de decisão. São Paulo: Atlas, 2011.

BALTAZAR JUNIOR, José Paulo. Crimes federais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.

BARROS, Marco Antônio de. Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas: com
comentário, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007.

BECK, Francis. A doutrina da cegueira deliberada e sua aplicabilidade ao crime de


lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais, Sapucaia do Sul, n. 41, set. 2011.

BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou


ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro
para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras
- COAF, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9613.htm. Acesso em: 09 nov. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº 785.584/ PR.


Agravante: Guivan Gueno. Agravado: Ministério Público Federal. Relator: Min. Nefi
Cordeiro, 30 de agosto 2017. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/495927147/agravo-em-recurso-especial-
aresp-785584-pr-2015-0236771-2. Acesso em: 29 nov. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Recurso Ordinário em Habeas Corpus:
RHC 47524 PA 2014/0105510-3. Penal e processual penal. Jogo do bicho. Associação
criminosa. Lavagem de dinheiro. Crime contra a economia popular. Cartel. Falsidade
ideológica. Denúncia. Descrição fática suficiente. Demonstração de indícios de autoria e
da materialidade. Inépcia. Não ocorrência. Ação penal. Falta de justa causa. Atipicidade.
Trancamento. Revolvimento fático. Impossibilidade na via eleita. 1. Devidamente
descrito os fatos delituosos (indícios de autoria e materialidade), não há como trancar a
ação penal, em sede de habeas corpus, por inépcia da denúncia. Plausibilidade da
acusação. 2. Em tal caso, está plenamente assegurado o amplo exercício do direito de
defesa, em face do cumprimento dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal.
3. O habeas corpus não se apresenta como via adequada ao trancamento da ação penal,
quando o pleito se baseia em falta justa causa (atipicidade), não relevada, primo oculi.
Intento, em tal caso, que demanda revolvimento fático-probatório, não condizente com
a via angustia do writ. 4. Recurso ordinário não provido. Recorrente: Antonio Pereira
Valente. Recorrido: Ministério Público do Estado do Pará. Relator: Min. Maria Thereza
de Assis Moura, 12 de fevereiro de 2015. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudência /178152145/recurso-ordinario-em-habeas-
corpus-rhc-47524-pa-2014-0105510-3/relatorio-e-voto-178152156. Acesso em: 29 nov.
2017.

181
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 1009274 MG 2016/0288729-2. Agravante:
Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Agravado: Antônio Vilefort Martins.
Relator: Min. Felix Fischer, 06 de fevereiro 2017. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/449673810/agravo-em-recurso-especial-
aresp-1009274-mg-2016-0288729-2. Acesso em: 30 nov. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Ag. Reg. no Recurso Extraordinário
876.692 Paraná. Agravo regimental no recurso extraordinário. Processual penal.
Impossibilidade de reexame de prova. Súmula n. 279 do Supremo Tribunal Federal.
Evasão de divisas. Operações dólar-cabo: julgado recorrido harmônico com a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Alegada contrariedade ao art. 93, inc. IX,
da Constituição não configurada. Agravo regimental ao qual se nega provimento.
Agravante: Nelson Luiz Pereira Corbett. Agravado: Ministério Público Federal. Relatora:
Min. Cármen Lúcia, 12 maio 2015. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID =8531210. Acesso
em: 09 nov. 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Embargos Infringentes na AP 470.


Lavagem de dinheiro. 1. Lavagem de valores oriundos de corrupção passiva praticada
pelo próprio agente: 1.1. O recebimento de propina constitui o marco consumativo do
delito de corrupção passiva, na forma objetiva “receber”, sendo indiferente que seja
praticada com elemento de dissimulação. 1.2. A autolavagem pressupõe a prática de
atos de ocultação autônomos do produto do crime antecedente (já consumado), não
verificados na hipótese. 1.3. Absolvição por atipicidade da conduta. 2. Lavagem de
dinheiro oriundo de crimes contra a Administração Pública e o Sistema Financeiro
Nacional. 2.1. A condenação pelo delito de lavagem de dinheiro depende da
comprovação de que o acusado tinha ciência da origem ilícita dos valores. 2.2.
Absolvição por falta de provas. 3. Perda do objeto quanto à impugnação da perda
automática do mandato parlamentar, tendo em vista a renúncia do embargante. 4.
Embargos parcialmente conhecidos e, nessa extensão, acolhidos para absorver o
embargante da imputação de lavagem de dinheiro. Relator: Min. Luiz Fux, 13 de março
de 2014. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id
=252395734&tipoApp=.pdf. Acesso em: 29 nov. 2017.

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184
Thimotie Aragon Heemann1

PROPOSTAS CONTEMPORÂNEAS PARA


UM COMBATE EFETIVO E INTEGRAL À
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
CONTRA A MULHER

CONTEMPORARY PROPOSALS FOR EFFECTIVE AND


INTEGRAL COMBAT TO DOMESTIC AND FAMILY VIOLENCE
AGAINST WOMEN

SUMÁRIO: 1. Trajetória histórica da Lei Maria da Penha no ordenamento jurídico


brasileiro e a importância do diálogo entre o Direito das Mulheres e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos; 2. Formas de violência doméstica e familiar contra
a mulher; 3. Fases do ciclo da violência doméstica e familiar contra a mulher;
4. Propostas contemporâneas para o combate e prevenção à violência doméstica e
familiar contra a mulher; 5. Conclusão; 6. Referências.

1
Promotor de Justiça no Estado do Paraná na Comarca de Campina da Lagoa e Designado para atuar em colaboração no Centro de
Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Direitos Humanos do MPPR – CAOPJDH. Graduado em Direito pela Escola Superior do
Ministério Público do Rio Grande do Sul/ESFMP. Pós graduado em Direito. Coautor do livro Jurisprudência Internacional de Direitos
Humanos. Professor de Direitos Humanos e Direito Constitucional do Curso CEI. Palestrante. Autor de artigos publicados em revistas
especializadas. E-mail: taheemann@mppr.mp.br.

* A data de submissão do presente artigo foi no dia 27/06/2019 e a aprovação ocorreu no dia 02/09/2019.

185
RESUMO: O presente trabalho expõe um panorama da evolução normativa do combate
à violência doméstica e familiar contra a mulher no ordenamento jurídico brasileiro a
partir das influências do Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como sugere
novas propostas em busca de um combate efetivo e integral à violência doméstica e
familiar contra a mulher no Brasil, pautado não apenas na judicialização da questão, mas
também a partir de ações extrajudiciais de cunho resolutivo e preventivo.

ABSTRACT: This paper presents an overview of the normative evolution of combating


domestic and family violence against women in the Brazilian legal order from the
influences of International Human Rights Law, as well as suggests new proposals in
search of effective and integral combat to domestic and family violence against women
in Brazil, based not only on the judicialization of the question, but also from extrajudicial
actions of a resolutive and preventive nature.

PALAVRAS-CHAVES: Direitos Humanos; Igualdade de Gênero; Violência Doméstica;


Resolutividade.

KEYWORDS: Human Rights; Gender equality; Domestic violence; Resolution.

186
1. TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA LEI MARIA DA PENHA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO E A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO ENTRE O DIREITO DAS MULHERES E O
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

A discriminação de gênero, enquanto aspecto sócio-histórico-cultural, ainda se


faz presente na sociedade brasileira, sendo diversos os elementos que comprovam essa
realidade, tais como a sub-representatividade da mulher no cenário político nacional, a
disparidade entre os salários destinados à população feminina e masculina,2 o fato de
que o Brasil ocupa a 5ª colocação no ranking mundial de países com maiores taxas de
homicídios de mulheres, dentre outros. Apesar dos dados supramencionados, o advento
de uma legislação específica disciplinando normas de combate à violência doméstica e
familiar contra a mulher é relativamente recente no Brasil, possuindo pouco mais de
uma década de existência. Se engana quem acredita que a Lei 11.340/2006,
popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, foi idealizada pelo Congresso
Nacional brasileiro (este, composto majoritariamente por homens) a partir de uma
iniciativa de livre e espontânea vontade. Ao contrário, a Lei 11.340/2006 surgiu a partir
de uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ao
Brasil exarada no caso Maria da Penha Fernandes vs. Brasil, o qual será resumido de
forma breve.

A senhora Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima, em 1983, em seu


domicílio na cidade de Fortaleza/CE, de tentativa de homicídio por parte de seu então
marido, o senhor Marco Antônio Heredia Viveiros, que, além de ter disparado um projétil
de arma de fogo contra a mesma, causando-lhe paraplegia irreversível e outros traumas
físicos e psicológicos, ainda tentou eletrocutá-la enquanto se banhava, logo que havia
regressado do hospital. Tais atos simbolizaram o ápice de uma série de agressões
sofridas durante toda a vida matrimonial do casal. A vítima resolveu se separar
judicialmente do agressor e denunciá-lo para as autoridades competentes. O Ministério
Público ofereceu denúncia contra Marco Antônio em 1984. Passados mais de 15 anos
desde a data dos fatos, a Justiça brasileira ainda não havia chegado à condenação

2Sobre este ponto, importante ressaltar que a própria Constituição Federal de 1988 garante em seu artigo 7º, inciso XX, a “proteção
do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”. Trata-se de uma ação afirmativa de caráter
constitucional prevista pelo legislador constituinte em favor das mulheres brasileiras.

187
definitiva do réu, que se mantivera em liberdade durante todo esse tempo, tudo isso
apesar da gravidade da acusação e do substancioso conjunto probatório contra ele.

Em 1998, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) recebeu a


denúncia apresentada pela vítima e por entidades não governamentais de proteção dos
direitos humanos das mulheres. Em 2001, a CIDH declarou o Estado brasileiro
responsável pela violação do direito da vítima à proteção judicial, já que ineficiência e a
tolerância do Brasil com a violência doméstica contra a mulher não se afigurava um
evento episódico deste caso, mas sim uma pauta sistemática, tratando-se “(...) de uma
tolerância de todo o sistema, que não faz senão perpetuar as raízes e fatores psicológicos,
sociais e históricos que mantêm e alimentam a violência contra a mulher” (§ 55). E assim,
a CIDH assentou que o Estado brasileiro violou não apenas a obrigação de processar e
punir o responsável pela violação de direitos humanos das vítimas, mas também o dever
de prevenir a violência doméstica contra a mulher, recomendando ao Estado brasileiro
as seguintes providências: “1) Completar rápida e efetivamente o processamento penal
do responsável pela agressão e tentativa de homicídio em prejuízo da Senhora Maria da
Penha Fernandes Maia; 2) Proceder a uma investigação séria, imparcial e exaustiva a fim
de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados que
impediram o processamento rápido e efetivo do responsável, bem como tomar as
medidas administrativas, legislativas e judiciárias correspondentes; 3) Adotar, sem
prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão, as
medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima adequada reparação simbólica
e material pelas violações aqui estabelecidas, particularmente por sua falha em oferecer
um recurso rápido e efetivo; por manter o caso na impunidade por mais de quinze anos;
e por impedir com esse atraso a possibilidade oportuna de ação de reparação e
indenização civil; 4) Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância
estatal e o tratamento discriminatório com respeito a violência doméstica contra
mulheres no Brasil.3

Assim, foi a partir da controvérsia instaurada contra o Estado brasileiro no


sistema interamericano de direitos humanos que a Lei Maria da Penha passou a ser

3 Resumo do caso Maria da Penha Fernandes vs. Brasil retirado da obra PAIVA, Caio; HEEMANN, Thimotie Aragon. Jurisprudência
Internacional de Direitos Humanos. 2ª ed. Belo Horizonte: CEI, 2017.

188
debatida e posteriormente foi aprovada pelo Congresso Nacional, sendo inegável,
portanto, que a luta pela promoção da igualdade de gênero, bem como o combate à
violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil nasce, ao menos de forma
especializada e expressa, após uma forte influência do Direito Internacional dos Direitos
Humanos.

Mas este não é o único ponto de entrelaçamento entre o Direito das Mulheres
e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. No ano de 2010, o Estado brasileiro
introduziu a figura do feminicídio, ou seja, a conduta de matar alguém dirigida à mulher
pela sua própria condição de mulher, no artigo 121, §2º, inciso VI, do Código Penal, como
qualificadora do delito de homicídio.4 No entanto, pouco antes, mais precisamente em
novembro de 2009, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu pela
primeira vez a figura do feminicídio como crime, delimitando os contornos da mais grave
e severa violação de direitos humanos praticada contra uma mulher (CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2009, on-line)5, sendo inegável, novamente,
que os avanços estabelecidos no ordenamento jurídico brasileiro na luta pela promoção
dos Direitos das Mulheres perpassam pela influência das propostas e avanços
estabelecidos no Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Ainda nesta perspectiva, recentemente a Corte Interamericana de Direitos


Humanos fixou standards para aferir se determinada legislação é suficientemente
protetiva para a tutela dos Direitos das Mulheres. Ao analisar o caso Gutiérrez
Hernandez e outros vs. Guatemala, o tribunal interamericano afirmou que, para que
determinada legislação de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher seja
compatível com os artigos 7b e 7c da Convenção de Belém do Pará, determinada lei deve
ser capaz de:

[…] prevenir, sancionar ou erradicar a violência contra a mulher


quando a referida violência é perpetrada por pessoas com quem a
vítima: a) estava casada ou vinculada legalmente; b) viveu em
coabitação ou atualmente mora junto; c) conviveu ou teve convívio,
sem a necessidade de existir vínculo sentimental; d) possui ou possuiu
uma relação de natureza sentimental ou sexual, sem a necessidade de

4No ano de 2018, foi sancionada no Brasil a Lei 13.771/2018, que prevê o aumento da pena do feminicídio de um terço à metade se
o crime for cometido em situação de descumprimento de medida protetiva de urgência determinada com base na Lei 11.340/2006.
5Caso González e outras “campo algodoeiro” vs. México.

189
que qualquer vínculo legal; e) possui ou vai possuir um filho ou filha; f)
é parente ou familiar; g) possuiu relação de intimidade, noivado,
amizade ou companheirismo; h) trabalhou como empregada
doméstica para aquela pessoa, ou qualquer outra situação de violência
contra a mulher praticada por pessoas que pretendam ou pretendiam,
de forma reiterada e contínua uma relação amorosa ou de intimidade
com a vítima.(CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2017,
on-line)

Nesse sentido, ao realizar o cotejo entre os critérios de aplicação da Lei


11.340/2006 previstos no artigo 5º e seus incisos, quais sejam: a) no âmbito da unidade
doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; b) no âmbito da família,
compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram
aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa e; c) em
qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a
ofendida, independentemente de coabitação, com os standards fixados pela Corte IDH,
é possível concluir a partir de uma interpretação permeada por valores do Direito das
Mulheres,6 que a Lei Maria da Penha é suficientemente protetiva, embora uma ou outra
situação delineada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos não esteja abrangida
pelo atual âmbito de aplicação da Lei 11.340/2006, sendo cabível, neste caso, a
realização de um controle de convencionalidade construtivo7 por parte do intérprete do
direito.

6 Sobre o conceito de interpretação constitucional feminista, é a lição de Larissa Tomazoni e Estefânia Barboza: “A interpretação
feminista é um projeto que pretende repensar o direito constitucional e explorar sua relação com o feminismo examinando, desafiando
e redefinindo a própria ideia de constitucionalismo a partir de uma perspectiva feminista. Os estereótipos e abordagens
discriminatórias deixaram marcas no direito constitucional e nas tradições legais. O feminismo pode desempenhar um papel na
neutralização dessas influências e a interpretação feminista pode ser uma ferramenta muito eficaz a serviço da mudança
jurisprudencial gradual, além disso, oferece uma nova perspectiva interpretativa do conhecimento humano, incluindo a esfera do
direito. Alguns exemplos clássicos da influência de estereótipos e discriminação na interpretação vem de casos em que documentos
aparentemente neutros foram interpretados de forma excludente às mulheres por causa de vieses culturais”. (BARBOZA, Estefânia;
TOMAZONI, Larissa. Interpretação constitucional feminista e a jurisprudência do STF. (In) FACHIN, Melissa Girardi; SILVA, Christine
Oliveira Peter da; BARBOZA, Estefânia. Constitucionalismo feminista. Bahia: Juspodivm, 2018, p. 241). Também reconhecendo a
existência do constitucionalismo feminista: BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist Constitucionalism: global
perspectives. New York: Cambridge University Press, 2012.
7O controle construtivo de convencionalidade é aquele que busca compatibilizar a legislação interna com as normas internacionais de

direitos humanos através da via da hermenêutica, construindo interpretações que viabilizem a harmonia entre as convenções
internacionais de direitos humanos e o ordenamento jurídico doméstico. Já o controle destrutivo (também chamado de “saneador”)
de convencionalidade é aquele que se materializa com a invalidação das normas domésticas contrárias aos tratados internacionais de
direitos humanos. Nesse sentido, e com base nas ideias de Néstor Pedro Sagués, é a lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de
Souza: “De acordo com Néstor Pedro Sagues, ao lado do controle destrutivo de convencionalidade, que envolve a invalidação das
normas internas contrárias aos tratados internacionais de direitos humanos, deve-se empreender também o controle construtivo de
convencionalidade, que consiste em buscar ajustar a legislação interna à normativa internacional pela via hermenêutica, no afã de
construir interpretações da primeira que se compatibilizem com parâmetros internacionais de proteção de direitos humanos”
(SARMENTO, Daniel; NETO, Cláudio Pereira de Souza. Direito Constitucional: teoria, tópicos e métodos de trabalho. Belo Horizonte:
Editora Forum, 2016. p. 53).

190
Ainda neste contexto de análise dos influxos e standards do Direito
Internacional dos Direitos Humanos para a implementação de um combate integral e
efetivo à violência contra a mulher, a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu
recentemente que:

É uma obrigação do Estado proteger as mulheres vítimas de violência,


garantindo de modo efetivo o acesso efetivo aos serviços de justiça e
de saúde. Entre as medidas que devem ser garantidas pelo Estado
estão: a) facilitar procedimentos seguros e acessíveis para que as
vítimas possam denunciar os atos de violência; b) contar com um
sistema de medidas de proteção imediatas de modo a resguardar a
integridade das vítimas; c) disponibilizar assistência jurídica gratuita a
vítima durante todas as etapas do processo; d) facilitar o atendimento
médico e psicológico da vítima; e) implementar mecanismos de
acompanhamento social e material (casos de abrigo e centros de
acolhida) a curto e médio prazo.(CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS, 2018, on-line)

Em relação ao item ‘a’, o Estado brasileiro vem democratizando cada vez mais o
acesso às vítimas de violência doméstica aos canais de denúncia, possibilitando às
autoridades estatais o conhecimento de um maior número de casos de violência
doméstica e familiar contra a mulher ocorridos em território brasileiro. É o que ocorre,
por exemplo, a partir do “Disque 180”, ferramenta criada pela extinta Secretaria de
Política para Mulheres do Governo Federal para que as mulheres de todo o Brasil
denunciem as situações de violência.

Já em relação ao item ‘b’, a Lei Maria da Penha conta com um ágil e célere
sistema de medidas protetiva de urgência para resguardar a integridade das vítimas. A
prova disso é justamente o especial valor que se confere à palavra da vítima na análise
da concessão ou não da medida protetiva de urgência.8 Não se desconhece que este
sistema de medidas protetivas de urgência carece de um maior aperfeiçoamento em sua
aplicação prática, todavia, o entendimento do tribunal interamericano neste ponto vem

8Em se tratando de casos de violência doméstica em âmbito familiar contra a mulher, a palavra da vítima ganha especial relevo para o
deferimento de medida protetiva de urgência, porquanto tais delitos são praticados, em regra, na esfera da convivência íntima e em
situação de vulnerabilidade, sem que sejam presenciados por outras pessoas”. (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário
em Habeas Corpus n. 34035/AL. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24711532/recurso-ordinario-em-habeas-
corpus-rhc-34035-al-2012-0213979-8-stj/inteiro-teor-24711533?ref=juris-tabs>. Acesso em: 22 jun. 2019.) Também nesse sentido, é
o teor do enunciado 45 do Fórum Nacional de Juízes e Juízas de Violência Doméstica: “As medidas protetivas de urgência previstas na
Lei 11.340/2006 podem ser deferidas de forma autônoma, apenas com base na palavra da vítima, quando ausentes outros elementos
probantes nos autos”.

191
sendo cumprido pelo Estado brasileiro, ainda que o referido sistema de medidas
protetivas possa ser aperfeiçoado e otimizado.

Acerca do item ‘c’, as mulheres em situação de violência no Estado brasileiro


recebem assistência judiciária gratuita ao menos de três formas. A primeira delas, a
partir da prestação de serviços de assistência jurídica pela Defensoria Pública.
Atualmente, com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, o Estado brasileiro está
em um crescente movimento no que toca à implementação de Defensorias Públicas no
interior de seus Estados.9

A segunda forma de tutela dos interesses das mulheres em situação de violência


é através do Ministério Público. Segundo a Constituição Federal de 1988, o Promotor de
Justiça possui a incumbência de tutelar os interesses individuais indisponíveis, como por
exemplo, a integridade física e psicológica das mulheres em situação de violência. Neste
ponto, convém ressaltar que a existência de Defensoria Pública estruturada em
determinada Comarca não impede a tutela das mulheres em situação de violência
doméstica e familiar pelo membro do Ministério Público. Ao contrário, em um país com
altos índices de violência contra a mulher, deve ser admitido o maior número de
instituições à disposição das mulheres em situação de violência. Sabe-se que as questões
atinentes à violência doméstica e familiar contra a mulher tramitam, em quase sua
totalidade, no âmbito da justiça estadual,10 sendo encargo da Defensoria Pública e do
Ministério Público do respectivo Estado a tutela dos interesses da mulher em situação
de violência durante todas as etapas do processo judicial. É bem verdade que essa tutela
de interesses é realizada de forma distinta pelo Ministério Público e pela Defensoria
Pública, uma vez que o órgão ministerial possui a incumbência primordial de promover
a ação penal contra o agressor, ainda que neste caso, possa postular pela estipulação
mínima de um quantum indenizatório mínimo à vítima de violência contra a mulher já
no momento do oferecimento da denúncia.11 Por fim, não se desconhece o importante

9Em que pese a existência de Defensoria Pública em todos os Estados da Federação e no Distrito Federal, o Estado brasileiro ainda não
implementou de forma plena o comando disposto no artigo 98, §2º do ADCT: “No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o
Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste
artigo”.
10É possível, contudo, que em casos excepcionais a tramitação de pedidos de medidas protetivas de urgência ocorra diante da Justiça

Federal, como por exemplo, nos casos em que a ameça cometida contra a mulher é realizada em rede social por agressor que reside
no exterior. Foi o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência n. 150.712-SP (SUPERIOR TRIBUNAL DE
JUSTIÇA, 2018, on-line).
11 RECURSO ESPECIAL. RECURSO SUBMETIDO AO RITO DOS REPETITIVOS (ART. 1.036 DO CPC, C/C O ART. 256, I, DO RISTJ). VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO MÍNIMA. ART. 397, IV, DO CPP. PEDIDO NECESSÁRIO.

192
papel dos agentes de polícia na tutela dos direitos das mulheres vítimas de violência,
uma vez que é geralmente na Delegacia de Polícia que a mulher agredida tem o primeiro
contato com a rede de proteção do Estado. Nesta perspectiva, inclusive, o Estado
brasileiro conta com diversas “Delegacias da Mulher”, locais especializados na
investigação de delitos perpetrados contra mulheres e majoritariamente compostos por
pessoas do sexo feminino, criando-se assim um ambiente mais agradável (ou menos
constrangedor) para a mulher em situação de vulnerabilidade que adentra em tais
repartições policiais.

2. FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

O artigo 7º da Lei 11.340/2006 elenca ao menos cinco formas de violência


doméstica e familiar contra a mulher, são elas: violência moral, psicológica, física,
patrimonial e sexual. Por violência física contra a mulher, entende-se “qualquer conduta
que ofenda sua integridade ou saúde corporal”. Trata-se da forma mais aparente e
perceptível de violência doméstica e familiar contra a mulher. Nestes casos o sistema de
justiça e rede de proteção parecem estar um pouco mais preparados para que sejam
tomadas as medidas necessárias em favor da vítima. É a forma mais usual e corriqueira
de violência doméstica contra a mulher no Estado brasileiro.

PRODUÇÃO DE PROVA ESPECÍFICA DISPENSÁVEL. DANO IN RE IPSA. FIXAÇÃO CONSOANTE PRUDENTE ARBÍTRIO DO JUÍZO. RECURSO
ESPECIAL PROVIDO. [...] 4. Entre diversas outras inovações introduzidas no Código de Processo Penal com a reforma de 2008,
nomeadamente com a Lei n. 11.719/2008, destaca-se a inclusão do inciso IV ao art. 387, que, consoante pacífica jurisprudência desta
Corte Superior, contempla a viabilidade de indenização para as duas espécies de dano - o material e o moral -, desde que tenha havido
a dedução de seu pedido na denúncia ou na queixa. 5. Mais robusta ainda há de ser tal compreensão quando se cuida de danos morais
experimentados pela mulher vítima de violência doméstica. Em tal situação, emerge a inarredável compreensão de que a fixação, na
sentença condenatória, de indenização, a título de danos morais, para a vítima de violência doméstica, independe de indicação de um
valor líquido e certo pelo postulante da reparação de danos, podendo o quantum ser fixado minimamente pelo Juiz sentenciante, de
acordo com seu prudente arbítrio. 6. No âmbito da reparação dos danos morais - visto que, por óbvio, os danos materiais dependem
de comprovação do prejuízo, como sói ocorrer em ações de similar natureza -, a Lei Maria da Penha, complementada pela reforma do
Código de Processo Penal já mencionada, passou a permitir que o juízo único - o criminal - possa decidir sobre um montante que,
relacionado à dor, ao sofrimento, à humilhação da vítima, de difícil mensuração, deriva da própria prática criminosa experimentada.
7. Não se mostra razoável, a esse fim, a exigência de instrução probatória acerca do dano psíquico, do grau de humilhação, da
diminuição da autoestima etc., se a própria conduta criminosa empregada pelo agressor já está imbuída de desonra, descrédito e
menosprezo à dignidade e ao valor da mulher como pessoa. 8. Também justifica a não exigência de produção de prova dos danos
morais sofridos com a violência doméstica a necessidade de melhor concretizar, com o suporte processual já existente, o atendimento
integral à mulher em situação de violência doméstica, de sorte a reduzir sua revitimização e as possibilidades de violência institucional,
consubstanciadas em sucessivas oitivas e pleitos perante juízos diversos. 9. O que se há de exigir como prova, mediante o respeito ao
devido processo penal, de que são expressão o contraditório e a ampla defesa, é a própria imputação criminosa - sob a regra, derivada
da presunção de inocência, de que o onus probandi é integralmente do órgão de acusação -, porque, uma vez demonstrada a agressão
à mulher, os danos psíquicos dela derivados são evidentes e nem têm mesmo como ser demonstrados. 10. Recurso especial provido
para restabelecer a indenização mínima fixada em favor pelo Juízo de primeiro grau, a título de danos morais à vítima da violência
doméstica. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1643051/MS. Disponível em:
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554473139?ref=juris-tabs>. Acesso em: 22 jun. 2019.)

193
Já a violência psicológica é conceituada pela Lei Maria da Penha como:
“qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe
prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,
insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou
qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”.
Foi a partir do conceito de violência psicológica contra a mulher trazido pelo legislador
brasileiro que a doutrina passou a desenvolver as ideias de “gaslighting”,
“manterrupting”, “mansplaning” e “bropriating”.

O termo “gaslighting” refere-se à violência psicológica que diminui a


autoestima da mulher, fazendo com que a própria mulher e os demais que a cercam
passem a imaginar que a mesma se encontra louca ou desequilibrada. São típicas dessa
forma de violência as frases “você sempre exagera”, “nunca falei isso”, “você precisa se
tratar”, “você deve estar enlouquecendo” ou “você está muito sensível”. Em síntese, no
“gaslighting” o agressor distorce a realidade diminuindo a autoestima da mulher. Já a
prática denominada “manterrupting” consiste em interromper constantemente a fala da
mulher, impedindo que ela conclua seu raciocínio e afetando a autoestima da mesma. A
prática do manterrupting geralmente ocorre em ambientes nos quais as mulheres estão
desfavorecidas em termos numéricos.

Muito similar ao manterrupting é a prática do “mansplaning”, situação na qual


o homem agressor explica aquilo que é óbvio à mulher, tratando-a como uma incapaz.
Esta situação pode ser verificada em ambientes nos quais há uma certa exposição dos
interlocutores (leia-se: plateia), nada impedindo, no entanto, que o mansplaning seja
praticado em ambientes privados e na presença apenas do agressor e da vítima. Por fim,
há ainda a prática do “bropriating”, que consiste na apropriação pelo homem de ideias
que pertencem à mulher, levando o crédito e os louros pela ideia implementada. O
bropriating geralmente ocorre nos ambientes de trabalho ou em bancos acadêmicos.

Analisadas as formas contemporâneas de violência psicológica contra a mulher,


passemos ao exame do conceito de violência patrimonial contra a mulher, estipulado no
artigo 7º, inciso IV, da Lei 11.340/2006 como “qualquer conduta que configure retenção,

194
subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho,
documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os
destinados a satisfazer suas necessidades”. Na violência patrimonial o agressor possui
um sentimento de não aceitação em relação à independência financeira da mulher,
premido pelo pensamento retrógrado e ultrapassado de que as mulheres não possuem
o direito de ingressar no mercado de trabalho. Esta modalidade de violência contra a
mulher é frequentemente constatada em situações nas quais o agressor possui uma
idade avançada em relação a sua própria companheira, embora também seja possível
verificar a incidência da violência patrimonial contra a mulher em casais jovens ou com
pouca diferença de idade.

3. FASES DO CICLO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

O ciclo da violência doméstica e familiar contra a mulher foi criado na década


de setenta pela norte-americana Lenore Walker e vem sendo frequentemente utilizado
por profissionais das áreas da saúde, direito e assistência social para identificar casos de
violência doméstica contra a mulher no mundo globalizado. Nesse sentido, a questão da
violência doméstica contra a mulher passou a ser enxergada como um problema cíclico
e composto por três etapas,12 tendo em vista a sua intensa, similar e exaustiva repetição
no cotidiano das mesmas relações interpessoais.

A primeira fase do ciclo de violência doméstica é conhecida como “aumento de


tensão”. Neste estágio, o agressor passa a criar atritos e acumulando tensões, injúrias e
ameaças contra a vítima, que passa a viver em constante sensação de perigo eminente,
bem como se sentindo culpada pelas críticas que recebe do agressor. Nesta etapa,
também é comum que o agressor teça críticas a respeito de pessoas que possuem fortes
laços afetivos com a vítima, tudo com o intuito de afastá-la de amigos e familiares.

Em seguida, tem-se a fase conhecida como “ataque violento” ou “agressão”.


Nesta segunda etapa do ciclo da violência doméstica, o agressor maltrata física e
psicologicamente a vítima, geralmente de forma escalonada. É neste estágio que

12Em que pese exista um próprio texto da referida autora aduzindo a eventual existência de uma quarta fase do ciclo da violência
doméstica contra a mulher, a mesma autora indica que esta quarta fase, conhecida como “calmaria”, também pode ser incluída na
terceira fase do ciclo, denominada como “lua de mel” ou “arrependimento”.

195
geralmente as mulheres vítimas de violência doméstica buscam ajuda médica, apoio de
amigos e familiares e ainda, em alguns casos, registram boletim de ocorrência nas
repartições policiais.

A terceira e última fase do ciclo da violência doméstica é conhecida como “lua


de mel” ou “reconciliação”. Neste estágio o agressor tenta se redimir das agressões
perpetradas contra a vítima, envolvendo a mesma com pedidos de desculpa,
manifestações de amor e carinho e prometendo mudar seu comportamento no sentido
de nunca mais voltar a exercer violência contra a mesma. Esta etapa do ciclo pode ser
facilmente percebida em situações nas quais o agressor envia flores à vítima como
pedido de desculpas e promete que irá “parar de beber” ou que “passará a frequentar a
igreja”.

Este estágio do ciclo da violência é extremamente danoso para a mulher


agredida, uma vez que o agressor se utiliza de estratégicas de manipulação afetiva para
obter o perdão da vítima, o que acaba por retroalimentar todo o círculo vicioso da
violência contra a mulher, ocasionando a permanência e o aprisionamento das mulheres
em situação de vulnerabilidade neste processo danoso e os agressores à margem do
sistema de justiça, afinal, uma vez concedido o perdão pela vítima, a mesma desiste de
levar o caso ao conhecimento da rede de proteção. 13 Por fim, no ciclo da violência
doméstica contra a mulher, não há um lapso temporal delimitado para cada etapa e
tampouco um número exato de vezes em que o ciclo se perfaz, podendo cada fase durar
de um a seis meses e o ciclo se repetir por anos de forma ininterrupta.

A Lei 11.340/2006 ainda dispõe em seu artigo 7º, inciso III, o conceito de
violência sexual contra a mulher, podendo esta ser compreendida como:

[…] qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a


participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação,
ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a

13Esta situação da aprisionamento da vítima no ciclo da violência contra a mulher é chamada pela doutrina de “síndrome da mulher
maltratada”. Sobre o tema, é a lição de Ricardo Ferracini Neto: “Esta teoria explica o motivo pelo qual algumas mulheres em situação
de vitimação de violência doméstica não se opõem a isto com as possibilidades que lhes são oferecidas pelo Estado ou por organizações
e pessoas em particular; apesar de terem todo o conhecimento destas oportunidades. As mulheres portadores de tal Síndrome
adaptam-se à situação adversa e acabam inclusive opondo-se aos estímulos que as indicam as saídas possíveis da situação de maus
tratos domésticos em que estão envolvidas, chegando a desenvolver um grau de suportabilidade mais avançado, inclusive para os
traumas mais agudos”. (NETO, Ricardo Ferracini. A violência doméstica contra a mulher e a transversalidade de gênero. Bahia:
Juspodivm, 2018, p. 252). Também reconhecendo a existência da referida síndrome, porém com o nome de “síndrome da mulher
agredida”: DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 5. ed. Bahia: Juspodivm, 2019, p. 33.

196
utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à
gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus
direitos sexuais e reprodutivos. (BRASIL, 2006, on-line)

A violência sexual contra a mulher é frequentemente verificada em todas as faixas


etárias de vítimas e agressores. Trata-se, talvez, da segunda forma mais perceptível à luz
do sistema de justiça e de saúde, ficando atrás apenas da violência física, uma vez que
assim como esta, aquela também deixa cicatrizes e resquícios ostensivos que podem ser
visualizados pela rede de proteção à mulher.

É justamente no âmbito da violência sexual contra a mulher que reside a


chamada “violência obstétrica”, que se caracteriza pela apropriação do corpo e
processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, por meio do
tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização dos processos naturais,
causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e
sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres. Esse
fenômeno pode ocorrer durante três momentos distintos, quais sejam, a gestação, no
momento do parto ou, ainda, em situações de abortamento. São exemplos de violência
obstétrica durante a gestação: negligenciar o atendimento de qualidade à mulher,
ofender, humilhar ou xingar a mulher e sua família durante o período de gestação, negar
atendimento à mulher ou impor dificuldades ao atendimento, agendar cesárea sem
recomendação baseada em evidências científicas, atendendo aos interesses e
conveniência do médico, dentre outras práticas. No momento do parto, a violência
obstétrica pode ser observada nas seguintes situações: recusa da admissão em hospital
ou maternidade (peregrinação por leito), impedimento da entrada no acompanhante
escolhido pela mulher, cesariana sem indicação clínica e sem o consentimento da mulher,
impedir ou dificultar o aleitamento materno (impedindo amamentação na primeira hora
de vida, afastando o recém-nascido de sua mãe, deixando-o em berçários onde são
introduzidas mamadeiras, chupetas, etc), dentre outras práticas. Por fim, é possível
visualizar a ocorrência da violência obstétrica no atendimento em situações de
abortamento a partir de condutas como: negativa ou demora no atendimento à mulher
em situação de abortamento, questionamento à mulher quanto à causa do abortamento

197
(se intencional ou não), coação com a finalidade de confissão e denúncia à polícia da
mulher em situação de abortamento, ameaças, acusação e culpabilização da mulher,
dentre outras. É importante ressaltar que as práticas que caracterizam violência
obstétrica contra a mulher são enumeradas em um rol exemplificativo (numerus
apertus), tendo em vista o dinamismo e a expertise em conhecimentos de saúde que o
tema exige.

Ainda sobre o tema da violência sexual, até o ano de 2009 (dois mil e nove) o
Código Penal brasileiro tutelava os crimes sexuais em um capítulo denominado “crimes
contra os costumes”. No entanto, tendo em vista a conotação patriarcal que a expressão
revelava, uma vez que crimes altamente reprováveis como o estupro estavam inseridos
no mesmo capítulo que o já extinto delito de adultério, passando uma mensagem aquém
do necessário para a defesa das mulheres vítimas de tais condutas, o legislador brasileiro
modificou o bem jurídico a ser tutelado por tais crimes sexuais, passando a prever
expressamente que o referido capítulo do Código Penal tutela a “dignidade sexual” das
vítimas. Nesse mesmo sentido, no ano de 2018, o legislador brasileiro inseriu novos
delitos no referido capítulo, como o crime de importunação sexual, que anteriormente
caracterizava mera contravenção penal e deixando os perpetradores de tal conduta à
margem de uma punição suficientemente razoável.14

Por fim, a Lei 11.340/2006 prevê expressamente em seu artigo 7º, inciso IV, o
conceito de violência moral, que pode ser compreendido como “qualquer conduta que
configure calúnia, injúria ou difamação”. Além dos tradicionais e já conhecidos crimes
contra a honra, também configura violência moral a chamada “pornografia de vingança”
ou “revenge porn”. A pornografia de vingança pode ser visualizada quando, após o
término de um relacionamento, um dos envolvidos divulga imagens íntimas do outro,
expondo aquela pessoa por conta do sentimento de vingança. Na ampla maioria dos
casos, o revenge porn é praticado por homens em detrimento das mulheres, recaindo

14A recente reforma penal que inseriu tipos penais específicos no capítulo dos crimes contra a dignidade sexual ganhou corpo a partir
da insuficiência do sistema penal em punir os contraventores penais que praticavam a conduta de importunação ofensiva ao pudor
em veículos de transporte público nos grandes centros do país. A reforma introduzida no Código Penal pelo advento da Lei
13.718/2018 foi comemorada pelos movimentos feministas. A prática de proteger Direitos Humanos pela via do Direito Penal, é
também conhecida na doutrina como Direito Penal dos Direitos Humanos, e está longe de ser uma unanimidade entre os estudiosos
da matéria. Sobre o tema, ver, LIMA, Raquel da Cruz. O Direito Penal dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: CEI, 2018.

198
tal conduta sob o conceito de violência moral contra a mulher previsto na Lei Maria da
Penha.

4. PROPOSTAS CONTEMPORÂNEAS PARA O COMBATE E PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

Em que pese a revolução promovida pela Lei Maria da Penha no tocante ao


combate à violência doméstica no Estado brasileiro ao longo de treze anos de sua
existência, é possível verificar a partir de dados empíricos da realidade brasileira que,
para se propor um combate efetivo ao problema da violência doméstica contra a mulher,
o foco não deve ser única e exclusivamente na repressão promovida através do direito
penal. A problemática deve ser atacada por diversos fronts de forma concomitante, seja
na seara preventiva, seja na seara repressiva.

É a partir desta premissa de interdisciplinariedade que surgem diversas


propostas contemporâneas com o objetivo de minimizar os casos de violência doméstica
no Brasil, dentre elas os grupos de reflexão para agressores de violência doméstica,
pautados por princípios e regras da justiça restaurativa, a implementação dos Conselhos
de Direitos da Mulher, conferindo uma maior estrutura e expertise na formulação da
política pública da mulher, a utilização do recurso popularmente conhecido como “botão
do pânico”, a implementação das chamadas “Patrulhas Maria da Penha” e a estruturação
de casas de acolhida para mulheres vítimas de violência doméstica contra mulher.

Deste modo, convencido de que tais propostas auxiliam de forma significativa


para que se tenha um combate efetivo ao fenômeno da violência contra mulher em
determinada localidade, passamos à análise de cada uma destes fronts de atuação.

4.1 Grupos reflexivos para agressores de violência doméstica

Diferentemente do que ocorre com a grande parte dos acusados do sistema


criminal, o homem autor de atos que caracterizam a violência doméstica e familiar
contra mulher não se diferencia dos membros da comunidade onde vive e tampouco
exibe socialmente a violência, não demonstrando sinais de agressividade com amigos ou
colegas de trabalho. Geralmente, os agressores possuem o perfil do homem “comum” e
praticam atos de violência contra a mulher por uma questão de repetição de padrões

199
anteriormente vivenciados e internalizados ao longo da sua vida. Além disso, a violência
doméstica contra a mulher não possui classe social 15 , atingindo não apenas vítimas
desprovidas de poder aquisitivo, mas também vítimas abastadas financeiramente e
agressores da alta sociedade brasileira.

Desta forma, os grupos de reflexão para agressores de violência doméstica são


operacionalizados a partir dos princípios e padrões de comportamento propostos pelo
ideal de justiça restaurativa (restorative justice),16 com o objetivo de romper os padrões
de comportamento anteriormente internalizados pelo agressor, inibindo a reincidência
e rompendo o ciclo de violência estabelecido.

Primeiramente, é preciso responder a seguinte pergunta: por que o autor de


violência doméstica e familiar contra a mulher aceitaria frequentar um grupo de reflexão
para agressores? A resposta é simples. O juiz determina o comparecimento obrigatório
do agressor como uma das medidas cautelares alternativas à prisão no bojo da medida
protetiva de urgência prevista na Lei 11.340/2006, ou ainda como condição para o
cumprimento de pena em regime aberto.17

Não se desconhece aqui a discussão acadêmica acerca da (i)legalidade e até


mesmo da (in)constitucionalidade da decretação pelo Poder Judiciário do
comparecimento obrigatório no grupo de reflexão para agressores de forma cautelar já
no bojo de medida protetiva de urgência. Sobre este ponto, há uma série de argumentos
que podem ser trazidos à baila para defender tal possibilidade. Primeiramente, o artigo
23, caput, da Lei Maria da Penha estipula o rol de medidas protetivas de urgência
disponíveis ao magistrado para prevenir ou fazer cessar a violência contra a mulher.
Nessa linha de raciocínio, o próprio dispositivo mencionado prevê além do rol de

15
Há quem reconheça a chamada “síndrome da gaiola dourada” nas situações em que as vítimas de violência doméstica estão inseridas
em contextos e ambientes de luxo da alta sociedade. Em breve síntese, a síndrome da gaiola dourada busca explicar as peculiaridades
de mulheres que se encontram no ápice da pirâmide social e que, em razão do contexto social em que estão inseridas, não conseguem
dar fim ao relacionamento abusivo a que estão submetidas. Na síndrome da gaiola dourada o agressor passa a encarar a mulher
inserida na alta sociedade como um enfeito ou mero adorno para um relacionamento te fachada, aprisionando-a de forma sutil numa
“gaiola de ouro”, impedindo que a mulher, neste caso a vítima de violência psicológica, passe a ditar os rumos de sua própria vida.
Sobre o tema, ver MACEDO, Nathalí. Luiza Brunet e a síndrome da gaiola de ouro. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/luiza-
brunet-e-sindrome-da-gaiola-de-ouro-por-nathali-macedo/>. Acesso em 14 dez. 2018.
16Sobre o tema, ver ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Justiça restaurativa para o nosso tempo.

3. ed. São Paulo: Palas Athena, 2008; CORREIA, Thaize de Carvalho. A justiça testaurativa aplicada à violência doméstica. (in) Estudos
feministas: por um direito menos machista. MARTINS, Fernanda; BISPO, Andrea Ferreira; GOSTINSKI, Aline (coord). 3. vol. Florianópolis:
Empório do Direito, 2018, p. 237.
17 Também seria recomendável a determinação do comparecimento no grupo de agressores no bojo da proposta de suspensão

condicional do processo formulada pelo Ministério Público em juízo, todavia a Lei 11.340/2006 veda expressamente em seu artigo 41
a aplicação da Lei 9.099/95. Nesse sentido, inclusive, é o teor da súmula 536 do STJ: “A suspensão condicional do processo e a
transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha”.

200
medidas cautelares, a expressão “sem prejuízo de outras medidas”, conferindo ao
magistrado a possibilidade de aplicar outras medidas que entender cabíveis para a
situação de violência contra a mulher.

Prosseguindo, ainda que seja discutível a existência da figura do poder geral de


cautela no processo penal, o reconhecimento do referido poder aos magistrados no
âmbito do processo civil é incontroverso, sendo possível sustentar a legalidade da
decretação do comparecimento obrigatório ao grupo de reflexão para agressores já no
bojo da medida protetiva, uma vez que o próprio Superior Tribunal de Justiça já
reconheceu a natureza de cautelar cível satisfativa das medidas de urgência
determinadas com fulcro na Lei 11.340/2006. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2014,
on-line)18

Ainda nesse sentido, é o teor do Enunciado nº 37 do Fórum Nacional de Juízes


de Violência Doméstica: “A concessão da medida protetiva de urgência não está
condicionada à existência de fato que configure, em tese, ilícito penal”.

Também não há que se compreender a decretação da frequência no grupo de


reflexão para agressores em violência doméstica como antecipação de pena, afinal, o
próprio Superior Tribunal de Justiça também já reconheceu o caráter autônomo das
medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, não havendo uma
relação de dependência entre a decretação das mesmas e a existência de um inquérito
policial ou eventual ação penal correlata aos fatos (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
2016, on-line).19

Além disso, difícil seria sustentar que a determinação de comparecimento em


grupo de reflexão violaria o status libertatis do indivíduo ou ainda significa prejuízo mais
gravoso do que qualquer uma das medidas expressamente previstas no rol do artigo 23,
caput, da Lei 11.340/2006. Salienta-se que não há nenhuma discussão acerca de
eventual vício de constitucionalidade ou ilegalidade de tais medidas. Nesse sentido, é a
posição de Catiuce Ribas Barin:

18Recurso Especial 1.419.421/GO. Também nesse sentido: PIRES, Amom Albernaz. A opção legislativa pela política criminal extrapenal
e a natureza jurídica das medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Revista do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios,
Brasília, v. 1, n. 5, p. 121-168, 2011; DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael. Aspectos processuais civis da Lei Maria da Penha (violência
doméstica e familiar contra a mulher). Disponível em: <http://frediedidier.com.br/main/artigos/ default.jsp>. Acesso em: 10 dez. 2018.
19Habeas Corpus 340.624/SP.

201
Não há óbice, portanto, à determinação judicial de participação dos
autores de violência doméstica em programas de intervenção
(recuperação/reeducação) como medida protetiva. Ao contrário, a lei
possibilita tal fixação, a qual, na nossa convicção, somente trará
benefícios às partes; garantirá maior proteção à vítima, contribuirá
para a não ocorrência de crimes mais graves e, quiça, para a não
reincidência. Ainda, pela perspectiva do agressor, permitirá,
potencialmente, evitar o processo penal. Explicamos: a participação no
programa poderá evitar que a ofendida represente contra o agressor,
seja porque seu desejo inicial sempre foi o tratamento e não a punição,
seja porque, nos casos em que desejava a punição, verificou que o
tratamento produziu resultados eficazes à cessação da violência,
sentindo-se, assim, segura, ainda que sem a prisão do agressor.
(BARIN, 2016, p. 162)20

Compartilhando deste entendimento, é a posição de Maria Berenice Dias:

O último dispositivo da Lei (LMP. Art. 45) é dos mais salutares. Em caso
de sentença penal condenatória o juiz pode determinar o
comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação
e reeducação. Talvez esta seja a medida mais eficaz para propiciar uma
mudança de comportamento de quem, muitas vezes, não entende o
caráter criminoso de seu agir. Nada impede, porém, que a frequência
a estes programas seja determinada de imediato como medida
protetiva que obriga o agressor, ainda que não elencada no rol legal.
Basta que a Lei elenca algumas medidas, autorizando sua aplicação,
entre outras (LMP, art. 22). (DIAS, 2019, p. 41)

Também nesse sentido, é o teor do Enunciado nº 26 do Fórum Nacional de


Juízes de Violência Doméstica: “O juiz, a título de medida protetiva de urgência, poderá
determinar o comparecimento obrigatório do agressor para atendimento psicossocial e
pedagógico, como prática de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a
mulher”.

Ainda sobre o tema do grupo de reflexão para agressores de violência


doméstica contra a mulher, é necessário ressaltar a excelente relação de custo-benefício

20Também nesse sentido: VIEIRA, Grasielle. Grupos reflexivos para os autores da violência doméstica. Responsabilização e restauração.
Lumen Juris: Rio de Janeiro: 2018. Ainda acerca da questão posta, destaca-se que em outros países a decretação de frequência em
grupos reflexivos para autores de violência doméstica em sede de medida protetiva é admitida, como ocorre, por exemplo, em
Portugal.

202
envolvendo a implementação dos referidos grupos nas Comarcas, uma vez que na
grande maioria dos casos, o serviço é prestado pelos membros da rede de proteção do
Estado sem qualquer contratação ou acréscimo de pessoal,21 não havendo, ao menos
em tese, oneração de gastos para a municipalidade. Além disso, não há a exigência de
uma robusta estrutura arquitetônica para a realização dos encontros, sendo possível a
utilização da estrutura física já disponível pelo Município.

Em uma pequena síntese, os encontros e reuniões dos grupos de reflexão para


agressores de violência doméstica funcionam com a presença de profissionais da saúde,
psicologia, assistência social e direito que, por meio de palestras e orientações
direcionadas aos agressores, promovem verdadeira educação em direitos,
conscientizando os mesmos da gravidade e das consequências de suas práticas, bem
como atuando como agentes que viabilizam a quebra do ciclo da violência contra a
mulher. Geralmente os trabalhos se iniciam com uma entrevista pessoal com cada um
dos agressores, seguida por discussões acerca dos conceitos da violência doméstica e
familiar; Lei Maria da Penha e seus desdobramentos, trabalhar com a diferença de
gêneros (social-cultural/ideologicamente e biologicamente), bem como a partir de
reflexões mais profundas envolvendo o resgate da história de vida de cada participante,
buscando pontuar como a violência foi inserida na vida de cada participante, discutir os
fatos vivenciados procurando apontar formas de enfrentamento desses conflitos e a
identificação por parte dos agressores de situações onde se sente raiva e refletir sobre
o que fazer para não perder o controle.

A implementação dos grupos de reflexão para agressores em violência


doméstica já é uma realidade no Estado brasileiro e o índice de reincidência vem
diminuindo significativamente nos locais em que a referida prática está estabelecida e
sedimentada. Deste modo, não há dúvidas acerca da real necessidade da
implementação da referida prática para que se alcance um combate efetivo à violência
doméstica e familiar no Estado brasileiro.

21Sobre este ponto, é necessário ressaltar que não se deve entender por adequado que os mesmos profissionais que atendam as
vítimas de violência doméstica contra a mulher trabalhem também com os agressores, tendo em vista que as práticas restaurativas
são pautadas pelo estabelecimento de vínculos entre os seus atores.

203
4.2 Botão do pânico e patrulha Maria da Penha

Criado a partir de uma ideia lançada pelo Tribunal de Justiça do Estado do


Espirito Santo para auxiliar no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher,
o dispositivo eletrônico conhecido popularmente como “botão do pânico” possui GPS e
recurso de gravação de áudio e atua como instrumento preventivo nos casos envolvendo
mulheres que se sentem ameaçadas ou na iminência de serem vítimas de violência
doméstica. O referido dispositivo já possui implementação gradativa em diversos
Estados da Federação, como por exemplo: Espírito Santo, São Paulo, Paraná,
Pernambuco, Minas Gerais e Paraíba. A ideia principal é fornecer à autoridade policial
de forma rápida e eficaz a localização da mulher que está na iminência de ser vítima de
violência, bem como viabilizar que a mesma realize gravação pelo dispositivo atingindo
um raio de até cinco metros e que posteriormente possa ser utilizada como prova
judicial.22 Alternativamente ao botão do pânico, alguns Estados estão estruturando a
ideia da rápida comunicação entre mulher vítima de violência e autoridades a partir do
desenvolvimento de aplicativos para smartphones, que possuem similar funcionamento
e finalidade ao referido botão.

Em que pese a existência e implementação do botão do pânico ou


alternativamente de aplicativos de smartphones que possibilitem a comunicação rápida
e direta entre mulher vítima de violência e autoridades estatais, por si só, já representar
um significativo avanço na efetividade das questões atinentes ao combate à violência
contra a mulher, a sua eficácia é ainda maior quando existente a chamada “Patrulha
Maria da Penha” na localidade. A Patrulha Maria da Penha foi desenvolvida a partir de
uma ação integrada entre os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. O objetivo da
referida ação consiste justamente em destinar parte do efetivo da guarda municipal para
um acompanhamento preventivo e periódico, visando garantir maior proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A referida ação já foi
implementada em diversos Estados-Membros do Brasil e no Distrito Federal. Apenas no
Estado do Paraná, a Patrulha Maria da Penha foi implementada nas cidades de Curitiba,

22Reconhecendo a licitude da gravação clandestina por um dos interlocutores como prova: RE 583937 OO-RG. (BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Repercussão Geral por Questionamento Ordinário em Recurso Extraordinário n. 583.937/RJ. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=607025>. Acesso em: 22 jun. 2019.) Também nesse sentido:
MASSOM, Cléber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. 2. ed. São Paulo: Método, 2016, p. 211.

204
Londrina, Foz do Iguaçu, Toledo, Cascavel, Arapongas, Ponta Grossa, Sarandi, São José
dos Pinhas e Maringá, o que demonstra a significativa adesão por parte dos grandes
centros.

Daí o motivo pelo qual o dispositivo eletrônico conhecido como “botão do


pânico” ou ainda os aplicativos para smartphones com similar finalidade possuem sua
eficácia maximizada quando existente a Patrulha Maria da Penha na localidade, afinal,
permite-se o fluxo de informações de dados direto, imediato e instantâneo entre a
mulher que está na iminência de ser vítima de agressão e agentes da guarda municipal
designados para atuar especificamente em questões atinentes à violência doméstica e
familiar contra a mulher.

4.3 Implementação dos Conselhos das Mulheres

Nos termos do recente Decreto 9.586/2018, que instituiu o Sistema Nacional


de Políticas para as Mulheres e o Plano Nacional de Combate à Violência Doméstica, os
Conselhos dos Direitos das Mulheres podem ser compreendidos como “órgãos
permanentes, consultivos ou deliberativos, não jurisdicionais, aos quais compete tratar
das políticas públicas para as mulheres e garantir o exercício dos direitos das mulheres,
considerada a sua diversidade”, e possuem a função primordial de “garantir a
participação e o controle social dos movimentos de mulheres, por meio de suas
representantes, na definição, no planejamento, na execução e na avaliação das políticas
públicas destinadas às mulheres”.

Deste modo, é possível verificar que os Conselhos das Mulheres possuem


importante papel no sentido de sedimentar e fortalecer as políticas públicas para as
mulheres nas três esferas da Federação. Além disso, a instituição do referido conselho
possui significativa contribuição para a representatividade das mulheres no âmbito do
controle social de suas próprias políticas, principalmente em localidades e municípios
menores. Sobre este ponto, é importante ressaltar que não há impedimento para que
determinado indivíduo do sexo masculino faça parte da composição do Conselho das
Mulheres. Ao contrário, a participação dos homens nas causas e questões envolvendo o
fortalecimento das mulheres na sociedade brasileira é de suma importância para tais

205
demandas, uma vez que além das próprias mulheres, os homens também podem (e
devem!) servir como agentes de conscientização para que outros homens rompam o
ciclo da violência contra a mulher.23

4.4 Casas de acolhida para mulheres vítimas de violência doméstica e familiar

Mecanismo essencial para a criação de um combate eficaz e integral à violência


doméstica contra a mulher, não apenas sob o prisma de repressão do agressor, mas
também acerca da tutela e resguardo de direitos da vítima violentada, é justamente a
criação de casas de acolhida para mulheres vítimas de violência doméstica.24 Conforme
já exposto ao longo deste texto, a vítima de violência doméstica passa por um intenso,
longo e traumático processo desde o momento que antecede a prática do ato de
violência até a eventual e difícil libertação daquela situação de aprisionamento que
envolve a mesma e o seu agressor. Assim, com o objetivo de se evitar eventuais
processos de revitimização no âmbito da violência contra a mulher, bem com o propósito
de resguardar os direitos da mulher em situação de vulnerabilidade na sua plenitude, é
necessário que as mulheres vítimas de violência tenham um local de acolhida para se
resguardar após a comunicação da situação de violência às autoridades estatais.

É do conhecimento geral que no Estado brasileiro grande parte das famílias


ainda é gerida por um modelo patriarcal, no qual o homem sustenta financeiramente a
família enquanto a mulher cuida dos afazeres doméstico. Além disso, ainda é possível
verificar situações de desigualdade salarial entre homens e mulheres no mercado de
trabalho, seja de forma expressa ou velada. Portanto, a partir destas premissas, é
possível visualizar que em considerável parte das famílias brasileiras o homem agressor,
valendo-se dos argumentos referidos acima, se nega a deixar a casa onde reside com
seus filhos após a situação de violência caracterizada. Em outros casos, a própria mulher

23Acerca deste ponto em específico, a Organização das Nações Unidas (ONU) possui uma campanha denominada “ElesPorElas” ou
“HeForShe” para que os homens se unam uns aos outros, e às mulheres, na defesa da igualdade de gênero e no combate à violência
contra a mulher. Maiores informações sobre a campanha HeForShe podem ser encontradas em
<http://www.onumulheres.org.br/noticias/voce-e-heforshe/>. Ainda sobre a importância da participação masculina no combate à
violência doméstica contra a mulher e na promoção da igualdade de gênero, reconhece a Organização das Nações Unidas que: “a
conscientização dos homens sobre os direitos humanos das mulheres também é indispensável para garantir a não discriminação e
igualdade, em particular para garantir o acesso das mulheres à justiça”. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Recomendação Geral nº 33 sobre o acesso das mulheres à justiça.
Disponível em: <https://assets-compromissoeatitude-ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2016/02/Recomendacao-Geral-n33-Comite-
CEDAW.pdf >. Acesso em: 22 jun. 2019.)
24Popularmente, a casa de acolhida para mulheres vítimas de violência doméstica é chamada de “Casa da Mulher”.

206
deixa de comunicar a situação de violência às autoridades por “não ter para onde ir”,
afinal “a casa pertence ao agressor”.

Nessa perspectiva, diante da inexistência de casa de acolhida para as mulheres


vítimas de violência, uma vez comunicada a situação de violência às autoridades estatais,
ressalvados os casos de afastamento do lar ou do local de convivência com a ofendida
decretados expressamente pelo Poder Judiciário com fulcro no artigo 22, inciso II, da Lei
11.340/2006, a vítima de violência doméstica pode ser compelida, ainda que de forma
indireta ou por falta de opção, a voltar para o mesmo ambiente em que se encontra o
seu agressor, o que caracterizaria, sem sombra de dúvidas, a pior de todas as formas de
revitimização. Deste modo, a implementação de casas de acolhida para mulheres vítimas
de violência é um importante estágio de consolidação da proteção integral dos direitos
das mulheres. A mulher vítima de violência, fragilizada e em extrema situação de
vulnerabilidade, deve ter a sua disposição um local seguro para buscar acolhida após
comunicar as autoridades sobre a situação de violência. Propõem-se, então, a
implementação de casas regionais de acolhida para as mulheres vítimas de violência.

Dois são os principais argumentos para a defesa da implementação de casas de


acolhida para as mulheres vítimas de violência de caráter regional, e não municipal: a) é
inviável sob a perspectiva financeira e orçamentária a implementação de casas
municipais de acolhida para mulheres vítimas de violência; b) a implementação de casas
regionais dificulta o contato dos agressores de violência doméstica com as próprias
vítimas e até mesmo a localização e identificação da casa. Assim, experiências em
grandes centros do país como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre sugerem a maior
discrição possível na área externa do imóvel em que será instituído o serviço da casa de
acolhimento às mulheres vítimas de violência, bem como a manutenção do sigilo em
relação ao endereço do local em que o serviço foi instalado. O sentimento de segurança
e privacidade é essencial para que as mulheres acolhidas se recuperem do processo
traumático causado pela situação de violência.

Especificamente em relação ao serviço de acolhimento às mulheres vítimas de


violência, incumbe ao membro do Ministério Público: a) fomentar a implementação do
referido serviço pela rede de proteção; b) fiscalizar as condições de funcionamento das
casas de acolhida instaladas nos limites territoriais de sua respectiva Comarca; c)

207
acompanhar os processos de acolhimento e desacolhimento de mulheres vítimas de
violência, primando sempre pelo superior interesse da mulher.

5. CONCLUSÃO

A partir das considerações tecidas de forma breve neste trabalho, diversas são
as conclusões sobre o atual estágio do Direito das Mulheres e da busca pela proteção
integral das mulheres vítimas de violência: a) a violência contra a mulher é onipresente
no Brasil e as mulheres brasileiras estão frequentemente expostas a um ou mais tipos
de violência; b) o combate à violência contra a mulher avançou desde a criação da Lei
Maria da Penha no ano de 2006 e sempre à luz dos influxos do Direito Internacional dos
Direitos Humanos; c) em que pese o avanço na proteção das mulheres vítimas de
violência, é possível afirmar, a partir dos índices ainda altos de violência contra a mulher
no Estado brasileiro, a insuficiência da aplicação do Direito Penal como único
instrumento de proteção das mulheres vítimas de violência, sendo necessária a sua
aplicação não de forma isolada, mas em conjunto com outros fronts de atuação situados
no âmbito de interdisciplinariedade e em uma perspectiva preventiva, como ocorre com
os grupos reflexivos para agressores de violência doméstica, na implementação de
aplicativos de smartphones e botão do pânico que possibilitem um contato direto e
instantâneo entre a mulher e o Estado, bem como na estruturação da rede de proteção
à mulher, seja pela criação de Conselhos da Mulher ou pela implementação do serviço
de acolhimento às mulheres vítimas de violência. Apenas a partir de uma atuação
multidisciplinar, preventiva e em conjunto com a aplicação do Direito Penal é que o
combate à violência contra a mulher será realizado na sua integralidade e com uma
auspiciosa perspectiva de diminuição das situações de violências.

6. REFERÊNCIAS

BAINES, Beverley; BARAK-EREZ, Daphne; KAHANA, Tsvi. Feminist constitucionalism:


global perspectives. New York: Cambridge University Press, 2012.

208
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jurisprudência do STF. In: NOWAK, Bruna (org.). Constitucionalismo feminista. Bahia:
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violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir
e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o
Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, DF:
Presidência da República, [2016]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso
em: 22 jun. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n. 150712/SP


(2017/0014052-4). Suscitante: Juízo de Direito da 2ª Vara Cível de Caçapava-SP.
Suscitado: Juízo Federal da 1ª Vara de São José dos Campos – SJ/SP. Relator: Min. Joel
Ilan Paciornik, 31 de janeiro de 2017. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/450056378/conflito-de-competencia-cc-
150712-sp-2017-0014052-4/decisao-monocratica-450056387. Acesso em: 22 jun.
2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 340624/SP (2015/0282121-1).


Habeas corpus. Lei Maria da Penha. Indeferimento de liminar. Óbice da Súmula 691 do
Supremo Tribunal Federal. Superação. Medidas protetivas. Aplicação. Absolvição pelo
crime de ameaça. Pedido de revogação das medidas. Indeferimento. Ausência de legal
fundamentação plausível. Constrangimento ilegal evidenciado. Ordem concedida. 1. A
aceitação de habeas corpus impetrado contra decisão que indeferiu medida liminar no
prévio mandamus submete-se aos parâmetros da Súmula nº 691 do Supremo Tribunal
Federal, somente afastada no caso de excepcional situação, o que ocorre na espécie
dos autos [...] In casu, em que pese a escorreita consideração da doutrina, verifica-se
que a aplicação das medidas protetivas guarda relação como a ação penal (crime de
ameaça), tendo em vista os termos do decisum que as estabeleceu, na qual foi
proferida sentença absolutória. De fato, não soa adequado manter medidas protetivas
que foram decretadas em juízo cautelar e no início do processo penal, se já há
sentença absolutória em favor do paciente, não sendo razoável aguardar o julgamento
do recurso de apelação [...]. Impetrante: Guilherme Rodrigues da Silva. Impetrado:
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relatora: Min. Maria Thereza de Assis
Moura, 23 de fevereiro de 2016. Disponível em:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/
?componente=ITA&sequencial=1488598&num_registro=201502821211&data=201603
02&formato=PDF. Acesso em: 22 jun. 2019.

209
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1643051/MS (2016/0325967-
4). Recurso especial. Recurso submetido ao rito dos repetitivos (art. 1.036 do CPC, C/C
o art. 256, I, do RISTJ). Violência doméstica e familiar contra a mulher. Danos morais.
Indenização mínima. Art. 397, IV, do CPP. Pedido necessário. Produção de prova
específica dispensável. Dano in re ipsa. Fixação consoante prudente arbítrio do juízo.
Recurso especial provido [...]. Recorrente: Ministério Público do Estado do Mato Grosso
do Sul. Recorrido: A L S DOS S. Relator: Min. Rogerio Schietti Cruz, 28 de fevereiro de
2018.
Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/554473137/recurso-
especial-resp-1643051-ms-2016-0325967-4/inteiro-teor-554473139?ref=juris-tabs.
Acesso em: 22 jun. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1419421/GO (2013/0355585-


8). Direito processual civil. Violência doméstica contra a mulher. Medidas protetivas da
lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Incidente no âmbito cível. Natureza jurídica.
Desnecessidade de inquérito policial, processo penal ou civil em curso. 1. As medidas
protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a
concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de
cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher,
independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação
principal contra o suposto agressor. 2. Nessa hipótese, as medidas de urgência
pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se exigindo
instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca
necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal [...] 3. Recurso especial
não provido. Recorrente: C A S. Recorrido Y S e Yedda Seronni. Relator: Min Luis Felipe
Salomão, 11 de fevereiro de 2014. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25044002/recurso-especial-resp-1419421-
go-2013-0355585-8-stj/inteiro-teor-25044003. Acesso em: 22 jun. 2019.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 34035/AL


(2012/0213979-8). Recurso em habeas corpus. Lei Maria da Penha. Medidas protetivas
de urgência. Fundamentação. Palavra da vítima. Possibilidade. Precedentes. 1. Em se
tratando de casos de violência doméstica em âmbito familiar contra a mulher, a palavra
da vítima ganha especial relevo para o deferimento de medida protetiva de urgência,
porquanto tais delitos são praticados, em regras, na esfera da convivência íntima em
situação de vulnerabilidade, sem que sejam presenciados por outras pessoas. 2. No
caso, verifica-se que as medidas impostas foram somente para manter o dito agressor
afastado da ofendida, de seus familiares e de eventuais testemunhas, restringindo
apenas em menor grau a sua liberdade. 3. Estando em conflito, de um lado, a
preservação da integridade física da vítima e, de outro, a liberdade irrestrita do
suposto ofensor, atende aos mandamentos da proporcionalidade e razoabilidade a
decisão que restringe moderadamente o direito de ir e vir do último. 4. Recurso em
habeas corpus improvido. Recorrente: Juarez Washington Ribeiro da Silva. Recorrido:
Ministério Público do Estado de Alagoas. Relator: Min. Sebastião Reis Júnior, 05 de
novembro de 2013. Disponível em:
https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24711532/recurso-ordinario-em-habeas-
corpus-rhc-34035-al-2012-0213979-8-stj/inteiro-teor-24711533?ref=juris-tabs. Acesso
em: 22 jun. 2019.

210
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral por Questionamento Ordinário
em Recurso Extraordinário n. 583.937/RJ. Ação Penal. Prova. Gravação ambiental.
Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade.
Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário
provido. Aplicação do art. 543-B, §3º, do CPC. É lícita a prova consistente em agravação
ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro.
Recorrente: Fernando Correa de Oliveira. Recorrido: Ministério Público do Estado do
Rio de Janeiro. Relator: Min. Cesar Peluso, 19 de novembro de 2009. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=607025. Acesso
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ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. 3. ed. São
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212
4. Seção
Estudante
Cristina Tonet Colodel1

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO


NA APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA
PENHA: TRANSEXUAIS, DANOS MORAIS
E A CRIMINALIZAÇÃO DO
DESCUMPRIMENTO DAS MEDIDAS DE
PROTEÇÃO

THE PROCEEDING OF THE PUBLIC PROSECUTOR´S


OFFICE ON THE APPLICATION OF MARIA DA PENHA LAW:
TRANSSEXUALS, MORAL DAMAGES AND THE NON-
COMPLIANCE CRIMINALIZATION OF THE PROTECTION
MEASURES

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Aspectos gerais da Lei nº 11.340/2006; 3. (In) aplicação da


Lei Maria da Penha aos transexuais; 4. Indenização por danos morais às vítimas de
violência doméstica e familiar; 5. A criminalização do descumprimento de medidas
protetivas; 6. A atuação do Ministério Público nas disposições da Lei nº 11.340/2006;
7. Conclusão; 8. Referências.

1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE; graduada em Direito pelo Centro
Universitário de Cascavel – UNIVEL; pós-graduada em direito notarial e registral pela UNIFAMMA e pela UNIDERP; pós-graduada em
Direito Processual Penal pela UNIDERP; pós-graduanda em Ministério Público e Estado Democrático de Direito pela
FEMPAR/Universidade Positivo.

214
RESUMO: O presente artigo tem por escopo tecer acerca da relevante atuação do
Ministério Público nas disposições da Lei Maria da Penha, especialmente no que se
refere a proteção das vítimas transexuais e à indenização por danos morais às
ofendidas. Para tanto, compete analisar a posição doutrinária no que diz respeito a
in(aplicabilidade) da Lei Maria da Penha aos transexuais. Por seu turno, inerente a
questão da indenização por danos morais às vítimas de violência doméstica e familiar,
a jurisprudência já firmou precedentes no sentido de condenar os agressores ao
pagamento, mas exige alguns requisitos, adiante mencionados, que necessitam da
ação dos membros do Ministério Público. Neste diapasão, também será abordado
neste trabalho a criminalização do descumprimento das medidas protetivas de
urgência e sua repercussão penal e processual penal.

ABSTRACT: The purpose of this article is to weave considerations about the relevant
proceeding of the Public Prosecutor´s Office on the statements of Maria da Penha Law,
especially regarding the protection of transsexual victims and the compensation for moral
damages to its victims. For therefore, it is incumbent to analyze the doctrinal position with
respect to the in (applicability) of Maria da Penha Law to transsexuals. For its part, the issue of
compensation for moral damages to victims of domestic and family violence, has already been
established by the precedents of jurisprudence in order to condemn the perpetrators to the
payment, but it claims certain requirements, which are mentioned on this research, that need
the action of the Public Prosecutor's Office. In this tuning fork, it will be studied about the non-
compliance criminalization of the urgent protective measures and its criminal and penal
procedural repercussions.

PALAVRAS-CHAVE: Ministério Público; Lei Maria da Penha; Transexual; Danos morais;


Criminalização.

KEYWORDS: Public Prosecutor´s Office; Maria da Penha Law; Transsexual; Moral


Damages; Criminalization.

215
1. INTRODUÇÃO

A Lei nº 11.340/2006, popularmente conhecida por Lei Maria da Penha,


completou mais de uma década de vigência e perpetrou elevadas mudanças na seara
criminal em prol da defesa das mulheres.

O Ministério Público, órgão com atribuições constitucionais, tem como


função primordial garantir os direitos assegurados pela Lei Maria da Penha às
mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, bem como na correta aplicação das
questões penais e processuais dela decorrentes.

O tema abordado no presente estudo tem relevante pertinência na esfera


jurídica – em especial no processo penal – haja vista a pretensão de elucidar, de
maneira objetiva e coerente, as principais questões inerentes a atuação do Ministério
Público na Lei nº 11.340/2006.

Ressalta-se ainda, que a escolha do assunto reveste-se da necessidade de


ampliar os conhecimentos teóricos para posterior aplicação prática, cujo âmbito de
atuação profissional exige o máximo de aprofundamento jurídico sobre o tema, pois
cotidianamente são analisados casos reais de violência praticada no âmbito doméstico
e familiar.

Apresentamos como objetivos a serem perseguidos, a exploração


contextual da Lei Maria da Penha e sua aplicação prática em prol da proteção dos
direitos das mulheres e dos transexuais, bem como a atuação do Ministério Público na
garantia da persecução da lei penal contra os agressores.

Nessa ótica, é fundamental enfatizarmos o objetivo geral visado pelo


presente trabalho, isto é, a pesquisa tem por escopo demonstrar que a atuação do
Ministério Público é essencial para o efetivo cumprimento das disposições previstas na
Lei Maria da Penha e seus consectários.

Em consonância ao objetivo geral, faz-se necessário perquirir os objetivos


específicos que servirão de base para a conclusão do trabalho de maneira exitosa.

Assim, tendo em vista que o Ministério Público exerce função de relevância


social e jurídica, discutiremos a possibilidade de aplicação das disposições da Lei Maria
da Penha aos transexuais, o direito a indenização por danos morais das vítimas de

216
violência doméstica e familiar e a criminalização do descumprimento de medidas
protetivas.

Os temas serão abordados mediante análise bibliográfica e jurisprudencial,


com o intuito de demonstrar a essencialidade das atribuições do Ministério Público na
garantia de aplicação da Lei Maria da Penha em benefício dos direitos conferidos às
vítimas de violência doméstica e familiar.

2. ASPECTOS GERAIS DA LEI N.º 11.340/2006

A Lei n.º 11.340/2006, popularmente conhecida por Lei Maria da Penha, foi
promulgada em 07 de agosto de 2006 e entrou em vigência em 22 de setembro de
2006, e refere-se à violência doméstica e familiar contra a mulher.

A origem do nome da Lei advém de um caso real de violência praticada em


29 de maio de 1983, pelo marido da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes;
além de agredi-la por inúmeras vezes, ele tentou matá-la em duas ocasiões: na
primeira, ela foi atingida por um disparo de espingarda e ficou paraplégica; e na
segunda, ela sofreu uma descarga elétrica enquanto se banhava2.

A ampla repercussão do caso ensejou na formalização de denúncia à


Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos por parte do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e do
Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM).

Em 2001, o Brasil foi responsabilizado por negligência, tolerância e


omissão em relação à violência doméstica e familiar e recebeu uma recomendação
para que adotasse várias medidas, dentre elas a simplificação dos procedimentos
judiciais penais e a adoção de políticas públicas voltadas à prevenção, à punição e à
erradicação da violência contra a mulher3.

Diante de tal acontecimento, somente em 2006 é que foi aprovada a Lei nº.
11.340. Seguindo a sistemática de proteção às mulheres e repressão da violência
doméstica e familiar, em 2015 foi editada a Lei n.º 13.104/2015, que acrescentou ao
2LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 5. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1166.
3 Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2012/08/cejil_resumorelatocasomaria
dapenha.pdf>. Acesso em 21/mar/2018.

217
art. 121 do Código Penal o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de
homicídio, e, por conseguinte, sua inclusão no art. 1º da Lei nº. 8.072/1990, passando
a constar no rol dos crimes hediondos.

Apesar do atraso legislativo do Brasil em criar mecanismos para coibir a


violência doméstica e familiar, após a edição da Lei Maria da Penha foram criadas as
Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs) por todas as unidades
federativas e a instituição dos Juizados de Violência Doméstica ou Varas especializadas
em processar, julgar e executar as causas decorrentes da prática de violência
doméstica e familiar contra a mulher, bem como as Coordenadorias de violência
contra a mulher, importante iniciativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o
aprimoramento da estrutura do Judiciário e a melhoria da prestação jurisdicional para
o combate e a prevenção da violência contra as mulheres4.

Registra-se ainda, a criação das Casas-Abrigo, das Casas da Mulher


Brasileira, dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher, a especialização de
órgãos da Defensoria Pública voltados à assistência jurídica e gratuita à população
feminina hipossuficiente financeiramente e a constituição de serviços de saúde
especializados, com equipes multidisciplinares, no atendimento dos casos de violência
contra a mulher5.

No que se refere ao conceito e as formas de violência doméstica previstos


nos artigos 5º e 7º da Lei nº 11.340/2006, relevante são os ensinamentos de Renato
Brasileiro de LIMA6 sobre o assunto:

A caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher


não exige a presença simultânea e cumulativa de todos os requisitos
do art. 7º. Ou seja, para o reconhecimento da violência contra a
mulher, basta a presença alternativa de um dos incisos do art. 7º, em
combinação alternativa com um dos pressupostos do art. 5º (âmbito
da unidade doméstica, âmbito da família ou em qualquer relação
íntima de afeto). Logo, a violência doméstica e familiar contra a
mulher estará configurada tanto quando uma mulher for vítima de
violência sexual no âmbito da unidade doméstica, quando contra ela
for perpetrada violência psicológica numa relação íntima de afeto.
4 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83132-cnj-servico-conheca-a-rede-de-protecao-a-mulher-vitima-de-violencia>.
Acesso em 21/mar/2018.
5 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83132-cnj-servico-conheca-a-rede-de-protecao-a-mulher-vitima-de-violencia>.

Acesso em 21/mar/2018.
6 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 5. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1178.

218
Nesse contexto, verifica-se que a Lei tratou da ação ou omissão, seja ela de
cunho físico, psicológico, sexual, patrimonial ou moral, perpetrada contra a mulher,
em face do gênero, seja no âmbito doméstico ou familiar, seja nas demais relações
íntimas de afeto, independente de coabitação. Assim, denota-se que a intenção do
legislador é alcançar o maior número de relações e espécies de violência, visando a
ampla proteção aos direitos das mulheres, já assegurados pela Constituição Federal.

No mesmo sentido, a Ministra Laurita Vaz7, ao proferir seu voto no


conhecido caso de violência doméstica envolvendo a atriz Luana Piovani e o ator Dado
Dolabella, assim se posicionou: “a presunção de hipossuficiência da mulher, a implicar
a necessidade de o Estado oferecer proteção especial para reequilibrar a
desproporcionalidade existente, constitui-se em pressuposto de validade da própria
lei.”

Desta forma, a Corte Superior8 tem reconhecido a aplicabilidade da Lei


Maria da Penha ao namoro, por compreender que se trata de uma relação íntima de
afeto.

Corroborando tal entendimento, o art. 4º da Lei n.º 11.340/2006 prevê que


devem ser considerados os fins sociais a que ela se destina e as condições peculiares
das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. A doutrina de Renato
Brasileiro de LIMA9 aponta que “os dispositivos constantes da Lei Maria da Penha
devem ser interpretados em favor daquela pessoa que mereceu maior proteção do
legislador – a mulher vítima de violência em uma relação doméstica, familiar, ou
íntima de afeto –, e não o contrário”.

Outra questão de cunho relevante, diz respeito ao sujeito ativo que pratica
a violência doméstica e familiar, ou seja, cinge-se a controvérsia em afirmar se na
agressão perpetrada pelo homem haverá a incidência da Lei Maria da Penha e se outra
mulher pode ser o sujeito ativo, como ocorre nas relações homoafetivas.

7 REsp 1416580/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe 15/04/2014.
8 REsp 1416580/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe 15/04/2014.
9 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 5. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1168.

219
Para Pedro Rui da Fontoura PORTO10 a violência no ambiente doméstico,
familiar ou afetivo, praticada por uma mulher contra outra, não justifica a aplicação da
Lei Maria da Penha, haja vista que neste caso não se configura uma pressuposta
superioridade de forças, pois a violência perpetrada entre pessoas supostamente
iguais descaracteriza a situação de vulnerabilidade, exigida pela referida lei, criada
justamente para proteção do gênero feminino.

Por seu turno, assevera Renato Brasileiro de LIMA11 que a violência


praticada no contexto doméstico e familiar por um homem enseja numa verdadeira
presunção absoluta de vulnerabilidade da vítima mulher, ao passo que se essa mesma
violência for praticada por outra mulher, a presunção passa a ser relativa, isto porque
se torna indispensável a demonstração de vulnerabilidade e hipossuficiência física ou
econômica da vítima.

A Lei Maria da Penha, ao estabelecer no art. 5º, parágrafo único, que as


relações pessoais que autorizam o reconhecimento da violência doméstica e familiar
contra a mulher independem de orientação sexual, traduz que as uniões homoafetivas
em que a vítima se revela hipossuficiente econômica ou até fisicamente, ocupando
uma posição de inferioridade hierárquica, serão abarcadas por sua proteção e sofrerão
sua incidência.

Neste sentido, novamente se destaca a doutrina de Renato Brasileiro de


LIMA12 ao afirmar que “lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros de identidade
feminina estão ao abrigo da Lei Maria da Penha, quando a violência for perpetrada
entre pessoas que possuem relações domésticas, familiares e íntimas de afeto”.

3. (IN) APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA AOS TRANSEXUAIS

A problemática inserida no presente trabalho como objetivo específico


cingiu a questionar a possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha aos transexuais.
Antes de apresentarmos uma resposta ao leitor, compete inserir uma definição do que
vem a ser o transexual.

10 PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência Doméstica e Familiar contra a mulher: Lei n.º 11.340/06: análise crítica e sistêmica.
Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 31.
11 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação, p. 1171.
12 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 5 ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1170.

220
A Resolução 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina13 define o que é
transexualismo:

Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos


critérios abaixo enumerados:

1) Desconforto com o sexo anatômico natural;

2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características


primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;

3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente


por, no mínimo, dois anos;

4) Ausência de outros transtornos mentais. (Onde se lê “Ausência de


outros transtornos mentais”, leia-se “Ausência de transtornos
mentais”).

A doutrina de Maria Berenice DIAS14 esclarece de forma brilhante o


conceito de transexualismo:

A transexualidade é uma divergência entre o estado psicológico de


gênero e as características físicas e morfológicas perfeitas que
associam o indivíduo ao gênero oposto. Caracteriza-se por um forte
conflito entre o corpo e a identidade de gênero e compreende um
arraigado desejo de adequar – hormonal e cirurgicamente – o corpo
ao gênero almejado. Existe uma ruptura entre o corpo e a mente, o
transexual sente-se como se tivesse nascido no corpo errado, como
se esse corpo fosse um castigo ou mesmo uma patologia congênita.
O transexual se considera pertencente ao sexo oposto, entalhado
com o aparelho sexual errado, o qual quer ardentemente erradicar.
Enquanto o homossexual aceita seu sexo biológico, o transexual
rejeita seu próprio sexo anatômico. O transexual masculino tem ego
corporal e psíquico femininos. Com o transexual feminino, ocorre o
contrário.

Recentemente o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de


Inconstitucionalidade n.º 4275, ajuizada pela Procuradora-Geral da República,
seguindo o entendimento do Superior Tribunal de Justiça15 para conferir aos

13 Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2010/1955_2010.ht>. Acesso em: 14/mar/2018.


14 DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos LGBTI. 6ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 43 e 269.
15 REsp 1626739/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/05/2017, DJe 01/08/2017.

221
transexuais o direito de alterar o nome e o sexo/gênero no Registro Civil sem a
necessidade de cirurgia de transgenitalização.

É cediço que a Lei nº. 11.340/2006 tem como sujeito passivo a mulher16,
mas vislumbra-se a possibilidade de concessão de medidas protetivas de urgência aos
transexuais. A doutrina discute acerca da necessidade de realização da cirurgia de
transgenitalização e alteração do nome e sexo/gênero no Registro Civil de Pessoas
Naturais.

Para Renato Brasileiro de LIMA17 não é possível equiparar um transexual a


uma mulher, mesmo que tenha havido cirurgia de reversão genital e alteração do sexo
no Registro Civil de Pessoas Naturais, pois sob a ótica genética o indivíduo continua
sendo um homem. Assim, não se pode estender a aplicação da Lei nº. 11.340/2006 a
uma pessoa considerada mulher apenas sob o ponto de vista jurídico, mas que
continua sendo homem geneticamente, sob pena de configurar analogia in malam
partem.

De outra forma é o entendimento de Rogério Sanches CUNHA18 ao afirmar


que “no caso de transexual que formalmente obtém o direito de ser identificado
civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para
todos os demais efeitos, esta pessoa será considerada mulher”.

Apesar da divergência doutrinária, algumas decisões esparsas proferidas


por juízes de primeiro grau, têm conferido as medidas de proteção previstas na Lei
Maria da Penha aos transexuais.

A primeira decisão inédita que concedeu as medidas de proteção previstas


na Lei Maria da Penha a um transexual, foi prolatada pelo Juiz de Direito Danniel
Gustavo Bomfim A. da Silva, da Vara de Proteção à Mulher da Comarca de Rio Branco-
AC19, que inclusive lhe rendeu uma premiação do Conselho Nacional de Justiça por
vencer o I Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos.

16 RHC 27.622/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 07/08/2012, DJe 23/08/2012.
17 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 5 ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1172.
18 CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, Parte Especial. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 66.
19 Disponível em: <https://www.tjac.jus.br/noticias/juiz-de-direito-do-acre-recebe-premio-do-cnj-por-sentenca-em-direitos-
humanos/>. Acesso em 14/03/2018.

222
Na decisão20 o juiz enfatizou que considera que o sexo biológico de
nascimento (masculino) não impede que a vítima, cuja identidade sexual é feminina,
seja reconhecida como mulher, sendo ela, assim, “sujeito de proteção da Lei Maria da
Penha”.

Outra decisão relevante foi prolatada pelo Juiz de Direito André Luiz
Nicolitt, da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Gonçalo-
RJ21 que concedeu a um transexual as medidas protetivas previstas no art. 22, III, a e b,
da Lei nº. 11.340/2006. Neste diapasão, faz-se necessária a transcrição de trechos da
decisão:

Com efeito, apesar de não ter sido submetida ainda à cirurgia de


transgenitalização, a vítima se considera mulher. As novas estéticas e
temáticas ligadas à diversidade e à liberdade sexual não têm sido
resolvidas pelo direito, até mesmo porque exigem uma análise
interdisciplinar, o que é de certo modo uma novidade no mundo
jurídico, que sempre ostentou uma certa pretensão de completude.
(p. 4).

A requerente se veste como mulher, se identifica socialmente como


mulher, ingere medicamentos hormonais femininos, ou seja, se vê e
se compreende como mulher, não possuindo terceira pessoa
autoridade para a designar de outra forma. (p. 6).

Com efeito, entendemos que todas as normas não penais, ou seja,


processuais, civis e administrativas, contidas na Lei Maria da Penha,
são aplicáveis ao homem que exerça o papel social de mulher, isto é,
que possua o gênero feminino, como os travestis, transexuais, gays,
por exemplo. (p. 10).

Diante de tais argumentos, não vislumbramos razão para excluir da


requerente, as medidas protetivas da Lei Maria da Penha. (p. 11).

Destarte, após a análise das decisões judiciais, conclui-se que mesmo antes
da decisão do Supremo Tribunal Federal que concedeu o direito aos transexuais de
alteração de nome e sexo/gênero no Registro Civil das Pessoas Naturais, alguns
magistrados de primeiro grau concederam medidas de proteção asseguradas na Lei
Maria da Penha a transexuais, independentemente da formalização jurídica de sua

20 Disponível em: https://www.tjac.jus.br/noticias/decisao-inedita-assegura-medida-protetiva-de-urgencia-a-transexual-vitima-de-


violencia-domestica/. Acesso em: 14/03/2018.
21 Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/lei-maria-penha-tambem-protege-mulher.pdf>. Acesso em 14/03/2018.

223
condição, ou seja, de cirurgia de transgenitalização e de alteração de nome e
sexo/gênero.

Em que pese ainda não haver posicionamento jurisprudencial das Cortes


Superiores sobre o assunto, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei nº. 191/2017
de autoria do Senador Jorge Viana (PT/AC), que visa alterar a redação do art. 2º da Lei
nº. 11.340/2006 a fim de inserir a expressão “identidade de gênero”. Na justificativa
apresentada pelo Senador, consta que: “a presente iniciativa resulta de solicitação do
Ministério Público do Estado do Acre, em especial da Coordenadora do Centro de
Atendimento à Vítima (CAV), que se deparando com situações de violência doméstica
e familiar contra transexuais e transgêneros instou esta Casa a apresentar proposta de
solução para o problema”.22

Por sua vez, a COPEVID – Comissão Permanente de Combate à Violência


Doméstica e Familiar, criada pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos do Conselho
Nacional de Procuradores-Gerais, aprovou o Enunciado 30, com o seguinte teor: “A Lei
Maria da Penha pode ser aplicada a mulheres transexuais e/ou
travestis, independentemente de cirurgia de transgenitalização, alteração do nome ou
sexo no documento civil. (Aprovado na I Reunião Ordinária do GNDH em 05/05/2016 e
pelo Colegiado do CNPG em 15/06/2016)”.

Desta forma, após o arcabouço teórico exposto, é possível afirmar que as


disposições da Lei Maria da Penha são aplicáveis aos transexuais, independente de
cirurgia ou mudança de nome, sexo ou gênero, cujas formalidades são dispensadas em
prol do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Neste cenário, a atuação do Ministério Público deve ir além das atribuições


conferidas pela Lei Maria da Penha, visando garantir aos transexuais vítimas de
violência doméstica e familiar a mesma proteção conferida pela Lei às mulheres,
enfatizando seu papel de guardião dos direitos humanos.

22 Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5339485&disposition=inline>. Acesso em 14/mar/2018.

224
4. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS ÀS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
FAMILIAR

O Código de Processo Penal sofreu grandes e extensivas alterações com a


Lei n.º 11.719/2008, que somada às Leis n.º 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.767/2008
caracterizam a denominada reforma processual penal.

Dentre as modificações trazidas pela Lei nº 11.719/2008, merece destaque


a inclusão do inciso IV, no art. 387, que passou a prever um valor mínimo de reparação
de danos causados pela infração à vítima diante dos prejuízos que sofreu.

Para Renato Brasileiro de LIMA23 a Lei n.º 11.719/2008 tem aplicação


imediata às sentenças proferidas após a sua entrada em vigor, posto tratar-se de uma
norma processual que apenas modificou o momento de fixação do valor da reparação.

Ainda, segundo o doutrinador citado, o ofendido pode promover de


imediato a execução da sentença condenatória transitada em julgado, já que o valor,
apesar de não ser definitivo, foi fixado em sentença o que dispensa a liquidação para
se apurar o quantum debeatur.

Cabe acrescentar que antes do advento da referida Lei, a sentença


condenatória transitada em julgado deveria ser submetida ao procedimento de
liquidação, para então respaldar uma ação de execução no juízo cível. Nas palavras de
Nestor TÁVORA e Fábio Roque de ARAÚJO24:

Agora, com a prolação da sentença penal condenatória, o juiz arbitra


o valor mínimo da condenação. Este valor, conforme a dicção do CPP,
é o mínimo devido. Portanto, nada obsta que o valor remanescente
entendido pela vítima seja objeto de ulterior processo de liquidação.
Dessa forma, chegamos a conclusão de que a sentença condenatória
terá, no que tange à condenação cível, uma parte líquida e outra
ilíquida.

Após as inovações legislativas, algumas questões surgiram acerca da


interpretação do novel dispositivo: (i) há necessidade ou não de requerimento

23LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Vol. único. 5. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1538.
24TÁVORA, Nestor. ARAÚJO, Fábio Roque de. Código de Processo Penal para Concursos. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 387-
388.

225
expresso, seja do ofendido, seja do Ministério Público, para concessão da indenização
pelo juiz; (ii) a indenização abrange os danos morais, ou somente os danos materiais; e
(iii) compete ao autor do pedido apontar o valor certo e líquido dos danos ou o próprio
juiz sentenciante deve fixá-lo de acordo com seu prudente arbítrio.

No que se refere a necessidade ou não de requerimento, o Superior


Tribunal de Justiça pacificando a questão em diversos julgados25, afirma a necessidade
de requerimento expresso do ofendido ou do Ministério Público, ainda no
oferecimento da denúncia ou queixa, para a reparação dos danos, sob pena de afronta
ao contraditório e a ampla defesa.

Para o Supremo Tribunal Federal, em que pese não enfrentar a questão de


forma explícita, como ocorreu nos julgados do Superior Tribunal de Justiça, é possível
aferir que compartilha do mesmo entendimento da Corte Superior, qual seja o da
necessidade de requerimento para a fixação de valor mínimo de reparação, pois
conforme se extrai do aresto (RvC 5437/RO)26, a indenização não foi concedida por
ausência de contraditório, e isto só é possível na fase instrutória se houver
requerimento expresso pleiteando indenização.

Em relação à abrangência da indenização, ou seja, se o juiz ao fixar o valor


mínimo pode condenar o réu por danos morais e materiais, ou apenas por danos
materiais, há divergência doutrinária.

Para Eugênio Pacelli de OLIVEIRA27, a interpretação do inciso IV do art. 387


deve ser restritiva, ou seja, contemplar apenas os danos materiais:

Parece-nos que a Lei não se reportou aos danos de natureza moral,


limitando-se àqueles valores relativos aos danos materiais, de fácil
comprovação (do prejuízo) no processo. O arbitramento do dano
moral implicaria: (a) a afirmação de tratar-se de verba indenizatória,
isto é, de natureza civil; e (b) a necessidade de realização de todo o
devido processo penal para a sua imposição, o que não parece ser o
caso da citada Lei n. 11.719/08 [...].

25
AgRg no REsp 1622851/MT, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 15/12/2016, DJe 10/02/2017; (AgRg
no REsp 1666724/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017);
(AgRg no REsp 1626962/MS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 06/12/2016, DJe 16/12/2016).
26 Informativo 772 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo772.htm. Acesso em 21/mar/2018.
27 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 8. ed. Revista, atualizada e ampliada.

São Paulo; Atlas, 2016, p. 806.

226
Em sentido oposto, Guilherme de Souza NUCCI28, assevera que o valor
mínimo, inserido no inciso IV do art. 387, “deve ser, em verdade, amplo, abrangendo
tanto a reparação visível (dano material) quanto à psicológica (dano moral), pois
ambas são passíveis de discussão e demonstração durante o trâmite da demanda
criminal”.

A jurisprudência assente do Superior Tribunal de Justiça29 tem


entendimento de que a indenização abrange os danos morais e materiais, já que o
Código de Processo Penal não faz distinção, sendo que referente aos danos morais,
não há necessidade de prova específica para sua apuração, pois se encontram in re
ipsa.

O dano moral in re ipsa também denominado de objetivo ou presumido


prescinde de prova30, é intrínseco à própria conduta que injustamente atinja a
dignidade do ser humano31.

Por fim, acerca do valor para a reparação de danos, há divergência da


própria jurisprudência do STJ. Para uns, não há necessidade do Ministério Público ou
do ofendido expressar o valor que considera devido, pois o juiz, na análise do caso
concreto e de acordo com a experiência, tem suficiente respaldo para estabelecer um
valor mínimo de indenização.

Neste sentido, a doutrina e a Sexta Turma do STJ se posicionam:

Não é necessário [...] que o Ministério Público – ou o ofendido, na


ação penal de iniciativa privada – estabeleça na inicial a quantificação
do valor mínimo que pretende ver fixado. Basta que o acusador
formule pedido expresso de que haja a fixação de valor mínimo a
título de reparação do dano causado pelo crime.32

O juízo penal deve apenas arbitrar um valor mínimo, o que pode ser
feito, com certa segurança, mediante a prudente ponderação das
circunstâncias do caso concreto – gravidade do ilícito, intensidade do
sofrimento, condição sócioeconômica do ofendido e do ofensor, grau
de culpa, etc. – e a utilização dos parâmetros monetários

28
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. ed. 13. São Paulo: Ed. Forense, 2016, p. 753.
29 AgRg no REsp 1622851/MT, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 15/12/2016, DJe 10/02/2017; (AgRg
no REsp 1666724/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 01/08/2017);
(AgRg no REsp 1626962/MS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 06/12/2016, DJe 16/12/2016).
30 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 7. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2017, p. 542.
31 REsp 1.292.141-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 4/12/2012.
32 REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 312.

227
estabelecidos pela jurisprudência para casos similares. Sendo
insuficiente o valor arbitrado poderá o ofendido, de qualquer modo,
propor liquidação perante o juízo cível para a apuração do dano
efetivo (art. 63, parágrafo único, do CPP) (AgRg no REsp n.
1.626.962/MS, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T., DJe
16/12/2016).

Em sentido oposto, a jurisprudência da Quinta Turma do STJ entende que


"a reparação do dano sofrido, previsto no inciso IV do art. 387 do Código de Processo
Penal, exige pedido expresso e indicação do valor pretendido”.33
Diante de tais considerações genéricas acerca do valor mínimo para
reparação de danos ao ofendido, decorrentes de infração penal, passaremos a análise
da indenização por danos morais às vítimas de violência doméstica e familiar.

A doutrina de Anderson SCHREIBER34 defende que a indenização por danos


morais possui um duplo caráter, o de compensar a vítima pela lesão sofrida e o de
punir o causador da conduta lesiva. E ressalta que no Brasil, a condenação não faz
distinção entre o valor compensatório e o valor punitivo, sendo imputado ao
condenado um valor único, o que prejudica sua defesa e o priva do conhecimento da
extensão da pena.

Neste diapasão, em julho de 2015 a 1ª Turma Criminal do Tribunal de


Justiça do Distrito Federal e Territórios35 confirmou a decisão de primeiro grau que
condenou o acusado ao pagamento de indenização por danos morais à vítima de
violência doméstica. Em que pese não haver menção ao nome da juíza sentenciante, é
oportuno transcrever o excerto de sua decisão mencionada no acórdão:

A fixação de um valor pecuniário mínimo para reparação dos danos


morais causados pela violência doméstica, mais do que resgatar os
prejuízos e sofrimentos ocasionados pelo delito à ofendida, atende
diretamente aos anseios de enfretamento à violência contra a
mulher no Brasil, servindo de desestímulo à perpetração desta
violação aos direitos humanos. Deixar de se fixar um valor mínimo
para reparação dos danos causados pela infração penal, nestes casos,
é premiar o agressor doméstico e, em última análise, fomentar a
cultura do ideologismo patriarcal, os quais induzem relações

33 AgRg no AREsp n. 1.062.989/MS, Rel. Ministro Jorge Mussi, DJe18/8/2017.


34 SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. Editora: Atlas, São Paulo, 2011, p. 19-20.
35 Acórdão n. 882660 20120610103217APR, Relator: ROMÃO C. OLIVEIRA, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 16/07/2015,

Publicado no DJE: 24/07/2015.

228
violentas entre os sexos, já que calcados em uma hierarquia de
poder.

Em outubro de 2017 a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, após


a multiplicidade de processos discutindo sobre a necessidade ou não de produção de
provas para a fixação, na sentença condenatória, de indenização por danos morais à
mulher vítima de crime no âmbito doméstico e familiar, submeteu o julgamento de
dois recursos especiais (1.675.874 e 1.643.051) ao rito dos recursos repetitivos.

O julgamento ocorreu em março de 2018, cujo relator Ministro Rogério


Schietti Cruz do Superior Tribunal de Justiça, fixou a seguinte tese: ”Nos casos de
violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a
fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido
expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não indicada a quantia, e
independentemente de instrução probatória específica”.36

Em seu voto, o relator destacou que no processo penal compete ao órgão


de acusação, ou seja, ao Ministério Público provar a conduta criminosa do agente e se
isto foi cumprido, diante do contraditório e da ampla defesa, os danos psíquicos à
vítima do crime (in casu lesão corporal qualificada) são evidentes e não há mesmo
como demonstrá-los. Ressaltou ainda que ambas as Turmas da Corte Superior já
firmaram entendimento no sentido de ser necessário um pedido específico para a
imposição de uma indenização na sentença condenatória às vítimas de violência
doméstica, e que a seu ver não é necessária a indicação do quantum. Por fim,
consolidou seu entendimento afirmando que “O merecimento à indenização é ínsito à
própria condição de vítima de violência doméstica e familiar. O dano, pois, é in re
ipsa.”

O Ministro Reynaldo Soares da Fonseca acompanhou o relator sobre a


necessidade de requerimento do ofendido ou do Ministério Público para a fixação dos
danos morais. E destacou sua mudança de posicionamento em relação a necessidade
de instrução probatória para se ver configurado o dano moral, “considerando os
princípios, o objeto e a finalidade das Leis nº 11.340/2006 e 11.719/2008, que
36 REsp 1675874/MS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/02/2018, DJe 08/03/2018.

229
merecem ser prestigiados pelo Estado-Juiz”, para corroborar a tese do relator no
sentido de que trata-se de dano moral in re ipsa, o qual dispensa instrução específica.

O voto-vista foi prolatado pelo Ministro Félix Fischer, que também


acompanhou o relator. Merece destaque sua conclusão em relação aos danos morais
presumidos: “[...] hipótese de dano moral in re ipsa, o que dispensa a colheita de
elementos acerca do dano propriamente dito e sua extensão, bastando a
demonstração do evento criminoso como deflagrador da hipótese reparatória por
prejuízo extrapatrimonial. Isto se dá, porque a humilhação, a dor moral, advém quase
que necessariamente da situação de violência doméstica”.

O Tribunal da Cidadania37 ao consolidar seu entendimento sobre a


indenização por danos morais às vítimas de violência doméstica e familiar, fixando a
tese de que o dano moral é presumido, ou seja, in re ipsa, e que o quantum será
arbitrado pelo juiz sentenciante como valor mínimo de reparação, bastando, portanto,
apenas requerimento expresso do Ministério Público ou da parte ofendida na
denúncia, está em consonância com os ditames constitucionais (art. 1º, III, art. 5º, I, XLI
e 226, § 8º) e com a proteção conferida pela Lei Maria Penha, a fim de valorizar a
vítima de violência doméstica e reduzir sua revitimização.

5. A CRIMINALIZAÇÃO DO DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS

A Lei nº 11.340/2006 prevê a concessão de medidas protetivas de urgência


à vítima, no intuito de cessar as agressões e manter a integridade física e psicológica
da ofendida. As medidas são requeridas pela própria vítima ou pelo Ministério Público
e se deferidas pela autoridade judicial tornam-se ordens de cumprimento obrigatório.

Todavia, a prática forense revelou que o descumprimento das medidas


protetivas por parte de seus destinatários é recorrente. Isto fez com que alguns
magistrados, no intuito de aumentar a coercibilidade de tais medidas, passassem a
considerar tal conduta como ensejadora do crime de desobediência, previsto no art.
330 do Código Penal, haja vista o descumprimento de uma decisão judicial.

37Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sitesss/STJ/default/pt_BR/Institucional/Hist%C3%B3ria/O-Tribunal-da-Cidadania>. Acesso


em 24/mar./2018.

230
A doutrina começou a se manifestar em sentido oposto, afirmando de
forma veemente a inexistência do crime de desobediência nos casos de
descumprimento de medidas protetivas de urgência. A lição de Cézar Roberto
BITENCOURT38 esclarece o tema:

Quando a lei extrapenal comina sanção civil ou administrativa, e não


prevê cumulação com o art. 330 do CP, inexiste crime de
desobediência. Sempre que houver cominação específica para o
eventual descumprimento de decisão judicial de determinada
sanção, doutrina e jurisprudência têm entendido, com acerto, que se
trata de conduta atípica, pois o ordenamento jurídico procura
solucionar o eventual descumprimento de tal decisão no âmbito do
próprio direito privado. Na verdade, a sanção administrativo judicial
afasta a natureza criminal de eventual descumprimento da ordem
judicial. Com efeito, se pela desobediência for cominada, em lei
específica, penalidade civil ou administrativa, não se pode falar em
crime, a menos que tal norma ressalve expressamente a aplicação do
art. 330 do CP. Essa interpretação é adequada ao princípio da
intervenção mínima do direito penal, sempre invocado como ultima
ratio. Solução idêntica ocorre com as decisões judiciais que cominem
suas próprias sanções no âmbito do direito privado, como sói
acontecer nas antecipações de tutela, liminares ou ações civis
públicas, com apenas uma diferença: o Judiciário, ao cominar
sanções civis ou administrativas, nesses casos, não pode ressalvar a
aplicação cumulativa da pena correspondente ao crime de
desobediência, por faltar-lhe legitimidade legislativa. Essa sanção
administrativo-judicial afasta a natureza criminal de eventual
descumprimento da decisão referida, e a manutenção ou acréscimo
do caráter penal a esse descumprimento não é atribuição do Poder
Judiciário.

Na mesma linha de entendimento, afirma Guilherme de Souza NUCCI39:

Inexistência de outro tipo de punição: ressalta, com pertinência,


NÉLSON HUNGRIA que "se, pela desobediência de tal ou qual ordem
oficial, alguma lei comina determinada penalidade administrativa ou
civil, não se deverá reconhecer o crime em exame, salvo se a dita lei
ressalvar expressamente a cumulativa aplicação do art. 330 (ex.: a
testemunha faltosa, segundo o art. 219 do Código de Processo Penal,
está sujeita não só à prisão administrativa e pagamento das custas da
diligência da intimação, como a processo penal por crime de
desobediência)”.

38 BITENCOURT, Cézar Roberto. Código Penal Comentado. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1239.
39 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 1321.

231
O STJ, em consonância com o entendimento doutrinário, firmou
jurisprudência no sentido de considerar como atípica a conduta do agente que
descumpre medidas protetivas de urgência:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO. CRIME DE


DESOBEDIÊNCIA. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA. LEI
MARIA DA PENHA. POSSIBILIDADE DE PRISÃO PREVENTIVA.
ATIPICIDADE DA CONDUTA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL.
OCORRÊNCIA. ORDEM CONCEDIDA. 1. O trancamento da ação penal
em habeas corpus é medida excepcional, somente se justificando se
demonstrada, inequivocamente, a ausência de autoria ou
materialidade, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas, a
ocorrência de causa extintiva da punibilidade ou a violação dos
requisitos legais exigidos para a exordial acusatória. 2. Na espécie, o
descumprimento de medida protetiva, no âmbito da Lei Maria da
Penha, não enseja o delito de desobediência, porquanto, além de
não existir cominação legal a respeito do crime do artigo 330 do
Código Penal, há previsão expressa, no Código de Processo Penal,
de prisão preventiva, caso a medida judicial não seja cumprida. 3.
Ordem concedida a fim de reconhecer a atipicidade da conduta
irrogada ao paciente pelo crime de desobediência, restabelecendo-se
a decisão de primeiro grau, que rejeitou em parte a denúncia. (HC
394.567/SC, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA
TURMA, DJe 15/05/2017).(sem destaque no original).

Não obstante a consolidação do entendimento doutrinário e


jurisprudencial sobre o assunto, o Poder Legislativo, reafirmando seu protagonismo e
ativismo, por meio do Deputado Alceu Moreira (PMDB/RS) apresentou o Projeto de Lei
n.º 173/2015 para tipificar o crime de descumprimento das medidas protetivas
previstas na Lei n.º 11.340/2006.

O projeto original previa apenas a inserção de um parágrafo ao art. 22 da


Lei Maria da Penha com a seguinte redação40: “§ 5º O descumprimento da
determinação judicial concedida em medidas protetivas desta Lei é crime punido com
detenção de 30 (trinta) dias a 2 (dois) anos”. Um substitutivo foi apresentado pela

40 Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 173/15. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra;jsessionid=27338A198F7860838F89D10AD26A410A.proposicoesWebExterno2?codteor=1297696&filename=T
ramitacao-PL+173/2015>. Acesso em 20/maio/2018.

232
Comissão de Constituição e Justiça para inserir um novo dispositivo na Lei n.º
11.340/2006, o qual foi aprovado e transformado na Lei n.º 13.641/2018.

Antes de adentramos na análise da Lei n.º 13.641/2018, é necessário


perquirir as justificativas que ensejaram o referido Projeto de Lei que culminou na
inclusão da Seção IV, do Capítulo II, da Lei n.º 11.340/2006 tipificando o crime de
descumprimento de medidas protetivas de urgência.

Em linhas gerais, o Projeto de Lei n.º 173/2015 aponta 4 fundamentos para


justificar sua criação: a) dirimir a controvérsia existente no Judiciário sobre a tipicidade
da desobediência na hipótese de descumprimento das medidas protetivas; b) o
compromisso assumido pelo Brasil na Convenção de Belém do Pará; c) o prejuízo
causado ao sistema de proteção das vítimas de violência doméstica e familiar diante da
ausência de norma incriminadora do descumprimento das medidas previstas no art. 22
da Lei Maria da Penha; d) a desobediência como fato atípico impede a autuação em
flagrante do agressor, obstruindo a proteção estatal.

Impende destacar que a principal preocupação do legislador é aumentar o


sistema de proteção já conferido às vítimas de violência doméstica e familiar, ou seja,
é mister que haja um tratamento penal da matéria, e que seja rigoroso o suficiente
para desencorajar as atitudes que violam o sistema de proteção41”.

Nesse sentido, oportuno enfatizar a mensagem legislativa constante no


Projeto de Lei n.º 173/201542:

A mulher em situação de violência que procura a delegacia para


registro de ocorrência pela simples violação da medida protetiva não
logra êxito em fazê-lo, exceto se, além do descumprimento, tenha o
agressor praticado novo ato de violência que configure fato típico.
Para noticiar o descumprimento e o risco iminente em que se
encontra, a mulher se vê obrigada a conhecer os demais atores da
rota crítica institucional, no caso o Ministério Público e a Defensoria
Pública da Mulher, e buscá-los diretamente, ou por orientação da
delegacia de polícia, a fim de que possa noticiar a violação da

41
Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 173/15. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/
prop_mostrarintegra;jsessionid=27338A198F7860838F89D10AD26A410A.proposicoesWebExterno2?codteor=1297696&filename=T
ramitacao-PL+173/2015>. Acesso em 20/maio/2018.
42 Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 173/15. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/

prop_mostrarintegra;jsessionid=27338A198F7860838F89D10AD26A410A.proposicoesWebExterno2?codteor=1297696&filename=T
ramitacao-PL+173/2015>. Acesso em 20/maio/2018.

233
determinação judicial e obter providências. O percurso é exaustivo e
contribui para o desestímulo da mulher na denúncia das violências e
diminui demais a confiança no sistema de justiça. De muito maior
gravidade, é ainda a situação de flagrância de descumprimento, uma
vez que o entendimento jurisprudencial impede a ação imediata da
Polícia Militar. Ao detectar o descumprimento da medida protetiva e
aproximação do agressor ou seu retorno ao lar depois de
judicialmente afastado, a mulher em situação de violência aciona o
serviço 190 da Polícia Militar, mas somente poderá obter a ação
policial efetiva se tiver sofrido nova ameaça ou agressão física. Por
certo se trata de um imenso absurdo, que demanda correção
imediata da lacuna legislativa.

Após a conversão do referido Projeto na Lei n.º 13.641/2018, a Lei Maria


da Penha passou a vigorar com a seguinte redação:

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas


de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1o A configuração do crime independe da competência civil ou
criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2o Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial
poderá conceder fiança.
§ 3o O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções
cabíveis.

Observa-se que com a criminalização do descumprimento de medidas


protetivas houve uma reafirmação do princípio da prevenção negativa a fim de
compelir o agressor a não violar tais medidas, sob pena, de agora em diante, ser
processado por uma nova infração penal.

A atuação legislativa veio ao encontro do sistema de proteção conferido


pela Lei Maria da Penha, mas ocorre que com a novel alteração da Lei n.º 11.340/2006
algumas questões merecem ser suscitadas.

A primeira delas é se a essa infração serão aplicadas todas as disposições


da Lei Maria da Penha, a exemplo do art. 41, que veda a aplicação da Lei n.º
9.099/1995 “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a
mulher”.

234
Outra questão que merece ser levantada é se o crime de descumprimento
das medidas protetivas de urgência será inserido em denúncia autônoma ou em forma
de aditamento no caso de já tramitar ação penal por outros crimes praticados no
contexto de violência doméstica e familiar. Indaga-se ainda, acerca da possibilidade de
aplicação da continuidade delitiva nos casos de reiterado descumprimento das
medidas protetivas e se o descumprimento for de medidas distintas (afastamento do
lar e proibição de manter contato, por exemplo) se haverá crime único ou concurso.

Não obstante a todas as questões suscitadas verifica-se que o legislador


acrescentou ao art. 24-A o parágrafo 1º que estabelece: “A configuração do crime
independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas”. Ora, não
se vislumbra a necessidade de inserção deste parágrafo, uma vez que o caput já se
refere a decisão judicial, pois a elementar do tipo penal é decisão judicial,
independentemente da competência do juiz que a proferiu.

Seguindo a diretriz de proteção e atento aos fatos da vida cotidiana, o


legislador mais uma vez inovou o ordenamento jurídico ao acrescentar o
descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do
art. 22 da Lei Maria da Penha como causa de aumento no crime de homicídio, ao
incluir o inciso IV no parágrafo 7º do art. 121 do Código Penal.

Sem embargo, a pretensão legislativa deixou a cargo da doutrina, da


jurisprudência e dos demais intérpretes da norma, a missão de solucionar as questões
penais e processuais emergentes.

6. A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NAS DISPOSIÇÕES DA LEI nº 11.340/2006

A Lei nº 11.340/2006 disciplinou um capítulo próprio para inserir as


atribuições do Ministério Público (Capítulo III, artigos 25 e 26).

Conforme destaca Ela Wiecko V. de Castilho43:

A Lei Maria da Penha identifica o Ministério Público como uma das


instituições do Estado brasileiro com a obrigação de atuar no escopo

43 CASTILHO, Ela Wiecko V. A Lei Maria da Penha e o Ministério Público. Disponível em http://www.compromissoeatitude.org.br/a-
lei-maria-da-penha-e-o-ministerio-publico-por-ela-wiecko-v- decastilho/.

235
da Lei, tanto na esfera judicial como na extrajudicial. Tem a obrigação
de intervir nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência
doméstica e familiar contra a mulher; de requisitar força policial e
serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social, entre
outros; de fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de
atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar,
bem como de adotar as medidas cabíveis para sanar as
irregularidades constatadas e cadastrar os casos de violência
doméstica e familiar contra a mulher.

É certo que as atribuições do Ministério Público, no que concerne às


disposições da Lei Maria da Penha, vão muito além daquelas mencionadas nos artigos
25 e 26, à medida que seu órgão de execução tem competência para propor medidas
de proteção em nome da vítima (art. 19, caput); emitir parecer de mérito acerca da
concessão ou não das medidas (art. 19, §1º); dever de comparecimento na audiência
específica nos casos de retratação da vítima (art. 16) e oferecer denúncia nos demais
casos (art. 12, inc. VII); e ainda requerer a prisão preventiva do agressor na fase de
inquérito policial ou da instrução criminal (art. 20, caput).

Destaca Valéria Diaz Scarance FERNANDES44 ao afirmar que: “Como parte


do processo inovador e dotado de efetividade, os artigos 25 e 26 da Lei Maria da
Penha criaram um modelo de atuação diferenciada do Ministério Público, que
extrapola suas funções de parte criminal. Além de acusador, o Promotor de Justiça
surge como órgão protetor e interventor.”

Neste cenário, destaca-se a atuação do membro do Ministério Público na


defesa e proteção dos transexuais vítimas de violência doméstica e familiar,
assegurando a aplicação da Lei Maria da Penha e seus consectários.

É cediço que o sistema de garantias e proteção conferido à mulher pela Lei


nº 11.340/2006 está atrelado à histórica discriminação perpetrada no plano cultural da
sociedade, marcada pelo patriarcalismo, sexismo e machismo, que culmina em uma
violência específica à mulher em razão de seu sexo e gênero.

De outro lado, a discriminação sofrida pelos transexuais, nesta mesma


sociedade arraigada por valores seculares implantados pela igreja católica e por uma

44FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: o Processo Penal no caminho da efetividade. São Paulo, 2013. 283 f. Tese
(Doutorado em Direito Processual Penal) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disponível em:
<https://tede2.pucsp.br/handle/handle/6177> Acesso em: 10 ago. 2018.

236
ideologia de princípios que consegue afastar com precisão o certo do errado, também
é marcada pelo sexo e pelo gênero, mas difere daquela sofrida pela mulher.

Todavia, independente da vítima de violência doméstica e familiar ser uma


mulher ou um transexual, a atuação do Ministério Público deve buscar a preservação
da plena dignidade humana, o que se traduz na incumbência conferida a esta
instituição pela Constituição Federal nos artigos 127 e 129.

Assim, a efetividade da Lei Maria da Penha no que se refere às medidas de


proteção e as peculiaridades processuais penais só terá aplicação aos transexuais a
partir da atuação do Ministério Público, enquanto garantidor dos direitos
fundamentais.

Outra importante atuação do parquet diz respeito ao pedido de


indenização por danos morais às vítimas de violência doméstica e familiar. Conforme
analisado alhures, o Superior Tribunal de Justiça fixou a tese em sede de recursos
repetitivos, que há necessidade de expresso requerimento do Ministério Público na
denúncia, pleiteando a fixação de valor mínimo para reparação por danos morais.

Tais danos morais são considerados ínsitos a situação de violência


perpetrada pelo agressor no contexto doméstico e familiar, o que dispensa instrução
probatória. Por tal razão, entende-se que o órgão de execução do Ministério Público
deve pleitear a condenação à indenização em todos os casos, servindo-se desse
instrumento como mais um meio de coibir a violência e punir financeiramente o
agressor.

Não bastasse isso, é possível também o pedido de condenação por danos


materiais, pois, como mencionado, o art. 387, IV do CPP não faz distinção. Inobstante
tal possibilidade de requerimento na denúncia para condenação por danos materiais,
compete ao membro do Ministério Público coligir todas as provas necessárias para
embasar seu pedido, pois neste caso é indispensável a comprovação do prejuízo da
vítima.

Assim, o Promotor de Justiça deve estar atento a declaração da vítima


exarada no inquérito policial ou na própria promotoria de justiça, verificando se da

237
violência decorreu prejuízos materiais, e em caso afirmativo, proceder ao pedido de
indenização por danos materiais, juntando as provas pertinentes.

Ademais, deve garantir o contraditório e a ampla defesa ao agressor


acusado, em sede de audiência de instrução e julgamento, ratificando o pedido nas
alegações finais.

Por todo o exposto acerca da indenização por danos morais e materiais,


conclui-se que o Ministério Público, mais do que um órgão acusador que atuará na
persecução penal do agressor, mantém seu olhar na perspectiva da vítima, agindo de
forma a buscar a compensação pelos males sofridos.

Seguindo na linha das atribuições conferidas pela Lei Maria da Penha ao


Ministério Público, destaca-se o pleito de medidas protetivas de urgência em nome da
vítima, quando constatada a necessidade no caso concreto, ou ainda, na hipótese de
atendimento prestado ao público, em que a própria vítima relata ao parquet situações
que legitimam o pedido das medidas de proteção.

O pedido de concessão das medidas protetivas de urgência é feito pelo


Ministério Público ao Juízo, que decidirá em 48 horas (Lei nº 11.340/2006, art. 18,
inc. I).

A doutrina de Renato Brasileiro de LIMA elucida o tema45:

Como espécies de provimentos de natureza cautelar, as medidas


protetivas de urgência jamais poderão ser adotadas como efeito
automático da pratica de determinada infração penal. Sua
decretação também está condicionada à presença do fumus comissi
delicti e do periculum libertatis.

Não se pode pensar que as medidas protetivas de urgência, por não


implicarem a restrição absoluta da liberdade, não estejam
condicionadas à observância dos pressupostos e requisitos legais.
Pelo contrário. À luz da regra de tratamento que deriva do princípio
da presunção de inocência, nenhuma dessas medidas pode ser
aplicada sem que existam os pressupostos do fumus comissi delicti e
do periculum libertatis.

45LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. 5. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1200-
1201.

238
Na hipótese da vítima ter solicitado as medidas de proteção diretamente
na Delegacia de Polícia, o pedido é remetido ao Juízo, que antes de decidir, encaminha
ao Ministério Público para manifestação, o qual analisará os requisitos a que se
subordinam as providências de natureza cautelar estabelecidas pela referida Lei, quais
sejam, o fumus comissi delicti – que decorre da conduta típica praticada pelo agressor
contra a vítima e por ela se enquadrar em uma das situações do art. 5º da referida Lei
– e o periculum libertatis – situação de risco concretizada pelas condutas típicas
perpetradas contra a vítima (como agressão física e ameaça).

Destarte, se presentes os requisitos referidos acima, a manifestação


ministerial será pelo deferimento das medidas de proteção pleiteadas pela vítima.
Caso seja verificado que o agente não praticou uma conduta típica ou que, no caso do
crime de ameaça, esta ser interpretada como inidônea, o Ministério Público se
manifestará pelo indeferimento das medidas protetivas.

Uma vez concedidas as medidas de proteção pela autoridade judicial e


ocorrendo seu descumprimento por parte do agressor, caracteriza-se a conduta ilícita
descrita no tipo do art. 24-A da Lei Maria da Penha, que como já asseverado, trouxe
várias indagações de cunho penal e processual.

No que se refere a aplicação ou não das benesses conferidas pela Lei nº


9.099/1995 ao crime de descumprimento de medidas protetetivas, a doutrina de
Rogério Sanches CUNHA46, membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, já
se posicionou pela inaplicabilidade:

Importaria em verdadeiro contrassenso que uma inovação que tenha


vindo – se imagina – em proteção à vítima de violência doméstica,
pudesse admitir a imposição de medidas despenalizadoras,
reservadas a condutas menos graves, de menor potencial ofensivo.
De resto, o art. 41 é expresso ao proibir a aplicação da Lei nº
9.099/1995 aos crimes perpetrados no âmbito da violência
domestica. A nosso ver, a disposição que veda a concessão de fiança
pela autoridade policial, após a prisão em flagrante do agente (§ 2º),
revela a intenção do legislador de, efetivamente, retirar o crime do
art. 24-A da esfera das infrações de menor potencial ofensivo, tal
qual ocorre com as demais infrações penais envolvendo violência
doméstica e familiar contra a mulher.

46CUNHA, Rogério Sanches. PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha. Lei 11.340/2006. Comentada artigo
por artigo. 7. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Juspodvim, 2018, p. 223.

239
No que concerne à denúncia do crime previsto no art. 24 da Lei nº
11.340/2006, não há posicionamento doutrinário ou jurisprudencial acerca de
eventual aditamento ou denúncia autônoma, da possibilidade de continuidade delitiva
nos casos de reiterado descumprimento das medidas protetivas e da aplicação ou não
de concurso de crimes para o caso de descumprimento de medidas distintas.

No entanto, entendemos que o titular da ação penal deve promover o


aditamento da denúncia no caso de já tramitar ação penal por outros crimes
praticados no contexto de violência doméstica e familiar, desde que a concessão das
medidas de proteção estejam relacionadas com os mesmos fatos.

Ademais, perfeitamente possível a aplicação dos concursos material e


formal e da continuidade delitiva, pois cada conduta de descumprimento enseja na
tipificação legal e, portanto, constitui o crime, e para o descumprimento de cada
medida de proteção pode acarretar na aplicação do concurso formal ou na
continuidade delitiva.

7. CONCLUSÃO

O Brasil demorou anos para conferir às vítimas de violência doméstica e


familiar uma proteção legislativa, a qual adveio com a promulgação da Lei nº
11.340/2006, denominada de Lei Maria da Penha em homenagem a uma das vítimas,
mulher, que não se calou diante da brutal violência perpetrada pelo seu então marido.

A violência doméstica e familiar tratada pela Lei Maria da Penha abrange a


ação e omissão, seja ela física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial, ocorrida no
seio da unidade familiar ou doméstica, seja em qualquer relação íntima de afeto,
inclusive no namoro, desde que praticada contra a mulher, independente de sua
orientação sexual.

Apesar da norma em exame explicitar a mulher como sujeito de proteção e


garantias, entende-se que as disposições da Lei nº 11.340/2006 também devem ser
aplicadas aos transexuais, independentemente de cirurgia de redesignação sexual ou
de alteração de nome e sexo no Registro Civil das Pessoas Naturais.

240
O transexual não pode ser privado dos direitos e garantias previstos na
referida lei em razão de suas características físicas e de seu estado biológico, sob pena
de se ferir frontalmente o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da
Igualdade ao se desconsiderar a identidade de gênero.

Nesse sentido, revela-se a essencialidade da atuação do Ministério Público,


como guardião dos direitos humanos, em velar pela aplicação da Lei Maria da Penha
aos transexuais que assumem a identidade de gênero, sem exigir qualquer alteração
morfológica ou jurídica para que também sejam sujeitos de proteção da referida
norma legal.

Na mesma linha, a atuação do Ministério Público é de suma importância


para garantir às vítimas de violência doméstica e familiar o direito a indenização por
danos morais, e até materiais, pois um dos requisitos para a sua concessão é o
requerimento expresso de condenação.

Assim, entende-se que seja qual for a modalidade de violência perpetrada


no âmbito doméstico e familiar, seja contra a mulher ou contra o transexual, deve o
membro do Ministério Público pleitear a condenação do agressor por danos morais
como forma de compensar a vítima pelo sofrimento e punir financeiramente o
agressor, a fim de evitar novas condutas lesivas.

A Lei Maria da Penha foi recentemente alterada para criminalizar o


descumprimento das medidas protetivas de urgência. O legislador, contrariando o
posicionamento doutrinário e jurisprudencial sobre o tema, criou mais uma figura
penal no ordenamento jurídico ao inserir o art. 24-A na Lei nº 11.340/2006, visando
punir criminalmente o agressor que descumpre a ordem judicial concedida em sede de
medidas de proteção.

A nosso ver, o legislador agiu corretamente, pois tal alteração confere


maior coercibilidade às medidas de proteção e está em sintonia com o sistema de
proteção estatal às vítimas de violência doméstica e familiar. Todavia, a novidade
legislativa suscitou algumas dúvidas de aplicação prática que perpassam pela atuação
do Ministério Público como titular da ação penal.

241
Destarte, cremos que a melhor interpretação que o parquet deve fazer do
novel dispositivo criminal é o aditamento da ação penal para inserir o crime de
descumprimento de medidas protetiva, se relacionados com os mesmos fatos, e nos
casos de reiterado descumprimento e de descumprimento de medidas diversas, deve-
se pleitear a aplicação dos concursos formal e material e da continuidade delitiva.

Por fim, conclui-se que o Ministério Público atua de diversas formas para
garantir a proteção dos direitos humanos violados no contexto doméstico e familiar,
ora agindo na defesa das vítimas, ora agindo na acusação dos agressores, utilizando-se
das atribuições conferidas pela Lei Maria da Penha em capítulo específico, como
suporte para aplicação do ordenamento jurídico de forma sistemática, na busca pela
plena satisfação dos direitos fundamentais.

8. REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cézar Roberto. Código Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n.º 173/15. Disponível em:


<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=27338
A198F7860838F89D10AD26A410A.proposicoesWebExterno2?codteor=1297696&filen
ame=Tramitacao-PL+173/2015.

CASTILHO, Ela Wiecko V. A Lei Maria da Penha e o Ministério Público. Disponível em:
<http://www.compromissoeatitude.org.br/a-lei-maria-da-penha-e-o-ministerio-
publico-por-ela-wiecko-v- decastilho/> Acesso em: 26 jul. 2018.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, Parte Especial. Salvador:


JusPodvim, 2016.

_____. PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica: Lei Maria da Penha. Lei
11.340/2006. Comentada artigo por artigo. 7. ed. rev. atual. e ampl. Salvador:
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243
Lucas Carli Cavassin1

PERSPECTIVAS DO CONTROLE DE
CONVENCIONALIDADE
SOB A ÓTICA DA ATUAÇÃO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO

PERSPECTIVES OF THE CONVENTIONALITY CONTROL


UNDER THE OPTICS OF THE PUBLIC MINISTRY'S ACTIVITIES

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Controle de convencionalidade; 2.1 Origens e conceito;


2.2 Hierarquia dos tratados de direitos humanos no Brasil; 2.3 Efeitos e aplicação no
âmbito interno; 3. Ministério Público; 3.1 Parquet e direito internacional; 3.2 O papel
da instituição da compatibilização das normas nacionais às internacionais;
3.3 Caminhos de atuação; 4. Conclusão; 5. Referências bibliográficas.

1 Pós-graduado pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado do Paraná. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do
Paraná. Assessor Jurídico do Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo (GAEMA) – MPPR. E-mail:
lccavassin@mppr.mp.br.

244
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apresentar reflexões sobre o exercício do
controle de convencionalidade pelos membros do Ministério Público. Para tanto, num
primeiro momento, investigam-se as origens e o conceito de tal modalidade de
controle, sobretudo tendo em conta a jurisprudência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. Na sequência, verificam-se as teorias sobre a hierarquia dos
tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, para então expor os efeitos e
casos práticos de aplicação do controle de convencionalidade pelo Poder Judiciário
pátrio. Num segundo momento, as atenções se voltam ao Órgão Ministerial,
analisando sua relação com o direito internacional e seu papel na compatibilização das
normas internas ao arcabouço normativo internacional, estabelecendo um
comparativo com o fenômeno do controle de constitucionalidade, a fim de verificar a
legitimidade conferida ao Ministério Público neste particular. À guisa de conclusão,
sugerem-se alguns possíveis caminhos de atuação ao Parquet com vistas à efetivação
do controle de convencionalidade.

ABSTRACT: This article aims to present reflections on the exercise of conventionality


control by the members of the Public Ministry. In order to do so, the origins and the
concept of this control are investigated, especially in light of the jurisprudence of the
Inter-American Court of Human Rights. Following, the theories on the hierarchy of the
human rights treaties ratified by Brazil are verified, to then expose the effects and
practical cases concerning the application of the conventionality control by the
Brazilian Judicial Branch. Secondly, attention is focused on the Public Ministry,
analyzing its relationship with international law and its role in the compatibility of
internal norms with the international normative framework, establishing a comparison
with the phenomenon of constitutionality control, in order to verify the legitimacy
conferred to the Public Prosecutor's Office in this matter. As a conclusion, some
possible ways of acting are suggested to the members of the Public Ministry, seeking
the effectiveness of the conventionality control.

PALAVRAS-CHAVE: Controle de convencionalidade; Ministério Público; Tratados


internacionais de direitos humanos; Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

KEYWORDS: Conventionality control; Public Ministry; International human rights


treaties; Inter-American System of Human Rights.

245
1. INTRODUÇÃO

Os ordenamentos jurídicos hodiernos são pautados em diálogos mútuos e


recíprocos, cujo pano de fundo é uma nova ordem pública que se constrói a partir das
mudanças do cenário internacional depois de finda a Segunda Guerra Mundial.

Esse novo panorama tem como preocupação precípua a dignidade da pessoa


humana, com vistas à superação da descartabilidade do ser humano que tomou conta
dos regimes nazifascistas na Europa à época. Ele é marcado pela criação de inúmeros
instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos e reflete também no
âmbito interno dos Estados, que passam, aos poucos, a promulgar novas Constituições
com essa mesma abordagem.

É o caso do Brasil e da Constituição de 1988. O documento, além de elencar


inúmeros direitos e garantias aos indivíduos, considera a dignidade da pessoa humana
como fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1º, inciso III) e anuncia a
prevalência dos direitos humanos como um dos princípios de regência das relações
internacionais (artigo 4º, inciso II). Não bastasse, consta da Constituição pátria a
denominada cláusula de abertura determinando que “os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte” (artigo 5, § 1º).

Do fundamento constitucional que demanda o diálogo entre esferas nacionais e


internacionais, exsurgem diversos vasos comunicantes. Uma das formas de
interlocução é o controle de convencionalidade, tido como aquele que permite a
compatibilização da normativa interna em relação à normativa internacional na seara
dos direitos humanos.

O primeiro capítulo do artigo tem como objetivo fornecer uma melhor


compreensão do controle de convencionalidade propriamente dito. Para tanto,
primeiramente serão abordados aspectos de sua origem no contexto do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos. Além disso, será apresentado um conceito do
fenômeno, tanto sob a ótica interna dos ordenamentos jurídicos quanto sob a ótica
externa com enfoque na atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

246
Na sequência, será explorado o tema atinente à hierarquia dos tratados de
direitos humanos no cenário brasileiro, com uma breve exposição das teorias
existentes e da compreensão atual delineada pelo Supremo Tribunal Federal, a fim de
justificar a aplicação de tal controle no âmbito doméstico. Esse panorama possibilitará
vislumbrar casos práticos da aplicação do controle de convencionalidade pelos
tribunais no Brasil, bem como os efeitos da declaração de inconvencionalidade das
normas.

O segundo capítulo do artigo, a seu turno, redireciona o enfoque para o


Ministério Público, analisando, primeiramente, sua relação com o direito internacional,
sobretudo à luz dos tratados ratificados pelo Estado Brasileiro. Ato contínuo, será
apontado o papel da instituição na compatibilização do arcabouço normativo interno
às normas internacionais, versando, inclusive, sobre a legitimidade dos atores do
Órgão Ministerial para o controle da convencionalidade das normas. E, finalmente,
serão indicadas situações práticas que demandam a participação do Parquet nessa
modalidade de controle, bem como serão sugeridos possíveis caminhos de atuação
aos seus membros.

As considerações finais buscarão expor as reflexões conclusivas deste trabalho


– ou, ao menos, os novos questionamentos que daqui despontam –, sem qualquer
pretensão de esgotar as discussões. Registra-se, nesse particular, que a temática em
espeque ainda é pouquíssimo explorada e compreendida, sendo certo que há um
longo percurso a ser percorrido objetivando o efetivo exercício do controle de
convencionalidade pelos membros do Ministério Público.

2. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

2.1 Origens e conceito

O termo controle de convencionalidade e todas as repercussões que dele


emanam estão imersos no contexto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Do próprio texto literal da Convenção Americana de Direitos Humanos2, sobretudo do
que consta de seus artigos 1º e 2º, é possível extrair que, por meio da obrigação de
2MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 39.

247
respeitar os direitos e do dever de adotar disposições de direito interno, os Estados
que ratificaram a referida Convenção estão comprometidos em garantir o livre e pleno
exercício dos direitos convencionais e de tomar medidas legislativas ou de outra
natureza para tornar tais direitos efetivos.

Ora, tais ideais expressam, com exatidão, a noção do sobredito controle, que
pode ser entendido como a compatibilização de toda a produção normativa interna de
um determinado ordenamento jurídico com os tratados de direitos humanos
ratificados pelo país em questão.

De efeito, a expressão propriamente dita foi utilizada pela primeira vez pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos apenas em 2003, por meio do voto
concorrente do juiz Sergio Garcia Ramírez no caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala3.
Naquela oportunidade, o magistrado fez uso do termo tendo em conta a atividade
jurisdicional da própria Corte, que impacta os Estados que a ela se submetem de forma
integral, com reflexos dessa responsabilidade a todos os órgãos internos.

Com as noções já consolidadas do fenômeno atinente ao controle de


constitucionalidade dentro dos diversos ordenamentos jurídicos, o mesmo jurista
aproveitou a ocasião do julgamento do caso Tibi vs. Equador4, em 2004, para
estabelecer um comparativo e melhor detalhar o controle de convencionalidade –
ainda em voto apartado.

Já em 2006, a referência ao controle de convencionalidade foi feita novamente


por Garcia Ramírez nos casos López Álvares vs. Honduras5 e Vargas Areco vs.
Paraguai6, com a mesma ótica, ou seja, a partir da atuação contenciosa da Corte
Interamericana. Neste mesmo ano, doutra banda, de maneira inédita a expressão foi
utilizada pelo plenário da Corte, no caso de repercussão mundial Almonacid Arellano e
outros vs. Chile. O sentido adotado, porém, foi bastante diverso, senão vejamos:

3 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala.São José da Costa Rica, 25 de
novembro de 2003. Série C, n. 101, par. 27 (voto do juiz Sergio Garcia Ramirez).
4 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Tibi vs. Equador. São José da Costa Rica, 07 de setembro de 2004. Série C,

n. 114, par. 3 (voto do juiz Sergio Garcia Ramirez).


5 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso López Álvarez vs. Honduras. São José da Costa Rica, 1º de fevereiro de

2006. Série C, n. 141, par. 30 (voto do juiz Sergio Garcia Ramirez).


6 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Vargas Areco vs. Paraguai. São José da Costa Rica, 26 de setembro de

2006. Série C, n. 155, par. 6 (voto do juiz Sergio Garcia Ramirez).

248
La Corte es consciente que los jueces y tribunales internos están
sujetos al imperio de la ley y, por ello, están obligados a aplicar las
disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico. Pero cuando un
Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención
Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también
están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de
las disposiciones de la Convención no se vean mermadas por la
aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que desde un inicio
carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe
ejercer una especie de “control de convencionalidad” entre las
normas jurídicas internas que aplican en los casos concretos y la
Convención Americana sobre Derechos Humanos. En esta tarea, el
Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino
también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte
Interamericana, intérprete última de la Convención Americana.7

Verifica-se, pois, que a partir de então o Sistema Interamericano direciona seus


olhares para a atuação dos juízes no âmbito interno de cada Estado-parte, atribuindo-
lhes o encargo de aplicar o controle de convencionalidade, tendo como parâmetro não
apenas a Convenção Americana, mas também a interpretação adotada pela Corte
Interamericana acerca das disposições convencionais. Para Valerio Mazzuoli, trata-se
do julgamento que dá início formal à doutrina do controle interno de
convencionalidade no continente Americano.8

Ato contínuo, no caso Trabajadores Cesadosdel Congresso vs. Peru9, a Corte


voltou a se pronunciar sobre tal modalidade de controle sob a ótica do ângulo interno
dos Estados, destacando que os órgãos do Poder Judiciário domésticos devem realizar
a compatibilização entre as normas internas e a Convenção Americana ex officio.

Por derradeiro, a consolidação de tal instituto se deu nos casos Cabrera García
e Montiel Flores vs. México10, de 2010, e Gelman vs. Uruguai11, de 2011. A inovação em
ambos é que a Corte passa a ampliar a sua compreensão, admitindo que outros órgãos

7 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile. São José da Costa Rica, 26 de
setembro de 2006. Série C, n. 154, par. 124.
8 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2016, p. 46-47.
9 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabajadores Cessados del Congresso vs. Peru. São José da Costa Rica, 24

de novembro de 2006. Série C, n. 158, par. 128.


10 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Cabrera García e Montiel Flores vs. México. São José da Costa Rica, 26 de

novembro de 2006. Série C, n. 220, par. 225.


11 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gelman vs. Uruguai. São José da Costa Rica, 24 de fevereiro de 2011.

Série C, n. 221, par. 193.

249
vinculados à administração da justiça possam exercer o controle de convencionalidade
– e não mais apenas os juízes, integrantes do Poder Judiciário.

De todo o panorama previamente exposto, dessume-se que o controle de


convencionalidade possui duas acepções que se complementam: pode ser visto tanto
sob a ótica do próprio Sistema Interamericano (ângulo externo), quanto sob a ótica do
direito nacional (ângulo interno).12 Enquanto a primeira tem relação com o modo pelo
qual a Corte Interamericana exerce esse controle face às jurisdições latino-americanas
– na medida em que atua no âmbito de sua competência contenciosa quando é
demandada para resolver os conflitos –, a segunda consiste na maneira pela qual as
cortes constitucionais, tribunais domésticos e demais órgãos internos do Estado
incorporam o arcabouço protetivo dos direitos humanos advindo do Sistema.13

O enfoque deste artigo é direcionado ao ângulo interno, dentro do contexto do


ordenamento jurídico brasileiro. Mas o que justifica a aplicação do controle de
convencionalidade no Brasil? A mera ratificação à Convenção Americana e submissão à
jurisdição contenciosa da Corte Interamericana são suficientes? Como o sistema
doméstico e a jurisprudência interna se comportam em relação aos tratados
internacionais de direitos humanos e ao controle ora analisado?

2.2 Hierarquia dos tratados de direitos humanos no Brasil

Da mesma forma como ocorre em relação ao controle de constitucionalidade,


não há como cogitar a possibilidade de controle que tem por paradigma uma
convenção ou tratado internacional que ocupa posição equivalente à legislação
ordinária de um determinado país. Isso porque o controle, per se, pressupõe uma
norma hierarquicamente inferior que deve seguir os ditames da norma
hierarquicamente superior.

Muitas são as teorias possíveis para determinar a hierarquia dos tratados


internacionais de direitos humanos, desde aquelas que os consideram possuidores de

12 RIBAS, Ana Carolina; CAVASSIN, Lucas Carli. Sistema Interamericano de Direitos Humanos e Controle de Convencionalidade no
Brasil. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, v. 7, p. 183-214, 2016.
13 Para Valerio Mazzuoli, “o controle de convencionalidade a ser efetivado no Brasil tem como paradigma todo o corpus juris

internacional de proteção, ou seja, todo o mosaico protetivo dos sistemas global (onusiano) e regional interamericano”. (MAZZUOLI,
Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 41).

250
status de direito ordinário até aquelas que admitem a supraconstitucionalidade desses
instrumentos.

A tese atualmente adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que fora
fixada quando do julgamento do Recurso Extraordinário 466.34314, representa
certamente uma decisão paradigmática, porquanto elevou a hierarquia normativa dos
tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio de forma inédita.15
Naquela oportunidade, a posição majoritária, capitaneada pelo ministro Gilmar
Mendes, adotou a compreensão de que os documentos de direitos humanos
ratificados pelo Brasil antes do advento da emenda constitucional 45/2004 16 – como é
o caso da Convenção Americana de Direitos Humanos – possuem status de
supralegalidade, vale dizer, encontram-se numa hierarquia acima das normas
ordinárias, mas abaixo da Constituição.

Doutro lado, na mesma ocasião, o ministro Celso de Mello defendeu que as


convenções internacionais em matéria de direitos humanos revestem-se de caráter
materialmente constitucional17, incorporando o bloco de constitucionalidade, ainda
que celebradas pelo Brasil antes da emenda constitucional 45/2004. É esse o
posicionamento que aqui se adota, eis que não há dúvidas de que os parágrafos 2º e
3º do artigo 5º clamam pelo mesmo fim: a proteção máxima da dignidade da pessoa
humana. Não poderia ser diferente, já que esse é o norte adotado pelo
constitucionalismo contemporâneo.

Isso equivale afirmar que, por meio de uma interpretação conjunta e


sistemática dos parágrafos do artigo 5º, o procedimento mais rigoroso de aprovação
apresentado no parágrafo 3º visa apenas reforçar a legitimação democrática dos

14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 466.343-SP. Recorrente: Banco Bradesco S/A. Recorrido: Luciano
Cardoso Santos. Relator: Ministro Cezar Peluso. Brasília, 03 dez. 2008. DJ 05 jun. 2009.
15 PIOVESAN, Flávia. Controle de Convencionalidade, Direitos Humanos e Diálogo entre Jurisdições. In: MARINONI, Luiz Guilherme;

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. (Org). Controle de Convencionalidade: um panorama latino-americano. Brasília: Gazeta Jurídica,
2013, p. 138.
16 A emenda constitucional 45/2004, dentre outras disposições, acresceu ao artigo 5º da Constituição Federal o § 3º, que assim

preceitua: “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
17 MARINONI, Luiz Guilherme. Controle de convencionalidade (na perspectiva do direito brasileiro). In: _______; MAZZUOLI, Valerio

de Oliveira. (Org). Controle de Convencionalidade: um panorama latino-americano. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 63.

251
tratados, garantindo nível constitucional a esses instrumentos, tanto formal quanto
materialmente.18

Assim, a supralegalidade – mas infraconstitucionalidade – dos tratados de


direitos humanos incorporados anteriormente à emenda constitucional nº 45 se
mostra, no mínimo, problemática. Conforme bem expõe Flávia Piovesan19, essa lógica
não se coaduna a uma hermenêutica emancipatória dos direitos, além de relegar os
direitos humanos a uma posição secundária, nas palavras de Ingo Sarlet20, criando uma
duplicidade de regimes jurídicos, nos termos propostos por Valerio Mazzuoli21.

Na tônica dos diálogos e das aproximações das ordens nacionais e


internacionais – que não se sobrepõem umas às outras –, defende-se aqui que os
tratados de direitos humanos vêm a expandir o bloco de constitucionalidade22 e o rito
previsto no parágrafo 3º do artigo 5º apenas reforça essa imperatividade. Assim,
reconhece-se a aplicabilidade do princípio pro persona, vale dizer, da norma mais
favorável ao sujeito de direito, seja ela nacional ou internacional.

Nesta singra, nota-se uma modificação substancial da forma que se enxerga um


documento constitucional, pois, quando o Estado se compromete com a proteção de
direitos perante a ordem jurídica internacional, “seu ordenamento torna-se
permeável, suas instituições assumem compromissos maiores e a autorreferência cede
lugar a uma experiência jurídica aberta ao diálogo entre jurisdições”23.

De toda sorte, independente da posição que se sustente – seja da incorporação


dos tratados internacionais de direitos humanos com status supralegal seja como um
somatório do bloco de constitucionalidade –, não há como negar a existência e
validade do controle de convencionalidade, mormente em observância aos ditames

18
SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre as relações entre a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos
humanos na perspectiva do assim chamado controle de convencionalidade. In: MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valerio de
Oliveira. (Org). Controle de Convencionalidade: um panorama latino-americano. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 95.
19 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 138.
20 SARLET, Ingo Wolfgang. Notas sobre as relações entre a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos

humanos na perspectiva do assim chamado controle de convencionalidade. In: MARINONI, Luiz Guilherme; MAZZUOLI, Valerio de
Oliveira. (Org). Controle de Convencionalidade: um panorama latino-americano. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 105.
21
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 6ª ed. São Paulo: RT, 2012, p. 386.
22 RAMOS, André de Carvalho. Pluralidade das Ordens Jurídicas: a relação do direito brasileiro com o direito internacional. Curitiba:

Juruá, 2012, p. 71.


23 FACHIN, Melina Girardi; RIBAS, Ana Carolina; CAVASSIN, Lucas Carli. Perspectivas do controle de convencionalidade do Sistema

Interamericano de Direitos Humanos no Brasil: implicações para um novo constitucionalismo. In: ANTONIAZZI, Mariela Morales;
BOGDANDY, Armin von; PIOVESAN, Flávia. (Coord.). Ius Constitutionale Commune na América Latina: diálogos jurisdicionais e
controle de convencionalidade. Curitiba: Juruá, v. 3, 2016, p. 284.

252
estabelecidos pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a cuja
jurisdição o Brasil se submete desde 1998.24

Curial ressaltar, ainda, que a compreensão atual delineada pelo STF e seguida
pelos tribunais pátrios não deixa dúvidas quanto à necessidade do uso da
nomenclatura controle de convencionalidade, ao menos por enquanto. A uma, pois
sua utilização funciona com caráter pedagógico e confere destaque aos documentos
internacionais ainda tão relegados a um segundo plano em nosso ordenamento. A
duas, pois se os tratados de direitos humanos não integram, em sua totalidade, o
bloco de constitucionalidade – já que, em sua grande maioria, ingressaram no direito
brasileiro antes da inserção do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal –, o
controle de convencionalidade não se confunde com o controle de
constitucionalidade.

Isso implica reconhecer que a legislação infraconstitucional precisa passar por


um duplo crivo de controle: de constitucionalidade e também de convencionalidade.
Vale dizer, de nada adianta uma lei respeitar a Constituição, se não respeita o tratado
internacional de direitos humanos. As convenções que versam sobre direitos humanos
ratificadas pelo Brasil, a exemplo do Pacto San José da Costa Rica, representam, pois,
um novo parâmetro de controle que não pode mais ser ignorado pelos operadores de
direito.

2.3 Efeitos e aplicação no âmbito interno

Desde o momento da ratificação de um tratado internacional de direitos


humanos em vigor, o Estado-parte se vincula a tal normativa, sendo certo que o
controle de convencionalidade sob a ótica interna não requer nenhuma autorização
específica advinda da esfera internacional.25 Assim, todo juiz e tribunal tem o poder-
dever de compatibilizar o arcabouço normativo pátrio às referidas leis internacionais.

A legislação que não passa pelo crivo da convencionalidade, em razão de sua


incompatibilidade com um tratado de direitos humanos, é inválida. Há quem sustente

24 O Brasil aprovou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992 e ela entrou em vigor no mesmo ano; a jurisdição da
Corte, todavia, só passou a ser reconhecida a partir de 1998.
25 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2016, p. 175.

253
que a norma se torna ineficaz, por intermédio do chamado “efeito paralisante”26,
defendendo que a previsão continua a existir no ordenamento, muito embora seja
paralisada e deixe de irradiar efeitos por ocasião do reconhecimento da
inconvencionalidade. Tal declaração é dotada, aliás, de efeito ex tunc, uma vez que,
assim como no controle de constitucionalidade, reconhece-se que a norma é
inconvencional desde a sua origem. Ainda, nos casos em que o controle é exercido
pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato, a decisão também terá
efeito erga omnes, ao qual estão submetidos todos os órgãos do Poder Judiciário e da
Administração Pública.27

O Brasil ainda carece de exemplos frequentes da aplicação do controle ora


analisado, sendo possível referenciar poucas ocasiões em que os tribunais superiores
brasileiros controlaram a convencionalidade de leis. Certamente a mais emblemática
delas é a decisão do supramencionado Recurso Extraordinário 466.343, datado de
2009, em que fora fixado o entendimento que deu origem à súmula vinculante 25 do
STF, nos seguintes termos “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja
a modalidade do depósito”28.

Demais disso, tomando por base a Opinião Consultiva nº 5 da Corte


Interamericana de Direitos Humanos, o mesmo tribunal concluiu pela desnecessidade
do diploma de curso superior de jornalismo para o exercício da profissão, quando do
julgamento do Recurso Extraordinário 511.961, também do ano de 2009.29

Outra referência importante que não pode ser deixada de lado diz respeito à
implementação da sistemática da audiência de custódia em terras tupiniquins. Tal
instituto fora incorporado30 em nosso ordenamento jurídico a partir da ratificação da
Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional dos Direitos Civis
e Políticos31, em 1992. A situação, contudo, só foi enfrentada de modo concreto pelo

26 HEEMANN, Thimotie Aragon. O exercício do controle de convencionalidade pelo membro do Ministério Público. Revista Jurídica
do Ministério Público do Estado do Paraná, Curitiba, ano 4, n. 7, p. 141-161, dez. 2017.
27 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2016, p. 70.
28 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 466.343-SP. Recorrente: Banco Bradesco S/A. Recorrido: Luciano

Cardoso Santos. Relator: Ministro Cezar Peluso. Brasília, 03 dez. 2008. DJ 05 jun. 2009.
29 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 511.961-SP. Recorrente: Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão

no Estado de São Paulo. Recorrido: União. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 17 jun. 2009. DJ 12 nov. 2009.
30 CORDEIRO, Néfi; COUTINHO, Nilton Carlos de Almeida. A audiência de custódia e seu papel como instrumento constitucional de

concretização de direitos. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, p. 76-88, jan./abr. 2018.
31 Ambos os instrumentos preveem em seus artigos 7º e 9º, respectivamente, que indivíduos detidos devem ser conduzidos, sem

demora, à presença de um juiz.

254
STF no ano de 2015, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.240,
oportunidade em que o plenário da Suprema Corte reiterou o caráter supralegal da
mencionada Convenção, fazendo referência ao direito convencional de apresentação
do preso ao juiz, e indicando que seja realizada a prática de audiência de custódia por
todos os tribunais do país.32

Cumpre fazer menção, outrossim, ao recente posicionamento adotado pela


Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que desacatar
funcionário público no exercício da função ou em razão dela, nos termos do artigo 331
do Código Penal, continua a ser crime.33 O referido julgado, de 2017, revê o
entendimento anterior consignado pela Quinta Turma, que apontava como
inconvencional o referido tipo incriminador, perpassando, inclusive, pela
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e examinando a posição
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a temática.34

Por derradeiro, o Tribunal Superior do Trabalho também enfrentou questões


atinentes ao controle de convencionalidade, ao analisar a compatibilidade do artigo
193, § 2º, da CLT, com as Convenções 148 e 155 da OIT. Num primeiro momento, a 7ª
Turma entendeu como inconvencional a previsão infraconstitucional que prevê a
faculdade de escolha ao empregado quanto ao adicional de insalubridade. Nada
obstante, ato contínuo, a Subseção I da Seção Especializada em Dissídios Individuais
modificou o raciocínio anterior ao afirmar que as normas da OIT de proteção dos
trabalhadores configuram meros códigos de conduta incapazes de criar obrigações
para os Estados-partes.35

Sem a intenção de esgotar os julgados que analisaram, até então, a


compatibilidade de normas internas em relação à normativa internacional – mas certo
de que os exemplos ainda são escassos36 – essas são as decisões de maior relevância

32 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5240-SP. Requerente: Associação dos Delegados de
Polícia do Brasil. Relator: Ministro Luiz Fux. Brasília, 20 ago. 2015. DJ 29 jan. 2016.
33 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 379269-MS. Impetrante: Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso Sul. Impetrado:

Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília, 24 mai. 2017. DJ 30
jun. 2017.
34
Registra-se que o intuito do presente artigo não é estabelecer qualquer juízo de valor acerca da atual posição do STJ, mas tão
somente apresentar mais um exemplo de julgado que tratou do fenômeno ora estudado.
35 A decisão mais recente do TST é amplamente criticada pela doutrina, sendo apontada como “um exemplo a não ser seguido”.

Para mais, ver: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2016, p. 71-75.
36 Ao pesquisar o termo controle de convencionalidade no buscador de jurisprudência do STF, o resultado indica tão somente 5

acórdãos. Já o buscador do STJ localiza o montante de apenas 8 acórdãos. Pesquisa realizada em 19 de fevereiro de 2019.

255
sobre a temática, emitidas pelas instâncias extraordinárias. Não se olvida aqui que
todo e qualquer juiz pode (e deve) efetivar o controle de convencionalidade, na sua
modalidade difusa, muito embora se reconheça que o exemplo maior deve advir das
cortes superiores, cujas decisões certamente representam um incentivo às instâncias
ordinárias.

Ocorre que não apenas os juízes são responsáveis pelo exercício de tal
modalidade de controle, mas também toda e qualquer autoridade pública – o que
inclui, certamente, o Ministério Público –, consoante entendimento consignado pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos, nos termos apresentados no primeiro
tópico deste artigo. Tal papel conferido ao Parquet será delineado no item a seguir.

3. MINISTÉRIO PÚBLICO

3.1 Parquet e direito internacional

Com o passar do tempo, não há dúvidas de que o Ministério Público se


fortaleceu enquanto instituição para a defesa de direitos. Foi instaurado como
defensor do rei, passando a ser tido como defensor do Estado, para somente então
defender efetivamente a sociedade.37 Atualmente, compreende-se que o órgão atua
na defesa da sociedade democrática, garantindo acesso à justiça e os direitos da
coletividade como um todo.

Nesse particular, cumpre fazer um esclarecimento importante. Ao utilizar o


termo democracia, está-se tratando da noção substancial democrática, que vai além
das vontades majoritárias e compreende o respeito às opiniões das minorias e aos
direitos humanos de todo e qualquer indivíduo.

Ronald Dworkin sustenta, nesse viés, a existência de trunfos contramajoritários,


os quais desempenham papel fundamental no Estado Democrático de Direito que se
anuncia. Para ele, tais direitos devem prevalecer em detrimento de metas coletivas, ou
seja, “background justifications for politicaldecisionsthatstates a goal for
thecommunity as a whole”38.

37 MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
38 DWORKIN, Ronald. Rights as trumps. In: WALDRON, Jeremy. Theories of rights. Oxford: Oxford University, 1984, p. 153.

256
Assim, uma decisão estatal, muitas vezes, não é justificativa para restringir ou
violar algum direito tido como contramajoritário. Esses trunfos devem ser,
necessariamente, reconhecidos a todos os grupos e são compreendidos a partir da
relação entre a moralidade e o direito, oriundos do princípio da dignidade da pessoa
humana, autonomia e autodeterminação.39

Dworkin acredita que os juízes devem proferir decisões fundadas em questões


substanciais, decisões estas que devem ser baseadas em argumentos de princípios,
fazendo uma leitura moral da Constituição e valorizando a integridade do direito.
Conforme o autor, esse tipo de decisão judicial contribui para os princípios do Estado
Democrático de Direito, “uma vez que Estado de direito não é sinônimo de legalismo, e
a democracia é muito mais rica e complexa do que a regra da maioria”40.

Logo, a democracia e os direitos humanos compõem duas faces de uma mesma


moeda, já que são noções que caminham com muita proximidade e no mesmo
sentido, uma vez que têm como fundamento o mesmo convencimento moral de igual
respeito a todos. A democracia é, nesse sentido, a forma política de exprimir a
dignidade humana.

De tal modo, só há se falar em Estado de Direito se democrático o for, o qual


traz em seu âmago os direitos humanos e, principalmente, mecanismos suficientes
para protegê-los. Uma Constituição e um Estado de Direito que não são democráticos
são, na realidade, instrumentos de opressão.

Feita essa elucidação, preleciona o artigo 127 da Constituição Federal que o


“Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis”.

Tendo em conta tal mandamento e partindo da premissa que a ratificação de


tratados internacionais de direitos humanos é um meio fortalecedor do Estado
Democrático de Direito e que tais documentos ocupam posição privilegiada em nosso
ordenamento jurídico – consoante previamente exposto –, não há dúvidas de que

39 NOVAIS, Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge. Perspectivas constitucionais nos 20 anos da
Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 287.
40 GONÇALVES, Nicole P. S. Mader. Jurisdição Constitucional na perspectiva da democracia deliberativa. Curitiba: Juruá, 2011, p.

248.

257
incumbe também ao Órgão Ministerial a observância e fiscalização dos ditames
internacionais de proteção do ser humano.

Um primeiro passo essencial a se considerar é a ratificação de um novo tratado


no âmbito interno de nossa pátria. Para tanto, é preciso que haja aprovação do
documento internacional pelo Poder Legislativo, o que ocorre por meio de decreto,
com a posterior promulgação pelo Poder Executivo; o direito brasileiro, pois, não
admite vinculação a um tratado de forma simplificada.41

Nesse aspecto, o Poder Judiciário e o Ministério Público só atuariam após a


incorporação do tratado na esfera doméstica. Entretanto, faz-se premente a
participação do Parquet também nesse momento de negociação inicial, sobretudo no
tocante aos tratados que afetam diretamente sua atuação42, a exemplo daqueles que
versam sobre investigação criminal43.

É na fase de aprovação congressual de um tratado que ocorre a discussão sobre


a compatibilidade da normativa internacional à Constituição Federal, bem como a
análise sobre a conveniência e oportunidade da celebração. A participação do
Ministério Público nos debates no âmbito do Congresso Nacional é fundamental para
fornecer subsídios técnicos aos parlamentares, inclusive quanto a eventuais reservas a
serem opostas no momento de ratificação44.

Não bastasse, para além do momento de negociação, a implementação do


conteúdo dos tratados já incorporados é, igualmente, função que não pode ser
ignorada pelo Parquet, mormente quando versam sobre direitos humanos. Nesse
particular, precisas as lições de André de Carvalho Ramos:

41 A doutrina adota, para esse processo de celebração de tratados, a teoria da junção das vontades, em análise conjunta dos artigos
84, VIII, e 49, I, da Constituição Federal. Para mais, ver: RAMOS, André de Carvalho. Tratados internacionais: novos espaços de
atuação do Ministério Público. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, ano 2, n. 7, p. 81-100,
abr./jun. 2003.
42 Para André de Carvalho Ramos, “surgem, inevitavelmente, as ineficiências naturais do modelo tradicional vigente hoje:

contradições, omissões e desatendimento de necessidades elementares, uma vez que o ente negociador não é aquele ao qual o
tratado se destina, nem será o seu aplicador. (RAMOS, André de Carvalho. Tratados internacionais: novos espaços de atuação do
Ministério Público. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, ano 2, n. 7, p. 81-100, abr./jun.
2003).
43 Nos termos do artigo 129, I, da Constituição Federal, uma das funções institucionais do Ministério Público é “promover,

privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.


44 RAMOS, André de Carvalho. Tratados internacionais: novos espaços de atuação do Ministério Público. Boletim Científico da Escola

Superior do Ministério Público da União, Brasília, ano 2, n. 7, p. 81-100, abr./jun. 2003.

258
As obrigações convencionais de proteção dos direitos humanos são,
após a incorporação interna dos tratados de direitos humanos,
verdadeiras obrigações legais, que, se não cumpridas sponte própria
pelo Estado brasileiro, podem ser exigidas judicialmente pelo
Ministério Público.45

Não há dúvidas, portanto, que são prementes os novos espaços na atuação do


Ministério Público, o qual passa a ocupar o locus de fiscal dos tratados internacionais
incorporados no ordenamento local. Em não agindo de tal forma, está a descumprir
suas funções nos termos delineados pela Constituição Federal de 1988.

3.2 O papel da instituição na compatibilização das normas nacionais às


internacionais

A noção de fiscalização incumbida ao Ministério Público compreende, para


além da observância de cumprimento dos ditames oriundos dos tratados, a
compatibilização da normativa nacional às previsões internacionais, ou seja, o
exercício do controle de convencionalidade propriamente dito.

Isto porque, consoante alertado alhures, a jurisprudência consolidada da Corte


Interamericana de Direitos Humanos – cuja jurisdição fora expressamente reconhecida
pelo Estado Brasileiro, repisa-se – indica que toda e qualquer autoridade pública pode
(e deve) exercer tal modalidade de controle, sendo certo que não cabe tão somente ao
Poder Judiciário de cada ordenamento doméstico efetivá-lo.

De toda sorte, o entendimento da referida Corte faz uma ressalva importante,


que não pode ser ignorada. Vejamos o trecho específico do caso Gelman vs. Uruguai46,
julgado em 2011:

Cuando un Estado es Parte de un tratado internacional como la


Convención Americana, todos sus órganos, incluidos sus jueces, están
sometidos a aquél, lo cual les obliga a velar por que los efectos de las
disposiciones de la Convención no se vean mermados por la

45 RAMOS, André de Carvalho. Tratados internacionais: novos espaços de atuação do Ministério Público. Boletim Científico da Escola
Superior do Ministério Público da União, Brasília, ano 2, n. 7, p. 81-100, abr./jun. 2003.
46 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gelman vs. Uruguai. São José da Costa Rica, 24 de fevereiro de 2011.

Série C, n. 221, par. 193.

259
aplicación de normas contrarias a su objeto y fin, por lo que los
jueces y órganos vinculados a la administración de justicia en todos
los niveles están en la obligación de ejercer ex officio un “control de
convencionalidad” entre las normas internas y la Convención
Americana, evidentemente en el marco de sus respectivas
competencias y de las regulaciones procesales correspondientes y en
esta tarea, deben tener en cuenta no solamente el tratado, sino
también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte
Interamericana, intérprete última de la Convención Americana.

Observe-se que, muito embora a Corte determine que é obrigação de todo


órgão vinculado à administração da justiça em todos os níveis realizar o controle de
convencionalidade, ressalta que isso deve se dar no marco de suas respectivas
competências e das regras processuais internas atinentes à matéria. Cabe analisar,
portanto, se há legitimidade ao membro do Ministério Público para deixar de aplicar
uma norma tida como inconvencional.

Nesse compasso, curial que se proceda a um breve comparativo em relação ao


exercício do controle de constitucionalidade exercido pelo membro do Ministério
Público, sobretudo pois o controle de convencionalidade bebe das mesmas fontes e
tem seu surgimento consagrado posteriormente àquela modalidade de controle.

Não há como olvidar, nesse tom, que a defesa da ordem jurídica – incumbência
do Ministério Público, segundo o artigo 127 da Constituição Federal – acaba por se
confundir com a própria defesa da Constituição, seja no plano judicial ou extrajudicial,
sendo insuficiente se referir ao Parquet como mero atuante custos legis.47

Faz-se mister mencionar, ainda, a ampliação do rol de legitimados para a


propositura de ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de
constitucionalidade (artigo 103 da Constituição Federal). Nesse rol, encontra-se o
Procurador-Geral da República, chefe do Ministério Público Federal, envolvido
diretamente no exercício do controle de constitucionalidade concentrado ou
abstrato.48

47 ROCHA, Mauro Sérgio. A intervenção do Ministério Público no controle concreto e difuso de constitucionalidade. Escola Superior
do Ministério Público do Estado do Paraná. Disponível em:
<http://www.escolasuperior.mppr.mp.br/arquivos/File/Teses_2015/MauroSergioRocha_A_intervencao_do_Ministerio_Publico_no_
controle_concreto_e_difuso_de_constitucionalidade.pdf>. Acesso em: 12. mar. 2019.
48 No plano estadual, cabe ao Procurador Geral de Justiça, chefe do Ministério Público Estadual, o exercício do controle de

constitucionalidade abstrato, cujo parâmetro é a Constituição Estadual.

260
De mais a mais, ao Ministério Público (Estadual ou Federal) cabe a discussão
concreta da constitucionalidade das leis no bojo de cada processo em que atua, no
âmbito do controle de constitucionalidade difuso. Nessa modalidade de controle, não
há dúvidas de que tanto as partes que integram a relação processual, quanto o
Parquet são legitimados para provocar a jurisdição a fim de que discuta a questão
constitucional.49

Tais situações dizem respeito à provocação por parte do ente ministerial para
que o Poder Judiciário declare a inconstitucionalidade de uma norma, de forma difusa
ou concentrada. De toda sorte, segundo a corrente majoritária da doutrina – que aqui
se acompanha –, nada impede que o Ministério Público, no plano administrativo, deixe
de aplicar norma que considera inconstitucional, notadamente com supedâneo na
supremacia do texto da Constituição50.

Assim, não remanescem incertezas de que o Órgão Ministerial possui


atribuições essenciais na aplicação do controle de constitucionalidade, sobretudo ante
a obrigação que lhe é conferida em nível constitucional de assegurar a defesa da
ordem jurídica e do regime democrático.

Tendo em conta, ainda, o paralelo aqui estabelecido entre as formas de


controle – e a hierarquia especial conferida aos tratados internacionais de direitos
humanos, nos termos delineados nos tópicos precedentes deste artigo –, é certo que
não há qualquer impedimento nas regras pátrias à atuação do Ministério Público no
tocante ao controle de convencionalidade. Ao revés, não pode o Parquet permanecer
inerte diante da percepção de uma contrariedade da norma interna em relação à
norma internacional.

Nos casos de aferição concreta no bojo de cada processo, assim como se


vislumbra no controle de constitucionalidade, ao Promotor ou Procurador de Justiça
não cabe a retirada da norma tida como inconvencional do ordenamento jurídico, mas
tão somente a não aplicação dela in casu, com efeitos inter partes. Essa análise deve

49
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed., JusPodvim, 2015, p.261.
50Apesar de a corrente minoritária da doutrina defender que no atual panorama constitucional o afastamento da aplicação de uma
norma legal exige a declaração judicial de sua inconstitucionalidade, à luz do princípio da presunção da constitucionalidade das leis
(CAMPOS, Miguel Ramos. Poder Executivo. Negativa de Aplicação de Lei Supostamente Inconstitucional: Correntes Doutrinárias.
Controvérsia. Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 2, p. 11-32, 2011), adota-se aqui o
entendimento de que todos os órgãos – judiciais ou não – estão autorizados a defender a Constituição Federal e não podem
simplesmente aplicar lei que flagrantemente contraria o texto constitucional.

261
ser feita sempre à luz do princípio pro persona, buscando o emprego da norma mais
favorável aos sujeitos envolvidos.

Diante de todo o exposto, o controle de convencionalidade pode ser


classificado tanto como próprio quanto como impróprio. Enquanto aquele é exercido
por juízes e tribunais, ou seja, pelo Poder Judiciário, este está relacionado à atuação de
outros órgãos vinculados à justiça, a exemplo do Ministério Público ou da Defensoria51,
entes que devem atuar constantemente em prol da defesa da Constituição – bem
como dos tratados de direitos humanos ratificados pelo país – e da sociedade como
um todo.

3.3 Caminhos de atuação

Enquanto no ponto 2.3 foram apresentados os exemplos considerados mais


relevantes de aplicação do controle de convencionalidade no cenário brasileiro, todos
com enfoque em decisões paradigmáticas do Poder Judiciário, neste momento serão
indicadas práticas corriqueiras sobre a temática que demandam a participação do
Ministério Público, bem como possíveis caminhos de atuação aos membros do
Parquet.

Em primeiro lugar, não há como olvidar das inúmeras alegações de


inconvencionalidade que circundam a seara penal e que precisam ser seriamente
enfrentadas pelo Ministério Público. Convém salientar, inclusive, que o fato de ser
titular da ação penal pública não implica afirmar que o Órgão Acusatório deve imputar
cegamente toda e qualquer conduta que, a princípio, se amolde aos incontáveis tipos
penais discriminados em nossa legislação. Em verdade, cabe ao membro ministerial
vislumbrar os contextos à luz dos ditames constitucionais e internacionais para não
incorrer em violação de normativas hierarquicamente superiores.

É consabido, aliás, que ao Delegado de Polícia também é conferida a


possibilidade (e o dever) de aferir a convencionalidade de leis que inviabilizem a
efetivação de garantias amparadas pelo sistema internacional de proteção de direitos

51HEEMANN, Thimotie Aragon; PAIVA, Caio. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 2ª ed. Minas Gerais: CEI, 2017, p.
408-409.

262
humanos52, mormente porque representa um poder estatal que é capaz de atingir
diretamente o núcleo de liberdades mais caras dos cidadãos na seara penal – assim
como o Ministério Público.

Dois dos exemplos atinentes ao âmbito criminal, quais sejam sobre as


audiências de custódia e o delito de desacato, já foram previamente explorados. Para
além deles, constantemente ressurge a discussão sobre a (in)convencionalidade do
instituto da reincidência e dos maus antecedentes. Sobre o tema, Luiz Flávio Gomes,
acompanhado de parte da doutrina e seguindo a jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, assevera:

O sistema democrático de direito não permite que se imponha


qualquer tipo de agravamento da pena com base no que a pessoa
“é”, senão unicamente pelo que ela fez. A aplicação de uma pena
com base em antecedentes criminais viola princípio da culpabilidade
e vai muito além da reprovação da conduta praticada, o que significa
direito penal de autor, inaceitável no estado de direito. Todo
dispositivo legal que agrava a pena pela reincidência é
inconstitucional e inconvencional. Viola o princípio da culpabilidade
assim como do “ne bis in idem”.53

Lado outro, o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 453.000,


entendeu que a agravante da reincidência não viola qualquer norma constitucional,
não se confundindo com a noção invocada do direito penal do autor, tampouco como
representativo de bis in idem.54 Naquela ocasião, em 2013, não se fez sequer menção à
convencionalidade da referida normativa, o que representa, certamente, um grave
equívoco da Corte Suprema.

Dito isto, cumpre esclarecer que não se está a propor que o Ministério Público
desconsidere a decisão do STF e aplique indistintamente o entendimento adotado pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tampouco se faz aqui uma análise mais

52 HOFFMANN, Henrique; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Delegado pode e deve aferir convencionalidade das leis. Revista
Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-nov-07/academia-policia-delegado-aferir-convencionalidade-
leis>. Acesso em: 17. mar. 2019.
53 GOMES, Luiz Flávio. Reincidência como agravante da pena: STF ignora jurisprudência da Corte Interamericana. Disponível em:

<http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121931580/reincidencia-como-agravante-da-pena-stf-ignora-jurisprudencia-da-corte-
interamericana>. Acesso em: 15. mar. 2019.
54 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 453.000-RS. Recorrente: Volnei da Silva Leal. Recorrido: Ministério

Público do Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 04 abr. 2013. DJ 02 out. 2013.

263
detalhada do fenômeno em questão, uma vez que este não é o foco ou objetivo do
presente artigo. Apenas se busca exemplificar outra situação que demanda as
considerações do Órgão Ministerial, o qual não deve simplesmente ignorar a existência
de decisões internacionais a respeito, devendo sopesá-las no caso concreto.

De mais a mais, há farta jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos


Humanos no que respeita às garantias processuais que devem ser conferidas às vítimas
de direitos humanos – que, com frequência, também são vítimas de delitos previstos
na legislação penal interna.

Para a Corte, é preciso que existam recursos efetivos no ordenamento


doméstico, do contrário o Estado incorrerá em violação à Convenção Americana de
Direitos Humanos.55 Ainda, a existência formal do recurso não é suficiente para que
este seja considerado efetivo; é necessário que ele seja idôneo a fim de esclarecer se
houve ou não violação de direitos humanos e na eventual reparação do dano
causado56, se este for o caso. Não bastasse, os ofendidos ou seus familiares devem
dispor de amplas possibilidades de serem ouvidos e de atuar nos respectivos
processos, seja para esclarecer os fatos e punir os responsáveis, seja para buscar uma
devida reparação.57

Mas não só no campo penal atua o Parquet discutindo a convencionalidade do


arcabouço normativo doméstico. Cita-se, por exemplo, a recente nota emitida pelo
Ministério Público do Estado do Paraná, posicionando-se contrariamente aos projetos
de lei conhecidos como “Escola sem Partido”, ante a sua inconstitucionalidade e
inconvencionalidade58. Na referida nota, o Órgão Estadual aproveitou a oportunidade
para destacar o compromisso brasileiro em relação aos documentos internacionais
ratificados, nos seguintes termos:

Reafirmar seu dever de cumprir e fazer observar os termos dos


tratados internacionais ratificados pelo Brasil, especialmente aqueles

55 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Mayagna (Sumo) AwasTingni vs. Nicarágua, São José da Costa Rica, 31 de
agosto de 2001. Série C, n. 79, par. 146.
56 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Durand e Ugarte vs. Peru, São José da Costa Rica, 16 de agosto de 2000.

Série C, n. 68, par. 102.


57 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Baldeón García vs. Peru, São José da Costa Rica, 06 de abril de 2006.

Série C, n. 147, par. 146.


58 Nota disponível em: <http://www.mppr.mp.br/2019/01/21204,10/Ministerio-Publico-do-Parana-se-manifesta-sobre-Escola-sem-

Partido.html?fbclid=IwAR3dE2py-T9sz9r9vEGO1MbyIpD5ELPRpUs0FZ7SpLMpthUCdtkZd6dkDJ0>. Acesso em: 13. mar. 2019.

264
que estabelecem ser a educação, sem qualquer cerceamento de
pensamento e opinião, instrumento eficaz para capacitar as pessoas
a participarem efetivamente de uma sociedade livre (art. 13 do Pacto
Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) e
para combater preconceitos baseados na premissa da inferioridade
ou superioridade de qualquer dos gêneros, que legitimem ou
exacerbem a violência contra a mulher (art. 8º, b da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
Mulher).

Reitera-se, nesse particular, que não apenas a Convenção Americana de


Direitos Humanos é parâmetro para o exercício do controle de convencionalidade, mas
sim “todo o corpus formal (tratados e costumes) e jurisprudência lato sensu (sentenças
e opiniões consultivas) presente em determinado entorno geográfico” 59, os quais
integram o bloco de convencionalidade.

Conseguintemente, é fundamental que os operadores de direito que


representam o Ministério Público, a nível estadual ou federal, conheçam a normativa
internacional – que engloba tanto os tratados de direitos humanos, quanto as decisões
internacionais que preenchem de sentido os textos legais –, notadamente porque há
inúmeras previsões com relação direta à atuação ministerial, envolvendo desde
questões criminais e procedimentais até direitos substanciais de crianças, idosos,
deficientes, mulheres, entre outros.

4. CONCLUSÃO

O controle de convencionalidade tem seu surgimento e consolidação


estabelecidos no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, mormente
por intermédio de casos paradigmáticos julgados pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Trata-se, em suma, da compatibilização das normas internas de um
determinado país ao conteúdo normativo internacional de direitos humanos, que
engloba tanto a letra da lei, quanto as decisões que a ela conferem sentido. Tal
fenômeno pode ser compreendido sob a ótica interna (exercício do controle por

59MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016, p. 60-61.

265
órgãos domésticos de cada Estado) ou sob a ótica externa (exercício do controle na
esfera do próprio Sistema Interamericano).

No que concerne à hierarquia dos tratados de direitos humanos no


ordenamento jurídico brasileiro, adota-se aqui a compreensão de que tais convenções
ampliam o bloco de constitucionalidade, independentemente de quando foram
ratificadas. O STF, por outro lado, sustenta que os documentos de direitos humanos
ratificados pelo Brasil antes do advento da emenda constitucional 45/2004 possuem
status de supralegalidade. Ambas as posições possibilitam considerar a existência e
validade do controle de convencionalidade em nosso sistema jurídico, já que conferem
hierarquia diferenciada e superior aos tratados internacionais que versam sobre
direitos humanos.

A partir da ratificação desses instrumentos, o Estado-parte encontra-se


vinculado e obrigado a realizar o controle de convencionalidade, cujo paradigma será o
tratado assinado. A norma incompatível com a normativa internacional será, então,
considerada inválida, deixando de repercutir efeitos no ordenamento pátrio. Os
exemplos de efetivação de tal fenômeno ainda são escassos no cenário brasileiro,
sendo que poucas vezes as instâncias extraordinárias se debruçaram sobre a temática.

O Ministério Público representa, da mesma forma, papel fundamental no


diálogo com as esferas internacionais, tanto no momento de ratificação de um tratado,
quanto na fiscalização e observância de seu cumprimento. De mais a mais, segundo a
jurisprudência consolidada da Corte Interamericana de Direitos Humanos, todos os
órgãos vinculados à administração da justiça podem (e devem) exercer o controle de
convencionalidade – e não apenas os juízes, integrantes do Poder Judiciário. Assim,
cabe ao Parquet conhecer a normativa internacional e figurar como motivador da
compatibilização de normas, à luz do princípio pro persona, no bojo de cada processo
em que atua.

Tal constatação é corroborada, ainda, ao se estabelecer um comparativo com o


exercício válido do controle de constitucionalidade pelo membro do Ministério
Público, tendo em conta a obrigação que lhe é conferida em nível constitucional de
assegurar a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Não pode, portanto, o

266
Promotor ou Procurador de Justiça permanecer inerte diante da percepção de uma
contrariedade da norma interna em relação à norma internacional.

Por derradeiro, os caminhos que permitem o controle da convencionalidade


das leis por parte do Órgão Ministerial são inúmeros. Isso porque os campos de
atuação do Ministério Público circundam diversas previsões dos tratados
internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, seja no campo criminal ou
mesmo envolvendo direitos e garantias de coletividades e grupos vulneráveis.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 466.343-SP. Recorrente:


Banco Bradesco S/A. Recorrido: Luciano Cardoso Santos. Relator: Ministro Cezar
Peluso. Brasília, 03 dez. 2008. DJ 05 jun. 2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 511.961-SP. Recorrente:


Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo. Recorrido: União.
Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília, 17 jun. 2009. DJ 12 nov. 2009.

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Brasília, 20 ago. 2015. DJ 29 jan. 2016.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC nº 379269-MS. Impetrante: Defensoria Pública


do Estado do Mato Grosso Sul. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Mato
Grosso do Sul. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília, 24 mai. 2017. DJ
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Ramirez).

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São José da Costa Rica, 1º de fevereiro de 2006. Série C, n. 141 (voto do juiz Sergio
Garcia Ramirez).

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Vargas Areco vs. Paraguai.


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Garcia Ramirez).

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Flores vs. México.São José da Costa Rica, 26 de novembro de 2006. Série C, n. 220.

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270
5. Resenha
O DIREITO A FAVOR DA ESPERANÇA:
O USO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS
PARA A EFETIVAÇÃO DA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA
CAMBI, Eduardo
OLIVEIRA, Lucas Paulo Orlando de

1. Dados da obra
Título: O direito a favor da esperança: o uso dos precedentes judiciais para a
efetivação da dignidade da pessoa humana.
Editora: D’Plácido.
Autores: CAMBI, Eduardo e OLIVEIRA, Lucas Paulo Orlando de Oliveira.
Lançamento: Setembro/2019.
Número de páginas: 252.

2. Resenha

A obra é resultado da pesquisa desenvolvida para a dissertação de mestrado,


com título homônimo, defendida e aprovada com nota máxima no Programa de Pós-
graduação da Universidade Paranaense, sob orientação do professor Eduardo Cambi e
com a banca composta pelos professores Bruno Smolarek Dias e William Soares
Pugliese.

O objetivo da referida pesquisa consistiu em identificar fundamentos a partir


da teoria do direito, do Estado e da Constituição para propor uma compreensão da
dinâmica do uso da jurisprudência balizada pelos precedentes judiciais em favor da
dignidade da pessoa humana.

Para tanto, além do capítulo introdutório, pode-se estabelecer o


desenvolvimento de tal proposta a partir de três movimentos que são coincidentes com
os capítulos 2, 3 e 4.

272
Deste modo, o primeiro movimento se revela como uma reação ao direito
pensado a partir da crise e da exceção que permeia o imaginário jurídico
contemporâneo. Parte-se da premissa que para o enfrentamento das mazelas que
atentam contra os avanços civilizatórios estabelecidos após a II Guerra Mundial é
necessário o resgaste da perspectiva utópica no direito.

Neste sentido, não se pretende um desenvolvimento ingênuo, pedante,


panfletário, puramente abstrato do conceito de utopia ou mesmo das possibilidades de
relação desta categoria com o direito. Em verdade, o que se pretende é estabelecer um
fundamento que balizará a dinâmica do direito a partir da prática da jurisprudência e
dos precedentes no ordenamento brasileiro rumo à afirmação e desenvolvimento das
conquistas civilizatórias ameaçadas em diferentes perspectivas de crise.

Para tanto, o primeiro capítulo se divide em seis subtópicos. O primeiro


consiste em uma apresentação a respeito do método adotado. O segundo pretende
galgar fundamentos metafísicos, alinhados com uma compreensão da tradição
aristotélica que se desenvolve a partir das obras de Avicena, Averroés e Giordano Bruno
e encontra sua continuidade no século XX na obra de Ernst Bloch que trava diálogo com
Karl Mannheim, Jürgen Habermas, Zygmunt Bauman e outros.

Assim, como grande alicerce metafísico, tem-se que a matéria não é estanque,
mas sim possui um fluxo contínuo de transformação. Em relação ao devir das novas
realidades possíveis a partir desta condição, o gênero humano encontra um papel
parturiente, uma vez que participa de forma significativa das construções daquilo que
está em vir-a-ser.

O terceiro subtópico continua a reflexão a respeito do papel da humanidade


enquanto artífice do novo, não apenas em relação ao mundo que cerca o gênero
humano, mas também em relação à própria condição antropológica. Por isso, não se
reconhece uma natureza pronta e acabada do gênero humano, mas em constante
transformação, orientada pela satisfação das necessidades das circunstâncias
presentes.

As pretensões associadas às satisfações das atuais necessidades permitem que


o ser humano vislumbre realidades futuras, onde tais necessidades não se façam mais

273
presentes. Desta condição nasce o que Bloch nomina de sonhos acordados, que, ao
contrário dos sonhos noturnos, são decorrentes da razão e ação humanas que se
orientam à transformação da realidade de necessidade em direção a um futuro de
satisfação.

Deste movimento nasce o conceito de utopia concreta, aquela que, por um


lado, supera uma a condição onírica ou ingênua que poderia ser indiferente à existência
e, por outro, não se deixa seduzir por discursos totalitários, uma vez que não se
desconecta da vivência prática em nome de um ideal político alienante. Quando se
emprega o conceito de utopia na obra é neste sentido que se faz.

O quarto subtópico apresenta uma das principais ferramentas para que o ser
humano possa se integrar ao fluxo do devir de novas realidades: o conhecimento
científico. Neste sentido, as ciências, inclusive as sociais como o direito, devem
abandonar sua postura de simples intérpretes dos fenômenos, mas se colocar como
mecanismos de transformação do mundo.

O quinto consiste em uma reflexão de como o conceito de utopia se manifestou


ao longo da história e orientou de forma mais ou menos próxima o desenvolvimento de
diferentes sociedades ocidentais. Em um esforço que se situa desde a Grécia Antiga até
os dias atuais, além da obra de Bloch, se recorre às contribuições de Karl Mannheim e
Zygmunt Bauman. O último autor tem uma contribuição especial para o recorte
contemporâneo. A partir de sua obra Retrotopia assinala que a disseminação do medo,
da violência, da retomada de discursos nacionais e segregacionistas, bem como o avanço
da desigualdade social, tem feito com que as expectativas de futuro sejam permeadas
de desconfiança. Dessa forma, em vez de se vislumbrar horizontes futuros melhores do
que a condição humana atual, os esforços coletivos se convertem em melancolia e
anseio de reviver propostas e organizações sociais que refletem tal sentimento de
desconfiança e privilegiam soluções individualistas, violentas e de deslegitimação das
instituições sociais que visam a preservação de uma coexistência plural e digna.

O sexto e último subtópico do segundo capítulo, reconhecendo as dificuldades


do cenário contemporâneo, pretende o resgate da relação do direito como ferramenta
a serviço da dignidade humana, proposta aqui como seu elemento constitutivo
ontológico e deontológico e, portanto, indissociável do direito que se pretende legítimo

274
ao se atentar às premissas metafísicas, antropológicas, epistemológicas e históricas
desenvolvidas até então.

Deste modo, a partir dos marcos teóricos estabelecidos e pela análise histórica
empreendida, conclui-se que o direito tem um compromisso também com o devir de
novas realidades humanas e, portanto, possui sua própria utopia concreta: a dignidade
humana. Um direito que se sensibiliza com este desiderato se revela instrumento
importante de conservação das esperanças e utopias políticas da humanidade. Sendo
esta a perspectiva ínsita ao direito, não pode ser diferente com o uso dos precedentes
e o desenvolvimento da jurisprudência.

No entanto, o desenvolvimento de uma teoria do direito compatível com a


persecução da dignidade humana enquanto utopia, por si, não é possível sem que haja
a consideração dos mecanismos de sua produção no cenário contemporâneo. Por isso,
o segundo movimento da obra consiste em uma análise mais detida a respeito da
relação entre teoria do direito e os postulados próprios da teoria do Estado de diferentes
recortes da modernidade. Como também não seria possível a compreensão de uma
teoria do Estado dissociada de elementos empíricos, busca-se assinalar as variáveis
pertinentes ao desenvolvimento tecnológico, cultural, econômico político e jurídico que
legitimaram as expressões de Estado cotejadas, sendo estas as expressões Absolutista,
Liberal, Social, Totalitária e a do Estado Democrático de Direito.

A expressão que se revela historicamente mais compatível com o compromisso


fluído e constante da persecução utópica-concreta pelo direito foi o Estado Democrático
de Direito, uma vez que além de inserir a dignidade no plano jurídico, também se
estrutura a partir de uma constituição com a orientação para a consecução de
determinados objetivos - utopias concretas - sintetizados pela dignidade da pessoa
humana. Tais objetivos implicam na existência de um direito com normatividade extra
– plus normativo - isto é, que se ocupa não apenas da manutenção ou preservação de
uma certa ordem social, mas também com sua transformação em direção aos objetivos
estabelecidos.

Deste modo, dialogando com as reflexões doutrinárias pertinentes elaboradas


pela comunidade científica brasileira nas últimas décadas, recorre-se à Teoria da
Constituição Dirigente Adequada aos Países de Modernidade Tardia - TCDAPMT como

275
forma de preservar uma jurisdição constitucional substantiva, ainda necessária à
superação das promessas não cumpridas da modernidade em relação à sociedade
brasileira. Em suma: o legado do terceiro capítulo para a presente obra é de afirmar a
importância de se preservar o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito e da
TCDAPMT como expressões legítimas e compatíveis com os anseios de um direito que
contribua com a realização das mais sinceras e necessárias esperanças civilizatórias,
mesmo que não seja exclusivamente responsável ou suficiente para a sua concretização.

No entanto, a estruturação do direito em favor dos fluxos utópicos concretos


no âmbito da Constituição Dirigente encontra forte resistência no projeto de reforma
de Estado orientada por uma ideologia neoliberal que visa, em síntese, a adequação do
aparato estatal em favor da integração dos diferentes mercados nacionais. Assim, em
vez de viabilizar um devir civilizatório que ressoe as expectativas decorrentes das
experiências históricas, o Estado passa a ser apenas mais uma variável a ser moldada a
favor da obtenção de lucro pelos players econômicos.

Tem-se, deste modo, que o desenvolvimento da jurisprudência orientada pelos


precedentes ou padrões decisórios no direito brasileiro se situa em um impasse: seriam
estes mecanismos que contribuem para os ventos da globalização econômica ou podem
ser entendidos como viabilizadores de novas realidades e concretizadores da dignidade
humana?

O terceiro e último movimento pretende fazer a releitura do uso dos


precedentes no direito brasileiro a partir dos conceitos desenvolvidos até então de
forma a responder à pergunta elaborada no final do parágrafo anterior.

Deste modo, a investigação histórica a respeito das tradições de Common Law


e Civil Law revela que o uso dos precedentes no direito brasileiro não é uma absoluta
novidade no Código de Processo Civil de 2015 - CPC/15, uma vez que desde os tempos
de Império há registros do uso de decisões judicias como fontes de direito para outras.

Em seguida, apresentam-se as funções atuais dos tribunais como sendo a


nomofilática, uniformizadora, dikelógica e paradigmática. Para além de tais funções,
especificamente em relação à sua jurisprudência, os Tribunais devem atentar-se aos
deveres da uniformidade, estabilidade, integridade e coerência. A partir de tais deveres,

276
afirma-se que o CPC/15, em consonância com os propósitos de um Estado Democrático
de Direito e com um direito a favor da esperança, tem como obrigação não apenas a
confiabilidade das suas decisões, decorrente dos deveres de uniformidade e
estabilidade, mas também os deveres de integridade e coerência implicam em uma
abertura de diálogo definitiva entre a prática da jurisprudência dos tribunais e a
efetivação de princípios, como a dignidade humana, de forma progressiva. Isto é, o
direito enquanto integridade, contextualizado com os demais deveres do art. 926 do
CPC/15, transforma o trato jurisprudencial dos tribunais também em um esforço em
direção à construção de novas realidades sociais contextualizadas com a persecução da
efetivação da dignidade humana.

Em seguida, passa-se à análise dos padrões decisórios previstos no art. 927 do


CPC/15, bem como da análise do uso dos padrões que ali não foram previstos, como as
decisões provenientes da Corte Interamericana de Direitos Humanos que se revelam
como importante bússola ética, uma vez que, se considerados como se propõe neste
trabalho, viabilizam a preservação da sintonia da jurisprudência brasileira com o projeto
civilizatório nascido dos escombros da II Guerra Mundial, sem cair nas tentações
neoliberais.

Na sequência, faz-se uma análise entre os argumentos doutrinários favoráveis


e contrários ao uso dos precedentes, com especial atenção às obras de Luiz Guilherme
Marinoni e William Pugliese.

Por fim, reconhece-se que o direito está em um centro de disputa entre um


projeto neoliberal, que esvazia seu conteúdo utópico em nome de uma ética aética
guiada unicamente pelo valor da concorrência e as construções próprias do projeto
constitucional utópico-concretista edificado após a II Guerra Mundial que possui a
dignidade humana como referência.

Deste modo, para que o direito não se transforme em extensão dos embates
de mercado e não perca seu referencial enquanto balizador civilizatório, a
jurisprudência brasileira, ao atentar-se pela extensa corrente de conceitos
desenvolvidos na obra, se transforma não apenas em um instrumento de verdadeira
resistência democrática, como também catalizador de esforços para a construção de um
mundo novo.

277
6. Jurisprudência
Comentada
Hugo Evo Magro Corrêa Urbano1
Leonardo Dumke Busatto2

ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO
DECORRENTE DE OCUPAÇÃO
IRREGULAR DE IMÓVEL PÚBLICO

UNJUSTIFIED ENRICHMENT RESULTING FROM


IRREGULAR OCCUPATION OF PUBLIC PROPERTY

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Da diferença entre enriquecimento injustificado e


responsabilidade civil; 3. Da utilização de bens públicos e do enriquecimento
injustificado por usurpação; 4. Conclusões; 5. Referências bibliográficas.

1 Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
2 Promotor de Justiça no Estado do Paraná.

279
RESUMO: O texto realiza estudo crítico a respeito de jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, no sentido de que não cabe indenização por perdas e danos com
base em eventual recebimento de aluguéis por ocupação irregular de imóveis
funcionais. O trabalho parte da diferenciação entre responsabilidade civil e
enriquecimento injustificado para expor o equívoco do entendimento.

ABSTRACT: The text conducts a critical study about the jurisprudence of the Superior
Court of Justice, in the sense that it is not possible to compensate for damages based
on eventual receipt of rents for irregular occupation of functional properties. The work
starts from the differentiation between civil liability and unjustified enrichment to
expose the misunderstanding of the Court.

PALAVRAS-CHAVE: Usurpação; Bens públicos; Enriquecimento injustificado;


Restituição; Aluguéis.

KEYWORDS: Usurpation; Public goods; Unjustified enrichment; Refund; Rentals.

280
1. INTRODUÇÃO

Recentemente, ao analisar recurso especial sobre o tema da ocupação


irregular de imóvel funcional, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou sua
jurisprudência no sentido de ser incabível a indenização por perdas e danos,
correspondente ao valor de locação do imóvel durante o tempo de ocupação irregular,
pois a situação estaria disciplinada por normas de Direito Administrativo.

O julgamento analisou ação de reintegração de posse de imóvel funcional


pertencente à União, o qual havia sido retido indevidamente por servidor público
militar, após o seu ingresso na reserva remunerada. Eis a ementa do respectivo
julgado, que se reporta a outras decisões similares da Corte sobre a matéria:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. IMÓVEIS FUNCIONAIS.


OCUPAÇÃO IRREGULAR. INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. NÃO
CABIMENTO. 1. O Tribunal de origem decidiu, em conformidade com
a jurisprudência do STJ, que não cabe indenização por perdas e danos
com base em eventual recebimento de aluguéis por ocupação
irregular de imóveis funcionais. Precedentes: AgInt no AREsp
502543/DF, Relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma,
DJe 6/12/2016, AgRg no Ag 1122362/DF, Rel. Ministro Sidnei Beneti,
Terceira Turma, DJe 5/6/2009, REsp 999.389/DF, Rel. Ministro Castro
Meira, Segunda Turma, DJe 2/9/2008. 2. Recurso Especial não
conhecido. (REsp 1.787.997/DF, Rel. Ministro Herman Benjamin,
Segunda Turma, julgado em 27/08/2019, DJe 05/09/2019).3

O Poder Público alegou na origem que, além da desocupação do imóvel


após a cessação da causa que ensejou sua disponibilização funcional, seria necessária a
fixação de indenização por perdas e danos, correspondente ao pagamento de aluguel,
durante o período em que o bem foi irregularmente ocupado.

Em sede recursal, após ter sua pretensão negada pela segunda instância, a
União apontou violação aos artigos 884 e 886 do Código Civil,4 dispositivos que tratam
do enriquecimento injustificado. Em síntese, alegou que, ao cessar o termo de

3
Acórdão disponível para consulta em: https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=1787997
&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true. Acesso em 13 out. 2019.
4 Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a

atualização dos valores monetários.


Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não
mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.

281
ocupação, a permanência do servidor no imóvel funcional perderia o caráter público,
sendo então regida por normas de Direito Privado. Destacou, por conseguinte, que a
ocupação irregular de bem público nessa hipótese deveria ser indenizada para não
causar enriquecimento ilícito do ocupante em detrimento da União.

O Superior Tribunal de Justiça, porém, entendeu que não caberia a


indenização por perdas e danos em favor da Administração Pública, fundada em
expectativa de recebimento de aluguéis, uma vez que não se aplicariam na espécie
institutos jurídicos próprios do Direito Civil decorrentes de relação contratual, já que
se estaria diante de permissão de uso de imóvel público, instituto relacionado ao
Direito Administrativo, e a legislação prevê a incidência de sanção própria ao ocupante
renitente (artigo 15, inciso I, alínea “e”, da Lei n.º 8.025/90).5

Essa orientação jurisprudencial, à luz da necessária diferenciação entre os


institutos de responsabilidade civil e enriquecimento injustificado, é passível de crítica,
conforme se abordará no curso deste trabalho.

2. DA DIFERENÇA ENTRE ENRIQUECIMENTO INJUSTIFICADO E RESPONSABILIDADE


CIVIL

A responsabilidade civil, que constitui uma das fontes de obrigações,


encontra-se prevista no artigo 927 do Código Civil6. Ela não se confunde com outra
fonte de obrigações do Direito Civil muito pouco difundida e utilizada no Brasil, o
enriquecimento injustificado, previsto no artigo 884 daquela mesma lei.

Basicamente, é possível diferenciar a responsabilidade civil e o


enriquecimento injustificado a partir da análise dos seguintes aspectos: o ato que dá
origem ao vínculo contratual, a licitude/ilicitude da conduta e ainda a existência ou
não de prejuízo. Essa diferenciação é de suma importância para análise crítica do
entendimento jurisprudencial do STJ acima mencionado.

5 Art. 15. O permissionário, dentre outros compromissos se obriga a: I – pagar: [...] e) multa equivalente a dez vezes o valor da taxa
de uso, em cada período de trinta dias de retenção do imóvel, após a perda do direito à ocupação;
6 Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

282
Na responsabilidade civil, a obrigação surge a partir da prática de um ato
ilícito (artigos 186 e 187 do Código Civil7). Praticado o ato ilícito, surge para o sujeito
autor da conduta o dever de indenizar ou outros tipos de sanções, como, por exemplo,
a perda do poder familiar, em casos envolvendo Direito de Família.

Por sua vez, no enriquecimento injustificado, a obrigação de restituir o


enriquecimento surge a partir de condutas diversas de atos ilícitos. Exemplo de
conduta nesse sentido é a ocupação indevida de bens, que faz surgir o dever de
restituir o enriquecimento dela advindo, em hipótese denominada de enriquecimento
por usurpação.

Sob o aspecto da licitude da conduta, na responsabilidade civil, com


exceções (artigos 929 e 930 do Código Civil8), pressupõe-se que a conduta do sujeito
seja antijurídica. Em outras palavras, que contrarie normas do ordenamento jurídico
(artigos 186 e 187 do Código Civil). Já no caso do enriquecimento injustificado, a
conduta do sujeito será lícita; não haverá a prática de nenhum ato ilícito.

Por fim, sob o aspecto do prejuízo, o dever de indenizar pressupõe


diminuição patrimonial justamente para que esta seja recomposta por meio de
indenização. No enriquecimento injustificado não é necessária a existência de prejuízo
e este, geralmente, nem mesmo ocorre. Nesta última fonte de obrigação, o sujeito tem
usurpado de seu patrimônio uma vantagem que, segundo as regras do ordenamento,
deveria lhe pertencer, mas que foi indevidamente desviada para o patrimônio de
outrem. Por isso que se diz que, na responsabilidade civil surge uma obrigação de
indenizar e no enriquecimento injustificado uma obrigação de restituir.

Com base nessas considerações iniciais e analisando o entendimento do


STJ, verifica-se que há confusão entre institutos de responsabilidade civil e
enriquecimento injustificado. Ao se decidir que não cabe indenização por perdas e
danos, com base em eventual recebimento de aluguéis por ocupação irregular de
imóveis funcionais, o STJ aplicou, a um só tempo, institutos de responsabilidade civil
7 Art.186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
8 Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á

direito à indenização do prejuízo que sofreram.


Art. 930. No caso do inciso II do art. 188 , se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva
para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.

283
(artigo 927 do Código Civil) e de enriquecimento injustificado (artigo 884 do Código
Civil), quando, na verdade, a situação é inteiramente de aplicação deste último.

“Indenização” e “perdas e danos” são institutos típicos da responsabilidade


civil, ao passo que “ocupação” e a medição do valor devido a partir de institutos
decorrentes de contratos, sem que estes existam (situação típica de quase-contrato),
são comumente aplicados no regime jurídico do enriquecimento injustificado.

A ocupação indevida de bens alheios não exige o pagamento de


indenização, porque não se está diante de caso de responsabilidade civil, mas de
restituição do enriquecimento injustificado. O cálculo do valor a ser restituído pelo
devedor, que ocupa indevidamente o bem, em favor do credor, titular do bem
ocupado, parte do estabelecimento do valor que poderia ser cobrado a título de
aluguel pelo uso do bem, como se expõe no tópico seguinte.

3. DA UTILIZAÇÃO DE BENS PÚBLICOS INDEVIDAMENTE E DO ENRIQUECIMENTO


INJUSTIFICADO POR USURPAÇÃO

Qualquer pessoa que deseje explorar economicamente um imóvel que não


é de sua propriedade, para o fazer de maneira legal, deve receber o bem em sua esfera
jurídica por meio de um contrato, escrito ou verbal, o que pode acontecer a título
gratuito (comodato, artigo 579 do Código Civil9) ou oneroso (arrendamento).

O direito subjetivo de propriedade confere aos indivíduos em geral o


domínio sobre os bens que integram seu patrimônio, de modo a preservá-los da
ingerência e concorrência das demais pessoas. Trata-se de mecanismo criado pelo
Direito para estabelecer o modo de distribuição e gozo dos bens, harmonizando-se a
escassez destes com a infinidade de necessidades do ser humano. “A exclusividade se
impõe aos outros como um contrato, como uma obrigação de respeitar a esfera
econômica exclusiva do proprietário”.10 Ou, em outras palavras, não há poder mais
inerente ao direito de propriedade do que o poder de excluir.

A intervenção não autorizada de terceiros sobre o direito exclusivo de


propriedade – como ocorre a ocupação irregular de imóveis funcionais, mencionada
9 Art. 579. O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição do objeto.
10 GOURDON, Pascal. L’exclusivité. Paris: L.G.D.J., 2006, p. 32.

284
nos julgados do STJ – retira de seu titular, no caso, a União, a possibilidade de usar e
usufruir dela. Desta forma, viola o domínio do proprietário sobre a coisa11 e representa
desvio de sua destinação econômica.

O direito subjetivo de propriedade define quem poderá exercer o domínio


sobre o bem constitutivo de seu objeto, com a possibilidade de exercer as faculdades
de usar, gozar, usufruir ou dispor. Ao se privar o titular do direito de propriedade
dessas faculdades, intervindo sobre o bem sem autorização pessoal ou legal, está-se
desviando os benefícios econômicos abrangidos por essa exclusividade. Esses
benefícios, potencialmente, pertenceriam ao titular do direito e, de modo indevido,
passam a integrar o patrimônio de terceiro.

Violada a exclusividade do direito de propriedade por meio da utilização


indevida e ilegal de imóvel, o instituto do enriquecimento injustificado constitui o
mecanismo jurídico adequado a realizar a proteção do titular de direito subjetivo, de
modo a obrigar o usurpador a restituir o proveito econômico obtido, em razão da
intervenção em bem de propriedade alheia.

A aplicação do enriquecimento injustificado em casos dessa natureza, em


que um sujeito passa a ocupar imóvel alheio de maneira indevida, é assente, por
exemplo, na Alemanha. Neste país, a usurpação do proveito econômico de bens, por
meio de intervenção indevida de terceiros sobre o bem objeto de direito subjetivo de
propriedade, representa situação típica de aplicação do enriquecimento injustificado,
conforme explicado pelo doutrinador Ernst von Cammerer:

Na linha do entendimento de Wilburg, corretamente se vê a


impropriedade do enriquecimento advindo do uso de coisas em
contrariedade com a destinação de seu conteúdo econômico. É da
essência dos direitos absolutos a atribuição de um bem ao seu titular.
A verificação da ocorrência do enriquecimento injustificado é
baseada na função de distribuição de bens, segundo as normas do
ordenamento, por meio do direito de propriedade e de outros
direitos subjetivos de natureza absoluta. Ao titular da coisa
pertencem as faculdades de usar, usufruir e dispor (especialmente, a
constituição de um direito real mais limitado, que foi constituído a

11 O titular do direito real garante a satisfação de seus interesses por meio do domínio que exerce sobre a coisa e não por modo de
relação com outras pessoas, como acontece nos direitos obrigacionais. O domínio garante a posição de atribuição de bens ao seu
titular, ao redor do qual há um dever geral de abstenção, que o torna oponível contra todos (MESQUITA, Manuel Henrique.
Obrigações reais e ônus reais. Coimbra: Almedina, 2000, p. 56 e ss).

285
partir de um direito real mais abrangente), isto significa, poder usar
ou consumir a coisa, poder ganhar dinheiro a partir dela e poder
aproveitá-la.

Quando alguém usa ou tira proveito de algum bem alheio, [...] então
essa pessoa ganhou alguma coisa à custa de outrem, que segundo o
conteúdo da destinação econômica da coisa, pertencia ao seu
proprietário. Por isso, o enriquecimento é indevido, porque contraria
a distribuição de riquezas estabelecida pelas normas do
ordenamento jurídico.12

De acordo com o jurista alemão, os direitos, principalmente, aqueles de


natureza absoluta, reservam ao seu titular o uso e gozo exclusivo de certo bem,
dotado de conteúdo econômico. A partir do aproveitamento dos bens que lhe são
atribuídos, o seu titular pode retirar utilidades para si ou para outrem, as quais têm
natureza patrimonial e são pecuniariamente estimáveis. Se alguém, sem
autorização legal ou de seu titular, intervém sobre tais bens, fazendo uso e gozo
deles, apropria-se do conteúdo econômico destes que, segundo as normas
jurídicas, era destinado ao seu titular ou a alguém indicado por ele.

A usurpação do conteúdo econômico de um bem é denominada de


“lucro por intervenção” ou “lucro da intervenção”13. Com isso, o sujeito que
intervém em bens alheios se enriquece à custa de seu titular, surgindo a obrigação
de restituir, como acontece no caso de ocupação irregular de imóveis funcionais.

O entendimento do STJ, segundo o qual “não cabe indenização por


perdas e danos fundada em expectativa de recebimento de aluguéis, uma vez que
não se aplicam na espécie institutos jurídicos próprios do Direito Civil decorrentes
de relação contratual, mesmo porque cuidou o legislador de prever expressamente
a sanção aplicável ao ocupante renitente”14, encontra-se juridicamente
equivocado.

A ocupação irregular de bens públicos não enseja a aplicação dos


mecanismos de indenização da responsabilidade civil, até porque não há dano ao
patrimônio a partir de “expectativa de recebimento de aluguéis”. Na verdade, há
12 CAEMMERER, Ernst von. Bereicherung und unerlaubte Handlung. Tübingen: Mohr Siebeck, 1954, p. 353.
13 PEREIRA COELHO, Francisco Manuel. O enriquecimento e o dano. Coimbra: Almedina, 2003, p. 7.
14 REsp 1.787.997/DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 27/08/2019, DJe 05/09/2019.

286
usurpação do potencial econômico do bem, potencial este que pertence ao titular
do direito de propriedade e, logo, deve ser a este restituído por meio da aplicação
do instituto do enriquecimento injustificado (artigo 884 do Código Civil).

Na usurpação de patrimônio alheio, o enriquecimento é injustificado


ante a falta de autorização voluntária ou legal para que terceiros atuem sobre bens
pertencentes a outrem, usurpando o conteúdo econômico destes bens que, de
outro modo, eram destinados pelo ordenamento jurídico ao próprio titular ou
pessoa por este indicada ou, ainda, a sujeito definido em lei.

O enriquecimento injustificado por intervenção não tem por finalidade


indenizar perdas e danos, mas restituir vantagens que foram obtidas a partir da
usurpação indevida do conteúdo econômico de bens corpóreos ou incorpóreos.
Essa usurpação ocorre de maneira contrária à destinação econômica dos bens,
segundo as regras de distribuição do ordenamento jurídico15.

O direito real que mais se sobressai na aplicação do enriquecimento


sem causa constitui o direito de propriedade. Ao proprietário é assegurado de
forma exclusiva atuar sobre os bens que integram o seu patrimônio, de modo que
o seu direito subjetivo de propriedade lhe garante as faculdades de usar, gozar,
dispor e reivindicar a coisa objeto desse direito. O núcleo prático e econômico dos
direitos reais, inclusive o do direito de propriedade, representa o domínio e a
soberania de uma pessoa sobre a coisa, com todas as suas possibilidades de uso e
gozo16.

A intervenção não autorizada de terceiros sobre o direito exclusivo de


propriedade retira de seu titular a possibilidade de usar e usufruir dela. Desta
forma, viola seu domínio sobre a coisa17 e representa desvio de sua destinação
econômica. O direito subjetivo de propriedade define quem poderá exercer o

15 MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no Direito Civil: estudo dogmático sobre a viabilidade da
configuração unitária do instituto, face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem causa. Coimbra:
Almedina, 2005, p. 776.
16 MESQUITA, Manuel Henrique. Obrigações reais e ônus reais. Coimbra: Almedina, 2000, p. 56.
17 O titular do direito real garante a satisfação de seus interesses por meio do domínio que exerce sobre a coisa e não por modo de

relação com outras pessoas, como acontece nos direitos obrigacionais. O domínio garante a posição de atribuição de bens ao seu
titular, ao redor do qual há um dever geral de abstenção, que o torna oponível contra todos (MESQUITA, Manuel Henrique. Op. cit.,
p. 56 e ss).

287
domínio sobre o bem constitutivo de seu objeto, com a possibilidade de exercer as
faculdades acima mencionadas. Ao se privar o titular do direito de propriedade
dessas faculdades, intervindo sobre o bem sem autorização pessoal ou legal, está-
se desviando os benefícios econômicos abrangidos por essa exclusividade. Esses
benefícios, potencialmente, pertenceriam ao titular do direito e, de modo indevido,
passam a integrar o patrimônio de terceiro.

Ainda se encontra equivocado o entendimento do STJ, porque não se


trata de aplicação de “institutos jurídicos próprios do Direito Civil decorrentes de
relação contratual”. A aplicação do enriquecimento injustificado a partir da
usurpação do proveito econômico do bem exige que se calcule esse proveito, o que
se dá por aproximação de uma celebração de contrato – mas de contrato não se
trata, como decidido pelo STJ.

O autor alemão Reinhard Ellger, reconhecido como um dos principais


juristas da atualidade responsáveis por analisar situações de enriquecimento
injustificado, a fim de definir o objeto da restituição, afirma que a definição deste
objeto varia de acordo com a situação concreta18.

Numa situação de uso indevido de uma coisa, deve-se buscar o valor


aproximado que seria pago, caso as partes envolvidas tivessem celebrado contrato.
Se há uso indevido de imóvel, como no caso analisado pelo STJ, chega-se ao valor
devido pelo enriquecido por meio da simulação de contrato de locação. No caso de
uso indevido de direito de propriedade intelectual, por exemplo, o jurista aduz que
se deve simular contrato de licença, e assim por diante. Não se trata de incidência
de normas de direito contratual, mas de normas que regulamentam o instituto do
enriquecimento injustificado.

Com fulcro nesses fundamentos, Reinhard Ellger chama a atenção para


o fato de que os exemplos mencionados deixam bastante claros, como já
mencionado, o caráter de “quase-contrato” desta categoria de enriquecimento
injustificado. Ela traz para as situações de fato criadas pela intervenção indevida

18ELLGER, Reinhard. Bereicherung durch Eingriff: das Konzept des Zuweisungsgehalts im Spannungsfeld von Ausschlieβlichkeitsrecht
und Wettbewerbsfreiheit. Tübingen: Morh Siebeck, 2002, p. 876.

288
sobre bens alheios o mecanismo dos negócios jurídicos, como forma de definir o
objeto da restituição19, sem violar a autonomia privada dos particulares.

Adotando posicionamento diametralmente oposto, mas para caso


bastante semelhante, o STJ decidiu no julgamento do Recurso Especial n.
955.134/SC20 que “apesar de a rescisão contratual ter ocorrido por culpa da
construtora (fornecedor), é devido o pagamento de aluguéis, pelo adquirente
(consumidor), em razão do tempo em que este ocupou o imóvel”.

Veja-se, portanto, que neste último caso, o STJ entendeu que o


adquirente de um imóvel que teve seu contrato resolvido por culpa do vendedor,
tinha o dever de realizar o pagamento de aluguéis pelo período que ocupou o bem.
Trata-se de hipótese típica de aplicação do enriquecimento injustificado por
usurpação. O adquirente do imóvel não praticou ato ilícito (o vendedor que o
praticou) e muito menos celebrou contrato de locação com o vendedor. Contudo, o
adquirente do bem usurpou o potencial econômico do imóvel no período em que
nele permaneceu e, por esse motivo, surgiu o dever de restituir o enriquecimento,
cujo montante foi calculado em uma simulação de contrato de locação, mediante o
pagamento de valor equivalente a aluguéis.

Aliás, o STJ, no mesmo julgamento, reconheceu a autonomia do


enriquecimento injustificado em relação às demais fontes de obrigações do Direito
Civil, ao afirmar: “o pagamento da verba consubstancia simples retribuição pelo
usufruto do imóvel durante determinado interregno temporal, rubrica que não se
relaciona diretamente com danos decorrentes do rompimento da avença, mas com
a utilização de bem alheio”.

Essa situação não se diferencia em nada da hipótese em que um


servidor público ocupa irregularmente um bem público, conforme os julgados que
formaram o entendimento jurisprudencial equivocado acima exposto. Em ambos
os casos, tanto o do adquirente de imóvel que o ocupa durante um tempo quanto
da pessoa que ocupa irregularmente bem público, incide a fonte de obrigações

19 ELLGER, Reinhard. Op. cit., 2002, p. 877.


20 REsp 955.134/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16/08/2012, DJe 29/08/2012.

289
enriquecimento injustificado, em sua modalidade de enriquecimento por
usurpação, e não a responsabilidade civil, que incidiria em caso de prática de ato
ilícito.

Em síntese, quem intervém indevidamente sobre bem de propriedade


alheia, ou seja, sem autorização legal ou contratual, independentemente de se
tratar de bem público ou particular, deve restituir ao titular do direito subjetivo de
propriedade o proveito econômico usurpado, ainda que potencial, pois, do
contrário, enriqueceria injustificadamente, o que é vedado pelo ordenamento
jurídico brasileiro (artigo 884 do Código Civil).

4. CONCLUSÕES

O entendimento do STJ segundo o qual “não cabe indenização por


perdas e danos fundada em expectativa de recebimento de aluguéis, uma vez que
não se aplicam na espécie institutos jurídicos próprios do Direito Civil decorrentes
de relação contratual, mesmo porque cuidou o legislador de prever expressamente
a sanção aplicável ao ocupante renitente”21, encontra-se juridicamente
equivocado.

Ao contrário do que restou decidido, não incide na hipótese a fonte de


obrigações da responsabilidade civil, mas o enriquecimento injustificado, previsto
no artigo 884 do Código Civil.

O fato de a legislação prever a incidência de sanção própria ao ocupante


irregular de imóvel público (artigo 15, inciso I, alínea “e”, da Lei n.º 8.025/90) não
afasta em hipótese nenhuma a obrigação deste agente restituir o enriquecimento
injustificado, consistente na usurpação do potencial econômico do bem. Este
potencial deve ser calculado simulando-se o valor que seria devido caso o imóvel
estivesse alugado. A multa prevista em lei tem caráter sancionatório ao passo que a
restituição tem por objetivo impedir o enriquecimento injustificado, que é vedado
pelo ordenamento.

21 REsp 1.787.997/DF, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 27/08/2019, DJe 05/09/2019.

290
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 955.134/SC, da 4ª Turma.


Contrato de promessa de compra e venda de imóvel. Rescisão por culpa da
construtora (vendedor). Defeitos de construção. arbitramento de aluguéis em
razão do uso do imóvel. Possibilidade. Recorrente: Só Casas Empreendimentos
Imobiliários Ltda e outros. Recorrido: Bernardete Corrêa Berri. Relator: Ministro
Luis Felipe Salomão, 16 de agosto de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, n.º 1122, 29
ago. 2012. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=955134&b=ACOR&th
esaurus=JURIDICO&p=true . Acesso em 13 out. 2019.

______. ______. Recurso Especial n.º 1.787.997/DF, da 2ª Turma. Não cabe


indenização por perdas e danos com base em eventual recebimento de aluguéis
por ocupação irregular de imóveis funcionais. Recorrente: União. Recorrido: Silas
Pereira da Costa Filho. Relator: Ministro Herman Benjamin, 27 de agosto de 2019.
Diário da Justiça Eletrônico, n.º 2747, 5 set. 2019. Disponível em:
https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?processo=1787997&b=ACOR&t
hesaurus=JURIDICO&p=true. Acesso em 13 out. 2019.

CAEMMERER, Ernst von. Bereicherung und unerlaubte Handlung. Tübingen: Mohr


Siebeck, 1954.

ELLGER, Reinhard. Bereicherung durch Eingriff: das Konzept des Zuweisungsgehalts


im Spannungsfeld von Ausschlieβlichkeitsrecht und Wettbewerbsfreiheit.
Tübingen: Morh Siebeck, 2002.

GOURDON, Pascal. L’exclusivité. Paris: L.G.D.J., 2006.

MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no Direito
Civil: estudo dogmático sobre a viabilidade da configuração unitária do instituto,
face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem causa.
Coimbra: Almedina, 2005.

MESQUITA, Manuel Henrique. Obrigações reais e ônus reais. Coimbra: Almedina,


2000.

PEREIRA COELHO, Francisco Manuel. O enriquecimento e o dano. Coimbra:


Almedina, 2003.

291
André Vieira Saraiva de Medeiros1
Amanda Caroline Andriguetto Santos2

MULTIPARENTALIDADE:
CONSIDERAÇÕES À LUZ DA
REPERCUSSÃO GERAL Nº622 DO STF E
DOS PROVIMENTOS Nº63/17 E Nº83/19 DO
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

MULTIPARENTALITY: CONSIDERATIONS REGARDING


GENERAL REPERCUSSION N. 622 (STF) AND PROVISIONS
N. 63/17 AND N. 83/19 BY THE NATIONAL COUNCIL OF
JUSTICE

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Filiação socioafetiva e multiparentalidade – considerações


gerais. 2.1 A filiação socioafetiva constituída sob a perspectiva da posse do estado de
filho. 2.2 A multiparentalidade. 3. Multiparentalidade à luz da Repercussão Geral Nº 622
do STF. 4. Tratativa extrajudicial da pluriparentalidade e filiação socioafetiva dentro do
ordenamento jurídico pátrio. 4.1 Provimentos Nº63 e Nº83 do Conselho Nacional de
Justiça. 4.2 A atuação do Ministério Público nos casos de reconhecimento de filiação
socioafetiva pela via extrajudicial. 5. Considerações finais. 6. Referências bibliográficas.

1Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, atualmente titular da 4ª Promotoria de Justiça da Comarca de São
José dos Pinhais, com atuação específica em direito das famílias, registros públicos e direito sucessório. Bacharel em Direito pela
Faculdade de Direito de Sorocaba. E-mail: avsmedeiros@mppr.mp.br
2Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas. Estagiária de Direito junto ao Ministério

Público do Estado do Paraná, na 4ª Promotoria de Justiça da Comarca de São José dos Pinhais. E-mail: acasantos@mppr.mp.br

292
RESUMO: O presente artigo se propõe a realizar uma breve análise da
multiparentalidade e da filiação socioafetiva, buscando compreender como os institutos
estão atualmente regulamentados no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto,
indispensável tratar da Repercussão Geral Nº622, posição adotada pelo STF quando do
julgamento do RE 898.060, que aprovou a tese que reconhece a possibilidade de se
estabelecer a pluriparentalidade nas relações familiares contemporâneas, evidenciando
a afetividade como um elemento efetivamente jurídico dentro do direito das famílias.
Ademais, serão analisados os Provimentos Nº63/17 e Nº83/19, editados pelo Conselho
Nacional de Justiça, possibilitando o reconhecimento extrajudicial da filiação
socioafetiva e, eventualmente, da multiparentalidade unilateral, bem como a atuação
do Ministério Público dentro da temática.

ABSTRACT: The following article proposes to briefly address both multiparentality and
socio-affective filiation, seeking to comprehend how those institutes are regulated within
the Brazilian legal system. In order do to that, it is necessary to discuss the General
Repercussion 622, position adopted by the STF while judging RE 898.060 that recognized
the possibility of admitting legal protection regarding pluriparentality situations, as well
as emphasizing affection as a legal institute in family law. Also, Provisions N. 63/17 and
N. 83/19, edited by the National Council of Justice, will be analyzed, considering that both
instruments authorized the extrajudicial recognition of socio-affective filiation and,
eventually, of unilateral multiparentality, as well as how Prosecution Office’s members
will act on the cases that intend to regulate the subject.

PALAVRAS-CHAVE: Multiparentalidade; Filiação Socioafetiva; Provimentos Nº63/17 e


Nº83/19; Reconhecimento extrajudicial; Repercussão Geral Nº622 do STF.

KEYWORDS: Multiparentality; Socio-affective filiation; Provisions N. 63/17 and N. 83/19;


Extrajudicial recognition; General Repercussion N. 622 (STF).

293
1. INTRODUÇÃO

A noção clássica de “família” sofreu inúmeras modificações ao longo dos anos.


Dentro deste período evolutivo, a concepção de parentalidade foi significativamente
alterada, iniciando de modo restrito até culminar numa versão bastante flexível e
diversificada, sob influência direta da centralidade do princípio da dignidade da pessoa
humana no ordenamento jurídico pátrio.3

Embrionariamente a filiação esteve vinculada ao elemento biológico, havendo


pouco espaço de discussão para eventual desconsideração ou modificação do vínculo
por qualquer outro critério – que não a consanguinidade – que fosse igualmente
protegido pelo direito.4

Atualmente, temos o afeto como um elemento basilar das relações familiares, de


modo que, na prática jurídica, encontramos casos concretos nos quais o critério afetivo
se iguala e, por vezes, se sobrepõe ao vínculo biológico. Tudo isso amplia o conceito de
parentalidade e suas implicações nos mundos jurídico e dos fatos – que jamais podem
ser vistos como universos dissociados.

Dentro desta discussão, parte da doutrina, como faz a escola de Maria Berenice
Dias, chega a mencionar um “esvaziamento biológico da paternidade”, alegação que
deve ser analisada com parcimônia no direito das famílias contemporâneo, sobretudo
em decorrência do advento da multiparentalidade, possibilitando garantir direitos aos
filhos e imprimir responsabilidade às figuras materna e paterna de maneira adequada5.

Ainda que a discussão voltada à filiação socioafetiva e pluriparentalidade seja


relativamente recente na doutrina e jurisprudência, bem como inexista lei específica
sobre o tema, verifica-se que as tratativas quanto ao assunto dentro do ordenamento
são bastante avançadas, sobretudo após o advento da tese lançada pela Repercussão
Geral Nº622, do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 898.060, sobre
a qual trataremos oportunamente.

3CASSETTARI, Christiano. “Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva – Efeitos Jurídicos”. 2ª Ed – São Paulo: Editora Atlas, 2015.
4Idem.
5 nesse sentido uue o ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio da paternidade responsável, uue possui sede
constitucional.

294
Para além, o movimento de extrajudicialização do direito privado também
contribuiu para que ocorressem inovações dentro da temática, culminando na edição do
Provimento nº63 do Conselho Nacional de Justiça, cujo conteúdo foi posteriormente
alterado e aperfeiçoado pelo Provimento nº83, também do CNJ.

O presente artigo científico tem por escopo proceder uma breve análise quanto
ao “estado da arte” das tratativas acerca da pluriparentalidade e filiação socioafetiva
dentro do ordenamento jurídico pátrio, bem como pontuar aspectos específicos da
atuação de membros do Ministério Público dentro deste nicho do direito das famílias
contemporâneo.

2. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E MULTIPARENTALIDADE – CONSIDERAÇÕES GERAIS

2.1 A filiação socioafetiva constituída sob a perspectiva da posse do estado de filho:

Filiação socioafetiva é aquela que não decorre de um vínculo biologicamente


estabelecido, tendo como pilar central a ideia de afetividade6. Também é um critério de
aparência, que envolve o tratamento do indivíduo como se filho fosse, dentro do lar e
diante da sociedade. Nesse viés, surgem questões como o amor, respeito, cuidado, o
“querer bem”, dentre outros elementos eminentemente emocionais e de difícil aferição
objetiva pelo universo jurídico, o que torna a certeza de sua configuração um grande
desafio ao operador do direito.

Para Jorge Fujita “filiação socioafetiva é aquela consistente na relação entre pai
e filho, ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que inexiste liame de ordem
sanguínea entre eles” 7 . Para complementar o conceito, o autor se utiliza do aspecto
pessoal e da vinculação patrimonial como “elementos aglutinadores” da relação
estabelecida.

6Adriana Caldas e Rego Freitas Dabus Maluf buscam conceituar afetividade como “a relação de carinho e cuidado que se tem com
alguém íntimo ou querido, como um estado psicológico que permite ao ser humano demonstrar seus sentimentos e emoções a outrem.
É um laço criado entre homens, sem características sexuais, cujo vínculo de amizade é bastante aprofundado.” Paulo Netto Lôbo, por
sua vez, aponta uue a afetividade teria sua relevância impressa no mundo jurídico pelo fundamento constitucional do dever de cuidado
e respeito no seio familiar, como um conceito trazido por extensão à luz da tutela dos direitos fundamentais básicos à vida digna do
ser humano. IN: CASSETTARI, Christiano. “Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva – Efeitos Jurídicos”. 2ª Ed – São Paulo:
Editora Atlas, 2015. p. 9-11.
7FUJITA, Jorge. Filiação na Contemporaneidade. In: CHINELATO, Silmara Juny de Andrade; SIMÃO, José Fernando; ZUCCHI, Maria

Cristina. (org.). O direito de família no terceiro milênio: Estudos em homenagem a Álvaro Villaça Azevedo. Atlas. 2010. p. 475.

295
Na doutrina brasileira, Luiz Edson Fachin foi o primeiro jurista a utilizar a
expressão “parentalidade socioafetiva”, referindo-se ao tema em sua tese de
doutoramento. João Villela, por sua vez, elaborou e desenvolveu o tema em sua obra
denominada “A Desbiologização da Paternidade”.8

O Código Civil amplia as possibilidades de filiação ao mencionar a figura do


“parentesco civil”, o que torna claro que a parentalidade moderna ultrapassa a mera
consanguinidade. As brechas jurídicas podem ser verificadas nos arts. 1.593/CC9, através
da terminologia “outra origem’, e 1.596/CC10, neste caso, ao proibir a diferenciação entre
filhos biológicos e de outras naturezas, à luz da CF/88 – ressaltando-se que, dentre elas,
está alocada a socioafetividade11.

Do ponto de vista constitucional, a abertura evidente para o lócus da filiação


socioafetiva se dá pelos princípios da igualdade entre os filhos 12 e da paternidade
responsável13, que tornam evidente a ideia de que o Estado deve resguardar e respeitar
o planejamento familiar dos indivíduos em suas diversas configurações. Evidencia-se,
portanto, uma primazia pela consolidação da individualidade e do bem-estar pessoal
que permeia as relações familiares, fazendo com que estas não se restrinjam ao mero
biologismo.

Com a recepção pelo nosso ordenamento jurídico de diferentes tipos de filiação


– biológica, registral, socioatefiva, adotiva, e assim por diante –, as famílias podem
apresentar, dependendo fundamentalmente da análise casuística, multiplicidade de
vínculos parentais, explicitando a atipicidade dos modelos de famílias previstos na
Constituição Federal. Fica evidente, portanto, a possibilidade de convivência harmônica

8
CASSETTARI, Christiano. “Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva – Efeitos Jurídicos”. 2ª Ed – São Paulo: Editora Atlas, 2015.
9Art. 1.593/CC. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
10
Art. 1.596/CC. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas
quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
11Os direitos da personalidade são grandes norteadores da proteção referente às relações de filiação em comento, sobretudo pelo

ponto de vista da formação da identidade pessoal do sujeito.


12Art. 227/CF. dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade,
o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
[…] § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e uualificações, proibidas
uuaisuuer designações discriminatórias relativas à filiação. (grifamos)
13Art. 226/CF. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[…] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão
do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada uualuuer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. (grifamos)

296
entre diversos vínculos parentais, sem a necessidade de exclusão ou prevalência das
paternidades, seja socioafetiva ou biológica.

Em se tratando dos elementos necessários para o estabelecimento concreto do


vínculo parental, é possível proceder a investigação por diferentes vieses. O critério
biológico, com o advento do exame de DNA, tornou-se de fácil aferição, sobretudo se
consideradas as inovações tecnológicas que conferem alto grau de precisão aos
resultados dos testes realizados em laboratórios.

De outra banda, hodiernamente a doutrina e a jurisprudência têm se debruçado


extensivamente sobre o critério socioafetivo, que destaca o alcance da principiologia
constitucional à proteção geral das relações afetivas contemporâneas. Quanto à filiação,
todavia, é necessária a atenta investigação da realidade fática, tendo em vista que sua
configuração decorreria do estabelecimento de uma relação cotidiana familiar pautada
na consolidação de um vínculo, inicialmente informal, de parentalidade.

Thábata Fernanda Suzigan 14 afirma que o indivíduo possuiria o direito


fundamental de conhecer a sua origem genética, sendo algo inerente ao direito de
personalidade. Não significa dizer, todavia, que isso implica, necessariamente, na
formação de um vínculo de filiação, cujo conceito é relacional e pautado em obrigações
e garantias recíprocas entre pai/mãe e filhos.

Objetivamente, a doutrina propõe a adoção de três elementos gerais que


possibilitariam aferir a (in)existência da filiação socioafetiva, cuja união constituiria a
chamada “posse do estado de filho”. Portanto, deve o operador do direito analisar
conjuntamente: a) se o sujeito/criança é tratado como se filho fosse, de forma que as
figuras parentais seriam aquelas que o educam, criam e cuidam, externalizando a
existência de um vínculo verdadeiro (tractatus); b) se aquele indivíduo utiliza e se
identifica pelo nome da família, assim se apresentando (nominatio); c) por fim, se a
relação construída é reconhecida perante a sociedade como de paternidade (reputatio).

Significa dizer que a filiação, em última análise, consiste numa crença 15 – é a


posse do estado de filho cumulada a uma verdade aparente. Diante desta configuração,

14 SUZIGAN, Thábata Fernanda. “Filiação socioafetiva e a multiparentalidade”. 2015. Disponível em:


<https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/9204/Filiacao-socioafetiva-e-a-multiparentalidade>. Acesso em: 09 set. 2019.
15 SUZIGAN, Thábata Fernanda. “Filiação socioafetiva e a multiparentalidade”. 2015. Disponível em:
<https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/9204/Filiacao-socioafetiva-e-a-multiparentalidade>. Acesso em: 19 set. 2019.

297
entende-se que nem mesmo eventual rompimento da convivência afastaria o vínculo
firmado entre a criança ou adolescente16 e o pai ou mãe socioafetivos.

2.2 A multiparentalidade:

Na obra de Christiano Cassettari17, a multiparentalidade é tida como uma das


possíveis consequências da socioafetividade. O autor parte do pressuposto de que a
família é uma construção cultural, e não um elemento da natureza, razão pela qual pode
sofrer modificações ao longo do tempo, ressaltando que esta noção estaria embasada
por diferentes teóricos – como Lacan e Strauss.

O psicanalista Lacan entende que a família “[…] é uma estruturação psíquica onde
cada membro ocupa um lugar, uma função”, sem a necessidade, entretanto, de que
estes sujeitos estejam ligados biologicamente.18

Temos que o embrião da ideia de multiparentalidade, quando pautada na


existência de um vínculo de afeto, está na chamada “posse do estado de filho”,
suprarreferida.

Ao longo dos anos, houve uma humanização do núcleo familiar, de modo que
este deixou progressivamente de ser encarado somente sob o viés econômico, bastante
típico do período patriarcal, e anteriormente ao fenômeno constitucionalização do
direito privado. Contemporaneamente, o afeto adquiriu uma faceta jurídica, tendo sido
consolidado através do princípio da dignidade da pessoa humana, já em 1988, com o
advento da nova Carta Constitucional.

O princípio da afetividade se irradia no ordenamento através dos pilares da


responsabilidade, solidariedade, paternidade responsável, igualdade entre filhos, e
assim por diante19. Cassettari afirma que os laços meramente sanguíneos deixaram de
ser exclusivamente suficientes para garantir a paternidade e a maternidade adequadas,

16Ressaltando-se uue o mesmo se aplica àuueles uue já atingiram a maioridade.


17CASSETTARI, Christiano. “Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva – Efeitos Jurídicos”. 2ª Ed – São Paulo: Editora Atlas, 2015.
18Idem. p. xvi.
19 Novamente, princípios trazidos de maneira explícita pela Carta Constitucional em seu Capítulo VII, denominado “Da família, da
criança, do adolescente, do jovem e do idoso”.

298
tampouco a adoção de uma abordagem que siga uma tônica jurídica fechada dentro da
temática20.

O pilar norteador da multiparentalidade, portanto, é a noção de que o vínculo


biológico pode – e em alguns casos, deve – coexistir com o socioafetivo, em termos
práticos, registrais e jurídicos. São situações em que resta evidente a inadequação em se
descartar uma em detrimento da outra, uma vez que são formas de
paternidade/maternidade revestidas de características, motivos e fundamentos
distintos. Assim, a ideia de reconhecimento simultâneo destes vínculos permite que
estes não sejam, necessariamente, dissociados e excludentes.

De modo prático, mister salientar que algumas situações podem exigir a


prevalência do vínculo socioafetivo sobre o biológico, ou vice-versa – o que revela que a
pluriparentalidade não consiste num efeito automático. Trata-se de um tema que, em
que pese a necessidade de observância aos conceitos gerais e norteadores, depende
fundamentalmente de uma atenta análise casuística, sobretudo se o intuito for fazer
incidir materialmente os princípios constitucionais que asseguram a vida digna – como
é o caso do princípio do melhor interesse do incapaz.

As situações mais comuns de vínculos multiparentais são aquelas que se


configuram através das famílias reconstituídas 21 , sendo comum que padrastos e
madrastas venham a consolidar um laço afetivo público, duradouro e estável,
requerendo seu reconhecimento formal posteriormente.

Por fim, é relevante ressaltar que a pluriparentalidade vem acompanhada de


todos os efeitos inerentes a um vínculo de filiação “comum22”, gerando, para todos os
laços formalmente reconhecidos, consequências nas esferas patrimonial, sucessória,
registral e nas questões inerentes ao direito de família – como nome, guarda,
regulamentação de visitas, alimentos e assim por diante23.

Não se pode olvidar, todavia, que o vínculo constituído se dá numa perspectiva


de bilateralidade. Portanto, em que pese possa parecer, num primeiro olhar, que os

20CASSETTARI, Christiano. “Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva – Efeitos Jurídicos”. 2ª Ed – São Paulo: Editora Atlas, 2015.
21 A multiparentalidade se mostra como uma alternativa válida às adoções unilaterais, por exemplo, resguardando o indivíduo,
sobretudo se for incapaz, de modo ainda mais protetivo.
22Por ser o mais simples e corriuueiro, mencionamos o vínculo biológico.
23 Para mais informações uuanto ao tema, ler: CASSETTARI, Christiano. “Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva – Efeitos

Jurídicos”. 2ª Ed – São Paulo: Editora Atlas, 2015.

299
filhos inseridos na referida configuração familiar estariam em posição privilegiada24, há
que se lembrar que também restarão proporcionalmente multiplicados os deveres
obtidos por aqueles sujeitos enquanto partícipes da relação filial, à luz da ideia de
assistência consagrada pela Constituição Federal em seu artigo 229, ao dispor que “os
pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o
dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade” (grifei).
Aumentados os direitos, portanto, o mesmo se aplica aos deveres decorrentes da
situação fático-jurídica firmada. Em suma, resta evidente que a multiparentalidade
comprova que a afetividade aparece como elemento estruturante das relações
familiares contemporâneas.

3. MULTIPARENTALIDADE À LUZ DA REPERCUSSÃO GERAL 622 DO STF

A tese da pluriparentalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal


quando do julgamento do Recurso Extraordinário 898.060/SC (21 de setembro de 2016),
em sede de Repercussão Geral, sob relatoria do Ministro Luiz Fux. Oportunamente,
colacionamos a ementa do julgado em sua integralidade:

Recurso Extraordinário. Repercussão Geral reconhecida. Direito Civil e


Constitucional. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica.
Paradigma do casamento. Superação pela Constituição de 1988. Eixo
central do Direito de Família: deslocamento para o plano
constitucional. Sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da
CRFB). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das
famílias. Direito à busca da felicidade. Princípio constitucional implícito.
Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político.
Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-
concebidos. Atipicidade constitucional do conceito de entidades
familiares. União estável (art. 226, § 3º, CRFB) e família monoparental
(art. 226, § 4º, CRFB).Vedação à discriminação e hierarquização entre
espécies de filiação (art. 227, § 6º, CRFB). Parentalidade presuntiva,
biológica ou afetiva. Necessidade de tutela jurídica ampla.
Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante.
Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade
responsável (art. 226, § 7º, CRFB). Recurso a que se nega provimento.
Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes.

24Falamos em “situação privilegiada” considerando a possibilidade uue o filho terá de recorrer a todos os genitores registrados para
obtenção de alimentos, direitos sucessórios diversos, e assim por diante, aumentando as possibilidades de ter suas necessidades
supridas adeuuadamente.

300
1. O prequestionamento revela-se autorizado quando as instâncias
inferiores abordam a matéria jurídica invocada no Recurso
Extraordinário na fundamentação do julgado recorrido, tanto mais que
a Súmula n. 279 desta Egrégia Corte indica que o apelo extremo deve
ser apreciado à luz das assertivas fáticas estabelecidas na origem.
2. A família, à luz dos preceitos constitucionais introduzidos pela Carta
de 1988, apartou-se definitivamente da vetusta distinção entre filhos
legítimos, legitimados e ilegítimos que informava o sistema do Código
Civil de 1916, cujo paradigma em matéria de filiação, por adotar
presunção baseada na centralidade do casamento, desconsiderava
tanto o critério biológico quanto o afetivo.
3. A família, objeto do deslocamento do eixo central de seu regramento
normativo para o plano constitucional, reclama a reformulação do
tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da
dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade.
4. A dignidade humana compreende o ser humano como um ser
intelectual e moral, capaz de determinar-se e desenvolver-se em
liberdade, de modo que a eleição individual dos próprios objetivos de
vida tem preferência absoluta em relação a eventuais formulações
legais definidoras de modelos preconcebidos, destinados a resultados
eleitos a priori pelo legislador. Jurisprudência do Tribunal
Constitucional alemão (BVerfGE 45, 187).
5. A superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias
construídas pelas relações afetivas interpessoais dos próprios
indivíduos é corolário do sobreprincípio da dignidade humana.
6. O direito à busca da felicidade, implícito ao art. 1º, III, da
Constituição, ao tempo que eleva o indivíduo à centralidade do
ordenamento jurídico-político, reconhece as suas capacidades de
autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos
próprios objetivos, proibindo que o governo se imiscua nos meios
eleitos pelos cidadãos para a persecução das vontades particulares.
Precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos da América e deste
Egrégio Supremo Tribunal Federal: RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de
Mello, DJe de 26/08/2011; ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, DJe de
14/10/2011.
7. O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de
consecução das vontades dos governantes, por isso que o direito à
busca da felicidade protege o ser humano em face de tentativas do
Estado de enquadrar a sua realidade familiar em modelos pré-
concebidos pela lei.
8. A Constituição de 1988, em caráter meramente exemplificativo,
reconhece como legítimos modelos de família independentes do
casamento, como a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes, cognominada
“família monoparental” (art. 226, § 4º), além de enfatizar que espécies
de filiação dissociadas do matrimônio entre os pais merecem
equivalente tutela diante da lei, sendo vedada discriminação e,
portanto, qualquer tipo de hierarquia entre elas (art. 227, § 6º).

301
9. As uniões estáveis homoafetivas, consideradas pela jurisprudência
desta Corte como entidade familiar, conduziram à imperiosidade da
interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição
que também se forma por vias distintas do casamento civil (ADI nº.
4277, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em
05/05/2011).
10. A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação
da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode
se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou
outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela
afetividade.
11. A evolução científica responsável pela popularização do exame de
DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto
para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à
busca da identidade genética, como natural emanação do direito de
personalidade de um ser.
12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação
por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar
situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de
filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele
utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo
pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de
descendente pela comunidade (reputatio).
13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226,
§ 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca
pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos
vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos,
quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja
necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor
interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.
14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode ser
exemplificada pelo conceito de “dupla paternidade” (dual paternity),
construído pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a
década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao melhor interesse
da criança e ao direito do genitor à declaração da paternidade.
Doutrina.
15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não
podem restar ao desabrigo da proteção a situações de
pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante,
para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e
biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos
sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, §
7º).
16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando-se a
seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: “A
paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não

302
impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante
baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”25.

Da atenta leitura da ementa supracolacionada, verifica-se a superação do


paradigma familiar vigente no Código Civil de 1916, que diferenciava os filhos entre
“legítimos” e “ilegítimos”, ignorando os critérios atualmente tidos como centrais no
ordenamento, quais sejam, biológico e afetivo. Esta percepção tem o condão de
constitucionalizar o direito das famílias, na medida em que deixa de ignorar a realidade
fática e de somente fazê-la caber dentro de modelos familiares pré concebidos, que nem
sempre prestigiam a individualidade dos sujeitos.

Ademais, sob a ótica da centralidade do princípio da dignidade da pessoa


humana no sistema legal brasileiro, o Relator evoca o implícito direito à felicidade –
consagrado no art. 1º, III, da CF –, como argumento substancial para o reconhecimento
da pluriparentalidade enquanto instituto legítimo e protegido pelo direito e, em última
instância, pelo Estado, argumentando que este não poderia instrumentalizar o indivíduo
para, meramente, se enquadrar dentro das crenças externalizadas por um seleto grupo
de governantes.

É neste sentido que o Tribunal Superior menciona a pluralidade de formatos


familiares reconhecidos constitucionalmente – a exemplo, o casamento, a união estável
(homo e heteroafetiva), bem como a família monoparental –, além da recorrente
referência à igualdade de filiação, que impede a discriminação entre os filhos, qualquer
que seja a origem do vínculo parental.

Todo este cotejo se dá no sentido de asseverar que o direito das famílias não
contempla uma visão reducionista da realidade, confirmando o entendimento
previamente construído pela melhor doutrina e jurisprudência de que a tutela normativa
das entidades familiares não pode ignorar os vínculos de ordens presuntiva, afetiva e
biológica. Ainda mais, não deve se restringir ao mero reconhecimento destas
configurações, confirmando, também, a efetiva proibição da preferência por qualquer
das formas referidas em detrimento das demais.

25STF, RE nº898.060, DJ: 21.09.2016. Disponível em: <https://bit.ly/2onmzoj> Acesso em: 01 set. 2019.

303
Em que pese a filiação afetiva seja vista como “novo instituto” por muitos,
importa salientar que sua aplicação já ocorria desde o Código Civil de 1916 para, nas
palavras do Min. Fux, “evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do
estado de filho, e consequentemente, o vínculo parental”26.

Os membros do STF também se debruçaram sobre a questão da posse do estado


de filho, que se constitui através do preenchimento de três pilares essenciais,
anteriormente analisados no presente artigo – a título de rememoração, a utilização e
identificação regular pelo nome da família (nominatio), o tratamento havido entre
pai/mãe e o filho (tractatio) e, por fim, pelo reconhecimento da relação de filiação pela
sociedade (reputatio).

O julgado também evidencia o princípio do melhor interesse da criança e do


adolescente, deixando claro que o reconhecimento concomitante dos vínculos de
origens distintas (ex.: biológico e afetivo) deve ser privilegiado caso constitua situação
protetiva e interessante do ponto de vista da paternidade responsável.

Por fim, mister salientar que o julgado também aventa o direito comparado,
mencionando o instituto da dual paternity, utilizado pela Suprema Corte do Estado da
Louisiana, EUA, já no século XX – mais precisamente na década de 1980.

Vale pontuar que o reconhecimento concomitante de paternidades ou


maternidades não contempla somente os interesses dos filhos, mas dos próprios
genitores, uma vez que a afetividade atinge todos os sujeitos envolvidos, conforme
analisado em tópico anterior.

No julgamento do caso suprarreferido, em plenário, Ricardo Calderón,


representando o IBDFAM, sustenta que, atualmente, a família tem o afeto como base. E,
por este motivo, a paternidade biológica não deveria prevalecer sobre a afetiva. Também
se menciona a questão do perigo quanto à defesa de interesses meramente patrimoniais,
que pode ocorrer quando da desconsideração da afetividade familiar. Entretanto, o que
o jurista sustenta, vale ressaltar, é a ideia de que não se deve estabelecer uma
preferência apriorística quanto às formas de parentalidade, devendo o operador do
direito ter sempre o caso concreto como norteador da análise. O papel da doutrina,

26Excerto retirado da ementa supracolacionada. Recurso Extraordinário Nº 898060/SC, de 21 de setembro de 2016.

304
neste sentido, seria o de fornecer mecanismos para que o magistrado consiga verificar,
materialmente, qual a melhor configuração familiar a partir dos vínculos estabelecidos
entre filhos e os seus respectivos genitores. (informação verbal)27

Calderón também se debruça 28 acerca da diferença entre o direito de se


investigar a ascendência genética e o direito de ter o vínculo de filiação, socioafetiva ou
biológica, reconhecido. O primeiro seria um direito de personalidade pautado na ideia
de formação dos atributos que constituem a pessoa humana em sua individualidade – o
que não poderia ser confundido com o vínculo biológico, ressalta. Entretanto, o próprio
julgado não faz a diferenciação entre paternidade e ascendência genética, optando por
fazê-lo somente entre as paternidades biológica e socioafetiva, destacando que,
qualquer que seja a natureza do vínculo, a filiação sempre será estabelecida em atenção
ao princípio do melhor interesse do incapaz.

Todas as considerações suprarreferidas restaram sintetizadas na tese jurídica que,


por fim, transcrevemos: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro
público, não impede o reconhecimento de vínculo de filiação concomitante baseado na
origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”.

4. TRATATIVA EXTRAJUDICIAL DA PLURIPARENTALIDADE E DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA


NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

4.1 Provimentos nº63 e nº83 do CNJ:

Em que pese as teses da multiparentalidade e filiação socioafetiva tenham sido


formalmente firmadas pelo Supremo Tribunal Federal em data recente29, verifica-se que
a regulamentação da temática sofreu avanços consideráveis por intermédio da atuação
do Conselho Nacional de Justiça, na figura do Corregedor Min. João Otávio de Noronha30.

Como ensinam Karina Barbosa Franco e Marcos Ehrhardt Júnior, o Provimento


Nº63 teve origem no CNJ por provocação do Instituto Brasileiro de Direito de Família

27STF, Pleno, REnº898.060, Rel. Min Fux. DJ. 21.09.2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uYDKX859BnA> Acesso
em: 02. set. 2019.
28Idem.
29STF, RE nº898.060, DJ: 21.09.2016. Disponível em: <https://bit.ly/2onmzoj> Acesso em: 01 set. 2019.
30 Conselho Nacional de Justiça. Pedido de Providências nº0002653-77.2015.2.00.0000. Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ.

14.3.2017.

305
(IBDFAM), materializada no Pedido de Providências nº0002653-77.2015.2.00.0000,
visando a edição de um regramento geral, aplicável em todo o território nacional, que
possibilitasse o reconhecimento da filiação socioafetiva diretamente pela via
extrajudicial, vale dizer, perante os Registros Civis das Pessoas Naturais. A motivação
central foi a inexistência de regramento geral sobre o tema, embora os institutos da
filiação socioafetiva e da pluriparentalidade já fossem tratados anteriormente na
doutrina e jurisprudência31.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco foi pioneiro na regulamentação da


socioafetividade extrajudicial através do Provimento nº9/2013, por iniciativa do
Corregedor Jones Figueiredo. Posteriormente, houve regulamentações similares em
outros estados brasileiros, como Maranhão, Amazonas, Ceará e Santa Catarina32.

Quando do julgamento do Pedido de Providências, em Plenário33, o Corregedor


responsável pelo reconhecimento, Ministro João Otávio de Noronha, afirma que esta
pluralidade de provimentos editados pelos Tribunais de Justiça dos estados poderia
gerar uma situação de insegurança jurídica dentro da delicada temática do
reconhecimento da paternidade/maternidade perante os Oficiais de Registro Civil das
Pessoas Naturais, e, neste sentido, seria necessária uma orientação geral por parte da
Corregedoria Nacional de Justiça (informação verbal)34, cuja competência para tratar do
tema estaria fundamentada na possibilidade de o CNJ regulamentar e padronizar as
certidões nos termos do art. 19, caput, da Lei de Registros Públicos, podendo editar atos
normativos que tenham por escopo aperfeiçoar os serviços auxiliares do Poder
Judiciário35.

31FRANCO, Karina Barbosa e JÚNIOR, Marcos Ehrhardt. Reconhecimento Extrajudicial da Filiação Socioafetiva e Multiparentalidade:
Comentários ao Provimento Nº63, de 14.11.17, do CNJ. IN: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Ano 02, Vol. 17 Julho/Setembro.
Belo Horizonte: Fórum, 2018.
32Franco e Júnior enumeram os primeiros instrumentos editados em território nacional, uuais sejam, Provimento nº234/14 (TJAM);

Provimento nº15/13 (TJCE); Provimento nº21/13 (TJMA) e Provimento nº11/14 (TJSC). IN: Idem.
33CNJ, Plenário, Pedido de Providências nº0002653-77.2015.2.00.0000. Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ. 14.3.2017.
34
CNJ, Plenário, Pedido de Providências nº0002653-77.2015.2.00.0000. Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ. 14.3.2017.
35A este respeito, verifica-se uue a justificativa restou, posteriormente, exposta sob a forma de “considerandos” uuando da edição dos

Provimentos Nº 63 e Nº83. Oportunamente, transcrevemos: “[…] CONSIDERANDO a competência do Poder Judiciário de fiscalizar os
serviços notariais e de registro (arts. 103-B, §4º, I e III, e 236, §1º, da Constituição Federal); CONSIDERANDO a competência da
Corregedoria Nacional de Justiça de regulamentar a padronização das certidões de nascimento, casamento, óbito e certidão de inteiro
teor (art. 19, caput, da Lei de Registros Públicos); [...]” (CNJ. Provimento Nº63/17. Disponível em
<https://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/provimento-n63-14-11-2017-corregedoria.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2019.)

306
A ANOREG/BR alegou defender a regulamentação do reconhecimento voluntário
de paternidade socioafetiva diretamente perante os oficiais do registro civil, requerendo
a padronização das orientações previamente editadas por Tribunais estaduais.36

Aqueles que se manifestaram pelo não reconhecimento do pedido


argumentaram quanto à inexistência de lei tratando sobre o tema até o momento, de
modo que a edição do Provimento seria temerária e geraria uma grande ameaça à
segurança jurídica37.

Nota-se que a regulamentação extrajudicial da temática se iniciou antes mesmo


da Repercussão Geral nº622 (de 2016), fruto do julgamento do RE 898.090/SC do STF,
uma vez que o Provimento Nº9 do TJPE data do ano de 2013, anteriormente referido38.
Quem inicia a discussão quanto à possibilidade de reconhecimento extrajudicial da
socioafetividade é Cassettari, ideia comprada pelo Des. Jones Figueiredo Alves, em
Pernambuco.

Ao tratar da edição do Provimento Nº63/17, Ricardo Calderón faz menção ao


fenômeno da “extrajudicialização do direito privado”, que tem como escopo retirar a
restrição de análise da temática do Poder Judiciário, viabilizando a sua regulação na
seara extrajudicial. Esta simplificação vem em benefício das pessoas que enfrentavam
diversas dificuldades de ordem burocrática para regularizar seu estado de filiação de
maneira formal, bem como para reconhecer a existência de múltiplas configurações
familiares presentes no mundo concreto, com o escopo de suprir um vácuo registral, ou,
nas palavras do autor, um “deficit registral” perante o Estado. A consequência formal
seria a geração de um novo protagonismo das serventias de registro das pessoas naturais
na seara do direito das famílias e sucessões39.

A importância do instituto da posse do estado de filho, suprarreferida, restou


evidente no Provimento Nº63/17, uma vez que consiste no argumento a ser comprovado
para que se obtenha o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva. Este
reconhecimento deve ser livre de vícios – como fraude, falsificação e vícios de vontade

36
CNJ, Plenário. op. cit.
37FRANCO, Karina Barbosa e JÚNIOR, Marcos Ehrhardt. Reconhecimento Extrajudicial da Filiação Socioafetiva e Multiparentalidade:
Comentários ao Provimento Nº63, de 14.11.17, do CNJ. IN: Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Ano 02, Vol. 17 Julho/Setembro.
Belo Horizonte: Fórum, 2018.
38Idem.
39CALDERÓN, Ricardo e TOAZZA, Gabriele Bortolan. Filiação Socioafetiva: Repercussões a Partir do Provimento 63 do CNJ. Disponível

em: <https://bit.ly/2ofT2g3> Acesso em: 02 set. 2019.

307
– e é irrevogável, gerando diversos direitos e deveres entre pais e filhos, num viés
bilateral.

As disposições quanto à multiparentalidade, por sua vez, se deram à luz da


Repercussão Geral Nº622, anteriormente analisada. O artigo 14 do Provimento Nº63/17
falava no reconhecimento “de forma unilateral” pelo pretenso genitor socioafetivo,
observado o limite máximo de duas mães e dois pais registrados no campo “filiação”40.
A tese também se confirmava pela atenta leitura do artigo 11, §3º, do mesmo diploma41,
ao se exigir a colheita de assinaturas do pai e da mãe do filho reconhecido, implicando
no reconhecimento por terceira pessoa42.

Inegável o avanço do Provimento Nº63/17 na consolidação da temática


apresentada. Entretanto, a aplicabilidade de suas disposições não se viu livre de críticas,
sobretudo advindas dos operadores do direito que militam na área da infância e
juventude. A principal crítica residia na notícia de reconhecimentos de crianças em tenra
idade pela via da socioafetividade extrajudicial, abrindo portas à indesejada adoção à
brasileira e constituindo uma burla da fila de adoção, subvertendo o escopo pensado
quando da regulamentação do tema pelo CNJ43.

É neste sentido que se dá a alteração promovida pelo Provimento Nº83, datado


de 14 de agosto de 2019, também do CNJ, cujo objetivo foi aperfeiçoar o conteúdo
anteriormente trazido pelo Provimento Nº63/17 naquilo que se refere à filiação
socioafetiva 44 . Com disposições mais criteriosas e restritivas, o novo instrumento
intentou conferir maior segurança jurídica ao procedimento havido perante os Registros
Civis das Pessoas Naturais.

A título elucidativo, mencionam-se as alterações promovidas, sendo a primeira


referente à imposição de uma restrição de idade – em outras palavras, enquanto o

40Provimento nº63/17 do CNJ. Art. 14. O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente será realizado de
forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento.
41Provimento nº63/17 do CNJ. Art. 11. O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva será processado perante o

oficial de registro civil das pessoas naturais, ainda uue diverso dauuele em uue foi lavrado o assento, mediante a exibição de
documento oficial de identificação com foto do reuuerente e da certidão de nascimento do filho, ambos em original e cópia, sem
constar do traslado menção à origem da filiação. […]
§3º Constarão do termo, além dos dados do reuuerente, os dados do campo FILIAÇÃO e do filho uue constam no registro, devendo o
registrador colher a assinatura do pai e da mãe do reconhecido case este seja menor. (grifamos)
42CALDERÓN e TOAZZA. Op. cit.
43CALDERÓN, Ricardo. Primeiras Impressões sobre o Provimento 83 do CNJ. Que alterou as disposições sobre registro extrajudicial da

filiação socioafetiva regidas pelo Provimento 63. Disponível em: <https://bit.ly/2ZrlMng> Acesso em: 02 set. 2019.
44O Provimento Nº63/17 também traz disposições uuanto registro de crianças havidas pelas técnicas de reprodução assistida. Neste

aspecto, o procedimento não sofreu alterações.

308
procedimento anterior permitia o reconhecimento da filiação socioafetiva e da
multiparentalidade para pessoas de qualquer faixa etária45, o novo Provimento limita
sua aplicabilidade aos indivíduos com idade superior a 12 anos46. Significa que, caso se
intente a formalização de vínculos da natureza referida para sujeitos em idade inferior,
deverá a demanda tramitar pela via judicial.

Ademais, mister destacar a inclusão do art. 10-A 47 , que aumenta o rigor


necessário à constatação de socioafetividade, análise que será realizada pelo registrador,
ressaltando que a relação estabelecida pelos solicitantes está pautada na ideia de posse
do estado de filho, devendo ser pública, duradoura e, evidentemente, prévia.

Contudo, a maior novidade do procedimento é a previsão de intervenção do


Ministério Público, temática que será abordada com maior detalhamento em momento
oportuno.

Estas primeiras modificações dão cabo às críticas tecidas no sentido da


formalização da adoção à brasileira pelo Provimento Nº63/17, uma vez que proíbe o
reconhecimento de vínculos envolvendo crianças de tenra idade, deixando estes casos
para análise do Judiciário, bem como tornam mais rigorosos os critérios que deverão ser
preenchidos para que seja inequívoca a comprovação da posse do estado de filho.

Por fim, em que pese mantenha a possibilidade de se estabelecer a


multiparentalidade de forma extrajudicial, o novo regramento restringiu a previsão
original 48 – através do Provimento Nº83/19, é possível somente a inclusão de um

45Provimento Nº63/17, do CNJ. Art. 10. O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoa de
uualuuer idade será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais. (grifamos)
46
Provimento Nº83/19, do CNJ. Art. 1º O Provimento n.63, de 14 de novembro de 2017, passa a vigorar com as seguintes alterações:
I – o art. 10 passa a ter a seguinte redação:
Art. 10. O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos será autorizado
perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais. (grifamos)
47
Provimento Nº83/19, do CNJ. Art. 1º [...]
II. O Provimento n.63, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 10-A:
Art. 10-A: A paternidade ou a maternidade socioafetiva deve ser estável e deve estar exteriorizada socialmente.
1º O registrador deverá atestar a existência do vínculo afetivo da paternidade ou maternidade socioafetiva mediante apuração objetiva
por intermédio da verificação de elementos concretos.
2º O reuuerente demonstrará a afetividade por todos os meios em direito admitidos, bem como por documentos, tais como:
apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de
previdência; registro oficial de uue residem na mesma unidade domiciliar; vínculo de conjugalidade - casamento ou união estável - com
o ascendente biológico; inscrição como dependente do reuuerente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes;
declaração de testemunhas com firma reconhecida.
3º A ausência destes documentos não impede o registro, desde uue justificada a impossibilidade, no entanto, o registrador deverá
atestar como apurou o vínculo socioafetivo.
4º Os documentos colhidos na apuração do vínculo socioafetivo deverão ser aruuivados pelo registrador (originais ou cópias)
juntamente com o reuuerimento. (grifamos)
48Provimento Nº63/17 do CNJ. Art. 14. O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado

de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e duas mães no campo FILIAÇÃO do assento de nascimento.

309
ascendente pela socioafetividade. A disposição revoga o limite anterior, que permitia o
reconhecimento de até dois pais e duas mães, bem como confirma a tese de que
extrajudicialmente somente se admite a chamada “pluriparentalidade unilateral”49. Isso
significa que o reconhecimento de um segundo ascendente socioafetivo deverá ser feito
pela via judicial. A justificativa para tanto é a tentativa de se evitar a burla ao sistema
adotivo, em observância ao princípio do melhor interesse do incapaz.

4.2 A atuação do Ministério Público nos casos de reconhecimento da filiação


socioafetiva pela via extrajudicial

Dentro da seara do direito das famílias, o papel do Ministério Público foi pensado,
principalmente, sob a ótica do princípio do superior interesse da criança e do
adolescente 50 . Por este motivo, andou bem o Provimento Nº83 da Corregedoria
Nacional de Justiça ao inserir o §9º e seus respectivos incisos ao artigo 11, prevendo que
“atendidos os requisitos para o reconhecimento da paternidade ou maternidade
socioafetiva, o registrador encaminhará o expediente ao representante do Ministério
Público para parecer”51.

Isso porque o Provimento Nº63/17 recebeu inúmeras críticas quando de sua


publicação, sobretudo quanto à fraqueza das disposições que delimitavam quais casos
poderiam ser, inequivocamente, reconhecidos perante o oficial do registro civil das
pessoas naturais, causando grande insegurança jurídica.

Nota-se, portanto, a relevância da exigência de intervenção do Ministério Público


no procedimento52, em que pese sua tramitação pela via extrajudicial. A atuação se dá

49Provimento Nº83/19 do CNJ. Art. 1º […]


V – o art. 14 passa a vigorar acrescido de dois parágrafos, numerados como §1º e §2º, na forma seguinte:
“art. 14 […]
§1º Somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou materno.
§2º A inclusão de mais de um ascendente socioafetivo deverá tramitar pela via judicial. (grifamos)
50Neste sentido, o artigo 178 do Código de Processo Civil dispõe:

Art. 178/CPC. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses
previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos uue envolvam: […]
II - interesse de incapaz; [...]
51Provimento Nº83/19 do CNJ. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/provimento-n83-14-08-2019-

corregedoria.pdf> Acesso em: 02 set. 2019.


52Provimento Nº83/19, do CNJ. Art. 1º […]

IV – o art. 11 passa a vigorar acrescido de um parágrafo, numerado como §9º, na forma seguinte:
art. 11 […]
§9º Atendidos os reuuisitos para o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, o registrador encaminhará o
expediente ao representante do Ministério Público para parecer.
I – O registro da paternidade ou maternidade socioafetiva será realizado pelo registador após o parecer favorável do Ministério Público.

310
no sentido de verificação do adequado preenchimento dos requisitos suprarreferidos,
reservando a aplicação do novo Provimento somente aos casos em que a filiação
socioafetiva reconhecida seja consensual, inequívoca e incontroversa. Com base nessa
análise, deverá o Parquet emitir parecer no caso concreto, viabilizando a formalização
do vínculo pelo oficial do registro somente na hipótese de manifestação favorável. Caso
contrário, vale dizer, caso o Parquet se manifeste desfavoravelmente ao registro, o caso
deverá ser levado ao Poder Judiciário, restando inviabilizado o registro diretamente em
cartório53.

Portanto, seria equívoca a conclusão de que a nova formalidade adicionada ao


procedimento tornaria seu trâmite mais burocrático e moroso. O intuito, evidentemente,
é aumentar a segurança jurídica dentro dos cases que envolvem tema tão delicado,
diretamente ligado aos direitos de personalidade, bem como proceder adequada
supervisão à aplicabilidade do novo procedimento, fazendo com que o representante do
Ministério Público assuma seu papel constitucional 54 enquanto agente facilitador da
cidadania.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo buscou proceder uma breve análise quanto à regulamentação


acerca da multiparentalidade e da filiação socioafetiva no ordenamento brasileiro. Em
que pese inexista lei específica tratando do tema, verifica-se que doutrina e
jurisprudência não pouparam esforços para investigar estes importantes institutos, que
estão diretamente relacionados à dignidade da pessoa humana, direitos de
personalidade e à configuração contemporânea do direito das famílias, prezando pela
proteção e inclusão de diversas configurações familiares existentes no mundo fático.

Dentro da discussão traçada, restou evidenciada a relevância da posse do estado


de filho enquanto elemento fundamental, que deve ser amplamente conhecido por

II – Se o parecer for desfavorável, o registrador não procederá o registro de paternidade ou maternidade socioafetiva, e comunicará o
ocorrido ao reuuerente, aruuivando-se o expediente.
III – Eventual dúvida referente ao registro deverá ser remetida ao juízo competente para dirimi-la.
53CALDERÓN, Ricardo. Primeiras Impressões sobre o Provimento 83 do CNJ. Que alterou as disposições sobre registro extrajudicial da

filiação socioafetiva regidas pelo Provimento 63. Disponível em: <https://bit.ly/2ZrlMng> Acesso em: 02 set. 2019.
54Art. 127/CF. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da

ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

311
juristas e operadores do direito, notadamente se considerada sua nova aplicabilidade
quando da regulamentação da socioafetividade e da pluriparentalidade, tanto pela via
do Poder Judiciário, quanto extrajudicialmente – sobretudo extrajudicialmente, ressalta-
se.

A Repercussão Geral Nº622, havida do julgamento do Recurso Extraordinário


898.060/SC, confirmou a recepção da multiparentalidade pelo ordenamento jurídico
pátrio, prestigiando a filiação socioafetiva sem que se diminua a relevância dos vínculos
biológico e registral, tendo em mente o direito à busca pela felicidade, o princípio do
melhor interesse do incapaz e a centralidade da proteção aos direitos da pessoa humana
na constituição da personalidade dos sujeitos.

O CNJ, provocado pelo IBDFAM e outros atores, avançou ainda mais na temática,
permitindo através do Provimento Nº63/17, posteriormente modificado pelo
Provimento Nª83/19, o reconhecimento da filiação socioafetiva e, por vezes, da
pluriparentalidade, diretamente nos registros das pessoas naturais, impulsionando o
movimento de extrajudicialização do direito civil, numa tentativa de suprir o deficit de
informação existente quanto às famílias faticamente constituídas, sem a
regulamentação e proteção jurídica formais.

A este respeito, ainda mais na seara extrajudicial, a atuação do Ministério Público


se mostra absolutamente relevante, devendo estar norteada pelo princípio do melhor
interesse do incapaz, a fim de se obstaculizar a consolidação de situações indesejadas –
como a adoção à brasileira e a burla à fila adotiva –, conferindo maior segurança jurídica
e credibilidade ao procedimento, que deve se restringir às situações inequívocas e
consensuais, prestigiando o direito das famílias brasileiros em sua melhor aplicabilidade.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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VALADARES, Maria Goreth Macedo. Multiparentalidade e as novas relações parentais.


Rio de Janeiro: Editora Lumen Jures, 2016.

315
7. Espaço
Institucional
Alberto Vellozo Machado 1
Laura Esmanhoto Bertol 2
Matheus Mafra 3
Thiago de Azevedo Pinheiro Hoshino 4

A CONFIGURAÇÃO DA OMISSÃO
MUNICIPAL EM FACE À POLÍTICA
HABITACIONAL

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O direito à moradia como direito fundamental e os deveres


prestacionais do Estado; 3. Dos instrumentos disponíveis à configuração da omissão
municipal; 4. Conclusão; 5. Referências.

1 Procurador do Ministério Público do Estado Paraná, coordenador do CAOP de Proteção ao Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo.
2 Arquiteta e Urbanista, assessora no Ministério Público do Estado do Paraná, Doutoranda no Programa de Pós Graduação da FAU-
USP.
3 Assessor Jurídico do Ministério Público, mestrando em Direito do Estado pelo Programa de Pós Graduação em Direito da
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
4 Ouvidor da Defensoria Pública do Estado do Paraná, Doutorando em Filosofia do Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito
da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

317
RESUMO: O déficit habitacional permanece sendo um problema latente na sociedade
brasileira, mesmo após a criação de ampla legislação e políticas públicas que tinham
como meta a facilitação do acesso à terra urbanizada e a consequente redução das
demandas por moradia digna. Tal permanência de afronta a um direito constitucional
básico conduz à constantes demandas pela execução de políticas públicas de acesso à
moradia digna. Considerando que o conceito de moradia digna implica necessariamente
no acesso à cidade e as condições mínimas de urbanização e que o desenho
constitucional de divisão de poderes delega aos municípios a responsabilidade pela
execução da política urbana, este tende a ser um importante ente federativo a ser
questionado pelo ordenamento territorial e garantia de cidades sustentáveis. Ainda
assim, quando demandadas, as prefeituras municipais tendem a apontar o déficit
orçamentário como justificativa para não execução de qualquer política habitacional,
muitas vezes vistas como políticas secundárias ou simplesmente complementares a
ações da União e do Estado - postura agravada em contextos de crise fiscal. Trata-se de
argumento de grande relevância, considerando que acatado constantemente pelo
poder Judiciário. Nesse contexto, o presente artigo visa avaliar os limites da
discricionariedade da administração pública quanto à implantação de políticas
habitacionais, considerando as proteções constitucionais conferidas ao respectivo
direito e as necessidades de um mínimo a ser conferido pelo estado. O que se nota é
que a argumentação municipal tende a omitir que a ordem constitucional estabelece o
direito à moradia como um direito social a ser tutelado progressivamente pelo Estado,
além de ignorar os instrumentos vigentes no ordenamento jurídico nacional que
viabilizam o acesso à moradia para além da aquisição de propriedade privada individual
como modelo de política pública. Esse cenário demonstra a mitigação da
discricionariedade do município em termos de execução da política urbana, de modo
que é ilegítima a alegação de insuficiência de recursos para a ausência de qualquer
política que vise minimamente reduzir o déficit habitacional municipal. Assim, as
demandas que envolvem a política habitacional necessitam de abordagens que
abarquem a complexidade e diversos elementos que envolvem o tema.

PALAVRAS-CHAVE: Habitação; Municípios; Omissão; Discricionariedade Municipal.

318
1. INTRODUÇÃO

O déficit habitacional do Brasil segue em um ritmo crescente, tendo alçado


parâmetros recordes, possuindo uma demanda total de 7,78 milhões de novas moradias
no ano de 20175. No estado do Paraná, o déficit habitacional se encontrava avaliado em
287.466 habitações no ano de 2010 em áreas urbanas e rurais6. Nesse universo não
estão incluídas as 801.982 unidades habitacionais que precisam passar por qualificações
como o atendimento por redes de coleta de esgoto sanitário, desadensamento de
cômodos e construção de instalações sanitárias privativas para serem consideradas
habitações que atendem aos quesitos mínimos do direito à moradia.

Esse contexto tende a promover a intensificação de demandas por políticas


públicas de habitação em face do Estado, sendo o Executivo Municipal lócus primordial
da interlocução com a sociedade, o mais demandado e com maior capacidade de
dimensionar as demandas e soluções possíveis a partir de especificidades locais.

O favorecimento do Município como unidade central para o diagnóstico e


proposição de respostas a demandas habitacionais, advém do próprio desenho
constitucional, onde delegou-se a estes a competência precípua na promoção da política
urbana7. Também advém da maneira como o texto constitucional vincula os gastos
orçamentários municipais, tendência notada em políticas públicas como um todo, onde
a gestão do orçamento se encontra centralizada na União e a responsabilidade pela
execução dos programas delegada aos municípios.

É o que se nota, por exemplo, no âmbito do Programa ‘Minha Casa, Minha


Vida’, criado inicialmente por meio da Medida Provisória nº 459/2009, convertida
posteriormente na Lei Federal nº 11.977/2009, considerado uma das principais políticas
em termos de recursos e unidades produzidas8, onde a responsabilidade pela
organização e seleção dos beneficiários das menores faixas de renda tende a ser do

5 FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Análise das Necessidade Habitacionais e sua Tendências para os Próximos Dez Anos. 2018.
Disponível em: https://www.abrainc.org.br/wp-content/uploads/2018/10/ANEHAB-Estudo-completo.pdf. Acesso em: 17.out. 2019.
6 Dados do Estudo Déficit Habitacional no Brasil - Referência 2010, elaborado pela Fundação João Pinheiro.
7 Vide o art.182 da Constituição Federal: ‘‘Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
garantir o bem- estar de seus habitantes.’’
8 A relação completa dos Programas e Ações de habitação do Governo Federal pode ser consultada em: https://bit.ly/2kh2IFE.
Acesso em: 10.jul.2019.

319
Poder Municipal.

O financiamento para a promoção de habitações de interesse social se encontra


principalmente no âmbito da Faixa 01 do programa9, onde são destinados recursos do
Orçamento Geral da União para o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR). A partir
daí, empresas da construção civil apresentam proposta e projetos habitacionais,
enquanto os Municípios ficam responsáveis essencialmente pela seleção da demanda,
trabalho técnico-social e eventuais contrapartidas com a implantação de infraestruturas
e equipamentos comunitários10.

Tais atribuições demonstram a centralidade do Município na área habitacional


e em funções e serviços públicos imediatamente correlatos como o acesso à terra
urbanizada e à infraestrutura básica e serviços, sendo o principal ente demandado na
expansão ou melhorias nas políticas habitacionais, seja por vias administrativas, seja por
vias judiciais. Tal modelo coaduna-se com a lógica de distribuição de recursos e
competências historicamente predominante no Brasil. Consolidado ainda na década de
40, o modelo distributivo adotado centraliza a autoridade de arrecadação e
direcionamento dos gastos orçamentários à União, sendo delegada aos municípios a
competência pela execução das políticas e investimentos11.

Todavia, em um contexto de ampla crise fiscal, os municípios são


consideravelmente afetados, de modo que inúmeras políticas públicas de sua alçada
acabam não sendo executadas sob a justificativa de que reajustes orçamentários
impediriam a execução de diversas funções públicas, especialmente quando estas são
abordadas pelos municípios como gastos secundários e sem uma necessária
obrigatoriedade em seu cumprimento.

A relevância de tal argumento deflui do fato de ser constantemente utilizado


para justificar a omissão municipal na execução de qualquer política habitacional e
acatado pelo poder Judiciário.

9 A Faixa 01 do Minha Casa, Minha Vida foi destinado a famílias com renda de até R$ 1.395,00 (mil trezentos e noventa e cinco
reais) mensais na Fase 01 do programa, passando a ser ampliado para famílias com renda de até R$ 1.600,00 (mil e seiscentos reais)
na Fase 02 do programa.
10 As atribuições dos diferentes participantes do Programa Minha Casa, Minha Vida Faixa 01 estão dispostas na Portaria n° 158 de
06 de maio de 2018 do Ministério das Cidades.
11 ARRETCHE, Marta. Quem Taxa e Quem Gasta: a barganha federativa na Federação Brasileira. In: Revista de Sociologia e Política,
Nº24. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2009. Disponível em: <https://bit.ly/334BZN4> Acesso em: 04.out.2019.

320
Assim, o que se busca a partir do presente estudo é compreender se o desenho
constitucional atualmente vigente, sob a égide dos direitos fundamentais, permite ao
poder executivo se ausentar da política de habitação, mesmo quando as normas
urbanísticas e habitacionais contemporâneas garantem amplo rol de instrumentos para
a promoção do direito à moradia, não se restringindo à simples produção de unidade
habitacionais novas com transferência de propriedade.

2. O DIREITO À MORADIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL E OS DEVERES


PRESTACIONAIS DO ESTADO

Sob a vigência da Constituição Federal de 1988, o direito à moradia passou a


ser um direito social garantido aos cidadãos, bem como um dever estatal a ser cumprido
por todos os entes da federação, a depender de suas respectivas competências. Essa
realidade é notada a partir de leitura conjunta dos artigos 6º inciso IX do artigo 23 da
Constituição, onde se estabelece o direito à moradia como um direito social (artigo 6º)
sendo de competência comum a sua promoção (artigo 23).

Essa lógica não se altera no âmbito da Constituição do Estado do Paraná,


considerando que a mesma aponta o direito à moradia como um direito fundamental a
ser garantido pelo estado. De início, o artigo 12 da Constituição do Estado já estabelece
como de competência comum entre União, Estado e municípios, a promoção de
programas de construção de moradias, melhoria das condições habitacionais e
saneamento básico12.

Competência densificada através do artigo 212 do mesmo diploma, onde se


estabelece que a política habitacional do Estado será integrada à União e aos municípios,
objetivando sanar a carência habitacional através de medidas como ofertas de lotes
urbanizados, estímulo à formação de cooperativas populares de habitação, priorização
de famílias carentes e formação de programas através de sistemas de mutirão13. Em
seguida, no artigo 213, é expresso que as entidades da administração responsáveis pela
execução de tais empreendimentos deverão ter recursos orçamentários próprios e de

12 ESTADO DO PARANÁ. Constituição do Estado do Paraná. Curitiba, Paraná, 05.out.1989. Disponível em: <https://bit.ly/2kETBP2>.
Acesso em: 11.out.2019.
13 Ibid.Não paginado.

321
outras fontes14.

É evidente que a legislação estadual, dessa forma, aponta para a diversificação


das iniciativas de habitação, seja no que se refere à variedade de soluções habitacionais
(não se restringindo à oferta de unidades edificadas, mas também lotes urbanizados,
estímulos para cooperativas populares e sistemas de autoconstrução), seja no que se
refere às maneiras de financiamento dos empreendimentos (considerando as
possibilidades elencadas de recursos próprios das entidades responsáveis, como fontes
alternativas).

Não obstante, o mesmo marco normativo direciona o compromisso do Estado


do Paraná em promover o acesso ao primeiro emprego e à habitação, conforme
expresso em seu artigo 225-A.

Ambos marcos constitucionais destacam como a promoção do direito à


moradia é uma competência dividida entre todos os entes federativos, cabendo aos
municípios função basilar na execução da política urbana, nos termos do artigo 182 da
Constituição Federal.

Essa distribuição, por fim, é normatizada pelo Sistema Nacional de Habitação


de Interesse Social, instituído em 2005, através da Lei nº 11.124 do mesmo ano, ao
apontar, especificamente em seu artigo 4º, que todos os entes federativos possuem
diferentes potencialidades e funções na promoção do acesso à moradia digna.

Com a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001), o direito


à terra urbana e à moradia foram alçados à diretrizes da própria política urbana
municipal, sendo que tal marco legal apresentou, ainda, uma série de instrumentos que
podem tanto promover o direito à moradia (como as zonas especiais de interesse social,
regularização fundiária ou o usucapião especial urbano), além de instrumentos que
podem facilitar a obtenção de recursos para a promoção da política urbana (como a
outorga onerosa do direito de construir, transferência de potencial construtivo ou
operações urbanas consorciadas, por exemplos).

Essa lógica, bem como seus instrumentos, foram amplamente acatados pelos
municípios brasileiros, especialmente em seus Planos Diretores, um dos principais

14 Ibid. Não paginado.

322
marcos legais para a instituição da política urbana em âmbito local.

A título exemplificativo, analisando os planos diretores das cinco maiores


cidades do estado do Paraná15, é possível avaliar como os mesmos incorporaram no bojo
de seus respectivos planos diretores o compromisso de promover o acesso à moradia.
Em Curitiba16, Londrina17 e Ponta Grossa18, por exemplo, o acesso à moradia digna é
presente logo no âmbito das diretrizes ou princípios gerais que ordenam o município. Já
em municípios como Maringá e Cascavel, o acesso à moradia digna se encontra presente
no âmbito de políticas internas do próprio Plano Diretor, como a Política de
Desenvolvimento Territorial e Ambiental do município de Maringá19, ou como estratégia
para a promoção do desenvolvimento sustentável da cidade de Cascavel20.

Internacionalmente, a importância de tal direito se mantém, além de ser


detalhado, conforme se nota no §8º do Comentário nº 04 da Comissão de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, do qual o Brasil é signatário:

a) Segurança jurídica para a posse, independente de sua natureza


e origem.
b) Disponibilidade de infraestrutura para a garantia da saúde,
segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso à água
potável, energia para o preparo da alimentação, iluminação,
saneamento básico, etc).

15 YANO, Célio. 10 cidades concentram 42% da população do PR. Veja o ranking das mais populosas. Gazeta do Povo. Curitiba, 29 de
agosto de 2019. Seção Paraná. Disponível em: <https://bit.ly/2mdReTY>. Acesso em: 12.set.2019.
16 ‘‘Art. 15. Sem prejuízo ao contido no Estatuto da Cidade e Estatuto da Metrópole, são diretrizes gerais da política urbana do
Município: IV - desenvolver uma política habitacional que proporcione o acesso à moradia, especialmente a população de baixa renda,
em consonância com o planejamento da cidade’’. CURITIBA. Lei 14.771/2015. Dispõe sobre a revisão do Plano Diretor de Curitiba de
acordo com o disposto no art. 40, § 3º, do Estatuto da Cidade, para orientação e controle do desenvolvimento integrado do Município.
Diário Oficial Municipal de Curitiba, Curitiba, PR, 17 de dezembro de 2015.
17 ‘‘Art. 6º São objetivos gerais do PDPML: IV - o ordenamento do território como garantia do pleno cumprimento das funções sociais
da propriedade e do direito à cidade para todos, compreendendo os direitos:b) à moradia digna’’. LONDRINA. Lei nº10.637/2008.
Institui as Diretrizes do Plano Diretor Participativo do Município de Londrina. Diário Oficial Municipal de Curitiba, Curitiba, PR, 24 de
dezembro de 2008.
18 ‘‘Art. 7º O Plano Diretor de Ponta Grossa tem por princípios: V - o direito universal à cidade, ampliado à terra urbana, à moradia
digna, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer’’. PONTA
GROSSA. Lei nº 8.663/2006. Atualiza a Lei do Plano Diretor do Município de Ponta Grossa em consonância com as novas Diretrizes da
Revisão do Plano Diretor. Diário Oficial do Município de Ponta Grossa. Ponta Grossa, PR, 09 de outubro de 2006.
19 ‘‘Art. 23 A Política de Desenvolvimento Territorial e Ambiental tem como objetivos: V - promover o acesso à habitação, priorizando
a população de baixa renda.’’ MARINGÁ. Lei nº 632/2006. Cria o Plano Diretor do Município de Maringá. Diário Oficial do Município
de Maringá. Maringá, PR, 06 de outubro de 2006.
20 ‘‘Art. 15 O desenvolvimento sustentável de Cascavel será promovido mediante a implementação das seguintes estratégias: V -
Integrar as Políticas Sociais e Promover a Moradia Digna.’’ CASCAVEL. Lei nº 91/2017. Altera o Plano Diretor de Cascavel, estabelece
diretrizes para o desenvolvimento da cidade e das sedes dos demais distritos administrativos e dá outras providências relativas ao
planejamento e à gestão do território. Diário Oficial do Município de Cascavel. Cascavel, PR, 23 de fevereiro de 2017.

323
c) As despesas com a manutenção da moradia não podem
comprometer a satisfação de outras necessidades básicas.
d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitabilidade,
notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes.
e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente para
os portadores de deficiência.
f) Localização que permita o acesso ao emprego, serviços de
saúde, educação e outros serviços sociais e essenciais.

Seguindo as orientações inerentes às próprias normas, o direito à moradia não


deve ser encarado como um direito com valor em si, mas como um ‘direito meio’, haja
vista que a sua efetivação acarreta na efetivação dos demais direitos humanos como o
direito à saúde, educação e segurança alimentar.

Tal entendimento se deve, em grande parte, ao fato de a moradia digna ser


derivada do direito humano a uma vida digna, sendo este garantido através do artigo 11
do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, devidamente incorporado ao
ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 592/199221.

Diante de tal contexto normativo, o direito à moradia apresenta aplicabilidade


imediata, haja vista que representa as decisões basilares do poder constituinte, alçando
os princípios de uma comunidade à níveis jurídicos22, podendo esse direito ser garantido
através das maneiras dispostas em lei. Para sua promoção, o Estado passa a seguir três
orientações básicas em relação a tal direito: proteção, regulação (garantia) e a
promoção do mesmo.

A regulação do direito à moradia pode ser avaliada por meio da Lei nº 6.766/79
(referente ao parcelamento do solo urbano), ou ainda a Lei nº 8.245/91 (referente à
locação de imóveis urbanos), marcos normativos que intervêm e disciplinam as relações
e negócios jurídicos, protegendo consumidores e, indiretamente, assegurando o direito
à moradia digna.

21 JÚNIOR, Nelson Saule. O Direito à Moradia como Responsabilidade do Estado Brasileiro. In: JÚNIOR, Nelson Saule. Direito à Cidade:
trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São Paulo: Editora Max Limonad, 1999. P. 77.
22 SARLET, Ingo Wolfgang. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto,
Conteúdo, e Possível Eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público,
nº 20, dezembro, janeiro, fevereiro, 2009, 2010. Disponível na internet: <https://bit.ly/2HuzbSZ>. Acesso em: 20 de março de 2019.
P. 19.

324
No que se refere à proteção, o Estado deve adotar postura que obste o
retrocesso do direito à moradia através de regulações que impeçam a existência de
práticas que dificultem ou impeçam o acesso a ela23, medidas que vão desde a
regulações acerca de sua aquisição (principalmente no que se refere à práticas
discriminatórias), bem como segurança do acesso à moradia após a realização de
remoções forçadas e despejos.

Por fim, no que tange à promoção do direito à moradia, o Estado deve tanto
promover a produção de unidades habitacionais, incentivar o crédito e à regularização
fundiária, bem como garantir políticas alternativas de habitação, como aluguel social,
locação social e moradias temporárias.

Tantas alternativas acabam por reduzir a margem para alegação do poder


executivo (especialmente municípios) de que inexiste qualquer possibilidade para a
promoção da redução do déficit habitacional de seus territórios, alegação muitas vezes
sustentada por aspectos de limitação orçamentária para a execução de políticas de
acesso à moradia própria, sem que as demais alternativas tenham sido estudadas ou
intentadas no município.

Essa postura, inclusive, pode ser caracterizada como uma omissão municipal na
busca efetivação de seus deveres constitucionais de promoção do acesso à moradia. É
sobre a busca dessa caracterização e suas implicações jurídicas que esse estudo passará
a se debruçar.

3. DOS INSTRUMENTOS DISPONÍVEIS À CONFIGURAÇÃO DA OMISSÃO MUNICIPAL

No que se refere à execução em si dos programas, é importante frisar que assim


como as dificuldades de acesso à habitação, trabalho e renda e os diversos arranjos
familiares, a existência de outras soluções habitacionais para além da construção de
residências (modalidade que mais gera entraves em relação aos municípios e seu
orçamento), de modo que procedimentos que avaliem a atuação municipal em relação
à política habitacional precisam se debruçar sobre os instrumentos que o mesmo dispõe

23 Op cit, Júnior, Nelson Saule. P.78.

325
para a execução da política habitacional.

Os marcos normativos urbanísticos brasileiros oferecem inúmeros


instrumentos para a promoção da redução do deficit habitacional que não se restringem
à produção, tais como: regularização fundiária, melhorias construtivas, assistência
técnica, programas de apoio e estímulo à autoconstrução, mutirão e cooperativas,
locação social, auxílio financeiro em caso de emergência e vulnerabilidade social
extrema, etc.

De início, após a promulgação do Estatuto da Cidade, os municípios passaram


a contar com instrumentos urbanísticos destinados para a resolução do deficit
habitacional, que não se restringiram à promoção de habitações individuais.

É o que se nota em relação as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), em


suas diversas modalidades de utilização (para regularização fundiária, produção de
unidades habitacionais para diferentes faixas de renda - interesse social e mercado
popular) e a aplicação do Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios (PEUC).
Trata-se de avaliação de suma importância por promover a integração entre os
planejamentos habitacional e urbano-territorial, rompendo com círculos viciosos de
ausência de locais adequados, ou seja, servidos por infraestrutura e equipamentos
comunitários24.

Mesma postura de diversificação de medidas foi adotada no decorrer dos


direcionamentos do Plano Nacional de Habitação de Interesse Social, ao estabelecer
medidas que vão desde a produção de moradias, até a promoção de regularização
fundiária de assentamentos precários, destacando-se que os marcos normativos
pertinentes ao planejamento urbano já garantem, no decorrer de seus respectivos
textos, uma série de instrumentos passíveis de serem aplicados para a promoção do
acesso à moradia25.

Outro exemplo alternativo de promoção do acesso à moradia se refere à


promoção de locação social. Em análise promovida pelo Instituto de Pesquisa Econômica

24 BRASIL. Manual Para a Apresentação de Propostas. Brasilia: Ministério das Cidades, 2007. Disponível em: <https://bit.ly/2YZIxLF>.
Acesso em: 08.abr.2019.
25 BRASIL, MINISTÉRIO DAS CIDADES. Plano Nacional de Habitação. Brasília: Ministério das Cidades/Secretaria Nacional de
Habitação, 2010. Disponível em: <https://bit.ly/2RO4hWK>. Acesso em: 12.set.2019.P.120.

326
Aplicada (IPEA), realizada no ano de 2015, constatou-se que programas de promoção de
aluguel social, por meio da disponibilização de um 'parque locatício' estatal, conseguem
solucionar parte da demanda habitacional e ainda, tendo em vista a ausência de
financiamento ao beneficiário, possui um retorno financeiro mais veloz, tornando-se
mais viável em municípios com escassez de verbas para a promoção de programas
habitacionais26.

A respectiva análise também atenta ao fato de que a habitação de cunho social


não se trata de um empreendimento implantado pelo Estado sob moldes de gestão
privada, mas sim como um serviço estatal que visa garantir melhores condições de vida
a seus habitantes27. Nesse sentido, a 'locação social' se distingue do 'aluguel social'
entendido como benefício financeiro diretamente prestado em apoio às famílias de
baixa renda para locação de imóveis no mercado privado, em geral em conexão com a
assistência social e que muitas vezes apenas reproduz as condições precárias de
habitação em imóvel alugado.

Imperativo relembrar, igualmente, as possibilidades da Lei nº 11.888/2008, que


disponibiliza assistência técnica gratuita às famílias de baixa renda, por profissionais da
área da arquitetura e engenharia civil, cabendo aos entes federativos a promoção de
auxílios de modo a melhorar a situação da moradia dos habitantes com até 3 (três)
salários-mínimos. É o que se nota principalmente através de seu artigo 3º, onde se
aponta a execução de auxílios técnicos gratuitos no âmbito da arquitetura, urbanismo e
engenharia para moradias caracterizadas como de baixa renda classificadas como
aquelas com renda per capita de até 3 (três) salários mínimos.

Na seara da gestão da política habitacional, impõe-se como atribuição mínima


do município no cumprimento de sua função constitucional de assegurar o direito à
moradia a organização de cadastro habitacional de caráter permanente, em que se
alistam interessados possibilitando uma leitura das necessidades habitacionais do
Município e evitando cadastramentos fragmentados e descontínuos.

O cadastro habitacional demanda poucos investimentos, requerendo apenas

26 BALBIM, Renato. Serviço de Moradia ou Locação Social: Alternativas à Política Habitacional. Rio de Janeiro: Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2015. Disponível em: <https://bit.ly/2I6olmb>. Acesso em: 08.abr.2019. P.43.
27 Ibid. P.

327
sua estruturação (elaboração de questionário) e atualização, ao tempo em que permite
mensurar a demanda da população, traçar seu perfil, planejar de forma adequada as
ações habitacionais necessárias e ampliar a transparência da gestão pública, evitando
direcionamento de unidades e outras formas de desvio de recursos públicos. Tal
sistema, embora formatado com objetivos habitacionais, deve estar conectado com o
Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal (CADÚNICO), podendo
também se valer de outros bancos de dados como o Sistema de Informação da Atenção
Básica do Ministério da Saúde.

Nesse sentido, a Portaria nº 163/2016, emitida pelo Ministério das Cidades,


criou o Sistema Nacional de Cadastro Habitacional (SNCH), o qual estabeleceu um
cadastro nacional único para todos os cidadãos que demandam moradia digna, sendo o
respectivo registro um dos principais mecanismos de promoção de destinação dos
recursos do Plano Nacional de Habitação e o local de seleção e registro dos beneficiários
do Programa Minha Casa, Minha Vida.

A Companhia de Habitação do Paraná (COHAPAR) também mantém e


disponibiliza, mediante solicitação pelos Municípios, Cadastro Habitacional de
Pretendentes – SCHaP28.

Assim, é indispensável que os municípios designem um setor ou equipe para


este trabalho, tanto nos casos de cadastramento por demanda (em que os interessados
se dirigem ao órgão e se cadastram) quanto na busca ativa (em que as equipes de
agentes vão a campo para cadastrar as famílias, casa a casa, como nas regularizações
fundiárias). Para isso, tal setor deve estar legalmente imbuído das atribuições em
matéria habitacional e estruturado com recursos humanos, dialogando com os demais
setores da estrutura administrativa municipal, especialmente o responsável pela política
urbana.

Considerando a complexidade da problemática habitacional vivenciada em


inúmeros municípios paranaenses, entende-se a necessidade de um órgão próprio da
administração direta para fazer frente a tal demanda, envolvendo tanto a elaboração,
implementação e monitoramento do PLHIS, quanto a organização e análise dos

28 Vide o Cadastro Único de Pretendentes do Paraná, disponível em: <https://bit.ly/2IxisgE>. Acesso em: 08.out.2019.

328
cadastros acima mencionados, a execução de análises técnicas da realidade local e
gerenciamento dos programas habitacionais a serem implantados pelo município, bem
como secretariar e auxiliar na gestão do Fundo Municipal de Habitação de Interesse
Social, sempre acompanhado do conselho gestor do mesmo. Todavia, é importante
reconhecer que a organização de tal estrutura e redução do Déficit Habitacional só serão
alcançadas, ainda que progressivamente, com a efetiva destinação de parcela do
orçamento municipal para as demandas de habitação.

Em síntese, embora persista discricionariedade sobre como realizar as políticas


públicas que a Constituição e as leis determinam, é certo que não há discricionariedade
para omitir-se, ou seja, entre as opções que o comando constitucional confere aos
municípios, não está a de não cumpri-lo.

Consequentemente, para a execução de qualquer política aqui apresentada, é


necessária a vinculação de parcela mínima do orçamento do município à execução da
política urbana para fins de moradia, como se deu em 33 municípios do Paraná, no
momento da avaliação dos Planos Diretores elaborados após a aprovação do Estatuto
da Cidade29.

Em seguida, é o Município que, em seu Plano Diretor, em seu PLHIS, em


diplomas e programas locais, modula os instrumentos e diretrizes gerais ao cenário
concreto - seu território, porém não se pode, por meio deles ou de alegações abstratas,
furtar-se ao tema. Não há, aí, discricionariedade, mas inconstitucional omissão,
contexto em que a atuação instigadora do Ministério Público e do Poder Judiciário não
caracteriza intromissão reprovável, mas garantia necessária de que os mandamentos
serão observados.

Ademais, considerando que a motivação do atos administrativos é um dos seus


elementos necessários, sob pena de nulidade, a Administração Pública sempre deverá
fundamentar tecnicamente as opções e priorizações para o enfrentamento da demanda
habitacional, demonstrando que, efetivamente, é esta a escolha que melhor atende ao

29 CARDOSO, Adauto Lucio; DA SILVEIRA, Maria Cristina Bley. O Plano Diretor e a Política de Habitação. In: JÚNIOR, Orlando Alves
dos Santos; MONTANDON, Daniel Todtmann (orgs.).Os Planos Diretores Municipais Pós-Estatuto da Cidade: balanço crítico e
perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011. P.119.

329
interesse público30.

Tal dever torna legítima a atuação do Poder Judiciário em demandar a execução


de uma política habitacional, ainda que mínima, determinando a aplicação de
orçamento no município31.

Assim, mesmo os municípios tendo conhecimento de que a implementação dos


direitos sociais é progressiva, não indicam quaisquer ações concretas ou passos tomados
em direção à sua concretização, o que é condenado não apenas pela lei, mas pela
doutrina e pela jurisprudência pátrias:

Apelação Cível. Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público


com o pedido, dentre outros, de que Estado e Município sejam
condenados à confecção de plano de contenção de encosta, em área
classificada como de médio risco de desabamento. 1 - Os direitos
sociais, a par de sua eficácia negativa, consistente em determinar a
interpretação das leis integrantes do ordenamento jurídico, contêm
ainda, quando suficientemente densos, uma eficácia positiva,
vinculante para a Administração. 2 - Resulta do dirigismo da
Constituição o dever de prioridade para a satisfação dos direitos
sociais, a que deve corresponder uma dotação orçamentária
adequada. 3 - Como muitos dos direitos desta natureza importam em
vultosas despesas e transformação material da realidade, sua
efetivação deve ser feita de forma progressiva, qual previsto no artigo
2º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
4- Entende-se por progressividade, na forma do Comentário nº 3, do
Alto Comissionado da ONU para os Direitos Humanos, a adoção de
medidas concretas na direção do objetivo, com o que é incompatível
um comportamento inerte ou excessivamente lento. 5- Como fiscal do
cumprimento da Constituição e das Leis, compete ao juiz, sem que isto
importe em qualquer violação ao Princípio da Separação dos Poderes,
determinar à autoridade competente a elaboração de plano capaz de
progressivamente mitigar o problema e ao menos alcançar os níveis
essenciais de prestação do serviço; julgar a suficiência do plano,
comparando a verba dedicada no orçamento com despesas outras
desprovidas do caráter de essencialidade, e acompanhar a execução
do plano. 6 - Sentença que julga extinto o processo, sem análise do
mérito, antes mesmo da citação, sem analisar concretamente a
suficiência do plano apresentado. 7- Recurso provido para anular a
sentença. (Apelação Cível nº 0486035-07.2011.8.19.0001. Décima
Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Rel.: Des.
Eduardo Gusmão Alves de Britto Neto. Publicação em 06/08/2013).

30 DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 26ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores. P. 396
31 ROSAS, Luiza Barros. Mediação e Direitos Humanos: Temas Atuais e Controvertidos. In: JR, Antonio Rodrigues de Freitas (Coord).
Mediação e Direitos Humanos - Temas Atuais e Controvertidos. São Paulo: LTR Editores, 2014.p.63.

330
O próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu a ilegalidade na omissão do
Estado quanto à implementação de políticas públicas e na possibilidade de intervenção
judicial de modo a promover direitos fundamentais:

DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE


CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO
JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir,
total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas
definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse
comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental,
estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da
erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel.
Min. CELSO DE MELLO, v.g.. - A inércia estatal em adimplir as
imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela
autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo,
comportamento que deve ser evitado. É que nada se revela mais
nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a
vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas
executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente
nos pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios
dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos.
- A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de
políticas governamentais previstas e determinadas no texto
constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ
199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos,
que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão
inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da
República assegura à generalidade das pessoas. Precedentes. A
CONTROVÉRSIA PERTINENTE À “RESERVA DO POSSÍVEL” E A
INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS
“ESCOLHAS TRÁGICAS”. - A destinação de recursos públicos, sempre
tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer
com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional,
quer, também, com a própria implementação de direitos sociais
assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos
de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los
mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros
igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa
relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade
financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas
trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na
dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a
intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real
efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei
Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da reserva do
possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o
propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de
políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra
insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo

331
existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento
positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da
pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de “mínimo
existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos
constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo
de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir
condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à
pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a
prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena
fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o
direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à
saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à
alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos
da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). A PROIBIÇÃO DO
RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À
FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE
DIREITOS PRESTACIONAIS. - O princípio da proibição do retrocesso
impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que
sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou
pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o
retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado
(como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança
pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos
fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de
concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser
ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em
conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os
direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos,
mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto
constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante
supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados.
LEGITIMIDADE JURÍDICA DA IMPOSIÇÃO, AO PODER PÚBLICO, DAS
“ASTREINTES”. - Inexiste obstáculo jurídico-processual à utilização,
contra entidades de direito público, da multa cominatória prevista no
§ 5º do art. 461 do CPC. A “astreinte” - que se reveste de função
coercitiva - tem por finalidade específica compelir, legitimamente, o
devedor, mesmo que se cuide do Poder Público, a cumprir o preceito,
tal como definido no ato sentencial. Doutrina. Jurisprudência.”

(ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma,


julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-
2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125).

Diante do exposto, entende-se que no que se refere à promoção do direito à


moradia digna, a discricionariedade municipal se encontra mitigada, já que o Município
deverá atender aos postulados do texto constitucional, possuindo, ainda, amplo rol de
instrumentos para a promoção do acesso à moradia digna, levando-o à necessária
exposição de quais medidas, dentro das possíveis, estará adotando para a resolução dos

332
problemas habitacionais em que se encontra inserido - sob pena de ter sua omissão
caracterizada, ensejando responsabilizações estatais.

4. CONCLUSÃO

Ainda é imperante nas instituições brasileiras o pensamento de que a


promoção do direito à moradia só ocorre mediante o acesso a propriedades individuais,
uma das medidas mais onerosas aos cofres públicos e de baixa eficiência e adequação
às demandas dos beneficiários. Essa restrição de repertório de políticas para a resolução
do deficit habitacional é agravada em cenários de recessão fiscal, onde os municípios
passam a alegar que a inexistência de fundos a serem destinados para a produção de
habitações de interesse social lhe legitimaria a não executar nenhuma medida para a
redução do deficit habitacional - mesmo quando são os municípios os principais entes
federativos responsáveis pela execução da política urbana, conforme determinado pela
própria Constituição Federal.

Ocorre que essa argumentação, conforme detalhado no decorrer deste estudo,


ignora que o direito à moradia se encontra no rol dos direitos fundamentais que devem
ser assegurados a todos os cidadãos, principalmente quando nosso ordenamento
jurídico se encontra sob a égide dos direitos fundamentais, de progressiva promoção
pelo Estado.

Tais decisões tendem a não abordar as diversas medidas de promoção do


direito à moradia digna devidamente estabelecidos no ordenamento nacional,
principalmente após a promulgação do Estatuto da Cidade, onde inúmeros
instrumentos de promoção ou financiamento da moradia digna se encontram
disponíveis para a aplicação nas cidades brasileiras.

Diante de tal conjuntura normativa, a discricionariedade municipal em relação


à promoção do direito à moradia se encontra mitigada, haja vista que os municípios não
poderão não executar nenhuma medida de promoção ao direito à moradia. Sua
discricionariedade é, então, destinar um mínimo de seu orçamento para a manutenção
de órgãos próprios para a gestão da política urbana e para sistematização das demandas
dos respectivos municípios (como formulação de cadastro único de cidadãos que

333
necessitem de moradia digna).

Assim, é imprescindível que, quando questionados administrativamente ou


judicialmente, os municípios ofereçam respostas que levem em consideração a
complexidade das demandas habitacionais, de modo que demonstrem os
procedimentos adotados, não se limitando à promoção de propriedades individuais,
mas considerando todo o arcabouço jurídico e urbanístico de promoção de habitação
de interesse social ou regularização de moradias precárias com vistas ao asseguramento
do direito à moradia. Essa necessidade de mudança de respostas também deve ser
considerada pelos órgãos do sistema de justiça, a fim de que a completa omissão
municipal não seja legitimada quando judicializada.

Somente assim, com uma abordagem integral do ordenamento jurídico no que


se refere aos direitos fundamentais, é que se garantirão respostas adequadas às
necessidades habitacionais do país.

Por fim, análises futuras deverão buscar compreender a atuação do Poder


Legislativo em fiscalizar a execução da política urbana pelos municípios, considerando
suas competências também delegadas pelo desenho constitucional.

5. REFERÊNCIAS

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334
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336
Ciro Expedito Scheraiber1

CONTROLE DO TABACO:
PUBLICIDADE E COMERCIALIZAÇÃO
DE CIGARROS ELETRÔNICOS2

TOBACCO CONTROL: ADVERTISING AND MARKETING OF


ELECTRONIC CIGARETTES

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Contexto legislativo específico; 3. Cotejo de direitos


fundamentais à saúde; 4. Da reparação de danos pelo cigarro de tabaco; 5. Dispositivo
eletrônico: a denominação de “cigarro eletrônico” está adequada?; 5.1 Por que o cigarro
eletrônico é proibido no Brasil?; 5.2 Cigarros aquecidos – Iqos; 5.3 O tradicional
“narguilé”; 6. Conclusão; 7. Referências bibliográficas.

1
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de
Justiça de Defesa do Consumidor e da Ordem Econômica. Integrante do I Grupo Cível de Procuradorias do MPPR. Graduado pela
PUC/PR em Direito. Especialista em Direito do Consumidor (Verbo Jurídico), em Direito Processual Civil (FESP/IBEJ), e em Ciências
Penais (UFPR).
2 Artigo elaborado com base em palestra realizada pelo Procurador de Justiça Ciro Expedito Scheraiber, no XIX Congresso Nacional do

Ministério Público do Consumidor, da Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor em Maceió/AL, no dia 30 de agosto
de 2019.

337
RESUMO: A presente pesquisa tem por fundamento identificar os principais temas
relacionados à comercialização, importação e publicidade de cigarros, abrangendo as
diversas espécies ofertadas no mercado. Também objetiva incursionar por tópicos
relacionados à responsabilidade civil pelos danos causados pelo usuário crônico, em
especial. Situações diversas são abordadas, a partir do arcabouço protetivo do
consumidor, bem como da caracterização das diversas espécies de dispositivos que, de
forma alternativa ao cigarro tradicional, aperfeiçoam-se por intermédio de novas
tecnologias, tais como aos denominados cigarros eletrônicos e cigarros aquecidos. E,
finalmente, sobre o alcance das normas estabelecidas em lei ou por resoluções da Anvisa,
relacionadas ao tema, no sentido de lhes dar efetividade tanto na prevenção quanto na
repressão aos danos à saúde do usuário, no tocante à dependência à nicotina, em
especial quanto aos danos físicos e psíquicos pela atividade incontida do tabagismo
devido à influência da publicidade massiva, cujo fenômeno funda-se em pesquisas
modernas de neuromarketing.

ABSTRACT: This research aims to identify the main themes related to the marketing,
importation and advertising of cigarettes, covering the various species offered in the
market. It also aims to pursue liability related topics for damages caused by the chronic
user, in particular. Different situations are approached from the consumer's protective
framework, as well as the characterization of the various types of devices that, as an
alternative to traditional cigarettes, improve themselves through new technologies, such
as electronic cigarettes and heated cigarettes. And, finally, about the reach of the norms
established by law or by resolutions of the Anvisa, related to the theme, in order to make
them effective in preventing and repressing harm to the user's health, regarding nicotine
addiction, especially regarding the physical and mental damage caused by the
unrestricted activity of smoking due to the influence of mass advertising, whose
phenomenon is based on modern neuromarketing research.

PALAVRAS-CHAVE: Consumidor; cigarros; tabagismo; publicidade; dependência; danos;


saúde.

KEYWORDS: Consumer; cigarettes; electronic cigarettes; smoking; publicity; dependency;


damage; health.

338
1. INTRODUÇÃO

O tabaco é uma planta originária das Américas, onde já era utilizado por tribos
indígenas, sendo desconhecido pelos europeus até 1498.3 A partir daí começa a história
do tabagismo. E por causa do efeito de dependência do elemento nicotina 4 . oogo o
costume enraizou-se em todas as raças e idades, pelo simples espírito da imitação,
mesmo que causasse danos a saúde.

Socialmente aceito após a Revolução Industrial, foi associado por indução


comercial o hábito de fumar à sedução e ao poder, vez que o exercício da publicidade
sem limites criava links com valores como independência, beleza, charme, virilidade e
rebeldia com o cigarro5.

No entanto, o incremento de estudos levou à verificação de malefícios decorrentes


do consumo do tabaco, passando-se a adotar normas restritivas ao seu uso, em especial
quanto à sua propaganda, dada a evidência de se demostrar haver no tabagismo uma
das maiores causas de mortes evitáveis, exatamente pela reiterada atividade, fator de
dependência química.

O médico pneumologista da Rede D’OR, João Gonçalves Pantoja, sustenta que o


tabagismo constitui-se em epidemia. “A epidemia do tabaco, segundo ele, é uma das
maiores ameaças à saúde pública mundial, matando mais de 7 milhões de pessoas por
ano, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mais de 6 milhões
dessas mortes se devem ao consumo prolongado do cigarro, ao passo que cerca de 890
mil são resultado da exposição ao fumo passivo”.6

Questão importante é diferenciar ato de publicidade ou propaganda de cigarros,


como ato de comércio, pois realizado por fornecedores com o intuito de incremento
mercadológico, com ato de consumo, ou seja, de convencimento ao uso, o qual induz ao

3 SOUZA CRUZ. Pagina Institucional. Brasil. Disponível em: http://www.souzacruz.com.br/group/sites/SOU_AG6LVH.nsf/


vwPagesWebLive/DO9YDBCK. Acesso em 09 out. 2019.
4 “Os termos tabacum e tabaco vêm do nome de um tipo de junco vazado que era usado pelos nativos americanos para inalar o fumo.

Nicotiana vem do nome de um médico francês, Jean Nicot (1530-1600), que introduziu a planta com sucesso na França. Nicot estudou
a fundo os efeitos da nicotina e a recomendava como uma substância que “curava-tudo” (Longenecker, 2002). Jean Nicot remeteu à
Europa sementes e a planta, acreditando que a erva usada pelos índios fosse dotada de propriedades curativas (Valle et al., 2007). Da
Europa, a prática de fumar o tabaco expandiu-se rapidamente para todo o mundo”. Extraído de
https://clinicajorgejaber.com.br/novo/2018/11/principais-efeitos-da-nicotina-em-nosso-corpo/ , com acesso em 31 out. 2019.
5 SOUZA CRUZ. Op. Cit.
6 DE OLIVEIRA ANDRADE, Rodrigo. Cigarros eletrônicos carregam a promessa de ajudar a cessação do tabagismo, mas evidências

apontam riscos à saúde. Revista Onco. Brasil. Disponível em http://revistaonco.com.br/capa-da-fumaca-ao-vapor/. Acesso em


25.08.2019).

339
exercício de defesa do consumidor, na forma da Constituição Federal, artigo 5º, inciso
XXXII, como direito e garantia fundamental.

Mas já antes da CF/1988 não havia nenhum controle da publicidade do tabaco.


Havia sim regulamentações acerca da publicidade em geral, com base na lei de
Propriedade Industrial (o 5772/71).

Segundo estudo de Maria Cecília F. Álvares oeite, mesmo antes do advento do


Código de Defesa do Consumidor, a propaganda é, sim, ato de produção e consumo. A
competência legislativa, portanto, é da União, com competência supletiva dos Estados.
Considerando constituir atividade comercial lícita a venda de fumo e bebidas alcoólicas,
a sua publicidade poderia se dar por quaisquer meio de comunicação. 7 Aí a plena
liberdade publicitária com os abusos que foram se verificando mais e mais.

Dado o incremento no Brasil de medidas de contenção ou de regulação da


publicidade e algumas restrições no uso do tabaco houve a consequente diminuição do
consumo.

O Brasil8 é apontado como modelo para outros países no controle do tabagismo,


segundo declaração de Margaret Chan, médica e ex-diretora geral da OMS, na cerimônia
dos 10 anos de ratificação da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) da
OMS, já que “as ações que foram tomadas pelo país na implementação do tratado
provaram que pressões internas, econômicas e políticas, podem ser superadas. O
resultado é uma redução da prevalência do uso do tabaco no Brasil de 35% no final dos
anos 80 para os atuais 11%”9.

O efeito restritivo tem levado as indústrias fumigeiras a adotar alternativas


tecnológicas visando impedir o arrefecimento do uso, mas antes, sob a motivação de
diminuição da dependência, a apresentar ao mercado cigarros eletrônicos, dispensando

7 LEITE, Maria Cecília F. Álvares, in Revista de Direito Público 63/200 jul set 82, já ensinava que a atividade de propaganda não é ato de
comércio, com base na Lei de |Propriedade Industrial (L 5772/71).
8 É um dos primeiros países a alcançar o mais alto nível das seis medidas MPOWER de controle do tabaco. Isso significa ter conseguido

implementar as melhores práticas no cumprimento das estratégias preconizadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Divulgado
durante o lançamento do Relatório da OMS sobre Epidemia Mundial do Tabaco, o resultado corrobora a posição do país como
referência internacional no combate ao tabagismo. Esta 7ª edição do informe revelou que, dentre os 171 países que aderiram às
medidas globais da OMS, apenas o Brasil se juntou à Turquia, como as duas únicas nações do mundo a implementarem ações
governamentais de sucesso. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/relatorio-da-oms-sobre-tabaco-destaca-brasil. Acesso em:
11 out. 2019.
9 OPAS BRASIL. Página Institucional. Brasil. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com
_joomlabook&view=topic&id=202 . Acesso em: 09 out. 2019.

340
o tabaco, ou cigarros com menos queima, como o Iqos, os chamados cigarros
aquecidos.Tais tecnologias, se de um lado não evitam o uso de nicotina, indutor da
dependência, tem causado novas doenças pulmonares com mortes, e, o que é
interessante: com aumento expressivo do lucro. É nesse contexto que se examina que
o arcabouço legal das restrições normativas sobre publicidade de cigarros se aplicam
amplamente aos novos dispositivos chamados de cigarros, com a mesma efetividade da
atividade de propaganda do cigarro oriundo do tabaco”.

Nessa perspectiva, considerando o tabagismo como um grave problema de saúde


pública, o presente trabalho enfrentará, além da questão do controle da publicidade ou
propaganda, as seguintes questões: (i) cotejo de direitos fundamentais; (ii) dispositivos
eletrônicos: cigarro eletrônico, cigarro aquecido e narguilé; (iii) responsabilidade civil e
o direito a indenização.

2. CONTEXTO LEGISLATIVO ESPECÍFICO

Foi a partir da Constituição Federal de 1988 que o comando regulatório da


publicidade ou propaganda10 teve fundamento normativo, e normativo constitucional.

O artigo 220 da Constituição Federal dispõe que:

“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação,


sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.”

E no § 4º:

“A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos,


medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos
do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário,
advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso”.

Então, leis voltadas ao combate ao fumo surgiram a partir da década de 90,


destacando-se a oei nº 9.294 11 , de 15 de julho de 1996, de restrições ao uso e a

10 Para a tutela das relações de consumo, a partir do Código de Defesa do Consumidor, propaganda e publicidade têm o mesmo
sentido. O sentido de advertência comercial, não ideológica, cultural, nem religiosa, por exemplo.
11 Assim é a ementa da Lei 9.294/1996: “Dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas,

medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220 da Constituição Federal.

341
propaganda dos chamados produtos fumígeros, como cigarro, cigarrilha, charuto e
cachimbo. E essa lei vem sendo adaptada para ampliar as restrições.

Justifica-se o ampliar das restrições, principalmente devido aos subterfúgios da


indústria que, para proporcionar efeitos atrativos ao uso de cigarros, passou a aplicar
aditivos que dão sabor e odor ao ato de fumar, como de hortelã, chocolates e outros. Foi
proibida essa utilização pela Resolução 14, de 15/03/2012, da ANVISA, dado o potencial
danoso. Neste particular, apresentou-se uma ADIn em face do diploma normativo.
Obteve-se liminar, e em julgamento recente empatou o STF em 5 (cinco) votos,
permanecendo a questão em aberto.

Em 2011, por nova e importante disposição legal, houve a proibição de se fumar


em ambientes coletivos fechados.

Com intento mais drástico, visando a cessação da prática, atualmente, o projeto


de lei PoS 769/2015, de autoria do senador José Serra (PSDB-SP) pretende a modificação
da legislação da propaganda atual, ementando que:

“Altera a oei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, para vedar a propaganda


de cigarros ou qualquer outro produto fumígeno e o uso de aditivos
que confiram sabor e aroma a estes produtos, bem como estabelecer
padrão gráfico único das embalagens de produtos fumígenos; altera a
oei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro),
para configurar como infração de trânsito o ato de fumar em veículos
quando houver passageiros menores de dezoito anos; e dá outras
providências”.

O projeto de lei está, por informação de 08.08.2019, na Secretaria oegislativa do


Plenário do Senado Federal.12

Todo esse esforço restritivo foi de certa forma exitoso, pois segundo o Ministério
da Saúde, no período entre 1990 e 2015, o percentual de fumantes diários no Brasil caiu
de 29% para 12% entre os homens e de 19% para 8% entre as mulheres.

12 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n° 769, de 2015. Extraído de


https://noticias.reclameaqui.com.br/noticias/projeto-de-lei-proibe-toda-e-qualquer-propaganda-de-cigarros_3460/). Acesso em 10
out. 2019.

342
3. COTEJO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS À SAÚDE

A Constituição Federal tratou a saúde como direito social, fundamental, individual


e coletivo e o assegurou a todos como dever do Estado, devendo ser garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças, conforme
estabelece nos artigos 6º e 196.

E tais prerrogativas de direitos sociais constituem-se em cláusulas pétreas, por


força da Ação Direta de Inconstitucionalidade do STF nº 939-7/DF, em uma interpretação
extensiva do artigo 60, § 4o da Constituição Federal.13

Em reafirmação doutrinária, vale referir Paulo Bonavides14, o qual entende que “os
direitos sociais não são apenas justificáveis, mas são providos, no ordenamento
constitucional da garantia da suprema rigidez do §4.º do art. 60”, de maneira que estes
direitos são intangíveis e irredutíveis, ou seja, tanto lei ordinária, como emenda
Constitucional que restrinjam ou abolirem direitos sociais, comportará vicio de
inconstitucionalidade.15

Cabe ressaltar, ainda, que a Constituição Federal, em seu artigo 1o, III, estabeleceu
como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade humana, que é um
valor inerente à pessoa, intimamente ligado ao direito à vida, também previsto como
direito fundamental mais importante no artigo 5º, uma vez que é basilar para o exercício
dos demais, inclusive o direito à saúde.16

Nas relações de consumo, estabelecido foi que é Política Nacional das Relações de
Consumo os direitos à vida, saúde, segurança e dignidade da pessoa humana, cujos
direitos foram erigidos a categoria de direitos básicos do consumidor, conforme se
depreende dos arts. 4º e 6º, I do Código de Defesa do Consumidor, assim como também
representa Política Nacional o disposto nos artigos 8º, 9º e 10, fixadores das diretrizes
em relação aos deveres de informar sobre os riscos à saúde e segurança dos
consumidores.

13
NEVES JÚNIOR, Fávio Martins Alves. Curso de Direito Constitucional [livro eletrônico] - 2a ed. - São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2018
14 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000.
15 PIOVESAN, Flávia. Direito à Saúde e o Dever de Informar Direito à Prova e a Responsabilidade Civil das Empresas de Tabaco. Revista

de Direito do Consumidor. (SL) vol. 5. p. 99 – 128. Abr / 2011.


16 DE ÁVILA, Marília. SAMPAIO, Silva. Tabagismo, livre arbítrio e dignidade da pessoa humana: Parâmetros científicos e dogmáticos

para (re)pesar a jurisprudência brasileira sobre o tema. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 49 n. 193 jan./mar. 2012

343
Ocorre que a estratégia da indústria tabagista nunca foi pródiga nas informações
acerca dos malefícios do consumo de tabaco, pelo contrário, as publicidades
tradicionalmente associavam o produto à saúde, à prática de esportes, à juventude, à
beleza, ao lazer e ao prazer.

No entanto, o direito a saúde está essencialmente relacionado ao direito de


informação, na esteira das escorreitas lições de Piovesan, de que:17

“o direito à saúde requer o dever de informar, sobretudo em situações


que lancem grave risco à saúde pública. Sob o prisma preventivo, o
acesso à informação é uma dimensão essencial à efetividade do direito
à saúde, especialmente no caso do tabaco – considerado grave
problema de saúde pública”.

Conforme relatório da Organização Mundial da Saúde também, o consumo do


tabaco vem diminuindo, no entanto a redução ainda não é suficiente para atingir as
metas estabelecidas globalmente para proteger as pessoas da morte e de doenças
cardiovasculares e outras doenças crônicas.18 Ainda, segundo a OMS, o tabaco mata
mais de 8 milhões de pessoas por ano, sendo que mais de 7 milhões desses óbitos são
de fumantes ativos, enquanto mais de 1 milhão de mortes é de pessoas expostas ao
fumo passivamente,19 constatando-se, portanto, em grave problema de saúde pública.

A neurociência tem contribuído mais fortemente face aos avanços dos meios de
investigações de modo a demonstrar tendências neurológicas diversas das pessoas. E no
campo da publicidade, o neuromarketing tem oferecido vasto campo de exploração,
pelo qual os fornecedores elegem seus alvos, visando alcançar mais eficientemente seus
propósitos mercadológicos.

O publicitário dinamarquês Martin oindstrom, radicado em Sidney, é uma das


autoridades que mais estudam o fenômeno dos efeitos da neurologia na publicidade

17
PIOVESAN, Flávia. Direito à Saúde e o Dever de Informar Direito à Prova e a Responsabilidade Civil das Empresas de Tabaco.
Revista de Direito do Consumidor. (SL) vol. 5. p. 99 – 128. Abr / 2011.
18 OPAS Brasil. Página Institucional. Brasil. Disponível em
<https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5688:consumo-de-tabaco-esta-diminuindo-mas-
ritmo-de-reducao-ainda-e-insuficiente-alerta-novo-relatorio-da-oms&Itemid=839> Acesso em 14 out. 2019.
19 OPAS BRASIL. Página Institucional. Brasil. Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_joomlabook&view=topic&id=202 . Acesso em: 09 out. 2019.

344
comercial. Em um de seus livros20, ele narra, em pesquisa que acompanhou, que por
vezes o comprometimento neurológico é tal, que as advertências contrárias não geram
efeito. Cita o grau zero dos efeitos das informações nas laterais, frente e verso das caixas
de cigarros, inclusive com as imagens ou fotografias repulsivas de danos físicos nos
fumantes. Descreveu sua impressão nestes termos:

“Em suma, os resultados do IRMf (aparelho de eletroencefalograma –


anotei) mostraram que as imagens de advertências sobre cigarros não
apenas fracassavam em desestimular o fumo, mas, ao ativarem o
nucleus accumbens, aparentemente encorajavam os fumantes a
acender um cigarro. Não pudemos deixar de concluir que aquelas
mesmas imagens de advertência sobre cigarros que visavam limitar o
fumo, reduzir a incidência de câncer e salva vidas haviam, pelo
contrário, se tornado um assustador instrumento de marketing para a
indústra do tabaco”.

De tão evidente, o tabagismo é classificado como doença no Código Internacional


de Doenças (CID-10), no grupo de transtornos mentais e de comportamentos
decorrentes do uso de substâncias psicoativas 21 . Considerado como doença, o
tabagismo é, portanto, custeado pelo Sistema único de Saúde – SUS.

A Advocacia-Geral da União ajuizou recentemente Ação Civil Pública nº 5030568-


38.2019.4.04.7100 em face das fabricantes de cigarro para que ressarçam aos cofres
públicos os gastos que a rede pública de saúde (SUS) teve com os tratamentos de
doenças causadas pelo consumo de tabaco nos últimos cinco anos. Ademais, pleiteou
indenização por danos morais coletivos, posto que as fabricantes de cigarros omitiram
os efeitos nocivos causadores pelo consumo do tabaco.

Todos esses fatos e índices de dispêndios com tratamentos devido ao uso do


cigarro ao longo dos anos direcionam a entender que o tabagismo tem viés econômico
que demanda ações preventivas de toda ordem, bem como demanda reparações

20 LINDSTROM, Martin. A lógica do consumo: verdades e mentiras sobre por que compramos. Tradução Marcello Lino, RJ, Ed.
HarperCollins Brasil, 2016, p. 22.
21 PASQUALOTTO, Adalberto. A Convenção Quadro Para o Controle do Tabaco Como Reforço da Constitucionalidade da Proibição da

Publicidade de Tabaco. Revista de Direito do Consumidor. (SL). Vol. 91. p. 169 – 208. Jan – Fev. 2014.

345
públicas e privadas, considerando que, apesar de se configurar prática de ato lícito, não
está a atividade isenta de responsabilidade pelos riscos verificáveis.

4. DA REPARAÇÃO DE DANOS PELO CIGARRO DE TABACO

Mesmo considerando a classificação do produto cigarro em tradicional e


eletrônico, não vemos dificuldade em considerar que é produto de risco, que detém vício
de qualidade por insegurança, na esteira do artigo 9º do Código de Defesa do
Consumidor, ligado aos danos físico-psíquicos do consumidor. A falta de advertência na
forma da legislação local de consumo e nas embalagens do produto pode levar a
indenização, considerando que a publicidade agora não é mais livre como ocorria
precedentemente à Constituição Federal de 1988. E até porque não se considera que o
fumo carregue um vício inerente.

Com alvo em tal possibilidade, várias ações civis individuais e públicas buscaram
esse desiderato, pelas vítimas diretamente ou por intermédio de familiares de pessoas
falecidas, sob o fundamento de que as doenças que causaram danos que levaram as
vítimas à morte, vítimas do uso incentivado, estimulado, com omissão da informação
dos malefícios do fumo. E, mais, subentendendo que fumar é apropriado e que faz
inserir o usuário no contexto social-histórico desse costume.

Em importante investigação estatística a Aliança de Controle do Tabagismo refere


que até 2009, entre ações individuais e coletivas, 70% delas são desfavoráveis às vítimas
e sucessores, e só as demais, total ou parcialmente, favoráveis. Ainda, 95,8% teve como
ré a Souza Cruz e as demais a Philip Morris, basicamente. Em 81% dos casos, aparece
como motivação ou fundamentação da ação: “vício”, “falta de informação” e
“publicidade” e ainda o próprio “hábito” de fumar22.

Das doenças, prevalece o câncer como a mais recorrente, outras como enfisema
pulmonar, insuficiência respiratória e cardiopatia isquêmica.

Recentemente, favoravelmente ao consumidor, o Tribunal de Justiça do Rio


Grande do Sul decidiu que há vício do produto e que não exclui o nexo causal o uso

22LAZZARINI SALAZAR, Andrea; BOZOLA GROU, Karina. Ações Indenizatórias Contra a Indústria do Tabaco: Estudos de Casos e
Jusrisprudência. Aliança Controle Tabagismo, 2011, p. 9.

346
reiterado, levando em conta, em juízo de probabilidade, o percentual elevado de
doenças verificáveis. E o livre arbítrio, assacado como defesa das indústrias fumageiras,
também não foi considerado, pois a maioria começa a fumar na adolescência, quando
há imaturidade emocional, por igual.

Também não se admite que o vício seja inerente ao produto, o qual refoge de
cuidados específicos do consumidor, e induzidor do comprometimento de sua saúde, tal
qual dos chamados “fumantes passivos”.

Pois bem, resta saber se o STJ vai confirmar tal decisão, haja vista histórico
recente de reforma das decisões favoráveis aos consumidores, em primeiro grau de
jurisdição.

Forte no argumento de que não há nexo causal direto entre o ato de fumar com
os danos à saúde, as empresas fumageiras sustentam que há fatores diversificados a
influenciar, de forma a não evidenciar ser o tabagismo a única causa.

Neste aspecto, rechaçando a argumentação, o magistrado Altair Guerra da


Costa23 sustenta:

“da análise do problema do nexo de causalidade sob uma nova


perspectiva, tendencionalmente mais razoável, racional e, sobretudo,
justa, chego à conclusão de que o nexo causal, nas ações intentadas
contra as tabaqueiras, é apurável a partir da imputação objetiva,
compreendida a causa como a conduta do lesante que, de maneira
voluntária, criou ou edificou uma esfera de risco potencialmente capaz
de produzir o dano, admitindo-se aprioristicamente ou de maneira
prefacial, por consequência, o liame (nexo potencial) entre o dano e a
lesão, resultando essa solução da presunção juris tantum da causa
razoável e racionalmente provável, com inversão do ônus da prova, de
modo a abrir oportunidade para o suposto lesante demonstrar o fato
extintivo do direito do lesado, vale dizer, a prova de que o dano deriva
de outra causa, a ele não imputável”.

Transita, portanto, o autor, na seara da vulnerabilidade do consumidor. A prova


do nexo causal por conta do consumidor é daquelas que se classificam como “diabólica”.

23COSTA, Altair Guerra da. O tabagismo na perspectiva da responsabilidade civil. Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo – v.1,
n.1, (mar. 2011), Curitiba: Bonijuris, 2011, página 169.

347
Dado a isso, com acerto, refere que o liame causal é presunção juris tantum só derrubado
pela parte requerida, em inversão do ônus probatório.

Ainda releva notar que o Brasil aderiu à Convenção Quadro para o Controle do
Tabaco. A Convenção Quadro para o Controle do Tabaco é um tratado internacional,
celebrado com o apoio da Organização Mundial de Saúde, ratificada pelo Brasil desde
que entrou em vigor no ano de 2005.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde o consumo do tabaco diminuiu


significativamente desde o ano de 2000, contudo, essa redução ainda é insuficiente para
atingir as metas acordadas globalmente para proteger as pessoas da morte e do
sofrimento causado pelas inúmeras doenças causas pelo fumo.

Vale o registro do esforço na defesa coletiva dos interesses, sobressaindo-se a


informação de que, neste ano, a AGU ingressou com Ação Civil Pública em nome da
União em face das duas empresas e suas mantenedoras internacionais, visando ao
“ressarcimento ao SUS dos gastos com o tratamento de doenças causadas pelo fumo”.
Então, aqui o objeto não é o benefício das vítimas ou sucessores, mas o alto dispêndio
do Estado com a saúde abalada pelos malefícios do fumo.

Pois bem, feitas essas notas, seguimos mais especificamente no objeto principal
do assunto: o cigarro eletrônico e o cigarro aquecido, dentre outras formas alternativas
de fumar.

5. DISPOSITIVO ELETRÔNICO: A DENOMINAÇÃO DE “CIGARRO ELETRÔNICO” ESTÁ


ADEQUADA?

A maior vigilância do consumidor, em tempos mais recentes, determinador da


queda do consumo do cigarro tradicional fez com que a indústria viesse a diversificar a
oferta de meios tabagistas, sempre com vistas ao elevado lucro, não com a preocupação
de manter o mercado simplesmente, mas de ampliação dos horizontes comerciais,
socorrendo-se de inovações tecnológicas, tais como a do cigarro eletrônico, o e-cigarrete,
todavia sem abrir mão da dependência química, asseguradora de clientela certeira.

É comum denominar-se tal dispositivo, de “vaporizador” ou vaper. Na essência,


tanto o tradicional como o eletrônico podem ser chamados de “cigarros”, de fato.

348
O cigarro eletrônico dispensa tabaco, mas não necessariamente a nicotina.
Conheça o que traz o cigarro eletrônico e qual é sua estrutura24.

O cigarro eletrônico é constituído de um aparelho alimentado por bateria de lítio


recarregável. Aparentemente, conta com uma ponteira, funcionando como uma piteira
e, na parte interna, um tanque onde é inserido o líquido, quase sempre composto de
propilenoglicol, glicerina vegetal, água, nicotina e, opcionalmente, aromatizantes – os
compostos e as concentrações variam de fabricante para fabricante. Ainda, de uma
bateria, um chip ou placa de controle e um atomizador, pelo qual o fluído é transformado
em átomos que se expandem em forma de vapor.

Diferentemente do cigarro tradicional, não ocorre a queima de tabaco que


produz milhares de substâncias tóxicas e cancerígenas, tanto para o fumante ativo
quanto para o fumante passivo, entre eles o monóxido de carbono (fator de risco para
infarto) e os alcaloides do alcatrão (agentes cancerígenos)25.

O fato da fumaça no cigarro tradicional 26 originar-se da queima e o vapor no


eletrônico ser produzido por dispositivo nebulizador, e ambos serem inalados,
circulando pelo sistema respiratório, a partir do qual é expelida a fumaça ou o vapor com

24 O PODEROSO VAPOR, O QUE É e COMO FUNCIONA // Cigarro Eletrônico // Começando no Vape – Parte 1. 2017 (7m26s).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qF6S5K7UWyA. Acesso em 10 JUL. 2019.
25 ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA. Posição da AMB quanto aos dispositivos eletrônicos para entrega de nicotina (cigarros eletrônicos

e cigarros aquecidos), ref. Resolução RDC 46/2009, da ANVISA. Brasil. Disponível em:
http://portal.anvisa.gov.br/documents/219201/2782895/28.07.2017+Carta+-+AMB++-++Cigarros+Eletr%C3%B4nicos.pdf/eef5af78-
5d90-4502-908c-b37b4355dccc. Acesso em 09 out. 2019.
26 “O cigarro como o conhecemos hoje, trazendo as folhas picadas e enroladas em papel, surgiu de uma improvisação européia. No

século XVI, os mendigos de Sevilha, na Espanha, que não tinham dinheiro para comprar os já tradicionais charutos, enrolavam em tiras
de papel o conteúdo das pontas descartadas nas ruas”. (SAMOR, Geraldo. Correio Braziliense. Brasil. Disponível em:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2018/07/04/internas_economia,692712/cigarro-eletronico-da-moda-
juul-labs-vale-us-16-bilhoes.shtml. Acesso em 30 ago. 2019).

349
a característica esbranquiçada, dá o efeito de “cigarro”. Aos dois sistemas, a nicotina
proporciona vício ou dependência. Mas o alcatrão ocasionado pela queima do tabaco no
cigarro tradicional causa malefícios aos pulmões e a doenças várias, principalmente o
câncer.

Pois bem, pelo cigarro eletrônico, com a utilização de substâncias “flavorizantes”


e que gera a vaporização, tem-se já evidências de danos sérios à saúde. O incremento
do mercado de cigarros eletrônicos é muito forte, superando as fábricas tradicionais de
cigarros comuns. Só pra referir, a Jull Labs nos EUA já vale US$16 bilhões, com
crescimento de 700 (setecentos) por cento no primeiro trimestre do ano passado, em
relação ao anterior, e detém cerca de 60% do mercado de cigarros eletrônicos27.

5.1 Por que o cigarro eletrônico é proibido no Brasil?

Por força da RDC nº 46/2009 da ANVISA, a “comercialização, importação e


propaganda” desses dispositivos estão proibidos no Brasil, inclusive acessórios e refis
destinados ao uso desses aparelhos.

Esta norma traz as seguintes proibições:

Art. 1º Fica proibida a comercialização, a importação e a propaganda


de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como
cigarros eletrônicos, e-cigaretes, e-ciggy, ecigar, entre outros,
especialmente os que alegam substituição de cigarro, cigarrilha,
charuto, cachimbo e similares no hábito de fumar ou objetivem
alternativa ao tratamento do tabagismo.

27 SAMOR, Geraldo. Brazil Journal. Brasil. Disponível em https://braziljournal.com/juul-o-cigarro-eletronico-cool-ja-vale-us-16-bi.


Acesso em 30 out. 2019. “Rio — A Juul Labs, que fabrica a maior marca de cigarros eletrônicos dos Estados Unidos, acaba de levantar
US$ 1,2 bilhão numa nova rodada de investimentos que avaliou a startup de São Francisco em US$ 16 bilhões. Entre seus acionistas
estão o Tiger Global Management, que lidera o aporte de recursos, e a Fidelity Investments. Com os recursos, a companhia, que já era
observada pelos gigantes da indústria de cigarros — a British American Tobacco (BAT), a Altria e a Philip Morris International — ganha
musculatura e pode ameaçar seus concorrentes do mercado tradicional de tabaco.Segundo o site The Information, o faturamento da
Juul cresceu mais de 700% no primeiro trimestre, comparado ao mesmo período do ano passado. A consultoria Nielsen diz que a
empresa já tem mais de 60% do mercado americano de cigarros eletrônicos. O objetivo da captação de recursos é levar a Juul para
outros países. Fundada em 2015, a Juul vende um cigarro eletrônico que se apresenta como alternativa ao tradicional. O produto, que
parece um pen drive, viralizou nas ‘high schools’ americanas graças a seu cool factor: os cartuchos de nicotina líquida vêm em sabores
esdrúxulos, como manga ou crème brûlée. Mas, a roupagem hi-tech esconde o perigo: um cartucho é o equivalente a fumar um maço
de 20 cigarros, ou 240 miligramas de nicotina. A embalagem parece um produto da Apple, e o kit de entrada custa US$ 49,99.“Ninguém
mais fuma cigarros,” disse um aluno de ‘high school’ ao The New York Times em uma reportagem publicada recente. “Você vai ao
banheiro e a chance é zero de que alguém esteja fumando um cigarro lá, mas há 50% de chance de que haja cinco caras ‘juuling’. Hoje,
o Juul está para o ‘vaping’ assim como o band-aid está para o curativo, ou seja, virou sinônimo”. Os cigarros eletrônicos também são
conhecidos assim porque emitem vapor em vez de fumaça. Enquanto o mercado tradicional só encolhe – o volume de cigarros
vendidos nos EUA caiu 4,2% no primeiro trimestre – a Juul só faz roubar participação. Em outubro do ano passado, a startup tinha
cerca de 33% do mercado, a BAT era dona de 27% e a Altria, 15%. Sete meses depois, a Juul já tinha 64% e a BAT, apenas 13,5%”.

350
As justificativas para a proibição são, de fato, a ausência de segurança científica
de que tais dispositivos não oferecem riscos à saúde dos usuários, ou oferecem menos
riscos que o cigarro tradicional. O cigarro eletrônico surgiu como uma promessa de
auxílio para quem deseja parar de fumar, entretanto, segundo a Anvisa, não existem
estudos que comprovam a segurança do produto.

Em julho de 2017, a Anvisa recebeu um documento de apoio da Associação


Médica Brasileira (AMB) e das Sociedades Médicas a ela filiadas à proibição dos
Dispositivos Eletrônicos no Brasil. O texto aborda quão nocivo pode ser o uso do cigarro
eletrônico para a saúde do usuário. A AMB também destaca o poder do produto para
atrair usuários jovens, instigando o hábito de fumar, funcionando de maneira contrária
ao que foi proposto28.

Em relação aos males que o e-cigarrete vem causando, muito recentemente, nos
Estados Unidos, que não possui proibição expressa, já foram registrados mais de 450
casos em 33 Estados americanos nos últimos meses uma grave e misteriosa doença
pulmonar ligada ao uso de e-cigarretes (com nicotina e THC-tetra-hidrocanabinol,
componente psicoativo da maconha), com 6 mortes confirmadas29.

De acordo com a médica epidemiologista chefe do Departamento de Saúde


Pública de Illinois, Estado onde surgiu o primeiro relato da doença, em artigo na revista
científica The New England Journal of Medicine, “todos os pacientes e/ou vítimas tinham
histórico de uso de cigarros eletrônicos e produtos relacionados no período de 90 dias
antes do surgimento dos sintomas”30. Agora denominou-se a doença oriunda do cigarro
eletrônico de “EVAoI. A sigla, em inglês, representa “E-cigarette or Vaping product use-
Associated Lung Injury”, ou lesão pulmonar associada ao uso de cigarro eletrônico ou
produto para vapear31."

28 SETOR SAÚDE. Porque cigarro eletrônico é proibido no Brasil. Brasil. Disponível em: https://setorsaude.com.br/porque-o-cigarro-
eletronico-e-proibido-no-brasil/. Acesso em 30 out. 2019.
29 BBC, Globo.com. Brasil. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2019/09/12/a-misteriosa-doenca-ligada-a-cigarros-

eletronicos-que-ja-matou-seis-pessoas-nos-eua.ghtml. Acesso em: 10 out. 2019.


30 BBC. Op. Cit.
31 GAZETA DO POVO. Médicos dão nome à doença do cigarro eletrônico que matou 26 norte-americanos. Brasil. Disponível em:

https://www.gazetadopovo.com.br/viver-bem/saude-e-bem-estar/medicos-dao-nome-a-doenca-do-cigarro-eletronico-que-matou-
26-pessoas. Acesso em 30 out. 2019.

351
5.2 Cigarros aquecidos – IQOS

A Philip Morris, que segundo artigo da Revista Exame 32 , quer diversificar sua
produção, sob o pretexto da redução de danos pelo uso do tabaco, fato que admite ser
nocivo, atira-se na produção de dispositivos que afastem a combustão de matéria
orgânica. Assim, tem o objetivo de “gerar o contato com a nicotina do tabaco sem a
necessidade de queimá-lo”. oança no mercado o chamado Iqos, sigla de I Quit Original
Smoking (eu deixei de fumar o cigarro original), cujo produto constitui-se em cigarro,
que utiliza tabaco sem operar combustão.

De acordo com a Philip Moris International33, o Iqos é um aparelho que aquece


o tabaco o suficiente para liberar um vapor contendo nicotina, sem que haja a queima
do tabaco. Afirma que como o tabaco é aquecido a temperaturas muito mais baixas (até
350 °C) que a queima de um cigarro convencional (que podem ser a superiores 600 °C)
e que os níveis de produtos químicos nocivos são significativamente menores em
comparação com a fumaça do cigarro.

Confira a figura em que é possível visualizar a estrutura do funcionamento dos


cigarros aquecidos:

A estratégia de marketing da empresa é fazer parecer que o produto possa ajudar


as pessoas a parar de fumar. No entanto, apenas alterou a aparência dos cigarros
convencionais, vez que a nicotina e outros componentes prejudiciais continuam lá34.

32
DESIDÉRIO, Mariana. Exame. Brasil. Disponível em: https://exame.abril.com.br/negocios/a-philip-morris-criou-o-problema-agora-
quer-vender-a-solucao/. Acesso em 31 out. 2019.
33 PHILIP MORRIS INTERNATIONAL. Página Institucional. U.S. Disponível em: https://www.pmi.com/smoke-free-products/iqos-our-

tobacco-heating-system. Acesso em 16 out. 2019.


34 INSTITUTO DE ADMINISTRAÇÃO DA SAÚDE E ASSUNTOS SOCIAIS, IP-RAM/UCAD, Página Institucional. Brasil. Disponível em:

http://iasaude.pt/index.php/informacao-documentacao/comunicacao-social/recortes-de-imprensa/5727-iqos-isso-e-que-era-bom.
Acesso em 16 out. 2019.

352
Em estudo publicado em 2017 35 , identificou-se a presença de monóxido de
carbono, de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e de compostos orgânicos voláteis.
Os autores do estudo relataram que, apesar das substâncias tóxicas encontradas em
menor concentração em comparação aos cigarros convencionais, ainda sim apresentam
risco a saúde36. O estudo informou ainda, que a fumaça do IQOS possuía 84% da nicotina
encontrada na fumaça de cigarro convencional.

Cabe destacar ainda, que para especialistas portugueses 37 o uso dos cigarros
aquecidos permite imitar o comportamento dos fumantes de cigarro convencional, por
isso, há “o risco de os fumadores alterarem o seu consumo para estes novos produtos
em vez de tentarem parar de fumar”. Pior, quem fuma, corre ainda o risco de somar um
novo vício ao tabaco convencional, alternando o consumo entre os dois. E, ainda, se não
fuma pode ter a “tentação” de fumar, e isto também se aplica a menores de idade, que
podem considerar o uso do tabaco aquecido no início de hábitos tabágicos.

Portanto, o nome dado ao produto “Iqos – eu deixei de fumar o cigarro original”,


não se mostra adequado, uma vez que é capaz de introduzir as pessoas a um novo vício,
a chamada prática “dual”.

Por outra, o cigarro aquecido também usa de dispositivo eletrônico no sentido


dado pela RDC 46/2009 da Anvisa. De consequência, também a sua comercialização está
vedada no Brasil, além, evidentemente, da restrição de sua “propaganda” na forma da
oei 9294/96 38 . Para este efeito, considera-se que há na sua estrutura dispositivo
eletrônico que proporciona o aquecimento do tabaco, embora não a sua queima, como
no cigarro tradicional.

35 AUER et. al. Heat-Not-Burn Tobacco Cigarettes: Smoke by Any Other Name. JAMA Intern Med. Publish online May 22, 2017.
Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5543320/. Acesso em 16 out. 2019.
36
ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA. Posição da AMB quanto aos dispositivos eletrônicos para entrega de nicotina (cigarros eletrônicos
e cigarros aquecidos), ref. Resolução RDC 46/2009, da ANVISA. Brasil. Disponível em:
http://portal.anvisa.gov.br/documents/219201/2782895/28.07.2017+Carta+-+AMB++-++Cigarros+Eletr%C3%B4nicos.pdf/eef5af78-
5d90-4502-908c-b37b4355dccc. Acesso em 09 out. 2019.
37 TEIXEIRA, Tânia, Observador. Portugal. Disponível em: https://observador.pt/2019/04/02/tabaco-aquecido-tem-riscos-graves-para-

a-saude-segundo-especialistas-portugueses/. Acesso em 16 out. 2019.


38 Veja-se a propósito da argumentação, o que foi supra mencionado a respeito do cigarro eletrônico.

353
5.3 O tradicional “narguilé”

O narguilé foi inventado na Índia pelo médico


Hakim Abul Fath, no reinado do Imperador
Akbar, como um método de usar o tabaco que
pretendia ser menos prejudicial que os cigarros
convencionais. O narguilé também conhecido
como narghileh, shisha ou hookah é um
dispositivo para fumar que inclui um fornilho (no
qual é colocado o tabaco), um corpo, um vaso
para água e uma mangueira e uma boca39. Não
se confundem com os dispositivos eletrônicos,
pois nestes não há a combustão de carvão. Tem as características da imagem40 ao lado.

Em geral se usa com tabaco e se utiliza de carvão. Pode ser utilizado sem tabaco,
com outras ervas. Mas, independentemente, a queima do carvão também causa danos
aos pulmões dos usuários, haja vista a ingestão de resíduos tóxicos. 41

Os efeitos do uso do cachimbo denominado narguilé, são similares aos mesmos


dos cigarros tradicionais com potenciais agravantes à saúde. O Ministério da Saúde
reporta que a Organização Mundial da Saúde, uma sessão de narguilé com duração de
20 a 80 minutos pode corresponder à exposição aos componentes tóxicos presentes na
fumaça de 100 a 200 cigarros. Além dos malefícios causados pela fumaça, o
compartilhamento do narguilé com outros usuários pode expor o fumante a alguns riscos
particulares, como o de contrair doenças infecciosas como herpes, hepatites virais e
tuberculose42.

39 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Uso de narguilé: efeitos sobre a saúde,
necessidades de pesquisa e ações recomendadas para legisladores. Brasil. Disponível em:
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161991/9789241508469-
por.pdf;jsessionid=8B67E2564B43E80746626CCB005AA17B?. Acesso em: 01 nov. 2019.
40 NICÉSIO, Raphael Gonçalves. Biomedicina Brasil. Brasil. Disponível em: https://www.biomedicinabrasil.com/2012/09/riscos-e-

maleficios-do-narguile.html. Acesso em 31 out. 2019.


41 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Você sabia que uma hora de narguilé equivale a 100 cigarros? Brasil. Disponível em:

http://www.blog.saude.gov.br/promocao-da-saude/50145-voce-sabia-que-uma-hora-de-narguile-equivale-a-100-cigarros. Acesso
em 31 out. 2019.
42 Idem.

354
A cada tragada de um cigarro convencional, o fumante ingere mais de 4.700
substâncias tóxicas e, a maioria delas, cancerígenas. Essas substâncias também são
ingeridas por quem usa o narguilé e as consequências danosas, assim como o
desenvolvimento de vários tipos de cânceres e a dependência, são as mesmas.

De igual forma, à divulgação e publicidade do aparelho narguilé, pela


característica que apresenta, qual seja a queima de ervas, sujeitam-se aos ditames da
legislação específica 43 . E, tanto quanto incide a responsabilidade pelos danos por
insegurança ao cigarro tradicional, ao narguilé também pelo mesmo motivo, por força
dos princípios normativos da tutela das relações de consumo, dispostos no Código de
Defesa do Consumidor.

6. CONCLUSÕES

A lei trata da restrição à propaganda de qualquer produto fumígeno, derivado ou


não do tabaco. Portanto, é abrangente. Ocorre aqui o fenômeno do diálogo positivo das
fontes44, ou seja, à publicidade de todas as modalidades de cigarros está já regulada na
forma da oei nº 9.294, de 15 de julho de 1996 (com as alterações que se seguiram).

Aos chamados cigarros eletrônicos, a cuja categoria se inclui o Iqos, há expressa


proibição de “comercialização, importação e propaganda” por força da RDC 46/2009 da
Anvisa. Portanto, a estes soma-se a proibição de comercialização e distribuição. Em
diálogo das fontes entre a oei e a Resolução, uma vez que as normas não se excluem,
antes se completam, a normativa da Anvisa aos eletrônicos proíbe a publicidade, não
meramente a regula ou restringe.

43Vide artigo 3º da Lei nº 9.294/96.


44Pelo diálogo das fontes, o ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma unitária. Foi idealizada na Alemanha pelo jurista
Erik Jayme, professor da Universidade de Helderberg e trazida ao Brasil por Cláudia Lima Marques. A teoria surge para fomentar a
ideia de que o Direito deve ser interpretado como um todo de forma sistemática e coordenada. Uma norma jurídica não excluiria a
aplicação da outra. A jurista fundamenta a teoria para que se possa solucionar conflitos de normas jurídicas de forma sistemática e
coordenada, segundo ela “'Diálogo’ porque há influências recíprocas, ‘diálogo’ porque há aplicação conjunta das duas normas ao
mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção pela fonte prevalente ou
mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato – solução flexível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a
solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamento diferente dos diferentes)”. MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do
consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. Antonio Herman V. Benjamin, Claudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2009, p. 89/90.

355
Agradecimentos:

A toda a equipe do CAOPCON-OE – Centro de Apoio Operacional das


Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor e da Ordem
Econômica, mas, em especial, pelas pesquisas realizadas referente
ao tema, a assessora jurídica Naira Regina Meira de Vasconcellos e
a estagiária de pós graduação Amanda Karasawa Bertolazo, que
possibilitaram a elaboração tanto do texto da palestra proferida no
XIX Congresso Nacional do Ministério Público do Consumidor,
quanto do seu aperfeiçoamento para oferecê-lo à publicação na
Revisa Jurídica do Ministério Público do Paraná.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASIoEIRA. Posição da AMB quanto aos dispositivos eletrônicos


para entrega de nicotina (cigarros eletrônicos e cigarros aquecidos), ref. Resolução RDC
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358
8. Espaço Memorial do
Ministério Público
Vitor Lemes de Resende1
Cristiano de Oliveira Viana Correia2
Rodrigo Bonatto Dall’Asta3

BREVE HISTÓRIA DO
CEAF E DA ESMP

O Ministério Público do Estado do Paraná, atento à “revolução tecnológica ora


vivenciada, com rápida alteração dos modelos de aprendizagem e metodologias de
ensino”4 e sabendo da importância da qualificação de seus integrantes, conquistou, em
2 de outubro de 2018, o direito de oferecer cursos de pós-graduação stricto e lato sensu
por meio da Escola Superior do Ministério Público.

Mas essa história começou há muito tempo.

Se voltarmos à época do procurador-geral de Justiça Brasil Pinheiro Machado


(1939-1946)5, quando o estado do Paraná possuía apenas 35 Termos e Comarcas e o
MPPR era composto por 38 membros – 35 espalhados pelo interior, dois em Curitiba e
mais o procurador-geral de Justiça –, veremos que em 1940 foram nomeados os
bacharéis Levi Lima Lopes, Lauro Rego Barros e Antonio Quedes Silva para atuarem como
estagiários, respectivamente, na 1ª, 2ª e 3ª Promotorias Públicas da capital.

A partir daí, o contingente de estagiários foi só crescendo, até que em 11 de


agosto de 1966, o procurador-geral de Justiça Alcides Munhoz Netto6, preocupado com
o desenvolvimento desses aprendizes, assina a Portaria nº 3287, instituindo o Curso de
Formação de Estagiários do Ministério Público.

1Historiador do Memorial do Ministério Público do Paraná. Graduado em Psicologia (2012) e em História (2017) pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná.
2Estagiário de pós-graduação do Memorial do Ministério Público do Paraná. Graduado em História pela Universidade Federal do

Paraná (2017).
3Estagiário de pós-graduação do Memorial do Ministério Público do Paraná. Graduado em História pela Universidade Federal do

Paraná (2017). Mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná.


4Resolução PGJ nº 2717, de 15.5.2018.
5Biografia resumida de Brasil Pinheiro Machado.
6Biografia resumida de Alcides Munhoz Netto.
7Portaria nº 328, de 11.8.1966.

360
Voltado aos bacharéis (inscritos na OAB) e acadêmicos do Direito que cursavam
o 4º e o 5º anos, essa iniciativa tinha como objetivo preparar os estudantes para a prática
jurídica ministerial, além de promover a participação dos membros do MP com a
atividade pedagógica, incentivando entre instrutores e estagiários o ideal de
aprimoramento da Justiça e da própria instituição.

Durante 22 anos, o Curso de Estagiários sofreu pequenas alterações, até que a


Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 trouxesse mudanças significativas ao
Ministério Público brasileiro, expandindo suas atribuições. A independência
orçamentária8 permitiu a criação de vários órgãos internos de especialização técnica,
como os Centros de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça (CAOP) e os Centros
de Memória.

Luiz Chemin Guimarães, procurador-geral de Justiça na época, buscando


absorver essas novas competências, estabelece9 em 1990 a quarta Escola Superior do
Ministério Público do país, sendo precedida pelas instituições congêneres dos estados
da Bahia, do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Sobre o atendimento dessa antiga
aspiração do MPPR, Chemin comentou que a principal finalidade era “a formação do
espírito crítico e integral aperfeiçoamento dos membros da instituição”10.

Em fevereiro de 1991, o Curso de Estagiários – que teve o seu regulamento


reelaborado em 26 de dezembro do ano anterior –, foi incorporado à Escola Superior.
Dois anos mais tarde, em 1993, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público 11 é
promulgada, versando, na terceira seção do capítulo V (órgãos auxiliares), sobre a
criação do Centro de Estudo e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF), que seria responsável
por realizar cursos, seminários, congressos, simpósios, pesquisas, atividades, estudos e
publicações, visando “ao aprimoramento profissional e cultural dos membros da
instituição, de seus auxiliares e funcionários, bem como a melhor execução de seus
serviços e racionalização de seus recursos materiais”. Apesar disso, no Paraná a Escola
Superior continuou com suas atividades até o ano de 1997, quando o CEAF foi finalmente
instituído 12 , em 17 de dezembro – acompanhado pela Associação Paranaense do

8Constituição Federal de 1988, art. 127, §2º.


9Resolução PGJ nº 222, de 30.3.1990.
10Correio de Notícias, 2.4.1990, p. A-2.
11Lei nº 8625, de 12.2.1993.
12Resolução PGJ nº 1682, de 17.12.1997.

361
Ministério Público (APMP), que criou a Fundação Escola do Ministério Público do Paraná
(Fempar) em 22 de dezembro do mesmo ano.

Assim, o Curso de Estagiários e a própria Escola Superior deixaram de existir,


pois o CEAF passou a ser um ambiente para o desenvolvimento dos membros, servidores
e auxiliares ministeriais, enquanto a Fempar se concentrou em atender ao público
externo, “promovendo e apoiando cursos de extensão, congressos, palestras e
seminários para a comunidade jurídica em geral e, de particular interesse para membros
do Ministério Público do Estado do Paraná, sob o enfoque jurídico-social”13.

O primeiro coordenador designado para atuar no CEAF foi o promotor de Justiça


Lineu Walter Kirchner, pelo período de 17 de dezembro de 1997 a 15 de maio de 1998,
sendo sucedido pelo então presidente da Fempar, o procurador de Justiça Glaucio
Antonio Pereira (1998-1999), que estruturou as atividades de aperfeiçoamento dos
integrantes do MPPR. Inicialmente, tais atividades foram divididas em três categorias:
palestras introdutórias aos novos membros, especialização funcional e eventos.

Buscando expandir as oportunidades de aperfeiçoamento a todo o corpo


funcional do Ministério Público, foi criada uma divisão organizacional específica para
facilitar a concessão de bolsas de estudos em cursos de especialização, além de firmar
termos de parcerias técnico-científicas com várias instituições educacionais no Paraná.
Em um primeiro momento, tal benefício era restrito aos membros, 24 dos quais fizeram
recorreram ao auxílio financeiro em 1999. No ano seguinte, tal benefício foi estendido
aos servidores, incentivando sua capacitação técnica14.

Ainda em 1999, foi criado pelo CEAF o Curso de Adaptação de Novos


Promotores de Justiça, que visava ambientar os membros recém-nomeados e aproximá-
los das atividades dos Centros de Apoio, alguns criados recentemente naquele período.

Em 1º de agosto de 2011, o curso tem seu nome e estrutura modificados15 para


Curso de Preparação e Aperfeiçoamento destinado ao Ingresso e Vitaliciamento na
Carreira do Ministério Público do Estado do Paraná. Em vez de ser apenas introdutório,
o novo formato do curso trouxe um maior contato dos promotores recém-admitidos com

13http://femparpr.org.br/site/fempar/quem-somos/.
14Resolução PGJ nº 62, de 26.1.2000.
15Resolução PGJ nº 2110, de 25.7.2011.

362
a realidade da prática do cargo. O curso é iniciado com palestras presenciais em Curitiba,
após o que cada participante segue o conteúdo de aulas a distância. A procuradora de
Justiça Samia Saad Gallotti Bonavides, que na época coordenava o CEAF, comentou em
2015, por ocasião do IV Curso de Preparação, que a pretensão do curso era tratar de
temas relevantes, além dos vinculados à atuação resolutiva dos conflitos e sua
prevenção:

O propósito é sempre de buscar a maior efetividade do sistema de


justiça, no qual o Ministério Pública atua e deve interferir de forma
positiva para a solução dos problemas e dos conflitos, mesmo que
aqueles que se estabelecem no campo dos interesses transindividuais.
Nessa perspectiva é importante ressaltar a necessidade de uma
formação humanista com maior aproximação à realidade social [...]16.

Teleconferências e tecnologias digitais

Com a aposentadoria de Glaucio Antonio Pereira, a coordenadoria do CEAF é


assumida por Eliezer Gomes da Silva, em 1º de fevereiro de 199917, dando-se início à
implantação de tecnologias digitais, com a reestruturação e o desenvolvimento do site
do MPPR18 e do CEAF19, por exemplo.

16IV Curso de Preparação e Aperfeiçoamento destinado ao Ingresso na Carreira do MPR.


17Resolução PGJ nº 88, de 1º.2.1999.
18É possível navegar por algumas páginas do antigo site do MPPR pelo site Internet Archive.
19Página inicial do CEAF existente em 2001.

363
Figura 1: página inicial do CEAF existente em 2001.

Ainda no ano de 1999, inspirados pelo projeto de telecursos do Serviço


Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, firmou-se uma parceria
com o estúdio da TV Cidadão para o desenvolvimento de teleconferências com temas
relacionados ao Ministério Público. Os temas escolhidos para o programa, de forma geral,
foram sobre as diferentes atribuições dadas ao MP com a Constituição de 1988,
perpassando por conteúdos como trabalho infantil, acesso à Justiça, sistema
penitenciário, AIDS, assédio sexual, entre outros, elaborados no decorrer de dois anos,
quando foram realizadas 26 transmissões20.

O funcionamento dessas teleconferências, entretanto, era complexo,


considerando-se que a internet ainda não era tão difundida como atualmente. Primeiro,
era necessário alugar o sinal de satélite junto à Empresa Brasileira de Telecomunicações
– EMBRATEL, assim o telespectador poderia assistir à conferência pela televisão e
participar enviando dúvidas e comentários por e-mail, telefone ou fax:

20Teleconferências realizadas entre 25.8.1999 e 21.3.2002.

364
A teleconferência, que será transmitida ao vivo, via satélite, dos
estúdios da TV Cidadão, em Curitiba, poderá ser assistida, em todo
território nacional, por meio de antena parabólica, na frequência de
4190 Mhz, transponder 12 B2, polarização vertical, entre os canais 23
e 25. [...] No Estado do Paraná, será também transmitida para os
assinantes de TV a cabo dos sistemas NET [...], TVA [...] e VCC/SOT […]21.

Figura 2: equipe técnica de transmissão das teleconferências (1999)

O MPPR também firmou uma parceria com a Secretaria de Estado e de


Educação do Paraná (SEED), a fim de utilizar a infraestrutura das escolas estaduais para
que, além dos promotores de Justiça, outras pessoas sem TV a cabo ou antena parabólica
pudessem participar da teleconferência em qualquer cidade do Paraná.

O primeiro programa aconteceu em 25 de agosto de 1999, com uma palestra


do professor Fábio Konder Comparato, com o tema “Ministério Público, Ministério do
Povo”. Diante do sucesso do evento, a segunda conferência veio logo em seguida: em 28
de setembro de 1999, o desembargador Amilton Bueno de Carvalho, do Tribunal de

21Ofício Circular MP/CEAF nº 7, de 10.9.1999.

365
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, apresentou a conferência com o tema “O papel
do operador jurídico na democracia”.

Os conferencistas não eram remunerados, apenas recebiam o reembolso dos


gastos com o traslado. Além disso, como não havia verbas alocadas aos projetos e o CEAF
era composto por equipe diminuta, o trabalho era um tanto artesanal e seus integrantes
realizavam diversas tarefas alheias às suas atribuições normais. Não obstante as
dificuldades, a dedicação da equipe permitiu o desenvolvimento das atividades
educacionais, tão relevantes para a atuação ministerial, numa época em que a educação
a distância era incipiente e sequer havia a tecnologia de streaming22.

Figura 3: registro
Figura 3: registro por
por ocasião
ocasião da
da segunda
segunda teleconferência
teleconferência do
do MPPR,
MPPR,realizada
realizadaem
em
28.9.1999. Da esquerda para a direita: Cristina Maria Suter Correia da Silva, Olympio
28.9.1999. Da esquerda para a direita: Cristina Maria Suter Correia da Silva, Olympio
de Sá Sotto Maior Neto, Gilberto Giacoia, então procurador-geral de Justiça, Eliezer
de Sá Sotto Maior Neto, Gilberto Giacoia, então procurador-geral de Justiça, Eliezer
Gomes da Silva, coordenador do CEAF à época, Amilton Bueno de Carvalho,
Gomes da Silva,
desembargador coordenador
de Justiça do CEAF àeépoca,
e conferencista, Jaime Amilton Bueno da
Peters, diretor de Carvalho,
TV Cidadão.
desembargador de Justiça e conferencista, e Jaime Peters, diretor da TV Cidadão.

22Transmissãovia internet para consumo imediato, sem necessidade de download de arquivos, que permite ao usuário assistir ao
vídeo pelo computador, tablet ou celular.

366
O novo milênio e a reorganização do CEAF

Em janeiro de 2001, Marcelo Alves de Souza foi nomeado para coordenar o


CEAF23 conjuntamente com Eliezer Gomes da Silva, mantendo-se no cargo até agosto do
mesmo ano24, enquanto Eliezer seguiu seu mandato até 1º de abril de 200225. Durante
esse período, foi aprovada a reorganização do CEAF, com o estabelecimento de nove
divisões26 e a designação de membros e servidores para nelas atuarem27:

I - Divisão de Cursos, Congressos e Seminários (Cid Marcus Vasques);

II - Divisão de Biblioteca e Documentação (Antonio Carlos Staut Nunes e Jussara


de Mello Toledo Ramos);

III - Divisão de Publicações (Gilberto Giacoia, Eliezer Gomes da Silva e Marcelo


Alves de Souza);

IV - Divisão de Bolsas de Estudos e Auxílios Financeiros (Ronaldo Luiz Baggio);

V - Divisão de Intercâmbios, Parcerias, Convênios e Acordos de Cooperação


Técnica (Olympio de Sá Sotto Maior Neto);

VI - Divisão de Tecnologias Interativas (Ramatis Fávero, Valéria Teixeira de


Meiroz Grilo e Cristina Maria Suter Correia da Silva);

VII - Divisão de Comunicação Social (Luiz Fernando Ferreira Delázari);

VIII - Divisão de Promoções Culturais (Wilson José Galheira);

IX - Divisão de Estágios Curriculares (Ronaldo Luiz Baggio e Dirlene Moreira


Vieira).

Em setembro de 2000, foi lançada a revista “Direito e Sociedade”, que reuniu


artigos científicos em seis publicações, até 2007. Mais tarde, o espaço foi reocupado pela
atual Revista Jurídica do MPPR, lançada em dezembro de 2014.

Os coordenadores seguintes, Maurílio Batista Palhares (2002-2004), Luiz


Eduardo Trigo Roncaglio (2004-2005) e Clayton de Albuquerque Maranhão (2005-2008),

23Resolução PGJ nº 12, de 2.1.2001.


24Resolução PGJ nº 1237, de 14.8.2001.
25Resolução PGJ nº 488, de 1º.4.2002.
26Resolução PGJ nº 3, de 2.1.2001.
27Resolução PGJ nº 13, de 2.1.2001.

367
trabalharam para ampliar o papel pedagógico no Ministério Público. Até 2008, cerca de
30 termos de convênio e de cooperação técnica foram estabelecidos com diversas
instituições de ensino superior no Paraná.

Neste ínterim, deu-se maior destaque ao fornecimento de auxílio financeiro a


membros e servidores para a realização de cursos, principalmente os de pós-graduação.
Entre 2004 e 2005, por exemplo, 35 dos 96 auxílios concedidos a todos os integrantes da
instituição foram para a realização de graduação em áreas técnicas.

Assessoria de Imprensa

O trabalho pioneiro com as teleconferências por parte do CEAF chamou a


atenção para uma necessidade interna do Ministério Público do Paraná: a estruturação
de uma assessoria de comunicação. Desde 1990, já existia um cargo de assessor de
imprensa vinculado ao gabinete do procurador-Geral de Justiça28, mas foi a partir da
realização das teleconferências que seus idealizadores perceberam que era preciso
atribuir um padrão de qualidade ao programa, instruindo-se os participantes sobre a
linguagem a ser utilizada, sobre como se portar e se vestir, etc.

Valéria Teixeira Meiroz Grilo, procuradora de Justiça aposentada e colaboradora


do Memorial, relatou em entrevista ao REConto29 que naquela época verificou-se que
era essencial haver profissionais de jornalismo para conduzir as atividades de assessoria
de comunicação, com estrutura independente das atividades do Cerimonial:

Quando fiz, também, as teleconferências no Centro de Tecnologias


Interativas do CEAF (…), descobri que não tínhamos, no Ministério
Público, estrutura de assessoria de comunicação. Nós tínhamos ali no
Ministério Público alguém que cuidava do Cerimonial, mas não tinha
muito essa ideia... então, até a roupa que eu deveria usar para
apresentar o programa, a postura, a entonação de voz, todas essas
coisas eu não sabia. E achava que tinha que existir um profissional
assim, além da gente não ter essa ponte com a imprensa30.

Sentia-se a necessidade de profissionalizar a comunicação com o público


externo e com a imprensa, de maneira a garantir a qualidade das informações fornecidas

28Cargocriado pela Lei nº 9216, de 26.3.1990.


29Programa de história oral do Ministério Público do Paraná.
30Conteúdo adaptado da entrevista com a Dra. Valéria Teixeira de Meiroz Grilo, realizada em 27.3.2019.

368
e resguardar a imagem da instituição. Assim, em abril de 2002, a pedido da então
procuradora-geral de Justiça, Maria Tereza Uillle Gomes (2002-2004)31, a Dra. Valéria
Grilo ficou responsável pela estruturação da Assessoria de Imprensa no MPPR, iniciada
pela contratação da jornalista Jaqueline Conte.

As teleconferências do CEAF, portanto, constituíram um importante marco


institucional, pois impulsionaram a profissionalização de diversas atividades do MPPR.

Apesar de a Comunicação Social ser prevista como uma divisão específica do


CEAF desde sua reestruturação, em 2001, o conjunto de atribuições da área foi reunido
em estrutura própria, ligada ao gabinete da Procuradoria-Geral de Justiça. Da mesma
forma como ocorrido com o CEAF, a Assessoria de Imprensa se desenvolveu ao longo dos
anos para acompanhar as crescentes demandas do MPPR, sendo mais tarde ampliada e
denominada Assessoria de Comunicação (Ascom)32.

Biblioteca

Não se tem conhecimento de uma data específica da constituição da biblioteca


do MPPR, mas considera-se como marco inicial a introdução dos processos, normas e
padrões biblioteconômicos ao acervo de consulta da Procuradoria-Geral de Justiça em
novembro de 1965, época em que o MPPPR ocupava o 6º andar do Edifício Palácio da
Justiça. A Biblioteca sempre esteve próxima à Procuradoria-Geral de Justiça, a fim de
facilitar a consulta de livros e jurisprudência por parte de membros, servidores e
estagiários.

Em 1997, a Biblioteca foi incorporada administrativamente ao CEAF. Em 2003,


quando a sede do MPPR foi transferida para o Edifício Affonso Alves de Camargo,
localizado na Rua Marechal Hermes, nº 751, a previsão era de que a Biblioteca ocuparia
um espaço no térreo. Entretanto, por se tratar de um espaço menor que o ocupado
previamente no 6º andar do Edifício Palácio da Justiça, a Biblioteca foi instalada no 5º
pavimento.

31Biografia resumida de Maria Tereza Uille Gomes.


32Resolução PGJ nº 937, de 2.4.2012.

369
Foi também criada a Divisão de Periódicos, sem lotação de servidores
específicos, buscando difundir jurisprudência e informação, com auxílio da Biblioteca na
produção de publicações científicas, desenvolvendo a revista Direito & Sociedade, criada
em 2001 e mantida até 2007. Em dezembro de 2014, a iniciativa é reiniciada com o título
Revista Jurídica do Ministério Público do Estado do Paraná, que a partir de 2019 passa a
ser distribuída exclusivamente no formato digital.

Estágios

A partir da citada Resolução nº 3/2001, a gestão dos contratos de estágio e a


supervisão dos estagiários passou do antigo Departamento de Recursos Humanos para
o CEAF, sob responsabilidade da Divisão de Estágios Curriculares. Na época, apenas uma
servidora, com o auxílio de alguns estagiários, gerenciava os mais de 300 estagiários
existentes no MPPR – número considerável, em comparação aos 17 estagiários
existentes em 1966, mas ainda muito inferior aos cerca de 2.000 estagiários que
trabalham e aprendem na instituição atualmente33.

Antecipando-se à Resolução nº 42 34 , de 16 de junho de 2009, do Conselho


Nacional do Ministério Público, que estabeleceu os parâmetros para estagiários em todo
o MP brasileiro, o MPPR instituiu estágios de nível médio e extrajurídicos pela Resolução
PGJ nº 149, de 31 de janeiro de 2003, e, posteriormente, por meio da Resolução PGJ nº
2346, de 1º de dezembro de 200835, constituiu os estágios profissionalizantes.

Nesse mesmo ano, foi apresentada a proposta de criação do programa de


Residência no Ministério Público, já que a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de
dezembro de 2004, determinou que para ingresso na Magistratura e no Ministério
Público é necessário comprovar três anos de prática forense, e o Conselho Nacional de
Justiça – CNJ36 e o CNMP37 estabeleceram que o estágio posterior à diplomação poderia
ser considerado atividade jurídica. A iniciativa, à época, não atingiu os frutos

33Relação de estagiários ativos em agosto de 2019, disponível no Portal da Transparência do MPPR.


34Resolução CNMP nº 42, de 16.6.2009.
35Resolução PGJ nº 2346, de 1º.12.2008.
36Resolução CNJ nº 11, de 31.1.2006.
37Resolução CNMP nº 29, de 31.3.2008.

370
especificados, mas pavimentou o caminho para o estabelecimento do estágio de pós-
graduação38 no Ministério Público e o serviço voluntário a partir de 1º de abril de 200939.

O caminho para a Escola Superior

A consolidação da Escola Superior do CEAF ocorre como consequência do


esforço de seus integrantes e da Administração Superior do MPPR para a ampliação das
atividades e do corpo funcional da unidade. Um ponto de inflexão, neste sentido, é a
assunção da coordenação por parte da procuradora de Justiça Samia Saad Gallotti
Bonavides no ano de 2008. Naquele ano, iniciou-se o planejamento estratégico do
Ministério Público do Paraná, denominado Projeto GEMPAR 2008/201840, considerado
o marco zero da gestão estratégica da instituição, por meio do qual foram discutidas as
prioridades dos diversos setores do MPPR. O projeto definiu as principais diretrizes para
o CEAF em todas as suas linhas primárias: capacitação de membros e servidores, auxílio
financeiro, curso de vitaliciamento, periódico acadêmico na área de Direito e gestão dos
contratos de estágio e voluntariado.

Um dos reflexos do planejamento foi a padronização dos processos


relacionados à organização de eventos, que anteriormente eram elaborados e
executados pelos próprios interessados. Diante dos frequentes pedidos de fornecimento
de coffee break nos eventos das diversas Unidades, o CEAF passou a condicionar o
serviço ao desenvolvimento de projetos pedagógicos orientados às ambições
ministeriais, o que causou uma gradual profissionalização do planejamento e da
execução de tais eventos.

Outra característica abordada pelo planejamento estratégico foi a expansão da


equipe do CEAF, que foi reforçada com doze servidores entre 2015 e 2019 e, atualmente,
é composta por 22 servidores, dentre efetivos, comissionados e adidos.

Esse crescimento permitiu o aprimoramento teórico e prático do curso para


membros recém-admitidos na carreira do MPPR. Assim, o Ato Conjunto PGJ/CGMP nº

38Resolução PGJ nº 1952, de 3.9.2009.


39Resolução PGJ nº 654, de 1º.4.2009.
40Projeto GEMPAR 2008/2018.

371
01/201741, de 3 de maio de 2017, aprovou o regulamento do Curso de Preparação e
Aperfeiçoamento em Ministério Público, estabelecendo-o como etapa obrigatória no
processo de vitaliciamento dos membros.

Dando sequência ao desenvolvimento do CEAF, em 15 de maio de 2018 o


procurador-geral de Justiça Ivonei Sfoggia assinou resolução alterando o regimento
interno do setor:

considerando a necessidade de transformação do Centro de Estudos e


Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Paraná em
instituição de ensino superior, inclusive para oferecimento e
certificação de cursos de pós-graduação stricto e lato sensu42.

As atribuições da Escola Superior foram confirmadas com o Decreto Estadual nº


11238, de 2 de outubro de 201843, assinado pela então governadora Maria Aparecida
Borghetti, que credenciou a unidade como escola no Sistema de Ensino estadual. A
reestruturação autorizou o oferecimento e a certificação de cursos de pós-graduação
stricto e lato sensu, dotando o CEAF de mais autonomia pedagógica e gerencial e
incentivando a qualificação continuada dos integrantes do MPPR. Dessa forma, o
Ministério Público consolida a antiga aspiração da Portaria nº 328/1966, que pretendia
promover a participação dos membros do MPPR na docência da ESMP/CEAF, de maneira
a repassarem seus conhecimentos aos demais integrantes e estagiários da instituição.

Novas instalações

Em outubro de 2019, o edifício situado na Rua Marechal Hermes, nº 910, que


abrigava a Federação dos Empregados no Comércio (FECEP), foi adquirido pelo MPPR. O
prédio onde foi realizado o I Encontro Nacional de Procuradores Gerais de Justiça e
Presidentes de Associações do Ministério Público44, em junho de 1986 – evento que deu
origem à Carta de Curitiba45 46 –, passa a abrigar o CEAF e o Memorial. Que ambas as

41Ato Conjunto PGJ/CGMP nº 1, de 3.5.2017.


42Resolução PGJ nº 2717, de 15.5.2018.
43Decreto nº 11238, de 2.10.2018.
44I Encontro Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça e Presidentes de Associações do Ministério Público.
45Carta de Curitiba, de 21.6.1986.
46Artigo “A Carta de Curitiba”, do procurador de Justiça aposentado Rui Cavallin Pinto.

372
Unidades possam desempenhar seus papéis e oferecer um trabalho de qualidade, à
altura da importância do Ministério Público do Paraná para a sociedade.

Figura 4: edifício da FECEP adquirido pelo MPPR em outubro de 2019,


passando a abrigar o CEAF e o Memorial. Foto: SubAdm/DEA.

373
FOTOS DO CONCURSO
CULTURAL CLIQUE CIDADÃO
DO MINISTÉRIO PÚBLICO
DO ESTADO DO PARANÁ

FOTO 1
Juliana de Freitas Alves

FOTO 2
Andressa Osaku

FOTO 3
Tarcis Augusto Schuhli

FOTO 4
Ana Julia Passuello Miranda

FOTO 5
Emidio Trancoso Rodrigues Neto

FOTO 6
Arnaldo Eduardo Gomes

FOTO 7
Carla Arnhold

FOTO 8
Antonio Adriano de Miranda Garcia

FOTO 9
Ka a Krüger

FOTO 10
Luiz Felipe de Souza Prigol
ISSN 2595-6515 (Eletrônico)

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