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MATHEUS CAVALCANTE LIMA

MILENA ALENCAR GONDIM

WILLIAM PAIVA MARQUES JÚNIOR

(Organizadores)

NOVAS PERSPECTIVAS DO

DIREITO INTERNACIONAL :

AS RELAÇÕES EXTERNAS NO

CONTEXTO PÓS- COVID- 19

VOLUME 3

EDITORA
MUCURIPE
MATHEUS CAVALCANTE LIMA
MILENA ALENCAR GONDIM
WILLIAM PAIVA MARQUES JÚNIOR
(Organizadores)

NOVAS PERSPECTIVAS DO
DIREITO INTERNACIONAL:
AS RELAÇÕES EXTERNAS NO
CONTEXTO PÓS-COVID-19
VOLUME 3

AUTORES

Adriana Fonteles Silva


Amanda Rodrigues Lavôr
Ana Beatriz Barros de Siqueira
Antônio Lucas dos Santos da Mata
Carolina Lima Ciríaco Scipião
Charles da Costa Bruxel
Emilia Davi Mendes
João Paulo de Carvalho Barbosa
Mateus Venícius Parente Lopes
Milena Alencar Gondim
Norma Navegantes da Silva
Raoni Marques Oliveira
William Paiva Marques Júnior

Editora Mucuripe
Fortaleza, 2023
Esta obra está sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt_BR
CC
BY SA
Novas perspectivas do Direito Internacional:
as relações externas no contexto pós - Covid-19 - volume 3

1ª edição

Matheus Cavalcante Lima


Milena Alencar Gondim
William Paiva Marques Júnior (coord . )

Editora Mucuripe

Conselho Editorial
André Parmo Folloni João Ricardo Catarino
Arno Dal Ri Junior Juarez Freitas
Daniela Leutchuk de Cademartori Marcelo Cattoni
Danielle Annoni Marciano Seabra de Godoi
Denise Lucena Cavalcante Marcos Wachowicz
Germana de Oliveira Moraes Maria Vital da Rocha
Gisele Cittadino Martonio Mont Alverne Barreto Lima
Hugo de Brito Machado Segundo Paulo Caliendo
João Luís Nogueira Matias Roberto Alfonso Viciano Pastor

Capa, Editoração e Revisão


Álisson José Maia Melo

Imagem da capa adaptada de Gerd Altmann.

Dados internacionais de Catalogação na Publicação


N936 Novas perspectivas do direito internacional: as relações externas no
contexto pós-Covid-19 – volume 3 / Coordenadores: Matheus Cavalcante
Lima, Milena Alencar Gondim e William Paiva Marques Junior — 1. ed .
— Fortaleza : Mucuripe, 2023.
Vários autores.
331 p.: 21 cm.

ISBN- 13 : 978-65-87966-35-9

1. Direito Internacional - Brasil. 2. Direitos Humanos - Brasil . 3. De-


senvolvimento – Brasil. I. Lima, Matheus Cavalcante . II . Gondim, Milena
Alencar. III . Marques Junior, William Paiva.
CDD
341
SUMÁRIO

SOBRE OS COORDENADORES ................................................ 7


AGRADECIMENTOS.................................................................... 8
APRESENTAÇÃO .......................................................................... 9
CAPÍTULO I.
A INTEGRAÇÃO REGIONAL SUL-AMERICANA ANTE OS
DESAFIOS JURÍDICOS DO PROSUL NO CONTEXTO PÓS-
PANDÊMICO E O NECESSÁRIO RESGATE DA
DEMOCRACIA .............................................................................. 17
William Paiva Marques Júnior
SOUTH AMERICAN REGIONAL INTEGRATION BEFORE
PROSUL'S LEGAL CHALLENGES IN THE POST-PADEMIC
CONTEXT AND THE NECESSARY RESCUE OF
DEMOCRACY
CAPÍTULO II.
RESPONSABLIDADE SOCIAL CORPORATIVA NA UNIÃO
EUROPEIA E NO BRASIL............................................................ 57
Antônio Lucas dos Santos da Mata
CORPORATE SOCIAL RESPONSABILITY IN THE
EUROPEAN UNION AND BRAZIL
CAPÍTULO III.
A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR POLUIÇÃO
MARINHA POR PLÁSTICO E A POSSIBILIDADE DE
APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL À
SITUAÇÃO DO BRASIL............................................................... 84
Amanda Rodrigues Lavôr
Novas perspectivas do direito internacional:
4| As relações externas no contexto pós-COVID-19

CIVIL LIABILITY FOR MARINE POLLUTION BY PLASTIC


AND THE POSSIBILITY OF APPLYING INTERNATIONAL
LEGISLATION TO THE SITUATION IN BRAZIL
CAPÍTULO IV.
TRIBUTAÇÃO DE CARBONO E SUSTENTABILIDADE
AMBIENTAL................................................................................ 116
Adriana Fonteles Silva
CARBON TAXATION AND ENVIRONMENTAL
SUSTAINABILITY
CAPÍTULO V.
JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NO BRASIL E NA ITÁLIA:
UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE O ACORDO DE
NÃO PERSECUÇÃO PENAL E O PATTEGGIAMENTO...... 134
Ana Beatriz Barros de Siqueira
NEGOTIATED CRIMINAL JUSTICE IN BRAZIL AND IN
ITALY: A COMPARATIVE ANALYSIS BETWEEN NON-
PROSECUTION AGREEMENT AND PATTEGGIAMENTO
CAPÍTULO VI.
DEMOCRACIA ENERGÉTICA SUSTENTÁVEL NA UNIÃO
EUROPEIA.................................................................................... 164
Emilia Davi Mendes
Norma Navegantes da Silva
SUSTAINABLE ENERGY DEMOCRACY IN THE
EUROPEAN UNION
CAPÍTULO VII.
O DIREITO INTERNACIONAL E A PROTEÇÃO AOS
DIREITOS HUMANOS DA MULHER..................................... 184
João Paulo de Carvalho Barbosa
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e |5
William Paiva Marques Júnior

INTERNATIONAL LAW AND THE PROTECTION OF


WOMEN'S HUMAN RIGHTS
CAPÍTULO VIII.
O DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO
NO ÂMBITO DA UNIÃO EUROPEIA: UMA ANÁLISE
VOLTADA PARA OS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS
........................................................................................................ 208
Raoni Marques Oliveira
THE FUNDAMENTAL RIGHT TO GOOD
ADMINISTRATION IN EUROPEAN UNION: AN ANALYSIS
FOCUSED ON FUNDAMENTAL SOCIAL RIGHTS
CAPÍTULO IX.
A PREVALÊNCIA DO NEGOCIADO SOBRE O LEGISLADO:
ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A JURISPRUDÊNCIA DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL DE PORTUGAL ..................................... 231
Charles da Costa Bruxel
THE PREVALENCE OF THE NEGOTIATED OVER THE
LEGISLATED: COMPARATIVE ANALYSIS BETWEEN THE
JURISPRUDENCE OF THE FEDERAL SUPREME COURT
AND THE CONSTITUTIONAL COURT OF PORTUGAL
CAPÍTULO X.
O PAPEL DA UNIÃO EUROPEIA NA GOVERNANÇA
AMBIENTAL GLOBAL .............................................................. 264
Milena Alencar Gondim
THE ROLE OF THE EUROPEAN UNION IN GLOBAL
ENVIRONMENTAL GOVERNANCE
Novas perspectivas do direito internacional:
6| As relações externas no contexto pós-COVID-19

CAPÍTULO XI.
A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E
O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO BRASIL:
ANÁLISE DO CASO INSTITUTO PENAL PLÁCIDO DE SÁ
CARVALHO................................................................................. 282
Mateus Venícius Parente Lopes
THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS
AND THE UNCONSTITUTIONAL STATE OF AFFAIRS IN
BRAZIL: ANALYSIS OF THE CRIMINAL INSTITUTE
PLÁCIDO DE SÁ CARVALHO CASE
CAPÍTULO XII.
TRANSPANDEMIA: A BUSCA E OS DESAFIOS PELA
EFETIVIDADE DE UM TRATADO INTERNACIONAL DE
DIREITO SANITÁRIO ................................................................ 304
Carolina Lima Ciríaco Scipião
TRANSPANDEMIC: THE SEARCH AND CHALLENGES IN
THE EFFECTIVENESS OF AN INTERNATIONAL HEALTH
TREATY
SOBRE OS COORDENADORES

Milena Alencar Gondim


Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará
(2010). Atualmente é Procuradora Jurídica do Instituto de Previdên-
cia do Município de Fortaleza. Tem experiência na área de Direito,
com ênfase em Direito Público. Mestranda em Direito pelo
PPGD/UFC.

Matheus Cavalcante Lima


Graduação em Direito pelo Centro Universitário Christus (2020).
Atuou na presidência do Centro Acadêmico do curso de Direito nos
anos de 2017/2018, participou do Escritório de Direitos Humanos
(EDH) com enfoque em educação em Direitos Humanos, foi monitor
das disciplinas de Introdução as Ciências Sociais e Ética Jurídica do
Curso de Direito. Mestrando em Direito pelo PPGD/UFC.

William Paiva Marques Júnior


Possui graduação em Direito (2001). Especialista em Direito Proces-
sual Penal pela ESMEC/UFC (2003). Mestre em Direito Constitucio-
nal pela Universidade Federal do Ceará (2009). Doutor em Direito
Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (2016). Professor
Adjunto Nível 1 do Departamento de Direito Privado da Universi-
dade Federal do Ceará, das disciplinas de Direito Civil II (Obriga-
ções), Direito Civil V (Coisas) e Direito Agrário. Foi Advogado Jú-
nior da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) de 2008 a
2011. Coordenador de Graduação da Faculdade de Direito da UFC
(2014 a 2017). Desde setembro de 2019 ocupa a função de Assessor
do Gabinete do Reitor da UFC. Editor-Chefe da Revista da Facul-
dade de Direito da UFC. Professor do Programa de Pós-Graduação
em Direito da Universidade Federal do Ceará das disciplinas de Me-
todologia do Ensino Jurídico e Direitos das Relações Internacionais e
Contemporaneidade. Vice-Coordenador do PPGD/UFC. Ex-bolsista
de Doutorado da CAPES.
AGRADECIMENTOS

Aos alunos da Turma 2022 do Programa de Pós-Graduação em


Direito da UFC: o sucesso é um marco atingido por pessoas ca-
pazes construindo seus projetos. Obrigado pela dedicação de
todos.
APRESENTAÇÃO

A presente coletânea de artigos é composta de temas


sobre as Novas Perspectivas do Direito Internacional, fruto de
estudos desenvolvidos pelos pesquisadores da Universidade
Federal do Ceará, tratando de assuntos de grande relevo social,
que oportunizam ao leitor uma reflexão profunda sobre a im-
portância do contexto internacional para a contemporaneidade,
especialmente após o contexto de transpandemia, ou seja, após
a Covid-19.
William Paiva Marques Júnior aborda a complexa
realidade contemporânea nos países da América do Sul de-
monstra a existência de diversos fatores que desafiam a efetivi-
dade do PROSUL no contexto pós-pandemia. A viabilidade de
projetos integracionistas regionais deposita suas esperanças na
ampliação da democracia, do constitucionalismo e da cidada-
nia. Logo, utiliza-se, como metodologia, de pesquisa do tipo bi-
bliográfica por meio da análise de livros, artigos jurídicos, do-
cumentos internacionais, da legislação e da jurisprudência. A
pesquisa é pura e de natureza qualitativa, com finalidade des-
critiva e exploratória.
Antônio Lucas dos Santos da Mata retrata como a
violação de direitos humanos e a degradação ambiental na con-
secução das práticas empresariais enseja a necessidade de for-
talecer a responsabilidade socioambiental corporativa na me-
dida em que estas buscam alavancar sua competitividade no
mercado. Nesse sentido, o estabelecimento de leis específicas
que tornam obrigatória a adoção de práticas de responsabili-
dade social corporativa com a finalidade de conter as externali-
dades negativas na cadeia produtiva de empresas se manifesta
como uma das opções viáveis de conter a inobservância de di
10 | Apresentação

reitos humanos e os danos ambientais. Assim, a presente pes-


quisa objetiva discutir o atual panorama legislativo específico
de países europeus e da União Europeia quanto à adoção de
normas de devida diligência ambiental e de direitos humanos,
que devem ser cumpridas tanto em território nacional, quanto
estrangeiro, com o intuito de entender a importância de tais ins-
trumentos e como estes podem influenciar no contexto jurídico
brasileiro. A metodologia adotada será exploratória descritiva,
a partir da análise documental e bibliográfica de leis, diretivas,
artigos, entre outros. A partir deste estudo, foi possível concluir
que o ordenamento jurídico pátrio necessita adequar seu re-
gime de responsabilidade social corporativa, com o intuito de
fortalecer a proteção ambiental e de direitos humanos na cadeia
produtiva, podendo tomar como ponto de partida os modelos
adotados em países europeus.
Amanda Rodrigues Lavôr analisa a aplicabilidade
dos indicadores internacionais para responsabilização civil em
prol da mitigação da poluição marinha causada por lixo plástico
ao Brasil. Assim, utiliza pesquisa do tipo bibliográfica e docu-
mental, com base em revisão de literatura de artigos científicos,
natureza pura e descritiva, na análise de projetos e relatórios
que versam sobre o tema. A pesquisa tem relevância teórica e
prática, pois oferece uma contribuição original sobre a respon-
sabilização civil por danos ambientais no mar, especificamente
pela utilização e descarte inadequado de plásticos e possibilita
uma maior visibilidade às questões ambientais e de sustentabi-
lidade, bem como pode fornecer auxílio técnico-jurídico às
ações governamentais para a formulação de políticas públicas e
programas nacionais de desenvolvimento nesse sentido. Con-
clui que é possível aplicar a legislação internacional ao Brasil,
no que diz respeito à responsabilidade do agente poluidor, po-
rém se faz necessário aplicar outros mecanismos impositivos
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior | 11
constantes no Direito Ambiental Internacional, que podem
apresentar uma abordagem mais eficaz para combater a polui-
ção por resíduos plásticos no ambiente marinho.
Adriana Fonteles Silva trata da possibilidade de se
instituir a tributação de carbono como uma política fiscal que
visa inibir o uso de fontes de energia não renovável, a exemplo
da queima de carbono, que causa graves danos ao meio ambi-
ente e à saúde humana. Países da União Europeia tem estudado
institutos jurídicos como a tributação de carbono, que tem se
mostrado eficaz na redução e desestímulo do uso de gases po-
luentes. Enfatizou a discussão acerca do desenvolvimento eco-
nômico, em contrapartida, ao direito fundamental ao ambiente
ecologicamente equilibrado, concluindo pela possibilidade de
implementação do carbon tax no sistema tributário brasileiro,
seja por meio da inserção de critérios ambientais em tributos já
existentes, ou seja pela tributação direta, pois medida como es-
sas estão em sintonia com o ordenamento jurídico brasileiro e
possuem o condão de estimular as empresas a buscarem novas
soluções para o problema ambiental.
Ana Beatriz Barros de Siqueira analisa, por meio da
crítica comparativa entre os modelos negociais previstos nos
sistemas brasileiro e italiano, o acordo de não persecução penal
e o patteggiamento. Para tanto, inicialmente, apresenta as princi-
pais características do processo penal brasileiro e do acordo de
não persecução penal, seguidas dos aspectos fundamentais do
processo penal italiano e do patteggiamneto, e ao fim realiza se
uma análise comparativa entre ambos os institutos. Para atingir
o objetivo da pesquisa, de abordagem qualitativa e caráter ex-
ploratório, emprega o método funcional de direito comparado
e utiliza como técnicas de pesquisa a análise documental da le-
gislação brasileira e italiana sobre o tema e a análise bibliográ-
fica de obras nacionais e estrangeiras acerca do assunto. Conclui
12 | Apresentação

que a experiência italiana pode servir de fonte de inspiração


para o aprimoramento do sistema de justiça negocial brasileiro.
Sob essa influência, podem ser propostas alterações legislativas
que possibilitem um controle judicial mais substantivo sobre o
acordo, sobretudo quanto à possibilidade de absolvição, e o seu
reconhecimento como direito subjetivo do investigado.
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva
estudam o conceito de democracia energética sustentável e a
sua atenção aos aspectos da sustentabilidade e da democracia
no setor energético. No âmbito da União Europeia, destaca a Di-
retiva de Energia Renovável (2018) e a Diretiva do Mercado de
Eletricidade (2019), que respectivamente reconhecem as “citizen
energy communities” (CECs) e as “renewable energy communities
(REC)” como organismos aptos a compor o sistema energético
nos países do bloco. Tratam-se de formas alternativas de orga-
nização de atividades no setor energético, em que se almeja ge-
rar benefícios ambientais, econômicos ou sociais para seus
membros ou acionistas ou para as áreas locais onde opera.
Desse modo, consistem em estruturas organizacionais relevan-
tes e afins aos ideais delineados pela democracia energética sus-
tentável. Como principais resultados da pesquisa, compreende
que as comunidades energéticas apresentam um grande poten-
cial disruptivo, que tende a trazer benefícios socioambientais re-
levantes para os atores envolvidos. Todavia, faz-se necessário a
definição de parâmetros mais objetivos acerca da consolidação
de tais organismos, bem como o direcionamento de esforços
para especificação, monitoramento e avaliação dos efeitos dos
benefícios comunitários pretendidos. No que concerne à meto-
dologia, a pesquisa tem natureza qualitativa e utilizou a linha
teórico-bibliográfica e exploratória, por meio do processamento
de informações contidas na legislação, em artigos científicos e
doutrinas, com destaque ao âmbito da União Europeia.
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior | 13
João Paulo de Carvalho Barbosa pontua que a Pro-
teção Internacional dos Direitos Humanos ganha força no cená-
rio pós-Segunda Guerra Mundial, dada a gravidade das viola-
ções dos direitos fundamentais e das atrocidades cometidas.
Logo, reconhecendo as especificidades e a situação de vulnera-
bilidade da mulher, emerge a necessidade de proteção especí-
fica. Dentre os documentos que se destacam na Proteção Inter-
nacional dos direitos humanos da mulher merecem destaque a
Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discri-
minação Contra a Mulher e a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Con-
venção de Belém do Pará). Dessa forma, o Brasil assume um
compromisso internacional no combate à violência contra a mu-
lher e contra toda forma de discriminação baseada no gênero
(dentre outras) tanto na esfera pública quanto privada. Apesar
da criação da Lei n° 11.340 de 2006 ainda é possível observar a
necessidade de aplicação de políticas públicas efetivas para que
se desconstrua o patriarcado que tem se perpetuado histórica e
socialmente ao longo do tempo e se alcance a efetivação do di-
reito fundamental à igualdade de gênero.
Raoni Marques Oliveira propõe estudar o direito à
boa administração, consagrado no artigo 41 da Carta de Direitos
Fundamentais da União Europeia, a fim de verificar se seu con-
teúdo, aparentemente fundado apenas em direitos de primeira
dimensão, pode abranger também direitos fundamentais soci-
ais. A partir da análise do histórico, dos sujeitos e do conteúdo
de tal direito, chega à conclusão de que a Administração só será
“boa” quando se organizar de forma a garantir direitos sociais
a seus cidadãos.
Charles da Costa Bruxel, diante da importância da
matéria e das novidades trazidas pela Lei nº 13.467/2017 (Re
14 | Apresentação

forma Trabalhista), objetiva analisar e comparar a jurisprudên-


cia do Supremo Tribunal Federal do Brasil com a do Tribunal
Constitucional de Portugal a respeito da prevalência do negoci-
ado coletivamente sobre o legislado, a fim de se verificar o grau
de similaridade das teses encampadas jurisprudencialmente em
cada respectivo país. O método de abordagem empregado foi,
precipuamente, o comparativo, pois se realizou o cotejo entre as
compreensões, sobre a mesma matéria, adotadas pelo Tribunal
Constitucional do Brasil e de Portugal. Após o desenvolvimento
do trabalho, verificou-se que a jurisprudência do Supremo Tri-
bunal Federal do Brasil e do Tribunal Constitucional de Portu-
gal, ainda que cada tribunal tenha partido da interpretação de
ordenamentos jurídicos diversos, são muito similares: ambas
validaram constitucionalmente a prevalência do negociado co-
letivamente sobre o legislado como regra, ainda que flexibili-
zando prejudicialmente o conteúdo do direito estatal, porém re-
conhecendo que devem ser resguardados de supressões parci-
ais ou totais os direitos laborais legislados entendidos como de
natureza imperativa (indisponibilidade absoluta), tendo sido
concedido, expressa ou implicitamente, espaço para a doutrina
e a jurisprudência definirem quais seriam estes direitos. Nesse
sentido, constatou que a hipótese encampada no início do arti-
culado se mostrou acertada, pois, de fato, ambos os países tri-
lharam, até o momento, linhas jurisprudenciais muito próximas
sobre a proeminência do negociado coletivamente sobre o di-
reito legislado.
Milena Alencar Gondim analisa a governança am-
biental global, a qual visa à participação e ao engajamento de
toda a comunidade internacional para a elaboração e execução
de medidas, normativos e soluções para a preservação ambien-
tal e o desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, destaca-se
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior | 15
a figura da União Europeia, cujas políticas ambientais bem de-
senvolvidas e atuação nas questões ambientais podem levar a
pressupor sua liderança em escala mundial. O objetivo do tra-
balho é analisar o papel da União Europeia na governança am-
biental global. Concluiu-se que, apesar de não se poder afirmar
uma liderança estável, a União Europeia tem relevância signifi-
cativa na governança ambiental global. A pesquisa é qualitativa
e bibliográfica, voltada para a análise da doutrina.
Mateus Venícius Parente Lopes aborda a interven-
ção da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre uma
penitenciária localizada no Estado do Rio de Janeiro: o Instituto
Penal Plácido de Sá Carvalho ‒ IPPSC. A finalidade do trabalho
é examinar o arcabouço fático que circundou o referido estabe-
lecimento prisional e o que culminou para que o mencionado
tribunal internacional viesse a intervir no caso, destacando-se
os principais pontos. O trabalho consistiu em pesquisa descri-
tiva (quanto ao objetivo), bibliográfica (quanto ao procedi-
mento) e qualitativa (quanto à abordagem). Concluiu-se que o
IPPSC é alvo do Estado de Coisas Inconstitucional vigente no
Brasil, sendo a superlotação carcerária um dos principais im-
bróglios suportados pela penitenciária. As medidas adotadas
para contornar o quadro sistemático de violações orbitaram em
torno do fenômeno da excarceração.
Carolina Lima Ciríaco Scipião tratou da pandemia
da Covid-19, a qual mostrou ao mundo que os países não estão
preparados para enfrentar crises sanitárias em tamanha propor-
ção de forma individualizada. Contudo, as lideranças mundiais
em saúde não possuem a força normativa vinculante necessária
a garantir um efetivo e concreto direito à saúde. Embora reco-
nhecido em âmbito internacional, em pactos e tratados, o direito
sanitário ainda não possui mecanismos efetivos para sua pro-
moção e proteção uma vez que ainda fica a cargo dos Estados
16 | Apresentação

membros atender as recomendações da maior autoridade sani-


tária internacional, a Organização Mundial de Saúde. O direito
à saúde representa um estado de completo bem-estar físico,
mental e social, demandando, portanto, a necessidade de criar
mecanismos jurídicos e relevantes que sejam passíveis de con-
cretizar este direito fundamental ao ser humano, através do for-
talecimento de uma governança global, que seja capaz de apre-
sentar planos de prevenção, contenção e as respostas necessá-
rias às crises em saúde, de maneira coordenada e sistêmica. Foi
utilizada a metodologia bibliográfica e documental, através da
análise de livros, artigos jurídicos, documentos oficiais e notí-
cias. A pesquisa é pura, descritiva, exploratória e de natureza
qualitativa.
A todas (os) desejamos excelentes leituras e boas pes-
quisas.
Os Organizadores.
CAPÍTULO I.
A INTEGRAÇÃO REGIONAL SUL-
AMERICANA ANTE OS DESAFIOS
JURÍDICOS DO PROSUL NO CONTEXTO
PÓS-PANDÊMICO E O NECESSÁRIO
RESGATE DA DEMOCRACIA

William Paiva Marques Júnior*

Resumo: A complexa realidade contemporânea nos países da Amé-


rica do Sul demonstra a existência de diversos fatores que desafiam a
efetividade do PROSUL no contexto pós-pandemia. A viabilidade de
projetos integracionistas regionais deposita suas esperanças na am-
pliação da democracia, do constitucionalismo e da cidadania. Utiliza-
se, como metodologia, de pesquisa do tipo bibliográfica por meio da
análise de livros, artigos jurídicos, documentos internacionais, da le-
gislação e da jurisprudência. A pesquisa é pura e de natureza quali-
tativa, com finalidade descritiva e exploratória.

Palavras-chave: Integração regional. América do Sul. Desafios jurídi-


cos. Prosul. Democracia.

* Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela UFC. Professor Adjunto II do De-


partamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFC de Direito Civil
II (Direito das Obrigações) e Direito Civil V (Direito das Coisas). Coordenador da
Graduação em Direito da UFC (2014 a 2017). Assessor do Reitor da UFC. Docente
do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC das disciplinas de Metodolo-
gia do Ensino Jurídico e Direito das Relações Internacionais e Contemporanei-
dade. Foi Advogado Júnior da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos),
de 2008 a 2011. Vice-Coordenador do PPGD/UFC.
E-mail: williamarques.jr@gmail.com.
Endereço postal: Avenida da Universidade, nº.: 2853 – Bairro: Benfica, Fortaleza -
CE, CEP 60020-181- Gabinete do Reitor da UFC.
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
18 | no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

Introdução

Questiona-se o futuro da integração regional sul-


americana principalmente quanto a sua sobrevivência em uma
relação de legitimação na qual os cidadãos e os governos apa-
rentemente apresentam-se em posições antagônicas, afinal, a
existência de conflitos é ínsita ao espírito democrático.
O Constitucionalismo e a democracia representam
conceitos distintos. Um pode existir sem o outro. A realidade
contemporânea na América do Sul, especialmente no contexto
pós-pandêmico demostra que a relação entre a democracia e a
constituição revela-se como uma constante necessidade.
As relações internacionais na primeira década do Sé-
culo XXI foram marcadas por acontecimentos de grande relevo,
como a guerra ao terror, promovida principalmente pelos Esta-
dos Unidos, a ascensão econômica chinesa, não apenas no en-
torno asiático, mas também em escala mundial, a mudança nos
termos de troca em favor dos países produtores de bens primá-
rios, a extraordinária dinâmica de crescimento dos anos de 2003
a 2007, a crise financeira sistêmica desde 2008 e a recuperação
do crescimento econômico dos países em desenvolvimento. A
partir de 2020 a pandemia de Covid-19 marcou profundamente
as relações internacionais. O início de 2022 também restou tenso
por força da Guerra Rússia/Ucrânia no Leste Europeu. Esses fe-
nômenos sinalizam modificações estruturais no sistema econô-
mico e político internacional, configurando novas relações esta-
tais e o fortalecimento de outros projetos integracionistas, den-
tre os quais avultam em importância o MERCOSUL e, mais re-
centemente o PROSUL, ambos na América do Sul.
Por sua relevância na economia, no território e na po-
pulação, o Brasil se consolidou como uma grande liderança re-
gional na América do Sul, especialmente a partir da década de
William Paiva Marques Júnior | 19
1990 quando do surgimento do MERCOSUL. Na esfera interna-
cional, para além do plano sul-americano, o poder de influência
brasileiro tem-se mostrado consideravelmente menor, princi-
palmente a partir de uma nova inserção internacional da matriz
da política diplomática brasileira, ora em formação. Aborda-se-
o PROSUL, como mais recente tentativa de integração regional
sul-americana, compreendidos os dois movimentos em uma re-
lação dialética e simbiôntica, pontuando-se os contributos a par-
tir da integração almejada pela UNASUL, especialmente no
contexto pós-pandêmico.
Em março de 2019, foi realizada em Santiago/Chile,
reunião de presidentes sul-americanos, ocasião em que se ado-
tou a "Declaração Presidencial sobre a Renovação e o Fortaleci-
mento da Integração da América do Sul". Por meio do docu-
mento referenciado, oito países (Argentina, Brasil, Chile, Co-
lômbia, Equador, Guiana, Paraguai e Peru) indicaram sua von-
tade em estabelecer as bases para o lançamento do Foro para o
Progresso da América do Sul (PROSUL). Conforme as linhas di-
plomáticas contemporâneas, a iniciativa se propõe a substituir,
para esses países, o papel inicialmente conferido à UNASUL, no
contexto de uma política diplomática brasileira contemporânea
sem clareza, tampouco de rumos claros.
Utiliza-se, como metodologia, de pesquisa do tipo bi-
bliográfica por meio da análise de livros, artigos jurídicos, do-
cumentos internacionais e da legislação. A pesquisa é pura e de
natureza qualitativa, com finalidade descritiva e exploratória.
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
20| no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

1. Reflexos do PROSUL no multilateralismo regional da


América do Sul: formação histórica, contexto
contemporâneo e desafios

A política diplomática brasileira demonstra que o


País não intenta se comprometer em nenhum acordo que possa,
de algum modo, constranger sua ação externa autônoma, con-
siderando que o grande objetivo em suas relações exteriores é
alcançar o status de potência. Esse posicionamento, caso venha
a ser desenvolvido de modo exacerbado, torna-se prejudicial
para a integração na América do Sul, porque, como o maior país
da região, seja em termos geográficos, econômicos ou demográ-
ficos, ele teria que ser o elemento que arca com os custos e com-
pensações para as outras nações.
No diagnóstico de Celso Amorim1, a integração da
América do Sul tem uma dinâmica que corresponde, em parte,
à evolução interna dos países, mas, em parte também, à maneira
como a região se insere no mundo, tanto do ponto de vista po-
lítico quanto econômico. Aliás, é sempre necessário frisar que,
mesmo sob o ângulo doméstico, a motivação política tem sido
de grande importância.
De acordo com Leandro Rocha de Araújo2, os princi-
pais obstáculos para os esforços de integração na América La-
tina nos últimos 30 anos estão relacionados a fatores como a
falta de um objetivo claramente afirmado nas agendas nacionais

1 AMORIM, Celso. A integração da América do Sul e a Ordem Mundial pós-CO-


VID-19. Revista Sul Global, Rio de Janeiro, 2020, p. 8.
2 ARAÚJO, Leandro Rocha de. Associação Latino-Americana de Integração
(ALADI). IN MERCADANTE, Araminta de Azevedo. CELLI JUNIOR, Umberto.
ARAÚJO, Leonardo Rocha de (coordenadores). Blocos econômicos e integração
na América Latina, África e Ásia. Curitiba: Juruá, 2008, p. 130.
William Paiva Marques Júnior | 21
e inserido na respectiva política econômica dos Estados, relaci-
onado à integração. Além disso, alguns setores nacionais não se
sentem atraídos pela ideia de integração regional, uma vez que
se beneficiam ou se beneficiavam de pesados auxílios estatais,
protecionismo oficial e reserva de mercado.
Ao reverso da América do Sul, nas últimas décadas,
a Europa passou por um processo de maior convergência, tanto
que os países do Continente se tornam cada vez mais similares
em termos de desenvolvimento político, social, econômico e
qualidade institucional. Na análise da heterogeneidade da situ-
ação sul-americana, revelam-se tanto elementos de mudança
como de continuidade, que, em diversas oportunidades, apon-
tam rumo às divergências: alguns países consolidam definitiva-
mente os seus regimes democráticos (na tentativa de aprimorar
e estabelecer um modelo cada vez mais participativo) o que re-
verbera num veloz desenvolvimento social e econômico, ao
passo que outros ingressam numa fase de desorganização insti-
tucional, pobreza e violência endêmicas. É alto o índice de pro-
babilidade revelador de uma tendência para a dispersão maior
nos próximos anos, com a emergência de dois grupos visíveis:
um menor, constituído pelos países bem-sucedidos e outro
composto por países com uma realidade decepcionante.
Nesse diapasão, assevera Antonio José Ferreira Si-
mões3, a noção de que o estabelecimento político da integração
ocorre em círculos concêntricos, haja vista que longe de repre-
sentarem iniciativas excludentes, podem ser consideradas, ao
contrário, elaborações diplomáticas que possuem distintos ní-
veis de ambição, mas que apontam na mesma direção de uma
região mais unida e integrada. Na visão do autor, para o Brasil,

3 SIMÕES, Antonio José Ferreira. Integração: sonho e realidade na América do


Sul. Brasília: FUNAG, 2011, p. 46.
22 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

o MERCOSUL continuará sendo o núcleo duro da integração.


Para entender o papel desempenhado por parte de cada incia-
tiva de integração, é útil evocar a imagem dos círculos concên-
tricos. O MERCOSUL seria, para o Brasil e os demais países-
membros, o círculo central, no qual estariam engajados e que se
caracteriza por um grau de densidade maior. Os compromissos
do MERCOSUL, que é uma união aduaneira e aspira a transfor-
mar-se em um verdadeiro mercado comum, são de natureza
distinta daqueles assumidos em outros esquemas mais amplos,
seja de concertação e consultas políticas, como o Grupo do Rio,
seja de natureza multissetorial, como a UNASUL. Esses outros
esquemas seriam círculos de raio maior, que contêm os círculos
centrais e ensejam compromissos de caráter muito mais geral e
complementar em relação àqueles, o que em geral não significa
ter de mudar a legislação nacional ou aceitar certa dose de su-
pranacionalidade. Isso não impede que, no futuro, os círculos
maiores ganhem mais densidade e produzam uma convergên-
cia com os círculos centrais.
No início do Século XXI, o Brasil foi o protagonista
dos processos de integração e cooperação regional na América
do Sul, tendo um papel de suma importância na criação da
CASA e posteriormente da UNASUL. Outrossim, no mesmo pe-
ríodo, o governo brasileiro, por intermédio do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), pôde finan-
ciar empresas nacionais para realizar obras de infraestrutura em
diferentes países do subcontinente, exercendo um papel indu-
tor no desenvolvimento regional. A partir do governo Dilma
Roussef, no entanto, mutações e instabilidades nacionais impac-
taram e reverberaram diretamente no papel de liderança que o
Brasil ocupava nas instituições regionais, papel ainda menor
com a política externa confusa e errática desenvolvida no go-
verno Jair Bolsonaro.
William Paiva Marques Júnior | 23
Os levantes populares ocorridos na Venezuela, no
Brasil, na Bolívia, no Chile e no Equador refletem não somente
a histórica vulnerabilidade regional diante das mudanças sistê-
micas, mas também a manutenção histórica da falta de legitimi-
dade das instituições governamentais sul-americanas em modi-
ficar suas estruturas em busca da supressão das desigualdades
e assimetrias presentes dentro e entre os países no continente,
plasmando os desafios a serem alcançados na necessidade de
amadurecimento da cidadania, da democracia e do próprio Es-
tado de Direito.
Com a derrocada da UNASUL, o Brasil passa a apos-
tar em articulações mais flexíveis, as quais denotam baixo grau
de comprometimento político e econômico com a estrutura or-
ganizacional, e fragmentárias, no sentido de não abranger a to-
talidade da América do Sul, tal qual se dá no caso PROSUL.
Nessa senda, conforme o diagnóstico de Alejandro
Frenkel4 o padrão anterior de regionalismo autônomo instituci-
onalizado é encarado pelos governos sucessores como antítese
do novo projeto a ser desenvolvido pelo PROSUL:

Prosur fue creado sobre la impugnación de su an-


tecesor: los países abandonaron la Unasur adu-
ciendo que era un bloque con «exceso de ideolo-
gismo y burocracia». Estos argumentos resultan
poco sustentables, si se tiene en cuenta que una de
las características de la Unasur es haber sabido
congregar diferentes feligresías ideológicas, políti-
cas y económicas. A lo largo de una década, convi-
vieron economías abiertas con modelos estatistas;

4 FRENKEL, Alejandro. Prosur: el último frankenstein de la integración sudame-


ricana. Nueva Sociedad. Buenos Aires, jun, 2019.
24 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

gobiernos antiimperialistas con gobiernos proesta-


dounidenses; líderes populistas con presidentes
republicanos.

Aponta-se, ainda, como questão fundamental e ino-


vadora do processo da UNASUL o resgate das sabedorias dos
povos ancestrais da América do Sul, plasmada no fortaleci-
mento do pluralismo de suas identidades étnicas e culturais, ex-
pressa na filosofia do buen vivir e nos direitos da natureza, epis-
temologia encampada pelo processo de constituinte chilena em
curso a partir de 2020.
A realidade contemporânea demonstra que a Amé-
rica do Sul continua a aparecer como um continente de promes-
sas não cumpridas. Malgrado o seu enorme potencial geográ-
fico proporcionado pela abundância de recursos naturais (inclu-
indo a riqueza em fontes energéticas) e o capital humano ex-
presso em uma alta possibilidade de fornecimento de mão de
obra, suas sociedades continuam imersas em indicadores de de-
senvolvimento social e econômicos relativamente baixos. Rea-
gindo a essa constatação, a integração regional via UNASUL é
expressa atrelada a um novo movimento constitucionalista
(Novo Constitucionalismo Democrático Latino-Americano),
que tem por objetivos a promoção de novos valores e conceitos
para a organização política social, dentre os quais avulta em im-
portância a inclusão dos grupos outrora minoritários no arca-
bouço da democracia participativa, superando os tradicionais
cânones da democracia representativa considerando o diagnós-
tico de Dominique Turpin5, para o qual, a característica deste

5 TURPIN, Dominique. Critiques de la représentation. In: Pouvoirs. Revue


d’études constitutionnelles et politiques. Le régime représentatif est-il démo-
cratique? Paris: Presses Universitaires de France, 1981, p. 9. Tradução livre: “La
caractéristique de ce régime représentatif , c'est qu'il ne comporte aucune repré-
sentation véritable.”
William Paiva Marques Júnior | 25
sistema representativo é que não inclui qualquer representação
real.
A democratização das relações institucionais entre os
países da UNASUL funda-se em critérios dialógicos como nor-
teadores do processo político regional, consoante normatizado
pelo Art. 14 do Tratado Constitutivo6. No atinente ao PROSUL,
a Cláusula Democrática e o Estado Democrático de Direito en-
contram fundamento nos números 3 e 11.4 do Foro para o Pro-
gresso e Integração da América do Sul (PROSUL), conforme os
quais encontram-se plasmadas as diretrizes que estabelecem
como pressuposto essencial para a participação no PROSUL a
defesa do Estado de Direito, da Democracia representativa, de
eleições livres, da separação de Poderes, dos direitos humanos,
e do respeito à soberania e à integridade territorial. Pelo nume-
ral 11.3, pode ser aprovada a “suspensão de um país partici-
pante pela inobservância dos requisitos essenciais para a parti-
cipação no PROSUL, estabelecidos no numeral 3”. A eventual
suspensão será incumbência da Cúpula Presidencial por maio-
ria de 2/3 dos países.
Para Dominique Turpin7, no século XX, a ideologia
da democracia representantiva, justificada por sua hegemonia
por uma competência exclusiva, se volta contra a classe política.

6 Observe-se: “Artigo 14 Diálogo Político A concertação política entre os Estados


Membros da UNASUL será um fator de harmonia e respeito mútuo que afiance
a estabilidade regional e sustente a preservação dos valores democráticos e a pro-
moção dos direitos humanos. Os Estados Membros reforçarão a prática de cons-
trução de consensos no que se refere aos temas centrais da agenda internacional
e promoverão iniciativas que afirmem a identidade da região como um fator di-
nâmico nas relações internacionais”.
7 TURPIN, Dominique. Critiques de la représentation. In: Pouvoirs. Revue
d’études constitutionnelles et politiques. Le régime représentatif est-il démo-
cratique? Paris: Presses Universitaires de France, 1981, p. 14. Tradução livre: “Au
XX siècle, l’idéologie representative, justifiant son hégémonie par une compé-
tence exclusive, se retourne contre la classe politique.”
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
26| no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

Na compreensão de Christian Edward Cyril Lynch8,


na América Latina, a necessidade de criar repúblicas ou países
independentes, no contexto de uma sociedade muito mais atra-
sada do que a europeia, fez com que ganhasse corpo a ideia do
despotismo ilustrado como ideologia de formulação nacional.
Na América Latina, a concepção de república, em-
bora formalmente incorporada política e juridicamente desde os
textos constitucionais originados do Século XIX, não foi efetiva-
mente consolidada no plano interno até o Século XX, uma vez
verificada a ausência de uma definição suficientemente defi-
nida do interesse público, seja pela contínua sobreposição de in-
teresses privados. Dentre os principais óbices à consolidação da
esfera pública, encontra-se o sentido patrimonialista e exclu-
dente conferido à política, que não diferenciou suficientemente
os interesses públicos dos privados, permitindo que o espaço
coletivo se limite à disputa de interesses individuais – e que es-
tes, comumente, se sobreponham aos proveitos da coletividade.
A não concretização política da genuína concepção
republicana na América do Sul confirmou uma relação de dis-
tanciamento entre a cidadania e o Estado, hierarquizando ainda
as relações sociais, o que implicou ausência de reivindicação po-
pular pela garantia de direitos fundamentais, culminando na
constituição de uma relação unilateral e autoritária entre os Es-
tados e seus cidadãos.
Segundo Manuel Aragón Reyes9, a Constituição não
é outra coisa que a juridificação da democracia, e assim deve ser
entendida.

8 LYNCH, Christian Edward Cyril. Saquaremas & Luzias. A sociologia do des-


gosto com o Brasil. Rio de Janeiro: Insight Inteligência, vol. 55, 2011, págs. 22 e
23.
9 REYES, Manuel Aragón. La Constitución como paradigma. In: CARBONELL, Mi-
guel. Teoría del neoconstitucionalismo. Ensayos escogidos. Madrid: Editorial
William Paiva Marques Júnior | 27
Em um Estado Democrático de Direito o conceito de
Constituição é entendido como materialização da democracia e
da cidadania inclusiva, valores buscados pelo processo de inte-
gração regional.
Para Carlos Santiago Nino10, ainda há espaço para
um autêntico liberalismo conservador no consenso que funda-
menta a prática constitucional de inspiração liberal - cuja orien-
tação, seja para uma posição mais conservadora ou mais pro-
gressista, deve ser realizada pelo processo democrático. Esse ge-
nuíno liberalismo conservador se baseia não em distinções es-
púrias, que descartamos, mas na necessidade de preservar a au-
tonomia pessoal contra os excessos de deveres positivos corre-
latos aos direitos sociais.
A UNASUL foi prospectada como importante cami-
nho de coordenação política dos países sul-americanos nos te-
mas comuns às nações da região. Logo após o seu nascedouro,
o bloco já demonstrou a sua importância, conforme denotado
na crise institucional ocorrida na Bolívia em setembro de 2008,
na qual, a UNASUL atuou de forma contundente no isolamento
dos grupos oposicionistas, impedindo o estabelecimento de um
conflito bélico, ao apoiar a posição governamental. No entanto,
nos últimos anos se instalou um conflito interno na UNASUL

Trotta, 2007, p. 32.


10 NINO, Carlos Santiago. Una teoría de la justicia para la democracia: hacer jus-
ticia, pensar la igualdad y defender libertades. 1ª- ed. Buenos Aires: Siglo Vein-
tiuno Editores, 2013, p. 232/233. Tradução livre: “...todavía hay lugar para un au-
téntico liberalismo conservador en el consenso que provee la base para una prác-
tica constitucional inspirada por el liberalismo- cuya orientación, ya sea hacia una
posición más conservadora o más progresista, debería llevarse a cabo a través del
proceso democrático. Este liberalismo conservador genuino está basado no en
disticiones espurias, las cuales hemos desechado, sino en la necesidad de preser-
var la autonomia personal en contra de excesivos deberes positivos que son co-
rrelativos a los derechos sociales.”
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
28 | no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

que praticamente paralisou suas atividades. Desde 2017,


quando o ex-presidente colombiano Ernesto Samper concluiu
seu período à frente do organismo, a UNASUL está sem secre-
tário-geral por força da ausência de consenso entre os seus
membros, bem como sem fontes de custeio para a manutenção
de suas atividades.
A prosperidade da América do Sul, em uma reali-
dade contemporânea, depende sobretudo do resgate da altivez
no plano da política externa. Necessita, principalmente do for-
talecimento de valores como a cidadania inclusiva, a dignidade
da pessoa humana e a democracia. Nessa ordem de ideias, os
acordos de integração regional sul-americana devem servir de
mecanismos de propulsão para o desenvolvimento social, eco-
nômico e político regional, principalmente no contexto ora vi-
venciado, marcado pelo pós-pandemia e a Guerra Rússia/Ucrâ-
nia.
O recém-criado Fórum para o Progresso e Desenvol-
vimento da América do Sul (PROSUL) representa um processo
de integração mais pragmático e orientado para resultados
econômicos. A partir da criação do PROSUL o MERCOSUL as-
sume um papel mais voltado para o livre comércio. Com a nova
função do MERCOSUL em 2019 foram priorizadas relações do
Bloco com a União Europeia, com a Associação Europeia de Li-
vre Comércio e com o Canadá.
O recente acordo do MERCOSUL com a União Euro-
peia fez parte de um processo de intensificação da agenda do
projeto em negociações externas, que também incluiu rodadas
com a Associação Europeia de Livre Comércio, o Canadá, a Co-
reia, Singapura, formando um amplo programa de negociações
externas que se encontra articulado com a política diplomática
brasileira.
William Paiva Marques Júnior | 29
No plano prospectivo, o ideal é que o Brasil necessita
de uma política externa a mais ampla possível e, talvez, o PRO-
SUL não atenda a essa expectativa. No momento, não se verifica
uma diretriz clara para a política diplomática brasileira. Um dos
principais desafios da atual gestão do Itamaraty é encontrar
uma clareza e congruência nos rumos externos.
Parece clara a diretriz da política diplomática brasi-
leira contemporânea no sentido da busca de uma relação privi-
legiada com os Estados Unidos, mas esse alinhamento ao invés
de beneficiar, pode vir a atrapalhar a integração regional sul-
americana, menoscabando o papel do Brasil como potência re-
gional, ao passo que nos governos brasileiros após a redemocra-
tização verificava-se uma a busca de autonomia por participa-
ção. Da redemocratização até o final de 2018, a política diplo-
mática nacional não queria retornar àqueles períodos do pas-
sado em que o Brasil se via como um aliado dos Estados Unidos.
Criado em um contexto de caos político, social, eco-
nômico e humanitário na Venezuela, o PROSUL não expressa
de forma direta estratégias claras para os problemas dos refugi-
ados venezuelanos, fato é que o país foi excluído do novo pro-
jeto integracionista. No plano prospectivo, observa-se que o
PROSUL surge com o nítido objetivo de substituir a UNASUL.
Nesse diapasão, o construto do PROSUL também é uma forma
de países da região isolarem a Venezuela, governada pelo con-
troverso Nicolás Maduro. O aludido isolamento se dá porque
Brasil, Argentina (no governo Macri) e Colômbia estão entre os
países que não reconhecem a legitimidade de Maduro e consi-
deram o líder oposicionista Juan Guaidó como presidente inte-
rino da Venezuela, desse modo, a disputa pela legitimidade
presidencial na Venezuela reverbera no plano da integração re-
gional sul-americana.
30 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

Os governos da China e da Rússia apoiam o presi-


dente Maduro, sendo importantes fontes de suporte financeiro
ao país, fornecendo bilhões de dólares em empréstimos, garan-
tidos por operações futuras de entrega de petróleo. Entre diplo-
matas, políticos, militares e especialistas aumenta a preocupa-
ção com a rápida escalada do conflito e da constante troca de
provocações entre os governos russo e estadunidense, princi-
palmente com os impactos oriundos da Guerra com a Ucrânia
em 2022.
São tantas as crises provocadas na recente história da
democracia latino-americana que o discurso proferido pelo es-
critor colombiano Gabriel García Márquez11 ao receber o Prêmio
Nobel de Literatura, em 1982 ainda faz sentido: “...a indepen-
dência do domínio espanhol não nos colocou a salvo da demên-
cia.” dos governantes de plantão.
A iniciativa do PROSUL se deu pela atuação dos ex-
presidentes do Chile (Sebastián Piñera) e da Colômbia (Iván
Duque) garantindo papel protagonista a ambos os países na
construção do Bloco.
Bolívia, Suriname e Uruguai, somados à Venezuela e
à Guiana, são os únicos membros ativos restantes na UNASUL,
após a saída de todos os demais países, com a criação do PRO-
SUL, incluindo o Equador, país sede daquele Bloco.
A Declaração Presidencial sobre a Renovação e o Fortaleci-
mento da Integração da América do Sul ocorreu em Santiago/Chile, em
22 de março de 201912, da qual participaram os Chefes de Estado

11 MÁRQUEZ, Gabriel García. Gabo e a solidão da América Latina. Disponível em:


http://operamundi.uol.com.br/dialogosdosul/gabo-e-a-solidao-da-america-la-
tina/22042014/. Acesso em: 28.07.2022.
12 Dados disponíveis em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-im-
prensa/20203-declaracao-presidencial-sobre-a-renovacao-e-o-fortalecimento-da-
integracao-da-america-do-sul-santiago-22-de-marco-de-2019. Acesso em: 29 de
William Paiva Marques Júnior | 31
da República Argentina, da República Federativa do Brasil, da
República do Chile, da República da Colômbia, da República do
Equador, da República Cooperativa da Guiana, da República do
Paraguai e da República do Peru serviu como base para a for-
mação do PROSUL.
Em seu Preâmbulo, a Declaração Presidencial sobre
a Renovação e o Fortalecimento da Integração da América do
Sul reafirmou que o processo de construção de espaço de coor-
denação, cooperação e integração regional deve respeitar a in-
tegridade territorial dos Estados, o direito e a segurança inter-
nacionais, além de estar comprometido com a preservação da
América do Sul como Zona de Paz, bem como reconheceu as
contribuições de processos anteriores de integração sul-ameri-
cana, assim como a necessidade de preservar o seu acervo, no
marco de novo espaço de integração mais eficiente, pragmático
e de estrutura simples, que permita consolidar seus êxitos e pro-
mover a evolução sem duplicação de esforços, em direção a
uma região mais integrada13, mesmo que contextualmente te-
nha surgido do confronto ideológico com a UNASUL.
As áreas estratégicas de atuação do PROSUL encon-
tram-se previstas nos números 04 e 05 da Declaração Presiden-
cial sobre a Renovação e o Fortalecimento da Integração da
América do Sul, quais sejam: “4. Que este espaço abordará de
maneira flexível e com caráter prioritário temas de integração
em matéria de infraestrutura, energia, saúde, defesa, segurança
e combate ao crime, prevenção de e resposta a desastres natu

julho de 2022.
13 Dados disponíveis em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-im-
prensa/20203-declaracao-presidencial-sobre-a-renovacao-e-o-fortalecimento-da-
integracao-da-america-do-sul-santiago-22-de-marco-de-2019. Acesso em: 29 de
julho de 2021.
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
32| no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

rais.”, bem como: “5. Que os requisitos essenciais para partici-


par deste espaço serão a plena vigência da democracia e das res-
pectivas ordens constitucionais, o respeito ao princípio de sepa-
ração dos poderes do estado, e a promoção, proteção, respeito e
garantia dos direitos humanos e das liberdades fundamentais,
assim como a soberania e a integridade territorial dos estados,
em respeito ao direito internacional.”
Como diferenças visíveis, o PROSUL não deve ter
um tratado e não será um organismo, como a UNASUL. Outra
diferença objetiva se dá quanto aos países membros: enquanto
participaram da UNASUL os 12 países sul-americanos, no PRO-
SUL 4 deles ficaram de fora até o momento: Uruguai, Bolívia,
Suriname e Venezuela. No aspecto subjetivo-ideológico, outra
diferença é verificada pela seguinte constatação: enquanto as li-
deranças que fundaram a UNASUL tinham um perfil mais vol-
tado à esquerda (o que não indica necessariamente que o bloco
seja uma organização de esquerda), as do PROSUL são mais
voltadas à direita (da mesma forma, não necessariamente o or-
ganismo é um fórum de direita) até porque, conforme vaticina
Norberto Bobbio14, a distinção entre esquerda e direita refere-se
ao diverso juízo positivo ou negativo sobre o ideal de igual-
dade, que deriva em última instância da diferença de percepção
e de avaliação daquilo que torna os homens iguais ou desiguais,
coloca-se em nível tão elevado de abstração que serve no má-
ximo para distinguir dois tipos ideais.
Observa-se, nesse sentido, a confluência entre Di-
reito Constitucional, Direito Internacional e os Direitos Huma

14 BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção


política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira. 3ª- edição. São Paulo: Editora
UNESP, 2011, p. 123.
William Paiva Marques Júnior | 33
nos”, por meio do intercâmbio e conexão na primazia das nor-
mas internacionais dedicadas à proteção da pessoa humana
com influxos no Constitucionalismo em busca de efetividade e
força normativa dos direitos e garantias fundamentais, as Cons-
tituições nacionais passam a apresentar maiores possibilidades
de concretização de sua eficácia normativa, passando a ser con-
cebidas numa abordagem que aproxima o Direito Internacional
do Direito Constitucional plasmando a chamada “constitucio-
nalização do Direito Internacional”.
Sobre o tema, expõe Jürgen Habermas15 que, desde a
perspectiva da teoria democrática se encontra o diagnóstico da
simultaneidade da deslegitimação dos Estados Nacionais e da
necessidade do acesso da política supraestatal aos recursos de
legitimação nacionais.
Sob os influxos desse movimento tem-se a utilização
de jurisprudência constitucional estrangeira pela Justiça consti-
tucional nacional, de forma a estabelecer, em alguns casos, um
verdadeiro diálogo entre cortes, plasmando a simbiose entre a
jurisdição interna e a competência dos tribunais internacionais.
Nesse contexto, reconhece Antônio Augusto Can-
çado Trindade16 que o fenômeno da multiplicidade dos tribu-
nais internacionais é próprio dos nossos tempos. Os tribunais
internacionais contemporâneos têm contribuído decisivamente
para a expansão da jurisdição internacional, assim como para a
afirmação e consolidação da personalidade e capacidade jurídi-
cas internacionais do ser humano, como sujeito tanto ativo (ante
os tribunais internacionais de direitos humanos) como passivo

15 HABERMAS, Jürgen. Tiene todavía alguna posibilidad la constitucionalización


del derecho internacional?. El occidente escindido: pequeños escritos políticos,
Madrid, 2005, p. 113-187. Tradução livre.
16 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Os Tribunais Internacionais Con-
temporâneos. Brasília: FUNAG, 2013, p. 45.
34 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

(ante os tribunais penais internacionais) do Direito Internacio-


nal.
No âmbito do Direito Internacional, vem se deline-
ando um concreto sistema normativo internacional de efetiva
proteção dos direitos humanos, dotando-os de juridicidade, se-
guindo a vertente do constitucionalismo global, tendencial-
mente protetivo dos direitos fundamentais e limitador dos po-
deres e arbítrios estatais, mediante a criação de um arcabouço
internacional de proteção de direitos.
Nesse contexto, reconhece Sidney Guerra17 que a so-
ciedade internacional na atualidade se apresenta de forma uni-
versal, aberta, paritária e descentralizada. Nessa direção, em-
bora a descentralização seja uma das características predomi-
nantes da referida sociedade, o que poderia suscitar a errônea
compreensão da não existência dos mecanismos jurídicos no
plano das relações internacionais, evidencia-se, a contrario sensu,
a larga utilização deles (meios jurídicos) para a solução das con-
trovérsias internacionais. É bem verdade que é facultado aos Es-
tados litigantes aceitar ou não o poder jurisdicional na solução
de um conflito, entretanto, uma vez aceito, o aludido conflito
necessariamente deverá ser resolvido utilizando-se esta via,
onde se impõe uma solução definitiva e sem recurso. A solução
judiciária apresenta uma decisão de natureza obrigatória para
as partes envolvidas numa contenda internacional.
Por conseguinte, a constitucionalização do Direito
Internacional implica no incremento das instâncias de controle
judicial da aplicação dos institutos e mecanismos internaciona-
listas e um adensamento de juridicidade nos processos de solu-
ção de controvérsias pelos tribunais internacionais, incluindo a

17 GUERRA, Sidney. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Huma-


nos e o Controle de Convencionalidade. 1ª- edição. São Paulo: Atlas, 2013, p. 98.
William Paiva Marques Júnior |35
possibilidade de utilização desses mecanismos por parte dos
projetos integracionistas na América do Sul, em especial a
UNASUL e o PROSUL.
Conforme informado por Valério de Oliveira Maz-
zuoli18, entre as ações que podem ser tratadas judicialmente
pelo tribunal da Unasul estão o tráfico de pessoas, de armas, de
metais e drogas, além de problemas ambientais. Segundo escla-
rece, para que o tribunal possa, de fato, ser implantado, é neces-
sário que seja firmado um tipo de tratado internacional entre os
poderes legislativos dos países envolvidos. Modelos semelhan-
tes já estão atividade na Europa, onde já existem tribunais de
Justiça Supranacionais, que resolvem os problemas entre os pa-
íses membros (Tribunal de Justiça da União Europeia), e na
América Central, que envolve países como Honduras, Nicará-
gua, Panamá, Costa Rica e El Salvador (Corte Centro-Ameri-
cana de Justiça).
Conforme aduzido por Cristina Queiroz19, um Di-
reito Internacional “constitucionalmente orientado”, que é es-
sencialmente inteligido não como um mero “direito de coorde-
nação” entre Estados soberanos, mas como constitutivo dos
princípios ordenativos básicos de uma comunidade internacio-
nal, e que não prejudica a autonomia constitucional dos Esta-
dos, antes ele próprio deverá ser visto como a transposição na-
tural de objetivos constitucionais para o nível internacional. Um
processo que exige uma mudança conceitual e que poderá re-
sultar numa transformação das duas disciplinas que estão na

18 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Por um Tribunal de Justiça para a Unasul: a


necessidade de justiça para a América do Sul sob os paradigmas do Tribunal
de Justiça da União Europeia e da Corte Centro-Americana de Justiça. Brasília:
Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2014.
19 QUEIROZ, Cristina. Direito Constitucional Internacional. 1ª- edição. Coimbra:
Coimbra Editora, 2011, p. 106.
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
36| no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

sua base: o Direito Constitucional e o Direito Internacional. No


limite, a passagem de um Direito Internacional centrado no Es-
tado a um Direito Cosmopolita ou, numa outra acepção, a cria-
ção de uma autoridade pública dividida e partilhada no quadro
de um sistema jurídico global a meio caminho entre o federa-
lismo e o confederalismo.
Para Frédéric Sudre20, esse caráter objetivo do sis-
tema convencional transcende os interesses estatais e estabelece
a solidariedade comum, que se caracteriza tanto pelo gozo
quanto pelo exercício dos direitos.
Nesse diapasão, verifica-se o surgimento de blocos
regionais de integração com as quais os Estados já não estão so-
mente submetidos ao seu ordenamento jurídico interno, mas
também às normativas internacionais produzidas no âmbito re-
gional. Por força desse fenômeno, estão sendo traçados impor-
tantes vínculos entre o Direito interno e o Direito internacional,
principalmente porque desenvolvem uma relação simbiôntica,
inclusive na América Latina.
Conforme constatado por Flávia Piovesan21, as Cons-
tituições latino-americanas estabelecem cláusulas constitucio-
nais abertas, que permitem a integração entre a ordem constitu-
cional e a ordem internacional, especialmente no campo dos di-
reitos humanos, ampliando e expandindo o bloco de constituci-

20 SUDRE, Frédéric. La Convention européene des droits de l’homme. Neuvième


édition. Paris: Presses Universitaires de France, 2012, p. 12. Tradução livre: “Ce
caractère objectif du système conventionnel transcende les intérêts étatiques et
fonde la solidarité commune, qui se marque tant sur le plan de la jouissance que
sur celui de l'exercise des droits.”
21 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 9ª- edição. São Paulo: Saraiva,
2016, p. 147.
William Paiva Marques Júnior | 37
onalidade. Ao processo de constitucionalização do Direito In-
ternacional conjuga-se o processo internacionalização do Di-
reito Constitucional.
Em seu processo de institucionalização, o Chile exer-
ceu a primeira Presidência Pro Tempore do PROSUL, tendo de-
senvolvido trabalhos de coordenação nas diversas instâncias de
trabalho desenvolvidas durante o período 2019-2020. A partir
de 2020, a República da Colômbia encontra-se na nova Presi-
dência Pro Tempore do PROSUL, que a exercerá até dezembro
de 2021, quando assume a República do Paraguai.
Com a criação do PROSUL, em abril de 2018, os go-
vernos de Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru
decidiram de forma conjunta suspender a sua participação da
UNASUL em função da prolongada crise no organismo, consi-
derando ainda a criação no mês anterior do PROSUL.
Consoante o diagnóstico de Wagner Menezes22, na
verdade foi a concepção de solidariedade como ideal dos Esta-
dos, surgida nos primórdios do sistema interamericano, que
acabou por solidificar a própria nação dos Estados latino-ame-
ricanos enquanto sujeitos de Direito e atores de relações inter-
nacionais regionais e mundiais, e contribuiu para a construção
de mecanismos, regras, características da dinâmica regional,
que em razão da proximidade e dos laços de afinidade, desen-
volvidos em sucessivas conferências, propiciou a troca de infor-
mações e a adoção de mecanismos similares para a resolução de
conflitos. Hoje, o verdadeiro sentido da solidariedade ameri-
cana não é outro senão o de consolidar o continente, dentro do
quadro das instituições democráticas, do Sistema Interameri

22 MENEZES, Wagner. Direito Internacional na América Latina. 1ª- edição. 2ª-


Reimpressão. Curitiba: Juruá, 2011, p.
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
38| no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

cano e de outras organizações formadas à margem dele, em re-


gime de liberdade individual e de justiça social, fundado no res-
peito aos direitos essenciais do homem e na igualdade libertária
entre os Estados, embora o sentido inicial em que foi concebido,
tenha sido modificado em sua essência.
Portanto, o atual estádio da integração regional sul-
americana revela a necessidade de criação de um espaço amplo
que ultrapassa a esfera econômica, a exemplo do tradicional
modelo de integração desenvolvido pela União Europeia, por
intermédio da consolidação de uma identidade sul-americana,
o amadurecimento da democracia, da cidadania, dos direitos
humanos e o reconhecimento das diversidades étnico-culturais,
o desenvolvimento socioeconômico, a integração da infraestru-
tura e o fortalecimento da dignidade humana como valor inte-
grador.
Para Paulo Paulo Estivallet de Mesquita23, no con-
texto de otimismo em relação à mudança dos eixos globais de
poder, os países latino-americanos lançaram uma série de inici-
ativas de integração regional, com diferentes escopos, entre as
quais se destacam o MERCOSUL, a UNASUL e a CELAC. Cons-
truídos sob uma base econômica ou no sentimento de solidari-
edade e identidade latino-americana, esses mecanismos inevi-
tavelmente sentem as pressões decorrentes das mudanças re-
centes. Hoje, para empregar uma expressão utilizada por Celso
Lafer para descrever o cenário pós-Guerra Fria, vive-se um mo-
mento de explosão de particularismos na América Latina. É na-
tural que, pelo menos em uma primeira reação, países se voltem
para dentro diante do encerramento de um ciclo positivo e da

23 MESQUITA, Paulo Estivallet de. Novos sinais para a política externa brasileira na
América Latina. V Conferência sobre Relações Exteriores: o Brasil e as tendên-
cias do cenário internacional. Sérgio Eduardo Moreira Lima e Augusto W. M.
Teixeira Júnior (organizadores). – Brasília: FUNAG, 2018, págs. 33 e 34.
William Paiva Marques Júnior |39
necessidade de avaliar a melhor forma de mudar ou se adaptar
à nova conjuntura. Contudo, esse processo gera efeitos inevitá-
veis nos processos de integração existentes.
Como medida profilática, tem-se que as eventuais
clivagens políticas e ideológicas latentes no cenário político sul-
americano não devem ser tema central dos processos integraci-
onistas regionais sul-americanos e também não podem servir de
impedimento para a efetividade de resultados práticos e dialó-
gicos.
No diagnóstico da atual política diplomática brasi-
leira, Renata Moraes Simões24 ressalta que, com um forte dis-
curso de ruptura, em 2019 é empossado o presidente Jair Bolso-
naro. No intuito de dar continuidade ao que se chamou “desi-
deologização” da política externa brasileira, Bolsonaro coloca à
frente do MRE o diplomata Ernesto Araújo. Desde sua posse
como ministro, Araújo verbalizou um denso questionamento às
tradicionais ideias de multilateralismo e universalismo que por
anos foram associadas à práxis do Itamaraty. Torna-se cada vez
mais evidente os traços de ruptura que a gestão atual pretende
imprimir nas relações exteriores do Brasil contrapondo-se à
continuidade mantida desde o fim dos anos 1990. As transfor-
mações ocorrem na expectativa de demarcar uma via inovadora
de atuação ao refutar o legado dos governos anteriores, bem
como desconstruir seus vestígios. As relações exteriores brasi-
leiras até o momento são demarcadas pela busca do alinha-
mento personalista ao então presidente Donald Trump e da en-
trada brasileira na OCDE, que representam, na visão de Araújo,
uma reparação histórica ao fato de que por décadas a política

24 SIMÕES, Renata Moraes. A modificação da postura brasileira na UNASUL: da


criação à formalização da saída do bloco (2008-2019). Revista Neiba, Cadernos
Argentina-Brasil, UERJ: Rio de Janeiro, 2019, p. 1-19.
40 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

externa brasileira foi impregnada por uma ideologia antiameri-


canista e terceiro-mundista. No que condiz com o entorno regi-
onal do Brasil, a priorização dada ao eixo estadunidense coloca
a América do Sul em uma posição de desprestígio na diploma-
cia brasileira.
Com a eleição de Biden à presidência dos Estados
Unidos, as políticas brasileiras de relações internacionais se iso-
laram cada vez mais. Desta forma, o então ministro das Rela-
ções Exteriores, o ex-chanceler Ernesto Araújo, um dos mais li-
gados à política ideológica do governo Bolsonaro, teve de dei-
xar o Ministério das Relações Exteriores no início de 2021 após
intensas pressões do Congresso Nacional e de membros da car-
reira diplomática.
Inegável que o Brasil ostenta papel relevante na coo-
peração necessária à efetividade do PROSUL, devendo fomen-
tar mecanismos de coordenação com a organização, de modo a
facilitar a cooperação sul-americana na construção de novos ho-
rizontes para o multilateralismo regional, inclusive por meio da
necessidade de verticalização da uniformização da legislação.
Nesse contexto, aduz Cláudio Finkelstein25: é uma
das vertentes da globalização a emergência de redes especiali-
zadas de cooperação técnica com um alcance global: comércio,
meio ambiente, direitos humanos, diplomacia, comunicações,
medicina, prevenção da criminalidade, produção de energia, se-
gurança, cooperação indígena e assim por diante – as esferas da
vida que transgridem as fronteiras nacionais e que, por isso
mesmo, são difíceis de regulamentar por direito internacional
tradicional. As leis nacionais parecem insuficientes devido à na-
tureza transnacional das redes, enquanto o direito internacional

25 FINKELSTEIN, Cláudio. Hierarquia das normas no Direito Internacional: jus


cogens e metaconstitucionalismo. São Paulo: Saraiva, 2013, págs. 75 e 76.
William Paiva Marques Júnior | 41
tem em conta os seus objetivos e necessidades especializadas
apenas superficialmente. Como resultado, essas redes tendem a
desenvolver as suas próprias normas e regras alheias aos siste-
mas vizinhos. Isso acontece, por vezes, informalmente, por
meio da adoção pelos atores principais de formas de comporta-
mentos ou soluções padronizadas que criam expectativas e são
copiadas por outros. Às vezes, a coordenação é conseguida por
intermédio da harmonização das legislações nacionais ou regi-
onais, e a regulamentação, por exemplo, por meio da padroni-
zação crescente de contratos-modelos ou normas de responsa-
bilidade genérica. Mas essas também surgem por meio da coo-
peração intergovernamental e, em particular, com a ajuda das
organizações internacionais. O resultado é o surgimento de re-
gimes de Direito Internacional que têm sua base em tratados
multilaterais e nos atos das organizações internacionais, pa-
drões habituais que são adaptados às necessidades e aos inte-
resses de cada rede, mas raramente levam em conta o mundo
exterior. Este é o pano de fundo da fragmentação do Direito In-
ternacional: o surgimento de regras especializadas e sistemas
que não têm nenhuma relação clara entre si.
O PROSUL converge no contexto do Direito da Inte-
gração na busca de uniformização dos princípios fundamentais
de Direito Internacional e simultaneamente, na criação de enti-
dades jurídicas, econômicas, políticas, sociais e culturais de ca-
ráter regional na América do Sul.
Conforme adverte Sidney Guerra26, o processo de in-
tegração não deve estar confinado exclusivamente à esfera eco-
nômica. Entre os temas não comerciais, são merecedores de

26 GUERRA, Sidney. Organizações Internacionais. 1ª- edição. Rio de Janeiro: Lu-


men Juris, 2011, p. 244.
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
42 |
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia.

uma abordagem mais aprofundada os direitos humanos, a de-


mocracia e a defesa nacional . Ainda existem muitos óbices que

entravam o processo de aprofundamento da integração regio-

nal . Muitas das críticas dirigidas ao MERCOSUL guardam ín-


tima relação com o fato de o Bloco se apresentar como um pro-

cesso de estrutura intergovernamental, opaco (com imenso


acervo de documentos confidenciais) e hermético (pouco per-

meável à participação da sociedade civil) .

Conquanto eventuais divergências contextuais, o


compromisso com a defesa da democracia, da cidadania, do Es-
tado de Direito e dos direitos humanos são valores que per-

meiam de modo permanente a integração regional sul-ameri-


cana existindo cláusulas democráticas no MERCOSUL, na

UNASUL e no PROSUL, sendo reafirmados continuamente em


diversos de seus documentos .

O tratamento diferenciado conferido por meio das


políticas públicas inclusivas de minorias nos países do PRO-
SUL, não vulneram o princípio da isonomia, ao revés, apresen-

tam a finalidade de recomposição do próprio sentido de igual-


dade que serve de diretriz ao Estado Democrático de Direito,

afinal, conforme observado por Luigi Ferrajoli27: " ...una concep-

ción sustancial de la democracia, garante de los derechos fun-


damentales de los ciudadanos y no simplemente de la omnipo-
tencia de la mayoría..."

Consoante investigação de José Augusto Lindgren-

Alves28, enquanto os Estados vêm-se tornando continuamente

menos homogêneos, e o mundo, crescentemente entrelaçado, o

27 FERRAJOLI, Luigi. El derecho como sistema de garantías . Jueces para la demo-


cracia: información e debate, Madrid, n. 16, p . 61-69, feb . 1992, p. 67/68 .
28 ALVES, José Augusto Lindgren . É preciso salvar os Direitos Humanos! 1ª- edi-
ção. São Paulo: Perspectiva, 2018, p. 235.
William Paiva Marques Júnior | 43
mesmo não ocorre com pequenas comunidades e grandes reli-
giões. Ao contrário, seja como forma de autoafirmação de gru-
pos não detentores do poder, seja como autoproteção étnica
contra o consumismo amoral, inerente à globalização em curso,
as culturas vêm se revigorando – ainda que de maneira distor-
cida- a ponto de parecerem sagradas. Uma vez que as religiões
sempre foram aspectos importantes das culturas, o renasci-
mento religioso pós-moderno tem sido um dos aspectos mar-
cantes da fase contemporânea, ao passo que a religião em si
vem-se reapresentando como fator essencial da política, inclu-
sive em Estados constitucionalmente seculares. Há certamente,
diferentes maneiras de lidar com a composição pluricultural
das sociedades contemporâneas, que poucos Estados ou parti-
dos ainda insistem em negar. É possível dividir as atitudes cor-
rentes com relação à pluralidade étnica e racial em duas grandes
linhas: aqueles que professam o “multiculturalismo” para lidar
com a assimetria de condições entre comunidades distintas e
aqueles que preferem a “integração” – vocábulo que não deve
ser confundido com “assimilação”. Comum em quase todos os
Estados até o final da Guerra Fria, a política de assimilação é
hoje repudiada por lideranças acadêmicas e sociais como o es-
magamento forçado da diversidade para absorção do diferente
na cultura do dominante.
Outrossim, conforme explicitado por Roberto Garga-
rella29, a prioridade legal da comunidade deve ser que os indi-
víduos comecem a reconhecer que a lei respeita seus pontos de

29 GARGARELLA, Roberto. Carta abierta sobre la intolerância: apuntes sobre de-


recho y protesta. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2015, p. 45/46. Tradução
livre: “... la prioridad jurídica de la comunidad debería ser que los individuos
comiencen a reconocer que el derecho respeta sus puntos de vista, asigna a sus
intereses un peso equivalente al que las asigna a los de los demás, crea organiza-
ciones destinadas a alentar la vida en común y se muestra comprometido con la
44 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

vista, atribui igual peso aos seus interesses como os atribui aos
dos outros, cria organizações destinadas a incentivar a vida em
comum e é comprometida com a tarefa de inclusão social.
A realidade pós-pandêmica é dinâmica e os desafios
são enormes na tentativa de reversão desse grave e doloroso
quadro na América do Sul. Surgiram novas mutações do vírus
e a vacinação ainda é desigual nos países do PROSUL, devendo
criar-se um quadro de solidariedade regional para combate ao
quadro caótico de ausência de meios verificada nos países inte-
grantes. A cada dia surgem novos desafios jurídicos e muitos
países apresentam uma completa ausência de diretrizes claras e
congruentes na necessidade de combate aos efeitos deletérios
causados pela Covid-19 e da superação dos problemas econô-
micos surgidos a partir do conflito travado entre a Rússia e a
Ucrânia, os quais certamente impactam a integração regional
sul-americana. Afinal, conforme conclui Jürgen Habermas30:
“Mas devemos antes encontrar uma saída construtiva para o
nosso dilema. Essa esperança se reflete na cautelosa formulação
do objetivo de que a Ucrânia não pode perder esta guerra.”
A estrutura flexível e pouco institucionalizada tipifi-
cadora do PROSUL concatena-se à postura de esvaziamento
dos organismos identificados ao modelo anterior de integração
regional, uma vez que, consoante expresso por Alejandro Fren-
kel31: “Prosur no se propone agregar un nuevo plato al menú de

tarea de la inclusión social.”


30 HABERMAS, Jürgen. Guerra, choque e indignação. O dilema da linha verme-
lha. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/618416-guerra-choque-e-indig-
nacao-o-dilema-da-linha-vermelha-artigo-de-juergen-habermas . Acesso em:
31.05.2022.
31 FRENKEL, Alejandro. Prosur: el último frankenstein de la integración sudame-
ricana. Nueva Sociedad. Buenos Aires, jun, 2019.
William Paiva Marques Júnior | 45
organismos regionales, sino restringir los comensales según la
afinidad ideológica”.

2. Os desafios jurídicos do PROSUL no contexto pós-


pandêmico e o necessário resgate da democracia

A prosperidade da América do Sul, em uma reali-


dade contemporânea, depende sobretudo do resgate da altivez
no plano da política externa. Necessita, principalmente do for-
talecimento de valores como a cidadania inclusiva, a dignidade
da pessoa humana e a democracia. Nessa ordem de ideias, os
acordos de integração regional sul-americana devem servir de
mecanismos de propulsão para o desenvolvimento social, eco-
nômico e político regional.
Decerto o constructo democrático e garantista nos
países acometidos pelos movimentos sociais libertários, na
América do Sul, amoldam-se à constatação de Amartya Sen32
consoante a qual: a liberdade democrática pode certamente ser
usada para promover a justiça social e favorecer uma política
melhor e mais justa. O processo, entretanto, não é automático e
exige um ativismo por parte dos cidadãos politicamente enga-
jados.
No diagnóstico de Rubens Ricupero33, a diplomacia
em geral fez sua parte e até então não se saiu mal em compara-
ção a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto ex-
tremo em que não mais é possível que um setor possa continuar
a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sis-
tema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora,

32 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução: Denise Bottmann e Ricardo Doni-


nelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2.011, p. 386.
33 RICUPERO, Rubens. A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016. 1ª- edi-
ção. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017, págs. 738 e 739.
46 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá que ser


integral, e a contribuição da diplomacia na edificação depen-
derá da regeneração do todo.
A democracia pluralista não se coaduna com a ideo-
logia da unanimidade. Seu maior desiderato é a promoção de
uma institucionalização da divergência, ou seja, a permissão
que representantes dos diferentes interesses gozem de liber-
dade para defender institucionalmente seus interesses, desde
que estes se relacionem com os meios legais e participativos.
Essa é a recomendação ideal para o êxito do projeto integracio-
nista da América do Sul.
Para Gregorio Robles34 se o pluralismo originalmente
exigia a convivência no âmbito da democracia formal, hoje
exige o desenvolvimento de uma democracia material (substan-
tiva), estabelecida portanto não só em liberdades 'vazias' , mas
também em critérios de política positiva que, do ponto de vista
ético, não pode encontrar um assento na ideia individualista,
mas na ideia da solidariedade e da responsabilidade.
Atualmente observa-se que a América do Sul (apesar
de suas assimetrias), campeia como modelo predominante-
mente democrático no Hemisfério Sul, fator considerado funda-
mental para o êxito do processo integracionista.
Desta forma, coaduna-se com Darcy Ribeiro35, ao va-
ticinar o fato de que o destino é o Brasil se unificar com todos os

34 ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la ética em la sociedad actual.


Reimpresión Revisada. Madrid: Editorial Civitas, S.A., 1997, p. 153. Tradução li-
vre: “...si el pluralismo en sus orígenes exigió la convivencia en el marco de una
democracia formal, hoy exige el desarrollo de una democracia material, asentada
por tanto no sólo en libertades ‘huecas’, sino también em critérios de política po-
sitiva que, desde el punto de vista ético, no pueden encontrar ya asiento en la idea
individualista sino en la idea de la solidaridad y de la responabilidad ”.
35 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2.006, p. 158.
William Paiva Marques Júnior | 47
latino-americanos pela sua oposição comum ao mesmo antago-
nista, que é a América anglo-saxônica, para se fundar, tal como
ocorre na comunidade europeia, a Nação Latino-Americana so-
nhada por Bolívar. Hoje, são 500 milhões, amanhã será 1 bilhão;
vale dizer, um contingente humano com magnitude suficiente
para encarnar a latinidade em face dos blocos chineses, eslavos,
árabes e neobritânicos na humanidade futura. São povos novos
ainda na luta para se fazer como um gênero humano novo que
nunca existiu, tarefa muito difícil e penosa, mas também muito
mais bela e desafiante.
Após o lançamento e formalização de saída da UNA-
SUL, as instâncias diplomáticas dos países do PROSUL, notada-
mente da diplomacia brasileira, agora devem concentrar esfor-
ços em grupos de trabalho para elaborar as bases para a criação
da comunidade comum que aperfeiçoe e aprofunde as bases es-
tabelecidas pelo MERCOSUL.
A análise histórica denota que a América do Sul é
campo fértil para diversas iniciativas de cooperação e integra-
ção regional. Os benefícios de décadas de esforços das políticas
diplomáticas em mecanismos como ALALC, ALADI, MERCO-
SUL, Aliança do Pacífico, UNASUL e, mais recentemente, o
PROSUL não podem ser olvidados: a região tem um histórico
de baixo envolvimento em conflitos internacionais, é livre de
armas nucleares e conseguiu superar muitas de suas principais
rivalidades geopolíticas. No campo das relações internacionais
bilaterais, os países sul-americanos têm logrado desenvolver
amplas agendas, especialmente em matéria comercial.
Conforme observa Renata Moraes Simões36, a grande
questão parece ser a troca de blocos regionais em detrimento da

36 SIMÕES, Renata Moraes. A modificação da postura brasileira na UNASUL: da


criação à formalização da saída do bloco (2008-2019). Revista Neiba, Cadernos
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
481
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

mudança de governo nos países. Na retórica, essa perspectiva

se liga a um discurso recente acerca da flexibilização dos orga-


nismos internacionais . Na prática, quer dizer que novos gover-

nos chegam ao poder e apontam que as dinâmicas regionais es-

tabelecidas em outros governos são engessadas e enviesadas .


Logo existe a necessidade de se criar outro bloco e consequen-

temente inicia-se um processo de overlapping de regionalismos .


Ainda que não esteja muito bem delineada, em geral,

a postura assumida pela política externa brasileira no governo


Bolsonaro demonstra a intencionalidade de ruptura com os go-

vernos anteriores, em uma tentativa de esvaziamento e invali-

dação de seus legados, como ocorreu com a UNASUL, impli-

cando em uma sobreposição de projetos integracionistas que


não conseguem atingir suas finalidades institucionais.

Em março de 2020, os Chefes de Estado e Altos Re-

presentantes da República Federativa do Brasil, da República

do Chile, da República da Colômbia, da República do Equador,

da República do Paraguai e da República do Peru, bem como


do Estado Plurinacional da Bolívia, em sua qualidade de estado

observador, participaram de uma videoconferência presidida

pelo chile, na qualidade de presidente pro tempore do PROSUL

que resultou em declaração presidencial do bloco sobre ações


conjuntas para enfrentar a pandemia do Coronavírus, (Covid-

19), estabelecendo como uma de suas prioridades adotar crité-

rios para a tomada de decisões no gerenciamento da emergência

causada pelo Coronavirus, compartilhando diagnósticos confi-

áveis e informações epidemiológicas sobre o quadro pandê-


mico37.

Argentina-Brasil, UERJ: Rio de Janeiro, 2019, p. 1-19.


37
ITAMARATY. Declaração presidencial do PROSUL sobre ações conjuntas para
enfrentar a pandemia do Coronavirus . Disponível em: http://www.itama-
William Paiva Marques Júnior | 49
Observa-se que a Argentina não participou da reu-
nião referenciada. Portanto abrem-se alguns questionamentos:
(1) o PROSUL, com um perfil mais flexível e menos institucio-
nalizado, será capaz de levar adiante o ainda recente processo
de cooperação, integração e regionalismo na América do Sul?
(2) Partindo-se da premissa que a Argentina, fundamental para
a construção do bloco, passa por um processo de mutação da
política diplomática com a substituição de Mauricio Macri por
Alberto Fernández, seria possível esperar que o Brasil buscasse
uma posição de destaque na consolidação do novo bloco? Ques-
tionamentos como esses deixam a posição brasileira na região
incerta e ameaçam a estabilidade de um relacionamento ainda
recente em que falta o tradicional diálogo na relação Brasil-Ar-
gentina, dois dos mais importantes países do bloco.
Inegável que o Brasil ostenta papel relevante na coo-
peração necessária à efetividade do PROSUL, devendo fomen-
tar mecanismos de coordenação com a organização, de modo a
facilitar a cooperação sul-americana na construção de novos ho-
rizontes para o multilateralismo regional.
Portanto, inequívoco que a defesa inquebrantável da
democracia é fundamental para o êxito do processo integracio-
nista regional sul-americano devendo haver o enfrentamento
dos problemas regionais pelo PROSUL por meio da cooperação
e respeito às diferenças.

raty.gov.br/pt-br/notas-a-imprensa/21459-declaracao-presidencial-do-prosul-so-
bre-acoes-conjuntas-para-enfrentar-a-pandemia-do-coronavirus. Acesso em: 08
abr. 2022.
A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
50 | no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

Considerações Finais

Para um futuro emancipatório e inclusivo para a efe-


tividade do PROSUL propõe-se mais diálogo, uma democracia
aberta à participação cidadã e um governo atento, acessível e
sensível às diferenças e aos clamores sociais.
A análise histórica denota que a América do Sul é
campo fértil para diversas iniciativas de cooperação e integra-
ção regional. Os benefícios de décadas de esforços das políticas
diplomáticas em mecanismos como ALALC, ALADI, MERCO-
SUL, Aliança do Pacífico, UNASUL e, mais recentemente, o
PROSUL não podem ser olvidados: a região tem um histórico
de baixo envolvimento em conflitos internacionais, é livre de
armas nucleares e conseguiu superar muitas de suas principais
rivalidades geopolíticas. No campo das relações internacionais
bilaterais, os países sul-americanos têm logrado desenvolver
amplas agendas, especialmente em matéria comercial.
Conquanto eventuais divergências contextuais, o
compromisso com a defesa da democracia, da cidadania, do Es-
tado de Direito e dos direitos humanos são valores que per-
meiam de modo permanente a integração regional sul-ameri-
cana existindo cláusulas democráticas no MERCOSUL, na
UNASUL e no PROSUL, sendo reafirmados continuamente em
diversos de seus documentos.
Considerando tratar-se o PROSUL de um projeto
bastante recente, não se pode antever tal grau de diferenciação
na prática no tocante à UNASUL, tendo em vista que as ideias
divulgadas sugerem uma natureza de cooperação similar à da
organização sul-americana pregressa.
Após o lançamento e formalização de saída da UNA-
SUL, as instâncias diplomáticas dos países do PROSUL, notada
William Paiva Marques Júnior | 51
mente da diplomacia brasileira, agora devem concentrar esfor-
ços em grupos de trabalho para elaborar as bases para a criação
da comunidade comum que aperfeiçoe e aprofunde as bases es-
tabelecidas pelo MERCOSUL.
No plano prospectivo, observam-se, entretanto,
enormes desafios comuns aos países da região: a defesa inque-
brantável da democracia, o desenvolvimento econômico, o
combate à criminalidade, o reforço do Estado de Direito, a re-
dução das desigualdades sociais, a proteção ao meio ambiente,
dentre outros. A cada novo ciclo político pelo qual a região
passa, o equacionamento desses desafios recebe diferentes vi-
sões.
A existência de conflitos é da natureza democrática.
Nessa ordem de ideias, um elemento central para o êxito da in-
tegração regional sul-americana é a busca na solução para a
grave crise atualmente vivenciada na região, especialmente no
que concerne ao caso venezuelano. Portanto, faz-se essencial o
diálogo diplomático, político e democrático para viabilizar a
unidade da América do Sul.
A única saída viável na construção de um genuíno
projeto integracionista regional sul-americano se dá pela valo-
rização da política democrática que reúne condições de articu-
lar a complexidade e fundar as bases necessárias para o resgate
da confiança dos cidadãos sul-americanos, na defesa de sua dig-
nidade e de seus direitos.

Referências

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manos! 1. edição. São Paulo: Perspectiva, 2018.
52 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
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56 | A integração regional sul-americana ante os desafios jurídicos do PROSUL
no contexto pós-pandêmico e o necessário resgate da democracia

SOUTH AMERICAN REGIONAL INTEGRATION


BEFORE PROSUL'S LEGAL CHALLENGES IN THE
POST-PADEMIC CONTEXT AND THE NECESSARY
RESCUE OF DEMOCRACY
Abstract: The complex contemporary reality in the countries of South
America demonstrates the existence of several factors that challenge
the effectiveness of PROSUR in the post-pandemic context. The feasi-
bility of regional integrationist projects places its hopes in the expan-
sion of democracy, constitutionalism and citizenship. It is used, as a
methodology, bibliographic research through the analysis of books,
legal articles, international documents, legislation and jurisprudence.
The research is pure and qualitative, with descriptive and exploratory
purpose.
Keywords: Regional integration. South America. Legal challenges.
Prosul. Democracy.
CAPÍTULO II.
RESPONSABLIDADE SOCIAL
CORPORATIVA NA UNIÃO EUROPEIA E
NO BRASIL

Antônio Lucas dos Santos da Mata*

Resumo: A violação de direitos humanos e a degradação ambiental


na consecução das práticas empresariais enseja a necessidade de for-
talecer a responsabilidade socioambiental corporativa na medida em
que estas buscam alavancar sua competitividade no mercado. Nesse
sentido, o estabelecimento de leis específicas que tornam obrigatória
a adoção de práticas de responsabilidade social corporativa com a fi-
nalidade de conter as externalidades negativas na cadeia produtiva
de empresas se manifesta como uma das opções viáveis de conter a
inobservância de direitos humanos e os danos ambientais. Assim, a
presente pesquisa objetiva discutir o atual panorama legislativo espe-
cífico de países europeus e da União Europeia quanto à adoção de
normas de devida diligência ambiental e de direitos humanos, que
devem ser cumpridas tanto em território nacional, quanto estran-
geiro, com o intuito de entender a importância de tais instrumentos e
como estes podem influenciar no contexto jurídico brasileiro. A me-
todologia adotada será exploratória descritiva, a partir da análise do-
cumental e bibliográfica de leis, diretivas, artigos, entre outros. A par-
tir deste estudo, foi possível concluir que o ordenamento jurídico pá-
trio necessita adequar seu regime de responsabilidade social corpora-
tiva, com o intuito de fortalecer a proteção ambiental e de direitos hu-
manos na cadeia produtiva, podendo tomar como ponto de partida
os modelos adotados em países europeus.

* Mestrando em Direito e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Ceará.


Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Católica de Quixadá. Pesquisador
no Research Module on Poverty, Sustainability and International Law, do Grupo de
Estudos em Direito e Assuntos Internacionais (GEDAI/UFC). Advogado.
58 | Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

Palavras-chave: Responsabilidade social corporativa. União Euro-


peia. Responsabilidade socioambiental.

Introdução

Com o avanço do fenômeno da globalização e inte-


gração de mercados, facilitando as relações comerciais entre di-
ferentes países e possibilitando que empresas outrora de atua-
ção apenas em território nacional passassem a ter um espaço na
arena internacional, por mais que tenham gerado benefícios
econômicos, com a circulação monetária no âmbito global, tam-
bém resultou em outros problemas, de natureza socioambien-
tal, surgindo a necessidade de se repensar as obrigações corpo-
rativas no que diz respeito aos seus deveres perante um novo
ordenamento jurídico e os sistemas globais e regionais de pro-
teção de direitos humanos; do mesmo modo sua responsabili-
dade social de adotar práticas empresariais que tenham em seu
conteúdo uma dimensão ética na medida em que visa garantir
a proteção social e ambiental.
Diante deste contexto, organizações internacionais,
como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na
tentativa de promover a adoção global de mecanismos que ver-
sem sobre responsabilidade corporativa de empresas, discuti-
ram e desenvolveram medidas que elencam princípios e regu-
lamentos que ditam os caminhos que as empresas devem traçar
quanto à proteção socioambiental em suas práticas econômicas.
Todavia, por mais que existam tais instrumentos, a sua adesão
é voluntária, inexistindo a obrigatoriedade das empresas de
adequarem sua atividade empresarial a critérios socioambien-
tais capazes de abordar problemas contemporâneos, tais como
trabalho infantil na cadeia produtiva, destruição ambiental, etc.
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 59
Nesse aspecto, o estudo ora realizado terá como pro-
blemática a fragilidade da proteção dos direitos humanos e do
meio ambiente nas práticas empresariais em decorrência da au-
sência de normas que fixem a obrigatoriedade de se adotar a
responsabilidade social corporativa, o que inclui a devida dili-
gência em sua cadeia produtiva, por exemplo, a fim de conter
as externalidades negativas que eventualmente possam surgir.
Assim, objetiva-se discutir nesta pesquisa as diferen-
tes realidades de tratamento da responsabilidade social corpo-
rativa no âmbito da União Europeia, alguns de seus Estados-
membros, e o Brasil, e refletir acerca da importância de se adotar
instrumentos jurídicos vinculantes para a adoção das empresas
a estas práticas.
A presente pesquisa justifica-se diante da necessi-
dade de se discutir criticamente a forma de tratamento da res-
ponsabilidade social corporativa no Brasil, considerando para
tanto os avanços existente em outras realidades jurídico-norma-
tivas, especialmente na Europa, uma vez que a adequação de
empresas aos novos mercados e a sua adoção de práticas sus-
tentáveis tem se tornando não só uma exigência de mercado,
mas como uma condição de manutenção de sua subsistência, já
que com o avanço das mudanças climáticas, os impactos econô-
micos serão severos e generalizados, sendo responsabilidade de
todos o seu combate, desde entes públicos a entidades privadas.
A metodologia adotada será exploratória descritiva,
de tipo bibliográfica e documental, a partir da análise qualita-
tiva de artigos, documentos, leis, diretivas, entre outros. Para
fins estruturais, este artigo será dividido em três tópicos, sendo
abordado no primeiro os conceitos básicos de responsabilidade
social corporativa e ESG. No segundo serão analisadas legisla-
ções nacionais, especificamente da França e da Alemanha, e su-
pranacional, acerca das normas que fixam a obrigatoriedade de
60| Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

devida diligência em matéria de Direitos Humanos e meio am-


biente. Por fim, no terceiro será explanado a realidade brasileira
sobre a responsabilidade social corporativa.

1. Responsabilidade corporativa, ESG e o crescimento do


envolvimento privado em causas sociais e ambientais

A globalização dos mercados de capitais e a difusão


de empreendimentos empresariais com proporções transnacio-
nais, além de gerar benefícios econômicos, uma vez que pro-
move a circulação de riquezas entre diferentes nações ‒ pelo
menos, é o que se espera ‒, assim como a criação de empregos,
contribuição para o crescimento do mercado interno, entre ou-
tros, também ocasionou problemas associados à sua cadeia pro-
dutiva e questões relativas à sua responsabilidade socioambien-
tal. Ao se considerar a globalização dos mercados e a facilitação
de transações globais, muitas empresas passaram a descentrali-
zar seus processos produtivos e ampliaram sua atuação para
outros países, por diversas razões, dentre as quais se pode citar
as facilidades normativas presentes no país recebedor da filial
ou da subsidiária que ficará responsável por produzir os pro-
dutos para a sua comercialização na cadeia mundial.
Entretanto, ao realizar a descentralização de seus
processos produtivos, as empresas não devem ignorar aspectos
socioambientais associados com a sua cadeia produtiva e como
garantir uma atuação ética e valorativa em suas atividades em-
presariais, isso com o intuito de conter externalidades negativas
que eventualmente possam surgir a partir da ausência de um
sistema organizacional da empresa que leve em consideração,
por exemplo, os impactos ambientais que suas práticas estão
ocasionando, além de verificar se os seus produtos estão sendo
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 61
produzidos com trabalho infantil, ou a partir da violação de di-
reitos trabalhistas mínimos, tais como observância de uma jor-
nada de trabalho razoável, entre outros. A esta conscientização
empresarial, na adoção de valores socioambientais em suas es-
truturas internas, se dá o nome de responsabilidade social cor-
porativa (AGUDELO, JÓHANNSDÓTTIR, DAVÍDSDÓTTIR,
2019).
O termo responsabilidade social corporativa (RSC),
de acordo com a UNIDO (sem data, online), pode ser compre-
endido como um conceito associado aos processos de gestão
empresarial dos quais passam a integrar valores socioambien-
tais nas operações produtivas e comerciais. Nesse sentido, a em-
presa rompe com a noção de obtenção de lucros a todo custo
para adotar uma atuação responsável, que compreende os im-
pactos de suas atividades e busca tentar contê-los, na medida
em que adequa suas fontes de receita a processos produtivos
sustentáveis e que não ocasionem danos sociais e ambientais.
A adoção de uma gestão pautada na RSC também se
correlaciona, atualmente, com o crescente interesse por parte de
investidores da demonstração dos critérios de ESG (na sigla in-
glês Environmental, Social and Governance), uma vez que estes es-
tão à procura de investimentos que além de proporcionar o re-
torno financeiro, também possa trazer o valor socioambiental
atrelado, especialmente quando se considera o papel das enti-
dades privadas no combate as mudanças climáticas (KOCMA-
NOVÁ, DOCEKALOVÁ, 2012).
Para tanto, as empresas necessitam realizar os proce-
dimentos internos de due diligence para não só analisar os riscos
inerentes a sua atividade, mas compreendê-los holisticamente
na medida em que desenvolve estratégias de prevenção e miti-
gação que respeitem os direitos humanos e as normas ambien
62| Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

tais. Diferente das concepções tradicionais de due diligence, as-


sociadas a riscos comerciais, em que essencialmente as empre-
sas buscam identificar os riscos possíveis de em suas atividades,
por exemplo, quais as repercussões jurídicas serão geradas ao
adquirir um novo empreendimento, etc., a compreensão que
vincula o due diligence como um padrão de conduta ressignifica
o papel de organizações privadas e seu papel socioambiental,
principalmente quanto a observação por parte de empresas de
direitos humanos, seja nas dependências de sua sede, ou, de
modo extensivo, nas práticas adotadas em sua cadeia produtiva
(BONNITCHA, McCORQUODALE, 2017). Ressaltando que,
além da dimensão humana dos direitos humanos, também foi
reconhecido pela ONU o direito humano ao meio ambiente sau-
dável, trazendo à tona a dimensão ecológica dos direitos huma-
nos1.
As práticas de RCS fomentam no espaço empresarial
o relacionamento existente entre o que se denomina como
tripple bottom line, o tripé da sustentabilidade. No idioma inglês,
é conhecido como os três p’s, em alusão a people, planet and profit.
Em outras palavras, para que os resultados de uma empresa
possam ser mensurados, se deve levar em consideração como
esta atua no campo social, na proteção do meio ambiente e na
obtenção de lucro, uma vez que esta não perde sua condição de
entidade privada com fins lucrativos (BENITES, POLO, 2013).
Caso isto acontecesse, esta passaria a se tornar uma organização
filantrópica, o que não é o caso. Além de visar o lucro, esta deve
adotar práticas responsáveis e éticas que possam garantir que
os seus impactos socioambientais sejam positivos, assegurando

1 O reconhecimento do direito humano ao meio ambiente limpo, saudável e sus-


tentável se deu por meio da resolução 48/13, de 08 de outubro de 2021, emitida
pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU (UN, 2021).
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 63
que haja a proteção da natureza e mitigação de sua destruição,
assim como promover práticas laborais dignas e sustentáveis,
estruturando-se de tal modo a observar normas de direitos hu-
manos em toda a cadeia produtiva e acabar, por exemplo, com
toda e qualquer forma de manifestação do trabalho infantil que
esteja associada com sua marca.
Um dos grandes desafios existentes quando se pensa
em práticas de RSC é a voluntariedade na adoção de um sistema
empresarial com responsabilidade socioambiental. Se porven-
tura nos países que a empresa tenha sua sede ou subsidiária não
houver regulações específicas que abordem a necessidade de di-
vulgar seus planos e ações internas para conter externalidades
negativas em seus processos produtivos, a adoção de tais práti-
cas fica a critério da gestão; igualmente se as empresas optarem
por estenderem suas práticas para um país onde as regulações
são mais flexíveis sem que tenham adotado planos de RSC, po-
derá se configurar em um caso de dumping ambiental ou social.
Isto significa que para que as empresas manifestem um senso
ético de responsabilidade socioambiental alguns determinantes
são essenciais, desde a própria pressão popular ou de investi-
dores (ZHANG, YANG, 2021; GUNTHER, 2015), como também
a alteração legislativa, interesses econômicos e o desenvolvi-
mento de novos mercados, especialmente aqueles que existe
uma preocupação substancial com os impactos ambientais de
determinados produtos ou setores em virtude do avanço das
mudanças climáticas.
Quanto às pressões externas advindas tanto do pú-
blico em geral e dos investidores, se vê a importância que as
empresas dão a sua reputação no mercado, especialmente por
haver repercussões nos valores de suas ações, assim como na
própria adesão de consumidores de seus produtos ou serviços.
No caso das interações das empresas e investidores quanto à
64 | Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

adoção de práticas de RSC, pode-se citar o exemplo analisado


por Zhang e Yang (2021) acerca da divulgação dos planos de
responsabilidade social das empresas como uma resposta às crí-
ticas realizadas por investidores em suas redes sociais. O que se
concluiu foi que, a divulgação das estratégias de RSC se mos-
tram como um instrumento de legitimação das empresas para
garantir a sua reputação no mercado, e as críticas realizadas pe-
los investidores nas redes sociais colaboram ao acelerar os pro-
cessos de adoção e divulgação de tais práticas, assim como para
fornecer relatórios detalhados que sejam capazes de demonstrar
efetivamente como as ações de RSC são executadas e analisadas.
No que diz respeito às pressões populares, pode-se
mencionar diversos movimentos promovidos pela sociedade ci-
vil em prol de conter a violação de direitos humanos e a destrui-
ção do meio ambiente na cadeia produtiva de empresas trans-
nacionais. A título de exemplo pode-se citar os caso da Nike e
da Corporação Kimberly Clark, nos casos de trabalho infantil e
destruição de árvores centenárias, respectivamente. No pri-
meiro caso se refere ao caso de ausência de regulações internas
na Nike quanto à existência de trabalho infantil em sua cadeia
produtiva no final do século XX. Por mais que tenha sido con-
frontada por diversos ativistas e organizações, esta inicialmente
afirmou não ser responsável pela observância de direitos labo-
rais de fábricas que não eram suas, mesmo que os produtos in-
dustrializados por estas fossem comprados diretamente pela
Nike. Posteriormente, após o avanço midiático do caso, a Nike
resolveu se manifestar e associar a produção de seus produtos
a escravidão, passando por uma transformação interna exten-
siva com o intuito de mitigar tais problemas de sua cadeia pro-
dutiva. Similarmente, no caso da Corporação Kimberly Clark,
esta foi alvo das campanhas do Greenpeace por estarem destru
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 65
indo árvores centenárias, sendo que posteriormente estes pas-
saram a colaborar quando ocorreram mudanças das políticas de
produção e utilização de recursos (GUNTHER, 2015).
Já no fator externo de influência associada aos novos
mercados e marcos regulatórios que tornam obrigatórios a ado-
ção de práticas de RSC, pode-se verificar a crescente transfor-
mação que tem ocorrido no continente europeu a partir da ado-
ção do Pacto Ecológico, assim como de normativas nacionais e
supranacionais que abordem especificamente a violação de di-
reitos humanos e a proteção do meio ambiente na cadeia pro-
dutiva de empresas provenientes do mercado comum ou, caso
sejam estrangeiras, se preencherem os requisitos previstos nas
normas supranacionais dos quais também faz incidir a respon-
sabilização.

2. Responsabilidade social corporativa na União Europeia:


uma análise de normas nacionais e supranacionais

Embora existam instrumentos internacionais que


buscam promover a adoção de práticas de RSC em âmbito glo-
bal2, estas possuem natureza soft law e carecem de uma obriga-
toriedade de observância pelas empresas ao redor do mundo.
Todavia, com a crescente de problemáticas transnacionais em
decorrência das mudanças climáticas, assim como da inobser-
vância dos direitos humanos pelo setor privado, alguns países
europeus3 decidiram adotar mecanismos regulatórios que

2 Pode-se citar, cronologicamente, o Pacto Global da ONU (2010), os Princípios Ori-


entadores das Nações Unidas sobre Negócios e Direitos Humanos (2011), Diretri-
zes da OCDE para empresas multinacionais (2011), Declaração da Rio+20 “O fu-
turo que queremos” (2012), Acordo de Paris (2015) e o Guia da OCDE de Due
Diligence para uma Conduta Empresarial Responsável (2018).
3 De acordo com o gráfico elaborado pela Business & Human Rights Resource Centre,
66| Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

criam obrigações relativas à RSC, especialmente no que tange


às externalidades negativas em sua cadeia produtiva. Adicio-
nalmente, a União Europeia, empós a adoção por alguns de seus
Estados-membros de tais normativas, também propôs, por meio
da Comissão Europeia, uma diretiva que aborde especifica-
mente os comportamentos de empresas que causem danos am-
bientais e violações de direitos humanos em sua cadeia produ-
tiva, seja em países estrangeiros ou não.

2.1. Análise dos mecanismos regulatórios nacionais na França


e Alemanha de responsabilidade social corporativa

De acordo com a plataforma desenvolvida pelo Busi-


ness & Human Rights Resource Centre, que analisa diversas inici-
ativas de mandatory human rights and environmental due diligence
(mHRED), especialmente na Europa, existem atualmente dez
países e a União Europeia que desenvolveram instrumentos re-
gulatórios que abordem especificamente as violações de direi-
tos humanos no âmbito empresarial, tendo também em boa
parte desses o critério ambiental enquanto um dos pontos im-
portantes para se considerar no processo de gestão empresarial,
como é o caso por exemplo da medida adotado nos Países Bai-
xos que inicialmente apenas versava sobre a vedação ao traba-
lho infantil na cadeia produtiva de empresas nacionais, e atual-
mente já existem discussões legislativas para se expandir essa
regulação para abordar também a proteção ao meio ambiente
(BUSINESS AND HUMAN RIGHTS RESOURCE CENTRE,

em sua atualização do dia 22 de abril de 2022, os países europeus que possuem


alguma iniciativa de mandatory human rights and environmental due diligence
(mHRED) são: Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Itália,
Irlanda, Luxemburgo, Noruega, Espanha, Suécia, Suíça, e o Reino Unido (BUSI-
NESS AND HUMAN RIGHTS RESOURCE CENTRE, 2022).
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 67
2022). Assim, passar-se-á a uma análise das leis aprovadas na
França e Alemanha.
Na França foi estabelecido em 2017 o que hoje se co-
nhece como Direito de Vigilância (em francês Droit de Vigilance).
Neste estão previstas as condições, sujeitos privados e formas
de responsabilização dos entes privados que descumprirem
com a sua obrigação de estabelecer um plano específico que ve-
nha a abordar a violação de direitos humanos e degradação am-
biental em sua cadeia produtiva, privilegiando tanto o mercado
nacional quanto o internacional, uma vez que este regramento
também afeta as subsidiárias de empresas que tenham sua sede
na França. A obrigatoriedade de elaboração do plano é dirigida
para empresas que possuam pelo menos cinco mil funcionários,
diretos ou indiretos, na França, ou no mínimo dez mil funcio-
nários, diretos ou indiretos, que tenham sua sede na França ou
no exterior (FR, 2017).4 O que distingue o primeiro grupo do se-
gundo é a fixação da condição de ter a sede na França ou no
exterior, enquanto que o primeiro engloba todo o território fran-
cês.
O plano deve conter uma análise de riscos com a fi-
nalidade de prevenir eventuais externalidades negativas das
práticas profissionais de empresas, sejam as sedes, subsidiárias,
contratadas, etc. Assim, estas devem compreender a sua cadeia
produtiva e os possíveis danos que poderão surgir quanto a gra-

4 “Art. L. 225-102-4.-I.-Toute société qui emploie, à la clôture de deux exercices con-


sécutifs, au moins cinq mille salariés en son sein et dans ses filiales directes ou
indirectes dont le siège social est fixé sur le territoire français, ou au moins dix
mille salariés en son sein et dans ses filiales directes ou indirectes dont le siège
social est fixé sur le territoire français ou à l'étranger, établit et met en œuvre de
manière effective un plan de vigilance.” (FR, 2017, online)
68 | Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

ves violações de direitos humanos, liberdade fundamentais, sa-


úde, meio ambiente, e estabelecer medidas de prevenção.5 Caso
uma empresa não cumpra, ela poderá ser notificada por qual-
quer pessoa interessada e terá um prazo de três meses, a contar
da data de notificação, para adequar suas práticas. Todavia, se
permanecer descumprindo, o tribunal poderá ser acionado a fi-
xar a obrigatoriedade de observância do plano de vigilância sob
pena de aplicação de multa6 (FR, 2017).
Em janeiro de 2020 o Alto Conselho Francês para a
Economia publicou a primeira avaliação do Dever de Vigilân-
cia, em que foi possível constatar que por mais que a lei tenha
criado uma obrigação de RSC e que se tornou um caminho a ser
adotado pelas empresas, a sua efetivação ainda estava aquém
do esperado, necessitando que houvesse suporte por parte dos
serviços do Estado para assegurar a aplicação integral e genera-
lizada da norma (FR, 2020). Ademais, já se pontuava a necessi-
dade de se adotar no âmbito comunitário o Dever de Vigilância,
sendo a medida proposta pela Comissão Europeia em 2022 o
exemplo de manifestação de um instrumento supranacional de
mHRED.

5 “Le plan comporte les mesures de vigilance raisonnable propres à identifier les
risques et à prévenir les atteintes graves envers les droits humains et les libertés
fondamentales, la santé et la sécurité des personnes ainsi que l'environnement,
résultant des activités de la société et de celles des sociétés qu'elle contrôle au sens
du II de l'article L. 233-16, directement ou indirectement, ainsi que des activités
des sous-traitants ou fournisseurs avec lesquels est entretenue une relation com-
merciale établie, lorsque ces activités sont rattachées à cette relation.” (FR, 2017)
6 “II.-Lorsqu'une société mise en demeure de respecter les obligations prévues au I
n'y satisfait pas dans un délai de trois mois à compter de la mise en demeure, la
juridiction compétente peut, à la demande de toute personne justifiant d'un inté-
rêt à agir, lui enjoindre, le cas échéant sous astreinte, de les respecter.” (FR, 2017)
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 69
No caso da Alemanha, a Lei de Devida Diligência na
Cadeia de Suprimentos (em alemão Lieferkettensorgfaltspflichten-
gesetz - LkSG), teve o início de suas discussões em 2019, mas foi
somente em 2020 que se decidiu criar um regulamento obriga-
tório para que as empresas observassem suas obrigações de
RSC, especialmente porque, com base nos estudos realizados
pelo Governo Alemão, não estava sendo cumprido a adoção de
práticas voluntárias de devida diligência, logo, surgiu a neces-
sidade de criar um instrumento que tornasse a realização de tais
práticas obrigatório (BUSINESS AND HUMAN RIGHTS RE-
SOURCE CENTRE, 2021). Em julho de 2021 a lei foi aprovada e
começará a vigorar em 2023 (DE, 2021).
Em conformidade com o que está previsto na lei, as
regras serão aplicadas a empresas que possuem suas sedes ou
estabelecimento principal na Alemanha ou que tenham alguma
filial no solo nacional, desde que observado os regramentos,
como o número mínimo de funcionários, que inicialmente é três
mil, sendo a partir de 2024 reduzido para mil. A lei aborda tanto
violações graves de direitos humanos quanto práticas empresa-
riais que resultem em degradação ambiental. Além de observar
os ditames básicos da lei, as empresas deverão ainda criar uma
plataforma interna para o recebimento de reclamações de quais-
quer pessoas acerca de alguma prática que estejam indo de en-
contro com as diretrizes elencadas na legislação. Caso eventual-
mente haja o descumprimento das empresas de tais medidas,
esta poderá ser processada perante o judiciário (DE, 2021).
As leis adotadas na França e na Alemanha são ape-
nas dois exemplos de normas que estabelecem mHRED no sis-
tema jurisdicional interno. Existem diversos outros países,
ainda no contexto europeu, que também adotaram medidas si-
milares, adequadas as suas respectivas realidades. Além disso,
70 | Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

a própria União Europeia atualmente tem uma proposta de di-


retiva que aborda uma nova visão de sustentabilidade corpora-
tiva de empresas europeias que atuam no mercado comum (e
no estrangeiro), buscando-se criar uma obrigação para todos os
Estados-membros adotarem uma medida destinada a difundir
a obrigatoriedade da devida diligência de empresas quanto a
grave violação de direitos humanos e a destruição ambiental.

2.2. Proposta da corporate sustainability due diligence na União


Europeia

Em fevereiro de 2022, a Comissão Europeia adotou


uma proposta de uma diretiva sobre Devida Diligência de Sus-
tentabilidade Corporativa (em inglês Corporate Sustainability
Due Diligence), que tem como objetivo estabelecer um regra-
mento em âmbito supranacional, a ser posteriormente adotado
pelos Estados-membros, acerca da responsabilidade de empre-
sas atuantes no mercado comum quanto as eventuais violações
de direitos humanos e os impactos ambientais ocasionados em
decorrência dos processos adotados em sua cadeia produtiva.
Essa diretiva surgiu dentro do contexto do Pacto Ecológico Eu-
ropeu, como uma forma de intensificar o processo de transição
dos ideais de sustentabilidade da União Europeia para além do
mercado comum, uma vez que quando esta proposta for aceita
pelo Parlamento e Conselho Europeu, todos os Estados-mem-
bros deverão internalizar esta diretiva, assim como as empresas
com atuação em âmbito internacional deverão se responsabili-
zar por suas práticas em território estrangeiro (EU, 2022a).
O que se vislumbra nesse sentido são os impactos ex-
traterritoriais das medidas internas adotadas no âmbito da
União Europeia que irão reverberar seus efeitos para outros pa
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 71
íses, já que as empresas europeias, que possuem filiais, subsidi-
árias, subcontratadas, etc., no estrangeiro deverão garantir que
não haja violações de direitos humanos ou um impacto negativo
no meio ambiente. Adicionalmente, esta diretiva proporciona
certeza e segurança jurídica para as empresas que deverão pas-
sar pelo processo de adaptação e observância desta medida,
uma vez que proporcionará um campo de concorrência nive-
lado, na medida em que também fornece uma maior transpa-
rência para os consumidores e investidores, especialmente
quando se leva em consideração aspectos relacionadas a inves-
timentos e valor pessoal (EU, 2022a).
A diretiva se destina tanto para empresas de Países-
membros da União Europeia quanto empresas estrangeiras,
desde que observados os requisitos elencados7, sendo que as

7 “1. This Directive shall apply to companies which are formed in accordance with
the legislation of a Member State and which fulfil one of the following conditions:
(a) (b) the company had more than 500 employees on average and had a net
worldwide turnover of more than EUR 150 million in the last financial year for
which annual financial statements have been prepared; the company did not
reach the thresholds under point (a), but had more than 250 employees on aver-
age and had a net worldwide turnover of more than EUR 40 million in the last
financial year for which annual financial statements have been prepared, pro-
vided that at least 50% of this net turnover was generated in one or more of the
following sectors: (i) the manufacture of textiles, leather and related products (in-
cluding footwear), and the wholesale trade of textiles, clothing and footwear; (ii)
agriculture, forestry, fisheries (including aquaculture), the manufacture of food
products, and the wholesale trade of agricultural raw materials, live animals,
wood, food, and beverages; (iii) the extraction of mineral resources regardless
from where they are extracted (including crude petroleum, natural gas, coal, lig-
nite, metals and metal ores, as well as all other, non-metallic minerals and quarry
products), the manufacture of basic metal products, other non-metallic mineral
products and fabricated metal products (except machinery and equipment), and
the wholesale trade of mineral resources, basic and intermediate mineral prod-
ucts (including metals and metal ores, construction materials, fuels, chemicals
and other intermediate products). 2. This Directive shall also apply to companies
which are formed in accordance with the legislation of a third country, and fulfil
72 | Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

operações afetadas serão as próprias das empresas, as de suas


subsidiárias e as realizadas no âmbito de sua cadeia de valor,
logo, estas deverão se responsabilizar pelas eventuais externa-
lidades negativas que surjam a partir de suas práticas comerci-
ais com o intuito de prevenir que danos ocorram, seja em maté-
ria ambiental ou de direitos humanos. Caso haja o descumpri-
mento de tais medidas, os Estados-membros irão designar uma
autoridade nacional responsável pela aplicação de multas, as-
sim como as vítimas poderão ajuizar uma demanda perante o
judiciário da inobservância da devida diligência (EU, 2022b).

3. Responsabilidade social corporativa no Brasil: lacuna


normativa e necessidade de repensar o envolvimento
privado em problemas socioambientais

Diferentemente do que acontece em países como a


Alemanha, França, Países Baixos, entre outros, que existem nor-
mas específicas de mHRED e que determinam a obrigatorie-
dade de adoção por parte de empresas de práticas de RSC, no
Brasil não existe uma lei que fixe a obrigatoriedade da adoção
de tais comportamentos empresariais. O que se há, na realidade,
é uma compreensão sistémica das responsabilidades da em-
presa de assegurar que suas práticas não causem impactos am-
bientais, havendo a interpretação conjunta de diversas normas,
desde o texto constitucional aos regulamentos infralegais, como
é o caso das NBR ISO (CARVALHO, 2009; SIMÕES, 2021).

one of the following conditions: (a) generated a net turnover of more than EUR
150 million in the Union in the financial year preceding the last financial year; (b)
generated a net turnover of more than EUR 40 million but not more than EUR 150
million in the Union in the financial year preceding the last financial year, pro-
vided that at least 50% of its net worldwide turnover was generated in one or
more of the sectors listed in paragraph 1, point (b).” (EU, 2022b)
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 73
Nesse sentido, as práticas empresariais só são adotadas caso a
gestão empresarial compreenda haver uma razão de ser para
tais atos, seja por questões de mercado, seja por políticas e va-
lores internos da empresa.
O que há até então no Brasil, no quesito regulação
específica de RSC, são atos infralegais, como a Portaria nº 350
do antigo Ministério dos Direitos Humanos, Resolução nº
4.327/2014 do Banco Central do Brasil, e o Decreto nº 9.571/2018.
O ponto em comum entre estes é a necessidade de se garantir a
observância dos direitos humanos pelas empresas (CARVA-
LHO, 2021). Todavia, estas ainda não criaram uma obrigação
generalizada e uniforme para todas as empresas adotarem prá-
ticas de RSC, especialmente porque o próprio Decreto nº
9.571/18, em seu artigo 1º, §2º, fixou que a adoção das diretrizes
nele elencadas serão cumpridas de forma voluntária pelas em-
presas (BRASIL, 2018). Por conta disso, em virtude da ausência
de obrigatoriedade do RSC no Brasil, as empresas possuem
maior discricionariedade de agir sem ter que reestruturar o seu
sistema de negócios a fim de garantir que haja a observância de
direitos humanos e a proteção do meio ambiente em todas as
fases operacionais.
Dois grandes exemplos no Brasil dos impactos que a
falta de devida diligência e práticas de RSC de uma empresa
podem ocasionar social, ambiental e economicamente foi o rom-
pimento das barragens de Mariana e Brumadinho, em Minas
Gerais. A falta de análise de riscos, plano de preservação das
barragens e de contingência das externalidades negativas, con-
tribuiu para que esta tragédia não só afetasse todo o ecossistema
na região, como ocasionou a devastação da economia local e ge-
rou danos sociais gravíssimos. Por conta disso, ainda hoje se
fala de processos de responsabilização da empresa Vale S.A. por
74 | Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

sua displicência em relação as suas operações empresariais (FA-


BRÍCIO, FERREIRA, BORBA, 2021).
A falta de consideração corporativa da repercussão
socioambiental de suas práticas contribui para que a efetividade
dos direitos humanos seja ignorada, uma vez que, por questões
de mercado e busca constante de lucro, empresas passam a ado-
tar certas estratégias de gestão que vão de encontro com a ga-
rantia de direitos, seja de natureza social ou ambiental. Por tais
razões, a adoção de medidas de mHRED, que possui obrigato-
riedade de observância por parte do setor corporativo, se torna
uma condição necessária para que haja o fortalecimento da pro-
teção socioambiental na condução de atividades empresariais.
Assim, situações como as de Mariana e Brumadinho poderiam
ser prevenidas na medida em que empresas são forçadas a ana-
lisarem suas práticas e averiguar os pontos de riscos e poten-
ciais danos socioambientais que poderão ocasionar, seja em ter-
ritório nacional ou estrangeiro, uma vez que a violação de direi-
tos humanos e a degradação ambiental deve ser coibido em toda
a cadeia produtiva.
Com o avanço da globalização e a facilitação das
transações mercadológicas entre países, especialmente com a
distribuição de filiais e subsidiárias de empresas estrangeiras
para diferentes nações, a escolha de empresas do melhor local
para exercer suas atividades empresarias fora do território de
sua sede tende a ser o ambiente que proporcionar as melhores
condições, isto é, que irão influenciar diretamente na lucrativi-
dade da atividade econômica e a sua competividade no mer-
cado global. Todavia, a busca incessante pelas melhores condi-
ções para a produção e disseminação dos produtos ou serviços
produzidos tende a priorizar os países que ofereçam os melho-
res benefícios regulatórios, seja quanto à flexibilização de nor
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 75
mas ambientais ou à baixa proteção dos trabalhadores, for-
çando-os a uma situação de vulnerabilidade social em virtude
da ausência de RSC exigida por determinado ordenamento ju-
rídico (COSTA, TOSAWA, CACHICHI, 2019).
É certo que a adoção de práticas de RSC está também
interligada com a realidade do mercado e os caminhos de ges-
tão empresarial utilizados por determinada empresa. Por mais
que ter uma consciência socioambiental seja algo desejável em
todos os âmbitos e atividades econômicas, as empresas somente
irão adotar medidas e estratégias que visem coibir eventuais da-
nos sociais e ambientais caso (i) haja uma obrigatoriedade esta-
belecida pelo próprio ordenamento jurídico quanto as práticas
de RSC ou (ii) se o mercado que esta está inserida exija a sua
adoção, seja para aumentar a competividade ou somente para
se adequar ao modelo de negócio que tem se fixado. Por tais
razões, quando países da União Europeia adotam instrumentos
de mHRED, irradiando seus efeitos para outras nações e influ-
enciando outros ordenamentos jurídicos a desenvolverem me-
didas similares, vislumbra-se então uma mudança de paradig-
mas quanto ao que se compreende por RSC, especialmente por-
que a característica da voluntariedade agora passa a ser exclu-
ída e se torna uma prática obrigatória.
Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, por
se tratar de um período de grande instabilidade econômica e
sanitária, esperava-se que a adoção de RSC por empresas en-
quanto uma estratégia de gestão para contenção dos riscos e da-
nos ocasionados pela Covid-19, especialmente em face de seus
funcionários, se tornasse uma realidade do mercado global. To-
davia, o que se visualizou não foi a adoção de práticas sistemá-
ticas de RSC, mas sim comportamentos de natureza filantrópi-
cas enquanto medidas de curto prazo para conter os riscos soci-
ais decorrentes da pandemia. Por mais louvável que sejam tais
76 | Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

comportamentos filantrópicas e que, inclusive, foram muito im-


portantes durante a alta da crise sanitária, estas ainda não po-
dem ser comparadas com a RSC, particularmente em virtude de
se tratar de medidas de gestão com fins a longo prazo, de uma
atuação consciente e com responsabilidade socioambiental que
visem trazer benefícios tanto para os setores diretamente con-
templados por tais estratégias, como é o caso dos eventuais da-
nos ambientais que serão coibidos ou a eliminação de quaisquer
formas de trabalho escravo na cadeia produtiva, como também
contribui diretamente para o crescimento da empresa e os seus
stakeholders, fortalecendo a noção de investimentos pautados em
ESG e valor pessoal (MATIAS, NASCIMENTO, 2021).
A realidade é que, com o avanço das mudanças cli-
máticas, a tendência é que as práticas de RSC deixem de ser vo-
luntárias e passem a se tornar obrigatórias, seja por fixação nor-
mativa, com a elaboração de uma lei específica que obrigue as
empresas a coibirem eventuais violações de direitos humanos e
degradação ambiental durante a consecução de suas atividades
econômicas, em território nacional ou estrangeiro; seja por
questões mercadológicas, em que o aumento da demanda por
adequação das empresas a uma gestão pautada em estratégias
de ESG influencie o setor empresarial a modificarem suas prá-
ticas e se tornarem competitivos no mercado, especialmente a
partir da necessidade de muitos investidores de realizarem in-
vestimentos com valor pessoal. Nesse sentido, por mais que um
país ainda não tenha se adequado a essa nova realidade, como
é o caso do Brasil, a tendência é que haja uma modificação de
paradigmas na medida em que a adoção de tais medidas seja
mais difundida ao redor do mundo.
Antônio Lucas dos Santos da Mata | 77
Considerações finais

A responsabilidade do setor privado quanto à efeti-


vação de direitos humanos e a prevenção de danos ambientais
na consecução de suas atividades econômicas tem sofrido mo-
dificações paradigmáticas a partir da adoção por parte de al-
guns países europeus, assim como da proposta de diretiva da
União Europeia, de instrumentos de mHRED, tornando a RSC
uma prática de gestão empresarial obrigatória.
Anteriormente as empresas tinham a faculdade de
adotar a RSC na medida em que se tornasse benéfica para o seu
crescimento, seja por questões de mercado ou valores internos
da atividade econômica, mas, com a finalidade de se tornar
mais competitivo e assegurar a sua lucratividade. Todavia, a
tendência contemporânea, especialmente com o avanço das
mudanças climáticas, é de que a adoção da RSC é uma condição
necessária atribuída ao setor privado, com o intuito de coibir
violações de direitos humanos e atividades nocivas ao meio am-
biente em toda a sua cadeia produtiva, em território nacional e
estrangeiro.
Nesse sentido, a presente pesquisa buscou analisar
alguns instrumentos normativos adotados em países europeus
e a proposta de diretiva na União Europeia sobre a RSC e a
transformação paradigmática de suas bases, tornando a sua
adoção obrigatória para as empresas que se enquadram nos re-
quisitos previstos no mecanismo e a sua observância não se li-
mita ao território nacional, com efeitos extraterritoriais que
atinge filiais, subsidiárias e toda e qualquer atividade econô-
mica que tenha vinculação com a empresa situada no país que
a lei vigora, a fim coibir violações de direitos humanos e danos
ambientais em toda a sua cadeia produtiva. Adicionalmente,
78| Responsabilidade social e corporativa na União Europeia e no Brasil

buscou-se traçar um paralelo entre a realidade normativa ado-


tada no contexto europeu e o brasileiro, que, por mais que haja
a necessidade da obrigatoriedade do RSC, ainda não detém um
instrumento específico que assim o venha determinar.
Por conseguinte, é possível abstrair a partir do pre-
sente estudo que a obrigatoriedade de mHRED é essencial para
fortalecer a atuação do setor privado na contenção de violação
de direitos humanos e a destruição ambiental em toda a sua ca-
deia produtiva, trazendo vantagens não só relacionada efetiva-
mente a garantia de direitos, mas também quanto a intensifica-
ção e demonstração de medidas de ESG a serem observadas pe-
las empresas e que contribui para o seu crescimento no mercado
e possibilita que investidores possam realizar investimentos
com valor pessoal.
Nesse sentido, considerando que alguns países euro-
peus já adotaram instrumentos normativos acerca do tema, as-
sim como a União Europeia já manifestou sua intenção de regu-
lamentar a matéria em âmbito supranacional, outros países,
dentre os quais se inclui o Brasil, devem seguir o mesmo exem-
plo e adotar um instrumento similar a fim de fortalecer a prote-
ção de direitos humanos e do meio ambiente na consecução de
atividades empresariais, na materialização do desenvolvimento
sustentável.

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Antônio Lucas dos Santos da Mata | 83
CORPORATE SOCIAL RESPONSABILITY IN THE
EUROPEAN UNION AND BRAZIL
Abstract: Human rights violations and environmental harm in the
pursuit of business practices gives rise to the need to strengthen cor-
porate socio-environmental responsibility as they seek to leverage
their competitiveness in the market. In this sense, the establishment
of specific laws that make the adoption of corporate social responsi-
bility practices mandatory to contain negative externalities in the pro-
duction chain of companies is manifested as one of the viable options
to contain the non-observance of human rights and environmental
damage. Thus, the present research aims to briefly discuss the current
specific legislative landscape of European countries and the Euro-
pean Union regarding the adoption of environmental and human
rights due diligence standards, which must be complied with both
nationally and abroad, in order to understand the importance of such
instruments and how they can influence the Brazilian legal context.
The methodology adopted will be exploratory and descriptive, based
on documental and bibliographic analysis of laws, directives, articles,
among others. From this study, it was possible to conclude that the
national legal system needs to adapt its corporate social responsibility
regime, in order to strengthen environmental and human rights pro-
tection in the production chain, and can take as a starting point the
models adopted in European countries.
Keywords: Corporate social responsibility. European Union. Socio-
environmental responsibility.
CAPÍTULO III.
A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR
POLUIÇÃO MARINHA POR PLÁSTICO E A
POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA
LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL À
SITUAÇÃO DO BRASIL

Amanda Rodrigues Lavôr*

Resumo: O capítulo tem como problema de pesquisa: É possível apli-


car os indicadores internacionais para responsabilização civil em prol
da mitigação da poluição marinha causada por lixo plástico ao Brasil?
Utiliza-se pesquisa do tipo bibliográfica e documental, com base em
revisão de literatura de artigos científicos, natureza pura e descritiva,
na análise de projetos e relatórios que versam sobre o tema. Esta pes-
quisa tem relevância teórica e prática, pois oferece uma contribuição
original sobre a responsabilização civil por danos ambientais no mar,
especificamente pela utilização e descarte inadequado de plásticos e
possibilita uma maior visibilidade às questões ambientais e de sus-
tentabilidade, bem como pode fornecer auxílio técnico-jurídico às

*
Mestranda em Direito Constitucional Público pela Universidade Federal do Ce-
ará (PPGD/UFC), com mobilidade acadêmica na Universidade Federal de São
Carlos (UFScar). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de
Fortaleza (UNIFOR). Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNI-
FOR). Advogada. Pesquisadora voluntária do Projeto Processo Civil e Proteção
da Pessoa nas Relações Privadas - PROCIP (Cnpq/UNIFOR) (2018-2019). Pesqui-
sadora voluntária do Projeto Pesquisa Empírica em Direito (PROBIC/UNIFOR)
(2019-2020). Pesquisadora voluntária do Projeto de Pesquisa Jurimetria e pesquisa
empírica em Direito (PROBIC/UNIFOR) (2020 - 2022). Pesquisadora voluntária
no Projeto de Pesquisa Dimensões do Conhecimento do Poder Judiciário - ESMEC
(DGP/CNPq) (2021 - andamento). Desenvolve pesquisas e possui publicações re-
lacionadas ao comportamento decisório dos tribunais e meio ambiente.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6958-4735.
E-mail: arodrigueslavor@gmail.com.
Amanda Rodrigues Lavôr | 85
ações governamentais para a formulação de políticas públicas e pro-
gramas nacionais de desenvolvimento nesse sentido. Conclui-se que
é possível aplicar a legislação internacional ao Brasil, no que diz res-
peito à responsabilidade do agente poluidor, porém se faz necessário
aplicar outros mecanismos impositivos constantes no Direito Ambi-
ental Internacional, que podem apresentar uma abordagem mais efi-
caz para combater a poluição por resíduos plásticos no ambiente ma-
rinho.
Palavras-chave: Direito Internacional. Poluição Marinha por Plástico.
Responsabilidade Civil.

Introdução

O presente estudo busca responder ao seguinte pro-


blema pesquisa: É possível aplicar os indicadores internacionais
para responsabilização civil em prol da mitigação da poluição
marinha causada por lixo plástico ao Brasil? Para compreensão
da referida proposta, é necessário identificar quais são os meios
estabelecidos para responsabilização civil em prol da mitigação
da poluição marinha causada por lixo plástico no âmbito inter-
nacional.
Os biomas aquáticos são ambientes indispensáveis
para a sobrevivência e a preservação da vida na Terra. Especifi-
camente os mares e oceanos, que não se restringem a uma só
nação ou povo, adquirem um atributo multicultural e transna-
cional, em razão de fazerem parte de um todo complexo e inte-
grado que interfere indiretamente no planeta, e não somente na-
queles que têm contato direto com suas águas.
Com o passar dos anos, a humanidade expandiu,
gradativamente, sua capacidade de produção e consumo. Evi-
denciou-se a exploração excessiva e a poluição desenfreada dos
oceanos.
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
86| possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

Diante da complexa situação da realidade dos danos


em indicadores internacionais, importa verificar os meios esta-
belecidos para responsabilização civil em prol da mitigação da
poluição marinha causada por lixo plástico no âmbito interna-
cional e se esses podem ser aplicados à situação do Brasil.
Para compreensão da referida proposta, tem-se como
objetivo explorar a realidade dos danos causados pelos resíduos
plásticos, em indicadores internacionais e nacionais, para veri-
ficar a aplicabilidade da legislação internacional ao Brasil.
Utiliza-se pesquisa do tipo exploratória, qualitativa e
documental, com base em revisão de literatura de artigos cien-
tíficos retirados de revistas indexadas de Qualis A e B e natu-
reza pura e descritiva, na análise de projetos e relatórios que
versam sobre o tema.
Este artigo se divide em 3 tópicos. Inicialmente, veri-
ficar-se-á a realidade dos danos em indicadores internacionais.
No segundo tópico, objetiva-se falar um pouco dos meios esta-
belecidos para responsabilização civil em prol da mitigação da
poluição marinha causada por lixo plástico no âmbito interna-
cional, fazer uma linha do tempo dessa normatização apenas no
que se refere à poluição marinha por materiais plásticos.
Por fim, no terceiro tópico, buscar-se-á fazer uma
análise sobre a situação da poluição marinha no Brasil, a cons-
titucionalização do direito ao meio ambiente equilibrado e a po-
luição marinha por resíduos plásticos e examinar a possibili-
dade de aplicação da legislação internacional sobre a responsa-
bilidade do agente poluidor à situação do Brasil.
Esta pesquisa tem relevância teórica, uma vez que
oferece uma contribuição original sobre a responsabilização ci-
vil por danos ambientais no mar, especificamente pela utiliza-
ção e descarte inadequado de plásticos. A relevância prática e
Amanda Rodrigues Lavôr | 87
social do trabalho decorre de a possibilidade da resposta alcan-
çada conferir maior visibilidade às questões ambientais e de
sustentabilidade, bem como pode fornecer auxílio técnico-jurí-
dico às ações governamentais para a formulação de políticas
públicas e programas nacionais de desenvolvimento nesse sen-
tido.

1. A realidade dos danos em indicadores internacionais

Há muito tempo, os oceanos são reconhecidos como


um dos recursos naturais mais importantes da humanidade, em
razão de sua amplitude que os fez parecer fontes ilimitadas de
comida, transporte, recreação e admiração (CONSTANZA,
1999, p. 209).
Existe uma profunda conexão que os homens têm
com os biomas aquáticos, por estabeleceram suas próprias co-
munidades perto dessas águas, usando-as como uma impor-
tante fonte de alimento ou como um importante meio de trans-
porte e comércio. A dificuldade de cercá-los e policiá-los os dei-
xou em grande parte como recursos de acesso aberto a serem
explorados por qualquer pessoa (EIKESET, et al, 2018, p. 83).
Muito embora tenha um entendimento sucessivo da
relevância dos ecossistemas marinhos para a sociedade, indica-
tivos demostram que a influência das atividades humanas sobre
esses ecossistemas está aumentando (KORPINEN; ANDER-
SEN, 2016, p. 09), colocando a saúde dos ecossistemas marinhos
em risco (BORJA, et al., 2020, p. 02).
Nesse sentido, observa-se que o ambiente marinho,
como consequência de seu inerente contato com os povos e suas
atividades, é diretamente afetado pelos efeitos positivos e nega-
tivos da evolução dos hábitos e métodos de produção humanos.
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
88| possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

Com o passar dos anos, vive-se uma crise ambiental


e paradigmática, em razão de se experimentar um momento de
“superação da ideia do ser humano na posição de superioridade
em relação aos demais seres vivos” (MARQUES JÚNIOR, MO-
RAES, 2013, p. 44/45).
A humanidade expandiu, gradativamente, sua capa-
cidade de produção e consumo. O economista ambiental aus-
traliano Robert Constanza, em um estudo elaborado 1999, de-
nominado The ecological, economic, and social importance of the oce-
ans, expôs que a sociedade começou a atingir os limites dos oce-
anos.
Diante de prognósticos da época, o economista apon-
tou que o valor econômico dos bens e serviços comercializados
e não comercializados dos oceanos apontavam uma grande con-
tribuição para o bem-estar humano, além de matérias-primas,
serviços recreativos e culturais. Julgava-se que os oceanos ofe-
reciam um total de 21 trilhões de US$/ano para o bem-estar hu-
mano, sendo cerca de 12 milhões de US$/ano disso advindo dos
sistemas costeiros e de plataforma e o restante advindo do oce-
ano aberto (CONSTANZA, 1999, p. 209).
Posteriormente, segundo um relatório do Fundo
Mundial para a Natureza (WWF) de 2015, chamado Reviving the
Ocean Economy, elaborado em colaboração com o Global
Change Institute da Universidade de Queensland (Austrália) e
o Boston Consulting Group, verificou-se o crescimento na pro-
jeção anterior, para que os oceanos do mundo possuam um va-
lor econômico de US$ 24 trilhões, correspondentes à sua biodi-
versidade e aos serviços ambientais prestados aos países, sendo
responsável por 70% de todo o comércio global.
Amanda Rodrigues Lavôr | 89
Figura 1 ‒ Valor econômico dos oceanos.

Fonte: Fundo Mundial para a Natureza (WWF), 2015, Reviving the Ocean
Economy.

Contudo, evidenciou-se que a exploração intensa dos


mares e oceanos, a má administração e as mudanças climáticas
formam uma ameaça cada vez maior para esta riqueza econô-
mica. Cerca de 2/3 da criação anual de riqueza dos oceanos de-
pendem diretamente de sua saúde econômica (EUROPEAN
COMMISSION, 2022, p. 17).
Com isso, percebe-se que a quantidade de resíduos
gerados nesse processo também aumentou, e o tratamento des-
ses resíduos não acompanhou o aumento exponencial de sua
produção, o que acabou levando ao despejo natural desses ma-
teriais de maneira desordenada e inadequada.
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
90 | possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

Dentre tais materiais, estão os plásticos, produtos


que têm quase diversas formas de utilização e que são larga-
mente utilizados. Fabricados a partir do petróleo, os plásticos
convencionais possuem como formas mais comuns o polipropi-
leno, polietileno, poliuretano, tereftalato de polietileno e polies-
tireno, que servem de matéria prima para diversos produtos do
cotidiano. Existem ainda outro tipo de plástico que é produzido
utilizando monômeros inorgânicos, um exemplo é o silicone
(HARTMANN et al, 2019, p. 1042).
Entretanto, ainda que bastante utilizado, o plástico é
um material de difícil decomposição, a qual pode perdurar por
séculos, tornando o seu descarte inadequado uma ameaça ao
equilíbrio do ecossistema (STAFFORD; JONES, 2019. p. 189).
Um exemplo interessante para demonstrar tanto a
quantidade de materiais plásticos nos oceanos quanto a dificul-
dade de decomposição desses objetos é a situação dos mangue-
zais, recifes e praias do mar do Quênia. Esses locais sofrem com
um fenômeno das correntes marinhas que levam uma grande
parte de lixo para as praias das costas do Quênia, das ilhas Sey-
chelles, de Moçambique e da Somália, tornando-os depósitos de
lixo carregado pelo mar. Os materiais que, em sua maioria, são
sandálias de borracha, chegam aos milhares na costa ocidental
africana, trazidas pelas correntes marítimas do Oceano Índico
de lugares distantes como Japão, Indonésia, Malásia e China
(BONATO, 2018. p. 02).
Diante dessa situação, em 1999, surgiu o projeto
Ocean Sole – Flip the Flop, idealizado pela bióloga Julie Church,
que decidiu encorajar famílias da comunidade de Kiwayu, no
Quênia, a produzir objetos decorativos com as sandálias coleta-
das na areia. A intenção da bióloga era criar um negócio social,
que gerasse renda para os artesãos e provocasse impacto social
Amanda Rodrigues Lavôr | 91
para atrair a atenção das pessoas para a conservação dos ocea-
nos e dos animais.
Desde a sua criação, o Ocean Sole já tirou do mar do
Quênia mais de 1 milhão de toneladas de sandálias plásticas e
garantiu uma renda fixa a mais de 900 pessoas (CAMARGO,
2019). Percebe-se que o projeto é importante para a preservação
e economia do local, porém não reduz a quantidade de lixo plás-
tico, que chega cada vez mais.
Alguns dados atuais da realidade dos indicadores in-
ternacionais e muito relevantes sobre a poluição dos oceanos,
principalmente quanto ao plástico, ratificam a dimensão desse
problema transcontinental.
A Organização das Nações Unidas para Agricultura
e Alimentação (FAO), juntamente com o Instituto Norueguês de
Pesquisa Marítima (IMR), divulgou um estudo que revela que
há cerca de 5 trilhões de peças de plástico nos oceanos atual-
mente (FAO, 2019). Ademais, em 2022, estima-se que o plástico
representa 85% dos resíduos que chegam aos oceanos e a previ-
são é de que entre 23 e 37 milhões de toneladas de plástico es-
coem para o oceano todos os anos até 2040 (PNUMA, 2021).
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
92 | possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

Figura 2 ‒ Produção global de plástico, acumulação e


tendências futuras

O embate entre o crescimento econômico e a utiliza-


ção dos recursos naturais de forma irracional gera inúmeros da-
nos ao meio ambiente, pondo em risco a conservação da vida na
Terra e a preservação do equilíbrio ecológico.
Portanto, apesar dos esforços e diligências para con-
ter essa degradação ambiental até o momento, observa-se que
as medidas utilizadas para esse fim, como a reciclagem, não
conseguem ter expressão diante do volume de material produ-
zido e, consequentemente, descartado diariamente.
Considerando-se a complexa realidade dos danos
em indicadores internacionais, importa verificar os meios esta-
belecidos para responsabilização civil em prol da mitigação da
Amanda Rodrigues Lavôr | 93
poluição marinha causada por lixo plástico no âmbito interna-
cional.

2. Meios estabelecidos para responsabilização civil em prol


da mitigação da poluição marinha causada por lixo
plástico no âmbito internacional

Diante do panorama geral da dimensão dos prejuí-


zos causados pela poluição marinha por plástico em indicado-
res internacionais, necessário verificar a normatização interna-
cional sobre a questão especifica dos produtos plásticos nos oce-
anos.
A poluição marinha por plásticos é um problema am-
biental fundamentalmente internacional. Como visto, o princi-
pal espaço acometido por este tipo de poluição é o Alto Mar,
sendo, como já citado anteriormente, sua principal fonte a ter-
restre, com cerca de 80%, contra a poluição por navios que re-
presenta 20% (ZANELLA, 2013, p. 14490).
Diversas convenções internacionais para a proteção
do meio ambiente, em especial para os espaços marítimos, sur-
giram antes da década de 1970. Entretanto, a primeira a trazer
um tópico específico sobre a proteção dos oceanos contra polu-
ição por plásticos foi a Convenção sobre Prevenção da Poluição
Marinha por Alijamento de Resíduos e outras Matérias, tam-
bém conhecida como Conferência de Londres de 1972.
Intentando evitar a poluição marítima por resíduos
industriais e químicos, esta conferência previu uma ação inter-
nacional para controlar a contaminação dos oceanos por alija-
mento de resíduos ou substâncias lesivas à saúde humana. No
Anexo I, os artigos 1 e 4 trazem um rol de substâncias que ficam
proibidas de serem lançadas ao mar, entre elas: “Plásticos per-
sistentes e outros materiais sintéticos persistentes, por exemplo,
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
941
possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

redes e cordas, que podem flutuar ou permanecer em suspen-


são no mar de tal modo a interferir materialmente com a nave-

gação, de pesca ou outras utilizações legítimas do mar " (ONU,

1972).
Até o acontecimento da Convenção de Londres, em
dezembro de 1972, não se conhecia o impacto concreto que os

plásticos acarretavam ao ambiente . A preocupação da poluição

por plástico ainda estava estritamente ligada à navegação e à

exploração das águas e não à preservação ambiental do meio


marinho como um bem comum .

Logo após, em 1973, a Convenção Internacional para

a Prevenção da Poluição por Navios, conhecida como MAR-

POL, foi assinada e tinha como principal objetivo estabelecer


normas para a completa eliminação da poluição oriunda das

embarcações, dentre elas, no Anexo V, o plástico . A convenção

regulamentou as áreas permitidas e as áreas proibidas de alija-

mento de lixo, mas previu a expressa proibição do lançamento


no mar de todos os tipos de plásticos (ONU, 1973).

Não obstante, a convenção trouxe três exceções, con-

forme previsto na Regra 6, em que é permitido o lançamento


desses produtos para garantir a segurança da embarcação e das

pessoas a bordo, ou de salvar vidas humanas no mar; para o

alijamento involuntário de lixo decorrente de uma avaria so-

frida pelo navio ou pelos seus equipamentos; no caso de perda

acidental de redes de pesca sintéticas, desde que tenham sido

tomadas todas as precauções razoáveis para evitar aquela

perda.
Diante da progressão dos problemas ambientais ma-

rinhos, em 1982, ocorreu a principal convenção internacional


sobre o Direito do Mar, a Convenção das Nações Unidas sobre

o direito do Mar, amplamente conhecida como a Convenção de

Montego Bay (ONU, 1982) .


Amanda Rodrigues Lavôr | 95
Esse evento foi muito importante para as tratativas
do Direito do Mar e normatiza a proteção e preservação do meio
marinho como um todo. No art. 194, que versa sobre as medidas
para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho,
é assegurado que os Estados devem tomar, individual ou con-
juntamente, como apropriado, todas as medidas compatíveis
com a Convenção que sejam necessárias para prevenir, reduzir
e controlar a poluição do meio marinho, qualquer que seja a sua
fonte, utilizando para este fim os meios mais viáveis de que dis-
ponham e de conformidade com as suas possibilidades, e de-
vem esforçar-se por harmonizar as suas políticas a esse respeito.
Verifica-se um caráter de responsabilização estatal
em todo o documento da convenção, em forma de soft law. A
importante responsabilização do ente estatal diante da poluição
marinha modificou a percepção quanto a incumbência de cada
agente nos prejuízos causados pela contaminação do ambiente
marinho.
Ademais, a Conferência de Montego Bay procura di-
ferenciar e regulamentar, de forma específica, a poluição de ori-
gem terrestre e a poluição por navios, na Seção 5 - Regras inter-
nacionais e legislação nacional para prevenir, reduzir e contro-
lar a poluição do meio marinho, nos artigos 207 e 211.

ARTIGO 207
Contaminação procedente de fontes terrestres
1. Os Estados devem adotar leis e regulamentos
para prevenir, reduzir e controlar a poluição do
meio marinho proveniente de fontes terrestres, in-
cluindo rios, estuários, dutos e instalações de des-
carga, tendo em conta regras e normas, bem como
práticas e procedimentos recomendados e interna-
cionalmente acordados.
ARTIGO 211
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
96| possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

1. Poluição proveniente de embarcações 1. Os Es-


tados, atuando por intermédio da organização in-
ternacional competente ou de uma conferência di-
plomática geral, devem estabelecer regras e nor-
mas de caráter internacional para prevenir, redu-
zir e controlar a poluição do meio marinho prove-
niente de embarcações e devem do mesmo modo
promover a adoção, quando apropriado, de siste-
mas de fixação de tráfego destinados a minimizar
o risco de acidentes que possam causar a poluição
do meio marinho incluindo o litoral e danos de po-
luição relacionados com os interesses do Estados
costeiros. Tais regras e normas devem, do mesmo
modo, ser reexaminadas com a periodicidade ne-
cessárias (CONFERÊNCIA DE MONTEGO BAY,
1982, p. 103/104, tradução livre).

Em âmbito local, ocorreu a Convenção para a Prote-


ção e Desenvolvimento do Ambiente Marinho da Região do
Grande Caribe de 1983 (OMI, 1973), conhecida como Conven-
ção de Cartagena, que buscou regular tanto a poluição causada
por navios, quanto a de origem terrestre.
Desde então, a Conferência das Nações Unidas sobre
Direito do Mar se restringe a pedir dos Estados uma regulação
interna sobre da poluição marinha que advém dos territórios e
para auxiliar no processo de legislação interno dos países sobre
o tema foi criada, em 1995, o Programa de Ação Global para a
Proteção de Ecossistemas Marinhos ameaçados por atividades
terrestres.
Contudo, o ano de 2022 estimam-se mudanças con-
tundentes sobre o tema. No início de março, a Organização das
Nações Unidas (ONU) aprovou o primeiro acordo global para
combate ao plástico, que visa a criação de um acordo vinculante
entre os países sobre plásticos (UNEA, 2022).
Amanda Rodrigues Lavôr | 97
Igualmente, já existe uma possível data para a reali-
zação da 2ª Conferência dos oceanos da ONU, dias 27 de junho
a 1 de julho de 2022, que foi adiada em razão da pandemia da
COVID-19 e que também visa regularizar a utilização dos plás-
ticos para prevenir o meio ambiente marinho (ONU, 2022).

Figura 3 ‒ Quadro-esquema dos principais instrumentos


internacionais globais relacionados à poluição por resíduos
plásticos no ambiente marinho
1972 - 1973/1978- 1983-
Convenção Convenção Convenção para 27 de junho a 1
sobre Prevenção 1982- 2022 - ONU de julho de
Internacional Convenção das a Proteção e aprova primeiro
da Poluição para a Desenvolviment 2022 - 2ª
Nações Unidas acordo global
Marinha por Prevenção da o do Ambiente Conferência dos
sobre o Direito para combate ao
Alijamento de Poluição por Marinho da plástico. Oceanos da
do Mar.
Resíduos e Navios - Região do ONU.
outras Matérias. MARPOL. Grande Caribe.

Fonte: Elaboração própria.

Percebe-se que, de todos os instrumentos vinculantes


globais vistos até então, a CNUDM é o único que trata de todas
as fontes de poluição por resíduos plásticos, muito embora não
os cite diretamente. No entanto, trata-se de disposições cujas
obrigações e princípios impostos são amplos demais, deixando
os detalhes de implementação aos Estados, por meio de meca-
nismos regionais de cooperação e entre organismos internacio-
nais como a OMI e a UNEP.
Igualmente, é evidente a falta de uma Convenção de
caráter global que regulamente de forma precisa a poluição por
plástico de origem terrestre, uma vez que 80% de toda poluição
marinha deste material tem procedência dos rios e esgotos (ZA-
NELLA, 2013, p. 14495).
Os outros documentos internacionais examinados se
restringem às atividades específicas para as quais foram origi-
nariamente criados, como a navegação, despejo, transporte de
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
98| possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

resíduos perigosos e controle de determinadas substâncias quí-


micas.
Sendo assim, verifica-se que a estrutura da regula-
mentação internacional é, de fato, irregular e fragmentando.
Ainda que tais normas vinculantes possam abordar alguns as-
pectos importantes sobre a poluição por plásticos, é necessário
superar.
Nesse contexto, é preciso um alto nível de coopera-
ção entre os Estados e, até mesmo, uma expansão do escopo
central dos diferentes documentos vinculantes. Sem contar,
ainda, que tais instrumentos têm diferentes níveis de aceitação
e ratificação entre a comunidade internacional, o que torna a
complexidade de esforços por meio da cooperação entre os Es-
tados ainda maior.
Diante desse cenário, existe a necessidade e o dever
jurídico de invocar outros mecanismos impositivos constantes
no Direito Ambiental Internacional e que podem apresentar
uma abordagem mais eficaz para combater a poluição por resí-
duos plásticos no ambiente marinho, para uma possibilidade de
aplicação da legislação internacional sobre à responsabilidade
do agente poluidor à situação do Brasil, conforme se busca ve-
rificar a seguir.

3. A possibilidade de aplicação da legislação internacional


sobre a responsabilidade do agente poluidor à situação do
Brasil

É vertente que a poluição marinha por plásticos é um


grave problema global, afetando os ecossistemas marinhos, o
clima, a qualidade de vida das pessoas e as atividades econômi-
cas que dependem do mar, tais como a pesca e o turismo.
Amanda Rodrigues Lavôr | 99
Nesse cenário dos prejuízos provocados pela polui-
ção marinha por plástico em indicadores internacionais, verifi-
cou-se que legislação internacional, no que diz respeito à regu-
lamentação específica da poluição por objetos plásticos nos oce-
anos, é pautada em soft law e não possui outros mecanismos im-
positivos que busquem a abordagem mais eficaz para combater
a poluição por resíduos plásticos no ambiente marinho.
No que se refere à situação da poluição marinha no
Brasil, neste tópico, serão esclarecidos os indicadores nacionais
que representam essa questão. Ademais, será verificado o meio
ambiente ecologicamente equilibrado como direito e dever fun-
damental na Constituição Federal do Brasil de 1988, bem como
responder ao problema de pesquisa sobre a possibilidade de
aplicação dos indicadores internacionais ao Brasil.

3.1. A situação da poluição marinha no Brasil

A conjuntura da poluição marinha no Brasil é alar-


mante. De acordo com um estudo realizado em 2020 pela Oce-
ana1, através do relatório Um oceano livre de plástico – desafios para
reduzir a poluição marinha no Brasil, o Brasil produz cerca de 7
milhões de toneladas de plástico por ano, quantidade que co-
loca o país na posição de maior produtor da América Latina.
Diante disso, o país é responsável por, pelo menos, 325 mil to-
neladas de resíduos plásticos que são levados ao oceano a partir
de fontes terrestres, como por exemplo, lixões a céu aberto e
descartes inadequados.

1 Oceana é uma fundação que visa proteger os oceanos e alimentar o mundo, criada
em 2001 por um grupo de fundações líderes em conservação – Pew Charitable
Trusts, Oak Foundation, Marisla Foundation e Rockefeller Brothers Fund.
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
100 | possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

A indústria brasileira gera cerca de 500 bilhões de


itens plásticos descartáveis anualmente, o que equivale a 15 mil
produtos plásticos por segundo. Com limitada atuação da reci-
clagem, a maior parte se acumula nos em aterros, porém grande
parte vai para o meio ambiente (IWANICKI; ZAMBONI, 2020).
O relatório registra que a maior parte desse lixo ma-
rinho é composta por produtos e embalagens plásticas descar-
táveis, bem como menciona que, em geral, esses itens são con-
feccionados para consumo e descarte imediato.
Outro estudo brasileiro chamado Anthropogenic litter
on Brazilian beaches: Baseline, trends, and recommendations for fu-
ture approaches, realizado por Andrades e colaboradores (2020)
realizou o primeiro levantamento sistemático do lixo antropo-
gênico em 44 praias brasileiras.
Além do plástico ter sido o produto mais encontrado,
de acordo com os autores, o escoamento pelos rios e estuários é
o principal fator para o acúmulo desses resíduos nas praias,
confirmando o papel que as bacias hidrográficas têm no seu
transporte desde o interior do país até o oceano (ANDRADES
et al., 2020, p. 33).
Amanda Rodrigues Lavôr | 101
Figura 4 ‒ Representação da quantidade anual do Brasil para
a poluição marinha por plásticos e quantidade de itens
plásticos encontrados em limpezas de praia.

Fonte: ANDRADES et al (2020)

Os resultados desse estudo indicam que 70% de to-


dos os itens encontrados nas limpezas de praia são plásticos,
sendo as embalagens de alimento o item mais comum. Confir-
mando os indicadores nocivos da poluição por plástico no país,
o Ministério do Meio Ambiente informa que o plástico também
foi o item mais encontrado nas limpezas de praia (46%) (MMA,
2019).
Os reflexos na vida marinha da costa brasileira são
marcantes. O estudo da Oceana aponta que, ao longo de costa
das regiões Sudeste e Sul já foram coletados e necropsiados
mais de 3,7 mil animais que ingeriram resíduos plásticos. Des-
ses, cerca de 10% dos animais que ingeriram plástico morreram
por conta disso e 85% são espécies ameaçadas de extinção.
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
102 | possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

O relatório da Oceana alerta também que a imple-


mentação da reciclagem ocorre de forma mais morosa do que o
necessário para o enfrentamento da crise, uma vez que apenas
9% de todo o resíduo plástico são reciclados no mundo. No Bra-
sil, os dados sobre índices de reciclagem de plástico são diver-
gentes e mesmo no melhor cenário expõe que o país recicla me-
nos de 1/4 do que produz de material plástico.
Em razão dos dados nacionais serem preocupantes,
é necessário verificar a legislação sobre poluição marinha no
Brasil, fazendo um paralelo com o meio ambiente ecologica-
mente equilibrado como direito e dever fundamental na Cons-
tituição Federal de 1988.

3.2. A constitucionalização do direito ao meio ambiente


equilibrado e a poluição marinha por resíduos plásticos

O direito ao meio ambiente ecologicamente equili-


brado e sadio é uma prerrogativa constitucionalmente prevista,
conforme artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL,
1988), em razão de ser caracterizado como direito fundamental
de terceira geração, que levam a restrições ao exercício de direi-
tos subjetivos (MATIAS; SILVA; MATIAS FILHO, 2017).
Embora o artigo 225 da Constituição Federal de 1988
não tenha referência sobre proteção ao meio ambiente marinho,
as suas determinações também se aplicam à preservação do
mar. No § 1°, inciso VII, da CF/88, trata da proteção à fauna,
também se inclui a fauna marinha.
Ademais, ressalta-se que no Capítulo II - Da União,
o art. 20, incisos V, VI e VII preleciona que são bens da União os
recursos naturais da plataforma continental e da zona econô-
mica exclusiva, o mar territorial e os terrenos de marinha e que
compete a ela, exclusivamente, legislar sobre direito marítimo e
Amanda Rodrigues Lavôr | 103
defesa marítima, conforme art. 22, incisos I e XXVIII e, em con-
corrência com os Estados, sobre proteção do meio ambiente e
controle da poluição, na forma do art. 24, inciso VI.
A primeira legislação brasileira que versou sobre a
questão da poluição marinha foi a Lei nº 5.357, de 17 de novem-
bro de 1967, a qual estabelecia penalidades para embarcações e
terminais marítimos ou fluviais que lançarem detritos ou óleos
em águas brasileiras (ASLAN, PINTO; OLIVEIRA, 2017, p.181).
Essa legislação foi revogada pelo advento da Lei nº
9.966 de 28 de abril de 2000 e que dispõe sobre a prevenção, o
controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de
óleo e outras substâncias nocivas ou perigosas em águas sobre
jurisdição nacional.
O art. 16 desta lei instrui que é defesa o descarrega-
mento, em águas sob jurisdição nacional, de substâncias classi-
ficadas nas categorias "B", "C", e "D", definidas no art. 4º da Lei,
em graus de malefício, e, no parágrafo 3º afirma que não será
permitida a descarga de qualquer tipo de plástico, inclusive ca-
bos sintéticos, redes sintéticas de pesca e sacos plásticos.
Percebe-se, analisando o referido artigo da lei, que,
por mais que tenham incluído produtos plásticos na legislação,
estes não foram classificados como substâncias nocivas ou peri-
gosas pelo risco produzido quando descarregadas na água.
Quanto às sanções penais e administrativas de atos
que danificam o maio ambiente, a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro
de 1998, conhecida como a Lei de Crimes Ambientais, deu
maior suporte na prevenção de todo tipo de poluição. O que an-
teriormente eram classificados somente como contravenções
penais, passaram a se tornar crimes a partir da nova lei. Um ou-
tro avanço desta lei foi prever penalidades também para pes-
soas jurídicas, além da possibilidade de reparação ao dano cau-
sado.
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
104 | possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

Devido à legislação ser por muitas vezes dispersa e


pouco detalhada, se faz necessário que órgãos competentes
criem normas, que podem ser resoluções, portarias ou instru-
ções normativas, a fim de inserir particularidades necessárias
para disciplina da matéria envolvida.
Nas questões ambientais e particularmente do âm-
bito da poluição marinha, o Conselho Nacional do Meio Ambi-
ente (CONAMA) é o órgão de maior relevância na edição destas
normas, que são chamadas de Resoluções. Contudo, dentre as
Resoluções do CONAMA relativas ao Direito Marinho, não
existe resolução que verse sobre a poluição marinha pelo lixo
plástico.

3.3. A utilização da legislação internacional sobre a


responsabilidade do agente poluidor à situação do Brasil

Deste modo, analisando a legislação brasileira refe-


rente à aplicação do direito constitucionalmente previsto ao
meio ambiente equilibrado na situação da poluição marinha por
resíduos plásticos, verificar-se-á a utilização da legislação inter-
nacional sobre à responsabilidade do agente poluidor à situação
do Brasil.
A Lei nº 9.966 de 28 de abril de 2000 que discorre so-
bre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada
por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou perigo-
sas em águas sobre jurisdição nacional é a norma mais direcio-
nada ao assunto no país, como já explicitado no tópico anterior.
Essa lei foi derivada da MARPOL, que visava nor-
mas para a completa eliminação da poluição oriunda das em-
barcações, dentre elas, no Anexo V, o plástico.
Isso é cognoscível, em razão da determinação do pa-
rágrafo único do artigo 16, que estabelece que o órgão federal
Amanda Rodrigues Lavôr | 105
de meio ambiente divulgará e manterá atualizada a lista das
substâncias classificadas neste artigo, devendo a classificação
ser, no mínimo, tão completa e rigorosa quanto a estabelecida
pela MARPOL 73/78.
A referida legislação aplica sanção no seu corpo nor-
mativo, conforme Capítulo V - das infrações e das sanções. O
art. 25 preleciona que são infrações o descumprimento do dis-
posto nos arts. 5º, 6º e 7º, com pena de multa diária (inciso I), o
descumprimento do disposto nos arts. 9º e 22, sob pena de
multa (inciso II), o descumprimento dos arts. 10, 11 e 12, sob
pena de multa e retenção do navio até que a situação seja regu-
larizada (inciso III) e o descumprimento do disposto no art. 24
(inciso IV), com pena de multa e suspensão imediata das ativi-
dades da empresa transportadora em situação irregular.
Percebe-se que, no capítulo referente a infrações e
sanções, a lei não penaliza a infração do art. 4º, parágrafo 3º, que
versa sobre a proibição de descarga de qualquer tipo de plás-
tico, inclusive cabos sintéticos, redes sintéticas de pesca e sacos
plásticos.
Apenas em 2002, entrou em vigor o Decreto nº 4.136
que dispõe sobre a especificação das sanções aplicáveis às infra-
ções às regras de prevenção, controle e fiscalização da poluição
causada por lançamento de óleo e outras substâncias nocivas ou
perigosas em águas sob jurisdição nacional, prevista na Lei nº
9.966.
O Decreto faz expressa menção, na Subseção XV, às
infrações relativas à descarga de qualquer tipo de plástico, ca-
bos sintéticos, redes de pesca e sacos plásticos por navios ou
plataformas com suas instalações de apoio, portos organizados
e instalações portuárias, como previsto no art. 4º, parágrafo 3º
da Lei nº 9.966.
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
106 | possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

Nos capita dos arts. 40 e 41 preleciona que, em caso


de o navio ou a plataforma ou os portos organizados e instala-
ções portuárias efetuarem, com suas instalações de apoio a des-
carga de qualquer tipo de plástico, cabos sintéticos, redes de
pesca e sacos plásticos, a penalidade seria de multa do Grupo E.
A diferença entre a poluição por plástico entre navios
ou plataforma e portos ou instalações portuárias é apenas a
competência da autoridade para efetuar a multa. No caso de na-
vio ou plataforma marítima, a competência da autoridade ma-
rítima para autuar e multar os infratores (art. 40, parágrafo
único). Já para os portos organizados e instalações portuárias,
cabe ao órgão ambiental competente autuar e multar os infrato-
res (art. 41, parágrafo único).

Considerações finais

Diante do exposto, retomam-se os problemas de pes-


quisa do presente estudo: quais são os meios estabelecidos para
responsabilização civil em prol da mitigação da poluição mari-
nha causada por lixo plástico no âmbito internacional? É possí-
vel aplicar a legislação internacional ao Brasil?
Para obter resposta a este problema, foi necessário fa-
zer uma análise exploratória da realidade dos danos causados
pelos resíduos plásticos, em indicadores internacionais. Através
de dados alarmantes sobre a economia marinha, é possível con-
cluir que a exploração excessiva dos oceanos, a má gestão e as
mudanças climáticas constituem uma ameaça cada vez maior
para esta riqueza econômica, para a fauna marinha e para a qua-
lidade de vida de todos os seres.
Então, apesar do conhecimento da vasta degradação
ambiental pelos plásticos, principalmente no ambiente mari-
nho, o que se observa é que as medidas utilizadas para controlar
Amanda Rodrigues Lavôr | 107
tal desgaste ambiental não consegue ter expressão diante do vo-
lume de material produzido e descartado diariamente.
Considerando-se a complexa realidade dos danos
em indicadores internacionais, verificou-se os meios estabeleci-
dos para responsabilização civil em prol da mitigação da polu-
ição marinha causada por lixo plástico no âmbito internacional.
A primeira convenção a trazer um tópico específico
sobre a proteção dos oceanos de todas as formas de poluição,
incluindo plásticos foi a Convenção Sobre Prevenção da Polui-
ção Marinha por Alijamento de Resíduos e outras Matérias
(1972).
Após, a Convenção Internacional para a Prevenção
da Poluição por Navios, conhecida como MARPOL 73/78 tinha
como principal objetivo estabelecer normas para a completa eli-
minação da poluição oriunda das embarcações, dentre elas, o
plástico.
Até o acontecimento da Convenção de Londres e da
MARPOL, não se conhecia o real impacto ambiental que os
plásticos traziam. Percebe-se que a preocupação com a poluição
por plástico ainda se dirigia à navegação e à exploração dos oce-
anos e não à preservação ambiental do meio marinho como um
bem comum, como é possível perceber No Anexo I, os artigos 1
e 4 trazem um rol de substâncias que ficam proibidas de serem
lançadas ao mar e nas exceções trazidas pela MARPOL na Regra
6.
Foi apenas com a Convenção de Montego Bay
(CNUDM), em 1982, que foi normatizada a proteção e preser-
vação do meio marinho como um todo, atribuindo a devida res-
ponsabilização aos poluidores, conforme se vê no art. 194.
Verifica-se um caráter de responsabilização estatal
em todo o documento da convenção, em forma de soft law. A
importante responsabilização do ente estatal diante da poluição
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
108 | possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

marinha modificou a percepção quanto a incumbência de cada


agente nos prejuízos causados pela contaminação do ambiente
marinho.
Por mais que no ano de 2022 se estimem mudanças
contundentes sobre o tema, compreende-se que, de todos os ins-
trumentos vinculantes globais vistos até então, a CNUDM é o
único que trata de todas as fontes de poluição por resíduos plás-
ticos, muito embora não os cite diretamente. No entanto, trata-
se de disposições cujas obrigações e princípios impostos são am-
plos demais, deixando os detalhes de implementação aos Esta-
dos, por meio de mecanismos regionais de cooperação e entre
organismos internacionais.
Igualmente, é evidente a falta de uma Convenção de
caráter global que regulamente de forma precisa a poluição por
plástico de origem terrestre, uma vez que 80% de toda poluição
marinha deste material tem procedência dos rios e esgotos.
Os outros documentos internacionais examinados,
são restritos em sua abordagem, limitando-se às atividades es-
pecíficas para as quais foram originariamente criados, como a
navegação, despejo, transporte de resíduos perigosos e controle
de determinadas substâncias químicas.
Sendo assim, verifica-se que o arcabouço regulatório
internacional é, de fato, irregular e fragmentando. Nesse con-
texto, é necessário um alto nível de cooperação entre os Estados
e, até mesmo, uma expansão do escopo central dos diferentes
documentos vinculantes. Sem contar, ainda, que tais instrumen-
tos têm diferentes níveis de aceitação e ratificação entre a comu-
nidade internacional, o que torna a complexidade de esforços
por meio da cooperação entre os Estados ainda maior.
A conjuntura da poluição marinha no Brasil também
é alarmante. Respondendo ao problema de pesquisa, é possível
aplicar a legislação internacional ao Brasil, no que diz respeito
Amanda Rodrigues Lavôr | 109
à responsabilidade do agente poluidor, porém se faz necessário
aplicar outros mecanismos impositivos constantes no Direito
Ambiental Internacional, que podem apresentar uma aborda-
gem mais eficaz para combater a poluição por resíduos plásticos
no ambiente marinho.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado e sadio é uma prerrogativa constitucionalmente prevista,
conforme artigo 225 da Constituição Federal de 1988, embora o
referido artigo não tenha referência sobre proteção ao meio am-
biente marinho, as suas determinações também se aplicam à
preservação do mar.
A atual legislação brasileira que versa sobre a ques-
tão da poluição marinha é a Lei nº 9.966 de 28 de abril de 2000,
contudo, percebe-se, analisando o art. 16, que instrui a proibição
de o descarregamento, em águas sob jurisdição nacional, de
qualquer tipo de plástico, inclusive cabos sintéticos, redes sin-
téticas de pesca e sacos plásticos, que, por mais que tenham in-
cluído produtos plásticos na legislação, estes não foram classi-
ficados como substâncias nocivas ou perigosas pelo risco pro-
duzido quando descarregadas na água.
Percebe-se que, no capítulo referente a infrações e
sanções, a lei não penaliza a infração do art. 4º, parágrafo 3º, que
versa sobre a proibição de descarga de qualquer tipo de plás-
tico, inclusive cabos sintéticos, redes sintéticas de pesca e sacos
plásticos.
Apenas em 2002, entrou em vigor o Decreto nº 4.136
que faz expressa menção, na Subseção XV, às infrações relativas
à descarga de qualquer tipo de plástico, cabos sintéticos, redes
de pesca e sacos plásticos por navios ou plataformas com suas
instalações de apoio, portos organizados e instalações portuá-
rias, como previsto no art. 4º, parágrafo 3º da Lei nº 9.966.
A responsabilização civil por poluição marinha por plástico e a
110 | possibilidade de aplicação da legislação internacional à situação do Brasil

Nos capita dos arts. 40 e 41 preleciona que, em caso


de o navio ou a plataforma ou os portos organizados e instala-
ções portuárias efetuarem, com suas instalações de apoio a des-
carga de qualquer tipo de plástico, cabos sintéticos, redes de
pesca e sacos plásticos, a penalidade seria de multa do Grupo E.
Devido às falhas e omissões normativas, faz-se ne-
cessário que órgãos competentes criem normas, que podem ser
resoluções, portarias ou instruções normativas, a fim de inserir
particularidades necessárias para disciplina da matéria envol-
vida e, além das mudanças legislativas, imprescindível se faz a
criação de uma cultura de combate à poluição marinha.

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Amanda Rodrigues Lavôr | 115
CIVIL LIABILITY FOR MARINE POLLUTION BY
PLASTIC AND THE POSSIBILITY OF APPLYING
INTERNATIONAL LEGISLATION TO THE
SITUATION IN BRAZIL
Abstract: The chapter has as research problem: Is it possible to apply
international indicators for civil accountability in favor of mitigating
marine pollution caused by plastic waste to Brazil? We use biblio-
graphic and documentary research, based on a literature review of
scientific articles, pure and descriptive nature, in the analysis of pro-
jects and reports that deal with the subject. This research has theoret-
ical and practical relevance, as it offers an original contribution on
civil responsibility for environmental damage at sea, specifically for
the inappropriate use and disposal of plastics and allows greater vis-
ibility to environmental and sustainability issues, as well as can pro-
vide technical and legal assistance to government actions for the for-
mulation of public policies and national development programs in
this sense. It is concluded that it is possible to apply international leg-
islation to Brazil, regarding the responsibility of the polluting agent,
but it is necessary to apply other enforcement mechanisms contained
in international environmental law, which can present a more effec-
tive approach to combating pollution by plastic waste in the marine
environment.
Keywords: International Law. Marine Pollution by Plastic. Civil Lia-
bility.
CAPÍTULO IV.
TRIBUTAÇÃO DE CARBONO E
SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL

Adriana Fonteles Silva*

Resumo: O presente capítulo trata da possibilidade de se instituir a


tributação de carbono como uma política fiscal que visa inibir o uso
de fontes de energia não renovável, a exemplo da queima de carbono,
que causa graves danos ao meio ambiente e à saúde humana. Países
da União Europeia tem estudado institutos jurídicos como a tributa-
ção de carbono, que tem se mostrado eficaz na redução e desestímulo
do uso de gases poluentes. Focou-se na discussão acerca do desenvol-
vimento econômico, em contrapartida, ao direito fundamental ao am-
biente ecologicamente equilibrado, concluindo-se pela possibilidade
de implementação do carbon tax no sistema tributário brasileiro, seja
por meio da inserção de critérios ambientais em tributos já existentes,
ou seja pela tributação direta, pois medida como essas estão em sin-
tonia com o ordenamento jurídico brasileiro e possuem o condão de
estimular as empresas a buscarem novas soluções para o problema
ambiental.
Palavras-chave: Tributação. Meio ambiente. Sustentabilidade.

Introdução

Um dos maiores impactos ambientais é causado pelo


uso de combustíveis fósseis, a exemplo do CO₂, um dos princi-
pais responsáveis pelo aquecimento global por meio da emissão

*
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Pós-
graduanda em Direito Processual Civil pela Fundação do Ministério Público do
Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Tributário pela Unichristus.
Adriana Fonteles Silva | 117
de gases de efeito estufa, motivo pelo qual se faz necessário es-
tudar como o Sistema tributário Nacional pode inibir o uso
dessa de fonte de energia não renovável que causa efeitos ne-
fastos no meio ambiente.
O artigo versa sobre a necessidade de promover um
diferencial tributário que vise o incentivo ao desenvolvimento
dos meios de produção de maneira sustentável, que incentiva o
uso de fontes de energia limpa, renovável, ou seja, a criação de
um sistema tributário que onera de forma diferenciada, pro-
gressiva, aquele que utiliza maior quantidade combustíveis fós-
seis.
A degradação ao meio ambiente tem impacto mun-
dial, tanto que um dos objetivos da ONU é promover o desen-
volvimento sustentável e econômico dos países e a cooperação
entre eles, esse também foi um dos motivos que fizeram com
que vários países se unissem visando a promoção de padrões
internacionais em questões econômicas, financeiras, comerciais,
sociais e ambientais, criando a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), pois, embora seja neces-
sário ao desenvolvimento das sociedades e da economia, esse
desenvolvimento deve ocorrer de maneira ordenada com o
meio ambiente, conter a devastação ambiental e fomentar o de-
senvolvimento sustentável.
A relevância da matéria é tamanha que recentemente
o Conselho de Direitos Humanos da ONU1 reconheceu que o
meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito hu-
mano, demonstrando a importância e atualidade do tema pro-
posto. No Brasil, embora a Constituição da República tenha

1 NAÇÕES UNIDAS, Assembleia Geral. Conselho dos Direitos Humanos Quadra-


gésima oitava sessão 13 setembro-8 outubro 2021 https://www.conectas.org/wp-
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1.pdf
118 | Tributação de carbono e sustentabilidade ambiental

como previsão o meio ambiente sadio como um direito e um


dever fundamental previsto no art. 225, o sistema tributário bra-
sileiro ainda não acolheu, expressamente, políticas de natureza
fiscal que possam induzir as atividades econômicas segundo
critérios de sustentabilidade e segurança ambiental.
Diante disso, é necessário estabelecer mecanismos ju-
rídicos capazes de fomentar a reestruturação do aparato produ-
tivo e econômico no menor prazo possível, diante dos iminentes
riscos do aquecimento global, anunciados à comunidade inter-
nacional no 6º Relatório de avaliação do Painel Intergoverna-
mental de Mudanças Climáticas (IPCC), publicado em agosto
de 2021, divulgado antes da cúpula climática COP 26, realizada
no Reino Unido, em novembro do mesmo ano.
Segundo o relatório2, o mundo atingirá ou excederá
a 1,5 °C de aquecimento nas próximas duas décadas3. Para o
grupo de pesquisadores, limitar o aquecimento global e evitar
impactos climáticos mais severos depende de ações concretas
ainda nesta década. Ou seja, necessita de ações enérgicas para
limitar o aumento da temperatura média em 1,6 °C até o meio
do século e reduzir a 1,4 °C até 2100, e o caminho mais rápido é
a redução da emissão global de gases de efeito estufa.
Diante disso, a relevância do tema se dá tanto no as-
pecto social, visto que o ser humano precisa de um ambiente
saudável para sobreviver, no aspecto econômico, pois a econo-
mia precisa de fontes de energia para continuar sua produção e

2 NAÇÕES UNIDAS, Assembleia Geral. Conselho dos Direitos Humanos Quadra-


gésima oitava sessão 13 setembro-8 outubro 2021 https://www.conectas.org/wp-
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https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/downloads/re-
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Adriana Fonteles Silva | 119
como consequência o desenvolvimento tecnológico e ampliação
do mercado de trabalho e político, vez que o governo precisa
viabilizar políticas públicas que proporcionem o desenvolvi-
mento econômico de maneira sustentável. Além disso, algumas
empresas já estão se adequando à implementação de práticas
ambientais, sociais e de governança, ou seja, cuidar do meio am-
biente tornou-se não só uma obrigação legal para as empresas,
tanto que já possuem estudos que afirmam que empresas que
possuem uma consciência ambiental representam melhores re-
sultados temporalmente.
Não são poucas as propostas de reformas tributárias
apresentadas ao Congresso Nacional que buscam uma mu-
dança no Sistema Tributário brasileiro, no entanto, nenhuma
das propostas que estão em discussão até agora tem se atentado
para a adequação do sistema tributário nacional às exigências
da defesa do equilíbrio ambiental e da sustentabilidade, e pro-
teção ao meio ambiente.
Em agosto de 2020, a frente parlamentar ambienta-
lista lançou propostas que incluem veto a incentivos fiscais para
atividades intensamente poluidoras e reformulação da CIDE,
criando um tributo regulatório que estimule a descarbonização
do mercado de combustível.
Diante disso, atenta-se para importância do tema,
dado que o arcabouço jurídico constitucional do direito tributá-
rio se apresenta como uma possibilidade factível para o legisla-
dor, para a criação de um tributo verde a exemplo do carbono
tax, seguindo tendência mundial de tributação progressiva de
atividades que impactam negativamente o meio ambiente e
contribuem para o aquecimento global.
É necessário um estudo sobre de que forma a estru-
tura da tributação ambiental, por efeito das emissões de gases
120 | Tributação de carbono e sustentabilidade ambiental

de efeito estufa, contribuirá para que o contribuinte seja estimu-


lado a buscar opções de contenção de incidência da exação ou
mesmo afastar integralmente sua incidência, enquanto busque
meios de converter seu processo de produção em processos
neutros, limpos de emissão de gases poluentes, ou seja, ecologi-
camente corretos.
Países que integram a ONU vêm estudando institu-
tos jurídicos que se mostrem eficazes em reduzir e desestimular
a emissão de gases poluentes. A comunidade mundial tem se
reunido para debater o tema, a União Europeia, por exemplo,
tem se dedicado a criação de um plano de políticas para mitiga-
ção das mudanças climáticas, e uma de suas propostas está jus-
tamente a sobretaxa das importações “interessar-se incorporar
as pegadas de carbono ao preço final de produtos importados
de fora do bloco.”4
Diversas são as iniciativas e estratégias anunciadas
pelo bloco, ou seja, o Direito Tributário possui um papel de in-
gerência repressiva e preventiva na criação de meios de dimi-
nuição da poluição diante da escassez de recursos naturais, mo-
tivos pelos quais se justifica o estudo aqui proposto pelo pre-
sente artigo.
Considerando as experiências da utilização da tribu-
tação para fins ecológicos existentes em vários países do Exte-
rior, foi formulado o seguinte problema central da pesquisa: A
criação de um tributo ambiental, é um instrumento capaz de fo-
mentar a proteção ao meio ambiente no ordenamento jurídico
brasileiro?

4 Parecer do Conselho Franco-Alemão de Especialistas Econômicos (CFAEE),


27/04/2021, https://www.cae-eco.fr/avis-du-conseil-franco-allemand-des-experts-
economiques-cfaee
Adriana Fonteles Silva | 121
A partir dessa questão central, surgem como proble-
mas adjacentes e fundamentais para o entendimento da temá-
tica as seguintes perguntas: a) A tributação ambiental pode ser
utilizada como política pública de sustentabilidade? b) Há com-
patibilidade dos princípios ambientais e tributários, para a cri-
ação de um tributo ambiental c) Quais as experiências de países
que já adotam a tributação ambiental e como ela pode ajudar
em uma melhor administração dos recursos ambientais aqui no
Brasil?
Neste sentido, a proposta aqui apresentada pretende
analisar se a criação de um tributo ambiental provocaria ações
dos setores econômicos e produtivos, capazes de reduzir os efei-
tos do aquecimento global, e estimular, com a adoção de medi-
das eficientes, a mudanças no mercado produtivo e de consumo
e servir de incentivo na utilização de recursos ambientais reno-
váveis, criando uma consciência institucional e social de estí-
mulo a redução da emissão dos níveis de acumulação dos gases
de efeito estufa na atmosfera. O artigo se justifica pela atuali-
dade e a relevância do tema. O método de abordagem é dedu-
tivo e a técnica de pesquisa é bibliográfica, exploratória, utili-
zando-se do direito comparado, está dividido em três tópicos
que seguem os objetivos específicos do trabalho.

1. Meio ambiente, tributação e sustentabilidade

Ao longo da história, o homem se utilizou dos recur-


sos naturais de maneira desenfreada, sem se preocupar com os
impactos que essa ação desordenada levaria. No entanto, hoje
já se sabe que as ações passadas causaram grandes impactos ao
meio ambiente, motivo pelo qual a sociedade mundial vem es-
tudando e criando uma cultura de práticas que visam a prote-
ção da natureza de ações que causem danos ao meio ambiente,
122 | Tributação de carbono e sustentabilidade ambiental

buscando um desenvolvimento econômico ecologicamente sus-

tentável .

Com o período do pós-guerra , o sistema capitalista

teve um dos seus ápices o crescimento econômico e a expansão

da indústria, no entanto, teve como consequência os efeitos ne-

fastos da produção capitalista . Após esse período e com a des-


coberta de que os efeitos do desenvolvimento econômico de

maneira desenfreada trouxe impactos ambientais desastrosos,

foi- se criando uma concepção de que o desenvolvimento econô-

mico aconteça de maneira coordenada com o meio ambiente,


criando-se a ideia de desenvolvimento sustentável , construída

progressivamente, pela "inserção em instrumentos internacio-

nais e nacionais que buscavam alinhar o crescimento econômico

com desenvolvimento social, sem se olvidar a proteção ambien-


tal". 6

O desenvolvimento sustentável foi inserido como


elemento fundamental global, destacando-se espe-
cialmente, sua formulação nos chamados Objeti-
vos do Desenvolvimento Sustentável cujo conte-
údo encontra-se delineado pela Agenda 2030, con-
siderada como um instrumento de ação que deve
ser implementada por todos os Estados e organi-
zações.

5 DIZ, Jamile Bergamaschine Mata. Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável


e sua incorporação pelo Brasil e pela União Europeia. In: DIZ, Jamile Bergamas-
chine Mata; GAIO, Daniel . (Org.) . Desenvolvimento sustentável na contempora-
neidade. Belo Horizonte: Arraes, 2019, p . 84-104
6 DIZ, Jamile Bergamaschine Mata . Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
e sua incorporação pelo Brasil e pela União Europeia. In: DIZ, Jamile Bergamas-
chine Mata; GAIO, Daniel. (Org.) . Desenvolvimento sustentável na contempora-
neidade. Belo Horizonte: Arraes, 2019, p . 84-104
7 DIZ, Jamile Bergamaschine Mata. Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
Adriana Fonteles Silva | 123
A partir de então, foi se fortalecendo no mundo in-
teiro a ideia de que não é mais possível que a sociedade feche
os olhos para as questões climáticas, pois sem um meio ambi-
ente ecologicamente equilibrado é praticamente impossível a
existência humana, pois o homem precisa dos recursos que a
natureza produz para sobreviver, tais como, solo, água, oxigê-
nio, energia, florestas, animais, etc.

Uma das principais questões que se apresentam na


realidade contemporânea é àquela atinente às re-
lações travadas entre o ser humano e a natureza. O
Planeta Terra vivencia uma crise ambiental e para-
digmática uma vez que se encontra em fase de su-
peração a ideia do ser humano na posição de su-
perioridade em relação aos demais seres vivos.8

Por esse motivo, o cultivo de modelos de promoção


que viabilizem o desenvolvimento econômico sustentável pas-
sou a ser um desafio mundial, tanto no setor de políticas públi-
cas como privadas. Pois está cada vez mais nítida a ideia de que
o homem e a natureza estão interligados, sistemicamente, ho-
mem e natureza possuem um vínculo, sem que, no entanto, se
possam escolher reciprocamente. Diante disso, organismos in-
ternacionais criaram três pilares que devem estimular o desen-
volvimento sustentável.

Desenvolvimento sustentável deve adotar os três


pilares, crescimento econômico, desenvolvimento

e sua incorporação pelo Brasil e pela União Europeia. In: DIZ, Jamile Bergamas-
chine Mata; GAIO, Daniel. (Org.). Desenvolvimento sustentável na contempora-
neidade. Belo Horizonte: Arraes, 2019, p. 84-104
8 MARQUES JÚNIOR, William Paiva; MORAES, Germana de Oliveira . A constru-
ção do paradigma ecocêntrico no Novo Constitucionalismo Democrático dos pa-
íses da UNASUL. Revista de Direito Brasileira, v. 5, p. 41-68, 2013. Link:
https://www.indexlaw.org/index.php/rdb/article/view/2719
124 | Tributação de carbono e sustentabilidade ambiental

social e proteção ambiental, sendo posteriormente


estabelecido novas premissas que foram incorpo-
rados ao ODS, tais como paz, prosperidade e soli-
dariedade, instrumento internacional que serve
como fonte subsidiária para atuação dos Estados,
nas esferas públicas e privadas.9

É consenso mundial que há uma urgência na criação


de mecanismos jurídicos capazes de induzir a reestruturação do
meio ambiente, diante dos iminentes riscos causados pelo aque-
cimento global, tanto que se iniciou uma inserção da proteção
ambiental nos ordenamentos jurídicos de vários países, a exem-
plo da Constituição brasileira, que em seu artigo 225 elevou o
direito ao meio ambiente equilibrado ao topo do direito funda-
mental, e impôs ao poder público e à coletividade o dever de
defesa. Para Matias10

Flagrante é o caráter indutor de transformações so-


ciais do dispositivo, que assume a condição de ve-
tor interpretativo das demais normas jurídicas e
deve inspirar a atuação do Estado e dos particula-
res. A construção de uma sociedade livre, justa e
solidária deve fundamentar e orientar a atuação
estatal no planejamento, elaboração e aplicação de
políticas públicas e de leis, assim como também
deve servir de parâmetro para a interpretação e
aplicação do direito.

Nesse contexto, um dos poluentes que mais tem con-


tribuído para o aquecimento global é a emissão de CO₂, por

9 DIZ, Jamile Bergamaschine Mata. Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável


e sua incorporação pelo Brasil e pela União Europeia. In: DIZ, Jamile Bergamas-
chine Mata; GAIO, Daniel. (Org.). Desenvolvimento sustentável na contempora-
neidade. Belo Horizonte: Arraes, 2019, p. 84-104
10 MATIAS, João Luís Nogueira; MATTEI, Júlia. Aspectos comparativos da proteção
ambiental no Brasil e na Alemanha. NOMOS, v. 34, n. 2, 2014, p.227-244.
Adriana Fonteles Silva | 125
meio da utilização da queima de combustíveis fósseis, motivo
pelo qual, passamos a estudar a viabilidade da criação de um
tributo que possa fomentar o desestímulo dessa categoria de
fonte de energia, pois se entende que a tributação pode servir
de um valoroso instrumento jurídico de inibição ao uso de com-
bustíveis fósseis.
O estudo dedica maior atenção à tributação ativa
sem, contudo, deixar de observar a importância da preservação
dos princípios econômicos, tributários e ambientais que regem
o Estado Democrático de Direito, ou seja, a ideia de estudar me-
canismos tributários não confiscatórios, que inibam o uso de-
senfreado de fontes ambientais não renováveis e que, em simul-
tâneo, não inviabilize as atividades do setor produtivo, mas que
consiga estimular a economia verde.
É dever do poder público a criação de políticas de in-
tervenção e incentivo à proteção ambiental, no entanto, a tribu-
tação ambiental ainda é utilizada de forma muito tímida no Bra-
sil, há vários casos de experiências adotadas em outros países
que podem ser implementadas aqui, o que justifica contínuos
estudos para aprimorar os mecanismos existentes e viabilizar a
criação de um sistema tributário que seja também fomentador
da sustentabilidade ambiental. Motivo pelo qual, pretende-se
estudar se a tributação sobre o carbono seria uma forma de so-
lução tributária viável na redução do uso de combustíveis fós-
seis, bem como se teria como consequência o estímulo ao desen-
volvimento de energias renováveis.

1.1 Tributação sobre carbono - Carbon tax

Muito tem se falado que uma das vias mais rápidas


para descarbonizar a economia mundial é a criação do imposto
126 | Tributação de carbono e sustentabilidade ambiental

de carbono, carbon tax, iniciativa está já adotada por vários paí-


ses da União Europeia e se tem estudado replicar em todo o
mundo. Mas de fato, o que seria a tributação sobre o carbono?
Um imposto de carbono seria uma taxa imposta sobre a queima
de combustíveis à base de carbono (carvão, petróleo, gás). Ou
seja, um imposto sobre o carbono é a política central para redu-
zir e, eventualmente, eliminar ou desestimular o uso de com-
bustíveis fósseis cuja combustão está desestabilizando e destru-
indo o meio ambiente.
Tal exação pretende levar o usuário de fontes de
energia não renováveis, a pagar pelos danos que causa ao clima
pela queima de combustíveis fósseis, que libera dióxido de car-
bono na atmosfera. “A quantidade de CO₂ liberada na queima
do combustível fóssil é estritamente proporcional ao conteúdo
de carbono do combustível. Isso permite que o imposto sobre o
carbono seja cobrado “a montante” do próprio combustível
quando ele é extraído do solo e colocado no fluxo de comércio,
ou importados.”11
Diante da gravidade do problema é salutar que a
conservação do meio ambiente seja colocada como prioridade
nas políticas mundiais, incorporadas ao conjunto de preocupa-
ções políticas dos governos. Nesse sentido, nas opções políticas
existentes para controle ambiental, temos na criação da taxação
ambiental uma opção para a internalização de efeitos externos
ambientais negativos. Sua função é fazer com que “aquele que
com sua atividade produz efeitos externos nocivos ao meio am-
biente, tenha custos equivalentes a tais externalidades, e desta
forma, seja obrigado a considerar, no seu raciocínio econômico,

11 O que é um imposto de carbono? Disponível em https://www.carbon-


tax.org/whats-a-carbon-tax/ Consultado em 26/06/2021.
Adriana Fonteles Silva | 127

não apenas os custos internos, mas também os custos exter-


nos",12

A taxação sobre o carbono é um instrumento que

vêm se consolidando como política fiscal de desincentivo à uti-

lização de fontes de energia não renováveis, porém é de se saber

que essa política é um desafio a economia mundial, pois pode


ter um efeito drástico na continuidade das atividades empresa-

riais, no entanto, isso não deve servir como uma barreira para a

instituição do tributo, pois se trabalhado politicamente, a tribu-


tação sobre o carbono pode se tornar um poderoso instrumento

fiscal regulador de condutas, incentivando setor produtivo e de


serviços a dar continuidade a suas atividades se utilizando de

fontes de energia renováveis/limpas, porém esse não deve ser

um movimento apenas do setor privado, os governos também


devem entrar com contrapartidas para que o setor econômico
também vejam vantagens nessa mudança . Ou seja, instituir a
tributação sobre carbono e dá ao setor produtivo e de serviços e

aos consumidores um incentivo monetário para reduzir suas


emissões de dióxido de carbono.

2. Experiência do tributo ambiental instituído em países que


compõem a União Europeia

Os maiores impactos ambientais são causados pelo


uso de combustíveis fósseis, a exemplo do CO2, um dos princi-
pais responsáveis pelo aquecimento global através da emissão

de gases de efeito estufa, está cada vez mais em voga no âmbito

legislativo internacional a discussão sobre a taxação do carbono

12 FILHO, Itamar da Silva Santos; FERREIRA, Paulo Rangel Araújo. Princípios Fun-
damentais da Tributação Ambiental. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.14
n.29 p.125-151 Mai./Ago. de 2017
128 | Tributação de carbono e sustentabilidade ambiental

o que deve produzir um impacto iminente também aqui no Bra-


sil.
A União Europeia, por exemplo, vem discutindo a
tributação do carbono para forçar o cumprimento da proteção
ambiental, criando a taxa de carbono sobre produtos importa-
dos, para proteger a indústria europeia de empresas estrangei-
ras que não estejam submetidas aos mesmos padrões ambien-
tais, pois conforme o bloco, o carbono deve ter preço em todos
os países.
Na UE, a tributação ambiental é um instrumento or-
çamental que pode ser utilizado para incentivar escolhas ener-
géticas mais ecológicas, esses impostos representam mais de
três quartos do total dos impostos ambientais, no âmbito do
Pacto Ecológico Europeu, a Comissão pretende alinhar cada vez
mais a tributação da energia com os objetivos climáticos.
Segundo o relatório do TCE 2022, em consonância
com o Pacto Ecológico Europeu;

A Lei europeia em matéria de Clima estabeleceu


uma redução líquida mínima de 55% das emissões
de gases com efeito de estufa (em comparação com
1990) como meta intermédia para 2030, superior à
meta anterior de 40%. Em 14 de julho de 2021, a
Comissão publicou um conjunto de propostas des-
tinadas a alinhar as políticas em matéria de clima,
energia, transportes e fiscalidade com a nova meta
climática intermédia para 2030, o chamado pacote
"Objetivo 55"5, que também estabelece metas mais
exigentes em matéria de energias renováveis e efi-
ciência energética13

13 Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, Avaliação de 2019


dos progressos verificados nos Estados-Membros no sentido da consecução dos
objetivos nacionais de eficiência energética para 2020 e da aplicação da Diretiva
Adriana Fonteles Silva | 129
A tributação da energia e a tarifação do dióxido de
carbono podem assumir diferentes formas: o imposto específi-
cos sobre a utilização de combustíveis (impostos sobre o con-
sumo), que têm normalmente uma taxa fixada por unidade fí-
sica (litro ou quilograma) ou unidade de energia (quilowatt-
hora ou gigajoule); os impostos explícitos sobre o dióxido de
carbono, que têm normalmente uma taxa pela utilização de
energia determinada com base no seu teor carbônico; e ainda
possuem as licenças de emissão transacionadas no âmbito de
regimes de comércio de licenças de emissão.
Além disso, o bloco tem criado diretivas relevantes
no contexto da tributação do dióxido de carbono, (CELE) apli-
cando-se um preço para o dióxido de carbono principalmente
no que respeita às emissões provenientes de instalações do setor
da produção de energia e de indústrias com utilização intensiva
de energia, incentivando assim as empresas destes setores a re-
duzirem as emissões. O preço do dióxido de carbono é, deste
modo, determinado pelo mercado.
Consoante o Relatório da Comissão ao Parlamento
Europeu14, para os progressos realizados na concretização dos
objetivos nacionais de eficiência energética para 2020, a Comis-
são determinou os principais fatores para a obtenção de econo-
mias de energia. De acordo com esta avaliação, os regimes de
obrigação de eficiência energética proporcionaram 36% das eco-
nomias de energia comunicadas. As medidas de tributação da

Eficiência Energética, conforme estabelecido no artigo 24º, nº 3, da Diretiva Efici-


ência Energética (Diretiva 2012/27/UE), COM(2020) 326 final.
14 Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, Avaliação de 2019
dos progressos verificados nos Estados-Membros no sentido da consecução dos
objetivos nacionais de eficiência energética para 2020 e da aplicação da Diretiva
Eficiência Energética, conforme estabelecido no artigo 24º, nº 3, da Diretiva Efici-
ência Energética (Diretiva 2012/27/UE), COM(2020) 326 final.
130 | Tributação de carbono e sustentabilidade ambiental

energia que foram além do nível mínimo da UE foram o se-


gundo principal fator e responderam por 16% dessas econo-
mias.
Ainda segundo o relatório, a tributação da energia
pode constituir um importante vetor para a realização dos obje-
tivos climáticos da UE. Quatro Estados-Membros quantificaram
nos seus PNEC o impacto das medidas de tributação da energia
previstas, com estimativas que oscilam entre 4% e 32% do total
das economias de energia previstas (32% na Alemanha, 14% na
Lituânia, 10% na Finlândia e 4% na República Checa).15
As instituições internacionais observam que a atri-
buição de um preço adequado das emissões de dióxido de car-
bono, (CO²) contribui para os objetivos climáticos e pode cons-
tituir um instrumento eficaz para reduzir as emissões, significa
que os poluidores pagam os custos impostos à sociedade pelas
emissões provenientes da utilização de fontes de energia não
renováveis.

Considerações finais

Este estudo buscou discutir sobre a norma tributária


do carbono, carbon tax, considerando as experiências da utiliza-
ção da tributação para fins ecológicos existentes na União Euro-
peia, visto que no Brasil não temos ainda um tributo que incida
sobre a queima de combustíveis fósseis. Focou-se na discussão
acerca do desenvolvimento econômico, em contrapartida, ao di-
reito fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado,

15 Relatório da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho, Avaliação de 2019


dos progressos verificados nos Estados-Membros no sentido da consecução dos
objetivos nacionais de eficiência energética para 2020 e da aplicação da Diretiva
Eficiência Energética, conforme estabelecido no artigo 24º, nº 3, da Diretiva Efici-
ência Energética (Diretiva 2012/27/UE), COM(2020) 326 final.
Adriana Fonteles Silva | 131
concluindo-se pela possibilidade de implementação do caron tax
no sistema tributário brasileiro, pois a instituição de um tributo
ambiental seja por tributo direto — como o carbon tax, seja por
meio da inserção de critérios ambientais em tributos já existen-
tes, possuem o condão de estimular as empresas a buscarem no-
vas soluções para aquilo que se demonstra a tendência mundial:
o alcance de neutralidade de emissões de carbono a ser atingida
em um médio período. Pois, o tributo ambiental vem se mos-
trando uma eficiente política pública para reduzir ou eliminar o
uso de combustíveis fósseis cuja combustão está desestabili-
zando e destruindo o meio ambiente.
Referido tributo está em total consonância com os
princípios basilares do direito tributário e do direito ambiental,
devendo o Brasil se basear nas experiências como as da União
Europeia para poder utilizar-se da precificação sobre o carbono
como uma ferramenta de política climática, seja instituindo um
imposto direto sobre o carbono ou um sistema de limite e co-
mércio baseado em licenças.
A taxação sobre o carbono se incorpora no próprio
princípio da solidariedade e da capacidade contributiva, a ins-
tituição de um tributo com alíquota progressiva sobre o carbono
nada mais é que a inclusão dos “custos de externalidade” que
sua queima impõe à sociedade, ou seja, aqueles que poluem
mais devem pagar pelos danos causados pela poluição. A me-
dida incuti nos consumidores e produtores de energia fortes in-
centivos para reduzir ou excluir o uso de combustíveis fósseis e
as emissões de dióxido de carbono dos seus meios de produção
aumentando a eficiência e mudando para energia renovável.
132 | Tributação de carbono e sustentabilidade ambiental

Referências

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tiva do Brasil . Brasília, DF, Senado Federal, 1988.

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MARQUES JÚNIOR, William Paiva; MORAES, Germana de Oli-


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Brasileira, v . 5, p . 41-68, 2013. Link: https://www.indexlaw.org/in-
dex.php/rdb/article/view/2719

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https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2021/10/res-48_13-
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PARECER DO CONSELHO FRANCO -ALEMÃO DE ESPECIALIS-


TAS ECONÔMICOS (CFAEE), Disponível em: https : //www.cae-
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RELATÓRIO DA COMISSÃO AO PARLAMENTO EUROPEU E

AO CONSELHO, Avaliação de 2019 dos progressos verificados nos


Estados - Membros no sentido da consecução dos objetivos nacio-
nais de eficiência energética para 2020 e da aplicação da Diretiva
Eficiência Energética, conforme estabelecido no artigo 24º, nº 3, da
Diretiva Eficiência Energética (Diretiva 2012/27/UE), COM (2020)
326 final .

SANTOS FILHO, Itamar da Silva; FERREIRA, Paulo Rangel Ara-


újo. Principios fundamentales de la tributación ambiental . Veredas

do Direito, Belo Horizonte, v. 14, n. 29, p . 125-151 , mai./ago . 2017 .


Adriana Fonteles Silva | 133
Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/
veredas/article/view/1011. Acesso em: 29 de abril de 2022

TRIBUNAL DE CONTAS EUROPEU. Tributação da energia, tarifa-


ção do dióxido de carbono e subvenções ao setor da energia. Dispo-
nível em: https://www.eca.europa.eu/Lists/ECADocuments/
RW22_01/RW_Energy_taxation_PT.pdf Acesso dia 25 de junho de
2022

CARBON TAXATION AND ENVIRONMENTAL


SUSTAINABILITY
Abstract: This chapter deals with the possibility of instituting carbon
taxation as fiscal policy that aims to inhibit the use of non-renewable
energy sources, such as carbon burning, which causes serious dam-
age to the environment and human health. European Union countries
have been studying legal institutes such as carbon taxation, which has
been shown to be effective in reducing and discouraging the use of
polluting gases. It focused on the discussion about economic devel-
opment, on the other hand, the fundamental right to an ecologically
balanced environment, concluding for the possibility of implement-
ing the carbon tax in the Brazilian tax system, either through the inser-
tion of environmental criteria in existing taxes, or or by direct taxa-
tion, as measures such as these are in line with the Brazilian legal sys-
tem and have the power to encourage companies to seek new solu-
tions to the environmental problem

Keywords: Taxation. Environment. Sustainability.


CAPÍTULO V.
JUSTIÇA PENAL NEGOCIAL NO BRASIL E
NA ITÁLIA: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA ENTRE O ACORDO DE
NÃO PERSECUÇÃO PENAL E O
PATTEGGIAMENTO

Ana Beatriz Barros de Siqueira*

Resumo: O presente capítulo tem como escopo a análise crítica com-


parativa entre os modelos negociais previstos nos sistemas brasileiro
e italiano, tendo por objeto especificamente o acordo de não persecu-
ção penal e o patteggiamento. Para tanto, inicialmente, apresentam-se
as principais características do processo penal brasileiro e do acordo
de não persecução penal, seguidas dos aspectos fundamentais do pro-
cesso penal italiano e do patteggiamneto, e ao fim realiza-se se uma
análise comparativa entre ambos os institutos. Para atingir o objetivo
da pesquisa, de abordagem qualitativa e caráter exploratório, em-
prega-se o método funcional de direito comparado e utilizam-se
como técnicas de pesquisa a análise documental da legislação brasi-
leira e italiana sobre o tema e a análise bibliográfica de obras nacionais
e estrangeiras acerca do assunto. Conclui-se que a experiência italiana
pode servir de fonte de inspiração para o aprimoramento do sistema
de justiça negocial brasileiro. Sob essa influência, podem ser propos-
tas alterações legislativas que possibilitem um controle judicial mais

*
Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará - UFC.
Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Graduada em Direito pela Universidade
Federal do Ceará - UFC. Membro da Comissão Nacional de Avaliação da Educa-
ção Superior - CONAES/MEC e da Comissão de Estudos em Direito Penal da Or-
dem dos Advogados do Brasil - Seccional Ceará.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 135
substantivo sobre o acordo, sobretudo quanto à possibilidade de ab-
solvição, e o seu reconhecimento como direito subjetivo do investi-
gado.
Palavras-chave: Justiça negociada. Acordo de não persecução Penal.
Patteggiamento.

Introdução

Nas últimas décadas tem-se notado a ascensão do


consenso e da negociação na esfera processual penal. A justiça
penal consensual revela suas raízes no direito norte-americano,
que apresenta o plea bargaining como principal expoente. O plea
bargaining compreende um processo por meio do qual o réu dis-
põe do direito ao julgamento em troca de um benefício, o qual
pode consistir na atenuação da acusação ou de sua pena na sen-
tença.1 Atualmente, cerca de 96% das condenações criminais na
justiça federal americana fundamentam-se em acordos de reco-
nhecimento de culpabilidade.2
Apesar de ter sua origem em um país de tradição
common law, mecanismos de consenso sobre a pena podem ser
encontrados na legislação de diversos países onde vigora o civil
law. Tal fenômeno pode ser observado na Itália, que instituiu o
patteggiamento, na Alemanha, onde vigora o absprachen, na
França, que apresenta a comparution sur reconnaissance préalable
de culpabilité, bem como na América Latina, onde funcionam os
procedimentos abreviados.3

1 HEUMANN, Milton. Plea bargaining. The experiences of prosecutors, judges,


and defense attorneys. Chicago: The University of Chicago Press, 1981, p. 1.
2 DERVAN, Lucian E.; EDKINS, Vanessa. The innocent defendant’s dilemma: an
innovative empirical study of plea bargaining’s innocence problem. Journal of
Criminal Law and Criminology, v. 103, n. 1, p. 1-48, maio 2013, p. 13.
3 LEITE, Rosimeire Ventura. Justiça consensual como instrumento de efetividade
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
136 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

No Brasil, a possibilidade de consenso sobre a pena


foi introduzida pela originalmente no ordenamento jurídico
pela Lei nº 9.099/95. A Lei dos Juizados Especiais é considerada
o principal marco da justiça consensual no âmbito processual
penal brasileiro, uma vez que inseriu pela primeira vez no or-
denamento jurídico brasileiro mecanismos de acordo entre as
partes de um processo penal, tratando de espaços de consenso
limitados, restritos a infrações de menor gravidade.4
Como mais recente contribuição para a expansão do
espaço consensual na justiça penal brasileira, a Lei nº
13.964/2019, conhecida popularmente como “Pacote Anti-
crime”, passou a autorizar em a celebração de acordo de não
persecução penal para determinadas infrações penais. Tal ino-
vação legislativa representa uma ampliação dos espaços de con-
senso na justiça criminal brasileira, de modo que justifica a ne-
cessidade de contínua análise desse modelo de justiça.
Nesse contexto, o estudo comparado da legislação
brasileira com a de outros países de tradição jurídica e cultural
semelhantes revela-se de grande relevância. Pelas afinidades
histórico-culturais, bem como pelas semelhanças dos sistemas
processuais penais, escolheu-se para ser objeto desta pesquisa o
modelo italiano de consenso. Entender como se configura e se
desenvolve a justiça penal consensual italiana mostra-se impor-
tante para melhor assimilar e avaliar o acordo de não persecu-
ção penal.
Portanto, o presente estudo almeja desenvolver uma
análise crítica comparativa entre os modelos negociais previstos

do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro. 2009. 267 f. Tese (Douto-


rado) - Curso de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 81-82.
4 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no Processo
Penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha, Espanha, Itália,
Portugal, Brasil. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, 296-297.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 137
nos sistemas brasileiro e italiano, tendo por objeto especifica-
mente o acordo de não persecução penal e o patteggiamento. Para
tanto, inicialmente, apresentar-se-ão as principais característi-
cas do processo penal brasileiro e do acordo de não persecução
penal. Após, tratar-se-á dos aspectos fundamentais do processo
penal italiano e do patteggiamento. Ao fim, realizar-se-á uma
análise crítica comparativa entre ambos os institutos.
Para atingir o objetivo da pesquisa realizar-se-á um
estudo de direito comparado, pelo método funcional. A pes-
quisa terá abordagem qualitativa e caráter exploratório, sendo
implementadas como técnicas de pesquisa principalmente a
análise documental da legislação brasileira e italiana sobre o
tema e a análise bibliográfica de obras nacionais e estrangeiras
acerca do assunto.

1. Justiça penal negocial no Brasil

A fim de proceder ao presente estudo, faz-se neces-


sário, antes de efetivar uma análise comparativa entre o acordo
de não persecução penal e o patteggiamento, expor as principais
características do processo penal de cada ordenamento jurídico.
Portanto, serão apresentados primeiramente aspectos gerais do
processo penal brasileiro para após adentrar nas características
do acordo de não persecução penal.

1.1. Processo penal brasileiro: aspectos gerais

A Constituição Federal de 1988 consagrou um pro-


cesso penal fundado em garantias como o devido processo le-
gal, o contraditório e a ampla defesa, a presunção de inocência
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
138 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

e o duplo grau de jurisdição. Nesse sentido, a doutrina majori-


tária entende que o sistema processual penal brasileiro ostenta
matriz acusatória, pautada na separação entre os órgãos de de-
fesa, acusação e julgamento e na iniciativa probatória das par-
tes.5
A função acusatória é exercida precipuamente pelo
Ministério Público, que tem por dever o oferecimento da denún-
cia, quando presentes as condições da ação. Trata-se do princí-
pio da obrigatoriedade da ação penal pública, que impede o
exercício da discricionariedade pelo órgão de acusação. A partir
desse princípio, o Ministério Público não pode exercer juízo de
conveniência e oportunidade para a propositura de ação penal.6
A persecução penal compreende a fase pré-proces-
sual, consistente nas investigações preliminares, e a fase proces-
sual, que se inaugura com o recebimento da denúncia. Pelo rito
ordinário, após recebimento da denúncia inicia-se a instrução
probatória, seguida do julgamento. Não obstante, a legislação
processual penal prevê ritos diferenciados, que podem impor-
tar a abreviação do processo, inclusive com a mitigação do prin-
cípio da obrigatoriedade da ação penal pelo não oferecimento
da peça acusatória.7
Nesse contexto, a Lei dos Juizados Especiais (Lei nº
9.099/95) trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro a possibili-
dade de encerramento antecipado do processo nos casos de in-
frações penais de menor potencial ofensivo. Os institutos da

5 PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório: a conformidade constitucional das leis


processuais penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 273.
6 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do
processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v.
30, n. 30, p. 163-198, 1998, p. 183.
7 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio S; GOMES FILHO, Antonio
M; GOMES, Luiz. Juizados Especiais Criminais. Comentários à Lei 9.099, de
26.09.1995. 5. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 259-269.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 139
composição civil, da transação penal e da suspensão condicio-
nal do processo possibilitam, portanto, o encerramento anteci-
pado do processo penal pelo consenso entre as partes.
Mais recentemente, a Lei nº 13.964/2019, popular-
mente conhecida como Pacote Anticrime, introduziu no orde-
namento jurídico brasileiro o acordo de não persecução penal,
ampliando os espaços de consenso no processo penal. Tal ins-
trumento normativo permite que o Ministério Público, ao invés
de apresentar denúncia em face do investigado, ofereça um
acordo para a aplicação imediata de uma sanção penal, de modo
a dispensar a produção de provas em juízo.

1.2. Acordo de não persecução penal

O acordo de não persecução penal pode ser compre-


endido como um negócio jurídico-processual celebrado entre o
Ministério Público e o indivíduo investigado.8 Trata-se também
de um mecanismo de simplificação procedimental, que permite
o encerramento antecipado da persecução penal mediante o
consenso entre as partes.9
O acordo de não persecução penal pode ser oferecido
pelo Ministério Público nos casos em que a infração penal tenha
pena mínima inferior a quatro anos, considerando as causas de
aumento e de diminuição aplicáveis ao caso concreto. Cumula-
tivamente, o delito não pode ter sido cometido com violência ou

8 SUXBERGER, Antônio Henrique Graciano. O Acordo de Não Persecução Penal:


Reflexão a partir da Inafastabilidade da Tutela Jurisdicional. In: CUNHA, Rogério
Sanches et al. (Coords.) Acordo de não persecução penal: Resolução 181/2017 do
CNMP. Salvador: Editora JusPodivm, 2018. p. 113
9 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes. Acordo de não persecução penal. 1. ed. São
Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. RB-2.1.
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
140 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

grave ameaça, tampouco se tratar crime em contexto de violên-


cia doméstica ou familiar ou praticado contra mulher em razão
da condição do sexo feminino.
Além disso, a lei veda a apresentação do acordo
quando o investigado for reincidente ou criminoso habitual ou
profissional, bem como quando já tiver sido beneficiado nos úl-
timos cinco anos por acordo de não persecução penal, transação
penal ou suspensão condicional do processo.
Ao Ministério Público cabe analisar se o acordo mos-
tra-se necessário e suficiente para a reprovação e prevenção da
infração penal, assim como verificar se não se trata de hipótese
de arquivamento do procedimento de investigação preliminar.
Nesse aspecto, Vasconcellos entende que a análise
pelo órgão de acusação da necessidade e suficiência para a re-
provação e repressão do crime revela-se como um dos pressu-
postos legais de maior abertura subjetiva. De um lado, repre-
senta espaço para a gestão de política criminal pelo Ministério
Público, mas por outro permite a prática de abusos e de dispa-
ridade de tratamento com os imputados. Daí mostra-se essen-
cial que eventual recusa do Ministério Público em oferecer o
acordo seja devidamente fundamentada.10
Por sua vez, o juízo quanto ao arquivamento do pro-
cedimento de investigação preliminar revela-se de principal im-
portância. Isso porque o acordo somente deve ser oferecido na
hipótese de existirem elementos suficientes ao oferecimento da
denúncia. Isto é, devem estar presentes indícios de autoria e ma-
terialidade. Caso contrário, o acordo não deverá ser oferecido,
mas sim o procedimento investigatório deverá ser arquivado.11

10 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes. Acordo de não persecução penal. 1. ed. São


Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. RB-4.7
11 Ibidem, p. RB-4.8.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 141
A partir da avaliação desses aspectos, o Ministério
Público poderá deixar de propor o acordo. No caso de discor-
dância do investigado com essa decisão, poderá requerer a re-
messa dos autos ao órgão ministerial superior, para fins de re-
visão. Ao juiz, portanto, não cabe suprir a falta de apresentação
do acordo, visto que se trata de uma decisão exclusivamente do
órgão de acusação.
Já quando proposto pelo Ministério Público, cabe ao
investigado avaliar se o aceitará ou não. A admissão do acordo
pelo investigado depende da confissão formal e circunstanciada
da prática da infração penal e deve-se realizar mediante a pre-
sença de advogado ou defensor público.
Nesse contexto, a aceitação do acordo implica o cum-
primento de uma ou mais condições previstas no art. 28-A, ca-
put, do CPP. As disposições consistem na obrigação de reparar
o dano ou restituir a coisa à vítima, na renúncia a bens e direitos,
na prestação de serviços à comunidade, no pagamento de pres-
tação pecuniária ou em outra condição proporcional e compatí-
vel indicada pelo Ministério Público.
A natureza jurídica das condições aplicáveis não é
matéria pacífica na doutrina. Por um lado, algumas das medi-
das são semelhantes às penas restritivas de direitos previstas no
art. 43 do Código Penal, de forma que se pode sustentar que o
seu caráter de sanção penal. No entanto, tais medidas carecem
de imperatividade, isto é, não há imposição pelo Estado para
que o imputado as cumpra, visto sua execução que depende da
aceitação deste. Assim, restando ausente um requisito inerente
à sanção penal, podem ser concebidas como “condições equiva-
lentes funcionais à pena”.12

12 CABRAL, R. L. F. Acordo de Não Persecução: Um panorama sobre o acordo de


não persecução penal (art. 18 da Resolução n. 1/17-CNMP), com as alterações da
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
142 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

Portanto, mediante a confissão da prática da infração


penal, o imputado pode aceitar o acordo proposto pelo Minis-
tério Público, renunciando voluntariamente ao exercício dos di-
reitos ao silêncio e ao contraditório e à instrução probatória, a
fim de que lhe seja aplicada imediatamente uma medida despe-
nalizadora.
Nessa perspectiva, o acordo deverá ser objeto de con-
trole judicial, mediante o juízo de homologação, precedido de
audiência para verificar a sua legalidade e a voluntariedade na
manifestação de vontade do investigado. O juízo incide princi-
palmente sobre aspectos formais, mas não se limita a estes, visto
que não será homologado caso o magistrado considere as con-
dições acordadas inadequadas, insuficientes ou abusivas.13
Além dos pressupostos legais, doutrina apresenta re-
quisitos de validade para os acordos penais. Devem estar pre-
sentes, portanto, a voluntariedade, a inteligência e a adequação.
Nesse sentido, o investigado deve aceitar o acordo voluntaria-
mente, distante de pressões ou coações, com o conhecimento so-
bre termos e consequências do pacto, que deve apresentar cor-
respondência com as condições do caso concreto.14
Na hipótese de o juiz considerar as condições acor-
dadas inadequadas ou visualizar alguma ilegalidade, deverá re-
meter os autos ao Ministério Público para que este reformule os
termos do acordo, não podendo o magistrado realizar altera-
ções de ofício. Em não sendo feita a adequação pelo Ministério

Resolução n. 183/18/CNMP. In: CUNHA, Rogério Sanches et al. (Coords.) Acordo


de não persecução penal: Resolução 181/2017 do CNMP. Salvador: Editora Jus-
Podivm, 2018, p. 35.
13 BIZZOTTO, Alexandre; DA SILVA, Denival Francisco. Acordo de não persecução
penal. Editora Dialética, 2020, p. 104.
14 VASCONCELOS, Vinicius Gomes. Barganha e Justiça Criminal Negocial: análise
das tendências de expansão do consenso no processo penal brasileiro. 2. ed. Belo
Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 85.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 143
Público ou quando a proposta não atender aos requisitos legais,
o juiz poderá recursar a homologação.
Nos casos de indeferimento da proposta de acordo,
os autos devem ser remetidos ao Ministério Público para que
este analise a necessidade de prosseguimento com as investiga-
ções ou para que ofereça a denúncia. Ademais, contra a decisão
que recusa a homologação do acordo caberá recurso em sentido
estrito, o qual pode ser interposto tanto pelo Ministério Público
como pelo imputado.
Na hipótese de o acordo encontrar-se dentro da lega-
lidade e estando presente a voluntariedade na manifestação de
vontade do investigado, será homologado e a pena imediata-
mente aplicada. Consequentemente, após o cumprimento inte-
gral pelo imputado das condições acordadas, o juiz decretará a
extinção de punibilidade, de modo que os fatos objeto do
acordo não poderão ser novamente objeto de persecução penal.
Por fim, a natureza jurídica da decisão judicial que
analisa o acordo é de sentença homologatória. Trata-se do
mesmo entendimento aplicável à transação penal, isto é, que
não se de sentença condenatória, porquanto não há juízo de mé-
rito acerca da pretensão punitiva. Ademais, não acarreta reinci-
dência nem maus antecedentes – efeitos penais secundários da
sentença penal condenatória, tampouco se impõem as conse-
quências extrapenais da condenação previstas no art. 91 do Có-
digo Penal.15

15 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes. Acordo de não persecução penal. 1. ed. São


Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. RB-8.2.
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
144 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

2. Justiça penal negocial na Itália

Para compreender o fenômeno da justiça penal nego-


cial na Itália faz-se necessário primeiramente introduzir, ainda
que de forma breve, aspectos fundamentais do processo penal
italiano contemporâneo. A partir da compreensão do rito ordi-
nário, bem como das garantias constitucionais que regem esse
processo penal, será possível identificar as características singu-
lares da justiça negocial e exercer uma análise crítica compara-
tiva entre o patteggiamento e o acordo de não persecução penal.

2.1. Processo penal italiano: aspectos introdutórios

O processo penal italiano é fundado no princípio do


devido processo legal. Nesse sentido, a Constituição italiana de
1948 expressa princípios constitucionais relativos ao processo,
entre os quais se encontram os do contraditório, da paridade
entre as partes, da imparcialidade do juiz, da razoável duração
do processo, do duplo grau de jurisdição e da fundamentação
da decisão judicial. Precisamente quanto ao processo penal, a
constituição traz ainda os princípios da presunção de inocência,
do contraditório na formação da prova e da obrigatoriedade da
ação penal.16
Portanto, em regra, o processo penal italiano caracte-
riza-se pelo julgamento por um juiz imparcial de uma ação pe-
nal proposta pelo Ministério Público, incumbindo a este provar
a culpabilidade do réu. No curso do processo devem ser asse-
gurados o contraditório – inclusive sobre a produção da prova
– e o tratamento paritário entre as partes. O acusado tem direito

16 TONINI, Paolo. Manuale di Procedura Penale. Milão: Giuffrè, 11. ed., 2010, p. 28
33.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 145
à produção de provas e o juiz não pode julgar com base em ele-
mentos colhidos apenas na fase de investigação.
Diante de tais características, entende-se que o pro-
cesso penal italiano é de natureza acusatória. Apesar de ainda
apresentar algumas normas de caráter inquisitório, como a ini-
ciativa probatória do juiz, é marcado pela separação das funções
de acusação, julgamento e defesa (actum trium personarum), pelo
contraditório na produção da prova e pela presunção de inocên-
cia, os quais são princípios inerentes ao sistema processual acu-
satório.17
Segundo Tonini, o processo penal italiano contempo-
râneo é formado pelos princípios da separação das funções de
acusação, julgamento e defesa, da repartição das fases proces-
suais e da simplificação procedimental.18
A respeito da separação das fases, o rito ordinário é
dividido em três: investigação preliminar (indagini preliminare),
audiência preliminar (udienza preliminare) e instrução e julga-
mento (dibattimento). Na investigação preliminar são colhidos
elementos de informação, os quais não configuram prova, visto
que não há contraditório sobre a sua produção. Por outro lado,
a legislação processual penal autoriza que a defesa proceda a
sua própria investigação, podendo-se valer de investigadores
particulares e peritos.19

17 FRANCO, José Henrique Kaster. O que a justiça consensual italiana tem a ensinar
ao Brasil: patteggiamento e projeto moro. Revista Judiciária do Paraná, Curitiba, v.
19, n. 19, p. 209-242, maio 2020, p. 210.
18 TONINI, op. cit., p. 33.
19 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no Processo
Penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha, Espanha, Itália,
Portugal, Brasil. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 254-255.
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
146 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

Na audiência preliminar, o juiz analisa a imputação


com base nos elementos da investigação. Com isso, se a acusa-
ção for fundada, decide pela remessa dos autos ao juízo respon-
sável pela instrução e julgamento (dibattimento). Na última fase,
procede-se à produção de provas pelas partes, seguida do jul-
gamento da ação.20
O desenvolvimento do processo penal no rito ordi-
nário requer uma duração mais longa, mormente quanto à fase
de julgamento. Assim, o Código de Processo Penal italiano de
1988 apresenta seis ritos procedimentais simplificados. São eles:
i) juízo abreviado (giudizio abbreviato); ii) aplicação da pena a pe-
dido das partes (applicazione della pena sul richiesta ou patteggia-
mento); iii) juízo diretíssimo (giudizio direttissimo); iv) juízo ime-
diato (giudizio imediato); v) juízo por decreto (giudizio por decreto);
vi) suspensão condicional do processo (suspenzione del procedi-
mento com messa ala prova).21
Trata-se de procedimentos que visam a abreviação
do processo por meio do acordo sobre o procedimento ou sobre
a pena. Nesse contexto, a aplicação da pena a pedido das partes
ou patteggiamento, enquanto mecanismo de consenso sobre a
aplicação da pena, será analisada a seguir.

2.2. Patteggiamento

A applicazione della pena sul richiesta foi introduzida


no ordenamento jurídico italiano pela primeira vez pela Lei nº

20 GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, oportunidade e consenso no Processo


Penal na perspectiva das garantias constitucionais: Alemanha, Espanha, Itália,
Portugal, Brasil. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 255.
21 Os procedimentos estão previstos nos arts. 438 a 464-novies do Código de Pro-
cesso Penal Italiano.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 147
689 de 1981 e é atualmente prevista no Código de Processo Pe-
nal de 1988. Consiste em um mecanismo de consenso sobre a
aplicação da pena, que apresenta grande utilização na justiça
criminal italiana.22
O patteggiamento possibilita que, por meio de um
acordo entre o imputado e o Ministério Público, o processo seja
encerrado de forma antecipada, com a aplicação da pena nego-
ciada. O mecanismo permite que a pena privativa de liberdade
seja convertida em sanção pecuniária ou em substitutiva23 ou
reduzida em até um terço.
Nesse sentido, o Código de Processo Penal italiano
prevê duas espécies de patteggiamento, que se diferenciam pelas
suas hipóteses de cabimento e benefícios que deles possam ad-
vir. Verifica-se o patteggiamento ordinario quando a pena a ser
aplicada, considerando as circunstâncias do caso e a diminuição
de até um terço, não superar dois anos. Já o patteggiamento allar-
gato mostra-se mais amplo, cabível quando a pena a ser aplicada
não ultrapassar cinco anos.24
Por tratar de delitos menos graves, no patteggiamento
ordinario não há aplicação de penas acessórias ou medidas de
segurança, nem há cobrança de custas processuais. Também
nesse caso, poderá o imputado requerer a suspensão condicio-
nal da pena. No patteggiamento allargato, por outro lado, revela-

22 PERONI, Francesco. La peripezia del patteggiamento in un trentennio di speri-


mentazione. Archivio Penale, n. 3, p. 1-23, 2019, p. 2.
23 Conforme rol do art. 53 da Lei n. 689/1981, a sanção substitutiva pode consistir
em liberdade controlada, semi-detenção ou pena pecuniária.
24 FRANCO, José Henrique Kaster. O que a justiça consensual italiana tem a ensinar
ao Brasil: patteggiamento e projeto moro. Revista Judiciária do Paraná, Curitiba, v.
19, n. 19, p. 209-242, maio 2020, p. 215.
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
148 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

se possível a imposição de penas acessórias e medidas de segu-


rança, não há isenção no pagamento de custas processuais, tam-
pouco é cabível a suspensão condicional da pena.
Quanto ao patteggiamento alargato, a lei prevê um rol
de infrações penais sobre as quais são será admitido o consenso.
São os casos dos crimes relacionados a associações criminosas,
ao terrorismo, à pornografia infantil e à violência sexual. A le-
gislação também veda o acordo quando o imputado for crimi-
noso habitual ou profissional. Já em se tratando do patteggimento
ordinario, mesmo que a imputação seja referente a algum desses
crimes ou havendo o imputado antecedentes criminais, não ha-
verá prejuízo à realização acordo.
Nesse contexto, o pedido de aplicação da pena pode
ser feito desde a fase de investigação preliminar até antes do
início da etapa de instrução processual. Em regra, o acordo é
proposto na audiência preliminar, visto que antes disso o impu-
tado dificilmente possuirá o conhecimento completo sobre os
elementos que o órgão de acusação possui contra si.25
Assim, podem requerer o patteggiamento tanto o Mi-
nistério Público como o investigado, conjunta ou separada-
mente. No caso de ser requerido por apenas uma das partes, o
juiz conferirá prazo para que a outra manifeste-se. Em se tra-
tando de pedido feito pelo Ministério Público, o acusado poderá
negá-lo, independentemente de fundamentação. Por outro
lado, para que o Ministério Público recuse a proposta de aplica-
ção da pena requerida pelo acusado, deverá fundamentar a dis-
cordância.26

25 Ibidem, p. 217.
26 VASCONCELOS, Vinicius Gomes. CAPPARELLI, Bruna. Barganha no processo
penal italiano: análise crítica do patteggiamento e das alternativas procedimen-
tais na justiça criminal. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP, Rio de
Janeiro, v. 15, p. 435-453, jan./jun. 2015, p. 446.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 149
Proposto e aceito o acordo, este será objeto de con-
trole judicial. Nesse momento, o juiz deverá analisar se há de
fato consenso entre ambas as partes, bem como verificar a cor-
reta qualificação jurídica do fato e a adequação da pena aplicada
com base nas circunstâncias do caso. Após a análise judicial, o
acordo poderá ser homologado por decisão equiparada à sen-
tença condenatória. Por outro lado, poderá pronunciar desde
logo sentença absolutória quando verificar que o fato não ocor-
reu, que o agente não cometeu o fato, que o fato não constitui
crime ou que existe alguma causa de extinção de punibilidade.27
Além disso, caso o juiz entenda que os motivos da
recusa do Ministério Público são infundados, poderá conceder
os benefícios do patteggiamento de ofício. Nesse caso, após a ins-
trução processual, se o juiz entender que a recusa do Ministério
Público foi infundada, poderá aplicar os benefícios da redução
de pena ou da conversão da pena privativa de liberdade em san-
ção pecuniária ou substitutiva.28
Percebe-se, portanto, que o controle judicial apre-
senta caráter substancial e não meramente formal. O juiz não
apenas observará se há voluntariedade no acordo entre as par-
tes, mas atuará de forma decisiva. Funcionará de forma mais
ativa, pois pode substituir a vontade do Ministério Público
quando este não concordar com o patteggiamento, bem como
deve exercer um controle sobre a aplicação da pena, podendo
inclusive absolver o imputado.
Finalmente, quanto aos recursos relativos ao patteg-
giamento, poderá o imputado apelar da sentença que indeferir o

27 CALLARI, Francesco. Patteggiamento e canone decisorio dell’oltre ogni ragione-


vole dubbio. Diritto Penale Contemporaneo, v. 3, p. 1-16, 2012, p. 5.
28 FRANCO, José Henrique Kaster. O que a justiça consensual italiana tem a ensinar
ao Brasil: patteggiamento e projeto moro. Revista Judiciária do Paraná, Curitiba, v.
19, n. 19, p. 209-242, maio 2020, p. 210.
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
150 I
entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

pedido de homologação do acordo, ao passo que ao Ministério

Público será possível recorrer quando, a despeito do dissenso

ministerial, os benefícios do patteggiamento forem concedidos


pelo juiz . Além disso, contra a sentença as partes poderão inter-
por recurso perante a Corte de Cassação quando houver vício

na manifestação de vontade do imputado, falta de correlação

entre o pedido e a sentença, erro na qualificação jurídica do fato

ou ilegalidade na aplicação da pena ou da medida de segu-


29
rança.2

3. Uma análise comparativa entre acordo de não persecução

penal e patteggiamento

Diante do exposto até o momento, é possível verifi-


car semelhanças entre o acordo de não persecução penal e o pat-

teggiamento, não obstante serem também visíveis diferenças re-

levantes . Nesse sentido, a partir de uma análise comparada, se-

rão analisadas a seguir os principais aspectos de ambos os ins-


titutos, bem como as críticas que lhes são feitas.

3.1 . Aspectos comuns

O patteggiamento e o acordo de não persecução penal


constituem instrumentos de consenso no processo penal . Viabi-

lizam a existência da justiça penal negocial, pois representam

formas pelas quais as partes podem negociar a pena a ser a apli-


cada. Nesse contexto, ambos os mecanismos são resultado da

29 Ibidem, p. 222-223.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 151
influência do modelo norte-americano de justiça criminal – no-
tadamente do plea bargaining, mas apresentam diferenças em re-
lação a este.30
O plea bargaining é instituto marcado pela ampla dis-
cricionariedade do órgão acusador e por um controle judicial
meramente formal. Trata-se de característica condizente com a
tradição common law, visto que no processo penal norte-ameri-
cano, predomina um juízo de oportunidade no exercício da ação
penal. Portanto, a escolha pelo não oferecimento da acusação é
decorrência do princípio da oportunidade.31
Por outro lado, tanto o processo penal brasileiro
como o italiano são pautados na predominância do princípio da
obrigatoriedade da ação penal pública. Assim, compete ao Mi-
nistério Público o oferecimento da ação penal quando presentes
a materialidade e os indícios suficientes de autoria. Nesse con-
texto, não cabe ao Ministério Público, quando presentes esses
requisitos, optar por não denunciar o réu.
Dessa forma, a implementação do consenso nesses
países mostra-se à primeira vista conflitante com o princípio da
obrigatoriedade da ação penal, uma vez que o Ministério Pú-
blico estaria descumprindo seu dever de oferecimento da de-
núncia. Para justificar essa aparente contradição entre a obriga-
toriedade da ação penal e a os instrumentos de consenso, en-
tende-se que vigora uma obrigatoriedade mitigada ou regu-
lada. Com isso, apesar de preponderar o princípio da obrigato-

30 NARDELLI, Marcella Alves Mascarenha. A expansão da justiça penal negociada


e as perspectivas para o processo justo: a plea bargaining norte-americana e suas
traduções no âmbito da civil law. Revista Eletrônica de Direito Processual –
REDP, Rio de Janeiro, v. 14, p. 331-365, jan./jun. 2014, p. 351.
31 Ibidem, p. 354.
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
152 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

riedade, nos casos em que a lei permitir, será possível que o Mi-
nistério Público faça um juízo de oportunidade quanto ao ofe-
recimento da denúncia.32
Além disso, a justificativa para a inserção de meca-
nismos de negociação penal no ordenamento jurídico é comum
em ambos os países. Ao lado dos demais procedimentos de
abreviação processual, o acordo de não persecução penal e o
patteggiamento objetivam conferir eficiência ao sistema de justiça
criminal.33 Justifica-se que os mecanismos de consenso tornam
o processo penal mais célere e são aptos a produzir uma econo-
mia recursos, que poderão ser alocados no combate à criminali-
dade de maior gravidade.34
Por fim, em contraposição ao plea bargaining, o patteg-
giamento e o acordo de não persecução penal consistem em uma
barganha sobre a pena de forma limitada. As legislações italiana
e brasileira preveem as hipóteses em que será possível o acordo,
que se pautam principalmente na pena prevista para o delito.
Da mesma forma, ambos os ordenamentos jurídicos preveem
hipóteses de vedação à propositura do acordo, sobretudo em
crimes de maior reprovabilidade, como os que contêm violência
física ou sexual.

32 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio S; GOMES FILHO, Antonio


M; GOMES, Luiz. Juizados Especiais Criminais. Comentários à Lei 9.099, de
26.09.1995. 5. ed. São Paulo: RT, 2005, p. 259-269.
33 PERONI, Francesco. La peripezia del patteggiamento in un trentennio di speri-
mentazione. Archivio Penale, n. 3, p. 1-23, 2019, p. 21-22.
34 CABRAL, R. L. F. Acordo de Não Persecução: Um panorama sobre o acordo de
não persecução penal (art. 18 da Resolução n. 1/17-CNMP), com as alterações da
Resolução n. 183/18/CNMP. In: CUNHA, Rogério Sanches et al. (Coords.) Acordo
de não persecução penal: Resolução 181/2017 do CNMP. Salvador: Editora JusPo-
divm, 2018, p. 22.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 153
3.2. Principais diferenças

Em uma análise atenta dos institutos, é possível iden-


tificar diferenças relevantes entre eles. Nesse sentido, o patteggi-
amento é instrumento de consenso mais amplo, visto que possi-
bilita a aplicação de pena privativa de liberdade e resulta em
sentença condenatória. O acordo de não persecução penal, por
outro lado, não implica o cumprimento de pena privativa de li-
berdade, mas apenas de condições que podem ser equiparadas
penas restritivas de direitos. Também, a sentença é meramente
homologatória, sem efeitos penais como a reincidência e maus
antecedentes.
Já quanto à admissão de culpa, não há exigência de
confissão para que seja realizado o patteggiamento. Para a cele-
bração do acordo de não persecução penal, no entanto, exige-se
a confissão formal e circunstanciada da prática da infração pe-
nal.
Outra diferença substancial entre ambos os instru-
mentos de negociação consiste no momento adequado para o
oferecimento do acordo. Nesse sentido, o acordo de não perse-
cução penal, por impedir o oferecimento da denúncia, deve ser
proposto ainda na fase pré-processual. Em contrapartida, o pat-
teggiamento pode ser realizado mesmo após o oferecimento da
denúncia, pois seu termo final consiste no momento anterior ao
início da instrução probatória.
O instrumento italiano também se mostra mais am-
plo quanto à legitimidade para requerer o acordo. Enquanto a
legislação brasileira confere o poder de propor o acordo apenas
ao Ministério Público, o patteggiamento pode ser requerido tam-
bém pelo imputado. Nesse sentido, caso o Pubblico Ministero não
ofereça o acordo, o imputado poderá requerê-lo e o órgão de
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
154 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

acusação será chamado a se manifestar. Ademais, se o Ministé-


rio Público italiano apresentar dissenso infundado, o juiz po-
derá ainda assim conceder os benefícios do patteggiamento.
Uma diferença fulcral entre os dois institutos con-
siste, portanto, em tratar ou não o acordo como um direito do
imputado. Na Itália, compreende-se o patteggiamento como um
direito subjetivo do imputado, de forma que a recusa injustifi-
cada do Ministério Público não impede a concessão dos benefí-
cios pelo juiz. Nesse contexto, o patteggiamento ora caracteriza-
se como mecanismo de consenso, ora como benéfico legal que o
juiz pode conceder ao réu.35 No Brasil, por outro lado, a juris-
prudência dos tribunais superiores manifesta-se pela inexistên-
cia de um direito subjetivo do imputado ao acordo de não per-
secução penal, de modo que cabe ao Ministério Público avaliar
se irá propor o acordo ou não.
Para o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribu-
nal de Justiça, a norma prevista no art. 28-A do CPP confere ao
órgão de acusação a opção entre denunciar ou realizar o acordo,
conforme a estratégia da instituição. Com efeito, a decisão final
sobre o oferecimento ou não do acordo de não persecução penal
caberá sempre ao Ministério Público. Portanto, não pode o ma-
gistrado obrigar o Ministério Público ao exercício do consenso
penal, tampouco substituir a sua vontade e conceder de ofício
os benefícios previstos em lei.36

35 LANGER, Maximo. From Legal Transplants to Legal Translations: The Globali-


zation of Plea Bargaining and the Americanization Thesis in Criminal Procedure.
Harvard International Law Journal, v. 45, n. 1, p. 1-64, 2004, p. 51.
36 Nesse sentido: STF - HC: 195327 PR 0110540-31.2020.1.00.0000, Relator: Min. Ale-
xandre De Moraes, Data de Julgamento: 08/04/2021, Primeira Turma, Data de Pu-
blicação: 13/04/2021; STF - HC: 194677 SP 0109515-80.2020.1.00.0000, Relator: Min.
Gilmar Mendes, Data de Julgamento: 11/05/2021, Segunda Turma, Data de Publi-
cação: 13/08/2021; STJ - AgRg no RHC: 152756 SP 2021/0273505-9, Relator: Min.
Reynaldo Soares Da Fonseca, Data de Julgamento: 14/09/2021, Quinta Turma,
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 155
Acerca da atuação do juiz, tanto o acordo de não per-
secução penal quanto o patteggiamento diferenciam-se do plea
bargaining por apresentarem um controle judicial não adstrito
apenas ao aspecto formal do acordo. No Brasil, o juiz deixará de
homologar o acordo quando as condições pactuadas mostra-
rem-se inadequadas, insuficientes ou abusivas. Não obstante,
na Itália controle revela-se ainda mais complexo. Além de poder
negar a homologação do acordo, o juiz poderá absolver o impu-
tado quando visualizar hipóteses de absolvição. A esse respeito,
a Corte Constitucional italiana declarou inconstitucionalidade
da redação originária do artigo 444, §2º, do CPPI, que permitia
apenas o controle formal do acordo.37
Finalmente, a legislação italiana também é mais am-
pla quanto à recorribilidade das decisões judiciais sobre o
acordo. Nesse sentido, o Código de Processo Penal brasileiro
previu hipótese de cabimento recursal apenas no caso em que o
magistrado indefere a homologação do acordo. Já a lei italiana
apresenta hipótese de recurso inclusive quando for deferida a
homologação, mormente por razões relacionadas à manifesta-
ção de vontade do imputado.

3.3. Análise de constitucionalidade

O acordo de não persecução penal e o patteggiamento


são objeto de críticas por juristas de ambos os países. Por serem

Data de Publicação: DJe 20/09/2021; STJ - AgRg no RHC: 130587 SP 2020/0174088-


9, Relator: Min. Felix Fischer, Data de Julgamento: 17/11/2020, Quinta Turma,
Data de Publicação: DJe 23/11/2020.
37 ITÁLIA. Corte Constitucional. Sentença nº 313. Roma, 1990. Disponível em:
http://www.giurcost.org/decisioni/1990/0313s-90.html. Acesso em: 26 de março
de 2022.
Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
156 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

instrumento de uma justiça penal fundada na negociação, os crí-


ticos sustentam que existe uma violação de garantias funda-
mentais do indivíduo.
Nesse sentido, Ferrajoli refere-se à negociação sobre
a pena como “escambo perverso”, pois defende a existência de
um confronto desigual entre a acusação e imputado, no qual,
em troca da redução da pena, o indiciado oferece a própria de-
claração de culpabilidade. Segundo o renomado jurista italiano,
o patteggiamento representa um sacrifício de garantias, princi-
palmente do princípio do contraditório. Nesse contexto, aduz
que “o contraditório, de fato, consiste no confronto público e
antagonista entre as partes em condições de paridade. E ne-
nhum contraditório existe entre as partes que realizam o acordo
entre si em condições de disparidade”.38
No Brasil, Lopes Jr. entende que os avanços da justiça
penal negocial representam a mitigação da garantia da jurisdi-
ção e do procedimento em contraditório, visto que a aceleração
por ela exigida impede a produção de provas sob contraditório,
de forma a supervalorizar a confissão e os atos de investigação,
com a limitação da defesa, da publicidade e da garantia de ju-
risdição.39 Vasconcellos, por sua vez, visualiza na justiça penal
consensual o “problema dos inocentes”, que consiste na aceita-
ção do acordo pelo réu inocente, devido às pressões e coações
praticadas pelo membro do Ministério Público, com a ameaça
de uma imputação mais gravosa e abusiva em caso de recusa
do acordo.40

38 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 599-602.
39 LOPES JR., Aury. A crise existencial da justiça negocial e o que (não) aprendemos
com o JECrim. Boletim IBCCRIM. São Paulo, ano 29, n. 344, p. 4-6, jul. 2021, p. 5.
40 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial:
análise das tendências de expansão do consenso no processo penal brasileiro. 2.
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 157
Apesar das críticas, a inconstitucionalidade do pat-
teggiamento foi afastada pela Corte Constitucional. Segundo a
justiça italiana, não há violação ao direito constitucional de de-
fesa, visto que o patteggimento configura uma forma de exercício
do direito de defesa do réu. Além disso, decidiu que não há uma
obrigação absoluta em exercer esse direito, pois a Constituição
garante as condições para que o direito de defesa seja facultado
e exercitado, mas não se trata de um exercício obrigatório.
No Brasil, a constitucionalidade do acordo de não
persecução penal está sendo discutida na Ação Direta de In-
constitucionalidade (ADI 6.305), que aguarda julgamento no
Supremo Tribunal Federal.

Considerações finais

Em conclusão, o acordo de não persecução penal


pode ser entendido como um instrumento que possibilita o en-
cerramento da persecução penal, com a aplicação de medidas
equiparadas a penas restritivas de direitos, sem que seja sequer
oferecida denúncia pelo Ministério Público. Cabe ao órgão mi-
nisterial avaliar o cabimento, a necessidade e a suficiência do
acordo para o caso em concreto, ao passo que ao investigado é
conferida a escolha entre aceitar ou recusar o acordo. Ao juiz
cabe apenas exercer um controle sobre a voluntariedade e lega-
lidade das condições pactuadas entre as partes.
O patteggiamento, por sua vez, pode ser percebido
como um instrumento que possibilita a aplicação de pena pri-
vativa de liberdade mediante o encerramento antecipado do
processo. Nessa espécie, o imputado pode assumir postura mais
ativa, visto que ele próprio poderá requerer a aplicação da pena

ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 163-164.


Justiça penal negocial no Brasil e na Itália: uma análise comparativa
158 | entre o acordo de não persecução penal e o patteggiamento

na forma do art. 442. O juiz também exerce papel de maior rele-


vância, visto que o controle que exerce sobre o acordo é mais
que meramente formal.
Ao comparar os institutos, verifica-se que ambos re-
presentam a aplicação de uma pena ‒ ou condição equiparada
a esta ‒ mediante a renúncia do imputado a garantias como o
contraditório. Nesse sentido, existem fundadas críticas a res-
peito do consenso no processo penal, principalmente quanto à
possibilidade de coação estatal e à ausência de isonomia entre
as partes. Nesse aspecto, a legislação italiana apresenta mais
mecanismos que impedem que ocorram abusos e trata acusação
e defesa de forma mais isonômica.
Assim, o controle judicial realizado sobre o patteggi-
amento mostra-se mais profundo. O juiz poderá não apenas dei-
xar de homologar o acordo quando este se mostrar indevido,
mas também absolver o réu quando verificar a presença de
causa de absolvição. Trata-se de hipótese que a legislação brasi-
leira não prevê.
Além disso, o patteggiamento é compreendido como
um direito do réu. A aplicação da pena na forma dos arts. 442
pode ser requerida não apenas pelo Ministério Público, mas
também pelo imputado. O fato de o Ministério Público não ofe-
recer o acordo ou discordar do pedido de aplicação da pena
pelo imputado não impede que o juiz conceda os benefícios do
instituto ao réu. Ao contrário, na jurisprudência brasileira nega
a existência de direito subjetivo ao acordo de não persecução
penal.
Dessa forma, a experiência italiana pode servir de
fonte de inspiração para o aprimoramento do sistema de justiça
negocial brasileiro. Sob essa influência, podem ser propostas al-
terações legislativas que possibilitem um controle judicial mais
substantivo sobre o acordo, sobretudo quanto à possibilidade
Ana Beatriz Barros de Siqueira | 159

de absolvição, e o reconhecimento do acordo como um direito


do investigado .

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Ana Beatriz Barros de Siqueira | 163
NEGOTIATED CRIMINAL JUSTICE IN BRAZIL AND
IN ITALY: A COMPARATIVE ANALYSIS BETWEEN
NON-PROSECUTION AGREEMENT AND
PATTEGGIAMENTO
Abstract: This chapter has as scope a critical comparative analysis be-
tween the negotiated models provided for in the Brazilian and Italian
systems, specifically having as its object the non-prosecution agree-
ment and the patteggiamento. Therefore, initially, the main character-
istics of the Brazilian criminal procedure and the non-prosecution
agreement are presented, followed by the fundamental aspects of the
Italian criminal procedure and the patteggiamento, and at the end, a
comparative analysis between both institutes is carried out. In order
to achieve the objective of this research, of qualitative approach, the
functional method of comparative law is used and the documental
analysis of Brazilian and Italian legislation on the subject and biblio-
graphic analyzes of national and foreign works on the subject are
used as research techniques. It is concluded that the Italian experience
can serve as a source of inspiration for the improvement of the Brazil-
ian negotiation justice system. Under this influence, legislative
changes may be proposed that allow for more substantive judicial
control over the agreement, especially regarding the possibility of ac-
quittal, and the recognition of the agreement as a right of the investi-
gated.
Keywords: Negotiated Justice. Non-prosecution agreement. Patteggi-
amento.
CAPÍTULO VI.
DEMOCRACIA ENERGÉTICA
SUSTENTÁVEL NA UNIÃO EUROPEIA

Emilia Davi Mendes*

Norma Navegantes da Silva**

Resumo: No contexto global de transição energética, estudos acerca


da importância do aspecto democrático para a estruturação de siste-
mas de energia não somente sustentáveis do ponto de vista da matriz
energética renovável mas que também sejam socialmente justos têm
ganhado cada vez mais relevância. Baseado nessa preocupação fun-
damenta-se o conceito de democracia energética sustentável e a sua
atenção aos aspectos da sustentabilidade e da democracia no setor
energético. No âmbito da União Europeia, destaca-se a Diretiva de
Energia Renovável (2018) e a Diretiva do Mercado de Eletricidade
(2019), que respectivamente reconhecem as “citizen energy communi-
ties” (CECs) e as “renewable energy communities (REC)” como organis-
mos aptos a compor o sistema energético nos países do bloco. Tratam-
se de formas alternativas de organização de atividades no setor ener-
gético, em que se almeja gerar benefícios ambientais, econômicos ou
sociais para seus membros ou acionistas ou para as áreas locais onde
opera. Desse modo, consistem em estruturas organizacionais relevan-
tes e afins aos ideais delineados pela democracia energética sustentá-
vel. Como principais resultados da pesquisa, compreende-se que as
comunidades energéticas apresentam um grande potencial disrup-
tivo, que tende a trazer benefícios socioambientais relevantes para os

*
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Advogada ambiental e urbanística. Membra da comissão de estudos para a sus-
tentabilidade, ESG e empreendedorismo da OAB/CE.
E-mail: emiliadmendes@gmail.com.
**
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC)
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 165
atores envolvidos. Todavia, faz-se necessário a definição de parâme-
tros mais objetivos acerca da consolidação de tais organismos, bem
como o direcionamento de esforços para especificação, monitora-
mento e avaliação dos efeitos dos benefícios comunitários pretendi-
dos. No que concerne à metodologia, a pesquisa tem natureza quali-
tativa e utilizou-se da linha teórico-bibliográfica e exploratória, por
meio do processamento de informações contidas na legislação, em ar-
tigos científicos e doutrinas, com destaque ao âmbito da União Euro-
peia.
Palavras-chave: Democracia. Energias renováveis. Sustentabilidade.
União Europeia.

Introdução

A transição energética buscada contemporanea-


mente não se restringe a uma mudança de uma matriz fóssil
para uma outra de base renovável e sustentável1. Pensar a tran-
sição energética requer uma reestruturação mais profunda,
consciente das desigualdades e injustiças atreladas a um mo-
delo tradicional centralizado e comandado por grandes corpo-
rações.
A democracia energética sustentável se propõe a
pensar em modelos energéticos participativos e abertos para

1 Quanto ao termo “sustentável”, cabe diferenciá-lo da expressão “desenvolvi-


mento sustentável”. Enquanto o primeiro concentra-se unicamente no aspecto
ambientalmente correto, positivo ou amigável, o último incorpora outras preocu-
pações, buscando uma interação equilibrada entre aspectos sociais, econômicos e
ambientais. Segundo Garcia, Júnior e Sobrinho (2014, p. 974-975) apud José Eli da
Veiga (2010, p. 15), como subproduto da banalização a que foi submetido o termo
sustentabilidade, tem-se o chamado “desenvolvimento sustentável”: agora o
substantivo desenvolvimento que passou a ser seguido pelo adjetivo sustentável
como uma tentativa de compatibilizar os principais interesses da espécie humana,
os interesses econômicos de sempre, com a necessidade de conservar os ecossis-
temas que viabilizam nossa existência.
166 | Democracia energética sustentável na União Europeia

que diversos atores assumam papéis mais ativos, incluindo ci-


dadãos e consumidores. A União Europeia tem manifestado
avanços em confirmar o proeminente papel que os prosumers
(pessoas que são simultaneamente produtores e consumidores
de energias), em especial as suas formas coletivas, hão de de-
sempenhar no futuro do sistema energético (CARAMIZARU;
UIHLEIN, 2020).
Buscado refletir estes conceitos emergentes, este ar-
tigo propõe-se, em um primeiro momento, a discutir o conceito
de democracia energética sustentável e sua dupla preocupação
por uma transição energética que englobe fontes de energia
limpa, resistindo à agenda energética dominante de combustí-
veis fósseis, enquanto reivindica e reestrutura democratica-
mente os regimes de energia.
Em um segundo momento, busca-se analisar a apli-
cação prática deste conceito no âmbito das normas e diretrizes
da União Europeia, em especial através da análise de organis-
mos específicos denominados renewable energy communities e ci-
tizen energy communities, respectivamente introduzidos pela Di-
retiva de Energias Renováveis (2018) e a Diretiva do Mercado
de Eletricidade (2019). Estes organismos consistem em grupos
organizados de usuários (privados, públicos ou mistos) que co-
operam ativamente no desenvolvimento de formas inovadoras
de compartilhamento de energia. Eles podem ser entendidos
como exemplos de participação cidadã que capacitam direta-
mente as pessoas para atuação no setor energético, enquanto
disseminam modelos organizacionais alternativos, descentrali-
zados e sustentáveis.
Em um último momento, este trabalho analisa a con-
tribuição das comunidades de energia renovável e cidadã na
promoção da democracia energética sustentável no âmbito da
União Europeia. Observando o quadro jurídico construído até
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 167
o momento e os pontos que carecem ser melhor trabalhados em
prol da efetiva concretização de seus objetivos, lança-se um
olhar crítico que se converte em sugestões finais acerca do sis-
tema energético Europeu e sua caminhada em direção à demo-
cracia energética sustentável.
Com relação à metodologia, a pesquisa tem natureza
qualitativa e utilizou-se da linha teórico-bibliográfica e explora-
tória, por meio do processamento de informações contidas na
legislação, em artigos científicos e doutrinas, bem como da aná-
lise de princípios e de como a temática em questão se insere nos
regimes de Direito Internacional, com destaque ao âmbito da
União Europeia.

1. O que é democracia energética sustentável?

A ideia de democracia energética sustentável emerge


em um contexto de consciência acerca da necessidade de uma
transição energética limpa e chama a atenção para dois aspectos
fundamentais: um sistema energético descentralizado e de ma-
triz renovável (o aspecto da sustentabilidade) e uma distribui-
ção justa de encargos e benefícios do setor de energias (o as-
pecto democrático) (FLEMING; HUNTA; REINS, 2021).
No que concerne ao primeiro aspecto, observa-se que
a transição energética buscada no século XXI é diretamente mo-
vida pela necessidade de descarbonizar o impacto humano com
o propósito de mitigar as mudanças climáticas. Este processo de
descarbonização envolve portanto a mudança de uma matriz
energética dependente de combustíveis fósseis para uma matriz
de base renovável. Com efeito, robustos estudos empreendidos
pelo IPCC nas últimas décadas têm demonstrado a relação di-
reta entre mudanças climáticas e as emissões provocadas pelo
setor de energias não renováveis. Neste contexto, a difusão de
168 | Democracia energética sustentável na União Europeia

fontes renováveis de energia e soluções que promovam eficiên-


cia energética são amplamente discutidas como instrumentos
para promoção da sustentabilidade. Além disso, a transição
energética sustentável se estabelece como objetivo dentro de di-
ferentes agendas, de uma escala internacional introduzida pelo
protocolo de Kyoto e reafirmada pelo Acordo de Paris, a uma
escala local endossada por instrumentos nacionais e regionais
(BAGLIANI; DANSERO; PUTTILLI, 2009).
A descentralização do setor de energias através de
matrizes renováveis é também uma matéria de sustentabili-
dade. Uma grande diferença entre a produção energética base-
ada em combustíveis fósseis e a de fonte limpa é que a difusão
da última dentro de uma estrutura de mercado permite a des-
centralização do uso de recursos naturais, bem como das fases
de produção, distribuição e consumo energéticos. Deste modo,
a transição energética deve envolver também uma transforma-
ção social, tecnológica e estrutural de mercado, na qual a contri-
buição dos consumidores e a geração distribuída torna-se mais
pronunciada.
Enquanto sistemas altamente centralizados tendem a
dificultar o envolvimento do contexto socioeconômico e institu-
cional local, as fontes de energias renováveis têm a capacidade
de gerar formas de organização nas quais os atores locais po-
dem desempenhar um papel decisivo. Nessas formas de atua-
ção, os atores locais presentes nos territórios, longe de perma-
necerem passivos à cadeia de produção e distribuição energé-
tica, ou serem acionados apenas por meio de iniciativas exóge-
nas, podem estabelecer formas de cooperação que, explorando
o conhecimento técnico e as atitudes empreendedoras presentes
no território, adotem ações efetivas de exploração e valorização
dos recursos locais (DEMATTEIS, 2007). Como consequência,
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 169
observa-se o surgimento de novos conceitos e organismos atre-
lados à descentralização, como os de energy prosumer, energy
community, citizen energy e energy citizenship (FLEMING;
HUNTA; REINS, 2021).
O segundo aspecto do termo, referente à democracia,
importa-se com a justa distribuição de encargos e benefícios do
setor energético e reclama os direitos de indivíduos e comuni-
dades em participar ativamente no desenvolvimento e transição
do setor energético. Por este motivo, a democracia energética
reserva diversas conexões com os conceitos de justiça ambien-
tal, energética e climática. Há também uma relação direta com
as noções de justiça processual e justiça distributiva. A justiça
processual advoga o direito de participação e manifestação de
cidadãos em processos judiciais, bem como em projetos e polí-
ticas que os afetem. A justiça distributiva, por sua vez, tem iní-
cio com a indignação social e envolve o exame da alocação dos
custos e benefícios do sistema energético em toda a sociedade.
Isto envolve a luta pela energia democraticamente controlada e
de propriedade social, como no caso de comunidades que têm
buscado exercer autodeterminação sobre seus sistemas energé-
ticos (SALTER; GONZALEZ; WARNER, 2018). Além disso, a
justiça distributiva conserva relação com grupos sociais que não
conseguem se beneficiar dos desenvolvimentos em energias re-
nováveis, embora sejam diretamente afetados pelos seus impac-
tos negativos, a exemplo da poluição visual e sonora.
A interação entre justiça processual e justiça distribu-
tiva no campo da democracia energética sustentável pode ser
ilustrada pela conexão entre acesso à energia e direitos huma-
nos. O sétimo ODS das Nações Unidas2 se concentra em energia

2 Objetivo 7. Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível


à energia para todas e todos.
170 | Democracia energética sustentável na União Europeia

limpa e acessível para todos (ONU, 2022). Nesse contexto, des-


tacou-se que o acesso global à energia limpa pode ser melhor
abordado por meio de estruturas descentralizadas de mercado
de energia. Isso pode melhorar o padrão de vida particular-
mente nas áreas rurais, mas ao aumentar a auto-suficiência dos
consumidores e suas comunidades também melhora a segu-
rança do abastecimento. Também pode gerar economias de cus-
tos em áreas onde a construção de grandes infraestruturas de
energia seria excessivamente cara.
Dessa forma, compreende-se que a democracia ener-
gética sustentável busca desconstruir o modelo tradicional do
sistema energético como um ‘monopólio natural’ e substituí-lo
por estruturas mais participativas, pois dedicar um foco pura-
mente econômico, ou mesmo um foco exclusivo na mitigação
de gases de efeito estufa, não pode pode produzir resultados
justos.

7.1 Até 2030, assegurar o acesso universal, confiável, moderno e a preços acessíveis a
serviços de energia;
7.2 Até 2030, aumentar substancialmente a participação de energias renováveis na
matriz energética global;
7.3 Até 2030, dobrar a taxa global de melhoria da eficiência energética.
7.a Até 2030, reforçar a cooperação internacional para facilitar o acesso a pesquisa e
tecnologias de energia limpa, incluindo energias renováveis, eficiência energética
e tecnologias de combustíveis fósseis avançadas e mais limpas, e promover o in-
vestimento em infraestrutura de energia e em tecnologias de energia limpa.
7.b Até 2030, expandir a infraestrutura e modernizar a tecnologia para o fornecimento
de serviços de energia modernos e sustentáveis para todos nos países em desen-
volvimento, particularmente nos países menos desenvolvidos, nos pequenos Es-
tados insulares em desenvolvimento e nos países em desenvolvimento sem lito-
ral, de acordo com seus respectivos programas de apoio. (ONU, 2022).
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 171
2. Estruturas organizacionais alternativas para o setor
energético estabelecidas pela legislação Europeia

Como parte de uma transição energética justa, en-


contra-se a necessidade de mover-se de um sistema predomi-
nantemente composto por imensas e centralizadas instalações,
em direção a um sistema de menor escala, com estruturas locais
e envolvendo a participação de diferentes atores dos setores pú-
blico e privado. Para inserir tais características ao sistema ener-
gético é preciso que exista um quadro jurídico favorável e
aberto a estruturas organizacionais alternativas, como é possí-
vel observar no âmbito da União Europeia, que neste capítulo
passa-se a analisar mais detidamente.
O termo “energy community” vem sendo frequente-
mente utilizado para designar formas alternativas de organiza-
ção de atividades no setor energético em comparação com as
convencionais indústrias de larga escala. A despeito da ausên-
cia de uma definição única, o conceito de energy community é
comumente associado com com energias renováveis, localiza-
ção3, novas tecnologias, transição energética justa e participação
de diversos atores, incluindo cidadãos, instituições públicas e
pequenos e médios empreendimentos. Entre 2018 e 2019, a
União Europeia adotou duas definições para comunidades
energéticas no curso de uma reforma maior no quadro jurídico
energético (DIESTELMEIER, 2021, p. 125).
A Diretiva de Energia Renovável, adotada em 2018,
define “renewable energy communities (REC)” e a Diretiva do
Mercado de Eletricidade, de 2019, conceitua “citizen energy

3 O termo localização é aqui empregado no sentido de empreender esforços na apli-


cação de políticas e projetos voltados ao âmbito local.
172 | Democracia energética sustentável na União Europeia

communities (CECs)”. Ao definir e reconhecer estas formas orga-


nizativas alternativas, a legislação Europeia manifesta a preten-
são de ir além das empresas tradicionais atuantes no setor de
energias, almejando gerar benefícios ambientais, econômicos ou
sociais para os seus membros ou acionistas ou para as áreas lo-
cais onde opera, em vez de lucros financeiros.

2.1. Comunidades de energia renovável

A governança e o propósito das comunidades de


energia renovável (renewable energy communities) e das comuni-
dades de energia cidadã (citizen energy communities) parecem ser
basicamente os mesmos. Ambos têm como principal objetivo a
geração de benefícios comunitários que podem ser de valor am-
biental, econômico ou social. No entanto, eles têm característi-
cas distintivas.
A definição apresentada pela Diretiva de Energia Re-
novável da União Europeia concentra as características das co-
munidades de energia renovável em três pontos, considerando
ser esta uma entidade legal:

(16) [...]
a) que, de acordo com a legislação nacional aplicá-
vel, se baseie na participação aberta e voluntária,
seja autônoma e efetivamente controlada por acio-
nistas ou sócios situados nas proximidades do pro-
jetos de energia renovável detidos e desenvolvidos
por essa entidade legal;
(b) cujos accionistas ou sócios sejam pessoas sin-
gulares, PME ou autoridades locais, incluindo mu-
nicípios;
(c) cujo objetivo principal seja proporcionar bene-
fícios ambientais, econômicos ou sociais à comuni-
dade para seus acionistas ou membros ou para as
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 173
áreas locais onde opera, em vez de lucros financei-
ros; (EU, 2018).

Desse modo, nota-se que as comunidades de energia


renováveis são delimitadas em três principais aspectos: pri-
meiro, a geração de energia é exclusivamente proveniente de
fontes renováveis; segundo, os membros da comunidade de-
vem ser residentes nas proximidades dos projetos de energia
renovável detidos e desenvolvidos pela por essa entidade local;
e terceiro, suas atividades potenciais incluem produção, con-
sumo, armazenamento e venda de energias renováveis.
Além disso, esta diretiva prevê medidas de incentivo
para o desenvolvimento de comunidades de energia renovável.
O artigo 26 é um importante dispositivo a este propósito pois
preceitua que Estados membros devem assegurar que as comu-
nidades de energias renováveis possam participar nos regimes
de apoio disponíveis em pé de igualdade com os grandes parti-
cipantes. Para este efeito, os Estados membros devem ser auto-
rizados a tomar medidas, tais como fornecer informações, pres-
tar apoio técnico e financeiro, reduzir os requisitos administra-
tivos, incluindo critérios de concurso centrados na comunidade,
criar janelas de concurso personalizadas para comunidades de
energias renováveis ou permitir que as comunidades de ener-
gias renováveis sejam remuneradas através de apoio direto
quando cumpram os requisitos das pequenas instalações (EU,
2018).
A diretiva acrescenta ao quadro jurídico Europeu
uma preocupação com aspectos democráticos da transição ener-
gética renovável e compreende as comunidades de energia re-
novável como um mecanismo apto a contribuir no aumento da
participação popular no setor energético e no combate à po
174 | Democracia energética sustentável na União Europeia

breza energética. Os artigos 66 e 67 da Diretiva de Energia Re-


novável refletem esses aspectos ao reconhecer a importância do
autoconsumo de eletricidade renovável, bem como da definição
de entidades compostas por “autoconsumidores de energias reno-
váveis de ação conjunta”. A diretiva defende o estabelecimento de
uma estrutura regulatória que capacite os autoconsumidores de
energias renováveis a gerar, consumir, armazenar e vender ele-
tricidade sem enfrentar encargos desproporcionais.
Outrossim, capacitar os autoconsumidores de ener-
gias renováveis que atuam em conjunto também oferece opor-
tunidades para as comunidades de energia renovável avança-
rem na eficiência energética em nível doméstico e ajuda a com-
bater a pobreza energética por meio de consumo reduzido e ta-
rifas de fornecimento mais baixas. Nesse sentido, a diretiva de-
termina que os Estados membros devem aproveitar adequada-
mente essa oportunidade, nomeadamente avaliando a possibi-
lidade de permitir a participação de famílias que de outra forma
não poderiam participar, incluindo consumidores e inquilinos
vulneráveis.

2.2. Comunidades de energia cidadã

A Diretiva do Mercado de Eletricidade, adotada em


2019, resultou da iniciativa de reforma jurídica “Clean Energy for
all Europeans” da Comissão. O título desta reforma sugere o ob-
jetivo de reforçar a mudança para fontes de energia “limpas”
(renováveis e sustentáveis) e a promoção de uma abordagem
inclusiva, pelo menos à escala europeia, enfatizando “todos os
europeus”. Isso justifica ainda mais a necessidade de esclarecer
e concretizar o papel das comunidades de energia cidadã na
consecução desses objetivos. Em geral, a reforma legal introdu-
ziu uma variedade de novas definições legais de atores.
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 175
No âmbito desta diretiva, Citizen Energy Communities
são definidas como entidades legais que:

(11) [...]
(a) seja baseada na participação voluntária e aberta
e efetivamente controlado por membros ou acio-
nistas que sejam pessoas físicas, autoridades lo-
cais, incluindo municípios, ou pequenas empresas;
(b) tenha como objetivo principal proporcionar be-
nefícios ambientais, econômicos ou sociais à co-
munidade a seus membros ou acionistas ou às
áreas locais onde atua, em vez de gerar lucros fi-
nanceiros; e
(c) pode se dedicar à geração, inclusive a partir de
fontes renováveis, distribuição, fornecimento, con-
sumo, agregação, armazenamento de energia, ser-
viços de eficiência energética ou serviços de carre-
gamento de veículos elétricos ou fornecer outros
serviços de energia a seus membros ou acionistas.
(EU, 2019).

As potenciais atividades que as comunidades de


energia cidadã podem desempenhar são mais amplas que aque-
las atribuídas às comunidades de energia renovável, incluindo
as atividades de distribuição, agregação, serviços de eficiência
energética, serviços de carregamento de veículos elétricos e ou-
tros serviços de energia.
Para constituir uma comunidade de energia cidadã é
necessário que esta entidade jurídica esteja constituída de uma
forma que a permita ser efetivamente controlada pelos seus
membros. Embora a diretiva não especifique que medidas são
requeridas para que se atenda a condição de efetivo controle pe-
los membros, possivelmente isto significa incluir direitos de
voto, nomeação democrática dos membros do conselho fiscal
176 | Democracia energética sustentável na União Europeia

e/ou participação majoritária. Independentemente da especifi-


cação exata, fica claro que os membros das comunidades de
energia cidadã devem desempenhar um papel central. Além
disso, a associação deve ser “aberta e voluntária”, o que também
significa que os membros têm o direito de deixar o cec a qual-
quer momento (DIESTELMEIER, 2021, p. 135).
Potencialmente, os membros de comunidades de
energia cidadã podem ser compostos por uma variedade de ato-
res diferentes, como pessoas físicas, autoridades locais (inclu-
indo municípios) e pequenas empresas. Não está claro se ‘cida-
dãos’ devem ser incluídos (ou pelo menos representados), como
o nome pode sugerir. É importante mencionar que, se os clien-
tes residenciais forem membros, não perderão seus direitos ge-
rais como clientes. É o que a legislação convencionou chamar de
“consumidor ativo” ou prosumer, abrangendo tanto o consumo
quanto a produção de energias renováveis (ou seja, “prosumers-
hip”). Assim, os “autoconsumidores renováveis” têm o direito
de consumir, vender ou armazenar a energia renovável gerada
nas suas instalações.
Assim como as comunidades de energia renovável,
esta entidade legal reforça as prioridades da Comissão Europeia
para o desenvolvimento de um novo design de mercado, carac-
terizado pela (1) promoção e implantação de energias renová-
veis, (2) integração de mercado e (3) colocar os consumidores
“no centro do futuro sistema de energia”, o que inclui torná-los
autoconsumidores e (co-)proprietários (EU COMMISSION et
al., 2015).
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 177
3. O papel das comunidades de energia renovável em
promover a democracia energética sustentável na União
Europeia

As energias renováveis (ER) devem atingir pelo me-


nos 63% de participação no sistema energético até 2040 para
cumprir tanto a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Susten-
tável quanto as metas do Acordo de Paris (ONU, 2017). No âm-
bito da União Europeia, espera-se que até 2050, metade dos la-
res produza energia renovável (Rathnayaka, A.D.; Potdar, V.M.;
2011). Neste contexto, repensar o sistema energético para que
inclua formas alternativas e descentralizadas de produção e dis-
tribuição revela-se como uma medida necessária e que deve re-
ceber a devida atenção para que possa efetivamente contribuir
para a promoção da democracia energética sustentável.
Segundo Burke e Stephens (2017), a democracia ener-
gética é um movimento social emergente que promove transi-
ções de energia renovável, resistindo à agenda energética domi-
nante de combustíveis fósseis enquanto reivindica e reestrutura
democraticamente os regimes de energia. Essencialmente, as co-
munidades de energia renovável e as comunidades de energia
cidadã são os principais mecanismos introduzidos no legal fra-
mework da UE que visam promover democracia energética sus-
tentável nesse bloco econômico.
Estas comunidades de energia estão sendo cada vez
mais reconhecidas pelas instituições europeias ‒ iniciadas pelo
conhecido Clean Energy Package ‒ como ativos estratégicos que
contribuem para alcançar as metas de descarbonização estabe-
lecidas pelo EU
Green Deal, bem como exemplos fundamentais de
conscientização local sobre energia. Essa abordagem ampla do
178 | Democracia energética sustentável na União Europeia

escopo da comunidade é geralmente positiva, pois oferece mui-


tas oportunidades para criar benefícios que contribuem para a
comunidade e além, mas também torna uma tarefa complexa
identificar, medir e avaliar o impacto das comunidades e sua
real influência social positiva. Embora a exigência de benefícios
ambientais, econômicos ou sociais claramente não seja cumula-
tiva, é importante garantir a transparência na escolha e realiza-
ção dos benefícios da comunidade.
Segundo Diestelmeier (2021, p. 140), três pontos me-
recem ser destacados no que diz respeito à função das comuni-
dades energéticas como mecanismos efetivamente aptos a faci-
litar a democracia energética sustentável. Primeiro, a especifica-
ção e avaliação dos benefícios comunitários; segundo, a grau de
autonomia das atividades do sistema operacional; e terceiro,
função dos energy consumers versus energy citizens. Como o con-
ceito foi reconhecido muito recentemente pela legislação Euro-
peia, espera-se que tais pontos venham a ser amplamente dis-
cutidos e questionados ao longo dos próximos anos, fazendo
com que a regulamentação da matéria torne-se mais robusta.
No que concerne à especificação e avaliação dos be-
nefícios comunitários, é necessário maior transparência de da-
dos acerca de quais são os benefícios pensados pela organização
para a comunidade e quem efetivamente está se beneficiando
de tais políticas. Comunidades energéticas são responsáveis por
selecionar onde e como elas almejam contribuir com benefícios
comunitários, o que pode transitar entre benefícios ambientais,
econômicos ou sociais. Embora esse amplo grau de discrição
seja geralmente positivo, pois reflete o fato de que as comuni-
dades de energia são múltiplas, também requer um elemento de
freios e contrapesos externos. Portanto, os legisladores nacio-
nais precisam pensar em como especificar, monitorar e avaliar
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 179
o efeito dos benefícios comunitários, a fim de fazer uma tenta-
tiva séria de explorar plenamente o potencial das comunidades
energéticas para contribuir para a democracia energética sus-
tentável.
Quanto ao segundo aspecto, cabe questionar o grau
de autonomia nas tarefas operacionais do sistema, em outras
palavras, seriam as comunidades energéticas autorizadas a ope-
rar sistemas de distribuição e projetar suas próprias estruturas
tarifárias de rede? Se isto fosse possível, as comunidades pode-
riam colher benefícios ainda maiores se organizadas de acordo
com as linhas de um “sistema integrado de energia da comuni-
dade”. Funcionando como tal sistema, no entanto, exige que a
rede de distribuição opere de forma independente em grande
medida. Isso também é coerente com as raízes das comunidades
energéticas, que surgiram em torno da ambição de obter maior
autonomia através da exploração de energias renováveis e, as-
sim, reduzir a dependência de combustíveis fósseis e de um sis-
tema de abastecimento “top-down”. Além disso, ao estabelecer
diferentes tarifas de rede, os custos de uso da rede poderiam ser
distribuídos de uma maneira diferente e potencialmente mais
sustentável e democrática.
Por fim, o terceiro ponto reflete o papel dos consumi-
dores de energia e dos cidadãos da energia. A Diretiva do Mer-
cado de Eletricidade da União Europeia permanece ampla-
mente na narrativa do mercado e, embora o termo “cidadão”
seja usado ocasionalmente, não está claro o que isso implica em
relação aos seus direitos e obrigações e se e como eles diferem
dos direitos e obrigações do consumidor. Independentemente
da terminologia exata usada, é importante entender os fatores
que motivam e permitem que as pessoas participem das comu-
nidades de energia. Vários fatores e/ou circunstâncias existentes
podem influenciar a vontade e a capacidade das pessoas físicas,
180 | Democracia energética sustentável na União Europeia

bem como de outros atores, como instituições públicas e peque-


nas e médias empresas, de se engajar em comunidades de ener-
gia. Identificar esses fatores e circunstâncias é importante para
o desenvolvimento de uma estrutura legal que também tenha
como alvo aqueles em posição desvantajosa, fazendo valer as-
sim o real aspecto democrático almejado pelo movimento social
em questão.

Considerações finais

A democracia energética sustentável é um movi-


mento focado em uma transição energética justa e que tem ga-
nhado espaço nos últimos anos. A União Europeia tem buscado
incorporar estes valores ao seu sistema energético, como pode
ser observado nas recentes diretrizes do bloco sobre energia re-
novável (2018) e sobre o mercado de eletricidade (2019).
As comunidades de energia sustentável foram reco-
nhecidas por estas diretivas e encontram-se fortemente associa-
das ao propósito de contribuir socioambientalmente, em contra-
posição ao modelo dominante centrado no desempenho da
mera produção e abastecimento de mercado. Por tratar-se de
uma regulamentação aplicável a todo o bloco comercial, faz-se
necessário a recepção de modo compatível ao direito dos países
membros e isto pode acarretar diferenciações quanto às estru-
turas de governança, tarefas e potenciais contribuições destes
organismos para uma efetiva democracia energética sustentá-
vel.
Deste modo, faz-se necessário o estabelecimento de
parâmetros aplicáveis de modo amplo e que contribuam para
um consenso na consolidação destes organismos, consequente-
mente facilitando a aplicação de políticas de desenvolvimento e
expansão dos mesmos dentro do sistema energético da União
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 181
Europeia. Para que este objetivo seja atingido dentro de um con-
texto de confronto com as estruturas liberais de mercado, torna-
se também imprescindível dedicar esforços na especificação,
monitoramento e avaliação dos efeitos dos benefícios comuni-
tários, assim como no aumento do grau de autonomia das tare-
fas operacionais do sistema e na garantia de alcance e participa-
ção de grupos sociais em situação de fragilidade, a fim de possa
atender a responsabilidade socioambiental a que se propõe.

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unstats.un.org/sdgs/iaeg-sdgs/tier-classification/. Acesso em: 20
jun. 2022.
Emilia Davi Mendes e Norma Navegantes da Silva | 183
SUSTAINABLE ENERGY DEMOCRACY IN THE
EUROPEAN UNION
Abstract: In the global context of the energy transition, studies on the
importance of the democratic aspect for the structuring of energy sys-
tems that are not only sustainable from the point of view of the re-
newable energy matrix but that are also socially fair have gained in-
creasing relevance. Based on this concern, the concept of sustainable
energy democracy and its attention to aspects of sustainability and
democracy in the energy sector is based. Within the European Union,
the Renewable Energy Directive (2018) and the Electricity Market Di-
rective (2019) stand out, which respectively recognize the “citizen en-
ergy communities” (CECs) and the “renewable energy communities
(REC)” as organisms able to compose the energy system in the coun-
tries of the bloc. These are alternative ways of organizing activities in
the energy sector, in which the aim is to generate environmental, eco-
nomic, or social benefits for its members or shareholders or for the
local areas where it operates. In this way, they consist of relevant or-
ganizational structures that are in line with the ideals outlined by sus-
tainable energy democracy. As the main results of the research, it is
understood that energy communities have a great disruptive poten-
tial, which tends to bring relevant socio-environmental benefits to the
actors involved. However, it is necessary to define more objective pa-
rameters for the consolidation of such organizations, as well as to di-
rect efforts to specify, monitor, and evaluate the effects of the in-
tended community benefits. Regarding the methodology, the re-
search has a qualitative nature and used the theoretical-bibliographic
and exploratory line, through the processing of information con-
tained in the legislation, scientific articles, and doctrines, emphasiz-
ing on the scope of the European Union.

Keywords: democracy; renewable energies; sustainability; European


Union.
CAPÍTULO VII.
O DIREITO INTERNACIONAL E A
PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
DA MULHER

João Paulo de Carvalho Barbosa*

Resumo: A Proteção Internacional dos Direitos Humanos ganha força


no cenário pós-Segunda Guerra Mundial, dada a gravidade das vio-
lações dos direitos fundamentais e das atrocidades cometidas. Reco-
nhecendo as especificidades e a situação de vulnerabilidade da mu-
lher, emerge a necessidade de proteção específica. Dentre os docu-
mentos que se destacam na Proteção Internacional dos direitos huma-
nos da mulher merecem destaque a Convenção Sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher e a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a
Mulher (Convenção de Belém do Pará). Dessa forma, o Brasil assume
um compromisso internacional no combate à violência contra a mu-
lher e contra toda forma de discriminação baseada no gênero (dentre
outras) tanto na esfera pública quanto privada. Apesar da criação da
Lei n° 11.340 de 2006 ainda é possível observar a necessidade de apli-
cação de políticas públicas efetivas para que se desconstrua o patriar-
cado que tem se perpetuado histórica e socialmente ao longo do
tempo e se alcance a efetivação do direito fundamental à igualdade
de gênero.

Palavras-chave: Direitos humanos da mulher. Gênero. Violência.

* Mestrando em Direito Constitucional (UFC). Pós-Graduando em Tribunal do Júri


e Execução Criminal (LEGALE). Pós-Graduando em Direito Público (LEGALE).
Graduado em Direito (FAS, 2021). Pós Graduado em Ensino de Língua Portu-
guesa e Literatura (UNIATENEU, 2015). Graduado em Letras Português-Italiano
(UFC, 2011). E-mail: joao.decarv@gmail.com
João Paulo de Carvalho Barbosa | 185
Introdução

O direito internacional vem apresentando uma cres-


cente preocupação na tutela de proteção aos direitos humanos,
proclamando a igualdade de todos, independente de sexo, raça,
crença, etnia, dentre outros. O alcance do direito fundamental à
igualdade é de suma importância uma vez que confere o reco-
nhecimento da dignidade da pessoa humana a todo e qualquer
indivíduo, sem qualquer tipo de discriminação.
Destaca-se a tutela de proteção aos direitos humanos
das mulheres, uma vez reconhecida que não exista uma concre-
tização material da igualdade entre os gêneros. Nesse aspecto
aponta-se a Conferência Mundial dos Direitos Humanos que re-
conheceu na redação de seu artigo 18:

Artigo 18 - Os direitos humanos das mulheres e


das meninas são inalienáveis e constituem parte
integrante e indivisível dos direitos humanos uni-
versais. A violência de gênero e todas as formas de
assédio e exploração sexual são incompatíveis com
a dignidade e o valor da pessoa humana e devem
ser eliminadas. Os direitos humanos das mulheres
devem ser parte integrante das atividades das Na-
ções Unidas, que devem incluir a promoção de to-
dos os instrumentos de direitos humanos relacio-
nados à mulher.1

1 A segunda Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em junho de


1993 em Viena, reconhece a necessidade e importância da participação pela e
igualitária da mulher em todos os aspectos da vida civil, política, econômica, so-
cial, cultural, nos mais diversos níveis, quais sejam o regional, o nacional e o in-
ternacional, bem como reconhece a erradicação de todas as formas de discrimina-
ção baseadas no sexo.
186 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

O objetivo desta pesquisa é oferecer uma contribui-


ção para concretização material do direito fundamental à igual-
dade como efetiva proteção dos direitos humanos das mulhe-
res, trabalho este que será desenvolvido por meio de pesquisa
bibliográfica aos documentos e normativas jurídicas internacio-
nais que atualmente encontram-se recepcionadas no direito in-
terno brasileiro e que se destinam à sua promoção e tutela.
Somente a partir da Segunda Guerra mundial que se
iniciou uma maior preocupação e importância da preservação
dos direitos humanos, sendo a dimensão internacional dos di-
reitos humanos um fenômeno ainda recente na história. Alguns
institutos como a Organização Internacional do Trabalho2 (OIT)
e a Liga das Nações e do Direito Humanitário3 trouxeram os
primeiros avanços da internacionalização dos Direitos Huma-
nos, vindo a admitir intervenções internacionais, flexibilizando
a ideia de soberania nacional em prol da proteção dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
Foi no cenário de guerra que o totalitarismo permitiu
o cometimento de diversas barbáries contra o homem e a viola-
ção dos direitos desse homem que deu surgimento ao Direito
Internacional dos Direitos Humanos, como tentativa de se res-
gatar a dignidade e os valores inerentes a toda e qualquer pes-
soa humana, sem traços distintivos. Conforma Flávia Piovesan:

2 A Organização Internacional do Trabalho foi fundada em 1919 com intuito de


promover a justiça social por meio da promoção e proteção dos direitos funda-
mentais no trabalho melhorando a cobertura e eficácia da proteção social para
todos e criando maiores oportunidades de emprego e renda decentes para mu-
lheres e homens. É a única agência das Nações Unidas que possui uma estrutura
tripartite.
3 Criada em 1920, a Liga das Nações tinha como finalidade promover a cooperação,
paz e segurança internacional, condenando agressões externas contra a integri-
dade territorial e a independência política de seus membros.
João Paulo de Carvalho Barbosa | 187
[...] no momento em que os seres humanos se tor-
nam se tornam supérfluos e descartáveis, no mo-
mento em que vige a lógica da destruição, em que
cruelmente se abole o valor da pessoa humana,
torna-se necessária a reconstrução dos direitos hu-
manos, como paradigma ético capaz de restaurar
a lógica do razoável.4

As crescentes violações dos direitos humanos ocorri-


das em regimes totalitários, no cenário das grandes guerras,
apresentam uma verdadeira constatação da necessidade de
uma reconstrução afim de preservar a garantir os direitos hu-
manos e que as violações destes direitos são demasiadamente
graves, sendo relevante a proteção internacional dos direitos da
pessoa humana, relativizando a jurisdição doméstica e a sobe-
rania nacional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos5 se
constitui como marco de proteção internacional dos direitos hu-
manos, vindo a estabelecer os direitos civis e políticos e os di-
reitos econômicos, sociais e culturais, ampliando os valores de
liberdade e igualdade.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos come-
çou a se desenvolver de forma mais intensa a partir da Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos de 1948, surgindo, então,
diversos instrumentos normativos e tratados internacionais res-
ponsáveis a proteção dos direitos fundamentais de toda pessoa
humana.
Dessa forma as Nações Unidas passam a consolidar
um sistema de proteção internacional aos direitos fundamentais

4 Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limo-


nad, 3 ed. 1997, p.140.
5 A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada em 10 de dezembro
de 1948 e apresenta dispositivos de proteção aos direitos das mulheres.
188 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

por meio do reconhecimento de toda pessoa como detentora de


direitos, sem qualquer traço distintivo. Surgem ainda documen-
tos voltados a ações específicas violadoras de direitos, a exem-
plo do genocídio, da tortura, da discriminação por questões ra-
ciais, da discriminação contra as mulheres por questões de gê-
nero, da violação dos direitos das crianças, dos idosos, povos
indígenas, dos imigrantes, dentre outros.
Apesar dos avanços da proteção internacional aos di-
reitos humanos é importante ressaltar que apresentam natureza
subsidiária, sendo o direito interno brasileiro o primeiro garan-
tidor da proteção e tutela dos direitos inerentes a pessoa hu-
mana. Dessa forma, continua no âmbito interno a tutela dos di-
reitos fundamentais, mas é possível interferência da comuni-
dade internacional para suprir eventuais descumprimentos,
omissões ou deficiências.
Dentro do grande grupo de pessoas (toda e qualquer
pessoa humana) que recebem a tutela de proteção dos direitos
humanos existem grupos diferenciados que merecem o reco-
nhecimento de suas especificidades para a proteção de seus di-
reitos, por se tratarem de questões específicas que demonstram
certa condição de vulnerabilidade, carecendo de proteção espe-
cífica, como é o caso das mulheres.
Assim surge o sistema de proteção especial dos di-
reitos humanos das mulheres, tendo como base a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
a Mulher6 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher7 (Convenção de Belém do

6 Trata-se de um tratado internacional aprovado em 1979 pela Assembleia Geral


das Nações Unidas, ratificada por 188 Estados e trata da necessidade do alcance
da igualdade entre os gêneros, combatendo os atos discriminatórios contra a mu-
lher.
7 Concluída em Belém do Pará em 9 de junho de 1994 busca a erradicação de toda
João Paulo de Carvalho Barbosa | 189
Pará), sendo estes os dois tratados internacionais que se encon-
tram em vigor no direito interno brasileiro.
Em relação aos sistemas de proteção existentes na es-
fera do direito interno e aqueles existentes na esfera do direito
internacional não existe qualquer tipo de hierarquia. Tendo en-
tre ambas uma relação de complementação com o objetivo de
buscar um maior alcance da proteção dos direitos humanos da
mulher.

1. A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de


Discriminação Contra a Mulher

A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas


de Discriminação Contra a Mulher é o principal documento de
proteção aos direitos da mulher. Foi adotada pela Assembleia
Geral das Nações Unidas em 1979, ratificada por 186 Estados e
incorporada ao ordenamento jurídico do Brasil pelo Decreto Le-
gislativo n. 93, de 14 de novembro de 1983 e promulgada pelo
Decreto n. 89.406, de 1 de fevereiro de 1984.
A Convenção surgiu como resposta à reinvindicação
do movimento de mulheres, no ano de 1975, tendo como base a
primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no
México.
A respeito do processo de vinculação da norma ao
país signatário, tanto perante a comunidade internacional
quanto também a sua observância e aplicação no direito interno
veja-se o que diz Nádia de Araújo e Inês Andreiuolo acerca do
procedimento de internalização dos tratados internacionais as-
sinados pelo Brasil:

forma de violência contra a mulher, uma vez reconhecida sua vulnerabilidade e


situação de desigualdade.
190 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

No Brasil as fases de elaboração dos tratados são


identificadas, geralmente, da seguinte maneira:
negociação, assinatura, ratificação promulgação,
publicação e registro. [...]. No direito brasileiro,
como se sabe, a competência para conclusão de
tratados internacionais é do Poder Executivo. Se-
gundo a Constituição Federal – artigo 84, VIII –
compete privativamente ao Presidente da Repú-
blica celebrar tratados, convenções e atos interna-
cionais. Em seguida, o Presidente remete os trata-
dos para serem apreciados pelo Congresso Nacio-
nal, a quem cabe resolver definitivamente sobre a
sua aprovação – artigo 49, I, da Constituição. Uma
vez aprovados por meio de Decreto legislativo, os
atos internacionais voltam ao Executivo, para a ra-
tificação – momento em que ocorre a troca de notas
diplomáticas ou o depósito de ratificação no local
designado, nos casos de tratados multilaterais. A
ratificação é manifestação, também de cunho dis-
cricionário, do Poder Executivo, no sentido de que
o propósito de pactuar o tratado continua firme,
atendendo aos interesses superiores do Estado. Tal
propósito confirmado e reiterado é transmitido às
contrapartes estrangeiras, através do depósito do
instrumento de ratificação, no intuito de formali-
zar, perante elas, o início da exigibilidade do pac-
tuado, imediatamente o após o decurso de prazo
determinado pelas partes. Por fim, para aperfei-
çoar-se o ato e ter vigência no território nacional, o
Presidente da República expede um decreto de
promulgação, que é publicado, e a partir do qual,
e de quando inicia-se a sua vigência no território
nacional.8

8 A Internacionalização dos Tratados no Brasil e os Direitos Humanos. Os Direitos


Humanos e o Direito Internacional. Organização de Carlos Eduardo de Abreu
Boucault e Nadia de Araújo. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, pp. 63-113.
João Paulo de Carvalho Barbosa | 191
A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas
de Discriminação Contra a Mulher encontra-se no mesmo plano
de validade e eficácia das normas infraconstitucionais. O artigo
1 da Convenção apresenta a definição do conceito de discrimi-
nação. Veja-se:

Artigo 1 ‒ toda distinção, exclusão ou restrição ba-


seada no sexo e que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou
exercício pela mulher, independentemente de seu
estado civil, com base na igualdade do homem e
da mulher, dos direitos humanos e liberdades fun-
damentais nos campos político, econômico, social,
cultural e civil ou em qualquer outro campo.

O Brasil assume então o compromisso de combater a


discriminação de gênero, tanto na esfera pública quanto na es-
fera privada, por meio da adoção de medidas para eliminação
dessa desigualdade, buscando a eliminação de qualquer ato que
promova de forma infundada a discriminação que possa ser
praticada por qualquer pessoa, organização ou empresa.
O dispositivo normativo em questão apresenta ainda
as chamadas ações afirmativas ou discriminação positiva, no
qual é possível admitir-se certa discriminação específica, não no
intuito de segregação entre as pessoas, mas sim de reconhecer
as especificidades de cada um para que possam tratar igual-
mente os iguais e desigualmente os desiguais, buscando um
equilíbrio entre todos.
Foi editada no Brasil a Lei n. 9504, datada de 30 de
setembro de 1997 que em seu Art. 10, § 3 estabeleceu a reserva
de mínima de 30% de cada partido ou coligação para candida-
turas femininas, não obstante o referido artigo ainda prevê um
máximo de 70% para candidatura de cada sexo.
192 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

Faz-se necessário ressaltar a importância do traba-


lho, dada sua relevante função social e a forma como torna a
pessoa produtiva no meio social, retirando dali seu sustento e
sua subsistência. Dessa forma, é imprescindível que a legislação
trabalhista também atue no sentido de buscar a erradicação das
desigualdades. Nesse sentido a Lei n. 9.799 de 26 de maio de
1999, que dispõe sobre o acesso da mulher ao mercado de tra-
balho, elencando uma série de ações que são proibidas como
práticas discriminatórias e permite, ainda, a discriminação po-
sitiva, como forma de se buscar uma relação de igualdade entre
os gêneros nas relações de trabalho. Dessa forma no art. 373A,
§ único da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), acrescen-
tado pela Lei 9.799 de 1999, apresenta:

O disposto neste artigo não obsta a adoção de me-


didas temporárias que visem ao estabelecimento
das políticas de igualdade entre homens e mulhe-
res, em particular as que se destinam a corrigir as
distorções que afetam a formação profissional, o
acesso ao emprego e as condições gerais de traba-
lho da mulher.

A Organização das Nações Unidas, em sua Conven-


ção sobre a mulher trás dispositivos que tutelam e garantem o
direito das mulheres à participação na vida pública e política do
país, iguais oportunidades de emprego entre homens e mulhe-
res, inclusive reconhecendo a equiparação salarial de ambos, a
correção de estruturas sociais que fomentam desigualdade de
oportunidades trabalhistas, oportunidades de formação e capa-
citação, assim como o pleno gozo dos direitos políticos, civis,
econômicos e sociais.
Por força do princípio da isonomia previsto pelo ar-
tigo 5°, inciso I, a Constituição Federal preconiza que homens e
João Paulo de Carvalho Barbosa | 193
mulheres são iguais em direitos e obrigações e em seu artigo 7°
protege o mercado de trabalho da mulher e assegura o direito à
licença maternidade, contempla assistência gratuita aos filhos e
dependentes desde o nascimento até os seis anos de idade em
creches e pré-escolas e proíbe a diferente remuneração pelo
mesmo trabalho e diferença de critérios de admissão em razão
do sexo. Outrossim, o artigo 6° prevê a proteção à maternidade
como direito fundamental social.
Dessa forma é possível perceber que tanto a Consti-
tuição Federal de 1988 quanto a Convenção Sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher atuam
de forma convergente, buscando o alcance e efetividade dos
mesmos objetivos, tendo sido o tratado internacional perfeita-
mente recepcionado pela Constituição.

2. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e


Erradicar a Violência contra a Mulher ‒ Convenção de
Belém do Pará

Aprovada pela Assembleia Geral da Organização


dos Estados Americanos em 9 de junho de 1994 a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher faz parte do sistema de proteção dos direitos
humanos da mulher e foi incorporado ao ordenamento jurídico
brasileiro com a promulgação do Decreto presidencial n. 1.973,
de 1° de agosto de 1996.
A referida Convenção vincula o Brasil a um impor-
tante acordo de direito internacional não apenas diante do com-
promisso firmado com os Estados membros, mas também inter-
namente, sendo recepcionada pela Constituição Federal, permi-
194 O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

tindo sua aplicação e execução em seu direito doméstico . Tam-

bém conhecida como Convenção de Belém do Pará afirma em


seu preâmbulo que:

A violência contra a mulher constitui uma violação


dos direitos humanos e das liberdades fundamen-
tais e limita total ou parcialmente à mulher o reco-
nhecimento, gozo e exercício de tais direitos e li-
berdades. A violência contra a mulher é uma
ofensa à dignidade humana e uma manifestação
das relações de poder historicamente desiguais en-
tre mulheres e homens.

O dispositivo normativo reconhece a gravidade da


violência praticada contra a mulher, reconhecendo como sendo
uma violação de suas liberdades fundamentais e dos direitos

humanos . Reconhece, ainda o caráter histórico do problema


como resultado de uma relação de desigualdade entre homens
e mulheres .

A violência contra as mulheres é reconhecida como

um fenômeno capaz de afetar prejudicialmente a vida da mu-


lher em todas as suas esferas, seja na pública ou privada, seja no

seu núcleo familiar ou círculo social, em seu ambiente domés-

tico ou laboral . A Convenção ainda define a violência contra a

mulher como: Art. 1 - [... ] " qualquer ação ou conduta, baseada


no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual

ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público ou privado".

O artigo 2 da Convenção de Belém do Pará apresenta

concepção do que é a violência contra a mulher e sua abrangên-

cia. Entende que a violência contra a mulher abrange a violência

física, psicológica e sexual. Veja-se :


João Paulo de Carvalho Barbosa | 195
Artigo 2 - Entende-se que a violência contra a mu-
lher abrange a violência física, sexual e psicoló-
gica:
a. ocorrida no âmbito da família ou unidade do-
méstica ou em qualquer relação interpessoal, quer
o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou
não a sua residência, incluindo-se, entre outras for-
mas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual;
b. ocorrida na comunidade e cometida por qual-
quer pessoa, incluindo, entre outras formas, o es-
tupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres,
prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no
local de trabalho, bem como em instituições edu-
cacionais, serviços de saúde ou qualquer outro lo-
cal; e
c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus
agentes, onde quer que ocorra.

O artigo 4 da Convenção apresenta, de forma ex-


pressa, alguns dos direitos da mulher em desfrutar de todos os
seus direitos humanos e de sua liberdade, conforme percebe-se
no elenco:

Artigo 4 - Toda mulher tem direito ao reconheci-


mento, desfrute, exercício e proteção de todos os
direitos humanos e liberdades consagrados em to-
dos os instrumentos regionais e internacionais re-
lativos aos direitos humanos. Estes direitos abran-
gem, entre outros:
a. direito a que se respeite sua vida;
b. direito a que se respeite sua integridade física,
mental e moral;
c. direito à liberdade e à segurança pessoais;
d. direito a não ser submetida a tortura;
e. direito a que se respeite a dignidade inerente à
sua pessoa e a que se proteja sua família;
f. direito a igual proteção perante a lei e da lei;
196 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

g. direito a recurso simples e rápido perante tribu-


nal competente que a proteja contra atos que vio-
lem seus direitos;
h. direito de livre associação;
i. direito à liberdade de professar a própria religião
e as próprias crenças, de acordo com a lei; e
j. direito a ter igualdade de acesso às funções pú-
blicas de seu país e a participar nos assuntos pú-
blicos, inclusive na tomada de decisões.

É ainda instituído pelo artigo 6 o direito de toda mu-


lher de ser livre de qualquer tipo de discriminação e de ser es-
tereotipada por costumes sociais e culturais que supervalori-
zam o homem em detrimento da mulher e a colocam em situa-
ção de desigualdade.
No terceiro capítulo da Convenção é tratado sobre os
deveres dos Estados signatários como exemplo de abster-se de
atos ou práticas de violência contra a mulher, adotar com zelo
tanto medidas preventivas que incidam sobre a não ocorrência
desse tipo de violência quanto investigar e punir os atos come-
tidos, trazer para seu ordenamento jurídico interno tipos penais
que sancionem a lesão ao bem jurídico, adotar medidas que pro-
tejam a vítima do agressor no sentido de se fazer cessar o ciclo
de violência, adotar mecanismos que possam restaurar a digni-
dade da mulher vítima de violência, dentre outros.
O artigo 7 ainda exige providências a serem adotadas
de imediato, exemplificadas no parágrafo anterior, enquanto o
artigo 8 insere providências a serem adotadas de forma grada-
tiva, de efeito programático, ainda com objetivo de combater a
violência contra a mulher.
Estão entre as providências do artigo 8, a serem ado-
tadas progressivamente, a promoção e divulgação dos direitos
da mulher, a conscientização social, a prestação de serviços es-
pecializados voltados à mulher, a adoção de políticas públicas
João Paulo de Carvalho Barbosa | 197
que promovam programas de educação tanto públicos quanto
privados, programas de reabilitação e treinamento para reinte-
gração da mulher vítima de violência, assegurar a pesquisa es-
tatística para o controle e frequência da violência e promover a
cooperação internacional com intercâmbio de ideias e experiên-
cias em programas sobre o tema, dentro outros.
O artigo 12 prevê um sistema de petição no qual
qualquer pessoa poderá apresentar denúncia ou queixa sobre
qualquer violação das normas que devem ser providenciadas
de imediato, aquelas tratadas no artigo 7, não abrangendo as
normas do artigo 8, aquelas que devem ser gradativamente in-
corporadas no ordenamento jurídico interno. Veja-se o artigo
12:

Artigo 12 - Qualquer pessoa ou grupo de pessoas,


ou qualquer entidade não-governamental juridi-
camente reconhecida em um ou mais Estados
membros da Organização, poderá apresentar à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos
petições referentes a denúncias ou queixas de vio-
lação do artigo 7 desta Convenção por um Estado
Parte, devendo a Comissão considerar tais peti-
ções de acordo com as normas e procedimentos es-
tabelecidos na Convenção Americana sobre Direi-
tos Humanos e no Estatuto e Regulamento da Co-
missão Interamericana de Direitos Humanos, para
a apresentação e consideração de petições.

Percebe-se que as providências do artigo 8 não po-


dem ser objeto de demanda por denúncia ou queixa previstas
no sistema de petição do artigo 12 para à Comissão Interameri-
cana de Direitos Humanos, diferenciando-se, assim, do pacto da
ONU, restrito ao sistema de relatórios.
198 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

Ainda em consonância com a Convenção de Belém


do Pará o Brasil tem como uma de suas obrigações, assim como
os demais países signatários, promover a instrumentalização ju-
rídica e o aparelhamento de serviços que possam não somente
tutelar o bem jurídico, mas ainda facilitar o acesso a mulher ví-
tima a uma rede de serviços de proteção e acolhimento, de re-
paração do dano, de afastamento do agressor para que se cesse
o ciclo de violência e de reinserção da mulher no meio social
com a restauração de sua dignidade e seus direitos sociais fun-
damentais.
Dessa forma é possível perceber que a norma inter-
nacional se encontra integrada a norma nacional e que a mulher
pode recorrer ao poder judiciário para que se possa valer a apli-
cação da norma externa, ressaltando que o Brasil por meio do
Decreto Legislativo n. 89, de 3 de dezembro de 1998, reconhece
a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos
Humanos.

3. A Lei Maria da Penha como medida combativa a violência


doméstica e familiar contra a mulher e a responsabilidade
brasileira na perspectiva internacional

É relevante destacar a importância do caso Maria da


Penha, por se tratar de um episódio emblemático que contri-
buiu para a compreensão do fenômeno da violência contra a
mulher e por ter fomentado discussões sobre o assunto. No ano
de 1983 a cearense Maria da Penha Fernandes sofreu duas ten-
tativas de homicídio por parte de seu cônjuge Marco Antônio
Herredia Viveiros, o qual foi condenado duas vezes nos anos de
1991 e 1996, respectivamente. Mesmo com a decisão condenató-
ria advinda do Tribunal do Júri Herredia nunca havia sido
preso para cumprimento da sua pena.
João Paulo de Carvalho Barbosa | 199
Apenas em 31 de outubro de 2002 Marco Antônio
Herredia foi preso, 19 anos após balear a sua esposa e entre ou-
tras medidas recomendadas pela Comissão Interamericana era
a de que fosse realizada a notificação compulsória, em todo o
território nacional, de casos relacionados a violência doméstica
e familiar contra a mulher que for atendida em serviços de as-
sistência e amparo a saúde, independente se na esfera pública
ou privada.
Maria da Penha recorreu à Justiça Internacional,
apresentando inicialmente o caso à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, por meio de ajuda do Centro para a Justiça
e o Direito Internacional (CEJIL) e do Comitê Latino-Americano
e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM).
No ano de 2001 o Brasil foi responsabilizado por omissão e ne-
gligência no que diz respeito à violência doméstica pela Orga-
nização dos Estados Americanos (OEA)9.
A OEA recomendou que o Brasil adotasse medidas
públicas que inibissem as agressões em desfavor das mulheres
ocorridas no âmbito doméstico, tendo assim ganhado repercus-
são de cunho internacional e culminado na criação da Lei
11.340/06, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, em
homenagem a toda trajetória de luta da senhora Penha.
A lei n°. 11.340/06 não só trouxe a previsão de penas
mais rígidas para os agressores como também criou mecanis-
mos com intuito de redução e prevenção da violência domés-
tica, estabelecendo, inclusive, medidas assistenciais. A Política
Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (Se-
cretaria de Políticas para as Mulheres, 2011), busca, por meio de

9 Vicentim, Aline. A Trajetória Jurídica Internacional até a Formação da Lei brasi-


leira no Caso Maria da Penha. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edi-
coes/revista-80/a-trajetoria-juridica-internacional-ate-formacao-da-lei-brasileira-
no-caso-maria-da-penha/. Acesso em 23/06/2022.
200 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

programas nacionais, o amparo às mulheres em situação de vi-


olência. O propósito é a construção de ações que busquem a
igualdade de gênero, garantindo serviço amplo e humanizado
nos variados setores de atendimento.
Ainda sobre o advento da Lei n°. 11.340 de 2006, des-
tacam-se sete inovações introduzidas pela Lei Maria da Penha,
quais sejam:

1) Mudança de paradigma no enfrentamento da


violência contra a mulher A violência contra
mulher era, até o advento da Lei “Maria da Pe-
nha”, tratada como uma infração penal de me-
nor potencial ofensivo, nos termos da Lei
9099/95. Com a nova lei passa a ser concebida
como uma violação a direitos humanos, na me-
dida em que a lei reconhece que “a violência
doméstica e familiar contra a mulher constitui
uma das formas de violação dos direitos huma-
nos” (artigo 6º), sendo expressamente vedada a
aplicação da Lei 9.099/95.
2) Incorporação da perspectiva de gênero para
tratar da violência contra a mulher na interpre-
tação da lei devem ser consideradas as condi-
ções peculiares das mulheres em situação de vi-
olência doméstica e familiar. É prevista a cria-
ção de Juizados de Violência Doméstica e Fami-
liar contra a Mulher, com competência cível e
criminal, bem como atendimento policial espe-
cializado para as mulheres, em particular nas
Delegacias de Atendimento à Mulher.
3) Incorporação da ótica preventiva, integrada e
multidisciplinar Para o enfrentamento da vio-
lência contra a mulher, a Lei “Maria da Penha”
consagra medidas integradas de prevenção,
por meio de um conjunto articulado de ações
da União, Estados, Distrito Federal, Municípios
e de ações não governamentais. Sob o prisma
João Paulo de Carvalho Barbosa | 201
multidisciplinar, determina a integração do Po-
der Judiciário, Ministério Público, Defensoria
Pública, com as áreas da segurança pública, as-
sistência social, saúde, educação, trabalho e ha-
bitação. Realça a importância da promoção e
realização de campanhas educativas de pre-
venção da violência doméstica e familiar contra
a mulher, bem como da difusão da Lei e dos
instrumentos de proteção dos direitos huma-
nos das mulheres. Acresce a importância de in-
serção nos currículos escolares de todos os ní-
veis de ensino para os conteúdos relativos a di-
reitos humanos, à equidade de gênero e de
raça, etnia e ao problema da violência domés-
tica e familiar contra a mulher. Adiciona a ne-
cessidade de capacitação permanente dos
agentes policiais quanto às questões de gênero
e de raça e etnia.
4) Fortalecimento da ótica repressiva Além da
ótica preventiva, a Lei “Maria da Penha” inova
a ótica repressiva, ao romper com a sistemática
anterior baseada na Lei 9.099/95, que tratava da
violência contra a mulher como uma infração
de menor potencial ofensivo, sujeita à pena de
multa e pena de cesta básica. De acordo com a
nova Lei, é proibida, nos casos de violência do-
méstica e familiar contra a mulher, de penas de
cesta básica ou outras de prestação pecuniárias,
bem como a substituição de pena que implique
o pagamento isolado de multa. Afasta-se, as-
sim, a conivência do Poder Público com a vio-
lência contra a mulher.
5) Harmonização com a Convenção Interameri-
cana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violên-
cia contra a Mulher de Belém do Pará A Lei
“Maria da Penha” cria mecanismos para coibir
a violência doméstica e familiar contra a mu
202 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

lher em conformidade com a Convenção Inte-


ramericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher (“Convenção de Be-
lém do Pará”). Amplia o conceito de violência
contra a mulher, compreendendo tal violência
como “qualquer ação ou omissão baseada no
gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial”, que ocorra no âmbito da unidade
doméstica, no âmbito da família ou em qual-
quer relação íntima de afeto.
6) Consolidação de um conceito ampliado de fa-
mília e visibilidade ao direito à livre orientação
sexual A nova Lei consolida, ainda, um con-
ceito ampliado de família, na medida em que
afirma que as relações pessoais a que se destina
independem da orientação sexual. Reitera que
toda mulher, independentemente de orienta-
ção sexual, classe, raça, etnia, renda, cultura, ní-
vel educacional, idade e religião tem o direito
de viver sem violência.
7) Estímulo à criação de bancos de dados e esta-
tísticas por fim, a nova Lei prevê a promoção
de estudos e pesquisas, estatísticas e outras in-
formações relevantes, com a perspectiva de gê-
nero, raça e etnia, concernentes à causa, às con-
sequências e à frequência da violência domés-
tica e familiar contra a mulher, com a sistema-
tização de dados e a avaliação periódica dos re-
sultados das medidas adotadas. Na visão de
Leila Linhares Barsted: “O balanço de mais de
uma década no enfrentamento da violência
contra as mulheres no Brasil revela o impor-
tante papel dos movimentos de mulheres no
diálogo com o Estado em suas diferentes di-
mensões. (...) Não há dúvidas de que, ao longo
das três últimas décadas, o movimento de mu-
lheres tem sido o grande impulsionador das
João Paulo de Carvalho Barbosa | 203
políticas públicas de gênero, incluindo aquelas
no campo da prevenção da violência. Mas, ape-
sar das conquistas obtidas, é inegável a persis-
tência da violência doméstica e sexual contra a
mulher no Brasil.”10

Dessa forma é possível compreender a intenção le-


gislativa de se formar uma rede de proteção à mulher vítima de
violência doméstica e familiar, levando em consideração a con-
dição de vulnerabilidade da mulher perante seu agressor. Veja-
se . William Paiva Marques Júnior11:

Surgida com o escopo de criar mecanismos para


coibição e prevenção da violência doméstica e fa-
miliar contra a mulher, dispondo sobre a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
praticadas em detrimento do ser feminino; e esta-
belecendo medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e fa-
miliar (art. 1º), a Lei Maria da Penha (Lei N°.
11.340/200654), representou importante avanço na
afirmação dos direitos fundamentais das mulheres
em nosso país, historicamente subjugadas ao ho-
mem, na evolução histórica da sociedade machista
e patriarcal brasileira, principalmente nas regiões
menos desenvolvidas social e economicamente,
onde o poder de mando exercido pelo homem

10 Barsted, Leila L. A Violência contra as mulheres no Brasil e a Convenção de Belém


do Pará dez anos depois. O Progresso das Mulheres no Brasil, Brasília, Cepia Ford
Foundation, 2006, p.288.
11 Aspectos jurídico-hermenêuticos na análise literária de elementos dialógicos na
interface de Dom Casmurro de Machado de Assis e São Bernardo de Graciliano
Ramos. In: CONPEDI/UFF (Universidade Federal Fluminense). (Org.). Aspectos
jurídico-hermenêuticos na análise literária de elementos dialógicos na interface
de Dom Casmurro de Machado de Assis e São Bernardo de Graciliano Ramos. 01ª
ed. Florianópolis: FUNJAB, 2012.
204 | O Direito Internacional e a proteção aos direitos humanos da mulher

ainda é mais exacerbado e gerador de diversos


conflitos domésticos.

Observa-se, então, a real importância da Lei Maria da


Penha como instrumento de afirmação dos direitos da mulher,
como medida combativa à estrutura machista e patriarcal bra-
sileira, sendo importante ferramenta de repressão e prevenção
da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Considerações finais

A busca pela igualdade de gênero e pelo combate à


discriminação e toda forma de violência contra a mulher é cada
vez mais uma preocupação internacional, dada a gravidade da
violação dos direitos das mulheres e à posição de vulnerabili-
dade e desigualdade que a mulher historicamente ocupa em re-
lação ao homem dentro da sociedade.
O ordenamento jurídico interno brasileiro também se
preocupa em proteger os direitos humanos da mulher, e recep-
ciona e incorpora os Tratados e Convenções internacionais ao
seu direito doméstico. O próprio texto constitucional apresenta
o direito fundamental à igualdade como essencial para o exer-
cício dos direitos fundamentais sociais das pessoas.
Não obstante a existência de dispositivos normativos
que protejam a mulher de toda a forma de violência ou discri-
minação percebe-se que a norma não alcança o seu real objetivo,
uma vez que para tornar-se realidade fática é preciso ainda um
trabalho de desconstrução histórico-social do pensamento cole-
tivo herdado pela cultura patriarcal que tem se apresentado de
forma opressiva às mulheres.
Por meio desta pesquisa foram analisados dois ins-
trumentos internacionais de proteção dos direitos humanos da
João Paulo de Carvalho Barbosa | 205

mulher que se encontram em vigor no Brasil : A Convenção So-

bre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra

a Mulher e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e


Erradicar a Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém

do Pará. Percebe -se a perfeita integração da norma internacio-


nal à norma nacional, porém carece de efetiva concretização no

plano concreto, de eficácia material da produção de seus efeitos .

Além da busca pela atuação do judiciário brasileiro

em proteção da mulher é possível que se apresente denúncia ou

queixa à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, con-


forme lhes é assegurado pela Convenção de Belém do Pará e a

Corte internacional poderá intervir na soberania em nome da

preservação dos direitos humanos, caso se comprove omissão


do Estado signatário .

Ainda se faz necessária a realização de estudos, pro-

gramas, políticas públicas que abordem o tema e possam con-


tribuir de alguma forma com a concretização material do direito

fundamental à igualdade como medida combativa à violência


de gênero contra a mulher, sendo necessária a superação de

construções históricas que perpassam e se desenvolvem ao


longo dos anos .

Referências

BARSTED , Leila L. A Violência contra as mulheres no Brasil e a

Convenção de Belém do Pará dez anos depois. O Progresso das


Mulheres no Brasil, Brasília, Cepia Ford Foundation, 2006.

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João Paulo de Carvalho Barbosa | 207
polis: FUNJAB, 2012, v. 01. Disponível em: http://www.publicadi-
reito.com.br/artigos/?cod=5e751896e527c862. Acesso em: 28 jun.
2022.

INTERNATIONAL LAW AND THE PROTECTION OF


WOMEN'S HUMAN RIGHTS
Abstract: The International Protection of Human Rights gains
strength in the post-World War II scenario, given the seriousness of
the violations of fundamental rights and the atrocities committed.
Recognizing the specificities and vulnerability of women, the need for
specific protection emerges. Among the documents that stand out in
the International Protection of Women's Human Rights, the Conven-
tion on the Elimination of All Forms of Discrimination Against
Women and the Inter-American Convention on the Prevention, Pun-
ishment and Eradication of Violence Against Women (Convention of
Belém do Pará). In this way, Brazil assumes an international commit-
ment in the fight against violence against women and against all
forms of discrimination based on gender (among others) both in the
public and private spheres. Despite the creation of Law no. 11.340 of
2006, it is still possible to observe the need to apply effective public
policies in order to deconstruct the patriarchy that has been histori-
cally and socially perpetuated over time and to achieve the realization
of the fundamental right to gender equality.

Keywords: Women's human rights. Genre. Violence.


CAPÍTULO VIII.
O DIREITO FUNDAMENTAL À BOA
ADMINISTRAÇÃO NO ÂMBITO DA
UNIÃO EUROPEIA: UMA ANÁLISE
VOLTADA PARA OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS SOCIAIS

Raoni Marques Oliveira*

Resumo: Propõe-se a estudar o direito à boa administração, consa-


grado no artigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais da União Eu-
ropeia, a fim de verificar se seu conteúdo, aparentemente focado ape-
nas em direitos de primeira dimensão, pode abranger também direi-
tos fundamentais sociais. A partir da análise do histórico, dos sujeitos
e do conteúdo de tal direito, chega-se à conclusão de que a Adminis-
tração só será “boa” quando se organizar de forma a garantir direitos
sociais a seus cidadãos. Utiliza-se o método hipotético-dedutivo. A
pesquisa é qualitativa, com finalidade descritiva e exploratória, e a
técnica é bibliográfica e documental.

Palavras-chave: Direito à boa administração. União Europeia. Direi-


tos fundamentais sociais.

Introdução

Não há dúvida de que o Brasil passa por um mo-


mento de rediscussão do papel do Estado, na medida em que,
nos últimos anos, foram aprovadas reformas que impactam di-
retamente o modo como ele provê aos seus cidadãos os direitos

* Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Di-


reito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Analista pro-
cessual do Ministério Público Federal. E-mail: raoni_marques@hotmail.com.
Raoni Marques Oliveira | 209
fundamentais de segunda dimensão, os chamados direitos so-
ciais. Podem-se citar como exemplos a Emenda Constitucional
nº 95, de 15 de dezembro de 2016, que limitou por vinte anos os
gastos públicos (popularmente conhecida como “Emenda do
Teto”), e a Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro
de 2019, que fez profundas mudanças no sistema de previdên-
cia social. Além disso, atualmente tramita no Congresso Nacio-
nal a Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020, que pre-
tende fazer grandes alterações na estrutura da Administração
Pública.
Neste cenário de profundos e acalorados debates,
faz-se necessário observar como outros ordenamentos jurídicos
têm lidado com o papel do Estado enquanto provedor das ne-
cessidades básicas de seus cidadãos.
Em se tratando de Europa, o direito à chamada “boa
administração” recebeu atenção especial, a ponto de ter sido
elevado à categoria de direito fundamental, conforme previsto
de forma expressa no artigo 41 da Carta de Direitos Fundamen-
tais da União Europeia.
Uma leitura apressada de tal dispositivo pode levar
à impressão de que esse direito fundamental limita-se a assegu-
rar que a Administração respeite os direitos de liberdade dos
indivíduos e não cometa abusos contra eles. Seria, portanto,
mais um direito fundamental de primeira dimensão.
Existem, contudo, algumas peculiaridades, como a
redação não exaustiva do artigo 41 e o novo paradigma que vem
norteando o papel da Administração Pública, que levam a ques-
tionar a possibilidade de que o conteúdo de tal direito funda-
mental imponha a esta que garanta também os direitos sociais.
Desse modo, a questão que se propõe a investigar e
responder é a seguinte: o conteúdo do direito à boa administra
O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
210 | uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

ção previsto na Carta de Direitos Fundamentais da União Euro-


peia pode receber intepretação extensiva, de modo a englobar
também os direitos sociais?
Para tanto, analisa-se, no primeiro momento, o de-
senvolvimento histórico do direito à boa administração no con-
texto europeu, destacando-se o novo paradigma de Adminis-
tração Pública, voltada para o cidadão em primeiro lugar. Em
seguida, passa-se a examinar tal direito fundamental em alguns
pormenores, quais sejam, seus sujeitos, tanto ativo como pas-
sivo, e seu conteúdo.
A partir dos pressupostos estabelecidos nos dois pri-
meiros capítulos, chega-se ao problema central: a relação do di-
reito à boa administração com os direitos fundamentais sociais.
Quanto à metodologia, as considerações feitas ante-
riormente mostram que se utiliza o método hipotético-dedu-
tivo, pois, a partir de algumas premissas, desenvolvidas ao
longo da pesquisa, são deduzidas algumas conclusões. Em se
tratando de abordagem metodológica, a pesquisa é qualitativa,
na medida em que não pretende mensurar quantitativamente o
fenômeno analisado, mas se aprofundar nas premissas que gui-
arão à resposta da pergunta-problema.
No que diz respeito à finalidade, a pesquisa tem ca-
ráter descritivo, pois descreve o direito à boa administração em
diversos aspectos, e exploratório, na medida em que, a partir da
descrição do tal direito, explora o problema da sua relação com
os direitos sociais.
Além disso, o desenvolvimento de toda a pesquisa é
feito a partir da análise de livros e artigos doutrinários, tanto
brasileiros como europeus, bem como da legislação e da juris-
prudência europeias e de alguns estados-membros. Assim, uti-
liza-se como técnica a pesquisa bibliográfica e documental.
Raoni Marques Oliveira | 211
1. O surgimento do direito à boa administração na União
Europeia: um novo paradigma de Administração Pública,
centrada no cidadão

O direito à boa administração foi consagrado no ar-


tigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia,
documento proclamado em dezembro de 2000 pelo Parlamento
Europeu, pelo Conselho da União Europeia e pela Comissão
Europeia.
Tal positivação foi resultado de um longo processo
histórico, que remonta à própria constituição da União Euro-
peia pelo Tratado de Maastricht, em 1992. Aquele documento já
afirmava que “a transparência do processo decisório reforça o
carácter democrático das Instituições e a confiança do público
na Administração”.
O papel da jurisprudência do Tribunal de Justiça da
União Europeia – instituição anterior à própria formalização da
União, é bom frisar – também foi fundamental neste processo
de reconhecimento de direitos relativos à boa conduta adminis-
trativa. A título de exemplo, deve-se mencionar acórdão profe-
rido em 21 de novembro de 1991, no processo C-269/90, o qual
reconheceu que, em determinado processo administrativo, a
instituição pública responsável não observou o dever de “exa-
minar, com cuidado e imparcialidade, todos os elementos rele-
vantes do caso em apreço, nem o direito de o interessado a ser
ouvido, nem a obrigação de uma fundamentação suficiente da
decisão tomada”.
Esses dois exemplos emblemáticos servem para ilus-
trar o que foi afirmado anteriormente: o surgimento do direito
à boa administração na União Europeia tem início em momento
bem anterior ao artigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais,
sendo este apenas o produto de uma construção histórica que
O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
212 | uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

envolveu o paulatino reconhecimento de diversas garantias


para os cidadãos europeus frente à Administração, seja por
meio de tratados ou de decisões do Tribunal de Justiça.
A esse respeito, Clarissa Sampaio Silva (2019, p. 180)
defende tratar-se da consolidação do entendimento jurispru-
dencial sobre o que se entende por boa administração. Também
adepto de tal posicionamento, Jacqué (2011, p. 79) sustenta que
a efetiva positivação de tal direito fundamental, aparentemente
desnecessária, justificou-se, em primeiro lugar, pelo fato de a
atividade administrativa da União ter sido fragmentada em um
grande número de decisões individuais, como a autorização
para a introdução, no mercado, de novos medicamentos ou or-
ganismos geneticamente modificados, a certificação de aerona-
ves, dentre outros. Tal descentralização certamente demanda
que haja diretrizes claras e sistematizadas sobre como os agen-
tes da União devem conduzir a atividade administrativa.
Jacqué também menciona o papel do Provedor de
Justiça Europeu1, que, ao apreciar as denúncias que recebia, cor-
riqueiramente formulava propostas para o funcionamento da
atividade administrativa, tendo certamente grande influência
na positivação desse direito.
Além de examinar tal processo histórico, é essencial
também compreender o novo paradigma da Administração Pú-
blica, cujo espírito está indiscutivelmente presente no direito
fundamental em questão.
A ideia de uma nova perspectiva pode parecer exa-
gerada, especialmente considerando que o conceito de Estado

1 De acordo com o Tratado de Maastricht e com a Carta de Direitos Fundamentais,


o Provedor de Justiça tem poderes para receber queixas apresentadas por qual-
quer cidadão da União Europeia ou qualquer pessoa física ou jurídica com resi-
dência ou sede estatutária num estado-membro, que sejam relacionadas a casos
de má administração na atuação das instituições ou organismos comunitários.
Raoni Marques Oliveira | 213
social não é novo. Contudo, há que se ter em mente que o sim-
ples fato de um Estado garantir direitos fundamentais sociais a
seus cidadãos não necessariamente significa que a atividade ad-
ministrativa seja centrada neles.
Ao tratar deste assunto, Muñoz (2012, p. 14 e 25) sus-
tenta que o modelo tradicional de Estado Social coloca o serviço
público, e não o cidadão em si, no centro da Administração Pú-
blica e do Direito Administrativo. A consequência disso seria
reduzir os cidadãos a indivíduos inertes que apenas recebem
bens e serviços públicos por parte da Administração, a qual, de
forma unilateral, define o que é o interesse público, ou seja, o
que é melhor para os seus administrados. Estes, por sua vez,
intimidados e indefesos diante do poder estatal e da posição
carregada de privilégios e prerrogativas que as autoridades
ocupam, simplesmente aceitam suas determinações.
Em oposição a tal modelo, Muñoz (2012, p. 15) de-
fende que o Direito Administrativo moderno adota uma pos-
tura mais humana e dinâmica, colocando o cidadão no centro,
de modo a dar-lhe protagonismo. Assim, o conceito de interesse
público e bem comum não pode mais ser definido de forma uni-
lateral e imposto pela Administração, sendo essencial a efetiva
participação dos diversos segmentos sociais, a qual deve ser ga-
rantida da forma mais plural possível. Desse modo, o Estado
passa a ser administrado a partir da ação articulada entre auto-
ridades públicas e atores sociais.
Não basta, portanto, a Administração simplesmente
prestar serviços públicos ao cidadão; é preciso ter um verda-
deiro compromisso com a melhoria permanente e integral de
suas condições de vida, o que só será possível se sua efetiva par-
ticipação for garantida. Esta, a propósito, servirá como forma
bastante eficaz de evitar desvio e abuso de poder por parte das
autoridades. Não é à toa que Muñoz (2012, p. 17) afirma que, no
214 | O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

novo Direito Administrativo, o instituto da motivação assume


especial relevância.
Ideia semelhante é defendida por Valter Alves Car-
valho (2013, p. 40), que sustenta que o Direito Administrativo
esteja “vinculado à cidadania”. Um dos aspectos dessa vincula-
ção seria a impossibilidade de o interesse público ser usado
como um trunfo contra os interesses de um particular, devendo
as prerrogativas da Administração obedecerem ao contraditó-
rio, à ampla defesa e ao devido processo legal.
Na mesma linha, Mendonça (2019, p. 35-36) afirma
que a nova perspectiva do Direito Administrativo volta-se
muito para a boa tomada de decisões, em detrimento do modelo
tradicional, no qual se privilegiava a revisão judicial de decisões
ilegais. Tal mudança afeta em especial as condutas discricioná-
rias, que, além de atender de forma adequada ao interesse cole-
tivo, precisam observar de forma especial os direitos das pes-
soas afetadas.
Moreira Neto (2014, p. 213), por sua vez, sustenta tra-
tar-se da mudança “de uma administração imperial para uma
administração cidadã”, que se livra dos traços absolutistas e au-
toritários da Administração Pública tradicional e assegura o pri-
mado do indivíduo e da sociedade, servindo como instrumento
político para promover o bem-estar das pessoas.
Essas reflexões apontam para um aspecto fundamen-
tal do novo paradigma aqui retratado: a atividade administra-
tiva, ainda que em tese tenha sempre o cidadão como destina-
tário final, jamais poderá ser um fim em si mesma, afinal a Ad-
ministração Pública existe em função das necessidades das pes-
soas. Assim, é inconcebível que, em nome de um suposto inte-
resse público, a Administração simplesmente ignore as reais de-
mandas do cidadão, tratando-o de forma arbitrária e insensível.
Raoni Marques Oliveira | 215
Sobre a utilização da supremacia do interesse pú-
blico para fundamentar arbitrariedades, Marques Júnior (2015,
p. 291) destaca que a interpretação tradicional daquele princípio
mostra-se insuficiente no atual estágio de reconhecimento de
direitos fundamentais e democratização das relações estatais.
Assim, deve ele ser relido “sob o prisma da Administração Pú-
blica consensual e paritária que adote condutas democráticas,
dialógicas e dialéticas com os cidadãos”, resultando no au-
mento das garantias do administrado.
O novo espírito administrativista tem influência di-
reta sobre o artigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais, na
medida em que este se desenvolve a partir tanto da jurispru-
dência do Tribunal de Justiça Europeu como da atividade do
Provedor de Justiça Europeu, conforme já demonstrado. Assim,
o direito à boa administração surge a partir das demandas e
problemas reais do dia-a-dia das pessoas, levados às cortes e aos
órgãos de fiscalização. É inegável, portanto, que há um forte
componente de participação popular na sua origem.
Essa peculiaridade no surgimento de tal direito fun-
damental reforça a legitimidade da Carta e evidencia um forte
compromisso desta com o novo paradigma do Direito Adminis-
trativo, o qual certamente deverá nortear sua interpretação. Tal
diretriz será fundamental para resolver o problema central
desta pesquisa.
Para encerrar essas considerações, transcreve-se um
trecho do trabalho de Muñoz que bem resume a nova perspec-
tiva administrativista que foi exposta:

La buena administración de instituciones públicas


es un derecho ciudadano, de naturaleza funda-
mental. ¿Por qué se proclama como derecho fun-
damental por la Unión Europa?. Por una gran ra
216 | O direito fundamental
uma análise
à boa administração no âmbito da União Europeia:
sociais
voltada para os direitos fundamentais

zón que reposa sobre las más altas argumentacio-


nes del pensamento democrático: en la democra-
cia, las instituciones políticas no son de propiedad
de políticos o altos funcionarios, sino que son del
dominio popular, son de los ciudadanos, de las
personas de carne y hueso que día a día, con su
esfuerzo por encarnar los valores cívicos y las cua-
lidades democráticas, dan buena cuenta del tem-
ple democrático em la cotidianeidad. (MUÑOZ,
2012, p. 30)

Trata-se, portanto, em síntese, de uma Administra-


ção Pública comprometida com a verdadeira democracia, na
qual as instituições públicas são de fato conduzidas pelo povo
e para o povo.

2. Sujeitos e conteúdo do direito à boa administração no


contexto europeu

Uma vez apresentado o histórico de desenvolvi-


mento do direito à boa administração na União Europeia, faz-
se necessário identificar seus sujeitos e tecer algumas conside-
rações acerca de seu conteúdo. Para tanto, é preciso primeiro
transcrever o artigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais:

Artigo 41º
Direito a uma boa administração
1. Todas as pessoas têm direito a que os seus as-
suntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e
organismos da União de forma imparcial, equita-
tiva e num prazo razoável.
2. Este direito compreende, nomeadamente:
a) O direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes
de a seu respeito ser tomada qualquer medida in-
dividual que a afete desfavoravelmente;
Raoni Marques Oliveira | 217
b) O direito de qualquer pessoa a ter acesso aos
processos que se lhe refiram, no respeito dos legí-
timos interesses da confidencialidade e do segredo
profissional e comercial;
c) A obrigação, por parte da administração, de fun-
damentar as suas decisões.
3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por
parte da Comunidade, dos danos causados pelas
suas instituições ou pelos seus agentes no exercício
das respectivas funções, de acordo com os princí-
pios gerais comuns às legislações dos Estados-
Membros.
4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se diri-
gir às instituições da União numa das línguas ofi-
ciais dos Tratados, devendo obter uma resposta na
mesma língua. (UNIÃO EUROPEIA, 2010)

2.1. Sujeitos

Quanto aos sujeitos, passa-se a abordar primeiro os


beneficiários. A questão que naturalmente se apresenta é: o di-
reito à boa administração tem como titulares apenas os cidadãos
europeus ou seu alcance subjetivo é mais amplo?
Jacqué (2011, p. 81) faz algumas ponderações sobre a
questão. Por um lado, o artigo 41 está situado dentro do Título
V, que trata da Cidadania, o que poderia levar à conclusão de
que se aplica somente aos cidadãos europeus. Por outro, sua re-
dação não é restritiva, adotando expressões como “todas as pes-
soas” e “qualquer pessoa”.
Há duas razões pelas quais a tese do alcance máximo
mostra-se mais adequada. A primeira está ligada a um brocardo
clássico da hermenêutica jurídica: ubi lex non distinguit nec nos
distinguere debemus (“onde a lei não distingue, não devemos dis-
tinguir”, em tradução livre). Assim, se o artigo sob análise não
O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
218 | uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

faz qualquer distinção ao determinar seus beneficiários, utili-


zando expressões que denotam alcance amplo, não há motivo
razoável para reduzir seus titulares apenas a pessoas físicas e
jurídicas europeias.
A segunda razão diz respeito à dinâmica das relações
econômicas contemporâneas. É notório que a União Europeia e
seus estados-membros têm relações comerciais intensas com
todo o planeta, além de receber um intenso fluxo de pessoas de
fora, que vão àquele continente com os mais diversos objetivos,
sejam de caráter temporário ou definitivo.
Assim, é significativo o número de não-europeus que
poderão ter contato com a Administração Pública, não sendo
razoável alijá-los desse direito. Ao defender a ampla abrangên-
cia, Jacqué menciona tanto pessoas físicas como jurídicas, inde-
pendente de nacionalidade, chegando a afirmar que uma em-
presa com sede fora da Europa poderá invocar esse direito em
suas relações com a administração da União.
Definidos os beneficiários, há que se tratar da ques-
tão de quem seriam os devedores do direito à boa administra-
ção. O primeiro passo é analisar o artigo 51 da Carta:

Artigo 51º
Âmbito de aplicação
1. As disposições da presente Carta têm por desti-
natários as instituições, órgãos e organismos da
União, na observância do princípio da subsidiari-
edade, bem como os Estados-Membros, apenas
quando apliquem o direito da União. Assim
sendo, devem respeitar os direitos, observar os
princípios e promover a sua aplicação, de acordo
com as respetivas competências e observando os
limites das competências conferidas à União pelos
Tratados.
Raoni Marques Oliveira | 219
2. A presente Carta não torna o âmbito de aplica-
ção do direito da União extensivo a competências
que não sejam as da União, não cria quaisquer no-
vas atribuições ou competências para a União,
nem modifica as atribuições e competências defi-
nidas pelos Tratados. (UNIÃO EUROPEIA, 2010)

A literalidade do dispositivo acima não deixa muito


espaço para discussão: a Carta de Direitos Fundamentais obriga
as instituições, órgãos e organismos da União Europeia, assim
como os estados-membros, quando aplicarem o direito da
União. Há, contudo, algumas questões que merecem uma refle-
xão mais aprofundada.
Na prática, em muitas situações haverá uma linha tê-
nue separando o direito nacional do direito europeu, na medida
em que estes muitas vezes estarão bem próximos, quiçá até
coincidindo. Uma das razões para isso é o próprio item 3 do já
transcrito artigo 41, que, ao definir que a responsabilidade civil
deve acontecer “de acordo com os princípios gerais comuns às
legislações dos Estados-Membros”, aponta para uma adequa-
ção do ordenamento jurídico interno destes às normas da
União.
Clarissa Sampaio Silva (2019, p. 183-184) aduz que os
ordenamentos jurídicos português e espanhol não consagram
de forma explícita um direito fundamental à boa administração,
mas preveem diversos meios práticos de sua concretização, ao
trazer várias disposições normativas que coincidem com o teor
do artigo 41. De acordo com a autora, os caminhos institucionais
para assegurar a observância desse direito variam em função
das peculiaridades dos dois estados, mas a presença da ideia de
boa administração é inegável.
No caso específico da Espanha, um passo mais ou-
sado foi dado: há precedentes da Suprema Corte invocando o
O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
220 | uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

artigo 41 como fundamento. Ao proferir a sentença STS


6895/2008 em 19 de novembro de 2008, aquele Tribunal afirmou
expressamente que a exigência de motivação dos atos adminis-
trativos estava prevista tanto no ordenamento jurídico espanhol
como no conteúdo do direito à boa administração constante da
Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. A mesma
fundamentação foi usada na sentença STS 5190/2010, de 15 de
outubro de 2010, também para tratar da motivação administra-
tiva.
O fato é que, independentemente da posição que se
adote acerca dessas nuances quanto às repercussões do artigo
41 da Carta para os estados-membros, não há dúvida de que
este certamente deverá servir pelo menos como norte interpre-
tativo na aplicação do Direito Administrativo nos estados euro-
peus.

2.2. Conteúdo

No que diz respeito ao conteúdo, a redação do artigo


41 mostra de forma muito clara o que caracteriza uma boa ad-
ministração: impessoalidade, imparcialidade, equidade, celeri-
dade, eficiência, respeito ao contraditório e à ampla defesa,
transparência, decisões motivadas, ser acessível aos cidadãos e
a possibilidade de ser responsabilizada por seus atos que gerem
dano.
Tais características representam padrões mínimos do
que seria uma boa administração (SILVA, 2019, p. 180), na me-
dida em que o rol é exemplificativo, conforme se infere da reda-
ção do item 2, no qual se usa a palavra “nomeadamente”, indi-
cando assim que o conteúdo desse direito está aberto à expan-
são. Não poderia ser diferente, pois, diante da complexidade da
atividade administrativa, uma lista taxativa traria o sério risco
Raoni Marques Oliveira | 221
de aspectos importantes ficarem de fora, gerando assim omis-
sões graves.
A esse respeito, Hofmann e Mihaescu (2013, p. 100)
sustentam que o fato de o sistema jurídico europeu ter diversas
fontes de direitos fundamentais que dialogam entre si gera duas
consequências: uma lista clara de direitos positivados, bem
como a flexibilidade necessária para aumentar ainda mais a
proteção. Segundo os autores, o sistema jurídico da União fun-
ciona como uma espécie de incubadora onde são desenvolvidas
e testadas soluções jurídicas para os novos problemas surgidos
da integração europeia.
Jacqué (2011, p. 81), por sua vez, ressalta que foram
positivados apenas elementos essenciais, deixando um amplo
espaço para desdobramentos pela via jurisprudencial. O autor
destaca ainda a importância de que esse direito não seja com-
preendido isoladamente, mas em conjunto com outros também
previstos na Carta, como o direito de acesso a documentos e o
direito de petição.
Conforme já afirmado, seu conteúdo não é inovador,
por se tratar de consolidação de entendimento jurisprudencial.
Se por um lado o efeito de inovação é fraco, por outro o de in-
centivo é forte: com base nele e em outras disposições da Carta,
vêm sendo e certamente ainda serão desenvolvidas normas de
boa administração nos códigos de conduta específicos de cada
instituição da União Europeia (JACQUÉ, 2011, p. 83).
Um exemplo disso é o Código Europeu de Boa Con-
duta Administrativa, de setembro de 2001, direcionado aos
agentes das instituições e órgãos da União. Joana Mendes (2009,
p. 13) aponta uma clara relação entre o artigo 41 da Carta e a
promulgação de tal Código, destacando que este dá uma impor-
tante contribuição para o desenvolvimento do conteúdo do di-
reito à boa administração, sem se propor a ser exaustivo.
O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
222 | uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

Silva (2019, p. 181), por sua vez, destaca que esse Có-
digo desenvolve os princípios da imparcialidade e da equidade,
traz valores fundamentais para a boa administração ‒ a título
de exemplo, tem-se a não discriminação e a proporcionalidade,
dentre outros ‒ e ainda impõe obrigações que concretizem tais
preceitos, como a de encaminhar ao órgão competente as recla-
mações feitas por cidadãos, devendo haver decisão no prazo de
dois meses. A autora ressalta ainda que, apesar de não ter força
vinculativa, por precisar da aprovação de regulamento que re-
conheça seu conteúdo, o Código certamente desempenha um
relevante papel de soft law.
Assim, tendo em vista o caráter deveras aberto do di-
reito à boa administração, seu conteúdo ainda evoluirá bas-
tante. Os códigos da União Europeia, as legislações dos estados-
membros e a jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu se-
rão essenciais para defini-lo, levando ao surgimento gradual de
novos direitos, a partir dos padrões estabelecidos na Carta de
Direitos Fundamentais.
Finalmente, chama atenção o fato de o conteúdo do
artigo 41 ser muito focado em direitos fundamentais de pri-
meira dimensão, não havendo qualquer referência a direitos a
prestações positivas por parte da Administração. Esta questão
constitui o problema central da pesquisa e será abordada no
próximo capítulo.

4. O direito à boa administração e os direitos fundamentais


sociais

A partir dos pressupostos estabelecidos nos capítu-


los anteriores, chega-se, enfim, à pergunta-problema: o conte
Raoni Marques Oliveira | 223
údo do direito à boa administração previsto na Carta de Direi-
tos Fundamentais da União Europeia abrange os direitos fun-
damentais sociais?
Para responder a tal questionamento, serão essenci-
ais algumas das reflexões feitas anteriormente. Em primeiro lu-
gar, deve-se ter em mente que o conteúdo do artigo 41 não é
taxativo, estando aberto ao aprimoramento. Assim, parte-se da
premissa de que novos direitos podem e até devem ser ali in-
cluídos.
Segundo, não se pode ignorar que a Carta contém vá-
rios direitos sociais: educação (artigo 14), assistência social (ar-
tigo 34), saúde (artigo 35), dentre outros. Conforme já afirmado,
é necessário interpretar o artigo 41 de forma sistemática com o
resto da Carta; desse modo, é razoável que se entenda que o di-
reito à boa administração envolve uma efetiva prestação de di-
reitos sociais pelo poder público.
Há ainda um fator fundamental: o novo paradigma
da Administração Pública, bastante explorado em momento an-
terior. De acordo com essa perspectiva, a atividade da Adminis-
tração deve estar centrada no cidadão, na medida em que ela
existe em função dele e de suas necessidades.
Muñoz (2012, p. 44), ao comentar esse novo espírito
do Direito Administrativo, afirma que o direito à boa adminis-
tração é o ponto de partida do estatuto jurídico do cidadão pe-
rante a Administração, de modo que todas as garantias e direi-
tos envolvidas nessa relação são corolários desse direito funda-
mental.
Se os direitos do cidadão perante a Administração
decorrem do direito à boa administração, é certo que esse di-
reito fundamental inclui também os direitos sociais.
Finalmente, deve-se recordar que alguns dos princi-
pais traços dessa nova perspectiva da Administração Pública
O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
224 | uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

são o combate ao abuso de poder, a boa tomada de decisões,


com ênfase na motivação, e a promoção do bem-estar das pes-
soas.
Certamente uma das melhores maneiras de controlar
a atividade administrativa e garantir que ela siga tais diretrizes
é promover a sua vinculação aos preceitos estabelecidos nas
constituições contemporâneas, que refletem de maneira clara
esse novo espírito administrativista.
Neste sentido, Juarez Freitas (2015, p. 216) afirma que
“a discricionariedade administrativa, no Estado Democrático,
deve estar vinculada às prioridades constitucionais, sob pena de
se converter em arbitrariedade por ação ou por omissão”. Sobre
isso, não há qualquer dúvida de que, nos estados democráticos
de direito atuais, os direitos sociais têm status de prioridade
constitucional.
Ante tudo o que foi exposto, conclui-se que todo o
conteúdo do direito à boa administração deve ser canalizado
para a efetivação dos direitos fundamentais sociais. Assim,
pode-se afirmar que aquele direito fundamental obriga a Admi-
nistração a se organizar e gerir de modo a dar efetividade aos
direitos sociais.

Considerações finais

A positivação do direito à boa administração no ar-


tigo 41 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia é
resultado de um longo processo histórico que envolveu o gra-
dual reconhecimento de diversas garantias para os cidadãos eu-
ropeus frente à Administração, tratando-se, em essência, da
consolidação de diversos entendimentos do Tribunal de Justiça
Europeu.
Raoni Marques Oliveira | 225
Esse direito surge no contexto de um novo para-
digma da Administração Pública, que passa a ser centrada na
pessoa do cidadão, o qual assume o protagonismo que antes era
do serviço público em si. Tal perspectiva é especialmente mar-
cada pelo abandono do autoritarismo, pela boa tomada de de-
cisões e pela promoção do bem-estar das pessoas, uma vez que
a Administração existe em função das necessidades destas.
Os beneficiários desse direito são todas as pessoas,
físicas ou jurídicas, que de alguma forma tiverem contato com
a Administração da União Europeia. Por outro lado, os devedo-
res são os órgãos e instituições da União, bem como os estados-
membros quando aplicarem o direito europeu. Em que pese ha-
ver algumas discussões acerca das repercussões para o ordena-
mento jurídico dos estados, é certo que suas legislações devem
adequar-se às disposições da Carta e esta deve servir para eles
no mínimo como norte interpretativo na aplicação do Direito
Administrativo.
O artigo 41 define os critérios mínimos do que se en-
tende por boa administração. Os preceitos ali contidos consti-
tuem um rol exemplificativo, de modo que seu conteúdo está
aberto a ser expandido. Assim, os códigos da União Europeia,
as legislações dos estados-membros e a jurisprudência do Tri-
bunal de Justiça Europeu serão essenciais para defini-lo e certa-
mente levarão ao progressivo surgimento de novos direitos.
Tendo em vista que a redação do referido artigo da
Carta trata apenas de direitos fundamentais de primeira dimen-
são, sem referência a prestações positivas por parte da Admi-
nistração, questiona-se a possibilidade de o seu conteúdo abran-
ger também os direitos fundamentais sociais.
Existem sólidos motivos para considerar que os di-
reitos sociais estão, sim, alcançados pelo direito fundamental à
boa administração. Primeiro, está demonstrado que o artigo 41
226 | O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

não é taxativo, sendo possível e até mesmo necessário expandir


seu conteúdo.
Além disso, a Carta contém diversos direitos sociais,
de modo que uma interpretação sistemática do direito à boa ad-
ministração certamente leva à conclusão de que ele deve con-
templar uma efetiva prestação de direitos sociais pelo poder pú-
blico.
Outro fator de suma importância é a nova perspec-
tiva da Administração Pública, centrada no cidadão. Uma de
suas decorrências é que o direito à boa administração torna-se a
base do estatuto jurídico do cidadão perante a Administração,
de modo que todas as garantias e direitos envolvidas nessa re-
lação derivam desse direito fundamental, o que certamente in-
clui os direitos sociais.
Finalmente, uma maneira eficiente de garantir que a
atividade administrativa reflita esse espírito é a sua vinculação
às disposições das constituições contemporâneas, que são forte-
mente influenciadas por ele e tratam os direitos sociais como
questão prioritária. Isso não deixa dúvida de que a garantia de
tais direitos fundamentais está incluída nesse novo paradigma.
Desse modo, todo o conteúdo do direito fundamen-
tal à boa administração deve ser direcionado para a efetivação
dos direitos sociais. A Administração Pública só poderá ser qua-
lificada como “boa” quando se organizar e gerir de modo a dar-
lhes efetividade e propiciar uma realidade mais justa e inclusiva
aos seus destinatários.

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Raoni Marques Oliveira | 227
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O direito fundamental à boa administração no âmbito da União Europeia:
230 | uma análise voltada para os direitos fundamentais sociais

THE FUNDAMENTAL RIGHT TO GOOD


ADMINISTRATION IN EUROPEAN UNION: AN
ANALYSIS FOCUSED ON FUNDAMENTAL SOCIAL
RIGHTS
Abstract: It proposes to study the right to good administration, af-
firmed in article 41 of the Charter of Fundamental Rights of the Euro-
pean Union, in order to verify if its content, apparently focused only
on first dimension rights, can also include fundamental social rights.
From the analysis of the history, the subjects and the content of this
right, it is concluded that the Administration only will be “good”
when it organizes itself in order to guarantee social rights to its citi-
zens. The hypothetical-deductive method is used. The research is
qualitative, with a descriptive and exploratory purpose, and its tech-
nique is bibliographic and documentary.
Keywords: Right to good administration. European Union. Funda-
mental social rights.
CAPÍTULO IX.
A PREVALÊNCIA DO NEGOCIADO
SOBRE O LEGISLADO: ANÁLISE
COMPARATIVA ENTRE A
JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL E DO TRIBUNAL
CONSTITUCIONAL DE PORTUGAL

Charles da Costa Bruxel*

Resumo: Diante da importância da matéria e das novidades trazidas


pela Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), o trabalho objetivou
analisar e comparar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal do
Brasil com a do Tribunal Constitucional de Portugal a respeito da pre-
valência do negociado coletivamente sobre o legislado, a fim de se
verificar o grau de similaridade das teses encampadas jurisprudenci-
almente em cada respectivo país. O método de abordagem empre-
gado foi, precipuamente, o comparativo, pois se realizou o cotejo en-
tre as compreensões, sobre a mesma matéria, adotadas pelo Tribunal
Constitucional do Brasil e de Portugal. Após o desenvolvimento do

* Doutorando (2022-) e Mestre em Direito na área de concentração de Constituição,


Sociedade e Pensamento Jurídico pela Universidade Federal do Ceará (2021). Es-
pecialista em Direito Processual Civil pela Damásio Educacional (2018). Especia-
lista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho (2013). Ba-
charel em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2016). Bacharel em Ciên-
cias Econômicas pela Universidade Federal do Ceará (2011). Analista Judiciário -
Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (CE), exercendo atualmente a função
de Assistente em Gabinete de Desembargador. Presidente da Diretoria Executiva
do Sindicato dos Servidores da Sétima Região da Justiça do Trabalho (Sindissé-
tima/CE). Coordenador da Diretoria Executiva da Federação Nacional dos Traba-
lhadores do Poder Judiciário Federal e Ministério Público da União (Fenajufe).
Integrante do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (GRUPE) da Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Ceará.
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
232 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

trabalho, verificou-se que a jurisprudência do Supremo Tribunal Fe-


deral do Brasil e do Tribunal Constitucional de Portugal, ainda que
cada tribunal tenha partido da interpretação de ordenamentos jurídi-
cos diversos, são muito similares: ambas validaram constitucional-
mente a prevalência do negociado coletivamente sobre o legislado
como regra, ainda que flexibilizando prejudicialmente o conteúdo do
direito estatal, porém reconhecendo que devem ser resguardados de
supressões parciais ou totais os direitos laborais legislados entendi-
dos como de natureza imperativa (indisponibilidade absoluta), tendo
sido concedido, expressa ou implicitamente, espaço para a doutrina e
a jurisprudência definirem quais seriam estes direitos. Nesse sentido,
constatou-se que a hipótese encampada no início do articulado se
mostrou acertada, pois, de fato, ambos os países trilharam, até o mo-
mento, linhas jurisprudenciais muito próximas sobre a proeminência
do negociado coletivamente sobre o direito legislado.

Palavras-chave: Negociação coletiva. Direito legislado. Brasil. Portu-


gal. Jurisprudência.

Introdução

O critério de solução para o conflito de conteúdo en-


tre normas legisladas e normas convencionadas coletivamente
sempre foi um problema rodeado de dificuldades e de polêmi-
cas, merecendo atenção especial da doutrina trabalhista brasi-
leira. Porém, de um modo geral, antes do advento da Lei nº
13.467/2017, havia um certo consenso entre a jurisprudência e
os estudiosos de que o confronto se resolvia por meio da aplica-
ção do Princípio da Norma Mais Favorável ao Trabalhador,
ainda que a concretização deste não fosse sempre uma tarefa
fácil.
Ocorre que, com a edição da “Reforma Trabalhista”
(Lei nº 13.467/2017), o cenário normativo mudou consideravel-
mente, já que a nova legislação aparentemente rompeu com o
Charles da Costa Bruxel | 233
paradigma até então existente e optou por regrar em que hipó-
teses a negociação coletiva prevaleceria ou não sobre o direito
legislado, garantindo, em certas matérias, a prevalência da
norma coletiva sobre a lei, ainda que seu conteúdo seja menos
favorável para o trabalhador. Porém tal ponto não é ainda paci-
ficado, já que a questão passa, no mínimo, por um exame espe-
cífico da compatibilidade deste novo regramento com a Consti-
tuição Federal do Brasil.
Por outro lado, recentemente (junho/2022) o Su-
premo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário
com Agravo nº 1.121.6331, firmou tese a respeito do tema, le-
vando em conta o panorama jurídico existente antes da Lei nº
13.467/2017, que objetivou pacificar as inúmeras controvérsias
constitucionais existentes sobre a questão e, certamente, indicar
a linha que será seguida quando eventualmente vier a ser dis-
cutida a constitucionalidade dos novos parâmetros legais insti-
tuídos pela Reforma Trabalhista a respeito da prevalência do
negociado sobre o legislado.
Nesse contexto, compreender e comparar a solução
dada pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil e pelo Tribunal
Constitucional de Portugal a respeito da prevalência do negoci-
ado sobre o legislado é salutar para que se possa identificar se o
entendimento jurisprudencial adotado no Brasil destoa signifi-
cativamente dos parâmetros adotados por país que passou re-
centemente pela discussão do mesmo tema.

1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo nº


1121633, do Tribunal Pleno. Recorrente: Mineração Serra Grande S.A. Recorrida:
Adenir Gomes da Silva. Relator: Ministro Gilmar Mendes, Brasília, DF, 02 de ju-
nho de 2022. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 13 jun. 2022.
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
234 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

Importante destacar que o Direito Português - por ter


raízes históricas próximas com o Brasil, também adotar o sis-
tema jurídico romano-germânico (civil law)2 e viver momento si-
milar de flexibilização do Direito Laboral - é uma significativa e
potencialmente influente fonte normativa, jurisprudencial e
doutrinária para o Direito do Trabalho brasileiro, até mesmo
porque o art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho estabe-
lece que o direito comparado é uma fonte subsidiária do Direito
do Trabalho do Brasil.
Ademais, aprender a respeito da experiência portu-
guesa pode efetivamente colaborar para a crítica e a evolução
da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A pesquisa
comparativa elucida as características, problemas e êxitos dos
sistemas jurídicos cotejados. Como salientado por Gabriela
Maia Rebouças, Martha Franco Leite e Verônica Teixeira Mar-
ques3, somente por meio da comparação se consegue ter mais
clareza, por exemplo, sobre se determinado regime é democrá-
tico e em que medida. No mesmo sentido, comparar a jurispru-
dência do Supremo Tribunal Federal com a do Tribunal Consti-
tucional de Portugal certamente pode colaborar para revelar os
méritos e os potenciais equívocos do entendimento do STF.
Desse modo, será analisada e comparada a jurispru-
dência do Supremo Tribunal Federal do Brasil com a do Tribu-
nal Constitucional de Portugal a respeito da prevalência do ne-
gociado coletivamente sobre o legislado. Referido objetivo de-
corre da seguinte indagação investigativa: a jurisprudência do

2 VICENTE, Dário Moura. O lugar dos sistemas jurídicos lusófonos entre as famí-
lias jurídicas. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, v. 36, p.
85-113, 2010. Semestral.
3 REBOUÇAS, Gabriela Maia; LEITE, Martha Franco; MARQUES, Verônica Tei-
xeira. Pesquisa comparativa em ciências sociais e humanas: um panorama de seus
usos. Interfaces Científicas - Humanas e Sociais, [S. l.], v. 5, n. 2, p. 21–32, 2016.
Charles da Costa Bruxel | 235
Supremo Tribunal Federal do Brasil é significativamente dife-
rente da linha de entendimento adotada pelo Tribunal Consti-
tucional de Portugal a respeito da prevalência do negociado co-
letivamente sobre o legislado?
Nesse sentido, a hipótese encampada é de que o Su-
premo Tribunal Federal do Brasil acabou construindo tese simi-
lar à seguida pelo Tribunal Constitucional de Portugal a res-
peito da prevalência do negociado coletivamente sobre o legis-
lado, a despeito das divergências entre os ordenamentos jurídi-
cos de cada país.
Para tanto, a pesquisa implementada, sob o ponto de
vista dos procedimentos técnicos, será bibliográfica (doutrina)
e documental (Constituição de Portugal, julgados do Tribunal
Constitucional de Portugal, Constituição da República Federa-
tiva do Brasil, Consolidação das Leis do Trabalho, julgados do
Supremo Tribunal Federal, dentre outros). Do ponto de vistas
dos objetivos, a pesquisa, apesar de ser explicativa, também se
enquadra como exploratória, haja vista que foi elaborada no
momento em que ainda não foram disponibilizadas todas as in-
formações acerca do Recurso Extraordinário com Agravo nº
1.121.633 julgado pelo STF (inteiro teor dos votos proferidos e
dos debates realizados). Quanto à forma de abordagem do pro-
blema, a pesquisa é qualitativa, pois foca no aprofundamento
de discussões jurídicas não quantificadas.
O método de abordagem empregado será, precipua-
mente, o comparativo, pois se buscará cotejar o entendimento
do Tribunal Constitucional do Brasil e de Portugal acerca da
prevalência do negociado coletivamente sobre o legislado.
Além desse, será adotado também o método dedutivo4, pois, a

4 PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do tra-


balho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acedêmico. 2 ed.
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
236 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

partir da análise e da interpretação de julgados, normas e teo-


rias existentes no Brasil e em Portugal a respeito da prevalência
do negociado coletivamente sobre o legislado, serão extraídas
conclusões aptas a explicar a controvérsia examinada, viabili-
zando a verificação da hipótese traçada e do questionamento
propulsor do presente estudo.
Além da introdução e das considerações finais, o tra-
balho será dividido em três seções, sendo a primeira sobre a
análise/apresentação do atual cenário normativo brasileiro e da
contemporânea jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
do Brasil a respeito da prevalência do negociado coletivamente
sobre o legislado; a segunda acerca do exame jurídico do atual
panorama normativo existente em Portugal e da jurisprudência
do Tribunal Constitucional de Portugal sobre a proeminência
do negociado coletivamente sobre o legislado; e a terceira com-
parando e analisando a similaridade entre o entendimento so-
bre a matéria adotado pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil
e a compreensão firmada pelo Tribunal Constitucional de Por-
tugal.

1. As disposições normativas e a jurisprudência do Supremo


Tribunal Federal brasileiro acerca da prevalência do
negociado sobre o legislado

Com a vigência da Lei nº 13.467/2017, conhecida


como “Reforma Trabalhista”, o Brasil sofreu um significativo
impacto na regulamentação das negociações coletivas de traba-
lho. A nova legislação resolveu apontar um rol de matérias em

Novo Hamburgo: Feevale, 2013.


Charles da Costa Bruxel | 237

que a negociação coletiva prevalece sobre o disposto na legisla-

ção, independentemente de o conteúdo negociado ser mais ou


menos favorável para o trabalhador.

Assim, o direito infraconstitucional brasileiro rom-


peu com o critério clássico da Prevalência da Norma Mais Fa-

vorável ao Trabalhador, que até então predominava na dou-


trina e na jurisprudência trabalhista, conforme ilustra a Orien-
tação Jurisprudencial nº 31 da Seção de Dissídios Coletivos do

Tribunal Superior do Trabalho . Essa mudança significativa,


por si, já trouxe a necessidade de uma ampla assimilação inter-

pretativa da nova legislação, o que perpassa por uma detalhada


avaliação da compatibilidade desse novo modelo de prevalên-

cia do negociado sobre o legislado com a Constituição Federal e

com o direito supralegal (Convenções da Organização Interna-


cional do Trabalho, destacadamente) , processo ainda sob ama-
durecimento .

Nesse contexto, a definição sobre a possibilidade e os


limites da proeminência do negociado coletivamente sobre o le-

gislado deve ser prioritariamente buscada na Constituição Fe-

deral, haja vista que a solução encontrada servirá tanto para em-

basar o período anterior à Reforma Trabalhista quanto o lapso


temporal posterior à vigência desta.

5
OJ n. 31 da SDC do TST: "ESTABILIDADE DO ACIDENTADO . ACORDO HO-
MOLOGADO. PREVALÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE . VIOLAÇÃO DO ART. 118
DA LEI Nº 8.213/91 . Não é possível a prevalência de acordo sobre legislação vi-
gente, quando ele é menos benéfico do que a própria lei, porquanto o caráter im-
perativo dessa última restringe o campo de atuação da vontade das partes."
6 Os tratados internacionais sobre direitos humanos possuem, no mínimo, caráter
supralegal e infraconstitucional, conforme entendimento adotado pelo Supremo
Tribunal Federal no RE 466343, HC 87585 e ADI 5240. Caso, entretanto, sejam
aprovados, em cada Casa Legislativa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros, os tratados internacionais de di-
reitos humanos ingressam no ordem jurídico com status equivalente ao de uma
emenda constitucional.
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
238 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

Assim, seguindo os ensinamentos de Américo Plá


Rodriguez7, a diretriz clássica contida na Regra da Norma Mais
Favorável ao Trabalhador (comumente conhecida como Princí-
pio da Norma Mais Favorável ao Trabalhador, mas que pode
ser simplesmente denominado de critério da Norma Mais Fa-
vorável ao Trabalhador) seria uma consequência lógica do Prin-
cípio da Proteção8. Este seria o alicerce fundamental do Direito
do Trabalho ao instituir que o objetivo do ramo especializado
trabalhista seria estabelecer amparo preferencial a uma das par-
tes da relação juslaboral: o empregado. Aquela (Regra da
Norma Mais Favorável), por sua vez, significa o rompimento
com o critério hierárquico - costumeiramente empregado no Di-
reito para a definição da norma que incidirá sobre o fato sob
exame – ao estabelecer que, independentemente do status verti-
cal da norma laboral, prevalecerá sempre a aplicação daquela
que seja mais favorável ao trabalhador.
A Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, apesar de estabelecer que o ”reconhecimento das conven-
ções e acordos coletivos de trabalho” seria um direito traba-
lhista (art. 7º, XXVI), não trouxe uma fórmula clara para a solu-
ção do problema de qual norma prevaleceria no caso de um
eventual conflito de conteúdo entre o direito negociado coleti-
vamente e o direito legislado. Entretanto, é possível se extrair
que os Princípios Protetor e da Norma Mais Favorável teriam

7 RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho: fac-similada. São


Paulo: Ltr, 2015.
8 Segundo o mesmo autor, o Princípio da Proteção, além de se desdobrar na Regra
da Aplicação da Norma Mais Favorável ao Trabalhador, também se concretiza
por meio do “in dubio, pro operario” (o julgador ou o intérprete deve escolher,
entre vários sentidos possíveis de uma norma, aquele que seja mais favorável ao
trabalhador) e da Regra da Condição Mais Benéfica ao Trabalhador (a aplicação
de uma nova norma trabalhista nunca deve servir para diminuir as condições
mais favoráveis em que se encontrava o trabalhador).
Charles da Costa Bruxel | 239
assento constitucional no caput do art. 7º da Constituição da Re-
pública: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além
de outros que visem à melhoria de sua condição social”.
O Princípio Protetor decorreria do objetivo maior do
Direito do Trabalho anunciado pela finalidade de melhorar a
condição social dos trabalhadores. Assim, se a finalidade é me-
lhorar a condição do obreiro, deve-se observar, acima de tudo,
a norma jurídica que melhor contemple esse anseio constituinte,
contexto que demonstra também e por consequência lógica a
existência do Princípio da Norma Mais Favorável no direito
brasileiro. A Constituição Federal, portanto, apresentaria um
rol exemplificativo de direitos que consagra, a princípio, o mí-
nimo existencial do laborista, o qual pode e deve ser comple-
mentado ou expandido por meio da edição de normas infra-
constitucionais (conceito que inclui as convenções e acordos co-
letivos de trabalho).
Sob essa óptica, eventual norma coletiva que dispu-
sesse sobre determinado direito em patamar inferior ao dis-
posto na legislação seria logicamente inválida, pois, pela aplica-
ção do Princípio da Norma Mais Favorável, prevaleceria o dis-
posto na legislação.
Essa diretriz, entretanto, não pode ser analisada iso-
ladamente e deve ser complementada pelo art. 114, §2º, da
Constituição Federal9, o qual imunizou as disposições mínimas
legais de proteção ao trabalho de virem a ser desrespeitadas por
negociações coletivas. Isso porque referido dispositivo (art. 114,
§2º, da CF), ao limitar o poder normativo da Justiça do Trabalho

9 Constituição Federal, art. 114, §2º: Recusando-se qualquer das partes à negociação
coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissí-
dio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o con-
flito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem
como as convencionadas anteriormente.”
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
240 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

na solução de dissídios coletivos de natureza econômica, im-


pondo a observância das disposições mínimas legais de prote-
ção ao trabalho e das estipulações coletivas convencionadas an-
teriormente, logicamente delimitou o próprio escopo não só da
solução a ser dada aos dissídios coletivos, mas do limite de con-
teúdo das negociações coletivas.
Afinal, por mais que se possa imaginar que a solução
autocompositiva entre as partes (efetivo êxito na negociação co-
letiva) mereça ser privilegiada em detrimento da resolução he-
terocompositiva (solução dada pelo poder normativo da Justiça
do Trabalho), não faz sentido, por exemplo, que normas legais
criadas com o objetivo de proteger a própria integridade psico-
física do trabalhador possam ser simplesmente suplantadas por
um acordo ou convenção coletiva. Isso criaria um abismo qua-
litativo entre a tutela judicial dos dissídios coletivos e a negoci-
ação coletiva em si, sugerindo, ainda, a contrario sensu, que a ne-
gociação coletiva não encontraria qualquer limite nos direitos
laborais previstos na legislação brasileira.
Caso fosse verdadeiro, esse “abismo qualitativo”, in-
clusive, poderia servir de desestímulo à negociação coletiva, já
que a solução do conflito por meio da Justiça do Trabalho po-
deria terminar sendo, para os trabalhadores, uma via mais se-
gura e garantida do que aquela alcançada via negociação cole-
tiva (espaço no qual, por essa interpretação, todos os direitos
previstos em lei, inclusive os mais elementares, estariam sob
pressão patronal para serem colocados na mesa).
Tal ângulo de problematização confirma que o 114,
§2º, da Carta Magna não pode ser interpretado gramatical-
mente, já que, na verdade, o dispositivo apresenta uma restrição
geral, tanto ao poder normativo da Justiça do Trabalho quanto
ao ao espaço transacional da negociação coletiva.
Charles da Costa Bruxel | 241
Como reforço, convém pontuar que, pela interpreta-
ção literal do art. 114, §2º, da Lei Magna, a restrição à atividade
heterocompositiva (necessário respeito às disposições mínimas
legais de proteção ao trabalho e às estipulações coletivas con-
vencionadas anteriormente) se aplicaria à Justiça do Trabalho,
mas não à arbitragem (que também é um método de solução
heterônoma de conflitos), o que novamente evidencia a carência
do método gramatical para se chegar à melhor exegese norma-
tiva acerca da matéria. Ora, como poderia a arbitragem ostentar
poderes superiores ao da própria jurisdição, já que a arbitra-
gem, quando muito, é tratada doutrinariamente como um equi-
valente jurisdicional?
A definição, por outro lado, de quais seriam essas
“disposições mínimas legais de proteção ao trabalho” também
é uma questão complexa. Porém, partindo da premissa de que,
se a Carta da República tivesse o objetivo de imunizar de even-
tuais flexibilizações toda e qualquer norma trabalhista, bastaria
ter usado a expressão “disposições legais de proteção ao traba-
lho” (sem a expressão “mínimas”), conclui-se que essas “dispo-
sições mínimas legais de proteção ao trabalho” se confundem
com o mínimo existencial do laborista previsto na Constituição
Federal e na legislação infraconstitucional que regula-
menta/concretiza os direitos trabalhistas constitucionalmente
assegurados.
Além disso, ao se apreciar a possibilidade de preva-
lecimento da negociação coletiva sobre o direito legislado, não
se pode perder de vista a função da negociação coletiva de tra-
balho. Como visto, o art. 7º, caput, da Constituição Federal deixa
clara a ideia de que as convenções e acordos coletivos de traba-
lho, assim como as demais normas trabalhistas criadas/previs-
tas além do rol exemplificativo previsto no próprio Texto Maior,
devem buscar a melhoria da condição social do trabalhador, até
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
242 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

mesmo porque a construção de uma negociação coletiva pura-


mente prejudicial ao trabalhador termina ofendendo o dever de
os sindicatos defenderem os direitos e interesses dos trabalha-
dores (art. 8º, III, da CF) e termina diminuindo a dignidade la-
boral assegurada pelo reconhecimento constitucional do valor
social do trabalho e da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III
e IV, da CF).
Assim, da interpretação combinada do Princípio da
Norma Mais Favorável ao Trabalhador (art. 7º, caput, da CF), do
comando que determina que as negociações coletivas devem
respeitar as “disposições mínimas legais de proteção ao traba-
lho” (art. 114, §2º, da CF) e levando em conta que a negociação
coletiva não pode ter uma função precarizadora das relações la-
borais (artigos 1º, III e IV, 7º, caput, e 8º, III, da CF), conclui-se
que: as disposições constitucionais e a legislação infraconstitu-
cional que regulamenta/concretiza os direitos constitucionais
dos trabalhadores (disposições mínimas legais de proteção ao
trabalho), como regra, não podem ser flexibilizadas pela nego-
ciação coletiva, salvo em sentido mais favorável ao trabalhador;
as demais normas trabalhistas podem ser flexibilizadas, ainda
que em sentido mais prejudicial ao trabalhador, desde que se-
jam asseguradas contrapartidas negociais proporcionais favorá-
veis aos trabalhadores que garantam que o resultado final do
processo flexibilizatório não diminua a dignidade laboral do
empregado10.
Apesar de definido esse panorama constitucional,
destaca-se que a Lei nº 13.467/2017 acresceu à Consolidação das

10 A definição e a construção dos limites constitucionais à prevalência do negociado


coletivamente sobre o legislado são desenvolvidas pelo autor, com mais detalha-
mento e aprofundamento, na seguinte obra: BRUXEL, Charles da Costa. A Preva-
lência do Negociado Sobre o Legislado no Brasil. São Paulo: Editora Dialética,
2022.
Charles da Costa Bruxel | 243
Leis do Trabalho rol exemplificativo de hipóteses em que a con-
venção ou o acordo coletivo de trabalho terão prevalência sobre
a lei11 e lista taxativa de direitos que, caso sejam suprimidos ou
reduzidos por negociação coletiva, constituiriam objeto ilícito
da convenção ou acordo coletivo de trabalho12.

11 CLT, art. 611-A: “A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm preva-
lência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I - pacto quanto à jor-
nada de trabalho, observados os limites constitucionais; II - banco de horas anual;
III - intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jor-
nadas superiores a seis horas; IV - adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE),
de que trata a Lei nº 13.189, de 19 de novembro de 2015 ; V - plano de cargos,
salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como
identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança; VI - regu-
lamento empresarial; VII - representante dos trabalhadores no local de trabalho;
VIII - teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; IX - remunera-
ção por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remu-
neração por desempenho individual; X - modalidade de registro de jornada de
trabalho; XI - troca do dia de feriado; XII - enquadramento do grau de insalubri-
dade; XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia
das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; XIV - prêmios de incen-
tivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo;
XV - participação nos lucros ou resultados da empresa. §1º No exame da conven-
ção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o
disposto no §3º do art. 8º desta Consolidação. §2º A inexistência de expressa indi-
cação de contrapartidas recíprocas em convenção coletiva ou acordo coletivo de
trabalho não ensejará sua nulidade por não caracterizar um vício do negócio ju-
rídico. §3º Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção
coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empre-
gados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento co-
letivo. §4º Na hipótese de procedência de ação anulatória de cláusula de conven-
ção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, quando houver a cláusula com-
pensatória, esta deverá ser igualmente anulada, sem repetição do indébito. §5º Os
sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho
deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou cole-
tiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos.”
12 CLT, art. 611-B:“Art. 611-B. Constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de
acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos se-
guintes direitos: I - normas de identificação profissional, inclusive as anotações
na Carteira de Trabalho e Previdência Social; II - seguro-desemprego, em caso de
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
244 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

Analisando o teor da mudança implementada, pode-


se dizer que a Lei nº 13.467/2017 entende que somente os direi-

desemprego involuntário; III - valor dos depósitos mensais e da indenização res-


cisória do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); IV - salário mínimo;
V - valor nominal do décimo terceiro salário; VI - remuneração do trabalho no-
turno superior à do diurno; VII - proteção do salário na forma da lei, constituindo
crime sua retenção dolosa; VIII - salário-família; IX - repouso semanal remune-
rado; X - remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50%
(cinquenta por cento) à do normal; XI - número de dias de férias devidas ao em-
pregado; XII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a
mais do que o salário normal; XIII - licença-maternidade com a duração mínima
de cento e vinte dias; XIV - licença-paternidade nos termos fixados em lei; XV -
proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos
termos da lei; XVI - aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mí-
nimo de trinta dias, nos termos da lei; XVII - normas de saúde, higiene e segu-
rança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério
do Trabalho; XVIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insa-
lubres ou perigosas; XIX - aposentadoria; XX - seguro contra acidentes de traba-
lho, a cargo do empregador; XXI - ação, quanto aos créditos resultantes das rela-
ções de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores
urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho;
XXII - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de ad-
missão do trabalhador com deficiência; XXIII - proibição de trabalho noturno, pe-
rigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores
de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; XXIV
- medidas de proteção legal de crianças e adolescentes; XXV - igualdade de direi-
tos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador
avulso; XXVI - liberdade de associação profissional ou sindical do trabalhador,
inclusive o direito de não sofrer, sem sua expressa e prévia anuência, qualquer
cobrança ou desconto salarial estabelecidos em convenção coletiva ou acordo co-
letivo de trabalho; XXVII - direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir
sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele
defender; XXVIII - definição legal sobre os serviços ou atividades essenciais e dis-
posições legais sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade
em caso de greve; XXIX - tributos e outros créditos de terceiros; XXX - as disposi-
ções previstas nos arts. 373-A, 390, 392, 392-A, 394, 394-A, 395, 396 e 400 desta
Consolidação. Parágrafo único. Regras sobre duração do trabalho e intervalos não
são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os
fins do disposto neste artigo.”
Charles da Costa Bruxel | 245
tos trabalhistas assegurados constitucionalmente estariam imu-
nizados de flexibilizações, via negociação coletiva, lesivas ao
trabalhador, encampando uma compreensão mais flexível e de
constitucionalidade duvidosa da aplicação do Princípio da
Norma Mais Favorável ao Trabalhador, do que seriam as “dis-
posições mínimas legais de proteção ao trabalho” e da própria
função da negociação coletiva de trabalho.
Em análise crítica à Lei nº 13.467/2017, Francisco Gér-
son de Marques Lima13 ressalta que, apesar de a “Reforma Tra-
balhista” ter trazido a prevalência do negociado coletivamente
sobre o legislado como regra, referida legislação não criou me-
canismos para estimular as negociações coletivas, não garantiu
a isonomia entre os negociantes (enfraqueceu os sindicatos),
não criou meios de garantir a efetividade do negociado coleti-
vamente, não demonstrou preocupação com a vedação ao retro-
cesso social e não privilegiou os canais autocompositivos para
estimular as negociações coletivas. A nova lei, portanto, criou
um “arremedo de negociação coletiva, na qual será possível a
entrega e a renúncia de direitos por entidades fragilizadas, com
instrumentos coletivos infensos ao reexame do Judiciário14”.
Nesse intrincado contexto, o Supremo Tribunal Fe-
deral, em sua composição plenária, proferiu a sua primeira de-
cisão marcante sobre a prevalência do negociado sobre o legis-
lado (RE nº 59041515). No caso concreto, prestigiou a negociação

13 LIMA, Francisco Gérson Marques de. Instrumentos Coletivos de Trabalho, num


Contexto de Reforma Trabalhista. Nomos, Fortaleza, v. 37, n. 2, p.375-394,
jul./dez. 2017.
14 Ibidem, p. 379.
15 DIREITO DO TRABALHO. ACORDO COLETIVO. PLANO DE DISPENSA IN-
CENTIVADA. VALIDADE E EFEITOS. 1. Plano de dispensa incentivada apro-
vado em acordo coletivo que contou com ampla participação dos empregados.
Previsão de vantagens aos trabalhadores, bem como quitação de toda e qualquer
parcela decorrente de relação de emprego. Faculdade do empregado de optar ou
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
246 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

coletiva em um contexto em que entendeu ter havido pleno di-


álogo entre os agentes coletivos, exercício genuíno da autono-
mia coletiva da entidade profissional - os trabalhadores repre-
sentados não só efetivamente participaram do processo nego-
cial como reivindicaram a pactuação do instrumento coletivo -,
concessões mútuas entre trabalhadores e empregadores e trans-
parência das cláusulas ao empregado que individualmente ade-
risse livremente aos termos pactuados16.

não pelo plano. 2. Validade da quitação ampla. Não incidência, na hipótese, do


art. 477, § 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, que restringe a eficácia libe-
ratória da quitação aos valores e às parcelas discriminadas no termo de rescisão
exclusivamente. 3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a
mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de
trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra
sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual. 4. A Constituição de
1988, em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a
autocomposição dos conflitos trabalhistas, acompanhando a tendência mun-
dial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, re-
tratada na Convenção n. 98/1949 e na Convenção n. 154/1981 da Organização
Internacional do Trabalho. O reconhecimento dos acordos e convenções coleti-
vas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas
que regerão a sua própria vida. 5. Os planos de dispensa incentivada permitem
reduzir as repercussões sociais das dispensas, assegurando àqueles que optam
por seu desligamento da empresa condições econômicas mais vantajosas do que
aquelas que decorreriam do mero desligamento por decisão do empregador. É
importante, por isso, assegurar a credibilidade de tais planos, a fim de preservar
a sua função protetiva e de não desestimular o seu uso. 7. Provimento do recurso
extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “A transação
extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de adesão
voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla
e irrestrita de todas as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa condição
tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem
como dos demais instrumentos celebrados com o empregado”.” (RE 590415, Re-
lator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2015,
ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-101 DIVULG
28-05-2015 PUBLIC 29-05-2015) (grifou-se)
16 Premissas extraídas do inteiro teor do voto vencedor do Ministro Roberto Barroso
(relator).
Charles da Costa Bruxel | 247
Porém, apesar de ser um importante indicativo juris-
prudencial, é fundamental salientar que, até aquele momento,
não era possível alegar que a Suprema Corte tinha firmado uma
posição genérica de prevalência do negociado coletivamente so-
bre o legislado, haja vista que as peculiaridades do caso con-
creto foram bastante valorizadas na formação do julgado.
Em seguida, no final de 2016, o Supremo Tribunal
Federal, desta vez por meio de sua Segunda Turma (RE nº
89575917) conferiu interpretação ampliativa ao que havia sido
decidido no precedente anterior, adotando posição no sentido
de que as normas coletivas de trabalho poderiam prevalecer so-
bre o padrão geral heterônomo, mesmo que fossem restritivas
dos direitos dos trabalhadores, desde que não transacionassem
setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade ab-
soluta. Aludido julgado, no entanto, seja porque adotou como

17 TRABALHISTA. AGRAVOS REGIMENTAIS NO RECURSO EXTRAORDINÁ-


RIO. ACORDO COLETIVO DE TRABALHO. TRANSAÇÃO DO CÔMPUTO
DAS HORAS IN ITINERE NA JORNADA DIÁRIA DE TRABALHO. CONCES-
SÃO DE VANTAGENS DE NATUREZA PECUNIÁRIA E DE OUTRAS UTILI-
DADES. VALIDADE. 1. Conforme assentado pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal no julgamento do RE 590.415 (Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de
29/5/2015, Tema 152), a Constituição Federal “reconheceu as convenções e os acor-
dos coletivos como instrumentos legítimos de prevenção e de autocomposição de
conflitos trabalhistas”, tornando explícita inclusive “a possibilidade desses ins-
trumentos para a redução de direitos trabalhistas”. Ainda segundo esse prece-
dente, as normas coletivas de trabalho podem prevalecer sobre “o padrão geral
heterônomo, mesmo que sejam restritivas dos direitos dos trabalhadores, desde
que não transacionem setorialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade
absoluta”. 2. É válida norma coletiva por meio da qual categoria de trabalhadores
transaciona o direito ao cômputo das horas in itinere na jornada diária de trabalho
em troca da concessão de vantagens de natureza pecuniária e de outras utilida-
des. 3. Agravos regimentais desprovidos. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015,
pois não houve prévia fixação de honorários advocatícios na causa.” (RE 895759
AgR-segundo, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em
09/12/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-107 DIVULG 22-05-2017 PUBLIC 23-
05-2017)
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
248 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

premissa entendimento amplo de prevalência do negociado co-


letivamente sobre o legislado - que não encontra respaldo no
julgado plenário do RE nº 590415 -, seja pelo fato de ser uma
decisão proferida por um órgão fracionário do STF, também
não podia ser compreendido como sendo um precedente defi-
nitivo acerca da matéria.
A questão só veio a se consolidar quando o Pleno do
STF, analisando o Recurso Extraordinário com Agravo nº
112163318, decidiu, em junho/2022, firmar a seguinte tese:

São constitucionais os acordos e as convenções co-


letivas que, ao considerarem a adequação setorial
negociada, pactuam limitações ou afastamentos de
direitos trabalhistas, independentemente da expli-
citação especificada de vantagens compensatórias,
desde que respeitados os direitos absolutamente
indisponíveis.

Como o inteiro teor dos votos e debates ainda estão


pendentes de publicação, a análise da tese firmada será feita a
partir de seus próprios termos. O Supremo Tribunal Federal en-
tendeu ser constitucional que as convenções e os acordos cole-
tivos de trabalho pactuem limitações ou afastamentos de direi-
tos trabalhistas, sendo, assim, a princípio legítima, segundo a
tese fixada pelo STF, a prevalência do negociado coletivamente
sobre o legislado, ainda que em sentido prejudicial ao trabalha-
dor, desde que:
a) A negociação coletiva seja fruto da “adequação setorial
negociada” - nesse ponto, a decisão do Supremo Tribunal

18 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo nº


1121633, do Tribunal Pleno. Recorrente: Mineração Serra Grande S.A. Recorrida:
Adenir Gomes da Silva. Relator: Ministro Gilmar Mendes, Brasília, DF, 02 de ju-
nho de 2022. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 13 jun. 2022.
Charles da Costa Bruxel | 249
Federal adota o Princípio da Adequação Setorial Negoci-
ada, cunhado por Maurício Godinho Delgado19, o qual
preceitua que o prevalecimento do conteúdo da negocia-
ção coletiva sobre o direito legislado, além de ocorrer
quando as normas coletivas implementam um padrão se-
torial de direitos superior ao padrão geral oriundo da le-
gislação heterônoma aplicável, também pode ocorrer va-
lidamente quando as normas coletivas transacionam se-
torialmente parcelas justrabalhistas de indisponibilidade
apenas relativa (e não de indisponibilidade absoluta).
Assim, a necessidade de observância da “adequação se-
torial negociada” impõe que as limitações ou afastamen-
tos de direitos trabalhistas sejam fruto de uma transação,
e não de uma pura e simples renúncia. Ou seja, a limita-
ção/afastamento de direitos laborais demanda necessari-
amente uma contrapartida benéfica assegurada no ins-
trumento coletivo;
b) Não é necessária a explicitação especificada de vantagens
compensatórias no instrumento coletivo - ou seja, apesar
de serem necessárias contrapartidas para a supressão
parcial ou total de direitos laborais legislados pela via co-
letiva, o STF entendeu que não há a necessidade de as
contrapartidas específicas para cada limitação/afasta-
mento do direito laboral legislado constarem expressa-
mente na convenção ou acordo coletivo de trabalho. Esse
entendimento não encontra base constitucional e preju-
dica severamente o Acesso Material à Justiça (art. 5º,
XXXV, da CF), pois praticamente inviabiliza, a partir de
uma aparente presunção de existência de contrapartidas

19 DELGADO, Maurício Godinho. Direito Coletivo do Trabalho. 7 ed. São Paulo:


Ltr, 2017, p. 83.
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
250 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

proporcionais, que se verifique judicialmente a necessá-


ria natureza transacional do instrumento coletivo e se
impeça a utilização da negociação coletiva como mera
ferramenta de renúncia a direitos20;
c) A possibilidade de limitar ou afastar direitos trabalhistas
previstos em lei não se aplica aos direitos laborais quali-
ficados como absolutamente indisponíveis - o conceito
de direito trabalhista absolutamente indisponível não é
claramente definido nem nunca teve consenso doutriná-
rio, porém, mesmo que os debates e fundamentos do
voto vencedor ainda não tenham sido publicados, pre-
sume-se que o STF entendeu referidos direitos laborais
como sendo aqueles componentes do mínimo existencial
do trabalhador, ou seja, aqueles contidos em disposições
constitucionais ou na legislação infraconstitucional que
regulamenta/concretiza os direitos constitucionais dos
trabalhadores.
Apesar das críticas formuladas acima, percebe-se
que o Supremo Tribunal Federal firmou uma tese relativamente
aberta e passível ainda de inúmeras discussões doutrinárias e
jurisprudenciais, as quais provavelmente se concentrarão, caso

20 Entende-se, assim, que, no instrumento coletivo que pretender flexibilizar parcial


ou totalmente direito trabalhista legalmente assegurado, deve(m) constar de
forma expressa a(s) contrapartida(s) benéficas aos trabalhadores decorrentes
dessa flexibilização lesiva. À falta disso, não seria exigível que, em eventual de-
manda judicial, as próprias partes arbitrem, adivinhem ou indiquem, a posteriori,
as referidas contrapartidas, nem seria razoável que o magistrado tivesse que ofi-
ciosamente fazer essa profunda e muitas vezes complexa avaliação, sem sequer
ter certeza sobre quais foram efetiva e especificamente os direitos criados ou me-
lhorados com o intuito de compensar a flexibilização prejudicial de determinada
norma mínima legal de proteção ao trabalho. Em outras palavras, à falta da men-
ção à contrapartida expressa, a norma coletiva prejudicialmente flexibilizadora,
em uma discussão judicial, deveria ser considerada nula, por se presumir não ter
havido contrapartida.
Charles da Costa Bruxel | 251
a caso, na definição de cada direito como sendo absolutamente
indisponível ou não.

2. O panorama jurídico e a jurisprudência do Tribunal


Constitucional de Portugal sobre a prevalência do
negociado sobre o legislado

Portugal, desde o início do século 21, vem passando


por reformulações em seu modelo de negociação coletiva simi-
lares aos que atualmente estão ocorrendo no Brasil. João Leal
Amado21 explica que, antes da entrada em vigor do Código do
Trabalho de 2003, a controvérsia acerca da relação entre o con-
teúdo das leis e das normas coletivas era resolvida pelo art. 13,
n. 1, da antiga Lei do Contrato de Trabalho de Portugal (LCT,
de 1969) e pelo art. 6º da Lei dos Instrumentos de Regulamenta-
ção Coletiva (Decreto-lei n. 519-C1/79, de 29 de dezembro).
Nesse sentido, o mesmo autor22 salienta que o con-
flito entre as fontes juslaborais se resolvia de acordo com a apli-
cação da norma que estabelecesse um tratamento mais favorá-
vel ao trabalhador, ainda que tal norma se encontrasse contida
numa fonte hierarquicamente inferior. A imperatividade abso-
luta da norma de hierarquia superior - seja, a impossibilidade
de uma norma inferior, ainda que mais favorável ao trabalha-
dor, prevalecer sobre referida norma superior - e a possibilidade
de a norma superior poder ser afastada por norma inferior me-
nos favorável ao trabalhador eram excepcionais.
Rompendo com esse panorama, o Código do Traba-
lho de Portugal editado em 2003, em seu artigo 4º, n. 1, passou

21 AMADO, João Leal. Negociado x legislado: a experiência e a reforma trabalhista


brasileira: algumas notas. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo,
SP, v. 83, n. 3, p. 138-159, jul./set. 2017.
22 Ibidem.
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
252 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

a prever que as normas previstas no referido Código poderiam,


“sem prejuízo do disposto no número seguinte, ser afastadas
por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, salvo
quando delas resultar o contrário”. Gabriela Soares Pommot
Maia23 pondera que a nova legislação autorizou que a negocia-
ção coletiva trouxesse disposições piores do que aquelas previs-
tas em lei, fragilizando a intangibilidade dos direitos mínimos
dos trabalhadores assegurados na própria Constituição Portu-
guesa.
Sobre essa controvérsia, João Leal Amado24 analisa
que o art. 59, n. 2, da Constituição da República Portuguesa
(CRP), estipula que “incumbe ao Estado assegurar as condições
de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm
direito”, de modo que a CRP impõe que o legislador estabeleça,
ele mesmo, um estatuto social mínimo, um patamar legal in-
transponível de proteção dos trabalhadores. Esta é, por força da
Constituição portuguesa, uma atribuição e uma missão funda-
mental do Estado-legislador. Assim, ainda que se trate de um
princípio não escrito, o princípio da norma social mínima pa-
rece encontrar-se implicitamente plasmado no corpo normativo
constitucional de Portugal, de modo que o Texto Maior do país
impõe que deve haver um mínimo legal intangível em matéria
laboral, devendo os direitos dos trabalhadores legalmente con-
sagrados situar-se, a princípio, fora da possibilidade de transa-
ção coletiva prejudicial aos trabalhadores. Nesse contexto, na

23 MAIA, Gabriela Soares Pommot. A relação dos contratos de trabalho atípicos com
a flexibilização do direito do trabalho: uma perspectiva luso-brasileira. 2015. 98 f.
Dissertação (Mestrado) - Mestrado em Direito, Faculdade de Direito, Universi-
dade de Coimbra, Coimbra, 2015.
24 AMADO, João Leal. Negociado x legislado: a experiência e a reforma trabalhista
brasileira: algumas notas. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo,
SP, v. 83, n. 3, p. 138-159, jul./set. 2017.
Charles da Costa Bruxel | 253
redação do artigo 4º do Código do Trabalho de Portugal de
2003, o Estado-legislador se retraiu e pareceu mesmo se demitir
de suas responsabilidades: a tarefa constitucional não é cum-
prida e a missão assecuratória do legislador converte-se, no fi-
nal das contas, numa autêntica demissão parlamentar e/ou go-
vernamental. Ou seja, a lei não poderia, de forma válida (com-
patível com a Constituição Portuguesa), ter autorizado a ampla
possibilidade de a negociação coletiva prevalecer sobre a lei,
ainda que de forma mais prejudicial ao trabalhador.
Luanne Maia Pinheiro25 ressalta que o Código do
Trabalho de 2003 inaugurou a flexibilização da legislação traba-
lhista portuguesa, tendência que foi seguida posteriormente.
Assim, atendendo à determinação de revisão do referido Có-
digo do Trabalho após quatro anos de sua entrada em vigor (art.
20 da Lei nº 99/2003), foi iniciado o debate de uma ampla re-
forma no Código do Trabalho português.
Essa reforma do direito laboral português foi influ-
enciada pelo denominado Livro Verde sobre a Modernização
da Legislação do Trabalho, apresentado pela Comissão das Co-
munidades Europeias, em 2006. Glória Rebelo26 explica que esse
documento defende, em síntese, uma ampliação da flexibiliza-
ção das relações de trabalho acompanhada de um reforço da
proteção social dos cidadãos. Já Hermes Augusto Costa27 sali-
enta que o modelo trazido pelo citado Livro Verde é o da “fle-
xissegurança”, cuja vertente mais citada e estudada em Portugal

25 PINHEIRO, Luanne Maia. Os limites da flexibilização no direito do trabalho: o


conflito entre o negociado e o legislado nos ordenamentos jurídico português e
brasileiro. 2020. 139 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Direito,
Departamento de Direito, Universidade Autônoma de Lisboa, Lisboa, 2020.
26 REBELO, Glória. A revisão do código de trabalho. Lisboa: Dinâmia, 2008.
27 COSTA, Hermes Augusto. A flexigurança em Portugal: desafios e dilemas da sua
aplicação. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 86, n. 1, p. 123-144, set.
2009.
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
254 |
entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal ...

é o denominado "modelo dinarmarquês" de flexissegurança, o

qual se ancora em três pilares: mercados de trabalho flexíveis,

sistemas de bem-estar fortes (destacadamente subsídios/com-

pensações pela perda de emprego) e políticas ativas do mercado

de trabalho (promoção de novas oportunidades de emprego) .

Nesse contexto, Glória Rebelo²8 também destaca que,

desde a entrada em vigor do Código do Trabalho de Portugal


de 2003 que visou especialmente sistematizar e flexibilizar a

lei laboral portuguesa - haviam ocorrido fortes transformações

sociais e econômicas, de modo que o legislador não podia igno-


rar nem as mudanças globais nem as especificidades do modelo

socioeconômico português. Salienta a autora que as alterações

na legislação laboral que culminaram no Código do Trabalho

português de 2009 se guiaram por cinco eixos principais: au-


mentar a adaptabilidade das empresas; promover a regulação

contratual coletiva; alterar o regime dos despedimentos; refor-

çar a efetividade da legislação laboral; combater a precariedade

e a segmentação e promover a qualidade do emprego, adap-

tando de forma articulada a legislação laboral, a proteção social


e as políticas de emprego .

Apesar do ideal de promover a qualidade no em-

prego, Gabriela Soares Pommot Maia29 explica que o Código do


Trabalho de 2009 manteve as normas legais, como regra, como

sendo "convênio -dispositivas" - ou seja, a negociação coletiva

continuou podendo, ainda que de modo mais prejudicial ao tra-

balhador, prevalecer sobre o direito legislado -, como se verifica


20

28 Ibidem .
22

29
MAIA, Gabriela Soares Pommot. A relação dos contratos de trabalho atípicos com
a flexibilização do direito do trabalho : uma perspectiva luso-brasileira . 2015. 98 f.
Dissertação (Mestrado) - Mestrado em Direito, Faculdade de Direito, Universi-
dade de Coimbra, Coimbra, 2015.
Charles da Costa Bruxel | 255
do art. 3º, n. 1, do Código do Trabalho português de 200930, po-
rém estabeleceu rol de matérias, como se extrai do art. 3º, n. 3,
do referido Código31, em que a regulamentação coletiva de tra-
balho somente prevaleceria sobre as normas legais laborais no
caso de serem mais favoráveis aos trabalhadores.
A partir desse panorama jurídico controvertido, Ma-
riana de Alvim Pinto32 explana que, apesar de polêmicas em
torno da possível inconstitucionalidade da fórmula geral de
prevalência do negociado coletivamente sobre o legislado ado-
tada pelo Código do Trabalho de 2003, o Tribunal Constitucio-
nal reconheceu a compatibilidade do art. 3º, n. 1, do Código do
Trabalho de Portugal de 2009, com a Constituição Portuguesa.
Em síntese, o Tribunal Constitucional de Portugal
(Acórdão n. 338/201033) entendeu que a solução adotada pelo le-
gislador foi razoável, uma vez que a prevalência da negociação

30 Código do Trabalho de Portugal de 2009, art. 3º, n. 1: “As normas legais regula-
doras de contrato de trabalho podem ser afastadas por instrumento de regula-
mentação colectiva de trabalho, salvo quando delas resultar o contrário.”
31 Código do Trabalho de Portugal de 2009, art. 3º, n. 3: “As normas legais regula-
doras de contrato de trabalho só podem ser afastadas por instrumento de regula-
mentação coletiva de trabalho que, sem oposição daquelas normas, disponha em
sentido mais favorável aos trabalhadores quando respeitem às seguintes maté-
rias: a) Direitos de personalidade, igualdade e não discriminação; b) Proteção na
parentalidade; c) Trabalho de menores; d) Trabalhador com capacidade de traba-
lho reduzida, com deficiência ou doença crónica; e) Trabalhador-estudante; f) De-
ver de informação do empregador; g) Limites à duração dos períodos normais de
trabalho diário e semanal; h) Duração mínima dos períodos de repouso, incluindo
a duração mínima do período anual de férias; i) Duração máxima do trabalho dos
trabalhadores noturnos; j) Forma de cumprimento e garantias da retribuição; l)
Capítulo sobre prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profis-
sionais e legislação que o regulamenta; m) Transmissão de empresa ou estabele-
cimento; n) Direitos dos representantes eleitos dos trabalhadores.”
32 PINTO, Mariana de Alvim. As Convenções Coletivas como Fonte de Direito do
Trabalho: tendências atuais. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, v. 6, p. 1113-
1166, nov. 2015.
33 PORTUGAL. Corte Constitucional. Acórdão nº 338/2010 do Plenário. Relator
256 | A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

coletiva sobre a legislação não foi expressamente estabelecida


para todas as matérias (vide art. 3º, n. 3, do CT/2009) e, ademais,
a partir do que dispõe o próprio art. 3º, n. 1, do Código do Tra-
balho português, ficou aberta a possibilidade de se concluir, por
meio da interpretação, que outras normais legais têm caráter
imperativo, a fim de, consequentemente, não poderem ser afas-
tadas por meio de instrumento de negociação coletiva34.
O entendimento jurisprudencial consolidado coinci-
diu com a compreensão propugnada por Luís Manuel Teles de
Menezes Leitão35 que defende, segundo o Código do Trabalho
português de 2009, que, a princípio, a norma coletiva de traba-
lho pode derrogar as disposições legislativas laborais, indepen-
dentemente do conteúdo ser ou não mais favorável ao trabalha-
dor, salvo quando a análise da lei revelar que o direito legislado
teria caráter imperativo (estaria estabelecendo um patamar mí-
nimo ao laborista).
Assim, o ordenamento juslaboral português, nos ter-
mos da interpretação conferida pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional de Portugal, demanda que cada direito assegu-
rado pela lei seja analisado e interpretado para, só então, ser
possível se concluir pela possibilidade ou não de instrumentos
de regulamentação coletiva do trabalho prevalecerem sobre a

Cons. José Borges Soeiro. Lisboa, Portugal, 22 de setembro de 2010. Disponível


em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100338.html Acesso
em: 15 set. 2021.
34 Veja-se trecho da fundamentação do acórdão: “De facto, o artigo 3.º, n.º 1, estabe-
lece uma presunção de supletividade da lei em relação aos instrumentos de regu-
lamentação colectiva, mas não transforma todas as normas legais em normas su-
pletivas. Pelo contrário, faz menção expressa à possibilidade de, por interpreta-
ção, se concluir que a norma legal tem um carácter imperativo, não podendo, por-
tanto, ser afastada por instrumento de regulamentação colectiva [...].”
35 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito do Trabalho. 3 ed. Coimbra:
Almedina, 2012, p. 80.
Charles da Costa Bruxel | 257
legislação em sentido menos favorável ao trabalhador. Em ou-
tras palavras, o rol do art. 3º, n. 3, do Código do Trabalho por-
tuguês não pode ser lido como se exaustivo fosse e, consequen-
temente, somente uma análise casuística pode revelar até onde
o negociado coletivamente efetivamente poderá prevalecer so-
bre o legislado.

3. Análise comparativa entre a jurisprudência do Supremo


Tribunal Federal do Brasil e do Tribunal Constitucional
de Portugal

O precedente do Tribunal Constitucional de Portugal


a respeito da prevalência do negociado coletivamente sobre o
legislado (Acórdão nº 338/201036) apreciou a constitucionali-
dade do dispositivo do Código do Trabalho português de 2009
- que estabeleceu a possibilidade de a negociação coletiva,
mesmo em sentido mais prejudicial ao trabalhador, poder afas-
tar os ditames do direito legislado -, entendendo que tal norma
era compatível com a Constituição de Portugal (art. 59, 237), haja

36 PORTUGAL. Corte Constitucional. Acórdão nº 338/2010 do Plenário. Relator


Cons. José Borges Soeiro. Lisboa, Portugal, 22 de setembro de 2010. Disponível
em: https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100338.html Acesso
em: 15 set. 2021.
37 Constituição da República Portuguesa, art. 59, 2: “Artigo 59.º Direitos dos traba-
lhadores [...] 2. Incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição
e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente: a) O estabeleci-
mento e a atualização do salário mínimo nacional, tendo em conta, entre outros
fatores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível
de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade econó-
mica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento; b) A fixação, a nível
nacional, dos limites da duração do trabalho; c) A especial proteção do trabalho
das mulheres durante a gravidez e após o parto, bem como do trabalho dos me-
nores, dos diminuídos e dos que desempenhem atividades particularmente vio-
lentas ou em condições insalubres, tóxicas ou perigosas; d) O desenvolvimento
sistemático de uma rede de centros de repouso e de férias, em cooperação com
A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
258 | entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

vista que o legislador expressamente resguardou alguns direi-


tos laborais da possibilidade de flexibilização prejudicial e, ade-
mais, consoante compreensão explicitada pela Corte, a fórmula
adotada pela lei foi flexível e permitiu que, a partir da interpre-
tação de cada direito legislado, fosse possível se concluir pela
vedação ou não à flexibilização coletiva lesiva ao trabalhador.
O Supremo Tribunal Federal do Brasil, por outro
lado, ainda não apreciou as disposições trazidas pela Lei nº
13.467/2017 - que, tal como a legislação de Portugal, adotou a
ampla prevalência do negociado sobre o legislado como regra,
porém, ao contrário de Portugal, trouxe rol taxativo de exceções
(casos em que a convenção e o acordo coletivo de trabalho não
poderiam suprimir ou reduzir os direitos legislados). Entre-
tanto construiu diretamente a partir do conteúdo da Constitui-
ção Federal brasileira - mais rica do que a portuguesa em rela-
ção ao tema - a definição acerca da possibilidade da proeminên-
cia da negociação coletiva sobre as disposições legislativas labo-
rais, chegando a solução muito próxima daquela existente em
Portugal.
Nota-se, assim, que, a partir da jurisprudência do Su-
premo Tribunal Federal do Brasil e do Tribunal Constitucional
de Portugal, ainda que cada tribunal tenha partido da interpre-
tação de ordenamentos jurídicos diversos, ambos os países se
encontram em situação jurídica muito similar: foi validada
constitucionalmente a prevalência do negociado coletivamente
sobre o legislado como regra, ainda que flexibilizando prejudi-
cialmente o conteúdo do direito estatal, porém foram resguar

organizações sociais; e) A proteção das condições de trabalho e a garantia dos


benefícios sociais dos trabalhadores emigrantes; f) A proteção das condições de
trabalho dos trabalhadores estudantes”.
Charles da Costa Bruxel | 259
dados de supressões parciais ou totais os direitos laborais legis-
lados entendidos como de natureza imperativa (indisponibili-
dade absoluta), tendo sido concedido, expressa ou implicita-
mente, espaço para a doutrina e a jurisprudência definirem
quais seriam estes direitos.

Considerações finais

Comparando a jurisprudência do Supremo Tribunal


Federal do Brasil e do Tribunal Constitucional de Portugal,
ainda que cada tribunal tenha partido da interpretação de orde-
namentos jurídicos diversos, pôde-se constatar a similaridade
entre as compreensões adotadas, já que, em ambos os casos: foi
validada constitucionalmente a prevalência do negociado cole-
tivamente sobre o legislado como regra, ainda que flexibili-
zando prejudicialmente o conteúdo do direito estatal, porém fo-
ram resguardados de supressões parciais ou totais os direitos
laborais legislados entendidos como de natureza imperativa
(indisponibilidade absoluta), tendo sido concedido, expressa ou
implicitamente, espaço para a doutrina e a jurisprudência defi-
nirem quais seriam estes direitos.
Nesse contexto, a análise comparativa entre o enten-
dimento da Suprema Corte de cada país demonstrou ter sido
acertada a hipótese inicial no sentido de que o Supremo Tribu-
nal Federal do Brasil e o Tribunal Constitucional de Portugal
teriam jurisprudências muito próximas acerca da proeminência
do negociado coletivamente sobre o legislado, apesar das disso-
nâncias entre os ordenamentos jurídicos de cada país.
Por outro lado, a similaridade dos debates trabalhis-
tas existentes em ambos os países torna fundamental que ambos
os Tribunais decidam questões similares levando em conta os
precedentes um do outro, pois esse processo dialógico tem o
260 | A prevalência do negociado sobre o legislado: análise comparativa
entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal...

potencial de enriquecer o Direito do Trabalho tanto do Brasil


quanto de Portugal e permitir que, antes de decidir, cada Tribu-
nal possa avaliar, dentro de sua respectiva realidade, os argu-
mentos, acertos, erros e consequências dos julgados adotados
pela outra nação, a fim de, a partir da experiência alheia, evitar
equívocos e garantir interpretações/aplicações maduras e mais
coerentes do Direito Laboral.

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Charles da Costa Bruxel |263
THE PREVALENCE OF THE NEGOTIATED OVER
THE LEGISLATED: COMPARATIVE ANALYSIS
BETWEEN THE JURISPRUDENCE OF THE
FEDERAL SUPREME COURT AND THE
CONSTITUTIONAL COURT OF PORTUGAL
Abstract: Given the importance of the matter and the novelties
brought by Law no. 13,467/2017 (Labor Reform), the work aimed to
analyze and compare the jurisprudence of the Federal Supreme Court
of Brazil with that of the Constitutional Court of Portugal regarding
the prevalence of collective bargaining over the legislature, in order
to verify the degree of similarity of theses adopted by jurisprudence
in each respective country. The method of approach employed was,
primarily, the comparative, as the comparison between the under-
standings, on the same matter, adopted by the Constitutional Court
of Brazil and Portugal was carried out. After the development of the
work, it was verified that the jurisprudence of the Federal Supreme
Court of Brazil and of the Constitutional Court of Portugal, although
each court has departed from the interpretation of different legal or-
ders, are very similar: both validated constitutionally the prevalence
of the collectively negotiated over the legislated as a rule, although
making the content of state law harmfully flexible, however recogniz-
ing that the legislated labor rights understood as imperative in nature
must be protected from partial or total suppression (unavailability ab-
solute), having been granted, expressly or implicitly, space for doc-
trine and jurisprudence to define what these rights would be. In this
sense, it was found that the hypothesis adopted at the beginning of
the article proved to be correct, since, in fact, both countries have fol-
lowed, until now, very similar jurisprudential lines on the promi-
nence of collectively negotiated over legislated law.
Keywords: Collective bargaining. Law legislated. Brazil. Portugal. Ju-
risprudence.
CAPÍTULO X.
O PAPEL DA UNIÃO EUROPEIA NA
GOVERNANÇA AMBIENTAL GLOBAL

Milena Alencar Gondim*

Resumo: A governança ambiental global visa à participação e ao en-


gajamento de toda a comunidade internacional para a elaboração e
execução de medidas, normativos e soluções para a preservação am-
biental e o desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, destaca-se a
figura da União Europeia, cujas políticas ambientais bem desenvolvi-
das e atuação nas questões ambientais podem levar a pressupor sua
liderança em escala mundial. O objetivo do trabalho é analisar o papel
da União Europeia na governança ambiental global. Concluiu-se que,
apesar de não se poder afirmar uma liderança estável, a União Euro-
peia tem relevância significativa na governança ambiental global. A
pesquisa é qualitativa e bibliográfica, voltada para a análise da dou-
trina.
Palavras-chave: União Europeia. Governança. Governança ambiental
global.

Introdução

O termo governança originou-se no âmbito da esfera


privada, tendo sido difundida pelas instituições de Bretton Wo-
ods, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (GOMI-
DES e SILVA, 2010). O conceito foi absorvido pela esfera estatal

*
Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2010). Atual-
mente é Procuradora Jurídica do Instituto de Previdência do Município de Forta-
leza. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público. Mes-
tranda em Direito pelo PPGD/UFC.
Milena Alencar Gondim | 265
nas mais diversas áreas, tais como da gestão pública e da ambi-
ental.
O termo governança propagou-se de tal maneira que
há a governança pública, a governança corporativa, a gover-
nança urbana, a governança eletrônica ou e-governança e a go-
vernança ambiental (GOMIDES; SILVA, 2009).
A governança ambiental pressupõe a participação e
o engajamento de todos os sujeitos, internos e externos, o com-
partilhamento de objetivos, a fluidez das fronteiras, a diversi-
dade de ação, a intervenção e o controle, visando à proteção do
meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável1.
Uma vez que os danos ambientais podem causar da-
nos transfronteiriços e transgeracionais, exsurge a ideia de ne-
cessidade de uma governança ambiental global, a fim de que

1 Os conceitos de desenvolvimento sustentável e sustentabilidade, embora se rela-


cionem, possuem nuances distintas. A sustentabilidade trata da capacidade de
manutenção de um sistema a longo prazo conforme aspectos sociais, econômicos
e ambientais que lhe são próprios. Essa noção abrangente visa a harmonizar as
necessidades presentes com a capacidade das futuras gerações de suprirem suas
necessidades.
Por sua vez, o desenvolvimento sustentável refere-se a uma abordagem específica
para alcançar a sustentabilidade, compreendendo a formulação e implementação
de políticas, estratégias e práticas cujos objetivos consistam em conciliar com
equilíbrio os aspectos econômicos, ambientais e sociais do processo de desenvol-
vimento humano.
Assim, o desenvolvimento sustentável visa a estabelecer uma expansão econô-
mica que considere a preservação do meio ambiente, a justiça social e a melhora
na qualidade de vida dos seres humanos concomitante à minimização dos efeitos
adversos sobre a biosfera e as gerações futuras.
Cumpre salientar que o desenvolvimento sustentável pressupõe uma perspectiva
holística, contemplando os três pilares fundamentais, quais sejam, econômico, so-
cial e ambiental, de forma integrada e equilibrada, com a finalidade de garantir a
sustentabilidade a longo prazo.
Dessa forma, de um lado, a sustentabilidade consiste no propósito a ser alcan-
çado, enquanto o desenvolvimento sustentável apresenta-se como o meio pelo
qual será lograda.
266 | O papel da união europeia na governança ambiental global

toda a comunidade internacional participe efetivamente das


discussões, da proposição de medidas e soluções e, principal-
mente, da execução das políticas ambientais.
Nesse contexto, destaca-se a União Europeia, cujo
comprometimento com a preservação do meio ambiente serve
de referência em escala global.
Neste trabalho, objetiva-se analisar o papel da União
Europeia na governança ambiental global.
No primeiro tópico deste artigo, serão tratados con-
ceitos sobre governança, governança ambiental e governança
ambiental global. No segundo tópico, será abordado o contexto
da governança ambiental no âmbito da União Europeia. Por
fim, no terceiro tópico, será analisado o papel da União Euro-
peia na governança ambiental global.
A metodologia da pesquisa é qualitativa, explorató-
ria e bibliográfica, voltada para a análise da doutrina.

1. A governança, a governança ambiental e a governança


ambiental global

A governança pressupõe a participação de todos os


envolvidos, na esfera de suas respectivas competências, na
construção de uma gestão orientada à conformidade dos atos e
processos com os devidos normativos, ao controle preventivo e
corretivo, bem como à capacitação dos sujeitos envolvidos, vi-
sando à obtenção de resultados.
Dessa forma, o modelo de governança difere do tra-
dicional, uma vez que visa à paridade entre os sujeitos envolvi-
dos, ampliando a noção de representatividade, prevê critérios
de avaliação e tem a efetividade como uma meta, não como um
meio para a perpetuação de poder.
Milena Alencar Gondim | 267
Ainda, é intrínseca à noção de governança a conti-
nuidade dos processos e, portanto, sua impessoalidade. O su-
cesso de uma dinâmica processual pode levar a sua institucio-
nalização, não sendo atrelada a um determinado grupo domi-
nante, do que decorre o favorecimento à criação de uma cultura
voltada para resultados. Esses resultados consistem no atendi-
mento às expectativas e, portanto, das demandas dos envolvi-
dos direta ou indiretamente.
No contexto estatal, a governança propõe a instaura-
ção de procedimentos e suas respectivas execuções visando à
eficiência administrativa para o alcance dos resultados acorda-
dos por representantes e representados. Nesta senda, amalga-
mados ao conceito de governança pública, destacam-se os prin-
cípios da prestação de contas e da responsabilização dos agen-
tes públicos; a transparência e a fiabilidade das informações; as
políticas, a gestão e as estruturas públicas eficientes, legitima-
doras das decisões e norteadores das ações de gestão; bem como
as instituições e os processos relacionados às políticas públicas
em conformidade com o interesse público (TEIXEIRA; GOMES,
2019).
Já a noção de governança ambiental sugere a partici-
pação de todos os sujeitos, tanto do Poder Público quanto da
população, esta por meio de organizações civis, visando à
abrangente e efetiva adesão ao projeto de conservar os recursos
naturais do planeta. Não se trata apenas de modelos de gestão,
mas também da difusão na sua dimensão instrumental, que
pressupõe a participação ativa de todos os envolvidos nas ações
que visam à cooperação e ao consenso (JACOBI; SINISGALLI,
2012).
Assim, tem-se a transcendência dos modelos tradici-
onais de gestão ambiental, deslocando a população do local de
espectador das decisões emanadas por seus representantes e
268 | O papel da união europeia na governança ambiental global

por suas equipes para um espaço de corresponsabilidade, de co-


gestão e de execução das políticas públicas ambientais paritari-
amente com os gestores públicos.
O modelo de governança ambiental viabiliza a efe-
tiva influência dos grupos dominados sobre o Poder Público,
favorecendo a manifestação de seus interesses e a consideração
destes na tomada de decisões relativas às questões ambientais.
A ideia de desenvolvimento sustentável, ao qual se destina a
governança ambiental, passa a ser multifocal, ao invés de incli-
nar-se apenas ao interesse dos grupos dominantes, o que o des-
caracterizaria.
Não se pode olvidar, contudo, que os danos ambien-
tais podem ter implicações que vão muito além das fronteiras.
A despeito da iniciativa de alguns países no sentido de construir
em seus ordenamentos jurídicos um arcabouço normativo vi-
sando à proteção do meio ambiente e à mitigação dos danos pa-
ralelos causados pela degradação ambiental, essas soluções in-
ternas não foram suficientes para afastar a ocorrência de desas-
tres ambientais cuja repercussão afetava mais de um Estado.
Compreendeu-se, assim, que o meio ambiente é um todo indi-
visível e, portanto, a normatização ambiental deve ser unificada
sob o prisma do direito internacional (GRASSI, 2011).
Dentre vários documentos de repercussão internaci-
onal relativos às questões ambientais, destaca-se o Relatório de
Brundtland, também conhecido como Our Common Future
(Nosso Futuro Comum), de 1987, que enfatiza o risco ambiental
do crescimento econômico e manifesta a ideia de desenvolvi-
mento sustentável por meio de uma estratégia política que con-
sagre crescimento econômico e sustentabilidade ecológica
(RECH, 2017). O relatório teve uma grande relevância para a
evolução do direito ambiental, tanto nacional quanto internaci
Milena Alencar Gondim | 269
onal, uma vez que apresentou um novo paradigma para a pre-
servação do meio ambiente, que passou a ser componente in-
trínseca ao desenvolvimento econômico (GRASSI, 2011).
Além de documentos transnacionais, ocorreram
eventos também de repercussão internacional de grande rele-
vância para a mudança de perspectiva sobre o direito ambien-
tal, dos quais se sobressai a Conferência das Nações Unidas so-
bre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Ja-
neiro em 1992, a Eco-92. Constituindo a maior conferência rea-
lizada até então pelas Nações Unidas, a conferência sedimentou
o lugar da questão ambiental na agenda política mundial
(RECH, 2017). Tem-se, então, as bases para a ideia de uma go-
vernança ambiental global.
A perspectiva de uma governança ambiental global
está diretamente relacionada com a ideia de transnacionaliza-
ção da sustentabilidade, que flexibiliza a soberania do Estado
com enfoque na coletividade mundial. Com os avanços na co-
municação e na tecnologia, as fronteiras relativizam-se cada dia
mais, logo o desenvolvimento sustentável transnacional é mais
uma meta a ser alcançada em escala mundial (CARNEIRO et al,
2016).
A União Europeia (UE), por meio da Comissão Eu-
ropeia (CE), manifestou em 2003 o compromisso da Europa com
um sistema multilateral, no qual estaria à frente as Nações Uni-
das e, ao mesmo tempo, destacou formas de incrementar a in-
fluência europeia (VOGLER; STEPHAN, 2007). Essa comunica-
ção não se ateve às relações econômicas, mas abrangeu também
as questões sobre preservação dos recursos naturais em uma es-
cala transfronteiriça. Assim, a União Europeia lideraria a gover-
nança ambiental global.
270 | O papel da união europeia na governança ambiental global

2. A governança ambiental na União Europeia

As Comunidades Europeias surgiram no final da dé-


cada de 1950 com competências eminentemente econômicas, e
somente a partir da década de 1970 percebe-se uma certa ampli-
ação para contemplar a proteção ao meio ambiente, mediante as
Diretivas 75/439 e 75/442, relativas a óleos usados e a resíduos
respectivamente (MONTEIRO; JAHNEL, 2019).
Por sua vez, as primeiras iniciativas visando à con-
servação do meio ambiente relacionavam-se a valores privados
e individuais, tais como direito de vizinhança e questões econô-
micas relativas à propriedade, consistindo, pois, em uma pers-
pectiva meramente utilitária. Contudo, somente a partir da se-
gunda metade do século XX, a preservação do meio ambiente
foi objeto de atenção como um bem em si mesmo e essencial
para a vida humana (GRASSI, 2011).
O percurso normativo e jurisprudencial da proteção
ambiental na esfera europeia demonstra a evolução em suas
perspectivas. Em outubro de 1972, a Declaração de Paris estabe-
leceu o início da Política Comunitária do Ambiente. Na década
de 1980, destaca-se decisão exarada pelo Tribunal de Justiça Eu-
ropeu, na qual se manifestou expressamente que a proteção am-
biental contra o risco de poluição compõe o rol de objetivos es-
senciais da Comunidade. Já em 1987, o Ato Único Europeu con-
feriu competências ambientais à Comunidade Econômica Euro-
peia. Na década de 1990, por sua vez, o Tratado de Maastricht
de 1992, que criou a União Europeia, alterou tratados vigentes
à época para introduzir dispositivos assegurando o desenvolvi-
mento sustentável. Em 1997, o Tratado de Amsterdã também
alterou o Ato Único Europeu, inaugurando a previsão do prin-
cípio da precaução como norteador da política ambiental euro-
peia. Nos anos 2000, a Carta dos Direitos Fundamentais elevou
Milena Alencar Gondim | 271
o direito fundamental ao ambiente ao status de direito da soli-
dariedade. Ainda, ressalte-se o Tratado de Lisboa de 2009, que
trouxe inovações na matéria ambiental, tais como a nova polí-
tica energética e a coesão territorial para reduzir as desigualda-
des de desenvolvimento regional e o atraso nas regiões desfa-
vorecidas (MONTEIRO; JAHNEL, 2019).
A evolução da proteção ao meio ambiente no âmbito
da União Europeia demonstra um exemplo de transnacionali-
zação do desenvolvimento sustentável. Relativizam-se as bar-
reiras fronteiriças a fim de lograr a consecução de uma efetiva
proteção contra os danos ambientais, cujas consequências não
respeitam limites geográficos de qualquer ordem.
Ainda que caiba aos Estados a implantação de suas
respectivas políticas ambientais, a concepção de uma gover-
nança ambiental não pode excluir as relações sociais em propor-
ções globais. Primeiramente, iniciativas conjuntas das nações
contíguas, como no caso da União Europeia, exerceram papel
fundamental no estabelecimento de políticas públicas ambien-
tais focadas nos interesses da coletividade transnacional. Então,
evoluiu-se para o pensamento das questões ambientais, e con-
sequentemente das medidas necessárias à conservação dos re-
cursos naturais, em escala mundial.
A União Europeia decorreu da evolução político-ad-
ministrativa visando a transpor as desconfianças e temores his-
tóricos entre os países que a compõe e assegurar a igualdade
entre os Estados. A execução das políticas da União Europeia é
de responsabilidade da Comissão Europeia, formada por mem-
bros independentes sem vínculo de natureza governamental. É
a essa comissão que competem as ações para implementação
das leis ambientais. Há, na União Europeia, equalização dos
membros sem prejuízo das suas identidades (BARRETO; BAR-
BOSA, 1999).
272 | O papel da união europeia na governança ambiental global

A União Europeia, além das fontes originárias referi-


das anteriormente, também aplica fontes subsidiárias voltadas
à proteção ambiental, quais sejam doutrina e jurisprudência,
fontes derivadas, mais precisamente diretivas e regulamentos e
diversos instrumentos de proteção (DAMACENA, 2011). Para
fins didáticos, este trabalho vale-se apenas de alguns dos instru-
mentos de proteção ambiental a título exemplificativo.
Destacam-se, dentre os instrumentos de proteção, a
rede Natura 2000, que se trata de uma espécie de cordão de se-
gurança em torno de áreas cuja diversidade está ameaçada; bem
como o primeiro programa de ação voltado a questões ambien-
tais decorrente da Conferência de Estocolmo, o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Ambiente
2010, programa que estabelece as prioridades e os objetivos da
política ambiental europeia até 2010 (DAMACENA, 2011). Atu-
almente, está em plena vigência o Programa Geral de Ação da
União para 2030 em Matéria de Ambiente, aprovado pelo Par-
lamento Europeu em 10 de março de 2022 (UNIÃO EUROPEIA,
2022).
Nesta senda, é importante trazer à baila as Diretivas,
que são atos vinculativos para os membros da União Europeia,
que podem têm repercussões supranacionais.
As Diretivas vinculam os Estados-membros na con-
secução dos objetivos, relacionados a resultados, prevendo, a
depender do caso, maior ou menor espaço para que cada Estado
opte pela forma e os meios para implementá-los. Dessa forma,
não há uma uniformização normativa, portanto se fala em sua
função de harmonização das legislações nacionais. Confere-se,
assim, liberdade para adaptação do texto das Diretivas por cada
Estado-membro em conformidade com sua realidade econô-
mica e social. A não observância dos prazos estabelecidos pelas
Milena Alencar Gondim | 273
Diretivas pode ensejar a aplicação de sanções (SIQUEIRA,
2020).
Ademais, o direito ambiental da União Europeia
transcende o conceito de meio ambiente como apenas os recur-
sos naturais, abrangendo também ambiente físico e saúde. Nor-
teia-se pelos princípios da precaução, prevenção, correção, uti-
lizador-pagador, poluidor-pagador e da integração da defesa
do ambiente na definição e aplicação das demais políticas, sem-
pre visando ao desenvolvimento sustentável (SIQUEIRA, 2020).
Norteada pela cooperação e pela integração entre os
países-membros e, portanto, coerente com o caráter transfron-
teiriço e global da proteção do meio ambiente (DAMACENA,
2011), a União Europeia exerce um papel de destaque como ator
na governança ambiental global, suscitando a ideia de sua con-
figuração como liderança de governança ambiental global.

3. O papel da União Europeia na governança ambiental


global

A governança ambiental global visa a um formato ca-


racterizado pela liberdade e pela ética ambiental, com resulta-
dos efetivos na proteção do meio ambiente, da humanidade e
de todos os seres vivos, com engajamento a nível mundial, não
apenas local, voltado às presentes e futuras gerações (GOMES;
CALHAU, 2022).
Vale ressaltar que essa perspectiva de governança
não implica a submissão aos órgãos internacionais ou, ainda, a
ofensa à soberania dos Estados. Trata-se de uma visão de coo-
peração entre os atores da comunidade internacional na busca
pelo bem comum.
Uma vez que não há a concepção de submissão, sus-
cita-se a ideia não de uma posição da União Europeia como
274 | O papel da união europeia na governança ambiental global

mandatária ou dirigente, mas como líder da governança ambi-


ental global.
Nos principais fóruns globais sobre a matéria ambi-
ental, a União Europeia habitualmente é um dos poucos inter-
venientes a defender consistentemente as reformas institucio-
nais e a implementação rápida e responsável dos compromissos
existentes. Inclusive, a União Europeia chegou a sugerir que
instituições internacionais fossem dotadas de poderes legais de
monitoramento e conformidade. (VOGLER; STEPHAN, 2007).
Conforme mencionado, a Comissão Europeia, em
2003, emitiu comunicação em que, implicitamente se autopro-
clama líder da governança ambiental global. Esse papel de lide-
rança da União Europeia já foi reconhecido pela doutrina, espe-
cialmente no que concerne às mudanças climáticas, em razão
tanto de elementos concretos quanto ideacionais, tais como me-
lhores indicadores ambientais, arcabouço normativo robusto e
avançado em relação à proteção e debates sobre o conteúdo dos
princípios (GONÇALVES, 2016).
Ocorre que o papel da União Europeia enquanto lí-
der da governança global ambiental é questionável, pois pode
afigurar-se mais retórico do que efetivo. Percebe-se um desen-
contro entre as expectativas da União e o que realmente realiza
no âmbito internacional (VOGLER; STEPHAN, 2007).
Independentemente de se confirmar ou se afastar a
liderança da União Europeia na governança global ambiental, é
indiscutível o poder de influência que exerce sobre as políticas
ambientais internacionais. Decorre de suas competências políti-
cas, de sua personalidade jurídica e do seu poder econômico a
diferenciação de uma aliança entre Estados, podendo caracte-
rizá-la como ator na governança global ambiental.
A União Europeia inquestionavelmente demonstra
seu compromisso com o ideal de desenvolvimento sustentável,
Milena Alencar Gondim | 275
sendo vista como uma referência do ponto de vista intelectual
em razão de suas políticas ambientais bem desenvolvidas. Fo-
ram de grande relevância as contribuições europeias para a
construção do ideário de desenvolvimento sustentável, que ser-
viu como ponte teórica que liga o ambiente à economia e à soci-
edade (VOGLER; STEPHAN, 2007).
Ressalte-se, entretanto, que, cada vez mais dinâmi-
cas, em razão dos avanços tecnológicos, sociais, culturais e na
comunicação, as questões ambientais demandam processos
contínuos de revisão dos arranjos de negociação e de solução
para se manterem viáveis e para lograr o engajamento da comu-
nidade mundial.
Essa dinamicidade também alcança o poder de in-
fluência da União Europeia sobre os atores a ela externos, a qual
é variável ao longo do tempo. Sua relevância é irrefutável, no
entanto sua liderança na governança ambiental, especialmente
quanto às questões climáticas, vem sendo questionada. Isso não
se dá em razão de suas motivações para ocupar o espaço de lí-
der, mas no seu poder de influência sobre os demais membros
não integrantes da União (GONÇALVES, 2016).
A despeito de sua posição referencial no tocante às
iniciativas de proteção ambiental, ainda que de forma não exa-
cerbada, há incoerências entre os Estados-membros e a Comis-
são Europeia, do que pode decorrer enfraquecimentos sazonais
em seu poder de influência sobre os demais Estados.
Para dispor de maior credibilidade, o bloco deve ali-
nhar suas políticas internas e criar ligações com políticas exter-
nas com elas coerentes, assim demonstraria, por meio do exem-
plo, a toda a comunidade internacional sua habilidade de uni-
cidade. Ainda nesta senda, a União Europeia carece de maior
alinhamento nos seus posicionamentos para que não sejam vis-
tos como “duplos padrões” (VOGLER; STEPHAN, 2007).
276 | O papel da união europeia na governança ambiental global

A despeito de algumas questões a serem superadas,


o bloco é reconhecidamente conceituado no cenário internacio-
nal pela definição de agenda perseverante e intrinsecamente
comprometida com o paradigma da preservação do meio ambi-
ente, aliado ao desenvolvimento sustentável.
Direta ou indiretamente, a União Europeia exerceu,
e ainda exerce, grande influência na definição e na execução das
agendas ambientais mundiais, o que, por si, denota o papel de
extrema relevância do bloco no desenvolvimento sustentável
em escala global.

Considerações finais

O conceito de governança congrega, como seus prin-


cipais elementos, a participação, a conformidade com as normas
e os princípios, a continuidade dos processos, a capacitação, o
controle e a obtenção de resultados.
Importado o referido conceito para a perspectiva do
meio ambiente, a governança ambiental visa ao engajamento e
à cooperação entre os envolvidos para estabelecer e executar
normativos, medidas e soluções, bem como executá-los, de
forma integrada, para preservar o meio ambiente e garantir o
desenvolvimento sustentável.
Diante da inexistência de limites fronteiriços para as
repercussões dos danos ambientais, exsurge a relevância e a ne-
cessidade da noção de uma governança ambiental global.
No contexto mundial, a União Europeia se destaca
como um ator de grande poder de influência, não se podendo
afirmar que exerce uma liderança nata e estável na governança
ambiental global, como pretendeu se autodeclarar por meio de
comunicação da Comissão Europeia.
Milena Alencar Gondim | 277
No entanto, é inafastável o papel relevante que o
bloco exerce sobre as agendas ambientais em todo o planeta,
tendo demonstrado, há muito, um sério compromisso com a
preservação do meio ambiente, este considerado mais do que
apenas recursos naturais, mas também ambiente físico e saúde.
A União Europeia configura, assim, uma forte refe-
rência intelectual para toda a comunidade internacional, na me-
dida em que promove políticas ambientais bem desenvolvidas
e que contribuiu significativamente para a construção da noção
de desenvolvimento sustentável, uma vez que, além de sua pró-
pria natureza pressupor a noção de proteção ambiental desvin-
culada de fronteiras geográficas, atuou na intervenção de acor-
dos internacionais na matéria e exortou as demais comunidades
a nações mediante exigências negociais.

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Acesso em: 19 jun. 2022.

THE ROLE OF THE EUROPEAN UNION IN GLOBAL


ENVIRONMENTAL GOVERNANCE
Abstract: Global environmental governance aims at the participation
and engagement of the entire international community in the design
and implementation of measures, regulations and solutions for envi-
ronmental preservation and sustainable development. In this context,
the figure of the European Union stands out, whose well-developed
environmental policies and action on environmental issues can lead
to presupposing its leadership on a global scale. The objective of the
work is to analyze the role of the European Union in global environ-
mental governance. It was concluded that, despite not being able to
assert a stable leadership, the European Union has significant rele-
vance in global environmental governance. The research is qualitative
and bibliographical, focused on the analysis of the doctrine.

Keywords: European Union. Governance. Global environmental


governance.
CAPÍTULO XI.
A CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS E O ESTADO DE
COISAS INCONSTITUCIONAL NO
BRASIL: ANÁLISE DO CASO INSTITUTO
PENAL PLÁCIDO DE SÁ CARVALHO

Mateus Venícius Parente Lopes*

Resumo: O capítulo ora em apreço tem como escopo analisar a inter-


venção da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre uma pe-
nitenciária localizada no Estado do Rio de Janeiro: o Instituto Penal
Plácido de Sá Carvalho – IPPSC. A finalidade do presente trabalho é
examinar o arcabouço fático que circundou o referido estabeleci-
mento prisional, e o que culminou para que o mencionado tribunal
internacional viesse a intervir no caso, destacando-se os principais
pontos. Este trabalho consistiu em pesquisa descritiva (quanto ao ob-
jetivo), bibliográfica (quanto ao procedimento) e qualitativa (quanto
à abordagem). Concluiu-se que o IPPSC é alvo do Estado de Coisas
Inconstitucional vigente no Brasil, sendo a superlotação carcerária um
dos principais imbróglios suportados pela penitenciária. As medidas
adotadas para contornar o quadro sistemático de violações orbitaram
em torno do fenômeno da excarceração1.
Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Instituto
Penal Plácido de Sá Carvalho. Estado de Coisas Inconstitucional.

* Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC).


Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
1 Processo de retirada de pessoas do cárcere. Objetiva reduzir o número de presos
a fim de que mais vagas surjam para novos ingressantes no sistema penitenciário.
Mateus Venícius Parente Lopes |283
Introdução

O Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (instituição


que será nomeada, doravante, sob o acrônimo de IPPSC) fora
alvo de intervenção por parte do Sistema Interamericano de Di-
reitos Humanos após a realização de uma série de vistorias re-
alizadas pelas autoridades do Estado do Rio de Janeiro sobre o
referido estabelecimento prisional. Na ocasião, foram constata-
das uma série de violações a direitos fundamentais dos reclusos
que ali estavam, circunstância que ensejou a atuação dos órgãos
jurisdicionais de proteção a direitos humanos.
A fim de que sejam discriminadas as autoridades res-
ponsáveis pela fiscalização no interior da penitenciária, vale re-
gistrar que tudo se iniciou no dia 19 de janeiro de 2012, quando
a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro realizaram
uma primeira visita ao estabelecimento mencionado, oportuni-
dade em que fora possível evidenciar várias ilegalidades no in-
terior do presídio, a registrar-se, a título de exemplo, indícios de
uma superpopulação carcerária e a privação do sono de alguns
detentos, em razão de estarem dormindo no chão de cubículos
responsáveis pela custódia dos presos. (CIDH, 2016).
Paralelamente à Defensoria Pública, o Ministério Pú-
blico Fluminense também ficou a cargo de promover algumas
inspeções in situ na penitenciária. Em sua respectiva participa-
ção fiscalizatória, o Parquet observou, na competência de 2014,
que os indícios, até então, de superlotação carcerária, já haviam
saltado de uma mera probabilidade a uma realidade fática visí-
vel de ser constatada: verificou que o estabelecimento prisional
albergava pessoas além da quantidade de vaga de que dispu-
nha sua capacidade. (CIDH, 2016).
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
284 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

Nessa senda, ambas as instituições estaduais anteri-


ormente mencionadas, quais sejam, Defensoria Pública e Minis-
tério Público do Estado do Rio de Janeiro, procederam à instau-
ração de procedimentos administrativos a fim de que fosse re-
parado o quadro de violações constatado na penitenciária flu-
minense. Todavia, os esforços envidados foram frustrados ante
a inércia da Vara de Execução Penal Fluminense.

[...] os solicitantes [Defensoria Pública e Ministério


Público Fluminense] instauraram três procedi-
mentos judiciais especiais perante a Vara de Exe-
cuções Penais do Estado do Rio de Janeiro, cujo de-
nominador comum consiste em conseguir a redu-
ção dos índices de superlotação no IPPSC. As
ações foram interpostas em 2012, 2014 e 2015. Não
obstante, os solicitantes denunciam que as autori-
dades judiciais competentes não adotaram ne-
nhuma decisão definitiva, supostamente limi-
tando-se a tramitar ofícios de maneira “burocrá-
tica”, apesar das visitas realizadas no âmbito dos
procedimentos. (CIDH, 2016, destacou-se).

Sob essa ótica, ambas as entidades fiscalizatórias não


tiveram à sua disposição outra alternativa senão recorrer para o
Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o qual é com-
posto, basicamente, por dois órgãos: a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos. Ademais, tem como carta legitimadora a Convenção
Americana de Direitos Humanos, instrumento jurídico popu-
larmente conhecido como sendo o Pacto San José da Costa Rica.
Em consonância com o que dispõe Piovesan (2014, p. 110): “A
Convenção Americana estabelece um aparato de monitora-
mento e implementação dos direitos que enuncia. Tal aparato é
Mateus Venícius Parente Lopes |285
integrado pela Comissão Interamericana e pela Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos.
A metodologia do presente trabalho consiste, no que
tange ao objetivo, em uma pesquisa descritiva, uma vez que tem
por finalidade descrever uma situação real que ocorreu no inte-
rior de uma determinada penitenciária. No tocante ao procedi-
mento, trata-se de uma pesquisa bibliográfica, a qual debruçar-
se-á sobre livros, documentos e demais exemplares, com o pro-
pósito de robustecer este artigo científico. Por fim, quanto à
abordagem, cuida-se de pesquisa qualitativa, objetivando tratar
de fenômenos sociais que versam sobre um problema que as-
sola o sistema penitenciário: a superpopulação carcerária.
Assim, no ano de 2016, a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos recebe a denúncia, e determina, por inter-
médio da Resolução nº 39/2016, impõe uma série de medidas a
serem realizadas pelo Estado do Rio de Janeiro, a fim de que
fossem corrigidos os imbróglios verificados na penitenciária.
Restando inerte e omisso no que tange a uma resposta, o Estado
nada faz, dando ensejo para a atuação da Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
E, desse modo, inicia-se a temática que será abor-
dada em tópico ulterior.

1. A atuação da Corte Interamericana sobre a penitenciária

Em consonância com o conteúdo já adiantado na se-


ção anterior, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
demandou que o Estado do Rio de Janeiro desse prossegui-
mento a uma série de medidas elencadas na Resolução nº
39/2016. Dentre tais medidas, a Comissão determinou as se-
guintes providências:
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
286 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

[...] a Comissão solicita ao Estado do Brasil que: a)


Adote as medidas necessárias para proteger a vida
e integridade pessoal das pessoas privadas de li-
berdade no Instituto Penal Plácido de Sá Carva-
lho; b) Tome ações imediatas para reduzir subs-
tancialmente a superlotação dentro do Instituto
Penal Plácido de Sá Carvalho, de acordo com pa-
drões internacionais; c) Proporcione condições
adequadas de higiene nos recintos, acesso à água
para consumo humano e os tratamentos médicos
adequados para as pessoas detidas, de acordo
com as patologias que apresentem; d) Adote as
medidas necessárias para contar com planos de
emergência ante qualquer eventualidade; [...].
(CIDH, 2016, s.p., grifou-se).

A fim de que seja possível compilar a atuação da


Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o IPPSC,
torna-se conveniente destacar que a manifestação do referido
órgão jurisdicional se deu por intermédio de três Resoluções: as
duas primeiras datadas de fevereiro e agosto de 2017, e a última,
uma das mais importantes, tem registro em 22 de novembro de
2018. O denominador em comum entre tais decisões consiste no
quadro já constatado anteriormente pela Comissão Interameri-
cana de Direitos Humanos: superlotação carcerária, as mortes
ocorridas no interior do presídio, e as condições de detenção e
de infraestrutura prisional.
Primeiramente, no que tange à superlotação carcerá-
ria, há de se registrar que a Corte Interamericana de Direitos
Humanos encarou tal problemática como sendo um dos fatores
responsáveis por culminar em todas as outras violações menci-
onadas, haja vista que um ambiente prisional superlotado, na-
turalmente, tende a se desestruturar organicamente e a desen-
cadear condições inóspitas de estadia para todos os reclusos.
Mateus Venícius Parente Lopes | 287
Em 2014, a população do IPPSC era de 3.139 de-
tentos. O número de detentos que ingressaram no
sistema foi de 4.662, ao passo que somente 2.680
detentos deixaram a unidade carcerária, o que re-
sultou num excedente populacional de 1.982 de-
tentos. Em 2016, a população do IPPSC tinha su-
bido para 3.477 detentos. Ingressaram 2.325 novos
detentos, e deixaram o centro 1.202 detentos, cri-
ando-se, assim, um excedente de 1.123 detentos.
Em 2017, o número total de detentos no IPPSC per-
maneceu quase inalterado em relação ao ano ante-
rior, alcançando 3.498. No primeiro trimestre de
2018, o IPPSC abrigava uma população total de
3.820 detentos. (CIDH, 2018, s.p.).

Já no que concerne às mortes ocorridas no IPPSC, os


registros também eram alarmantes. Não apenas a nível quanti-
tativo, somente, mas, de igual modo, no sentido qualitativo
também, uma vez que os óbitos ocorridos, em sua grande mai-
oria, “foram classificadas como decorrentes de doença ou mo-
tivo não informado.” (CIDH, 2018).
Acrescente-se a isso, ainda, fato curioso acerca do ce-
nário de mortandade presente no IPPSC: de acordo com as en-
tidades responsáveis pelas fiscalizações feitas na penitenciária,
em que pese ter havido redução do número de mortes no ano
de 2017, quando comparado ao ano anterior, “[...] o IPPSC [con-
tinuava] liderando o ranking das unidades penitenciárias com
mais presos mortos.” (CIDH, 2018, s.p., grifou-se).
No que se refere às condições e à infraestrutura do
estabelecimento prisional em comento, a Corte teria constatado
que as medidas impostas pela Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos não haviam sido cumpridas. Exemplificativa-
mente, o mencionado órgão jurisdicional teria observado que o
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
288 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

IPPSC não comportava, em suas instalações, ala separada a fim


de resguardar pessoas idosas e LGBTQIA+. (CIDH, 2018).
Não obstante, a estrutura física estaria comprome-
tida, igualmente, em razão da inexistência de planos de emer-
gência em caso de eventual surgimento de incêndio no interior
do complexo penitenciário, a se ver:

Além disso, expressa preocupação com a ausência


de um plano de prevenção e combate de incêndios
no IPPSC bem como com a precária estrutura da
unidade carcerária para atender a uma situação de
emergência, conforme deixa claro o relatório téc-
nico de 2016, elaborado pelo Corpo de Bombeiros.
Solicita ao Estado que tome, com urgência, medi-
das para garantir a segurança dos detentos e agen-
tes penitenciários em uma eventual situação de
emergência. (CIDH, 2018, s.p.).

A própria segurança funcional do presídio, ainda,


poderia ser classificada alarmante:

A Corte considera alarmante o fato de que o


IPPSC só disponha de nove pessoas encarrega-
das da segurança de um centro penal que abriga
uma população de mais de 3.800 pessoas. Reitera
que, em centros de detenção como o IPPSC, o Es-
tado se encontra em posição especial de garante
dos direitos das pessoas ali encarceradas, por-
quanto exerce um controle total sobre elas. (CIDH,
2018, s.p., grifou-se).

Resumidamente, tal situação era o panorama incons-


titucional vivenciado no interior do Instituto Penal Plácido de
Sá Carvalho. Nesse sentido, com o intuito de pormenorizar cada
Mateus Venícius Parente Lopes | 289
um dos pontos destacados nas Resoluções da Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, far-se-ão observações em seções
apartadas, sendo destinado o devido espaço.

1.1. Superlotação carcerária

Efetivamente, a superpopulação carcerária pode ser


considerada como sendo um dos temas mais debatidos nos úl-
timos anos, porém um dos que menos tem sido possível arrefe-
cer. Semer (2019, p. 19) destaca que “chega a ser um truísmo
dizer que vivemos em um tempo, e mais concretamente em um
país, afetado pelo hiper-encarcerceramento.”
Mesmo já tendo o Supremo Tribunal Federal reco-
nhecido o Estado de Coisas Inconstitucional no Brasil, as medi-
das adotadas em âmbito nacional têm sido pouco efetivas, e a
superlotação prisional se mantém como sendo um dos fatores
que mais impulsiona o sistêmico quadro de violações que vêm
a ser cometidas pelo Estado no instante em que custodia pes-
soas, seja em âmbito definitivo ou provisório.
No que tange aos fenômenos que podem vir a desen-
cadear um cenário de superpopulação prisional, Nkeshimana e
Verwimp (2011, p. 27) sustentam que:
As causas da superpopulação carcerária são pro-
vavelmente a lentidão no tratamento dos casos,
irregularidades relacionadas principalmente à
má manutenção de registros, falta de condições
prisionais e também a falha persistente em sepa-
rar grupos de detidos (adultos e menores) [...].
(Grifou-se e traduziu-se).

Independentemente da origem do problema, o deno-


minador comum nos recintos prisionais onde impera o quadro
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
290 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

de superpopulação carcerária é que os sujeitos que ali se encon-


tram recolhidos são infligidos a penas desproporcionais com o
evento delitivo responsável por justificar a sua reclusão. Pas-
sando a ser custodiados em ambientes que estão suportando
pessoas além de sua capacidade normal, vêm a ser vilipendia-
dos no que toca a outros direitos fundamentais afins à digni-
dade do ser humano, tais como o direito à alimentação.
O quadro de ilegalidades no interior do IPPSC muito
pode ser creditado, de acordo com a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, à latente superpopulação carcerária. Desta
circunstância desdobram-se outros consectários. Muraro (2017,
p. 133) salienta, a título de exemplo, que “[...] é comum a recla-
mação dos presos de que a comida fornecida pelo Estado chega
azeda ou estragada até eles, sem falar na questão das instalações
higiênicas, que raramente são ofertadas, em razão da superlota-
ção carcerária.”
Especificamente no que tange ao IPPSC, a Corte In-
teramericana de Direitos Humanos havia verificado, no ano de
2018, que a densidade carcerária do estabelecimento penal orbi-
tava em 200%, em que pese os critérios internacionais (Conselho
da Europa) se firmarem no sentido de que qualquer numerário
acima de 120% já implicaria, em tese, superlotação em situação
crítica. (CIDH, 2018).
Em consonância com a Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos, no ato da Resolução datada de 22 de novembro
de 2018, as violações que decorriam diretamente da superpopu-
lação carcerária eram as seguintes:

[...] i. atenção médica ínfima, com uma médica a


cargo de mais de três mil presos, quando a
OMS/OPAS considera que, no mínimo, deve haver
2,5 médicos por 1.000 habitantes para prestar os
mais elementares serviços em matéria de saúde à
Mateus Venícius Parente Lopes | 291
população livre;25 ii. mortalidade superior à da
população livre; iii. carência de informação acerca
das causas de morte; iv. falta de espaços dignos
para o descanso noturno, com superlotação em
dormitórios, verificada in situ; v. insegurança fí-
sica por falta de previsão de incêndios, em parti-
cular com colchões não resistentes ao fogo, verifi-
cada in situ; vi. insegurança pessoal e física de-
corrente da desproporção de pessoal em relação
ao número de presos. (CIDH, 2018, s.p., grifou-se).

Tal posicionamento da cúpula do Sistema Interame-


ricano de Direitos Humanos pode ser bastante sugestivo, uma
vez que, ao apontar a superlotação prisional como sendo o epi-
centro do quadro ilegal e arbitrário característico do IPPSC, re-
vela que uma das medidas aptas a sanar as violações suportadas
pelos reclusos da mencionada penitenciária seria a diminuição
das cifras humanas no interior do presídio.
Dentre tais medidas, destaca-se o fato de a Corte In-
teramericana de Direitos Humanos ter determinado que o Es-
tado do Brasil reduzisse o número de internos por intermédio
da aplicação da Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal
Federal, a qual tem como inteligência: “A falta de estabeleci-
mento penal adequado não autoriza a manutenção do conde-
nado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar,
nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.” (BRA-
SIL, 2016, s.p.).
No que concerne ao entendimento sumulado anteri-
ormente mencionado, não havendo ambiente penitenciário ade-
quado ao regime de pena de determinado condenado, o juiz da
execução penal deve vir a adotar uma das seguintes medidas:
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
292 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

[...] (i) a saída antecipada de sentenciado no re-


gime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletroni-
camente monitorada ao sentenciado que sai ante-
cipadamente ou é posto em prisão domiciliar por
falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas res-
tritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que
progride ao regime aberto. Até que sejam estrutu-
radas as medidas alternativas propostas, poderá
ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado.”
(BRASIL, 2016, s.p., grifou-se).

Na seção seguinte, expor-se-ão casos de superpopu-


lação carcerária similares ao caso do Instituto Penal Plácido de
Sá Carvalho, a fim de que seja possível fazer-se a comparação
entre o objeto deste artigo com outras casuísticas.

1.2. Cenários de superlotação carcerária: casos análogos

Na Resolução de 22 de novembro de 2018, a Corte


Interamericana de Direitos Humanos faz um paralelo entre o
evento particular adstrito ao IPPSC com outros casos que ver-
sam acerca do mesmo tema: a superpopulação prisional.
Um dos casos mais simbólicos, que deu ensejo à edi-
ção da Súmula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal Federal,
e que reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional por inter-
médio da Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-
mental (ADPF) nº 347, foi a sentença exarada pela Corte Cons-
titucional da Colômbia. No caso, a Corte cita a casuística ao
mencionar o imbróglio concernente à superlotação prisional:

Em síntese, a Corte Constitucional da Colômbia


entendeu que a superpopulação penal se deve a
um uso exagerado da privação de liberdade, que
se deve reduzir conforme uma política e decisões
Mateus Venícius Parente Lopes |293
judiciais prudentes de excarceração, não indiscri-
minadas, porque nega que haja um direito subje-
tivo automático à excarceração, mas reclama uma
política de excarceração razoável, atendendo à
particularidade dos casos, para fazer cessar uma
situação constitucionalmente insustentável.
(CIDH, 2018, s.p.).

O precedente colombiano consistiu em um conglo-


merado de ações individuais que sustentavam violações sofri-
das no âmbito penitenciário. Consoante Langford (2009, p. 37):

Na Colômbia, o Tribunal assumiu um papel proa-


tivo, utilizando-se de um "estado de coisas incons-
titucional" para transformar casos individuais em
um caso coletivo. Cento e nove mandados de pro-
teção separados apresentados por 1.150 famílias
deslocadas foram juntados, e o Tribunal conside-
rou que as condições de vida dos deslocados
constituíam um enorme, difundido e sistemático
quadro de violação de seus direitos constitucio-
nais. (Grifou-se e traduziu-se).

Outro caso que a Corte Interamericana de Direitos


Humanos fez questão de destacar faz referência a uma decisão
do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) datada de
2013. Na ocasião, ao apreciar demanda voltada ao estado de coi-
sas inconstitucional nas penitenciárias italianas, o TEDH enten-
deu, também, pelo fomento de ações voltadas à excarceração.

Essa sentença motivou na Itália um amplo debate


sobre os meios que o Estado deveria arbitrar para
dar cumprimento à sentença do Tribunal Euro-
peu, entre os quais se salientam penas não privati-
vas de liberdade, reformas processuais, derroga-
ção de presunções de periculosidade, reforma da
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
294 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

lei de entorpecentes, detenção domiciliar, proba-


tion, controle eletrônico, antecipação de liberações,
etc., todas convergentes em definitivo na excarce-
ração ou na redução de presos. (CIDH, 2018, s.p.,
grifou-se).

É possível perceber que a Corte Interamericana de


Direitos Humanos fundamentou sua decisão sobre a penitenci-
ária do IPPSC embasando-se em outros cenários de superpopu-
lação carcerária, a fim de ilustrar como a jurisprudência de ou-
tros tribunais, a nível internacional, vem lidando com a temá-
tica. O intuito, em tese, seria ilustrar que o estado de coisas in-
constitucional não é um imbróglio adstrito ao território brasi-
leiro, mas que reverbera em outros territórios, até mesmo mais
distantes, como o caso da Itália.

1.3. O cômputo em dobro da pena no IPPSC

Em se tratando de excarceração2, vale o registro de


que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sede de
medida cautelar, após aquilatar as circunstâncias de detenção
em que se encontrava a penitenciária objeto deste trabalho, que
a pena suportada pelos reclusos alojados no IPPSC fosse com-
putada em dobro.
Inicialmente, a Corte sustenta:
Em princípio, e dado que é inegável que as pessoas
privadas de liberdade no IPPSC podem estar so-
frendo uma pena que lhes impõe um sofrimento
antijurídico muito maior que o inerente à mera

2 Processo de retirada de pessoas do cárcere. Objetiva reduzir o número de presos


a fim de que mais vagas surjam para novos ingressantes no sistema penitenciário.
Mateus Venícius Parente Lopes | 295
privação de liberdade, por um lado, é justo redu-
zir seu tempo de encarceramento, para o que se
deve ater a um cálculo razoável, e, por outro, essa
redução implica compensar, de algum modo, a
pena até agora sofrida na parte antijurídica de
sua execução. As penas ilícitas não deixam de ser
penas em razão de sua antijuridicidade, e o certo é
que vêm sendo executadas e causando sofrimento,
circunstância que não se pode negar para chegar a
uma solução o mais racional possível, em confor-
midade com a estrutura jurídica internacional e de
acordo com o mandamus do Supremo Tribunal Fe-
deral estabelecido na Súmula Vinculante nº 56.
(CIDH, 2018, s.p., grifou-se).

Entendendo o referido órgão jurisdicional que o caso


do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho era extremamente
grave, e que a situação persistia inalterada desde 2012, mesmo
após diversas tentativas de dirimir a superpopulação carcerária
e minimizar o péssimo quadro de detenção suportado pelos
presos, a Corte decidiu que o cômputo da pena fosse arbitrado
de maneira que compensasse a pena ilícita que os reclusos esta-
vam cumprindo.
Nesse sentido, pena ilícita seria os consectários ad-
vindos do quadro inconstitucional de violações a direitos e ga-
rantias fundamentais, tais como a privação do sono, a precária
qualidade da alimentação, a insegurança física e pessoal do alo-
jamento penitenciário. (CIDH, 2018). E, assim, deveriam os en-
carcerados angariar de benesse jurídica que compensasse a
omissão ilegal do Estado do Rio de Janeiro.
Nisso, arrematou que:

Dado que está fora de qualquer dúvida que a de-


gradação em curso decorre da superpopulação do
IPPSC, cuja densidade é de 200%, ou seja, duas
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
296 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

vezes sua capacidade, disso se deduziria que du-


plica também a inflicção antijurídica eivada de dor
da pena que se está executando, o que imporia que
o tempo de pena ou de medida preventiva ilícita
realmente sofrida fosse computado à razão de
dois dias de pena lícita por dia de efetiva privação
de liberdade em condições degradantes. (CIDH,
2018, s.p., grifou-se).

No que se refere à via institucional que o Estado do


Brasil para manejar esse cômputo, a Corte deixou a cargo do
Estado-Parte Brasileiro a escolha do instituto jurídico que regu-
laria a situação fático-jurídica em apreço.
Nessa linha de raciocínio, há quem sustente tratar-se
do instituto atinente à remição da pena. Magno (2022) argu-
menta que a antijuridicidade da pena suportada, dado o estado
de coisas inconstitucional vigente na penitenciária, acometia os
presos a um sofrimento excedente à pena lícita, revelando-se
justa uma eventual redução do tempo de cumprimento de pena
no estabelecimento prisional em questão, nascendo, assim, a re-
mição compensatória.

2. A decisão do Superior Tribunal de Justiça

Em junho de 2021, a Quinta Turma do Superior Tri-


bunal de Justiça (STJ), provocada a atuar em demanda que en-
volvia recluso pertencente à estrutura do Instituto Penal Plácido
de Sá Carvalho, ordenou que fosse computado em dobro todo
o período de cumprimento de pena obedecido por paciente em
sede de Habeas Corpus. (BRASIL, 2021).
Na ocasião, o Paciente havia cumprido pena no
IPPSC de 09 de julho de 2017 a 24 de maio de 2019. Após a edi
Mateus Venícius Parente Lopes | 297
ção da publicação da Resolução da Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos, que data de 22 de novembro de 2018, o custo-
diado requereu o reconhecimento do precedente da Corte e a
consequente aplicação do cômputo em dobro da pena, pedido
que fora negado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro. (BRASIL, 2021).
De acordo com a segunda instância judiciária flumi-
nense, a Resolução publicada pela Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos fora omissa no que tange ao marco a quo da
contagem do prazo dobrado da pena (leia-se, remição), fato que
fez o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro entender
que a decisão da Corte somente gozaria de efetividade e coerci-
bilidade da data de sua notificação formal, que se dera no dia
14 de dezembro de 2018. Assim, em tese, o Paciente somente
gozaria do benefício da remição da pena durante o lapso tem-
poral compreendido a partir do dia 14 de dezembro de 2018 em
diante (qual seja, 24 de maio de 2019). (BRASIL, 2021).
Instado a se manifestar, o STJ decidiu favoravel-
mente ao Paciente, de modo que o cômputo em dobro da pena
fosse estipulado desde o dia de seu ingresso no Instituto Penal
Plácido de Sá Carvalho, uma vez que a pena ilícita (quadro de
violação sistemática de garantias fundamentais) já persistia an-
tes mesmo da decisão da Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos. Nesse sentido:

De fato, não se mostra possível que a determina-


ção de cômputo em dobro tenha seus efeitos mo-
dulados como se o recorrente tivesse cumprido
parte da pena em condições aceitáveis até a notifi-
cação e a partir de então tal estado de fato tivesse
se modificado. Em realidade, o substrato fático
que deu origem ao reconhecimento da situação
degradante já perdurara anteriormente, até para
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
298 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

que pusesse ser objeto de reconhecimento, de-


vendo, por tal razão, incidir sobre todo o período
de cumprimento da pena. (BRASIL, 2021, grifou-
se).

Haver-se-ia, na hipótese, a aplicação do princípio da


fraternidade, a qual preconiza que a existência de normas ex-
pressas no ordenamento jurídico brasileiro não exclui outras de-
correntes de normas e tratados internacionais. (BRASIL, 2021).
Barretto (2019, p. 91-92) sustenta que “[...] a norma
internacional que institui direitos e garantias das pessoas tam-
bém possui aplicação imediata, sendo exigível a partir do mo-
mento em que passar a existir juridicamente.”
Dessa forma, não haveria necessidade do recebi-
mento da notificação formal por parte do Estado do Brasil no
que se refere à Resolução editada pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos. A partir do momento em que é publicada, já
goza de efetividade e coercibilidade a todos os Estados-Parte
que anuíram com o Sistema Interamericano de Direitos Huma-
nos.

Considerações finais

Dessa forma, pode-se perceber que o Estado de Coi-


sas Inconstitucional, em que pese seja um imbróglio datado de
época consideravelmente remota, ainda repercute não apenas a
nível nacional, mas, de igual modo, a nível internacional, con-
forme fora observado em tópico supra-assinalado. Muito em-
bora o Brasil tenha reconhecido formalmente tal situação nos
presídios nacionais por intermédio da ADPF nº 347, pouca tem
se mostrado a efetividade das autoridades públicas para sanar
o quadro de violações constitucionais perpetrado.
Mateus Venícius Parente Lopes | 299
Além disso, nota-se que a superpopulação carcerária
se mostra como sendo uma das principais celeumas no que
tange ao sistemático desrespeito às garantias fundamentais de
pessoas reféns do sistema penitenciário brasileiro. Em conso-
nância com o exposto acima, tribunais e demais estudiosos têm
atribuído à superlotação populacional prisional como o ele-
mento que mais fomenta o desencadeamento de outras incons-
titucionalidades no interior das penitenciárias, tais como a falta
de ambientes adequados para alojar detentos, a escassez de ma-
terial voltado às necessidades básicas do preso (sono e alimen-
tação, exemplificativamente, e a insuficiência de recursos hu-
manos (leia-se, policiais penais) para tratar da segurança física
do estabelecimento carcerário.
Não obstante, a imposição de medidas cautelares de-
terminadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
voltou-se a promover um dos fenômenos que melhor pode con-
tribuir para a minimização do atual quadro de inconstituciona-
lidade: a excarceração3. O estímulo à aplicação da Súmula Vin-
culante nº 56, o fomento à concessão de monitoramento eletrô-
nico e o instituto da aplicação do cômputo em dobro da pena
(remição) são medidas que possuem, em tese, condão para ar-
refecer o atual cenário penitenciário brasileiro.
Ademais, pôde constatar-se que o STJ tem adotado
comportamento garantista no que tange à concessão de benes-
ses que sejam favoráveis aos personagens que suportam, diu-
turnamente, penas ilícitas decorrentes do Estado de Coisa In-
constitucional, tendo aplicado, na hipótese acima, o princípio
da fraternidade “numa hipótese onde se [detectou] flagrante vi-

3 Processo de retirada de pessoas do cárcere. Objetiva reduzir o número de presos


a fim de que mais vagas surjam para novos ingressantes no sistema penitenciário.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos e o estado de coisas
300 | inconstitucional no Brasil: análise do caso Instituto Penal Plácido de Sá...

olação a direitos humanos pelas condições degradantes e desu-


manas existentes em determinados estabelecimentos prisionais
[...]”. (BRASIL, 2021, s.p.).
Por fim, questiona-se: sabendo que o Estado de Coi-
sas Inconstitucional é situação que não se restringe apenas ao
Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, mas que se manifesta
em vários outros complexos penitenciários pelo resto do País,
seria possível a aplicação do precedente judicial da Corte Inte-
ramericana de Direitos Humanos, qual seja, o cômputo em do-
bro da pena (remição) cumprida em condições degradantes de
detenção, a outros estabelecimentos prisionais? Limitar-se-ia a
decisão apenas ao Estado do Rio de Janeiro? Impõe-se, portanto,
a isonomia como vetor de parametrização nas decisões que en-
volvem situações análogas.

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Mateus Venícius Parente Lopes 1303

THE INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN

RIGHTS AND THE UNCONSTITUTIONAL STATE

OF AFFAIRS IN BRAZIL: ANALYSIS OF THE

CRIMINAL INSTITUTE PLÁCIDO DE SÁ

CARVALHO CASE

Abstract: The present chapter aims to analyze the intervention of the


Inter-American Court of Human Rights on a penitentiary located in
the State of Rio de Janeiro: the Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho

- IPPSC. The purpose of the present work is to examine the factual


framework that surrounded the aforementioned prison, and what
culminated in the aforementioned international court to intervene in

the case, highlighting the main points . This work consisted of descrip-
tive research (in terms of the objective), bibliographic research (in
terms of the procedure) and qualitative (in terms of the approach) . It
was concluded that the IPPSC is the target of the Unconstitutional
State of Affairs in force in Brazil, with prison overcrowding being one

of the main imbroglios supported by the penitentiary. The measures


adopted to circumvent the systematic picture of violations revolved
around the phenomenon of excarceration.

Keywords: The Inter-American Court Of Human Rights . Criminal


Institute Plácido De Sá Carvalho . Unconstitutional State of Affairs.
CAPÍTULO XII.
TRANSPANDEMIA: A BUSCA E OS
DESAFIOS PELA EFETIVIDADE DE UM
TRATADO INTERNACIONAL DE DIREITO
SANITÁRIO

Carolina Lima Ciríaco Scipião*

Resumo: A pandemia da Covid-19 mostrou ao mundo que os países


não estão preparados para enfrentar crises sanitárias em tamanha
proporção de forma individualizada. Contudo, as lideranças mundi-
ais em saúde não possuem a força normativa vinculante necessária a
garantir um efetivo e concreto direito à saúde. Embora reconhecido
em âmbito internacional, em pactos e tratados, o direito sanitário
ainda não possui mecanismos efetivos para sua promoção e proteção
uma vez que ainda fica a cargo dos Estados-membros atender as re-
comendações da maior autoridade sanitária internacional, a Organi-
zação Mundial de Saúde. O direito à saúde representa um estado de
completo bem-estar físico, mental e social, demandando, portanto, a
necessidade de criar mecanismos jurídicos e relevantes que sejam
passíveis de concretizar este direito fundamental ao ser humano, atra-
vés do fortalecimento de uma governança global, que seja capaz de
apresentar planos de prevenção, contenção e as respostas necessárias
às crises em saúde, de maneira coordenada e sistêmica. Foi utilizada
a metodologia bibliográfica e documental, através da análise de li-
vros, artigos jurídicos, documentos oficiais e notícias. A pesquisa é
pura, descritiva, exploratória e de natureza qualitativa.
Palavras-chave: Transpandemia. Pandemia. Covid-19. Tratados de
Direito Internacional. Direito Sanitário.

*
Mestranda em Direito, Constituição e Justiça pela Universidade Federal do Ceará
– UFC. Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
E-mail: carolina.sergestor@gmail.com.
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 305
Introdução

A pandemia causada pela Covid-19 demonstrou ao


mundo a necessidade de pensar o direito sanitário, nas dimen-
sões da promoção, proteção e recuperação, de forma globali-
zada, uma vez que atingiu a todos os continentes do globo ter-
restre, revelando uma das maiores crises globais não apenas sa-
nitária, mas social, econômica e ambiental.
Esta pandemia foi a primeira do mundo ocasionada
por um coronavírus, revelando um “inimigo” comum, invisível
e avassalador para cada uma das Nações ao redor do planeta, e
revelando a necessidade de pensar nos mecanismos de defesa
futuros, capazes de prevenir e combater às futuras pandemias.
Afinal, se porventura surgir um novo vírus, uma nova bactéria,
ou qualquer outro agente infeccioso que seja potencialmente tão
perigoso para a saúde dos seres humanos, os países estarão pre-
parados? Em que medida foram criados planos de defesa e con-
tenção para uma futura pandemia?
Partindo da necessidade de se estabelecer diretrizes
e normas de cunho político e técnico por parte de uma gover-
nança global em termos de direito sanitário, que seja capaz de
apresentar respostas, conduzir planos de contingências e lidar
de maneira coordenada com situações de grave potencial como
a pandemia da Covid-19, o presente artigo tem como fio-condu-
tor o seguinte questionamento: quais as buscas e os desafios en-
frentados pelos organismos internacionais por um tratado in-
ternacional de direito sanitário?
O direito à saúde figura no rol dos direitos humanos,
consagrados no plano internacional mediante a Carta das Na-
ções Unidas, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, So-
ciais e Culturais, cujo sistema de proteção repousa como função
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
306| internacional de direito sanitário

da Organização Mundial da Saúde (OMS). A pandemia da Co-


vid-19, dados os seus impactos multilaterais, como uma das
maiores crises sanitárias globais já vivenciadas alertou as Orga-
nizações internacionais, os Estados, as agências não governa-
mentais do mundo inteiro acerca da necessidade de prevenir
futuras pandemias.
Atualmente, o mundo encontra-se no cenário de
tranpandemia1, que deve ser entendido como um estado de
transcurso entre a pandemia e a busca por uma normalização
da vida cotidiana e todas as transformações dela advindas, a
partir da análise dos principais impactos da pandemia da Co-
vid-19, nas áreas da saúde, economia, social e ambiental, sem a
pretensão de encerrá-los, será apresentado o levantamento do
contexto jurídico do Direito Sanitário em âmbito internacional,
partindo para a pesquisa chave acerca das iniciativas e os desa-
fios dos organismos internacionais por um tratado de direito sa-
nitário.
Para o presente estudo foi utilizado o levantamento
bibliográfico e documental, por meio do estudo de livros, arti-
gos jurídicos, documentos oficiais e notícias. A pesquisa é de
natureza pura, descritiva e exploratória, com abordagem quali-
tativa.

1 Considerando o atual momento, já não se pode falar em pandemia, mas trans-


pandemia. Este conceito foi apresentado pelo Centro Brasileiro de Estudos de Sa-
úde (CEBES). CEBES DEBATE. Vacinas e Vacinacão contra a Covid: producão
local, patentes, equidade e cobertura. Disponível em: https://www.you-
tube.com/watch?v=c9KxMTq5Rr8. Acesso em: 22 jun. 2022.
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 307
1. Do estado de pandemia para transpandemia – principais
impactos da Covid-19 e meios de superação

Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da


Saúde (OMS) declarou ao mundo a situação de Emergência em
Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII)2, em decor-
rência da identificação de um surto ocasionado pelo surgimento
de um novo coronavírus, inicialmente chamado de 2019-nCoV.
O primeiro caso de infecção por SARS-CoV-2, nome
oficial do novo coronavírus, foi registrado em Wuhan, capital
da província de Hubei, na China, de acordo com os dados do
governo chinês em 17 de novembro de 2019. O primeiro alerta
do País à OMS ocorreu em 31 de dezembro de 2019. Portanto,
conforme registrado acima, em apenas um mês a crise sanitária
tomou proporção internacional, com a declaração de ESPII, o
maior nível de alerta previsto pelo Regulamento Sanitário Inter-
nacional (RSI)3.
A doença causada por um novo tipo de coronavírus
foi denominada pela OMS de Covid-194, em 11 de fevereiro de

2 WHO. Declaração do Diretor-Geral da OMS sobre o Comitê de Emergência do


RSI sobre o Novo Coronavírus (2019-nCoV). Disponível em:
https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-
statement-on-ihr-emergency-committee-on-novel-coronavirus-(2019-ncov).
Acesso em: 25 jun. 2022.
3 Artigo 12. Determinação de uma emergência de saúde pública de importância
internacional 1. O Diretor-Geral determinará, com base nas informações recebi-
das, em especial as enviadas pelo Estado Parte em cujo território está ocorrendo
o evento, se o evento constitui uma emergência de saúde pública de importância
internacional, em conformidade com os critérios e os procedimentos estabeleci-
dos neste Regulamento.
BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Regulamento Sanitá-
rio Internacional RSI – 2005. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-
br/assuntos/paf/regulamento-sanitario-internacional/arquivos/7181json-file-1.
Acesso em 22 jun. 2022.
4 WHO. Linha do tempo: resposta da OMS à COVID-9. Disponível em:
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
308| internacional de direito sanitário

2020. E, não tardou para que a crise sanitária fosse reconhecida


como uma pandemia global, o que ocorreu em 11 de março de
20205. O estado de pandemia é caracterizado pela ocorrência si-
multânea de casos de uma mesma doença em diferentes países.
do globo terrestre, conforme registrado pela Organização Mun-
dial de Saúde.

1.1. Os impactos da pandemia da Covid-19

A propagação da doença, que rapidamente foi iden-


tificada por todos os continentes e países, teve início nos maio-
res centros urbanos e econômicos do mundo, que registram
grandes fluxos de pessoas6. O levantamento de casos realizados
constantemente por dashboard da OMS, até o dia 29 de junho de
2022, revelam o número de 543.352.927 (quinhentos e quarenta
e três milhões, trezentos e cinquenta e dois mil, novecentos e
vinte e sete) casos confirmados de Covid-19, incluindo 6.331.059
(seis milhões, trezentos e trinta e um mil, e cinquenta e nove)
mortes ocasionadas pela doença. O número poderia ser ainda
maior se considerados os casos de subnotificação e aquelas não
notificados ou não identificados.
Diante desses dados, é razoável considerar que o
maior impacto da pandemia se deu no campo da saúde, quando
considerado o número de vidas ceifadas pelo vírus, e o efeitos
colaterais ocasionados nos sistemas de saúde de todo o mundo.

https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/interactive-
timeline#!. Acesso em 25 jun. 2022.
5 WHO, 2020. Ibid.
6 BARRETO, Maurício L., AQUINO, Estela M. L. In: BUSS, Paulo Machiori; BUR-
GER, Pedro. (Org.) Diplomacia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de
Janeiro: Fiocruz, 2021. p. 35
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 309
A exemplo, o poderio de agravo dos pacientes infec-
tados implicou no colapso de vários sistemas de saúde7, de paí-
ses desenvolvidos, em desenvolvimento, e, principalmente, dos
países subdesenvolvidos, que não estavam preparados para su-
prir as demandas por consultas de urgência e emergência, hos-
pitalização, tratamentos de terapia intensiva, com necessidade
de ventilação mecânica dos pacientes mais graves. De outra or-
dem, as altas taxas de transmissibilidade do vírus provocaram
medidas entre os mais diversos governos de distanciamento so-
cial, que ocasionou na suspensão, adiamento ou até mesmo na
paralisação dos chamados serviços eletivos de saúde, conside-
rados aqueles não urgentes ou emergenciais, tais como: consul-
tas médicas, exames, procedimentos, cirurgias, dentre outros.
Esses fatores, também ocasionaram consequências colaterais à
saúde.
Conquanto, esses impactos tenham sido de grande
relevância e proporção, não foram os únicos. Conforme dito
acima, como estratégia frear a disseminação e o contágio do ví-
rus uma das estratégias adotadas mediante recomendação da
OMS, foi o distanciamento social8, que ocasionou a privação dos
espaços coletivos, e que também representou a restrição de ati-
vidades, com o objetivo de reduzir a circulação de pessoas, evi-
tar aglomerações em espaços públicos e privados, evitando as-
sim a propagação do contágio.
Ocorre que, essa restrição também representou gran-
des impactos sociais e econômicos, representando ameaças a

7 BARRETO e AQUINO, 2021. Ibid, p. 36


8 World Health Organization. (2020). Critical preparedness, readiness and re-
sponse actions for COVID-19: interim guidance, 7 March 2020. World Health Or-
ganization. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/331422.
Acesso em: 20 jun. 2022.
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
310 | internacional de direito sanitário

outros direitos, tais como o direito do trabalho, em razão do fe-

chamento de estabelecimentos comerciais , fábricas, e o exercício

comum de várias atividades econômicas , o que teve grande re-


percussão socioeconômica .

Dentre os mais significativos efeitos, pode -se citar o

elevado crescimento da desigualdade social, asseverada pela


má distribuição de renda e o alta da inflação e da instabilidade

econômica, o desemprego e o subemprego, que atingiram níveis


recordes durante a, a insegurança alimentar, e o número de pes-

soas atingidas pela fome em todo o mundo, a exemplo do Brasil,


que retornou ao mapa da fome, mesmo sendo um dos maiores

produtores de alimentos do mundo, a redução do poder de


compra, de itens da cesta básica, o desequilíbrio entre oferta e

procura de produtos, que afetou sobretudo as classes menos

privilegiadas, o aumento da violência doméstica, contra mulhe-

res, crianças e idosos, são déficits que não podem ser estatisti-

camente apresentados em números reais, por tratar- se de um

período de total reclusão social, os números existentes podem


oferecer parâmetros, mas não são suficientes para retratar com

fidedignidade os efeitos da pandemia no campo socioeconô-


mico10.

No campo ambiental, não se pode negligenciar os


inúmeros estudos realizados acerca do surgimento de novos pa-

tógenos que atingem os seres humanos decorrentes do desequi-

líbrio ecológico e do modo de produção globalizado, não por

9 FEBBRAJO, Alberto. Coronavirus: algumas reflexões sociojurídicas. In: LIMA,


Fernando Rister de Sousa (et. al) (coord . ) . COVID-19 e os impactos no direito:
mercado, estado, trabalho, família, contratos e cidadania. São Paulo: Almedina
Brasil, 2020, pg. 327.
10 SILVA, Alexandre da., KALACHE, Alexandre . Mudanças Demográficas, Enve-
lhecimento e Pandemia. In : BUSS, Paulo Machiori; BURGER, Pedro. (Org. ) Diplo-
macia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021pg.
80.
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 311
acaso nos últimos 15 anos foram registradas mais de “15 epide-
mias zoonóticas mortais ou transmitidas por vetores, como a
síndrome respiratória aguda (SARS)”11. A pandemia, repre-
senta um desequilíbrio na relação entre seres humanos, animais
e ecossistemas, revelando a necessária a adoção de políticas de
biodiversidade e climáticas para que sejam evitadas as ocorrên-
cias de novas pandemia causadas por agentes de origem animal
e ambiental.

1.2. Transpandemia – A vacina como principal meio de


superação

O momento de transpandemia, que representa uma


transição entre o estado pandêmico e atual conjuntura pela
busca da normalização ou tentativa de retorno ao status quo pré-
pandemia, demonstra que apesar de todos os impactos negati-
vos decorrentes da Covid-19, existem possibilidades de atenuar
seus impactos na saúde, seja nos níveis de transmissão ou nos
sintomas e agravos da doença, permitindo a preservação da es-
pécie, o retorno à vida social, e, em decorrência, a busca pela
recuperação econômica, dentre outros. Essa “esperança” re-
pousa em um grande avanço da ciência, no desenvolvimento de
vacinas, na adoção das medidas sanitárias necessárias a evitar o
contágio da doença, no desenvolvimento de tecnologias que
permitem o rápido diagnóstico, dentre outras medidas não ape-
nas sanitárias, mas também sociais e econômicas necessárias à
recuperação dos déficits ocasionados pela pandemia.

11 MAGALHÃES, Danielly P., BUSS, Paulo Marchiori, e GALVÃO, Luiz Augusto C.


As íntimas relações entre pandemia, biodiversidade e mudanças climáticas. p. 61
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
312 | internacional de direito sanitário

A ciência foi essencial no combate ao novo coronaví-


rus, tão logo a China revelou disponibilizou a sequência do ge-
noma do vírus, o que ocorreu em janeiro de 2020, pesquisadores
de todos planeta iniciaram estudos científicos e tecnológicos en-
volvendo medidas de prevenção, mecanismos eficazes de diag-
nósticos, medicamentos e iniciaram as tentativas de produção
de vacinas12.
Em maio de 2020, quando da realização da 73ª As-
sembleia Mundial da Saúde (AMS), por meio da Resolução
WHA73.1, foi determinado como uma das prioridades o reco-
nhecimento da vacinação como bem público mundial13. Em se-
tembro de 2021, em paralelo à Assembleia Geral das Nações
Unidas, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, convocou
uma reunião global sobre a Covid-19, com a participação de
chefes de Estados e líderes de organizações internacionais, com
o título: “Terminando a Pandemia e reconstruindo o que há de
melhor”14, em que foram adotadas um conjunto de metas glo-
bais, divididas nos seguinte tópicos:

1) Vacinar o mundo, aumentando o acesso das va-


cinas;

12 HOMMA, Akira (et.al). A crise das vacinas e de insumos e a produção local para
enfrentar a pandemia. In: BUSS, Paulo Machiori; BURGER, Pedro. (Org.) Diplo-
macia da Saúde: respostas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021.
13 DUTRA, Gabrielle Scola; STURZA, Janaína Machado. TRANSPANDEMIA CO-
VID-19: A VACINA COMO ESTRATÉGIA DE SAÚDE PÚBLICA E MECA-
NISMO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À SA-
ÚDE. Disponível em: https://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/sidspp/ar-
ticle/viewFile/21400/1192613174. Acesso em: 25 de jun. 2022.
14 US. DEPARTAMENT OF STATE. Informativo: Cúpula Global Sobre Covid-19 do
Presidente Biden: Acabando com a pandemia e reconstruindo melhor. Disponível
em: https://www.state.gov/translations/portuguese/informativo-cupula-global-
sobre-covid-19-do-presidente-biden-acabando-com-a-pandemia-e-reconstru-
indo-melhor/. Acesso em: 25 de jun. 2022.
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 313
2) Salvar vidas agora, resolvendo a crise de oxigê-
nio e falta de insumos, material médico-hospitalar
e equipamentos de proteção individual;
3) Reconstruindo melhor, estabelecendo um meca-
nismo sustentável de financiamento e segurança
da saúde, com o objetivo de se preparar para futu-
ras pandemias, bem como preveni-las;
4) Chamando o mundo para prestar contas (Res-
ponsabilizando o mundo), propondo o alinha-
mento de metas globais comuns, acompanhando o
progresso e o apoio mútuo. (tradução livre)

O site da Covid-19 Vaccine Tracker, que acompanha o


processo e o progresso de desenvolvimento das vacinas, in-
forma que atualmente existem 39 (trinta e nove) vacinas15 apro-
vadas, sendo 11 (onze) vacinas concedidas pela Listagem de
Uso de Emergência (EUL)16, pela OMS. A Organização Mundial
de Saúde, registrou até 27 de junho de 2022, um total de
11.981.689.168 (onze bilhões, novecentos e oitenta e um milhões,
seiscentos e oitenta e nove mil, cento e sessenta e oito) doses de
vacinas administradas em todo o mundo17.
O desenvolvimento dessas vacinas em curto tempo é
sem dúvidas um feito histórico, e uma grande conquista, em
termos científicos e tecnológicos. Contudo, esse feito não pode
ser considerado equânime em termos de acesso global. É o que
se extrai do painel e das informações da OMS, onde a maior
parte dos países do continente africano permanecem com um
baixíssimo índice de aplicações de dose da vacina.
Essa situação denuncia dois fatos principais acerca
do enfrentamento da pandemia da Covid-19: o primeiro, diz

15 https://covid19.trackvaccines.org/
16 https://covid19.trackvaccines.org/agency/who/
17 WHO. Painel da OMS sobre o coronavírus (COVID-19). Disponível em: https://co-
vid19.who.int/. Acesso em: 29 de jun. 2022.
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
314 | internacional de direito sanitário

respeito à importância da vacinação como estratégia de saúde


pública; e, o segundo, torna evidente o desequilíbrio existente
entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, e os paí-
ses subdesenvolvidos. O que denuncia a falta de colaboração
internacional no combate à pandemia18, bem como a falta de
uma liderança e governança globais que seja capaz de intervir e
instrumentalizar respostas céleres, eficazes e democráticas, ou
seja, que possam atingir igualmente a todos os países.
A pandemia da Covid-19 representou um marco na
globalização, através de uma crise sanitária que atingiu, indis-
tintamente, países ricos e pobres, reforçando a necessidade de
criar alternativas e meios eficazes de enfrentamento para os pro-
blemas coletivos, analisando possibilidades, limites e explo-
rando novas formas de construção social, através da colabora-
ção e da fraternidade.
A globalização, que descola o indivíduo para um es-
paço de cidadania comum, na ideia da coletivização dos direitos
humanos e de cidadania19, os chamados direitos dos homens,
dos quais o direito à saúde está elencado, demanda a constante
ampliação e extensão de ações para sua concretude20, reivindi-
cando dos Estados- nação ações conjuntas em momentos de ins-
tabilidade social, política e econômica.

18 MARQUES, William Paiva Júnior. Cooperação internacional no reconhecimento


do constitucionalismo global em tempos de pandemia sanitária. Revista Brasileira
de Direito Internacional v. 7 n. 1. Disponível em: https://www.indexlaw.org/in-
dex.php/direitointernacional/article/view/7566/pdf Acesso em: 21 jun 2022.
19 WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Vol. I. Florianópolis: Habitus, 2001.
pg. 168
20 WARAT, 2001. Ibid, p. 171
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 315
2. Contexto jurídico do direito sanitário internacional

O direito sanitário é reconhecido em âmbito interna-


cional como direito humano, fundamental a todo e qualquer ser
humano, independente de cor, de raça, de religião, de credo po-
lítico, de condição econômica ou social, de local de nascimento,
ou qualquer outra característica.
A proteção internacional dos Direitos Humanos
constitui um dos propósitos da Organização das Nações Unidas
(ONU), e, dessa forma devem ser observados e constitucionali-
zados no âmbito dos 193 (cento e noventa e três) países que
subscrevem a Carta das Nações Unidas, assinada em 1948. O
artigo 25 da Carta, inaugura o direito à saúde no âmbito da in-
ternacionalização, ao definir:
Artigo 25°
Toda a pessoa tem direito a um nível de vida sufi-
ciente para lhe assegurar e à sua família a saúde e
o bem-estar, principalmente quanto à alimentação,
ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e
ainda quanto aos serviços sociais necessários, e
tem direito à segurança no desemprego, na do-
ença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou nou-
tros casos de perda de meios de subsistência por
circunstâncias independentes da sua vontade.21

A consolidação do Direito à Saúde em âmbito inter-


nacional se deu mediante a formalização do Pacto Internacional
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, cujo Artigo 12
dispõe:

21 ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:


https://www.ohchr.org/en/human-rights/universal-declaration/translations/por-
tuguese?LangID=por. Acesso em 11 jun. 2022.
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
316 | internacional de direito sanitário

Artigo 12
1. Os Estados-Partes do presente Pacto reconhe-
cem o direito
elevado nível possível
de toda pessoa
de saúde
defísica
desfrutar
e mental.
o mais

2. As medidas que os Estados-Partes do presente


Pacto deverão adotar com o fim de assegurar o
pleno exercício desse direito incluirão as medidas
que se façam necessárias para assegurar:
a) a diminuição da mortinatalidade e da mortali-
dade infantil, bem como o desenvolvimento são
das crianças;
b) a melhoria de todos os aspectos de higiene do
trabalho e do meio ambiente;
c) a prevenção e o tratamento das doenças epidê-
micas, endêmicas, profissionais e outras, bem
como a luta contra essas doenças;
d) a criação de condições que assegurem a todos
assistência médica e serviços médicos em caso de
enfermidade.22

Extrai-se do artigo, portanto, que o direito à saúde


deve ser observado por cada Estado-membro signatário do
Pacto, por meio da recepção interna de seus ordenamentos jurí-
dicos, não apenas de forma abstrata, mas mediante mecanismos
que visem a implementação e a concretização das ações neces-
sárias para sua satisfação.
O chamado constitucionalismo global23 dos Direitos
Humanos encontra sua confirmação definitiva na Convenção
Mundial dos Direitos Humanos, ocorrida em Viena (1993), que

22 BRASIL. Decreto n. º 591, de 06 de julho de 1992. Atos internacionais. Pacto Inter-


nacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Presi-
dência da República – Casa Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em 22 jun. 2022.
23 MARQUES, Op. Cit.
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 317
culminou na Declaração dos Direitos Humanos, em que res-
salta:
4. A promoção e proteção de todos os direitos hu-
manos e liberdades fundamentais devem ser con-
sideradas como um objetivo prioritário das Na-
ções Unidas, em conformidade com seus propósi-
tos e princípios, particularmente o propósito da
cooperação internacional. No contexto desses pro-
pósitos e princípios, a promoção e proteção de to-
dos os direitos humanos constituem uma preocu-
pação legítima da comunidade internacional. Os
órgãos e agências especializados relacionados com
os direitos humanos devem, portanto, reforçar a
coordenação de suas atividades com base na apli-
cação coerente e objetiva dos instrumentos inter-
nacionais de direitos humanos.
5. Todos os direitos humanos são universais, indi-
visíveis interdependentes e inter-relacionados. A
comunidade internacional deve tratar os direitos
humanos de forma global, justa e eqüitativa, em pé
de igualdade e com a mesma ênfase. Embora par-
ticularidades nacionais e regionais devam ser le-
vadas em consideração, assim como diversos con-
textos históricos, culturais e religiosos, é dever dos
Estados promover e proteger todos os direitos hu-
manos e liberdades fundamentais, sejam quais
forme seus sistemas políticos, econômicos e cultu-
rais

Desta forma, o constitucionalismo global, ou a inter-


nacionalização dos Direitos Humanos, implicam na compatibi-
lização de um determinado sistema jurídicos com os direitos,
regras e tratados produzidos no âmbito internacional, tornando
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
318 | internacional de direito sanitário

evidente a inexistência de fronteiras irrestritas entre o direito


doméstico e o direito internacional24.
Na liderança do sistema de proteção ao direito hu-
mano à saúde está a Organização Mundial de Saúde (OMS), or-
ganização internacional que integra o Sistema das Nações Uni-
das, cujo objetivo é a aquisição do nível mais elevado possível
de saúde, para todos os povos, e sua principal função é coorde-
nar a saúde em nível global. Oficialmente criada em 22 de julho
de 1946, mediante um tratado firmado entre 61 (sessenta e um)
países, sucedendo o extinto Escritório Internacional de Higi-
ene25.
Segundo a Constituição da OMS, o conceito de saúde
ultrapassa a mera ausência de doenças ou enfermidades, sendo
definido como um estado de completo bem-estar físico, mental
e social, inerente a todos os seres humanos. Desta forma, cons-
titui uma tarefa da organização atuar junto aos Estados mem-
bros para que de forma colaborativa sejam garantidas as condi-
ções sanitárias necessárias à promoção, proteção, prevenção e
recuperação da saúde, englobando os serviços sanitários, epide-
miológicos, assistência em nível primária, secundário e terciá-
rio, bem como especializado, e a erradicação de endemias, epi-
demias e pandemias26.
Comparato ressalta que as políticas públicas de sa-
úde constituem um direito universal, cabendo aos sistemas de

24 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges.
4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, (Justiça e direito), p.463.
25 MONACO, Gustavo Ferraz de Campos; LOULA, Maria Rosa Guimarães. Eficácia
das decisões da Organização Mundial da Saúde. In: LIMA, Fernando Rister de
Sousa (et. al) (coord.). COVID-19 e os impactos no direito: mercado, estado, tra-
balho, família, contratos e cidadania. São Paulo: Almedina Brasil, 2020. pgs.
236/237.
26 MONACO E LOULA, 2020, Ibid, p. 238.
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 319
saúde de cada Estado definir os meios necessários para seu ga-
rantir a sua efetividade27.
A OMS é formada por 03 (três) principais órgãos: a
Assembleia Geral, o Secretariado e o Conselho Executivo, cada
um com suas funções e papéis específicos. A Assembleia Geral,
denominada Assembleia Mundial da Saúde (AMS), é composta
pelos representantes dos Estados-parte, cuja competência é de-
terminar a política, o programa de atividades e aprovar o orça-
mento da OMS. O Secretariado é considerado um órgão admi-
nistrativo, que lidera o corpo técnico da organização, e estabe-
lece comunicação junto aos Estados membros, para o exercício
de suas funções, através de um contato direto com os ministros
de saúde, com as organizações internas de saúde e demais ser-
viços. E, por fim, o Conselho Executivo, formado por 18 mem-
bros, com mandato de 03 (três) anos, que tem a função estraté-
gica de executar as decisões da AMS.
No contexto de competência da OMS, a sua Consti-
tuição estabelece nos artigos 21 e 22, respectivamente, que a
AMS tem autoridade para adotar regulamentos, que tratem
acerca de: “medidas sanitárias e de quarentena e outros proce-
dimentos destinados a evitar a propagação internacional de do-
enças”, que entrem em vigor para todos os Estados membros, a
partir de sua admissão ser devidamente notificada pela Assem-
bleia, contudo, exceto para aqueles que “comuniquem ao dire-
tor-geral sua rejeição ou reservas no prazo determinado pela
notificação”.
De acordo com Monaco e Loula, a força normativa
das decisões da OMS em face dos Estados membros, podem ser
identificas nos seguintes casos: (i) patrocínio da celebração de

27 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3ª Ed.


rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2003, pgs. 352-353.
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
320 | internacional de direito sanitário

tratados, (ii) garantir foro privilegiado para observância da


norma internacional, (iii) emissão de resoluções, (iv) canais pri-
vilegiados de informações técnicas para difusão de conheci-
mentos técnicos específicos internacionalmente, (vii) execução
de poderes legislativos delegados; (viii) celebrar acordos com
Estados membros e não membros ou com outras organizações
internacionais, e (ix) poder normativo interno. Reforçam ainda
que durante a pandemia da Covid-19 se sobressaíram as hipó-
teses (iii), (iv) e (vii).
O principal instrumento jurídico vinculante da OMS
é o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), aprovado na 58ª
AMS, realizada em 2005. O regulamento foi aprovado pelos Es-
tados membros com o propósito definido no artigo 2º de “pre-
venir, proteger, controlar e dar respostas de saúde pública con-
tra a propagação internacional de doenças, de maneiras propor-
cionais e restritas aos riscos para saúde pública”. Contudo, um
ponto de extrema relevância para análise aqui realizada, diz res-
peito a redação do artigo 44 do RSI, que trata diz: “Artigo 44
Colaboração e assistência 1. Os Estados Partes comprometem-
se a colaborar entre si na medida do possível”. Ou seja, assim
como o artigo 22 da Constituição da OMS apresenta a prerroga-
tiva dos Estados em rejeitar medidas sanitárias definidas pela
organização para conter a disseminação global de doenças, este
artigo do RSI apresenta a condicionante da colaboração na me-
dida do possível.
É a partir do contexto do “poder de ação” da OMS,
em face dos Estados membros, diante de uma crise globalizada,
que se percebe a insuficiência de sua força normativa vincu-
lante, fato que a impede de ser reconhecida como governança
global, com a competência necessária para definição de ações
planejadas, coordenadas e determinadas em plano internacio
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 321
nal. Uma crise sanitária como a pandemia da Covid-19 de-
manda uma intervenção internacional, colaborativa e solidária,
afinal frente a uma doença de escala globalizada, o que pode
um Estado sozinho resolver, se não o que está a seu alcance, ou
seja, o seu próprio território. Contudo, o que a pandemia de-
monstrou foi que sequer os seus próprios domínios os Estados
estavam preparados para proteger do coronavírus, uma doença
de escala global28.

3. A busca e os desafios para um tratado internacional de


direito sanitário – por “uma só saúde”

Diante do contexto apresentado, em que foi demons-


trado que a pandemia da Covid-19 afetou indistintamente a to-
dos os continentes do globo terrestre, com efeitos e impactos de
ordem social, econômica, jurídica, ambiental, dentre outras,
percebe-se a necessidade de mudança de ações para toda a co-
letividade. O objetivo não deve ser retornar ao período pré-pan-
demia, pois seria apenas como realizar um movimento de
looping, que nos conduziria novamente à uma crise sanitária
globalizada, mas pensar no que pode ser feito para evitar futu-
ras pandemia? E no caso de uma futura pandemia, o que pode
ser feito para amenizar os seus males?
Inicialmente, faz-se necessário ressaltar que cada Es-
tado deve ter em seu ordenamento jurídico o âmbito de prote-
ção à saúde, como garantia de um direito humano dos seus ci-
dadãos. Conforme foi dito, o direito à saúde é amplo, e não se
restringe apenas à ausência de doenças. Portanto, parte-se do
pressuposto que cada governo já possui legislações que visem a

28 FEBBRAJO, Alberto. Op. Cit. p. 321.


Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
322 | internacional de direito sanitário

efetividade de um direito sanitário doméstico. Ademais, pas-


sando para o âmbito do meio-ambiente, o que não pode deixar
de ser avaliado, dada a origem animal da pandemia da Covid-
19, faz-se necessários que os governos garantam a preservação
de seus parques ecológicos, áreas selvagens, e a degradação de
seus ecossistemas, aliados à fortes mecanismos de padrão de
controle e qualidade de alimentos de origem animal. A pande-
mia é um alerta para o ser humano, de que a vida só é possível
através da preservação do meio ambiente29.
Na 73ª Assembleia Mundial da Saúde, realizada em
novembro de 2020, foram apresentados posicionamentos aca-
nhados de otimismo acerca do controle da pandemia, onde a
maior expectativa repousava no esperado sucesso das vacinas.
Outros pontos relevantes levantados diziam respeito à saúde
global. A resolução (WHA73.1) acerca das respostas à Covid-19
enfatizou a responsabilidade dos governos nacionais pela ado-
ção de mecanismos locais de resposta à pandemia. E, em aten-
dimento a esta resolução, o diretor-presidente da OMS “estrei-
tou a colaboração em saúde única com a Organização Mundial
de Saúde Animal (OIE) e a Organização das Nações Unidas
para Alimentação e Agricultura (FAO)”, com o propósito de
identificar de forma sistemática a origem de novos surtos de ori-
gem patógena e zoonótica. Acerca do fortalecimento e estímulo
para um novo tratado internacional capaz de conduzir uma pre-
paração e resposta à futuras pandemias, chefes de Estado e
agências internacionais expressaram apoio a um tratado inter-
nacional sobre pandemias para proteção global de futuras crises

29 ROBINSON, Nicholas A. “One Global Health”: Preventing the Next Pandemic.


In: In: ALMEIDA, Verônica Scriptore Freire e; AKAOUI, Fernando Reverendo Vi-
dal; LAMY, Marcelo (coord.). Direito da Saúde na era pós Covid-19. São Paulo:
Almedina, 2021. pgs. 158/159.
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 323
de saúde, considerando que nenhum governo ou agência mul-
tilateral pode lidar com pandemias globais sozinho, enfati-
zando que a questão não se trata de uma futura pandemia, mas
quando ela ocorrerá30.
A Assembleia seguinte, a 74ª AMS, que aconteceu en-
tre os dias 24 de maio e 1º de junho de 2021, que teve a pandemia
da Covid-19 como tema central, dentro do contexto “Acabar
com essa pandemia, impedindo a próxima: construindo juntos
um novo mundo mais saudável, seguro e justo”, culminou nas
principais decisões: (i) Decisão 74/16, que convocou uma sessão
extraordinária da AMS, para novembro de 2021, com vistas a
examinar as possibilidades de desenvolver um novo instru-
mento internacional (acordo, tratado ou convenção) sobre a pre-
paração e resposta para novas pandemias; (ii) Criação de um
grupo de trabalho entre os Estados-membros da OMS sobre o
fortalecimento da preparação e resposta a emergências em sa-
úde da OMS, que apresente como produto final um documento
contendo proposição de medidas capazes de aperfeiçoar as
ações coordenadas da OMS, dos Estados e de agências não es-
tatais.
Em sequência, embora fossem grandes as expectati-
vas para apresentação dos avanços a serem apresentados pelos
estudos realizados do Grupo de Trabalho criado na Assembleia
anterior, a 75ª Assembleia Mundial da Saúde, realizada entre os
dias 22 e 28 de maio de 2022, foram levantados como principais
pontos: (i) para o desenvolvimento de um plano de preparação
e fortalecimento para futuras pandemias será necessário mais
que o compromisso dos Estados-membros, mas uma mudança

30 GALVÃO, Luiz Augusto C. A resposta corajosa da OMS. In: BUSS, Paulo Ma-
chiori; BURGER, Pedro. (Org.) Diplomacia da Saúde: respostas globais à pande-
mia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021. ISBN: 978-65-87063-10-2. p. 232/235.
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
324 | internacional de direito sanitário

estrutural em direção a realização de uma saúde global mais


justa, inclusiva e equitativa, com adoção de modelos de negó-
cios sociais, no que diz respeito à produção de vacinas e medi-
camentos, (ii) resposta do Comitê Independente de Supervisão
e Assessoramento do Programa de Emergências de Saúde da
OMS, incluindo a pauta preparação e resposta31.
Embora seja um avanço o reconhecimento por parte
da Assembleia Mundial de Saúde da necessidade de um tratado
internacional para prevenção e respostas às futuras pandemias,
essa não deveria ser uma agenda isolada no contexto de implan-
tação de uma governança global efetiva em garantir o direito à
saúde.
O direito humano à saúde como frisado no decorrer
deste trabalho, não se resume ao enfretamento de doenças, mas
da necessidade garantir um estado de completo bem-estar fí-
sico, mental e social, inerente a todos os seres humanos, por-
tanto não são apenas as doenças infecciosas que necessitam de
respostas. Conforme sinalizado, a pandemia agravou sobrema-
neira as desigualdades sociais, portanto, a construção de um
tratado global que vise garantir o direito à saúde deve ser ali-
cerçada sobre a garantia do acesso universal aos direitos huma-
nos, fatores transversais ao tema saúde como: renda mínima,
proteção social, alimentação acessível, habitação adequada,
condições sanitárias de saneamento, acesso à água potável,
além de acesso a serviços de saúde, que visem sua promoção,
prevenção e cuidado32.

31 WHO. WHA75. Documentos principais. Disponível em:


https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA75/A75_16-en.pdf. Acesso em: 22
jun. 2022.
32 BUSS, Paulo Marchiori. Tratado sobre pandemias, saúde global ou reforma do
RSI. In: BUSS, Paulo Machiori; BURGER, Pedro. (Org.) Diplomacia da Saúde: res-
postas globais à pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2021.
Carolina Lima Ciríaco Scipião | 325
Considerações finais

O direito sanitário, no plano internacional, possui


um amplo marco legal, o seu reconhecimento como um direito
inerente a todos os seres humanos é indubitável do ponto de
vista da normatividade, contudo percebe-se que necessita de
mecanismos mais efetivos no campo das relações internacionais
para que conquiste uma concretude e eficácia globalizada.
A pandemia da Covid-19, e todos os impactos e de-
safios que dela decorrentes, revelou a fragilidade do atual mo-
delo de governança internacional em saúde, pois apesar da li-
derança exercida pela Organização Mundial da Saúde no
campo do direito universal à saúde, os atuais instrumentos nor-
mativos internacionais não conferem a força normativa e vincu-
lante suficiente para que organização imponha um modelo de
sistema universal de saúde, que seja capaz de exigir aos Estados
membros a efetividade e compatibilização de suas ações com os
tratados internacionais, e com seus regulamentos e resoluções.
Além da falta de governança e de instrumentos nor-
mativos eficazes para garantir o direito global à saúde, a pande-
mia também revelou a falta de solidariedade e fraternidade
tanto nas relações sociais, como entre os países. O que se extrai
da desigualdade existente no processo de vacinação, na corrida
desenfreada de países mais ricos para garantir a compra de
equipamentos, material médico-hospitalar, equipamentos de
proteção individual, muitas vezes ofertando valores a mais para
passar a frente na “competição” com os países em desenvolvi-
mento e subdesenvolvidos, e, ainda a falta de compartilha-
mento de informações e descobertas científicas e tecnológicas
Transpandemia: a busca e os desafios pela efetividade de um tratado
326 | internacional de direito sanitário

de grande relevância para o enfrentamento da doença, como


por exemplo a polémica questão das patentes das vacinas.
Aponta-se ainda a tímida participação da Organiza-
ção das Nações Unidas, o organismo internacional com maior
atuação e força vinculante, que poderia ter um grande contri-
buto e participação na realização de um tratado universal de di-
reito à saúde, dada a sua ampla experiência nas negociações in-
ternacionais e influência exercidas entre os Estados-nação.
No entanto, identificam-se avanços no que se refere
à busca por um tratado internacional de direito sanitário, ainda
que em primeiro momento as discussões gravitem em torno de
um tratado para enfrentamento e resposta às futuras pande-
mias, o reconhecimento da insuficiência dos atuais modelos
normativos do direito à saúde, constitui um passo para que pos-
sam ser construído um novo modelo, que prime pela saúde de
forma globalizada, ou seja, por um direito à uma só saúde,
digna e inclusiva.

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Carolina Lima Ciríaco Scipião | 331
TRANSPANDEMIC: THE SEARCH AND
CHALLENGES IN THE EFFECTIVENESS OF AN
INTERNATIONAL HEALTH TREATY
Abstract: The Covid-19 pandemic showed the world that countries
are not prepared to face health crises in such a proportion in an indi-
vidualized way. However, world health leaders do not have the bind-
ing normative force necessary to guarantee an effective and concrete
right to health. Although internationally recognized, in pacts and
treaties, the health law still does not have effective mechanisms for its
promotion and protection, since it is still up to the member states to
comply with the recommendations of the highest international health
authority, the World Health Organization. The right to health repre-
sents a state of complete physical, mental and social well-being, de-
manding, therefore, the need to create legal and relevant mechanisms
that are capable of realizing this fundamental right of the human be-
ing, through the strengthening of global governance, that is capable
of presenting plans for prevention, containment and the necessary re-
sponses to health crises, in a coordinated and systemic way. The bib-
liographic and documentary methodology was used, through the
analysis of books, legal articles, official documents and news. The re-
search is pure, descriptive, exploratory and qualitative in nature.
Keywords: Transpandemic. Pandemic. Covid-19. International Law
Treaties. Health Law.

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