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RESPONSABILIDADE CI\'IL DO PRODUTOR E

-
IlROTECÇAO DO CONSU~IIDOR EM PORTUGAL
-
ENA UNIA OEUROPEIA
João Calvão da Silva
Pn?fessor Catedrático da Faculdade de Direito
da Uni1·ersidade de Coimbra, Portugal

I. Segurança dos produtos: responsabilidade c prevenção

A clássica garantia cdilícia atende directamente ao interesse


do comprador no préstimo ou qualidade da coisa - sendo uma
responsabilidade por falta de qualidade ou falta de confonnidade do bem
adquirido com o contrato -, mas não já ao interesse da segurança no seu
uso, na sua utilização ou consumo normal ou razoavelmente previsível.

Porém, com o desenvolvimento industrial c o progresso científico


c tecnológico (automação do processo produtivo, produção cm série,
distribuição cm cadeia) veio a multiplicaçao dos acidentes de consumo,
acidentes diurnos c nocturnos causados por produtos vendidos aos
consumidores, que somos todos nós, lesados na pessoa (vida, integridade
físico-psíquica, saúde) c no património.

Em face desta realidade grave, deste grande icebe1g social que são
os acidentes pessoais de consumo, os poderes públicos são "obrigados" a

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reagir e a encarar de frente o problema da perigosidade c insegurança dos


produtos, com iniciativas de integração, ham1onização c uniformização do
respectivo direito material, em ordem a prevenir os acidentes e a ressarcir
os prejuízos não evitados... e não raro inevitáveis, especialmente os
acidentes e danos pessoais.

Neste contexto assinalam-se:

A Directiva 85/374/CEE, de 25 de Julho de 1985, relativa à


aproximação das disposições legislativas, regulamentares c administrativas
dos Estados-membros em matéria de responsabilidade por produtos
defeituosos (JOCE n. 0 L21 O, de 7 de Agosto de 1985, p.29) -
substancialmente herdeira na Convenção de Estrasburgo, aprovada em
Janeiro de 1977 pelo Conselho da Europa - , transposta para o ordem
jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei n." 383/89, de 6 de Novembro; no
contexto do fenómeno da BSE ou "vaca louca", a Directiva 1999/341
CE, de 10 de Maio de I999, veio tornar obrigatória a inclusão dos
produtos agrícolas primários, não transformados, no âmbito de aplicação
da Directiva 85/374, suprimindo a al.a) do n." I do art." 15.", com vista a
contribuir "para restabelecer a COI?[iança dos consumidores na segurança
da produçclo agrícola" (considerando n. 0 5) - Directiva esta, 1999/34/
CE, transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-lei
n." 131/2001, de 24 de Abril, que alterou o Decreto-lei n." 383/89, de 6 de
(
Novembro;

A Directiva 92/59/CEE, de 29 de Junho de 1992, relatim à


segurança geral dos produtos, tramposta para a ordem jurídica interna
pelo Decreto-lei n." 311/95, de 20 de Novembro, alterado pelo Decreto-lei
0
n. I6/2000, de 29 de Fevereiro;

A Directiva 200 I /95/CE, do Parlamento Europeu c do Conselho,


de 3 de Dezembro, relativa à segurança geral dos produtos, que revogou
a Directiva 92159/CEE, e foi transposta para o direito nacional pelo
Decreto-lei n." 69/2005, de 17 de jvfarço, re\'ogando Decreto-lei 11. "311 /95
e o Decreto-lei n. "213/87, de 28 de Alaio.

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Responsabilidade civil do produtor c protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

Embora distanciadas no tempo da sua aprovação, as três Directivas


decorrem do mesmo problema- a perigosidade ou falta de segurança dos
produtos em circulação no mercado - c todas de segurança dos produtos
em circulação no mercado - e todas procuram contribuir para a sua
resolução: a primeira, a Directiva 85/374, pelo ângulo da responsabilidade
objectiva dos produtores ou fabricantes que lancem no mercado bens
móveis defeituosos por falta da segurança legitimamente esperada; a
segunda (a Directiva 92/59) c a terceira (Directiva 200 1/95) pelo enfoque
da prevençclo ou impedimento de comerciali::::açclo de produtos nela seguros
ou perigosos.

No coração das três Directivas, pois, a mesma ex1gencia: a


obrigação de segurança dos produtos, a fim de se garantir a protecção da
vida, da integridade físico-psíquica c da saúde das pessoas, bem como do
seu património.

Naturalmente, porque vale mms prevenir do que remediar, sena


lógico o processo legislativo conduzido primeiro à Directiva sobre a
segurança geral dos produtos, complementada pela Directiva respeitante
à reparação dos danos. Mas na "real politic ", também da política
legislativa, a política dos pequenos passos (só) tornou possíveis aqueles
resultados naqueles momentos, de resto sem inconvenientes de maior:
primeiro, porque a responsabilidade civil também desempenha uma função
preventiva, pela ameaça de indemnização que faz recair sobre quem
produza ou fabrique c lance no mercado bens defeituosos, bens perigosos
ou não seguros; segundo, porque a constatação da dificuldade ou mesmo
impossibilidade prática de legislação comunitária para cada produto
viabilizou Directivas horizontais, a imporem aos agentes económicos a
obrigaçclo geral de comerciali::::arem apenas produtos seguros, colmatando
assim a falta ou as insuficiências de normas específicas para cada produto
existente ou futuro ( cfr., art. 0 2. 0 , do Decreto-lei 69/2005; art. 0 1. 0 da
Directiva 200 l/95). Logo, porque as regras de responsabilidade são ainda

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preventivas, a harmonização da legislaçào europeia de prevençclo e


reparaçclo dos danos causados por produtos nào seguros teve lugar pela
Directiva 85/374/CEE, complementada primeiro pela Directiva 921591
CEE e depois pela Directiva 200 1195/CE, o que importa analisar olhando
sobretudo aos correspondentes diplomas legais portugueses.

II. Obrigação geral de segurança: responsabilidade objectiva


do produtor c responsabilidade subjectiva do distribuidor;
noções de produtor c distribuidor

I. Nos termos do art. 0 1. 0 do Decreto-lei n. 0 383/89,

"O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos


causados por defeitos dos produtos que põe cm circulação".

É a consagração inequívoca da responsabilidade objectiva do


produtor - epílogo da longa marcha de "assalto à cidadela da culpa" e
à "cidadela da relatividade do contrato", vista a unificação do seu regime
jurídico, sem atender à eventual existência de relação negocial entre o
sujeito responsável c a vítima -, há muito reclamada c entendida como
"o meio de resolver de modo adequado o problema, característico da
nossa época de crescente tecnicidade, de uma justa atribuição dos riscos
inerentes à produção técnica moderna" (considerando n." 2 da Directiva
85/374), na esteira da strict products liability cstadunidcnsc.

Em termos gerais, a responsabilidade objectiva, não baseada


na culpa, é aqui ditada pelas necessidades de segurança pessoal c por
exigências de justiça c de solidariedade social, agravadas pela cocva
revolução tecnológica.

Em termos mais específicos, a imposição da responsabilidade sem


culpa ao produtor que exerce uma actividade económica lucrativa c cria o
alto risco de produzir c pôr cm circulação produtos defeituosos, assenta no
"ubi com moda ibi incommoda ", suportado:

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Responsabilidade ci\'il do produtor c protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

Pela disseminação do risco de dano pela sociedade, incorporando os


prémios de seguro pagos pelo produtor nos preços dos produtos;

Pela dissuasào e controlo do risco, ao induzir o fabricante à máxima


segurança dos produtos mediante mais investimentos na investigação
para eliminar ou reduzir o risco de comercializar produtos defeituosos e
perigosos para a vida humana, a saúde e integridade pessoal;

Pela protecçtío das e.\pectatims do consumidor, confiado na


qualidade e segurança dos produtos apresentados ao público através da sua
descrição, publicidade e markcting;

Pela reduçtío de custos, já que a ex1gencia e certeza da


responsabilidade objectiva diminuirá os litígios judiciais e estimulará as
transacções extr({judiciais, baixando o tempo e os custos de funcionamento
do sistema de reparação das vítimas.

2. Tudo isto porque no circuito lógico das actividades económicas,


constituído pela produção, pela distribuição c pelo consumo, a primeira
é decisiva na configuração dos produtos. Nela se idealiza ou concebe
c fabrica o produto, se prevêem ou omitem instruções adequadas e
suficientes para o seu uso correcto, se prevêem ou omitem advertências
c avisos ncccssúrios para os riscos c perigos inerentes à sua utilização,
enfim, se estrutura o produto na sua pe!:f(mwnce c modo de ser. Dcstarte,
os defeitos dos produtos postos cm circulação pelo fabricante terão
normalmente origem no processo produtivo, a fonte frequente dos danos
sofridos pelas vítimas de acidentes do consumo. Pense-se nos bens
que chegam ao consumidor tal qual saem do produtor, em embalagens
fechadas c sigiladas (alimentos, bebidas, cosméticos, medicamentos, etc.),
nos produtos mecânicos requintados, de alta complexidade tecnológica, e
logo ressalta a proeminência crescente da produçào no circuito económico
- proeminência abonada por toda uma publicidade c por todo um
processo de marketing realizados pelo produtor c dirigidos directamente ao
consumidor com vista a estimular o consumo de massa da sua produção.

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Paralelamente, assiste-se à "desfimcionalizaçào" do comerciante,


a traduzir-se no "esvaziamento de sentido" das funções do comerciante
tradicional que, perante produtos complexos e sofisticados c sem know-
-how e instrumentos técnicos adequados para os conhecer c controlar, de
especialista e conselheiro activo do adquirente passa a mero distribuidor,
qual entreposto por onde os bens têm de passar a caminho do consumidor
sem influência nas suas características.

Pelo exposto, justifica-se a concentraçào da responsabilidade


objectiva no produtor: titular do processo produtivo no qual o produto é
idealizado ou concebido e fabricado, o fabricante reúne ou pode reunir
as melhores condições, por um lado, de controlo da fonte de perigo c de
prevenção dos danos potenciais para terceiros, cumprindo a obrigação
geral de segurança, por outro lado, de suporte das consequências danosas
do defeito que não previu ou não preveniu, fazendo uma equitativa
distribuição do risco, do encargo da respectiva reparação (entreprise
oblige, richesse oblige, assurance oblige).
O mesmo já não pode dizer-se do mero comerciante ou revendedor
intermediário: sem influência na produção c nas características dos
produtos, sem know-how c possibilidade técnica de controlar c melhorar
a sua qualidade c segurança, enfim, se não causa nem pode prevenir o
defeito, mio se descortina razclo válida para estender ao distrilmid01; Cl(ja
actividade mio inteJfere nas características ou atrihutos do produto, a
aplicaçào da responsabilidade objectiva, antes se justificando a apreciação
da sua eventual responsabilidade de acordo com o direito comum c a regra
da responsabilidade subjectiva- cfi·. acórdão do STJ, de 19/02/04 (Proe."
n." 038309).

3. Ao consagrarem uma responsabilidade objectiva do produtor pelos


danos causados por defeitos dos produtos que põe cm circulação c definir
o defeito como falta de segurança legitimamente esperada, a Directiva
85/374/CEE e o Decreto-lei n." 383/89 partem da existência de uma
obrigaçào de segurança a cargo do fabricante em prol da protecçào de
qualquer pessoa vítima do produto defeituoso circulante no mercado.

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Responsabilidade ci\'il do produtor c protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

Não se trata, portanto, de uma obrigação de segurança relativa, de


natureza contratual, para proteger tão-somente o comprador do produto:

"Seio ressarcíveis os danos resultames de morte oulesao pessoal"-


toda e qualquer pessoa, pn~fissional ou consumid01; contraente ou terceiro
- "e os danos em coisa dh·ersa do produto defeituoso, desde que seja
normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha
dado principalmente este destino" (art. 0 8. 0 do Decreto-lei n. 0 383/89).

Acertadamente, pois a segurança pessoal, o respeito pela vida,


pela integridade físico-psíquica e pela saúde de toda e qualquer pessoa,
constitui valor e exigência unh·ersal - "direito do homem" proclamado
na Declaração Universal dos Direitos do Homem e outros documentos
internacionais c nacionais (cfr. art.''' 27. 0 e 60. 0 da Constituição) -
que, partindo da dignidade humana e da natureza das coisas, ganha
grande acuidade na crescente perigosidade c insegurança coenvolta no
desenvolvimento industrial c no progresso científico e tecnológico, com
o ideal da segurança a acompanhar o ideal da abundância e o ideal da
solidariedade na sociedade de bcm-estm:

Daí a unificação das responsabilidades contratual c extracontratual,


com superação desta clússica sunmw dil'isio, ao regular-se a
responsabilidade, tortt court, do produtor, qualquer que seja a qualidade
(contratante ou terceiro) da vítima, vista a obrigaçao absoluta (Jl(io
relativa) de mio atentar co/llra a pessoa humana. contra a segurança das
pessoas- alterum non laederc -, não comercializando produtos que não
ofereçam a segurança com que legitimamente se pode contar (art. 0 4. 0 do
Decreto-lei n." 383/89).

4. Esta obrigaçcio "natural" de segurança, radicada no respeito


devido à pessoa humana, vinha solenemente afirmada, expressis verbis,
pela revogada Directiva 92./59/CEE, de modo muito incisivo (art. 0 3. 0 ,
n. 0 1; art. 0 3.'\ n." I, do revogado Decreto-lei 11. 0 311/95): "Os produtores
só podem colocar no mercado produtos seguros".

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A mesma obrigação geral de segurança está agora consagrada,


precisamente com a mesma redacção, no art. 0 3. 0 , n. 0 1, da Directiva
200 1/95/CE e no Decreto-lei n. 0 69/2005, cujos art.os 4. 0 , n. 0 1, c 5. 0 rezam
assim:

Art. 0 4. 0 : "Só podem ser colocados no mercado produtos seguros".

Art. 0 5. 0 : "É destinatário da obrigação geral de segurança o produtor,


tal como se encontra definido na alínea c) do art. 0 3. 0 do presente diploma".

Dever complementado por duas outras obrigações do produtor (art."


0 0
5. , n. 1, da Directiva 2001/95; art." 6." do Decreto-lei n." 69/2005):

- A obrigação de prestar as informaçôes relevantes que permitam


aos consumidores avaliar os riscos inerentes a um produto, durante a sua
vida útil normal ou razoavelmente previsível, sempre que estes não sejam
imediatamente perceptíveis sem a devida advertência, c precaver-se contra
esses mesm os nscos
· ( c f r. ain
· d a ai·t ." 5 ." , n. " 1, c ai·t ." 8 ." , r1 ." 3 , d a
0
Lei n. 24/96);

- A obrigaçclo de adoptar medidas apropriadas, cm função das


características do produto fornecido, à il?fórmaçclo sobre os riscos que
o produto possa apresentar e ao desencadeamento das acções que se
revelarem adequadas, como indicação do produtor c do distribuidor,
(
da marcação do produto ou do lote de produtos que permita a sua
identificação, a realização de ensaios por amostragem, a anúlisc das
queixas apresentadas c a informação dos distribuidores sobre este controlo,
e, se necessário, a própria retirada do produto do mercado ou a reco/Ira
do produto junto dos consumidores (cfr. ainda art." 5.", n." 3, da Lei
n. 0 24/96).

À obrigação de informaçclo c à obrigação de vigilância,


monitorização ou seguimento (Beobachtung) do produto pelo fabricante,
junta-se ainda (art." 5.", n." 2, da Directiva 2001/95; art." 7. 0 do Decreto-lei
n.o 69/2005) o dever de os distribuidores agirem com diligência, porjàrma

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Responsabilidade civil do produtor c protecção do consumidor cm Portugal e na União Europeia

a contribuírem para o cumprimellfo da obrigaçào geral de segurança, em


especial:

Abstendo-se de fornecer produtos que sabem ou deveriam ter previsto,


com base cm elementos de informação na sua posse e como profissionais,
não cumprirem essa obrigação;

Participando no controlo de segurança dos produtos colocados no


mercado, nos limites das respectivas actividades. principalmente mediante
a transmissào de injàrmaçtíes sobre os riscos apresentados pelos produtos
e a colaboração cm quaisquer acções desenvolvidas para os evitar (cfr.
ainda art. 0 8. 0 , n." 2, da Lei n." 24/96 c o dever de circulação da infonnação
pelos elos da produção-distribuição-consumo);

Desencadeando acções adequadas para a eliminação dos riscos,


nomeadamente a retirada do produto do mercado e a recolha junto dos
consumidores;

Mantendo durante a vida útil do produto a documentação necessária


para rastrear a origem dos produtos c fornecê-los quando solicitados pelas
entidades competentes.

Sublinhem-se, ainda, as obrigações especiais de comunicação e de


cooperação do produtor c do distribuidor com as autoridades competentes
(Instituto do Consumidor; Comissão de Segurança de Serviços e Bens de
Consumo) nas acções desenvolvidas para prevenir riscos inerentes aos
produtos colocados no mercado incompatíveis com a obrigação geral de
segurança (art." 8." do Decreto-lei n." 69/2005 -vejam-se no mi." 13. 0 as
competências, da Comissão de Segurança de Serviços c Bens de Consumo;
art. 0 5.", n."' 3 c 4, da Directiva 200 I /95).

5. Da relacionação das duas Directivas e respectivos Decretos-leis


de transposição não resulta qualquer incoerência ou dessintonia nos pontos
focados:

A obrigação de o produtor colocar no mercado apenas produtos


seguros (art. 0 4.", n." I, c art." 5." do Decreto-lei n. 0 69/2005), já

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pressuposta e sancionada pela responsabilidade objectiva (art. 0 I do


Decreto-lei n. 0 383/89);

A obrigação de o produtor informar c advertir para os nscos


do produto (art. 0 6. 0 , n. 0 I, al.a), do Decreto-lei n. 0 69/2005), cuja
inobservância torna (e já tornava) o produto defeituoso (art. 0 4. 0 , 11. 0 I, do
Decreto-lei n. 0 383/89);

A obrigação de monitorização c seguimento do produto (m1. 0 6. 0 , n. 0 I,


al.b ), do Decreto-lei 69/2005), resultante já do direito comum, cm especial
dos deveres gerais do tráfico: logo, liberado da responsabilidade objectiva
pelos riscos do desenvolvimento (art. 0 5. 0 , al.c), do Decreto-lei n." 383/89),
o produtor incorrerá, todavia, cm responsabilidade subjectiva por culpa
provada ou presumida (art. 0 493.", n. 0 2, do Cód. Civil) se não seguir c
vigiar o produto por forma a informar-se sobre os seus riscos c poder
tomar tempcstivamentc as medidas apropriadas para os evitar, incluindo a
sua retirada do mercado, o aviso aos consumidores cm termos adequados c
eficazes ou a recolha do produto junto deles;

A obrigaçc7o de diligência do distribuidor, a fim de contribuir para


o cumprimento da obrigação geral de segurança (art." 7. 0 do Decreto-
-lei n.o 69/2005), também já antes sancionada pela responsabilidade
subjectiva nos termos do direito comum.

Tudo isto a atestar o propósito de a Directiva 200 I /95/CE não


prejudicar ou não interferir com os direitos das vítimas decorrentes
daqueloutra, como reza o seu art." I7. 0 : "A presente Directiva não
prejudica a aplicação da Directiva 85/374/CEE".

6. Por último, também a noçcio de produtor é substancialmente


idêntica nas duas Directivas e respectivos diplomas de transposiçâo:

O produtor real, fabricante do produto acabado, de uma parte


componente ou de matéria-prima (art." 2. 0 , n." I, 1." parte, do Decreto-lei
n.o 383/89; art. 0 3. 0 , al.c), i, 1." parte, do Decreto-lei n." 69/2005);

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Responsabilidad.: ci,·il do produtor.: protecção do consumidor cm Portugal e na União Europeia

O produtor aparellle, qualquer pessoa que se apresente como tal pela


aposição no produto do seu nome. marca ou outro sinal distintivo (art. 0
2. 0 , n. 0 1, 2.a parte, do Decreto-lei n." 383/89; m1." 3.", al.e), i, 2.a parte, do
Decreto-lei n." 69/2005);

O produtor presumido, iuris et iure, aquele que na CE e no exercício


da sua actividade comercial importa produtos para venda, aluger, locação
financeira ou outra qualquer fonna de distribuição (art." 2.", n. 0 2, al.a),
do Decreto-lei n." 389/89; art." 3.", al.e), ii, do Decreto-lei n." 69/2005:
representante do fabricante, quando este não esteja estabelecido na União
Europria, ou, na sua f~llta, o importador do produto na União Europeia);

Na formulação nota-se uma pequena diferença: a Directiva 85/374


não responsabiliza o distribuidor, salvo nos produtos anónimos -
produtor presumido, iuris tantzmz (art." 2.". n." 2, al.b ), do Decreto-lei
n." 383/89); a Directiva 2001195 considera produtor "outros profissionais
da cadeia de comercialização. na medida em que as respectims actividades
possam ({/ectar as características de segurança do produto colocado no
1 " (
merca(IO -· , a I .c ) . 111.
art."1" ··· art. ""-'· ". a I .c ) . ...
111, do Occreto- I e1. 69/100-)
_ ) . Na
susbtância das coisas, porém. cremos que a realidade se aproxima, bem
traduzida na noç/io de distribuidor dada pela Directim 2001195: "Qualquer
profissional da cadeia de comercialização cuja actividade 11(/o afecte as
características de segurança do produto (art." 2. 0 , al.t): art." 3. 0 , al.f),
do Decreto-lei n." ~5/374. que considera a proeminência do produtor e a
dcsfuncionalização do comerciante.

III. Noção de produto: bens múYeis. A BSE ou "yaca louca" c a


inclusão dos produtos agrícolas

I. Nos termos do art." 3." do Decreto-lei n. 0 383/89,

"Entende-se por produto qualquer coisa móvel, ainda que


incorporada noutra coisa móvel ou imóvel."

Foi revogado pelo Decreto-lei n. 0 131/2001, de 24 de Abril, o n. 0 2


do art." 3.", que exceptuava da noção do produto "os produtos do solo,

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Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

da pecuária, da pesca e da caça, quando não tenham sofrido qualquer


transformação".

Esta revogação decorre da transposição da Directiva 1999/34/CE,


que suprimiu a al.a) do n. 0 I do art. 0 15. 0 da Directiva 85/374, na qual se
reconhecia spatiwn deliberandi aos Estados-membros para não incluírem
na noção de produto os bens agrícolas primários, não transformados.

O legislador português, tendo em atenção a natureza da sua


agricultura - pequena e média agricultura e agricultura empresarial
escassa-, lançou mão dessa possibilidade e formulou o n. 0 2 do art. 0 3. 0
transcrito, ora revogado.

2. Na envolvente da Directiva 1999/34/CE está a tristemente célebre


BSE ou doença da vaca louca c a necessidade de (fingir) aquietar as
opiniões públicas dos Estados-membros da CE, na mira de assim "contribuir
para restabelecer a confiança dos consumidores na segurança da produção
agrícola".

A verdade é que se, tanto quanto se sabe, a BSE tem origem cm


rações, feitas a partir da moagem de carcaças ou esqueletos bovinos, o
responsável será produtor ou fabricante, c não agricultor.

Pelo que tudo se jogará na identificação do produtor ou produtores


que coneceberam, fabricaram c lançaram no mercado tais rações, na prova
do defeito, na questão de saber se se trata de risco do de.,·em•oh•imento
(
- defeito que o estado da ciência c da técnica, no momento cm que
as rações foram postas cm circulação, não permitia detectar c revelado
ulteriormente com a evolução dos conhecimentos -, cm geral excluído
da responsabilidade (cfr., art. 0 5.'>, al.c), do Decreto-lei n. 0 383/89),
e, pertencendo o produtor a país que o responsabilize pelo risco do
desenvolvimento, na prova do nexo de causalidade adequada entre o
defeito e o dano.

3. Produtos são, por conseguinte, as coisas móveis, ainda que


incorporadas noutras coisa móveis ou imóveis, independentemente de
perderem ou manterem a sua individualidade c autonomia.

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Responsabilidade ci\'il do produtor c protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

Isto é de\·eras importa111e no sector da construçao civil, uma


vez que os produtores dos bens móveis - materiais de construção ou
partes componentes defeituosos, como o ferro. o cimento, o tijolo, os
elevadores, etc. - utlizados de responsabilidade objectiva, em coerência
com a responsabilização do fabricante de parte componente ou matéria
prima, sem prejuízo, naturalmente, da responsabilidade dos empreiteiros,
engenheiros, e arquitectos emergente da respectiva legislação de direito
comum, bem como da responsabilidade do proprietário prevista no art. 0
492. 0 • Assim, se uma casa se desmorona porque o ferro ou os tijolos são
defeituosos, o fabricante destes é responsável independentemente de culpa.

Também é importantíssimo, por exemplo, 110 sector da produçao de


veículos, pois responsabiliza cm termos objectivos não só o fabricante final
do produto acabado (a Fiat. a Peugcot. a .Mercedes, etc.), mas também o
produtor de uma parte componente, vcrbi gratia, o sistema de travagem,
o motor, sem exclusão da responsabilidade do detentor do veículo nos
termos do art." 503." c scgts. do Código Civil.

Ainda importantíssimo 110 sector da electricidade e outras formas de


ene1gia como o gás - gús butano, gús propano c gás natural -, o vapo1;
a água e o WJUecime111o à distância, com o esvaziamento significativo do
disposto nos artigos 509." c 51 0." do Código Civil. bem como 110 softl\'are
vendido em massa, ta111o em suporte material (disquete, CD-Rom) como
on-line.

4. Em segundo lugar, produtos siio coisas móveis, independentemente


de estas serem bens de consunw insta111áneo ou duradouro, ou bens de
produçtw, também ditos bens de im·estimellfo ou bens instrumentais.

Accrtaclamcntc, pois trata-se da protecção ela pessoa - toda e


qualquer pessoa (m1." 8." do Decreto-lei n. 0 383/89) - e não só da
protecção do consumidor, não profissional. Contra isto não depõe o facto
de os danos cm coisas diversas do produto defeituoso ser confinado a bens
de consumo (2." parte do n." I do art. 0 8. 0 ). porquanto prejuízos deste tipo,
tal como os danos pessoais, podem ser causados por bens de investimento.

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Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

É que, bem vistas as coisas, seio dois problemas distintos: um, o do produto
causador do dano, que pode ser qualquer coisa móvel, sem distinção entre
bens de consumo e bens de equipamento (art. 0 3. 0 ) ; outro, o dos danos
ressarcíveis, que o legisladO!; na parte relativa aos prejuízos em coisas e
por razões de ordem prática - com vista a evitar indemnizações muito
vultosas, "insuportáveis", pelo produtor - , circunscreve aos causados em
bens de consumo, deixando de fora os provocados cm bens de produção.

Neste aspecto, a Directiva 2001/95 c o Decreto-lei n. 0 69/2005 são


mais restritivos, abrangendo apenas os bens (novos, usados ou recuperados)
destinados aos consumidores ou susceptíveis de por eles serem utilizados
0
(art. 2. 0 , al.a), ela Directiva; art. 0 3. 0 , al.a), do Decreto-lei).

Por fim, sublinhe-se que a Directiva 2001/95 c o Decreto-lei


n.o 69/2005 regulam a obrigaçcio geral de segurança, no sentido da sua
ap/icaçcio aos produtos em geral, mio objecto de disposiçôes espec{ficas
que regulamentem a sua segurança. Se houver regulamentaçüo própria
para certo produto- c existe muita, por exemplo: Decreto-lei n. 0 211/99,
de 14 de Junho, que transpõe a Directiva 97/23/CE, de 29 de Maio, relativa
ao fabrico c avaliação da conformidade, comercialização c colocação cm
serviço de equipamentos sob pressão; Decreto-lei n." 295/98, de 22 de
Setembro, que transpõe a Directiva 95/16/CE, de 29 de Julho, a estabelecer
os princípios gerais de segurança relativos aos ascensores; Decreto-lei
n.o 232/90, de I 6 de Julho, alterado pelo Decreto-lei n. 0 7/2000, de 3 de
Fevereiro, relativo ao projecto, construção, exploração c manutenção do
sistema de abastecimento de gases combustíveis canalizados; Decreto-lei
n.o 117/88, ele 12 ele Abril, alterado pelo Decreto-lei n. 0 374/98, de 24 de
Novembro, que disciplina a segurança de equipamento electrónico, etc.,
etc. -, as disposiçôes da Directiva e do Decreto-lei 11(/o selo aplicá\'eis
a esse produto (art. 0 1. 0 da Directiva; art." 1. 0 do Decreto-lei), salvo
subsidiariamente.

É a velha máxima "lei especial derroga lei geral", a querer dizer que
as medidas especiais de segurança de um produto excluem a aplicação das

480
Responsabilidad..: civil do produtor e protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

medidas gerais, mas sempre com salvaguarda da obrigação de segurança


para todos os produtos, sem excepção.

III. Noção de defeito: falta da segurança legitimamente


esperada. A presunção de segurança de produto conforme à
lei.

1. Estatui assim o art." 4." do Decreto-lei n." 383/89:

"1. Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança


com que legitimamente se pode contar. tendo em atenção todas as
circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele
razoavelmente possa ser feita c o momento da sua entrada em circulação.

2. Não se considera defeituoso um produto pelo simples facto de


posteriormente ser posto cm circulação outro mais aperfeiçoado".

Por sua vez, reza deste modo o art." 3.", al.b), do Decreto-lei
n. 69/2005:
0

"Produto seguro - qualquer bem que. cm condições de utilizações


normais ou razoavelmente previsíveis. incluindo a duração, se aplicável
a instalação ou entrada cm serviço c a necessidade de conservação,
não apresente quaisquer riscos ou apresente apenas riscos deduzidos
compatíveis com a sua utilização c considerados concilich·eis com um
elevado nível de protecção da saúde c segurança dos consumidores, tendo
cm conta, nomeadamente:

i) As características do produto. designadamente a sua composição;

ii) A apresentação, a embalagem. a rotulagem, e as instruções de


montagem, de utilização, de conservação c de eliminação, bem
como eventuais advertências ou outra indicação de informação
relativa ao produto;

iii) Os efeitos sobre outros produtos quando seja previsível a sua


utilização conjunta;

481
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

iv) As categorias de consumidores que se encontrarem em condições


de maior risco ao utilizar o produto, especialmente crianças e os
idosos".

2. Num e noutro dos diplomas, o cerne da noçào de defeito repousa


na falta da segurança legitimamente esperada do produto e mio na falta
de conformidade ou qualidade, na aptidão ou idoneidade do produto para
a realização do fim a que se destina.

A conformidade ou qualidade do produto, presente na tradicional


garantia cdilícia c responsabilidade contratual, é mais restrita do que a
segurança, pois são frequentes os casos de produtos que causam danos na
realização da específica função para que foram concebidos c fabricados.
Pense-se no fármaco, idóneo c eficaz no uso a que se destina, mas causador
de graves efeitos secundários; no rímel que provoca cegueira ao tocar
no globo ocular; no brinquedo da criança c na csfcrogrúfica que, quando
levados à boca, intoxicam, etc., c logo ressalta que a segurança do produto
vai além da aptidão para o uso a que se destina.

Por outro lado, o produto pode ser impróprio (inq[ica::) para o fim a
que se destina- logo, não conforme ao contrato - e todavia ncio carecer
de segurança, por não representar ou causar perigo para a pessoa c bens do
adquirente c de terceiros, como a máquina que não trabalha, o automóvel
que não anda, a televisão que não funciona, a semente que mio germina,
a planta que não desenvolve (veja-se o Acórdão da Relação de Évora, de
5/02/2004- Proc. 0 n. 0 1839/03-2), etc. ,

Mas um produto também pode ncio proporcionar 11111 uso qfica:: e


seguro, com falta de segurança a prejudicar o uso a que se destina ou com
a sua ineficiência a causar danos pessoais ou patrimoniais cvitúvcis pela
utilização de (outro) produto idóneo ou eficaz- pense-se, v.g., no cinto de
segurança, no airbag c no extintor de fogo que cm determinado acidente
não funcionam, no pesticida que apesar de devidamente aplicado não mata.

482
Responsabilidade ci,·il do produtor e protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

Tanto basta para ilustrar que a falta de segurança e a jàlta de


conformidade ou idoneidade do produto para o fim a que se destina não
se confundem e para evidenciar que a products liabili(v se caracteriza
justamente por ser uma responsabilidade por falta de segurança dos
produtos (Produktsicherheit), enquanto a clássica garantia por vícios
se traduz na responsabilidade do vendedor por falta de confomüdade
ou qualidade das coisas (Qualitâtshaftzmg). tendo, por isso, objectivos
diferentes: aquela visa proteger a vida e integridade físico-psíquica
das pessoas, a sua saúde c segurança: esta tem em mira o interesse
(da equivalência entre a prestação c a contra prestação) subjacente ao
cumprimento perfeito do contrato, pela entrega de coisa com as qualidades
ou características adequadas ao fim a que se destina. em confonnidade com
o acordado - neste sentido. entretanto. acórdão do STJ, de 11103/2003
(Processo 02A4341 ).

3. O problema crucial reside. po1s, em determinar o grau de


segurança a ter cm conta. A lei não exige que o produto ofereça
uma segurança absoluta. de risco zero: apenas a segurança com que
legitimamente se pode contar (art." 4.''. n." I, do Decreto-lei n." 383/89),
pois há "riscos redu::idos co!IIJH11Í\·eis com a sua utilização c considerados
conciliáveis com um elevado nível de protecção da saúde e segurança dos
consumidores" (art." 2.". al.b). do Decreto-lei n." 69/2005: art." 2.", al.b),
da Directiva 2001/95/CE).

Isto significa, de um lado, que o sujeito das expectativas da


segurança não é o consumidor ou lesado concreto. e, de outro, que só as
expectafi\'(ls legítimas são de ter cm atenção, vale dizer, as expecta/iras do
público a que se destina o produto. É essa segurança esperada e tida por
normal nas concepções do tráfico do respectivo sector de consumo (v.g.,
de adultos, de menores, de deficientes. etc.)- c não a segurança com que
o lesado pessoalmente contava, nas suas expectativas subjectivas - que
o juiz deve ter cm conta na valoração do carácter defeituoso do produto.
Esta a ideia traduzida pelo "se" constante do n." I do art." 4." do Decreto-

483
Fonnação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

-lei n. 0 383/89, correspondente ao on francês e ao mmz alemão, a ecoar


também no art. 0 2. 0 , al.b), iv, do Decreto-lei n. 0 69/2005 ("categorias de
consumidores que se encontrem em condições de maior risco ao utilizar o
produto, especialmente crianças e idosos").

Por outro lado, a norma fala de segurança legitimamente e mio


legalmente esperada. Intencionalmente, pois nas legítimas expectativas
objectivas do público em geral conta-se a segurança afirmada pelo estado
da ciência e da técnica ao tempo da emissão do produto no mercado,
mesmo que ainda não vertida em lei.

Isto mesmo veio entretanto ser dito, cxprcssis vcrbis, pela Directiva
2001/95, no seu art. 0 3. 0 , n. 0 3, pelo art. 0 4. 0 , n. 0 3, do Decreto-lei
n. 0 69/2005.

Na falta de normas legais ou regulamentares ( ... ), a conformidade


de um produto com a obrigaçcio geral de segurança é avaliada tendo em
conta, sempre que existam: as normas nacionais não obrigatórias ( ... ), as
normas cm vigor no Estado-membro ( ... ), o código de boa conduta cm
matéria de segurança dos produtos cm vigor no sector cm causa, o estado
actual dos conhecimentos e da técnica, o nível de segurança com que os
consumidores podem razoavelmente contm:

Havendo regulamentação, 11111 produto col!fhrme à lei go::a de


(
presunçcio de segurança, nos termos do n." 2 do art." 4." do Decreto-lei
n. 0 69/2005:

"Considera-se conforme com a obrigação geral de segurança


o produto que estiver cm conformidade com as normas legais ou
regulamentares que fixem os requisitos cm matéria de protecção de saúde
e segurança a que o mesmo deve obedecer para poder ser comercializado".

Mas se, não obstante a conformidade com as "normas" (de


"normalização") c regras legais, o produto ser revelar perigoso para a saúde
e segurança das pessoas, as autoridades competentes - cfr. a Comissão
de Segurança, prevista no art. 0 9. 0 , com as competências definidas no art. 0

484
Responsabilidad.: ciYil do produtor c prot.:cçào do consumidor .:m Portugal c na União Europeia

13.", ambos do Decreto-lei n. 0 69/2005- não ficam inibidas de adoptarem


as medidas necessárias para restringir a sua comercialização ou ordenar
mesmo a sua recolha ou retirada do mercado (art. 0 4, n." 4, do Decreto-
-lei n." 69/2005: art." 3. 0 , n. 0 4, da Directiva 2001/95/CE).

Naturalmente, cabe ao lesado a prom do defeito do produto e do nexo


de causalidade adequada entre ele e o dano (art. 0 342.", n. 0 1, do Código
Civil). Neste sentido, podem ver-se os seguintes arestos, reportados à
responsabilidade ci\'il do prodwor:

- A c. do STJ, de 5 de Março de 1996, 111 "Colectânea de


Jurisprudência", 1996, I, p.ll9:

- Ac. da Relação de Coimbra, de 8 de Abril de 1997, in "Colectânea


de Jurisprudência'', 1997. II. p.38: "tendo um automóvel, estacionado
numa garagem, ardido, sem se fazer a prova da causa do incêndio,
improcede a acção de indemnização pelos danos sofridos";

- Ac. da Relação de Lisboa. de 23 de l\,laio de 1995, in "Colectânea


de Jurisprudência", III, p.ll3: "Os danos no próprio produto defeituoso
não estão abrangidos no regime especial da responsabilidade civil do
produtor" c "se o defeito é da coisa prestada. aquele que a recebeu terá de
provar a desconformidade. a existência de um defeito":

- A c. da Relação de Coimbra. de 6 de Março de 2001, in


"Colcctünca de Jurisprudência". IL p.l6: "Não fôra a acção ter de claudicar
irremediavelmente por o Autor não ter logrado provar a existência dos
defeitos das tintas ü1bricadas c lançadas no mercado pela Ré, bem poderia
a mesma estar comprometida por conexão, total ou parcial, do vício do
uso que o próprio Autor deu às mesmas tintas. caso se provasse que tal
viciação do manuseamento ou aplicação ou uso tivesse sido absolutamente
ou parcialmente essencial ao mau resultado da obra'' - tratava-se de
tintas aplicadas cm supcrficics húmidas. com violação das recomendações
técnicas constantes da respectiva ficha técnica.

485
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

Já não será responsável o produtor se provar que o defeito (falta da


segurança legitimamente esperada) é devido à conformidade do produto
com normas imperativas estabelecidas pelas autoridades públicas. Ou
seja: o "fac tum principis" exclui a responsabilidade, para que o produtor
não fique confinado à escolha entre "a desobediência e a responsabilidade"
ou a liberdade de... não produzir. Não basta, todavia, a demonstração
da conformidade com norma imperativa, a prova de que o produtor
cumpriu a lei; é necessário também mostrar que o defeito é devido à sua
conformidade com essas normas, com o produtor a provar o ne.;m de
causalidade entre o defeito e a conformidade à norma imperativa, que o
conteúdo obrigatório da norma originou o defeito do produto, de tal sorte
que o dano seja inteiramente devido "au fait du prince ".

Numa palavra: todo o produto que não ofereça a segurança


legitimamente esperada será "defeituoso", na Directiva 85/374/CEE e
no Decreto-lei n. o 383/89, ou "perigoso", na Directiva 2001/95 (art. o 2. ~
al.c): "Produto perigoso - um produto que não corresponda à definiçcio
de produto seguro na acepção da alínea b)").

IV. Elementos de valoração do defeito


/ I. Se um produto não é defeituoso, porque oferece um bom nível
de segurança conforme às legítimas expectativas do público, ou se é
defeituoso, porque comporta um grau de insegurança (ou perigosidade)
com que legitimamente se não pode contar, só o juiz o pode determinm;
tendo em atenção a peculiaridade do produto em causa e todas as
circunstâncias do caso concreto. Todavia, o legislador especificou
algumas dessas circunstâncias a valorar pelo julgador, auxiliado por
peritos, na complexa actividade de concretizar a noção elástica ou
conceito indeterminado de falta da segurança legitimamente esperada: a
apresentação do produto, a utilização que dele razoavelmente possa ser
feita e o momento da sua entrada em circulação (art. 0 4. 0 , n. 0 I, 2.a parte,
do Decreto-lei n. 0 383/89), sensivelmente os mesmos que vêm referidos no
art. 0 3. 0 , al.b), do Decreto-lei n. 0 69/2005, conquanto noutra retórica.

486
Responsabilidade civil do produtor e protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

2. Naturalmente, o juiz atende ao produto em si, às suas


características c composição ( cfr. art. 0 3 .0 , al.b ), i), do Decreto-lei
n. 0 69/2005). Aias também à sua apresentação (art.0 4.0 , n. 0 1, do Decreto-
-lei n. 0 383/89), com o art. 0 2. 0 , al.b), ii, do Decreto-lei n. 0 69/2005 a
explicitar ainda a "embalagem, a rotulagem e as instruções de montagem,
de utilização, de conservação e de eliminação, bem como eventuais
advertências ou outra indicação de informação relativa ao produto".
Reflecte isto a ideia de que o defeito não deriva só do produto em si, do
seu conteúdo ou natureza intrínseca, mas também do seu "continente",
da forma externa como é apresentado ao público em todo o processo
de comercialização. Com esta explicitação, a falta da segurança
legitimamente esperada abrange tanto a que deriva de vícios intrínsecos
(defeitos de concepção e defeitos de fabrico) como a que resulta dos vícios
extrínsecos (defeitos de informação): o público espera que a "segurança
externa" do produto, infundida pela sua apresentação, publicidade,
descrição c informação, não falte, tal como crê na sua "segurança interna".

3. O segundo elemento da definição de defeito do produto enunciado


no n. I do art. 0 4. 0 do Decreto-lei n. 0 383/89 é este: "a utilização que dele
0

razoavelmente possa serfeita ".

Quer isto dizer que o legislador não se atcve apenas ao uso


específico a que o produto se destina; quis que o produtor, ao conceber,
fabricar c comercializar um produto, ti\'esse em conta não só a utilização
conforme ao fim ou destino dele pretendido em condições normais,
mas também outros usos razoavelmente previsíveis que do mesmo
possam ser feitos. Isto mesmo está também agora expresso no Decreto-
-lei n. 0 69/2005, que, depois de considerar produto seguro aquele que,
"em condições de utilizaçüo normais ou razoavelmellfe previsíveis,
incluindo a duração, se aplicável a instalação ou entrada em serviço e a
necessidade de conservação, não apresente quaisquer riscos ou apresente
apenas riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados
conciliáveis com um elevado nível de protecção da saúde e segurança

487
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

dos consumidores" (al.b) do art. 0 3. 0 ), define assim "uso normal ou


razoavelmente previsível" (art. 0 3. 0 , al.j)):

"A utilização que se mostra adequada à natureza ou características


do produto".

Deste modo, pressiona-se o produtor a cumprir a obrigaçào geral


de segurança, determinando-o a antever possíveis utilizaçôes erróneas
do seu produto, mas razoáveis e aceites pelo público em geral. Pense-
-se em brinquedos, em lápis ou csfcrográticas, c accitar-sc-á com toda
a naturalidade ser normal e previsível que sejam levados à boca. Esta
circunstância leva a que o seu revestimento não deva ser tóxico, sob pena
de esses produtos serem considerados defeituosos, mesmo que contenham
a advertência adequada. Em casos tais, não pode afirmar-se que haja
um uso abusivo ou aberrante, não previsível, com que razoavelmente
não possa contar-se, porquanto, ainda que não conforme ao fim a que
o brinquedo, o lápis ou a esferográfica se destinam c para que foram
concebidos, levá-los à boca é razoavelmente previsível c socialmente
aceite.

4. A terceira circunstüncia especificada no art." 4." do Decreto-lei


n.o 383/89 para avaliar a fàlta da segurança legitimamente esperada é o
momento da entrada em circulaçtío do produto.

Corresponde a dizer que o juiz não pode situar-se no momento


do acidente ou do próprio julgamento, mas deve reportar-se à data da
colocação do produto cm circulação. Se, nessa data, o produto oferecia a
segurança com que legitimamente o grande público podia contar, o produto
é "perfeito", mesmo que posteriormente venha a ser apelfeiçoado pelo
produtor - neste sentido, entretanto, acórdão ela Relação elo Porto, de
27/03/2003 (Processo 0330634). Assim, o automóvel posto cm circulação
há alguns anos, sem travões hidráulicos, sem cintos de segurança c sem
faróis de nevoeiro, não se torna defeituoso só porque ulteriormente aparece

488
Responsabilidade civil do produtor c protecção do consumidor cm Portugal e na União Europeia

melhorado com o sistema de travagem ABS, cintos de segurança, faróis de


nevoeiro c airbag.

Neste sentido, precisa o n." 2 do mesmo art." 4.:

"Não se considera defeituoso um produto pelo simples facto de


posteriormente ser posto cm circulação outro mais aperfeiçoado".

Do mesmo modo, o art." 2.", al.b), in.fine, da Directiva 2001/95, não


transposta para o Decreto-lei n." 69/2005:

"A possibilidade de se obter um nível superior de segurança ou


outros produtos que apresentem um risco menor não constitui razão
suficiente para que um produto seja considerado perigoso".

5. Entre outras circunstâncias atendíreis para a valoração das


legítimas expectatims de segurança. c uma vez que o juiz deve ponderar
todas as circunstâncias do caso, siio de mencionar, em tennos globais,
elementos ou referentes como a nature::.a do produto e o seu preço, a
sua utilidade ou imJ)()r/ância para a humanidade, a possibilidade de
eliminaçiio do (hfeito sem pôr termo à utilidade do produto, a \'iabilidade
de um produto suhstituto ou altemati\'0 que satisfaça a mesma necessidade
sem insegurança, a possihilidade tecnológica. a probabilidade do dano e a
sua e\•itahilidade pelo l/lente.

Pense-se no consrmro de hehidas alcoólicas ou do tabaco c nos seus


possíveis efeitos prejudiciais ú saúde c compreender-se-á que a natureza
do produto /l(fO pode deixar de ser tida em conta na apreciaçào das
legítimas expectatims de segurança do público consumidor em geral;
de igual modo, a pessoa que compra coisa usada não pode esperar dela o
mesmo grau de segurança que apresenta cm nova.

Pense-se nos alllomó,·eis. nos modelos utilitários e baratos, nos


modelos de luxo e caros. c comprccndcr-sc-á que o preço seja outro dos
elementos a ter cm conta na apreciação do defeito. Se isto é certo, certo

489
Fonnação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

também que todos esperam sempre dos automóveis, mesmo dos utilitários,
a segurança básica mínima ou suficiente que os não faça correr riscos
dentro das condições normais de uso, segurança básica que deve ser
independente do preço.

Pense-se no medicamento de extrema importância para a


Humanidade no combate a doença grave, embora com detcnninados
efeitos secundários conhecidos mais inclimináveis no estádio presente da
ciência e da técnica, e logo cintila a nessecidade de o juiz ponderar a sua
utilidade e o seu risco, como acontece, hoje, com a cortisona - de que a
medicina não pode prescindir em virtude de a sua utilidade social superar
os riscos ou efeitos secundários negativos - c pode suceder amanhá com
o tão desejado medicamento contra a sida, contra o cancro, contra a BSE
ou contra a doença de alzheimer, não aplicando o princípio da prevenção,
tendente a evitar riscos conhecidos.

Pense-se na observância das normas técnicas, mera presunçcio


relativa de segurança do produto conforme, a não prescindir do respeito
devido ao estado dos conhecimentos científicos c técnicos.

V. Tipologia de defeitos: A) Defeitos de concepção

1. Na formulação aberta c elástica da noção legal de defeito podemos


distinguir, consoante a fase do processo produtÍI'O em que têm origem ou
causa, defeitos de concepçào, defeitos defabrico, defeitos de il?fórmaçcio e
defeitos do desenvolvimento.

Em primeiro lugar, wn produto pode ser defeituoso porque


ilegitimamente inseguro na sua concepçi'io ou idealizaçcio. Seio os defeitos
de projecto ou "design" por inobservância do estado da ciência e da
técnica.

Devido a erros ou deficiências existentes logo na f~1sc inicial


do planeamento c preparação da produção - a fase da concepção ou
idealização do produto -, tais defeitos figuram em todos os produtos da

490
Responsabilidade ci\·il do produtor c protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

série ou séries fabricadas, promcando, por isso, danos em série, já que


expressão do mesmo plano ou "design ".

2. Chamamos-lhes defeitos de concepçdo, tcnninologia impressiva,


tal como "design defects ", que nos coloca imediatamente na fase da
concepção, idealização ou projecto do produto.

Constituem, pois, defeitos intrínsecos ou defeitos estruturais do


produto, mal concebido ou idealizado.

VI. Tipologia de defeitos: B) Defeitos de fabrico

1. Em segundo lugar. um produto pode ser defeituoso porque


ilegitimamente inseguro ou perigoso no seu fabrico. São os defeitos que
surgem na fase propriamente dita de laboração. produção ou fabrico, em
execuçiio do projecto ou design pqfeito. defeitos típicos da moderna
produção industrial cm massa, autonomizada c estandardizada, e devidos a
falhas mecânicas ou/e humanas da organi::.açclo empresarial.

Neste tipo de defeitos. o produto afectado difere do resultado


esperado pelo produtor, não se apresentando conforme ao padrão que este
a si mesmo se impôs. A sua característica é a inerência apenas a algum ou
a alguns exemplares de uma SL;rie regular. c surgem, quer por uma questão
de racionalidade económica. quer por escaparem ao mais elevado grau de
cuidado c controlo da produção. São todos exemplares ':fora de série",
mas os segundos- aqueles que escapam ao mais elevado grau de cuidado
c controlo de produção - , ditos exemplares .fitgitims ou desertores, são
defeitos de fabrico sem culpa. diferentemente dos primeiros, à partida
aceites numa pequena percentagem pelo fabricante. Consequentemente,
a identificação dos defeitos de fabrico apresenta-se fácil: basta comparar
o produto defeituoso com outros exemplares perfeitos da mesma série ou
linha de produção.

2. A estes defeitos. que Ü1zcm com que os produtos afectados não


ofereçam a segurança proporcionada normalmente pelos outros exemplares

491
Fom1ação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

da mesma sene, chamamos defeitos de fabrico, igualmente defeitos


intrínsecos ou estruturais (in re ipsa), que ll{lO podem ser afastados por
informações compensadoras.

VI. Tipologia de defeitos: C) Defeitos de informação. O dever de


sequela e vigilância do produto no mercado

I. Em terceiro lugar, um produto pode ser ilegitimamente inseguro


por jàlta, insuficiência ou inadequaçüo de informações, advertências
ou instruções sobre o seu uso e perigos conexos. Em si mesmo não
defeituoso, na sua estrutura intrínseca, já que bem concebido c fabricado,
o produto pode, todavia, não oferecer a segurança legitimamente esperada
porque o seu fabricante o pôs cm circulação sem as adequadas instruções
sobre o modo do seu emprego, sem as advertências para os perigos que o
seu uso incorrecto, impróprio mas previsível, comporta sem a menção das
contra-indicações da sua utilização, sem as informações acerca das suas
propriedades perigosas - v.g., toxicidade, inflamabilidade - c efeitos
secundários, etc.

Os defeitos de informaçtío ou de instmçtío, resultantes do não


cumprimento ou cumprimento imperfci to do dever de alertar, advertir
ou instruir, selo, pois, vícios extrínsecos, J1(/o ínsitos no produto,
diferentemente dos defeitos de concepção c de f~1brico que são vícios '
intrínsecos, inerentes à própria estrutura do produto (in re ipsa).

Produtos cm si mesmos não defeituosos requerem, todavia, o


acompanhamento de adequados avisos c informações, que permitam
avaliar os riscos inerentes ao uso normal ou razoavelmente previsível,
sempre que não imediatamente perceptíveis sem a devida advertência
0
(art.o 6. , n. 0 I, al.a), do Decreto-lei n." 69/2005), sob pena de
responsabilidade do produtor, justamente porque o produto não oferece a
segurança legitimamente esperada.

Prestada pelo prodll/01; a il?fàrmaçüo, que pode ser vista como


parte do design, deve acompanhar o produto na sua circulaçâo até aos

492
Responsabilidade civil do produtor c protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

destinatários ou consumidores finais, assim se justificando o dever de


informar também a cargo dos anéis illfermédios da comerciali::açào
(art. 0 8, n."' 2 c 3, da Lei n. 0 24/96), sob pena de responsabilidade
solidária de quem violar essa obrigaçào (art. 0 8. 0 , n. 0 5, da Lei n. 0 24/9.6)
- responsabilidade objectim do produtor que não preste a infonnação
adequada; responsabilidade subjectim dos meros distribuidores que,
recebida a informação do produtor, a não circulam e não fazem chegar aos
destinatários finais. Logo, tal como para os defeitos de concepção, também
para os defeitos de informação o estado da ciência e da técnica é o limite
da sua exigibilidade: ambos são defeitos conhecidos ou cognoscíveis,
de acordo com o estado dos conhecimentos científicos e técnicos
contemporâneos à colocação do produto no mercado.

Daí que se diga, de outro modo, que as mh·ertências e instruções


integram ou complemell!am o design, preenchendo, melhor, compensando
as "lacunas do desen\'olvimento" existentes na fase da concepção
ou pr(~jecto do produto. Por outras palavras ainda: há produtos
com deficiências intrínsecas de concepçâo ou design. conhecidas
mas ine/imiJl(Í\'eis ou incorrigh·eis cient[{icamente - é o caso dos
efeitos secundúrios de certos medicamentos -, que selo considerados
legitimamente seguros se e só se acompanhados das adequadas
il?fbrmaçiics c (/(h·crtências. Por isso, a sua exigência enquadra-se
na utilização razoavelmente esperada do produto, sendo impossível
advertir contra perigos imprevisíveis c dcsrazoúvcl contra perigos não
razoavelmente previsíveis.

Neste primeiro aspecto das Íl!f(mnaçôcs ou ad1·ertências como meio


altematim (à conccpçiio segura) para obter 11111 uso seguro do produto
e veículo de irresponsahilidade do pmdutor por defeitos de concepçao,
o juiz deve valorar a escolha feita (pelo produtor), podendo considerar
defeituoso o produto apesar dos avisos ou advertências, por exemplo, por
falta de dispositivos de segurança exigíveis de um produtor médio- caso
de responsabilidade por culpa, ex vi do art. 0 483. 0 ou do art. 0 493. 0 ,

493
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

n. 0 2, do Código Civil - ou do produtor ideal, bitola na responsabilidade


objectiva. Assim, em vestido de seda altamente inflamável em contacto
com o cigarro, o aviso para este risco não evitará a qualificação do produto
como defeituoso; esferográfica ou brinquedo com revestimento tóxico, a
advertência não afastará o defeito; pistola-brinquedo, perigosa se usada
perto da vista ou do ouvido, será defeituosa mesmo que acompanhada de
aviso ou advertência ... que a criança não lê ou não pondera. No fundo,
trata-se de evitar que os avisos ou advertências funcionem como claúsulas
de exclusão da responsabilidade por defeitos de concepçiio conhecidos
e elimináveis ou corrigíveis em face dos conhecimentos cient[ficos e
técnicos.

2. Vejamos agora um segundo aspecto, o aspecto da forma e


conteúdo das informações e advertências, no quadro do uso normal ou
razoavelmente previsível.

O produtor deve ter o cuidado de apresenta~; de forma apropriada,


explícita, clara e sucinta, as advertências e instruções exigíveis segundo a
possibilidade tecnológica, cm ordem a obter o resultado pretendido - o
esclarecimento adequado do destinatário acerca dos riscos envolvidos. Mas
dizer que as informações devem ser adequadas, claras, precisas e sucintas
"clara, objectiva, completa c adequada" é a fórmula do ar1. o 8. 0 , n. "s I c 3,
da Lei n.o 24/96, a Lei de Defesa do Consumidor - corresponde a afirmar
que elas devem ser dadas obrigatoriamente no idioma das pessoas a que se
destinam os produtos (cfr., art. 0 7.", n. 0 3, da Lei n." 24/96), cm linguagem
simples c compreensível para o grande público - c não cm formulações
técnicas que só os especialistas entendem -, c que devem esclarecer
cabalmente o que fazer e o que Jl(/o fazer quanto ao seu emprego,
chamando a atenção para o eventual perigo resultante de um mau uso.

Não basta dizer, num exemplo de escola, que determinada injecção


não pode ser ministrada por via intravenosa - impõe-se esclarecer
que, se o for, pode ser letal; num produto escreve-se cm letras garrafais
"inflamável" e em letra pequena "venenoso": o produtor pode ser

494
Responsabilidade civil do produtor e protecção do consumidor cm Portugal e na União Europeia

responsável pela morte de cnança que o mgtra, com base na falta de


adequado/evidente aviso de alerta para o risco mais grave; num produto
químico não basta dizer "conservar em lugar fresco" importa esclarecer
que explode ou pode explodir se conservado acima de certa temperatura.

Pelas razões sobreditas, os defeitos de injàrmaçao assemelham-


-se aos defeitos de concepçao: estes afectam toda a série, porque mal
concebido o produto; aqueles afectam toda a série, porque, embora "bem"
concebido e fabricado, o produto se toma perigoso e defeituoso por
omissão ou inadequação das instruções, advertências ou avisos e instruções
acerca dos riscos que o seu uso comporta. Por isso, na medida em que as
informações, advertências ou instruções não são projectadas mas deviam
ter sido providenciadas para facultar um uso razoavelmente seguro ou
não perigoso do produto, os defeitos de il?formaçao sao frequentemente
equiparados aos defeitos de concepçao. entre os quais não raramente a
diferença é por assim di::er de grau.

Naturalmellle. importa que o \'/CIO de il?fàrmaçao seja a causa


1 1
aaequacta 1
cto 1
(ta no, a prm ·ar pe f o fesm Io 1I ar!. .J..,4?_. , 11. 0 J, do Co'd'a
0 0
10 0

Civil) - logo. demonstrado que o prejuí::o se teria verlficado mesmo


se o produto th·esse sido comerciali::ado com a il?f(mnaçao completa e
adequada. del·ido à assunçiio do risco ou porque a sua utili::açào letal se
deu em condiçôes anormais. aberrantes ou irracionais, o produtor nao
será responwÍ\·el (veja-se o acórdão do STJ. de 06/05/2003 - Processo
03A 1132: morte de criança após administração acidental (por engano) pela
avó de produto corrosivo dcfccientemcntc rotulado. o qual se encontrava
precisamente ao lado do medicamento a ministrar ("a deficiência de
rotulagem do produto não foi a causa do evento danoso").

3. Não termina com a colocação do produto no comércio o dever de


informação.

O produtor tem o dever de acompanhar. observar e v1g1ar


continuamente os produtos. mesmo após a emissão no mercado.

495
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

Esta obrigação de sequela ou seguimento e vigilância activa e


contínua dos produtos no decurso da sua utilização é muito importante,
pois pode permitir descobrir imperfeições não conhecidas nem
cognoscíveis no momento da sua entrada cm circulação (riscos do
desenvolvimento) ou defeitos provenientes de desgaste, fadiga ou
envelhecimento prematuro que, constituindo fontes de perigo para os
seus utentes e terceiros - cm virtude de não oferecerem a segurança
legitimamente esperada -, ditarão adequadas advertências c informações
ao público, a recolha do produto para correcção - frequente nos veículos
- ou mesmo a sua recolha ou retirada definitiva do mercado (art. 0 6. 0 , n. 0 I,
al.b ), do Decreto-lei n. 0 69/2005), corrente nos medicamentos.

Corresponde, esta obrigação de sequela c vigilüncia contínua, ao


conhecido monitoring duty, Beobaclztungspflicht ou Übenl'aclnmgsnflicht,
especial dever no tráfico a partir da colocação do produto cm circulação,
que responsabiliza o produtor desde o momento cm que o perigo é
conhecido ou previsível, mas não, naturalmente, para o passado - perigos
incognoscívcis que caem nos chamados riscos do desenvolvimento -, c
que incide sobre todas as fontes de défice da segurança legítima (defeitos
de concepção, defeitos de fabrico, defeitos de informação) de acordo com
a moldura do estado da ciência c da técnica (art." 5.", al.c), do Decreto-
-lei n. 0 383/89).

Logo, o dever de sequela e vigilância ohriga o produtor a ter em


atençclo in fitturum os novos dados da ciência e da técnica, sob pena de
ser responsabilizado com base na culpa provada (art." 483. 0 ) ou presumida
0
(art.o 493.'\ n. 2) do produtor médio ou com base no risco tendo como
arquétipo o produtor ideal.

VII. Tipologia de defeitos: D) Defeitos ou riscos do


desenvolvimento

I. Em quarto lugar, wn produto pode ser ilegitimamente inseguro ou


perigoso por riscos ou defeitos ingnoscíveis segundo o estado da ciência

496
Responsabilidade ci\·il do produtor e protecç:.io do consumidor em Portugal e na União Europeia

e da técnica ou estado da arte existente ao tempo do seu lançamento


no comércio. São os chamados riscos do desenmlvimento, os quais, à
semelhança dos defeitos de concepção e dos defeitos de infonnação,
afectam toda a série, c encontram na indústria fam1acêutica e na indústria
química campos férteis de aparecimento.

Deverá o produtor ser responsabili::ado por riscos do


desenvolvimento?

A proposta da Directiva apresentada em 1976 abrangia este tipo


de vícios na responsabilidade objectiva do produtor (art. 0 1.0 ). Mas o
Parlamento Europeu propôs a sua exclusão do àmbito da Directiva.
Finalmente, o Conselho de Ministros, profundamente dividido, acabou por
aprovar uma solução de compromisso. a solução constante da Directiva
85/374: uma responsabilidade objectiva (art. 0 1.") que não se estende aos
riscos de desenvolvimento. restrição esta formulada como causa liberatória
a provar pelo produtor (art." 7.". al.e)). mas com a possibilidade da sua
(deles, riscos do desenvolvimento) inclusão nas legislações nacionais de
transposição da Directiva. por derrogação da al.e) do art. 0 7. 0 (cfr. art. 0
15.",n." l,al.b)).

Portugal. como quase todos os demais Estados-membros, não fez


uso desta opção. pelo que o produtor não é responsável se provar (art. 0 5. 0 ,
al.c), do Decreto-lei n." 3R3/R9).

"Que o estado dos conhecimentos científicos c técnicos, no momento


cm que pôs o produto cm circulação, não permitia detectar a existência do
defeito".

2. Ponto decisivo: cm que medida um defeito era cognoscível


segundo o estado da arte?

Inequivocamente. o momento a que o Jui:: de,·e reportar-se é o


da colocaçcio em circu/açiio do produto c não o da verificação do dano,
muito menos o da apreciação da respectiva acção judicial. Se o estado

497
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

da ciência e da técnica relevante fosse o do momento do dano ou do


julgamento, teríamos uma inequívoca aplicaçclo retroactiva do padrão
ou da medida da responsabilidade, o que não seria justo nem razoável:
desencorajaria ou não favoreceria o desenvolvimento e comercialização de
novos e necessários produtos - pense-se em medicamento para combate
ao cancro, à sida, à BSE ou à alzlzeimer; desincentivaria o produtor à
descoberta ou pelo menos à utilização c publicação de novos padrões de
segurança para produtos por si já comercializados, com receio de que
isso se considerasse uma confissão da sua responsabilidade - atente-
-se, de resto, no n. 0 2 do art. 0 4. 0 do Decreto-lei n. 0 383/89; enfim, seria
uma responsabilidade absoluta mas artificial, por utilizar um padrão ou
uma medida inexistente no momento decisivo para apreciação do defeito
causador dos danos (art. 0 4. 0 , n. 0 I, do Decreto-lei n. 0 383/89), pedra
angular da responsabilidade do produtor, sem prejuízo, vimo-lo já, do
dever de sequela e vigilância do prodlllo.

No tocante à de.finiçcio do estado da arte, o critério da lei é


objectivo, mio atendendo ao produtor concreto: interessado cm eximir-se
à responsabilidade, este tem de provar que "o estado dos conhecimentos
científicos e técnicos( ... ) 11(/o permitia"- c não lhe permitia- "detectar
a existência do defeito". Decisiva é, pois, a incognoscibilidade elo defeito
ou periculosidadc do produto segundo o estado geral ela arte, o estado
planetário dos conhecimentos cient{ficos c técnicos 110 sector, vale dizer,
a impossibilidade absoluta e objectiva de descobrir a existência do
defeito por falta ou insuficiência de meios técnicos c científicos idóneos,
c não a impossibilidade subjectiva ou dificultas pracstandi do produtor
cm causa. Pelo que o produtor tem de estar sempre actuali::ado, a par
das experiências científicas c técnicas mundiais, conhecedor da literatura
nacional c internacional ela especialidade, do mais avançado estado
da ciência e da técnica mundiais - neste sentido veio pronunciar-se,
entretanto, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, cm acórdão
de 29 de Maio de 1997 - , entendido objectivamente como a "essência do
conhecimento", por definição dinâmico c evolutivo, cuja moldura, porém,

498
Responsabilidade ci\·il do produtor c protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

deve ser a da possibilidade cient{fica e técnica que se haja imposto no


respectivo sector c tenha passado a estar à disposiçao geral.
Equivale isto a dizer que o estado da arte, risto como possibilidade
cientifica-tecnológica, tem por esta/ao o produtor ideal, o produtor óptimo
- aquele fabricante que observa no seu campo ou especialidade o mais
avançado estado da ciência e da técnica mundiais existente no momento
da colocação do produto no mercado, porventura ainda não praticado pelo
produtor médio.
3. A exclusclo dos riscos de desenroh·imento do âmbito da
responsabilidade do prodlltor compreende-se: no fundo, este tipo de
defeito reflecte o relativismo da ciência e da técnica, rectius, a inexistência
ou a falta de saber e conhecimento adquirido e praticá1·el no momento
da distribuição do produto, pelo que só um ulterior progresso científico e
técnico permitirá supri!; corrigir e pre1·enir tais defeitos e danos serôdios
deles resultantes.

1Has porque deixa de j(wa os riscos do desenrolvimento, o Decreto-


-lei n." 383189 consagra uma responsabilidade ol~jectira limitada. Afora
estes, o produtor responde. independentemente de culpa. pelos danos
causados por defeitos de concepção. defeitos de fabrico c defeitos de
informação dos seus produtos. com o "estado da ciência e da técnica"
a servir de linha de jinnteira entre os defeitos de concepçâo/informaçao
e os riscos do desen\'Oh·imellfo: do lado dos primeiros ficam os riscos
conhecidos, cognoscíveis ou previsíveis. pelos quais o produtor responde
subjectivamente, segundo o modelo do produtor médio do sector, ou
independentemente de culpa. de acordo com o padrão do produtor
ideal; do lado dos segundos f1cam os riscos ignotos. incognoscíveis ou
imprevisíveis, pelos quais o produtor não é responsável.
Exemplo: se no momento da colocação em circulação do Factor
VII o mais avançado estado da ciência c da técnica mundiais pennitia
detectar o efeito danoso nos hemofílicos - a sida -, teremos um caso
de defeito de concepção pelo qual o fabricante é responsável pelo menos

499
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

objectivamente, porque encarado como produtor ideal; mas se esse mesmo


defeito não era detectável pelo mais avançado estado da ciência e da
técnica mundiais contemporâneo da sua emissão no comércio, o caso já
não será de risco do desenvolvimento e o produtor não responderá pelos
respectivos danos - sem prejuízo, naturalmente, da responsabilidade
sucessiva que emerja da não observância do dever de sequela e vigilância
do produto no mercado.

Mas isto mostra que, pela sua natureza, os riscos do desenvolvimento


podem ser assimilados aos defeitos de concepçtio, funcionando como
uma espécie de vasos comunicantes: riscos que num certo estádio
dos conhecimentos científicos e técnicos constituem defeitos do
desenvolvimento, num estádio sucessivo do progresso científico e técnico
já serão defeitos de concepção - e com dever de sequela c vigilância
contínua a servir, de algum modo, para delimitar rigorosamente o campo
da não responsabilização do produtor pelos riscos do desenvolvimento.
É que, em rigor, estão em causa sempre defeitos de concepçcio, só que
uns seio conhecidos ou cognoscíveis segundo o mais avançado estado da
ciência e da técnica - defeitos de concepçiio propriamente ditos -, ao
passo que outros são ainda incognoscíveis em fimçüo do mesmo estado dos
conhecimentos científicos e técnicos- ditos riscos do desenvolvimento.

Por isso, as quatro categorias de defeitos catalogadas encerram-se a


bem dizer em duas: a categoria dos defeitos de concepçüo -que engloba
os defeitos de concepção propriamente ditos, os defeitos de informação c
os riscos do desenvolvimento- e a categoria dos defeitos de fabrico.

Por fim, reconheça-se ser controversa c controvertida a solução


de compromisso encontrada pela Directiva c acolhida pela esmagadora
maioria dos Estados-membros.

O ressarcimento das vítimas do desenvolvimento científico c


tecnológico constitui questão em aberto, para cuja solução, delicada, são
possíveis, inter alia, a responsabilidade do produtor, a responsabilidade

soo
Responsabilidade civil do produtor e protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia

do Estado ou um Fundo Especial de Garantia do Desenvolvimento,


alimentado por produtores e erário público.

Afinal, se o homem deve prevenir nscos conhecidos e ter a


precaução de não criar riscos desconhecidos, reconheçamos que a
Humanidade é um desafio permamente ao saber... na dobra do "Gigante
Adamastor" para dar "novos mundos ao mundo", vencendo os perigos
potenciais desconhecidos.

VIII. Danos rcssarcívcis: A) Integridade pessoal

1. Sabendo da inexistência de responsabilidade civil sem dano e da


responsabilidade civil do produtor pelos danos causados por defeitos de
segurança dos produtos que põe em circulação (art.0 1.0 do Decreto-lei
n. 0 383/89), resta c impõe-se saber que prejuízos são esses, os ressarcíveis
pelo produtor ao abrigo desta legislação especial tão arreigada à obrigação
de segurança das pessoas.

Nem todos os danos causados por defeitos de segurança de um


produto são indemnizáveis com fundamento no Decreto-lei n. 0 383/89 -
sem prejuízo, contudo, da aplicação do direito comum (art. 0 13.0 ). Apenas
os especificados no art. 0 8. 0 , que cstatui como segue: "São ressarcíveis os
danos resultantes de morte ou lesão pessoal c os danos cm coisa diversa
do produto defeituoso, desde que seja nom1almcntc destinada ao uso ou
consumo privado c o lesado lhe tenha dado principalmente este destino".

O actual art. 0 8. 0 , hic et mmc transcrito, tem a redacção dada


pelo Decreto-lei n. 0 131/2001, de 24 de Abril - diploma que, repete-
-se, transpôs para a ordem jurídica intema a Directiva 1999/34/CE - ,
exactamente a mesma do n. 0 1 do art. 0 8. 0 na versão primitiva.

2. Primeira evidência: no caso de morte ou lesão pessoal, são


ressarcíveis todos os danos, sejam patrimonias ou não patrimoniais,
também chamados danos morais. Nenhuma dúvida se pode levantar
quanto à aplicação neste domínio, o domfnio da responsabilidade objectiva

501
Formação Jurídica c Judiciária- Colcctànea Tomo IX

do produtor, do disposto no art. 0 496. 0 do Código Civil, seja perante um


terceiro ou parte contratante, de resto em consonância com a solução que
temos por a melhor em geral: aplicaçcio do art. o 496. o também no âmbito
da responsabilidade contratual.

Segue-se daqui que os danos atendíveis ncio seio só os provenientes


de lescio COI]Joral, sobretudo da lesão letal, mas os resultantes de
qualquer lesclo pessoal, atentado à saúde e segurança ou illfegridade
fisica, psíquica ou mental- aspecto relevantíssimo, porquanto nos danos
causados por produtos perigosos ou não seguros o atentado à integridade
psíquica e sanidade mental, com perturbações neurológicas e alterações de
personalidade, surgem com frequência.

Sendo assim, a distinção, não raro dificílima - ou não fosse o


homem um ser dotado de unidade indivisível de corpo c espírito - , entre
lesões corporal, psíquica c espiritual não terá grande interesse prático,
pois são tão ressarcíveis umas como outras, provoquem dor fisica,
sofrimento moral, prejuízo estético, prejuízo fisiológico, perturbações de
afectividade ou de afeição, perda de juventude ou de capacidade sexual,
privação de uma actividade agradável (préjudice d' agrément) - uma
espécie de "atentado à qualidade de vida" c "bcm-estar" que, cm sentido
estrito, abrange a perda da possibilidade de exercer certas actividades de
lazer, como a desportiva, a artística, a cultural, etc., c, cm sentido amplo,
abarca ainda os sofrimentos, as frustaçõcs c outras sequelas de ferimentos,
chegando mesmo a estender-se ao prejuízo de afeição. Sem sentido
fica, pois, a tentação para multiplicar as classificações de danos não
patrimoniais que, sobrepondo-se no conteúdo, só geram confusão no plano
terminológico.

Em inferência do que vai dito, considera-se a lesào da pessoa "sub


specie zmitatis ",passível de sançào pelo desrespeito à inviolabilidade da
pessoa humana vista in totum (corpo e espírito), tendo por ressarcíveis,
11(/o só os danos patrimonias indirectos, sejam os danos emergentes - as
despesas médicas, de hospitalização, farmacêuticas, de reeducação flsica c

502
Responsabilidade ci\'il do produtor c protecção do consumidor cm Portugal e na União Europeia

profissional, etc. - , sejam os lucros cessantes- os salários ou beneficias


que deixaram de ser ganhos cm virtude da incapacidade temporária
ou permamente de trabalho. etc. - . como igualmente os danos não
patrimoniais.

3. No tocame à extenscio dos danos a ressarci!; miem as regras do


direito comum.

Assim, no que se refere ao dano patrimonial indirecto da própria


vítima resultante de lesão pessoaL a avaliação far-se-á segundo a teoria da
diferença "entre a situação patrimonial do lesado. na data mais recente que
puder ser atentida pelo tribunal" - a data do encerramento da discussão
na primeira instância (art. 0 663." do Código de Processo Civil) - , "e a
que teria nessa data se não existissem danos" (art." 566.", n." 2, do Código
Civil), não podendo ter lugar a graduação equitativa da indemnização
permitida no ar!." 494. ", inaplicárel à responsabilidade objectiva do
prodltfol:

Na fixação do dano patrimonial indirecto de terceiros cm caso de


morte ou lesão pessoaL vale o disposto no art. 0 495.0 do Código Civil.

Quanto à detemrinaçcio do quantum debeatur de danos não


patrimoniais, providencia o ar!." 496." do Código Ciril. Apenas três
observações.

4. A primeira é a de que são ressarcíveis tão-somente os prejuízos


que, pela sua grm•idade, mereçam a tutela do direito. Embora a formulação
não seja de grande amplitude. constitui um progresso relativamente a
outros Códigos, nomeadamente o italiano (art." 2059.") c o alemão (§253),
que só admitem a ressarcibilidadc dos danos não patrimoniais, nos casos
previstos na lei. Este progresso, o da consagraçiio em termos gerais da
ressarcibilidade dos danos ll(to patrimoniais. nào é despido de sign[ficado.
Na verdade, ao deixar ao tribunal a conYcnicnte margem para. dentro do
circunstancialismo do caso, determinar objectimmellfe se um determinado
dano extra-patrimonial merece ou não a tutela do direito. a lei portuguesa

503
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

não só dá azo a ter de considerar patrimoniais danos de natureza mio


patrimonial, com vista a indemnizar o prejuízo que de outro modo seria
inessarcível, por não estar previsto na lei.

É o que acontece na Itália com o chamado "dano biológico",


expressão nova, introduzida cm 1974 numa sentença, que traduz o dano
à saúde "em si e por si", independentemente das consequências de
natureza patrimonial sofridas pelo lesado. No centro do debate, justamente
a questão da atribuição de natureza patrimonial ou não patrimonial ao
dano à saúde: segundo uns - e esta será a opinião maioritária - , o dano
biológico é patrimonial; segundo outros, é dano não patrimonial; c ainda
para alguns constitui um tertium genus entre o dano patrimonial c o dano
não patrimonial, qualificável como dano pessoal. Tudo isto, obviamente,
por causa do art. 0 2059. 0 - "o dano não patrimonial deve ser ressarcido
apenas nos casos determinados por lei" - c porque, não sendo este um
dos casos expressamente previstos por lei nem tendo sido declarada a
inconstitucionalidade do preceito, pretenderam muitos ampliar o conceito
de dano patrimonial, indemnizável, c restringir o de dano não patrimonial,
para assim satisfazer a exigência prática de compensar certos aspectos da
lesão à saúde não abrangidos pelo art. 0 2059. 0 •

Só que o preço é elevado: a desnaturaçcio dos tradicionais conceitos


de dano patrimonial e de dano mio J)(ttrimonial, na zona de um direito
fundamental como é o da saúde que, entendida no sentido amplo de "bcm-
-estar físico, mental c social", na definição da Organização Mundial de
Saúde, abrange uma vasta gama de interesses cuja lesão provoca danos
patrimoniais indirectos, danos morais c danos intermédios de difícil
catalogação numa ou noutra das categorias.

O preço r~lerido, resultante da não alteração do art. 0 2059. 0 para


ressarcir mais amplamente os danos não patrimoniais de que o dito "dano
biológico" constitui fundamentalmente uma espécie, é evitado pelo
art." 496." do Código Civil português: ao aceitm; em termos gerais, a
ressarcibilidade dos danos mio patrimoniais grm·es, dispensa pseudo-

504
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-distinções e polémicas nominalistas que não passam de artíficios ou


expedientes para diminuir a área. tida por iníqua, da irresarcibilidade dos
danos não patrimoniais resultantes da lesão da saúde, e tudo porque a sua
reparação não é um dos casos previstos na lei.

Em face do art." 496." do nosso Código Civil, o jurista português não


precisa de qualificar o dano à saúde em si por si como dano patrimonial.
Em si e por si, no seu aspecto essencial c na sua estática, o direito à saúde
é um direito fundamental, um direito de personalidade (art." 64.0 ). E, como
em todas as lesões dos direitos de personalidade, os danos resultantes
da sua lesão são de natureza não patrimonial e os danos patrimoniais
são indirectos ou consequenciais, pelo que o jurista português não
tem de lançar mão do expediente de considerar um membro do corpo
humano "bem patrimonial cm si c por si". "coisificando-o", para ressarcir
autonomamente a sua perda. Entendemos mesmo que tal caminho é
perigoso, pois tri lhaclo até ao fim correr-se-ia o risco de peczmiari:::ar ou
moneti:::ar o corpo humano ou as partes do co11Jo lwmano. atribuindo a
cada uma valor "tahelado ": a perda de um braço vale x; a perda de uma
mão, vale y; a perda de uma perna vale z. c assim por diante. Ao invés,
a formulação do art." 496." do nosso Código Civil personali:::a o dano à
saúde, nele abrangendo o dano psíquico. isto é. a lesão da integridade ou
sanidade mental, consequência ou não de atentado à integridade física.

5. A segunda observação ao regime do art." 496." do nosso Código


Civil reside na consagração da equidade como critério de determinação do
quantum respondeatur - cm consonilncia com a aludida personalização
do dano não patrimonial - . conflanclo no prudente arbitriwn bani viri
encarnado pelo Juiz, que terú cm conta a grm·idade das lesões e demais
circunstâncias susceptíveis de personalizar o dano c. assim, realizar a
justiça do caso concreto. a equidade.

Só esta elasticidade, este metro de geometria \'ariá,·el. pcnnite fixar


o quantum do ressarcimento do dano não patrimonial adequado à situação
pessoal do lesado. sendo evidente. por exemplo. que a perda de um dedo

505
Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

da mão será compensada em montantes diferentes, consoante se trate de


pianista ou futebolista.

6. A terceira observação ao regime do art. 0 496. 0 respeita à


titularidade do direito ao ressarcimento, por morte da vítima.

Quanto aos "danos não patrimoniais laterais", os seus titulares, iure


proprio, são as pessoas mencionadas no n. 0 2 do art. 0 496. 0 •

Controvertida é a titularidade dos danos não patrimoniais sofridos


pela vítima, sobretudo a do ressarcimento da própria perda da vida ou
dano da morte: deferir-se-á aos herdeiros por via sucessória, ou caberá por
direito próprio aos familiares mais próximos, os referidos no 11. 0 2 do art. 0
496. 0 ?

Temos por boa a soluçüo seguinte: o ressarcimento dos danos não


patrimonias sofridos pela vítima, com especial destaque para o dano da
morte, defere-se iure hereditario às pessoas enumeradas no 11." 2 do
art. o 496. o: no momento da morte, o pretium doloris fixa-se na esfera do de
cujus como direito de crédito à indemnização, direito autónomo c distinto
das dores e sofrimentos dos conviventes. Logo, o grande alcance da 2.a
parte do n. 0 3 do art. 0 496. 0 reside cm determinar as pessoas que, iure
hereditario, são titulares dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima,
afastando-se da ordem por que são chamados os herdeiros (art. 0 2133.'l

7. Por último, sublinhe-se a revogação pelo Decreto-lei n. 0 131/2001


do primitivo art. 0 9. 0 do Decreto-lei 383/89, que estabelecia assim:

"1. No caso de morte ou lesão de várias pessoas causadas por


produtos idênticos que apresentem o mesmo defeito, o ressarcimento total
não pode ultrapassar o montante de I 0.000 milhões de escudos.

2. O juiz pode fixar uma reparação de montante provisório a cada um


dos lesados, tendo cm conta a eventualidade de novas lesões causadas pelo
mesmo facto virem a ser deduzidas cm juízo".

506
Responsabilidade ci\'il do produtor c protccç:io do consumidor cm Portugal e na Uni:io Europeia

Dez mil milhões de escudos era um plafond elevadíssimo para a


indústria portuguesa. Mas era o limite mínimo (70 milhões de Ecus -
art. 0 16.0 , n. 0 1) permitido pela Directiva aos Estados que quisessem prever
um montante máximo para a responsabilidade total do produtor, já não
dando spatium deliberandi para a fixação de limite individual. Na opção
legal havia pesado, não só uma certa "tradiçao" jurídica que, tal como a
alemã - e à pressão da Alemanha (ex-RFA) se deve a possibilidade de
qualquer Estado-membro fxar o ph~fond referido no art. 0 16.0 da Directiva
- , associa à responsabilidade objectiva um tecto indemnizatório,
mas sobretudo o argumento de que o seguro. o grande suporte da
responsabilidade objectiva. está condicionado por limites qua11litatiros em
que a mesma opera. Pelo que. apesar de muito elevado para o estádio de
desenvolvimento da indústria portuguesa. o limite máximo constituía uma
barreira que facilitava a calculabilidade do risco.

Com a remgaçtio do preceito transcrito. a responsabilidade civil do


produtor passou a ser ilimitada, que. obviamente. não tàcilita o seguro,
tomando-o mais caro. de molde a, na crescente internacionalização da
economia portuguesa num tempo de insegurança tecnológica. acelerar a
insolvabilidade c desaparecimento de empresas portuguesas cm momento
de fortuna adversa.

IX. Danos rcssarcí\'Cis: B) Prejuízos causados cm coisas de uso


privado, não profissional. dinrsas do produto defeituoso

I. A mais da indemnização dos dmws causados às pessoas, o 11. 0 1


do art. 0 8. 0 transcrito abrange ainda os "danos em coisa diversa do produto
defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo
privado c o lesado lhe tenha dado principalmente este destino'', com
dedução de uma franquia de 500 euros (art." 9.". na redacção do Decreto-
-lei n. 0 I3 I /2001. equivalente ao primitivo n." 2 do art." 8.").

Diferentemente dos dmws pessoais em que a protecçao da vida, da


saúde e da segurança .fisico-psíquica <-; a mesma para todas as pessoas

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Formação Jurídica e Judiciária- Colectânea Tomo IX

lesadas por produto defeituoso, seja 11111 consumidO!; um prqfissional


que utiliza o produto no exercício da prqfisstio ou mesmo wn terceiro
simples bystande1; nos danos em coisas o Decreto-lei n." 383/89 protege
apenas o consumidor em se11tido estrito, aquele que utiliza a coisa
destruída ou determinada pelo produto defeituoso para um fim privado,
pessoal, familiar ou doméstico, c não para um fim profissional. Assim,
será coisa de uso privado, por exemplo, um frigorífico utilizado cm casa
de habilitação, mas não já se utilizado numa fábrica, numa empresa; será
coisa de uso privado o automóvel que A utiliza habitualmente na sua vida
privada e familiar, mas não já o automóvel da empresa, por ele utilizado na
profissão (neste sentido; acórdão da Relação de Coimbra, de 27/04/2004
- Processo 431/2004: gelados para revenda, deteriorados cm virtude de
o semi-reboquc frigorífico ter avariado devido a defeito de construção da
caixa isotérmica).

2. Mesmo assim, a protecçclo específica do consumidor cinge-se


aos danos em coisas (Sachschüden) diversas do produto defeituoso, sem
prejuízo, relembre-se, da aplicação do direito comum:

Os ulteriores danos que possam resultar da destruição ou


deterioração dessas mesmas coisas de uso privado (Sacl?f'o/gesclriiden),
como lucros cessantes, privação do uso, etc. - v.g., A compra para
casa uma televisão que, cm virtude de defeito grave, explode c provoca
um incêndio: os danos na casa c no recheio são indcmnizúvcis, não jú,
porém, as despesas com dormida no hotel enquanto decorriam as obras de
reparação;

Os danos patrimonias puros ou primários, os que ocorrem autónoma


c independentemente da violação de direitos absolutos;

Os danos no próprio produto de.fCituoso, visto na sua unidade


compósita, in !atum, c não na multiplicidade ou amúlgama das partes que
o compõem.

508
AIlESilONSAIHLIDADE DO GOVEllNO CHINÊS EDAS
DEMAIS ENrl'IHAHES JlÚULICAS POR ACTOS DE GES1iO
Shao Shixing
f'ro(cssor do lnstitlllo Sacional de Formaçiio de ,\/agistrados
do .\finistàio Público. República Popular da China

I. Apresentação sobre a posição do Governo c das demais


entidades públicas como pessoa colectiva perante as leis da
RPC
As leis vigentes na RPC não adoptam o sistema de '·pessoa colectiva
pública" - sistema esse que é comummente adoptado nos países do
sistema romano-gennúnico - para definir a posição do Governo e das
demais entidades com funçôcs de gestão pública. De uma forma geral,
as leis ora vigentes na RPC encaram as pessoas colectivas como sujeitos
de relações civis'. Neste contexto. as pessoas colectivas são divididas
cm quatro espécies: pessoa colccti\'a empresarial. pessoa colectiva
da Administração Pública, pessoa colccti\'a de instituição pública, c
pessoa colectiva de organização social. As últimas três são nonnalmcnte
chamadas pessoas colccti\'as não empresariais, c geralmente elas próprias
não aparecem como pessoas colccti\'as. Em termos teóricos, quando
exercem as suas funções próprias, elas actuam na qualidade de órgãos

O artigo 36." da Lei Geral de Direito CiYil tb RPC: .. as pcsso:-ts colectivas dispõem
de capacidade jurídica de gozo c de exercício: autonom:-~mcntc c de acordo com a lei,
adquirem c assumem o:-; direitos ci\'is ...

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