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WILLIAM PAIVA MARQUES JÚNIOR

MANUELLA OLIVEIRA TOSCANO MAIA


MILENA ALENCAR GONDIM

(Organizadores)

NOVAS PERSPECTIVAS DO

DIREITO INTERNACIONAL :

AS RELAÇÕES EXTERNAS NO

CONTEXTO PÓS- COVID- 19

VOLUME 4

EDITORA
MUCURIPE
WILLIAM PAIVA MARQUES JÚNIOR
MANUELLA OLIVEIRA TOSCANO MAIA
MILENA ALENCAR GONDIM
(Organizadores)

NOVAS PERSPECTIVAS DO
DIREITO INTERNACIONAL:
AS RELAÇÕES EXTERNAS NO
CONTEXTO PÓS-COVID-19
VOLUME 4

AUTORES
Amanda Rodrigues Lavôr
Ana Paula França Rolim
Carolina Lima Ciríaco Scipião
Filipe Brayan Lima Correia
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes
Hélio Barbosa Hissa Filho
Laís Maria Belchior Gondim
Lanna Maria Peixoto de Sousa
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes
Lucas Saraiva
Milena Alencar Gondim
Monalisa Rocha Alencar
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo
Ythalo Frota Loureiro
William Paiva Marques Júnior

Editora Mucuripe
Fortaleza, 2024
Esta obra está sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt_BR
CC
BY SA
Novas perspectivas do Direito Internacional :
as relações externas no contexto pós- Covid-19 – volume 4

1ª edição

William Paiva Marques Júnior


Manuella Oliveira Toscano Maia
Milena Alencar Gondim (coord . )

Editora Mucuripe

Conselho Editorial
André Parmo Folloni João Ricardo Catarino
Arno Dal Ri Junior Juarez Freitas
Daniela Leutchuk de Cademartori Marcelo Cattoni
Danielle Annoni Marciano Seabra de Godoi
Denise Lucena Cavalcante Marcos Wachowicz
Germana de Oliveira Moraes Maria Vital da Rocha
Gisele Cittadino Martonio Mont Alverne Barreto Lima
Hugo de Brito Machado Segundo Paulo Caliendo
João Luís Nogueira Matias Roberto Alfonso Viciano Pastor

Capa, Editoração e Revisão


Álisson José Maia Melo

Imagem da capa gerada a partir da IA DALL- E 3.

Dados internacionais de Catalogação na Publicação


N936 Novas perspectivas do direito internacional: as relações externas no
contexto pós-Covid- 19 – volume 4 / Coordenadores: William Paiva Mar-
ques Júnior, Manuella Oliveira Toscano Maia e Milena Alencar Gondim —
1. ed . —- Fortaleza : Mucuripe, 2024.
Vários autores.
532 p .: 21 cm.

ISBN- 13: 978-65-87966-39-7

1. Direito Internacional - Brasil. 2. Direitos Humanos - Brasil . 3. De-


senvolvimento – Brasil. I. Marques Junior, William Paiva . II . Maia, Ma-
nuella Oliveira Toscano. III. Gondim, Milena Alencar.
CDD
341
SUMÁRIO

SOBRE OS ORGANIZADORES ................................................. 9


APRESENTAÇÃO ........................................................................ 11
AGRADECIMENTOS.................................................................. 23
CAPÍTULO I.
A SUPERAÇÃO DA FIGURA DO INIMIGO NO DIREITO
INTERNACIONAL: A CONSTITUIÇÃO DA TERRA (LUIGI
FERRAJOLI), A SOLIDARIEDADE (STEFANO RODOTÀ) E O
DIREITO FRATERNO (ELIGIO RESTA).................................... 24
William Paiva Marques Júnior
OVERCOMING THE FIGURE OF THE ENEMY IN
INTERNATIONAL LAW: THE CONSTITUTION OF THE
EARTH (LUIGI FERRAJOLI), THE SOLIDARITY (STEFANO
RODOTÀ) AND FRATERNAL LAW (ELIGIO RESTA)
CAPÍTULO II.
OS DIREITOS DAS PESSOAS COM AUTISMO NA
CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE .......................................... 63
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes
THE RIGHTS OF PEOPLE WITH AUTISM AT THE NEW
YORK CONVENTION
CAPÍTULO III.
DIREITO À DESCONEXÃO NA AMÉRICA LATINA:
ESTUDO COMPARADO ENTRE BRASIL E COLÔMBIA...... 92
Hélio Barbosa Hissa Filho
RIGHT TO DISCONNECTION IN LATIN AMERICA: A
COMPARATIVE STUDY BETWEEN BRAZIL AND
COLOMBIA
Novas perspectivas do direito internacional:
4| As relações externas no contexto pós-COVID-19

CAPÍTULO IV.
O FLUXO MIGRATÓRIO VENEZUELANO E OS IMPACTOS
NA POLÍTICA EXTERNA E MIGRATÓRIA BRASILEIRA.. 124
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo
THE VENEZUELAN MIGRATORY FLOW AND IMPACTS
ON BRAZILIAN FOREIGN AND MIGRATORY POLICY
CAPÍTULO V.
OS PARÂMETROS DE PROTEÇÃO DO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS SOBRE A
NEGLIGÊNCIA SISTEMÁTICA NO COMBATE A
VITIMIZAÇÃO LETAL INTENCIONAL DE PESSOAS
LGBTIQIAPN+ ............................................................................. 148
Ythalo Frota Loureiro
THE PROTECTION PARAMETERS OF THE INTER-
AMERICAN SYSTEM OF HUMAN RIGHTS OVER
SYSTEMATIC NEGLIGENCE IN COMBATING THE
INTENTIONAL LETHAL VICTIMIZATION OF
LGBTIQIAPN+ PEOPLE
CAPÍTULO VI.
CIDADES INTELIGENTES E ODS 11: PROTAGONISMO DOS
MUNICÍPIO NA EXTINÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL
PARA OS OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL ........................................................................... 188
Lucas Saraiva
William Paiva Marques Júnior
SMART CITIES AND SDG 11: THE ROLE OF
MUNICIPALITIES IN THE DEMISE OF THE NATIONAL
COMMISSION FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT GOALS
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior |5
CAPÍTULO VII.
A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS AMBIENTAIS NAS
DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE
VERSAM SOBRE UTILIZAÇÃO PLÁSTICO .......................... 212
Amanda Rodrigues Lavôr
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes
THE APPLICATION OF ENVIRONMENTAL PRINCIPLES
IN THE DECISIONS OF THE SUPERIOR COURTS
REGARDING PLASTIC USE
CAPÍTULO VIII.
LEI EUROPEIA DO CLIMA E TRANSIÇÃO ENERGÉTICA244
Laís Maria Belchior Gondim
William Paiva Marques Júnior
EUROPEAN CLIMATE LAW AND ENERGY TRANSITION
CAPÍTULO IX.
A LOCALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA PARA A
IMPLEMENTAÇÃO DOS ODS ................................................. 272
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes
Milena Alencar Gondim
LOCALIZATION AS A STRATEGY FOR IMPLEMENTING
THE SDG
Novas perspectivas do direito internacional:
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CAPÍTULO X.
TRABALHO DOMÉSTICO: UMA PERSPECTIVA DO
TRABALHO DECENTE NA RELAÇÃO LATINO-
AMERICANA DE BRASIL E ARGENTINA............................ 297
Lanna Maria Peixoto de Sousa
DOMESTIC WORK: A PERSPECTIVE OF DECENT WORK
IN THE LATIN AMERICAN RELATIONSHIP OF BRAZIL
AND ARGENTINA
CAPÍTULO XI.
VULNERABILIDADES DO MERCADO DE CRÉDITO DE
CARBONO NO BRASIL: A NECESSÁRIA SUPERAÇÃO DO
VAZIO NORMATIVO EM MATÉRIA PENAL AMBIENTAL
........................................................................................................ 332
Monalisa Rocha Alencar
VULNERABILITIES OF THE CARBON CREDIT MARKET IN
BRAZIL: THE NEED TO OVERCOME THE REGULATORY
VOID IN ENVIRONMENTAL CRIMINAL MATTERS
CAPÍTULO XII.
INFLUÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS NO BRASIL PELA PROTEÇÃO DA
MULHER E PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM
PERSPECTIVA DE GÊNERO..................................................... 369
Ana Paula França Rolim
INFLUENCE OF THE INTER-AMERICAN COURT OF
HUMAN RIGHTS IN BRAZIL FOR THE PROTECTION OF
WOMEN AND PROTOCOL FOR TRIAL WITH A GENDER
PERSPECTIVE
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e |7
William Paiva Marques Júnior

CAPÍTULO XIII.
O IMPACTO DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL QUE SUGEREM CONDUTAS
AMBIENTALMENTE DESEJADAS NOS CUSTOS DE
TRANSAÇÃO EMPRESARIAIS ................................................ 403
Amanda Rodrigues Lavôr
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes
THE IMPACT OF SUPREME FEDERAL COURT JUDICIAL
DECISIONS THAT SUGGEST ENVIRONMENTALLY
DESIRED CONDUCT ON COMPANIES' TRANSACTION
COSTS
CAPÍTULO XIV.
PROCESSO DE MEDIDA PROVISÓRIA NA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS QUE
RESULTOU NA CONTAGEM EM DOBRO DO TEMPO DE
PRISÃO.......................................................................................... 434
Filipe Brayan Lima Correia
PROVISIONAL MEASURE PROCESS IN THE INTER-
AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS THAT
RESULTED IN A DOUBLE COUNTING OF PRISON TIME
Novas perspectivas do direito internacional:
8| As relações externas no contexto pós-COVID-19

CAPÍTULO XV.
DA AGENDA 2030 AO PACTO ECOLÓGICO EUROPEU: A
EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DOS OCEANOS CONTRA A
POLUIÇÃO POR (MICRO)PLÁSTICOS .................................. 464
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes
FROM THE AGENDA 2030 TO THE EUROPEAN GREEN
DEAL: THE EVOLUTION OF THE PROTECTION OF THE
OCEANS AGAINST THE POLLUTION BY
(MICRO)PLASTICS
CAPÍTULO XVI.
A MEDIAÇÃO SANITÁRIA COMO MECANISMO DE
PROMOÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NA PANDEMIA DA
COVID-19: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS RELAÇÕES
BILATERAIS ENTRE BRASIL E URUGUAI ........................... 493
Carolina Lima Ciríaco Scipião
William Paiva Marques Júnior
HEALTH MEDIATION AS A MECHANISM FOR
PROMOTING THE RIGHT TO HEALTH IN THE COVID-19
PANDEMIC: AN ANALYSIS BASED ON BILATERAL
RELATIONS BETWEEN BRAZIL AND URUGUAY
SOBRE OS ORGANIZADORES

WILLIAM PAIVA MARQUES JÚNIOR


Possui graduação em Direito (2001). Especialista em Direito
Processual Penal pela ESMEC/UFC (2003). Mestre em Direito
Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (2009). Dou-
tor em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ce-
ará (2016). Professor Adjunto Nível 1 do Departamento de Di-
reito Privado da Universidade Federal do Ceará, das disciplinas
de Direito Civil II (Obrigações), Direito Civil V (Coisas) e Di-
reito Agrário. Foi Advogado Júnior da ECT (Empresa Brasileira
de Correios e Telégrafos) de 2008 a 2011. Coordenador de Gra-
duação da Faculdade de Direito da UFC (2014 a 2017). Desde
setembro de 2019 ocupa a função de Assessor do Gabinete do
Reitor da UFC. Editor-Chefe da Revista da Faculdade de Direito
da UFC. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Ceará das disciplinas de Metodo-
logia do Ensino Jurídico e Direitos das Relações Internacionais
e Contemporaneidade. Vice-Coordenador do PPGD/UFC. Ex-
bolsista de Doutorado da CAPES.

MANUELLA OLIVEIRA TOSCANO MAIA


Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Estácio
do Ceará (2017). Atualmente é Advogada e Professora. Tem ex-
periência na área de Direito, com ênfase em Direito Previdenci-
ário. Mestranda em Direito pelo PPGD/UFC.
Novas perspectivas do direito internacional:
10 | As relações externas no contexto pós-COVID-19

MILENA ALENCAR GONDIM


Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Ce-
ará (2010). Especialista em Direito Previdenciário e Processo
Previdenciário pelo Ibmec São Paulo. Atualmente é Procura-
dora Jurídica do Instituto de Previdência do Município de For-
taleza e Professora da Faculdade de Ensino e Cultura do Ceará
‒ FAECE. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em
Direito Público. Mestranda em Direito pelo PPGD/UFC.
APRESENTAÇÃO

A presente coletânea de artigos é composta de temas


sobre as Novas Perspectivas do Direito Internacional, fruto de
estudos desenvolvidos pelos pesquisadores da Universidade
Federal do Ceará, tratando de assuntos de grande relevo social,
que oportunizam ao leitor uma reflexão profunda sobre a im-
portância do contexto internacional para a contemporaneidade,
especialmente após o contexto de transpandemia, ou seja, após
a Covid-19.
William Paiva Marques Júnior aborda os novos ho-
rizontes para o Direito Internacional a partir das transformações
oriundas do quadro pandêmico mundial causado pela Covid-
19. Tem-se, portanto, uma genuína humanização do Direito In-
ternacional, surgindo a necessidade de superação da figura do
inimigo e o consequente reconhecimento do Direito Fraterno e
da Constituição da Terra. Considerando as mutações analisa-
das, Luigi Ferrajoli propõe um projeto de constitucionalismo ex-
pandido para o plano internacional, elaborado para suplantar
as Constituições dos estados nacionais, Stefano Rodotà aborda
a solidariedade e Eligio Resta defende os aportes do Direito Fra-
terno. O balanço do contexto internacional contemporâneo re-
vela que os direitos fundamentais devem ser universais e que a
Organização das Nações Unidas fracassou em promovê-los, tal
qual se vê na Guerra Rússia/Ucrânia. Conclui que o Direito Fra-
terno assume grande relevância para o sucesso da política di-
plomática, possibilitando relações externas mais harmoniosas e
pacifistas.
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes parte da aná-
lise da evolução histórica da proteção das pessoas com deficiên
Novas perspectivas do direito internacional:
12 | As relações externas no contexto pós-COVID-19

cia, incluindo pessoas com autismo, desde a Roma antiga, de-


monstrando a trajetória de exclusão, que perdurou por vários
séculos, até o surgimento dos primeiros instrumentos internaci-
onais, que previram sua dignidade, surgindo apenas no século
XXI a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência,
também conhecida como Convenção de Nova Iorque. Esta con-
venção veio reconhecer que as pessoas com deficiência têm os
mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais, inaugu-
rando todo um sistema voltado para “in dubio pro capacitas”.
Nesta toada, passa à conceituação e explicitação das caracterís-
ticas do transtorno do espectro autista, explicando-se os graus e
as possíveis causas, assim como a relevância da temática. Ana-
lisa os direitos reconhecidos pela Convenção de Nova Iorque
em favor das pessoas com autismo, chegando ao problema da
pesquisa, pertinente à importância de se promover a participa-
ção plena e efetiva na sociedade, reconhecimento de suas capa-
cidades e habilidades individuais, a promoção de sua autono-
mia e independência, fornecimento de serviços e apoios ade-
quados para suas necessidades, constatando que os direitos pre-
sentes na Convenção de Nova Iorque não se efetivam por si só,
sendo necessárias a conscientização, acessibilidade, adaptações
e solidariedade. Ao final, propõe exequíveis soluções, visando
aassegurar o acesso pleno ao conjunto de direitos garantidos, a
fim de realizar a inclusão social efetiva das pessoas com au-
tismo.
Hélio Barbosa Hissa Filho investiga o direito à des-
conexão na América Latina, em estudo comparado entre Brasil
e Colômbia, verificando, inicialmente, a natureza daquele no
contexto dos direitos humanos, bem como o identificando no
ordenamento jurídico pátrio. Em seguida, averigua a compati-
bilidade entre a Lei nº. 2.191, de seis de janeiro de 2022, que o
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior | 13
regulamentou em território colombiano, e o ordenamento jurí-
dico brasileiro, a fim de que se possa aferir se a referida norma
pode servir de base para o legislador nacional. Para tanto, rea-
liza estudo propositivo, visando ao enriquecimento científico a
partir do direito comparado, bem como documental e bibliográ-
fico, fruto da análise da legislação nacional e internacional e de
trabalhos científicos, tais como artigos e dissertações.
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo analisa os im-
pactos do aumento do ingresso de imigrantes venezuelanos no
território nacional, verificado a partir de 2017, sobre a política
externa e migratória brasileira. Para tanto, inicialmente, estuda
os registros e documentos que apontam o crescimento desse
fluxo migratório, investigando quais as suas causas prementes,
a partir das perspectivas política e econômica. Na segunda
parte do trabalho, faz uma análise desse fenômeno, tendo em
vista as suas repercussões em face da população e do Estado
brasileiro. Por fim, apresenta ações do Estado brasileiro, no âm-
bito da política externa e migratória, adotadas no contexto his-
tórico-político relativas à Venezuela e à sua população mi-
grante, analisando sua validade em relação aos parâmetros
constitucionais aplicáveis.
Ythalo Frota Loureiro objetiva 1) identificar as nor-
mas jurídicas da Convenção Americana de Direitos Humanos
(CADH) aplicáveis à vitimização letal e intencional de pessoas
LGBTI+; 2) descrever os casos admitidos pela Comissão Intera-
mericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre vitimização
LGBTI+; e 3) descrever os casos julgados pela CIDH e pela Cor-
teIDH que se relacionam a outras matérias da pauta LGBTI+.
Como metodologia, utiliza uma pesquisa qualitativa e explora-
tória, por meio da análise de casos julgados pelos órgãos do
SIDH relativos à vitimização LGBTI+; e, em especial, no Caso
Novas perspectivas do direito internacional:
14 | As relações externas no contexto pós-COVID-19

Atala Riffo y niñas versus Chile, julgado em 24 de fevereiro de


2012, que inaugurou o reconhecimento da discriminação base-
ada na orientação sexual; e Vicky Hernández y familia versus Hon-
duras, o primeiro caso em que a CorteIDH reconheceu a violação
do direito à vida de pessoa transsexual, interpretando o artigo
4 da CADH. Concluiu que são parâmetros legais, para o reco-
nhecimento de violação a direitos humanos em casos de vitimi-
zação de pessoas LGBTI+: dever de não-discriminação (art. 1.1);
direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (art. 3); di-
reito à vida (art. 4); direito à integridade pessoal (art. 5); direito
à liberdade pessoal (art. 7); direito às garantias judiciais (art. 8);
direito à proteção da honra e da dignidade (art. 11); direito à
liberdade de pensamento e de expressão (art. 13); direito ao
nome (art. 18); igualdade perante a lei (art. 24); proteção judicial
(art. 25 da CADH); e proteção estatal ampla contra a violência
de gênero (art. 7 da Convenção de Belém do Pará).
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior
abordam a hipótese do governo federal brasileiro discordar,
não tornar efetivo ou permanecer inerte, os outros entes federa-
tivos podem tomar a iniciativa para cumprir, voluntariamente,
compromissos internacionais, uma vez que a gestão do meio
ambiente é compartilhada. Assim, buscam compreender a pos-
sibilidade do protagonismo dos Municípios por meio do mo-
delo de cidades inteligentes para alcançar as metas da Agenda
2030, especificamente, o Objetivo de Desenvolvimento Susten-
tável 11 (ODS 11), considerando a extinção da Comissão Nacio-
nal para os ODS e esse vácuo de espaço político.
Amanda Rodrigues Lavôre Lucas Salles Gazeta Vi-
eira Fernandes analisam quais são os princípios ambientais uti-
lizados pelo STF nas decisões que envolvem a utilização de
plástico e como é feita essa aplicação. A humanidade expandiu,
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior | 15
gradativamente, sua capacidade de produção e consumo. Cres-
ceu também a quantidade de resíduos gerados nesse processo,
entre eles, encontram-se os plásticos. Os dados alarmantes apre-
sentados sobre a produção e o descarte dos materiais plásticos
demonstram a gravidade do problema, em um nível global. Di-
ante da importância de resguardar o direito constitucional ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio, de maneira
preventiva e não apenas reparatória, é indispensável destrin-
char a atuação do Poder Judiciário. Conclui-se que não existem
muitos julgados do STF que relacionam a matérias ambientais
com a poluição por plástico. Nas decisões analisadas, verificam-
se que os princípios do protetor-recebedor; princípio da defesa
do meio ambiente; princípio do meio ambiente equilibrado;
princípio da sustentabilidade; princípio da precaução. Con-
tudo, as decisões são frágeis e insuficientes para reprimir a ocor-
rência e o crescimento desse tipo de ação lesiva ao meio ambi-
ente.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Mar-
ques Júnior propõem estudar a crise ambiental, climática e
energética, vivenciada na contemporaneidade; descrita por tan-
tos estudos científicos é um desafio global. Buscando soluções,
os países passaram a se reunir periodicamente para discutir a
temática. Desses encontros, resultaram muitos documentos im-
portantes a nível internacional, como o Acordo de Paris. No âm-
bito da União Europeia, nesse mesmo sentido, foi adotado o
Pacto Ecológico Europeu, cujas metas principais são a neutrali-
dade climática até 2050 e a transição energética justa e equita-
tiva. Um dos instrumentos desse Pacto é a Lei Europeia do
Clima. Seu texto traz tanto aspectos climáticos, quanto energé-
ticos. Frente a isso, a problemática consiste na análise dessa
norma como estratégia para a efetivação da transição energética
Novas perspectivas do direito internacional:
16 | As relações externas no contexto pós-COVID-19

na UE. Propõem os questionamentos: Em que contexto se deu a


adoção do PEE no cenário europeu? O que prevê a Lei Europeia
do Clima? De que maneira se pode enquadrá-la no que tange
aos conceitos de desenvolvimento sustentável e sustentabili-
dade? Como podemos relacionar a LEC e a transição energé-
tica? O objetivo da pesquisa é examinar de que maneira esse ato
normativo pode influenciar o processo de mudança da matriz
energética na UE. De início, investigam o contexto em que o PEE
foi estabelecido na UE, abordando marcos internacionais que
culminaram no seu surgimento. Depois, discorrem sobre a Lei
Europeia do Clima e suas particularidades, trazendo ainda a di-
ferenciação entre desenvolvimento sustentável e sustentabili-
dade e qual definição ela prioritariamente aborda. Em seguida,
discutem a relação entre essa norma e a transição energética.
Por fim, concluem que a LEC é uma estratégia relevante para
impulsionar esse processo no bloco, de forma que as ações de-
vem ser transversais, integrando-se clima e energia, pois um re-
verbera no outro.
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena
Alencar Gondim apresentam que, ao longo da evolução hu-
mana, o modo de as comunidades interagirem com o ambiente
ao seu redor mudou drasticamente, resultando em um tipo de
desenvolvimento pautado na degradação insustentável dos re-
cursos do planeta. Observando essa realidade e entendendo a
necessidade de encontrar uma forma de crescimento econômico
que proporcione não só o aumento de capital, mas também a
evolução social e a perpetuação do meio ambiente a todas as
demais gerações, encontrou-se a solução no que viria a ser con-
ceituado como desenvolvimento sustentável. Assim, analisa-se,
inicialmente, que, após a introdução do assunto na Conferên
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior | 17
cias de Estocolmo de 1972, sua conceituação pelo Relatório Bru-
ndtland de 1987, e outras diversas convenções voltadas ao ama-
durecimento da temática, o Desenvolvimento Sustentável teve
a sua importância no cenário global refletida na edição da
Agenda 2030 e dos ODS, passando a ser o objetivo primordial
de toda a atuação internacional. Posteriormente, verifica-se que,
ao ser elaborada com a finalidade de instituir objetivos e metas
universais, a Agenda 2030 trouxe importantes avanços no
campo do desenvolvimento sustentável, uma vez que a criação
dos 17 ODS e suas 169 metas serviu para balizar as políticas pú-
blicas e avançar a implementação desse novo ideal de progresso
da humanidade. Dessa forma, partindo-se do questionamento
sobre o papel da atuação local para implementação dos ODS,
investigou-se como a localização de medidas universais, criadas
para atender às demandas do cenário internacional, pode ser
essencial para garantir a adaptação dessas medidas às realida-
des locais, oferecendo assim respostas mais efetivas a essas pro-
blemáticas. Por fim, utilizando-se de uma metodologia descri-
tivo-analítica, por meio de pesquisa bibliográfica e documental,
conclui-se que, apesar de alguns desafios ainda a serem enfren-
tados no momento da implementação local dos objetivos de de-
senvolvimento sustentável globais, o caráter específico dessa
aplicação mostra-se como o meio mais propício para atender às
desigualdades de cada local e garantir maior efetividade ao seu
combate, tendo em vista o maior poder de adaptação e de opor-
tunização de uma participação múltipla no processo decisório,
responsável por gerar uma maior aceitação da comunidade lo-
cal e, consequentemente, propiciar o sucesso dos ODS.
Lanna Maria Peixoto de Sousa aborda a temáticado
trabalho decente, que surgiu na década de 1990 com o intuito
de defender a promoção do emprego frente à precarização e
Novas perspectivas do direito internacional:
18 | As relações externas no contexto pós-COVID-19

crescente informalidade no mercado. A Organização Internaci-


onal do Trabalho (OIT) procurou difundir os objetivos estraté-
gicos e metas traçadas para efetivar postos de trabalho atrelados
ao princípio da dignidade da pessoa humana. Com as Reco-
mendações e Convenções sobre o tema, os países avançariam
em direção à formalização progressiva, à equidade de gênero
no ambiente do trabalho, ao trabalho estruturado juntamente
com a promoção dos direitos fundamentais no trabalho, a pro-
teção social e o diálogo social. Na América Latina, em especial
nas economias brasileira e argentina, a efetivação do trabalho
decente reduziria os abismos da desigualdade social e da po-
breza, principalmente em trabalhos historicamente relegados a
não regulamentação e não proteção legal. Para observar isso, a
metodologia utilizada foi a exploratória, visto que a perspectiva
geral do trabalho digno foi explorada defronte à realidade sin-
gular do trabalho doméstico no Brasil e na Argentina. O obje-
tivo da pesquisa é comparar a relação latino-americana entre os
dois países no que diz respeito ao trabalho doméstico decente.
A problemática central baseou em elementos dissociantes e con-
vergentes entre os dois países, de modo que a partir das hipóte-
ses foi possível visualizar o progresso maior da Argentina no
reconhecimento e proteção do trabalho doméstico e a presença
de elementos, mesmo que parcamente, do trabalho digno em
ambas as nações. Ademais, é partilhada a dificuldade e atraso
de ambos os países em normatizar o trabalho doméstico com
garantias trabalhistas e constitucionais.
Monalisa Rocha Alencar analisa a configuração pe-
nal ambiental do mercado de crédito de carbono no Brasil, a fim
de serem identificadas as suas vulnerabilidades, em uma abor-
dagem crítica, viabilizada mediante pesquisas bibliográficas,
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior | 19
documentais, legislativas e eletrônicas. Tem como questão cen-
tral o exame dos riscos em que se insere o mercado nacional vo-
luntário, visando à proposição de alternativas para prevenir e
punir condutas criminosas cometidas no âmbito da geração e
da comercialização do crédito de carbono. Como resultado da
pesquisa, identifica que as estratégias descarbonizadoras avan-
çaram muito mais rápido do que a legislação penal em matéria
ambiental, cujas tipificações se mostram insuficientes para pre-
venir e reprimir as condutas desleais, fraudulentas e danosas ao
meio ambiente no âmbito da criação e das transações realizadas
no mercado de crédito de carbono no País. Logo, há urgente ne-
cessidade de superação do vazio normativo em matéria penal
ambiental nesse segmento, de modo que sejam efetivamente tu-
telados a sustentabilidade e o equilíbrio ambientais.
Ana Paula França Rolim estuda a influência da
Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela pro-
teção da mulher a partir do cotejo da condenação no caso Már-
cia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil e o Protocolo para Jul-
gamento com Perspectiva de Gênero (2021), elaborado em cola-
boração entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a Escola
Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura
(ENFAM), inicialmente recepcionado pelo CNJ com o status de
Recomendação e, posteriormente, como Resolução de aplicação
obrigatória pelo Poder Judiciário, com o fito de diminuir a desi-
gualdade de gênero e promover julgamentos mais justos e não-
discriminatórios. Busca preencher uma lacuna consistente na
identificação da relação entre a atuação da Corte Interamericana
de Direito no Brasil pela proteção da mulher e o Protocolo para
Julgamento com Perspectiva de Gênero.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vi-
eira Fernandes pesquisam sobre de que forma as decisões do
Novas perspectivas do direito internacional:
20 | As relações externas no contexto pós-COVID-19

Supremo Tribunal Federal que incentivam condutas ambiental-


mente desejadas podem ter impacto nos custos de transação das
empresas. Utiliza-se pesquisa do tipo bibliográfica e documen-
tal, com base em revisão de literatura de artigos científicos, na-
tureza pura e descritiva. A abordagem é quantitativa-qualita-
tiva mediante a utilização da Metodologia de Análise de Deci-
sões (MAD). Esta pesquisa tem relevância teórica e prática, pois
oferece uma contribuição original sobre essa relação das deci-
sões judiciais, principalmente as do STF, nos custos de transa-
ção de empresas e decorre muito da necessidade que as empre-
sas têm de ter condutas ambientalmente corretas e equilibrar os
custos de transação e isso está diretamente ligado às decisões
judiciais nesse sentido, para uma efetiva modificação e até uma
previsibilidade, que tende a reduzir alguns custos. Conclui-se
que as decisões do STF que incentivam condutas ambiental-
mente desejadas têm impacto nos custos de transação das em-
presas, tanto exercendo um controle de constitucionalidade de
leis infraconstitucionais que vão de encontro à previsão consti-
tucional do meio ambiente saudável, quanto beneficiando, fi-
nanceiramente, condutas ambientais corretas das empresas.
Filipe Brayan Lima Correia conduz uma análise
qualitativa da submissão do Brasil à Corte Interamericana de
Direitos Humanos devido às repetidas infrações no sistema car-
cerário de Curado. A Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos desempenha um papel significativo na prevenção de viola-
ções recorrentes das liberdades fundamentais por parte dos Es-
tados membros. Ao examinar as sessões da CIDH, procura elu-
cidar o processo de tratamento de medidas provisórias, a pos-
tura do Estado acusado durante o processo, a evolução do tema
após a intervenção da Corte e a eficácia das suas decisões. Con
Matheus Cavalcante Lima, Milena Alencar Gondim e
William Paiva Marques Júnior | 21
clui que, apesar das tentativas do Estado representado de se exi-
mir das suas responsabilidades, a atuação da Corte começou
com discussões e consultas que não produziram resultados tan-
gíveis, progredindo posteriormente para medidas diretas e vin-
culativas. O objetivo é destacar a evolução da atuação da Corte
e a eficácia das suas decisões.
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes investiga
quais as contribuições do Pacto Ecológico Europeu no tocante à
proteção dos mares e oceanos, estabelecidas pelo ODS 14, com
enfoque na poluição causada por (micro)plásticos. Esta pes-
quisa tem relevância teórica e prática, pois oferece uma contri-
buição original sobre como as iniciativas internacionais têm
contribuído para a consecução dos ODS e o combate à degrada-
ção dos oceanos por resíduos plásticos e possibilita uma maior
visibilidade à sustentabilidade e à proteção dos ecossistemas
oceânicos, bem como pode fornecer auxílio técnico-jurídico às
ações governamentais para a formulação de políticas públicas e
programas de desenvolvimento nesse sentido. Conclui-se que o
Pacto Ecológico Europeu e os seus Planos de Ação, vão de en-
contro às metas estabelecidas pela ONU, servindo como um im-
portante mecanismo para o sucesso dos ODS, e, no tocante ao
ODS 14 e à poluição marinha causada por (micro)plásticos, as
medidas que vêm sendo elaboradas por essas iniciativas, bus-
cam mitigar, na origem, as causas que levam a chegada dos re-
síduos nos mares e oceanos, trazendo uma perspectiva de efe-
tiva redução dessa problemática no futuro.
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva
Marques Júnior abordam a pandemia da Covid-19 representa
um dos maiores desafios sanitários enfrentados pela humani-
dade, sendo considerada uma crise sanitária de repercussão
Novas perspectivas do direito internacional:
22 | As relações externas no contexto pós-COVID-19

globalizada. Diante desse contexto de globalização, o artigo pre-


tende avaliar a possibilidade de aplicação da mediação sanitária
nas relações internacionais, com base na internacionalização
dos direitos humanos, ênfase na promoção do direito à saúde, e
formulação de políticas públicas bilaterais ou multilaterais, com
o objetivo de promover o direito à saúde em tempo de pande-
mia. Para analisar a aplicabilidade desses conceitos avalia-se o
Acordo Sanitário firmado entre Brasil e Uruguai. A pesquisa foi
realizada com uma metodologia pura, bibliográfica, descritiva,
exploratória e quantitativa, com aplicação de método hipoté-
tico-dedutivos. Conclui-se que a mediação sanitária aplicada às
relações internacionais é um mecanismo eficaz de construção de
políticas de promoção da saúde para enfrentamento de crises
sanitárias globalizadas.
A todas (os) desejamos excelentes leituras e boas pes-
quisas.
Os Organizadores.
AGRADECIMENTOS

Sinceros agradecimentos aos alunos da Turma 2023


do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC pela valiosa
contribuição ao entendimento das complexas dinâmicas das re-
lações externas neste cenário desafiador transpandêmico. Este
projeto reflete a excelência acadêmica e a dedicação à pesquisa
no campo do direito internacional.
CAPÍTULO I.
A SUPERAÇÃO DA FIGURA DO INIMIGO
NO DIREITO INTERNACIONAL: A
CONSTITUIÇÃO DA TERRA (LUIGI
FERRAJOLI), A SOLIDARIEDADE
(STEFANO RODOTÀ) E O DIREITO
FRATERNO (ELIGIO RESTA)

William Paiva Marques Júnior*

DOI: 10.29327/5341937.1-1

Resumo: Verificam-se novos horizontes para o Direito Internacional


a partir das transformações oriundas do quadro pandêmico mundial
causado pela Covid-19. Tem-se, portanto, uma genuína humanização
do Direito Internacional, surgindo a necessidade de superação da fi-
gura do inimigo e o consequente reconhecimento do Direito Fraterno
e da Constituição da Terra. Considerando as mutações analisadas,
Luigi Ferrajoli propõe um projeto de constitucionalismo expandido
para o plano internacional, elaborado para suplantar as Constituições
dos estados nacionais, Stefano Rodotà aborda a solidariedade e Eligio
Resta defende os aportes do Direito Fraterno. O balanço do contexto
internacional contemporâneo revela que os direitos fundamentais de-
vem ser universais e que a Organização das Nações Unidas fracassou
em promovê-los, tal qual se vê na Guerra Rússia/Ucrânia. Conclui-se

* Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFC. Professor Adjunto do De-


partamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFC de Direito Civil
II e Direito Civil V. Professor (Direito Internacional e Metodologia da Pesquisa
Jurídica) e Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC.
E-mails: williamarques.jr@gmail.com e williammarques@ufc.br.
William Paiva Marques Júnior | 25
que o Direito Fraterno assume grande relevância para o sucesso da
política diplomática, possibilitando relações externas mais harmoni-
osas e pacifistas. Utiliza-se, como metodologia, de pesquisa do tipo
bibliográfica por meio da análise de livros, artigos jurídicos, docu-
mentos internacionais, da legislação e da jurisprudência, apoiando-se
principalmente nas obras de Luigi Ferrajoli, Stefano Rodotà e Eligio
Resta. A pesquisa é pura, de natureza qualitativa e quantitativa, com
finalidade descritiva e exploratória.

Palavras-chave: Superação. Inimigo. Direito Internacional. Constitui-


ção da Terra. Direito Fraterno.

Introdução

A crua realidade demonstra uma preocupação com a


manutenção da Guerra Rússia/Ucrânia, caracterizada pela bar-
bárie, graves e incontornáveis violações aos direitos humanos e
um enorme contingente de refugiados vítimas do conflito.
O conflito armado Rússia-Ucrânia tem impactado o
mundo inteiro, seja política, humanitária, econômica ou social-
mente, ante a ocorrência das barbaridades e atrocidades, pecu-
liares às guerras.
Afora a Guerra, as transformações são bastante per-
ceptíveis no plano das relações internacionais. em contexto com
o quadro pandêmico mundial causado pela Covid-19, o início
do sistema normativo de proteção dos direitos humanos. É
como se se projetasse a vertente de um constitucionalismo glo-
bal, vocacionado a proteger os direitos fundamentais e a limitar
o poder do Estado, mediante a criação de um aparato internaci-
onal de proteção de direitos na cruel realidade surgida com o
quadro sanitário caótico causado pelo coronavírus.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
26 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

Na contemporaneidade, observa-se que a China é o


país líder no contexto das relações internacionais, em especial
no crescimento econômico (embora tenha apresentado desace-
leração especialmente nos últimos anos), malgrado demonstre
um regime não comprometido com a democracia, a cidadania,
o desenvolvimento social e os direitos humanos o que repre-
senta um vácuo de um modelo que sirva como paradigma para
consolidar as transformações oriundas do constitucionalismo
global.
Com o estado da arte ora abordado, em um contexto
de crise humanitária e sanitária, além da defasagem estrutural
no plano internacionalista, surgem as orientações oriundas da
Solidariedade, do Direito Fraterno e da Constituição da Terra,
com repercussões na revisão dos tradicionais cânones informa-
tivos da política diplomática.
Atentos aos clamores da realidade no contexto da
transpandemia, em suas mais recentes manifestações e traba-
lhos acadêmicos, Luigi Ferrajolientende que a ideia de uma
Constituição da Terra deve ser encarada como uma providência
a ser tomada antes que seja tarde demais e Eligio Resta dispensa
o jogo amigo-inimigo por meio do Direito Fraterno, eminente-
mente pacifista, à luz da solidariedade internacional propug-
nada por Stefano Rodotà.
Utiliza-se, como metodologia, de pesquisa do tipo bi-
bliográfica por meio da análise de livros, artigos jurídicos, do-
cumentos nacionais e internacionais, decisões judiciais e da le-
gislação. A pesquisa é pura e de natureza qualitativa, com fina-
lidade descritiva e exploratória.
William Paiva Marques Júnior | 27
1. Novas perspectivas do constitucionalismo global em
Direito Internacional: a Constituição da Terra em
Luigi Ferrajoli

Observa-se que a realidade no mundo posterior à


Covid-19 plasma as linhas mestras dessa nova faceta do consti-
tucionalismo que se propõe transformadora das relações inter-
nacionais. Conquanto as divergências contingenciais, as diretri-
zes futuras exprimem aspectos comuns no rompimento de uma
ordem jurídico-constitucional anterior e servem de paradigma
no constructo do constitucionalismo global (de nítido viés in-
clusivo, participativo e democrático).
Nesse diapasão, Luigi Ferrajoli1 propõe que a Cons-
tituição da Terra se caracterizará, ao invés, por um alargamento
do paradigma constitucional para além do Estado, por meio de
uma concretização do constitucionalismo.
A democracia consagrou em seu âmbito, um ideal le-
gitimador baseado na igualdade política, participação e inclu-
são dos governados, bem como na possibilidade de responsabi-
lização dos atores governamentais por meio de mecanismos de
sanção e questionamentos das relações de poder. Contudo, a
amplitude e consideração desses elementos podem fazer surgir
várias ideias e concepções do que pode estar nesse modelo teó-
rico. Portanto, procurando aproximar uma solução do que seria
o ideal democrático, deve-se inicialmente definir quais os fato-

1 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 04.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
28| da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

res que levaram um sistema a ser definido como uma aproxi-


mação desse ideal, a poliarquia, e em seguida mencionar as con-
dições que favorecem ou não a aproximação ora abordada.
No diagnóstico de Luigi Ferrajoli2, a democracia de
hoje conhece apenas espaços restritos e períodos curtos. Não se
lembra e, na verdade, elimina o passado sem assumir a respon-
sabilidade pelo futuro, ou seja, pelo que acontecerá para além
da data das eleições e das fronteiras nacionais. É afetada pelo
localismo e pelo presentismo. É evidente que o ponto de vista
míope de períodos curtos e espaços restritos só pode permane-
cer ancorado em interesses imediatos e nacionais, excluindo as-
sim, qualquer perspectiva de planejamento capaz de assumir
problemas supranacionais e futuros. Assim, a democracia entra
em conflito com a racionalidade política, isto é, com os interes-
ses de longo prazo dos próprios países democráticos. Logo,
corre o risco de desmoronar, também, nos sistemas nacionais.
Até porque, no mundo globalizado de hoje, o futuro de cada
país depende cada vez menos da política interna e cada vez
mais de decisões externas, tanto de caráter político quanto eco-
nômico.
A conexão com o modelo capitalista faz com que se
tenha uma visão minimalista da democracia, colocando o signi-
ficado do valor democrático como o sistema no qual o povo tem
a oportunidade de aceitar ou recusar as pessoas designadas
para governar, como em um mercado, onde a vontade do povo
é o produto e não o motor do processo político, já que o poder

2 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 06.
William Paiva Marques Júnior | 29
de decisão é adquirido através de uma luta competitiva pelos
votos da população.
Em um contexto de crise da cultura garantista no mo-
delo de ascensão da persecução tradicional de recrudescimento
do Direito Penal, a partir da preocupação midiática e do popu-
lismo penal, verificando-se o aumento substancial da população
carcerária.
A questão do garantismo, relacionada diretamente à
existência de um Estado de Direito comprometido com os direi-
tos fundamentais não é olvidada pela proposta de Constituição
da Terra.
Por seu turno, Luigi Ferrajoli3 assevera que os direi-
tos e garantias fundamentais constituem condições jurídicas de
democracia. Obviamente, a democracia depende das condições
pragmáticas - políticas, econômicas, sociais e culturais, em
grande parte, independentes do Direito.
No contexto de deslegitimação da política, perpas-
sando pela ascensão dos poderes econômicos e financeiros na
seara global em um contexto de regressão moral e jurídica. As
assimetrias entre Direito e Política reverberam na destruição
dos direitos sociais. Deve-se sempre ter em mira que o Estado
Constitucional de Direito é um estado de progresso.

3 FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Teoríadelderecho y de la democracia. Tra-


ducción: Perfecto Andrés Ibáñez, Carlos Bayón, Marina Gascón, Luís Prieto San-
chís y Alfonso Ruiz Miguel. Madrid: Editorial Trotta, 2011, p. 746/747. Tradução
livre: “...losderechosfundamentales y sus garantíasconstituyenotras tantas condi-
ciones jurídicas de la democracia. Obviamente la democracia depende de condi-
ciones pragmáticas - de tipo político, económico, social y cultural- engran medida
independientesdelderecho”.
A superação da figura do inimigo no direito internacional : a constituição
301
da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

Para Luigi Ferrajoli , já dispomos de um embrião da

constituição do mundo, formada pela Carta da ONU e pelas ou-

tras tantas cartas, declarações, convenções e pactos internacio-


nais de direitos humanos . No plano normativo, portanto, o pa-

radigma constitucional já foi incorporado na ordem internacio-


nal.

No horizonte do constitucionalismo global deve pre-

valecer a dignidade humana de qualquer pessoa, superando as

vicissitudes constantes da Guerra da Rússia, que tem se tornado

uma nova Alemanha, periclitante à manutenção da paz e do


equilíbrio nas relações internacionais contemporâneas, bei-
rando a catástrofe ecológica e militar, colocando em risco a ma-

nutenção da própria humanidade incluindo os desequilíbrios

imanentes ao arcabouço dos riscos climáticos .


Conforme asseverado por Luigi Ferrajoli³, a Consti-

tuição da Terra que propõe elaborar se caracterizará, ao invés,


por um alargamento do paradigma constitucional para além do

Estado, em três direções:

a) em primeiro lugar, na direção de um constitucionalismo

supranacional ou de direito internacional, em acréscimo


ao constitucionalismo de Estado atual, por meio da pre-

visão de funções e de instituições supranacionais de ga-

rantia, a altura dos poderes econômicos e políticos glo-


bais;

4
FERRAJOLI, Luigi . Por que uma Constituição da Terra? Tradução : Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p . 07.
5
FERRAJOLI, Luigi . Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31 , n. 12, Jan./Abr. 2022, p . 09.
William Paiva Marques Júnior | 31
b) em segundo lugar, na direção de um constitucionalismo
de direito privado, em acréscimo ao constitucionalismo
de direito público atual, através da introdução de um sis-
tema adequado de regras e de garantias em face dos po-
deres selvagens dos mercados atuais;
c) em terceiro lugar, na direção de um constitucionalismo
dos bens fundamentais, em acréscimo ao dos direitos
fundamentais, através da previsão de garantias destina-
das a conservar e assegurar o acesso de todos ao gozo de
bens vitais como os bens comuns, mas também de medi-
camentos essenciais e alimentação básica.
Para Luigi Ferrajoli6, uma Constituição da Terra de-
veria listar, ao lado dos direitos humanos, os bens fundamen-
tais, estabelecendo as garantias relacionadas, como a proprie-
dade planetária dos bens comuns, as garantias de acesso à água
potável e à alimentação básica para todos os seres humanos e a
produção e distribuição obrigatória de cuidados de saúde para
todos os medicamentos que salvam vidas, vacinas e outros
equipamentos essenciais de saúde.
Bastante pertinente é a advertência de Luigi Ferra-
joli7 consoante a qual podem existir, de fato, democracias não

6 FERRAJOLI, Luigi. La construzione dela democrazia. Teoria del garantismo


constituzionale. Primaedizione. Roma: EditoriLaterza, 2021, p. 447. Tradução li-
vre: “...una Constituzionedella Terra dovrebbeelencare, a fianco dei dirittiumani,
i benifondamentali, istituendonelerelativegaranzie, come ildemanioplanetario
dei benicomuni, legaranziedell'accessoall'acquapotabile e dell'alimentazionedi
base di tutti gliesseriumani e l'obbligodellaproduzione e delladistribuzionesani-
tariedigaranzia, di tutti i farmaci salva-vita, dei vaccini e dellealtreattrezzaturesa-
nitarieessenziali.”
7 FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Debate sobre elderecho y La democracia. Tra-
ducción: Andrea Greppi. Segunda edición. Madrid: Editorial Trotta, 2009, p. 106.
Tradução livre: “Pueden existir, enefecto, democracias no constitucionales, como
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
32| da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

constitucionais, como aquelas em que não se havia imposto ne-


nhum limite ao “povo soberano”, e constituições não democrá-
ticas que não estabeleçam, por exemplo, o sufrágio universal.
Consoante aduzido por Luigi Ferrajoli8, há, de fato,
um traço característico dos direitos fundamentais que explica,
no direito internacional, a sua ineficácia. Ao contrário dos direi-
tos patrimoniais, cujas garantias existem em conjunto com os
direitos garantidos – a dívida junto ao crédito, a proibição do
dano junto ao direito real de propriedade –, os direitos funda-
mentais não nascem junto com suas garantias, que podem,
muito bem, estarem ausentes, e que, de fato, faltam no direito
internacional. Necessitam, por isso, de normas de funciona-
mento que introduzam em nível global, garantias primárias e
suas relativas instituições, como o serviço mundial de saúde,
uma organização mundial do trabalho e educação, um patrimô-
nio público global, impostos globais e afins. Nenhuma destas
instituições de garantia foi criada, com exceção do Tribunal In-
ternacional Penal introduzido pelo Tratado de Roma em 1998.
Para Luigi Ferrajoli9, as funções e instituições de ga-
rantia primária dos direitos fundamentais e, em particular, dos
direitos sociais à saúde, à educação e à proteção do ambiente,
legitimados, não só pelo consenso da maioria, mas pela univer-
salidade dos direitos fundamentais, não só podem, mas, em

aquellasenlas que no se hubieraimpuestoningúnlímite al 'pueblo soberano', y


constituciones no democráticas que no establezcan, por ejemplo, elsufragio uni-
versal”.
8 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 07.
9 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 08.
William Paiva Marques Júnior | 33
muitos casos, devem ser introduzidos a nível internacional.
Grande parte destas funções contramajoritárias – em matéria
ambiental, de criminalidade transnacional, de gestão de bens
comuns e de redução das desigualdades – dizem respeito a pro-
blemas globais, como a proteção dos ecossistemas, a fome, as
doenças não tratadas e a segurança, as quais exigem respostas
globais que somente instituições globais são capazes de assegu-
rar. A ausência destas funções e destas instituições globais de
garantia representam, sobretudo, a verdadeira e grande lacuna
do direito internacional atual, o que equivale a uma sua consi-
derável violação. São estas funções e instituições de garantia
que devem ser concebidas, introduzidas e impostas normativa-
mente na Constituição da Terra, para que se garanta a sobrevi-
vência da humanidade, ameaçada pela primeira vez na história,
em função das nossas próprias políticas irresponsáveis.
O Direito Positivo é Direito Vivente. Em nível de ju-
risdição, a Constituição tem dimensão de dignidade humana na
medida em que as violações por omissão dos direitos funda-
mentais são diferentes dos direitos patrimoniais.
No contexto de transpandemia, busca-se a efetivi-
dade das garantias primárias no Direito à Saúde. Todos os prin-
cípios constitucionais (incluindo a igualdade) fazem-se presen-
tes nas constituições do Estado Moderno. Não se proíbe ignorar
a inefetividade dos direitos fundamentais envolvendo milhões
de pessoas.
Em torno da problemática ambiental Luigi Ferra-
joli10, vaticina que o desenvolvimento insustentável está dilapi-
dando os bens comuns naturais como se fôssemos as últimas

10 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
34 | A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

gerações a viver sobre a Terra. Daí a necessidade de dar vida a


uma nova fase do constitucionalismo que reconheça e garanta
também, paralelamente aos direitos fundamentais, aquilo que
podemos chamar bens fundamentais, pois vitais – como a água,
o ar, as geleiras, o patrimônio florestal –, retirando-os do mer-
cado e da disposição da política, dando a eles o status inderro-
gável de bens constitucionais, logo, indisponíveis, a fim de pre-
servá-los e torná-los acessíveis a todos.
O Direito Internacional é repleto de Cartas de Direi-
tos (Carta de 1948 da ONU, Declaração Americana dos Direitos
Humanos e a Carta da Organização dos Estados Americanos,
Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos), verificando-
se a inadimplência dos direitos fundamentais como uma lacuna
a ser colmatada com diversas implicações normativas.
Sobre a Convenção Europeia, elucida Frédéric Su-
dre11, que a mesma é contra qualquer ideia de contrato e ignora
o princípio da reciprocidade: o gozo pelo indivíduo dos direitos
enunciados não está condicionado pela atitude dos Estados em
relação à Convenção de Roma.
Tomando-se como exemplo o caso brasileiro, a Cons-
tituição de 1988 é extraordinária na história do constituciona-
lismo e apresenta destinação de verbas públicas (vinculação or-
çamentária) para direitos fundamentais como saúde e educa-
ção. É uma novidade a respeito da tradição constitucional, mas,

SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 11.


11 SUDRE, Frédéric. La Convention européenedesdroits de l’homme. Neu-
vièmeédition. Paris: PressesUniversitaires de France, 2012, p. 13. Tradução livre:
“La Convention est rebelle à touteidée de contrat et ignore leprincipe de récipro-
cité: lajouissance par l'individudesdroitsénoncés n'est pasconditionnée par l'atti-
tudedesÉtats à l´égard de laconvention de Rome.”
William Paiva Marques Júnior | 35
infelizmente não resolveu o crônico problema da inefetividade
dos direitos humanos em nível internacional.
Tem-se, portanto, que a Constituição da Terra não é
uma novidade, mas a implementação do Direito Vivente. As
Cartas de Direito Internacional não são rigorosamente vincu-
lantes, revelando fluidez, mas significam movimentos de rei-
vindicação de direitos e emancipação coletiva.
A crise na desigualdade é escabrosa e bastante visí-
vel. Nesse ponto mostra-se como solução a tendência expansio-
nista e de universalidade da Constituição e dos direitos nela
consagrados.
De acordo com Luigi Ferrajoli12, uma Constituição da
Terra deveria prever a introdução de um fisco global de natu-
reza progressiva para apoiar estas instituições de garantia. Esta
é uma proposta apresentada por Thomas Piketty e Anthony At-
kinson. Ela teria como vantagem, entre outras coisas, a criação
de uma espécie de cadastro dos capitais, a fim de garantir a
transparência e impedir a evasão fiscal.
O discurso de ódio, base dos governos populistas vi-
ola direitos e garantias fundamentais, bem como prejudica a de-
mocracia e não pode ser tolerado institucionalmente. Qual o pa-
pel da Constituição da Terra no combate aos discursos de ódio?
Em sede dos pleitos eleitorais democráticos, a Cons-
tituição da Terra não se conforma com a deformação das cam-
panhas de ódio e fake news. Por isso, verifica-se que a tecnologia
encontra-se a serviço do mercado e não da democracia.

12 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 14.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
36| da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

A possibilidade de uma Constituição da Terra tem


como um de seus pressupostos a valorização das diferenças e a
superação do ódio ao outro (em especial os diferentes). Portanto
racismo, homofobia, classismo, nacionalismo belicista se funda
na ideia do inimigo.
Não existe consenso sobre armamentismo, mas a
ideia de Constituição da Terra instiga que deve haver um pro-
cesso de desarmamento. O progresso social deve comportar a
ideia de aniquilação do inimigo como forma de liberação do
ódio e do fascismo. Em verdade, tem-se que a construção do
inimigo compõe a lógica da manutenção do poder.
Recentemente, a experiência brasileira demonstra
que o governo Jair Bolsonaro é o sintoma de uma sociedade que
assimila uma cultura de normalização da morte, da degradação
humana e do fomento aos preconceitos sexuais, raciais e econô-
micos. Como a Constituição da Terra pode evitar a ascensão de
governos excludentes?
O desarmamento pode ser encarado como uma ques-
tão fundamental para a Constituição da Terra na construção de
uma cultura democrática pela paz. Em tempos de prolonga-
mento do conflito bélico entre a Rússia e a Ucrânia, pode-se fa-
lar em retrocesso nesse ideal de desarmamento?
Sobre a necessidade de desarmamento, defende
Luigi Ferrajoli13 que a primeira garantia elementar contra o pe-
sadelo da guerra – mas também contra o terrorismo e a grande
criminalidade –, a fim de tutelar os direitos à paz e à vida, de-
veria consistir no banimento rígido das armas como bens ilícitos

13 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 12.
William Paiva Marques Júnior | 37
e, por conseguinte, a proibição inderrogável, constituindo um
crime a sua detenção e, mesmo antes, seu comércio e sua pro-
dução. Uma Constituição da Terra deveria banir todas as armas,
mesmo as que não são armas de guerra. Todos os anos, milhões
de pessoas morrem no mundo devido à difusão de armas: só
em 2017, foram cometidos 464.000 homicídios, na sua maioria
com armas de fogo, e centenas de milhares de pessoas morre-
ram nas muitas guerras que infestam o planeta, quase todas ci-
vis; sem contar o número altíssimo de suicídios e acidentes cau-
sados pelo uso de armas. Esse massacre absurdo deve-se, em
grande parte, à facilidade de aquisição e à enorme difusão das
armas.
Ainda sobre o desarmamento, assevera Luigi Ferra-
joli14, a produção, o comércio e a posse de armas – armas incom-
paravelmente mais destrutivas do que há quatro séculos – são o
sinal de uma não concluída civilização da nossa sociedade e o
principal fator de desenvolvimento da criminalidade, do terro-
rismo e das guerras.
Nesse sentido, surgem os aportes necessários ao re-
conhecimento de um constitucionalismo supranacional e glo-
bal, ultrapassando questões meramente econômicas, com preo-
cupações voltadas para aspectos do fortalecimento dos direitos
humanos, da participação social inclusiva e democrática, do Es-
tado Social e Democrático de Direito, fundado no valor da dig-
nidade humana (base axiológica dos direitos fundamentais).
A Constituição da Terra nasce como um espírito teó-
rico e se caracteriza pela vocação universalista, informada pela

14 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 13.
38| A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

dignidade da pessoa humana o qual situa eticamente o huma-


nismo em uma expectativa de não lesão por meio dos direitos
fundamentais com vocação universal e garantista para todos.
Nessa ordem de ideias, os direitos fundamentais fun-
cionam como garantia do direito à vida e fonte de legitimação
do edifício institucional, apresentando as características de in-
disponibilidade, universalidade e fonte axiológica da igual-
dade.
Daí os textos constitucionais assumirem uma voca-
ção universalista, conquanto não exista uma garantia dos bens
comuns e dos bens fundamentais que são bens de todos, muitas
vezes fatores de impotência diante da atual globalização e de
seus poderes manipulatórios.
De acordo com Luigi Ferrajoli15, tem-se que reconhe-
cer uma distinção na qual é fácil reconhecer a analogia com a
respectiva distinção dos direitos subjetivos em direitos patrimo-
niais e direitos fundamentais. As duas distinções residem na
correlação sintática expressa pelas definições das duas classes
de bens: aquela de bens patrimoniais como qualquer bem que
seja objeto de um direito patrimonial, e aquela de bens funda-
mentais como qualquer bem que seja objeto de um direito fun-
damental primário. Naturalmente, enquanto todos os bens fun-
damentais são, por definição, objeto de direitos fundamentais,
não é verdade a tese contrária: somente alguns direitos funda-
mentais – tais como o direito à imunidade, o direito à integri-
dade pessoal, e alguns direitos sociais, como o direito à saúde e
à alimentação básica- têm como objeto bens fundamentais.

15 FERRAJOLI, Luigi.Por uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Tra-
dução: Alexandre Salim, Alfredo Copetti Neto, Daniela Cademartori, Hermes Za-
neti Júnior, Sérgio Cademartori. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2011, p. 54 e 55.
William Paiva Marques Júnior | 39
A humanidade passa por um momento dramático no
período de pós-pandemia por diversos motivos:
(1) a continuidade do conflito Rússia/Ucrânia e a possibili-
dade de um conflito nuclear;
(2) os desequilíbrios ambientais inerentes à mudança climá-
tica;
(3) a desigualdade socioeconômica em níveis severos;
(4) os dramas dos fluxos migratórios, o direito de imigrar é
primevo no Direito Natural, como fundamento do flores-
cimento da Civilização Ocidental.

Nesse contexto, o constitucionalismo nacional é im-


portante por representar o pacto de convivência que funda a le-
gitimidade política dos atos normativos. A Constituição assume
uma dimensão essencial que o Direito Internacional não conse-
gue estabelecer nenhuma garantia, especialmente no contexto
de catástrofe e emergência no horizonte constitucional.
Verifica-se, portanto a necessidade de releitura do
constitucionalismo global como elemento de arbitramento da
solução dos impasses oriundos das assimetrias do poder local
de subordinação, fruto da globalização e do poder econômico,
por isso a função de garantia dos direitos sociais é essencial e
primordial na proposta de uma Constituição da Terra.
Para Luigi Ferrajoli16, a terceira emergência que a
Constituição da Terra deverá enfrentar é constituída pelo cres-
cimento da desigualdade, da pobreza, da fome e das doenças
não tratadas, no mundo.

16 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, Jan./Abr. 2022, p. 13.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
40 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

Por isso, faz-se necessária a expansão das categorias


de emancipação da Constituição e da subalternidade até porque
a vontade popular inerente ao constitucionalismo democrático
é única no poder de influência das transformações sociais.
O constitucionalismo democrático corrige injustiças
ao mostrar-se como antifascista, ou seja, contra a ideia de exclu-
são das diferenças. O Estado Nacional tem quatro séculos de
vida e coloca a Constituição como um sistema de imposição de
limites jurídicos. Deve-se ainda repensar o senso o senso do re-
alismo vulgar, o qual consiste na naturalização dos fenômenos
sociais, existindo um efeito de responsabilização da política. O
realismo consiste em um fenômeno que não é natural, sendo as
Constituições dotadas dessa característica.
Idealismo racionalista em Kant: “a guerra é um fenô-
meno natural e a paz é um fenômeno artificial”. A paz deve ser
instituída
A democracia é um fenômeno artificial para acabar
com as discriminações odiosas e os privilégios. Na contempora-
neidade, o realismo assume algumas expressões:
(1) internacional;
(2) confronto com o mercado;
(3) garantia dos bens fundamentais e dos bens comuns.
A Constituição da Terra assume uma importância de
um futuro de um de um interesse público universal na sobrevi-
vência da humanidade que une os povos em suas diferenças. A
questão que se impõe é a exiguidade de tempo na solução dos
problemas da humanidade e o processo constituinte ocorre de
forma lenta.
A ideia de Constituição da Terra demonstra o caráter
universal diante de um movimento pacifista devendo-se impor
William Paiva Marques Júnior | 41
limites ao mercado. Deve-se defender por parte do caráter uni-
versal, vinculante e sobretudo vital de constitucionalismo por-
que é o lugar de sobrevivência da Constituição.
Não há uma homogeneidade, mas a igualdade con-
siste no respeito a todas as identidades e diferenças, em busca
de oportunidades. Uma Constituição é democrática porque ga-
rante os mais diversos direitos com respeito ao pluralismo de
dimensão substancial com um pacto que estabelece a igualdade
na convivência.
No senso comum, a Constituição continua sendo a
vontade da maioria, paradoxalmente, a Constituição é contra-
majoritária. A finalidade de recomposição do próprio sentido
de igualdade que serve de diretriz ao Estado Democrático de
Direito, afinal, conforme observado por Luigi Ferrajoli17: “... una
concepción sustancial de la democracia, garante de los derechos
fundamentales de los ciudadanos y no simplemente de la om-
nipotencia de la mayoría...”
Em matéria socioambiental, a Constituição da Terra
consagra a necessidade de garantia objetiva dos bens funda-
mentais. Qualquer dissidência, não é tanto questão de supera-
ção do antropocentrismo, como se deu com as Constituições do
Equador (2008) e da Bolívia (2009).
O modelo de Constituição da Terra traz um federa-
lismo multinível pensado em caráter multicultural. Trata-se de
uma enorme forma de concentração porque garante a autono-
mia de base do Estado Federal e combate o perigo de um des-
potismo universal.

17 FERRAJOLI, Luigi. El derecho como sistema de garantías. Jueces para la demo-


cracia: información e debate, Madrid, n. 16, p. 61-69, feb. 1992, p. 67/68.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
42 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

A Constituição da Terra torna-se um mecanismo de


paz e de libertação no Século XXI, inspirando as gerações pre-
sentes e vindouras para os desafios que se impõem no hori-
zonte.
Em resumo, aduz Luigi Ferrajoli18, só uma Constitui-
ção da Terra pode superar aqueles fatores de divisão do gênero
humano e de contradição com os princípios da paz e da igual-
dade que são as diferentes soberanias e cidadanias e, assim, con-
cretizar o universalismo dos direitos fundamentais.

2. A superação da figura do inimigo no Direito


Internacional: a Constituição da Terra, a
solidariedade e o direito fraterno

Na contemporaneidade, o Estado encontra-se imerso


em uma grande crise de legitimidade, uma vez que todas as
rupturas ora vivenciadas terminam por causar uma grande
perda da soberania e da autonomia dos Estados Nacionais em
suas políticas internas. Observa-se que o Estado Moderno está,
em sua formulação clássica de soberania absoluta, ultrapassado
e em situação precária, devendo ceder espaço a um Estado di-
ferente, consagrando, no futuro, necessariamente a democracia
no campo das relações internas e internacionais.
De acordo com Flávia Piovesan19, no esforço de re-
constituir direitos humanos do Segundo Pós-Guerra, há, de um

18 FERRAJOLI, Luigi. Por que uma Constituição da Terra? Tradução: Sandra Regina
Martini e Bernardo Baccon Gehlen. Revista de Direito Brasileira. Florianópolis,
SC. Volume 31, n. 12, jan./Abr. 2022, p. 09.
19 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional: um estudo com-
parado dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. 9. ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 59-60.
William Paiva Marques Júnior | 43
lado, a emergência do Direito Internacional dos Direitos Huma-
nos, e, de outro, a emergência da nova feição do Direito Consti-
tucional Ocidental, aberto a princípios e valores, com ênfase no
valor da dignidade humana. No âmbito do Direito Internacio-
nal, começa a ser delineado o sistema normativo de proteção
dos direitos humanos. É como se se projetasse a vertente de um
constitucionalismo global, vocacionado a proteger os direitos
fundamentais e a limitar o poder do Estado, mediante a criação
de um aparato internacional de proteção de direitos. Por sua
vez, no âmbito do Direito Constitucional Ocidental, testemu-
nha-se a elaboração de textos constitucionais abertos a princí-
pios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque para o
valor da dignidade humana. É fortalecida a ideia de que a pro-
teção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio re-
servado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse in-
ternacional. Por sua vez, essa concepção inovadora aponta para
duas importantes consequências:
1ª) a revisão da ideia tradicional de soberania absoluta do
Estado, que passa a ser objeto de relativização, na me-
dida em que são admitidas intervenções no plano nacio-
nal em prol da proteção dos direitos humanos- isto é,
transita-se de um concepção hobbesiana de soberania, cen-
trada no Estado, para uma concepção kantiana de sobera-
nia, centrada na cidadania universal, e
2ª) a cristalização da ideia de que o indivíduo deve ter direi-
tos protegidos na esfera internacional, na condição de su-
jeito de direitos.
Observa-se que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948 inaugura a concepção contemporânea dos di
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
44 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

reitos humanos tipificada pela universalidade e pela indivisibi-


lidade desses direitos, constituindo patamar civilizatório em ní-
vel internacional.
A universalidade é consagrada já no Preâmbulo da
Declaração Universal de 1948: “Considerando que o reconheci-
mento da dignidade inerente a todos os membros da família hu-
mana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o funda-
mento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”
Na visão de Norberto Bobbio20, com a Declaração de
1948, tem início uma terceira e última fase, na qual a afirmação
dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal
no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos
não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas
todos os homens; positiva no sentido de que põe em movimento
um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser
não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconheci-
dos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o Estado
que os tenha violado. No final desse processo, os direitos do ci-
dadão ter-se-ão transformado, realmente, positivamente, em di-
reitos do homem. Ou, pelo menos, serão os direitos do cidadão
daquela cidade que não tem fronteiras, porque compreende
toda a humanidade; ou, em outras palavras, serão os direitos do
homem enquanto direitos dos cidadãos do mundo. A Declara-
ção Universal contém em germe a síntese de um movimento di-
alético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos
naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos
positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas
também ela concreta, dos direitos positivos universais.

20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 1. ed.
13. reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 29 e 30.
William Paiva Marques Júnior | 45
O intitulado Sistema Internacional de Proteção dos
Direitos Humanos, por intermédio do sistema global e de siste-
mas regionais. O Sistema Global de Direitos Humanos apre-
senta como protagonista as Nações Unidas – ONU, e tem como
marco a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, também é
configurado através de vários outros documentos, como o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Político (1966), o Pacto In-
ternacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966), a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial (1965) e de Discriminação contra a Mulher
(1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), entre
outros. A adesão a esses tratados pelos Estados membros tem
impulsionado a expansão dos Direitos Humanos, inclusive por
intermédio da criação de mecanismos e legislações no domínio
interno. O desenvolvimento dos Direitos Humanos nos ordena-
mentos jurídicos nacionais revela-se significativo, com uma tra-
jetória promissora, fato que se vislumbra elemento propulsor
para o constructo de um constitucionalismo global.
No plano prospectivo, deve haver a Constituição
identitária que supere a ideologia da guerra e do ódio às dife-
renças. A construção da ideia de inimigo é prejudicial ao pró-
prio futuro do horizonte democrático. O radicalismo (de direita
ou de esquerda) não pode prevalecer em um regime que se ba-
liza pela lógica da temperança e da maturidade, e, neste ponto,
aproxima-se da ideia de Direito Fraterno.
Na visão de Eligio Resta 21 , dispensando o jogo
amigo-inimigo, o Direito Fraterno é não violento. Não incor-
pora a ideia do inimigo de nenhuma outra forma, e por isso é
diferente da guerra.

21 RESTA, Eligio. Il Diritto Fraterno. Tredicesima edizione. Roma: Laterza, 2020, p.


A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
46 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

A própria ideia de consenso é a negação da lógica de-


mocrática, a partir do reconhecimento de falsos inimigos e a ex-
clusão da paz. Nesse sentido, tem-se que a razão democrática
pode ser uma emoção.
Daí Luigi Ferrajoli22, propor a criação de uma Cons-
tituição da Terra, considerando que é difícil prever se a expan-
são do constitucionalismo e da democracia para além do Estado
terá sucesso, ou se a miopia e a irresponsabilidade dos governos
continuarão a prevalecer.
O desarmamento é um elemento preponderante da
democracia uma vez que supera a irracionalidade dos conflitos,
balizada pelas divergências com os inimigos reais ou criados.
Os idealistas que tratam das democracias de forma
abstrata, na concepção de um modelo teórico inatingível, apesar
de apresentarem critérios qualitativos não conseguem quantifi-
car a democracia no contexto da solidariedade global.
Para Stefano Rodotà23, a construção da solidariedade
como norma deve antes ser considerada na perspectiva daquele
direito de acesso aos serviços sociais que encontramos no artigo
34.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia,

133. Tradução livre: “Destituendo il gioco d'amico-nemico, il diritto fraterno è


non violento. Non incorpora l'idea del nemico sotto altra forma, e per questo é
differenza rispetto alla guerra.”
22 FERRAJOLI, Luigi. Manifesto per l’uguaglianza. Seconda edizione. Roma: La-
terza, 2019, p. 290. Tradução livre: “È difficile prevedere se una simile espansione
del costituzionalismo e della democrazia oltre lo Stato riuscirà a svilupparsi, o se
invece continueranno a prevalere la miopia e l’irresponsabilità dei governi.”
23 RODOTÀ, Stefano. Solidarietà. Un’utopia necessaria. Seconda edizione. Roma:
Laterza, 2016, p. 18. Tradução livre: “La costruzione della solidarietà come norma
deve essere considerata piuttosto nella prospettiva di quel diritto all'accesso ai
servizi sociali di cui troviamo traccia nell'articolo 34 della Carta dei diritti fonda-
mentali dell'Unione europea, in un contesto volto proprio a indicare le condizioni
necessarie per 'garantire un' esistenza dignitosa'”
William Paiva Marques Júnior | 47
num contexto que visa especificamente indicar as condições ne-
cessárias para ' garantir uma existência digna'.
A arena global tem sido marcada pelo neopopulismo
que se caracteriza pela necessidade de construção de um pro-
blema (não necessariamente real), com a manipulação da opi-
nião pública a partir de uma construção midiática e política. A
invenção de inimigos (estrangeiros, imigrantes, minorias sexu-
ais, minorias raciais...), fomenta as dissidências, e, nesse âmbito
dissolve a democracia e a solidariedade. O elemento identitário
muitas vezes serve como fator de exclusão por meio da exclusão
e negativa dos desiguais. Indubitavelmente, todo totalitarismo
se funda na lógica da guerra e da intolerância às diferenças.
Para Eligio Resta24, deve-se recordar as passagens
fundamentais do Direito Fraterno como condições mínimas da-
quele Direito Vivente que aguarda a sua forma.
Na construção do diálogo institucional, é fundamen-
tal o respeito às opiniões divergentes, que deve ser valorizado e
respeitado como alicerce do espírito dialógico tradicionalmente
norteador das políticas públicas estatais. Neste contexto diverso
e problemático, as opiniões divergentes são credoras de digni-
dade, respeito, diálogo e oitiva para soluções dos problemas vi-
venciados nos processos de melhorias da gestão que seja inclu-
siva, pacífica e fraterna.
Sobre a necessidade de construção de um processo
de solidariedade global, Stefano Rodotà25 entende que, nos tem-
pos difíceis é a força das coisas que faz referência a princípios

24 131.
RESTA, Eligio.livre:
Tradução “Vogliamo
Il Diritto Fraterno. Tredicesimaricordare
in conclusione edizione.i Roma:
passaggi fondamentali
Laterza, 2020, p.

del diritto fraterno como condizioni minime di quel diritto vivente che attende la
sua forma.”
25 RODOTÀ, Stefano. Solidarietà. Un’utopia necessaria. Seconda edizione. Roma:
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
48 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

que nos permitem escapar à contingência e à lógica nua e crua


do poder, redescobrindo uma raiz profunda da solidariedade
como sinal de não agressão entre os homens, como necessidade
ineliminável.
A maturidade da democracia se dá a partir do res-
peito e valorização das opiniões adversas. Faz-se fundamental
a superação da ideia de inimigo. A Constituição deve ser enten-
dida como sujeito unitário de vontade da maioria que não con-
sente com a totalidade.
À luz dos impactos jurídicos, políticos, econômicos e
sociais causados pela pandemia de Covid-19, torna-se premente
a revisão dos conceitos tradicionais que permeiam o poder
constituinte, tais como a cidadania e a própria democracia. O
reconhecimento jurídico da influência dos movimentos sociais
insurgentes requer a racionalidade e sensibilidade de seus pro-
tagonistas na harmonização das relações estatais na constitui-
ção de novos anseios em que os direitos fundamentais recriem
uma realidade atenta aos clamores sociais participativos e in-
clusivos em uma arena internacional cada vez mais exigente e
necessitada de novas diretrizes.
A busca de um novo modelo de solidariedade global
em tempos de pandemia por força da Covid-19, ao resgatar o
valor imanente à legitimidade plasmada na pluralidade demo-
crática e na vinculação estatal à vontade popular, rompe defini-
tivamente com a categorização oriunda das constituições do Se-
gundo Pós-Guerra de modo a edificar as bases de um novo pa-
râmetro.

Laterza, 2016, p. 4. Tradução livre: “Nei tempi difficili è la forza delle cose a fa
ravventire come un bisogno ineliminabile il riferimento a principi che consentano
di sottrarsi alla contingenza e alla nuda logica del potere, riscoprendo una radice
profonda della solidarietà come segnale di non aggressione tra gli uomini.”
William Paiva Marques Júnior | 49
Elucida Stefano Rodotà 26 que a solidariedade não
pode ser fragmentada em contratos que, pelo contrário, realçam
a dimensão individualista e dão proeminência decisiva à dispa-
ridade de poder das partes contratantes, exatamente o oposto
da função em torno da qual a solidariedade constitucional tem
sido progressivamente construída.
Constitucionalismo e democracia representam con-
ceitos distintos. Um pode existir sem o outro. A realidade con-
temporânea demostra que a relação entre a democracia e a
Constituição se revela como constante necessidade. O escopo
fundamental da constituição moderna é a introdução de meca-
nismos reativos às mudanças não permitidas. No contexto do
modelo imanente ao neoconstitucionalismo europeu-continen-
tal, o valor democrático é materializado por meio da democra-
cia representativa e majoritária.
Nesse contexto, aduz Cláudio Finkelstein27: o que se
busca com o movimento de constitucionalização do Direito In-
ternacional não é a identificação de um processo social ou polí-
tico, mas sim uma atitude. Uma filosofia de legitimação política
de respeito a um texto fundamental – este sim uma Constitui-
ção- ainda que não seja escrito ou um texto histórico. Enfoque
maior deve ser dado a contextualizar a inclusão e exclusão, vez
que nessa constituição global também devem ser contemplados,
como tutelados, atores não-estatais, tradicionalmente relegados

26 RODOTÀ, Stefano. Solidarietà. Un’utopia necessaria. Seconda edizione. Roma:


Laterza, 2016, p. 131. Tradução livre: “La solidarietà non può essere frammentata
in contratti che esaltano piuttosto la dimensione individualistica e danno rilievo
determinante alla disparità di potere dei contraenti, esattamente l'opposto della
funzione intorno alla quale è stata progressivamente costruita la solidarietà costi-
tuzionale.”
27 FINKELSTEIN, Cláudio. Hierarquia das normas no Direito Internacional: jus
cogens e metaconstitucionalismo. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 167 e 168.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
50 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

a segundo plano como sujeitos de Direito Internacional, o que,


em virtude da existência de inúmeros ilícitos contra os direitos
humanos por atores não estatais, clama por um constituciona-
lismo que vá além das relações intergovernamentais.
A questão dos bens fundamentais também é um
ponto de convergência com o Direito Fraterno no sentido de
materialização da vocação do constitucionalismo solidário e
compartilhado na garantia da dignidade humana.
Por isso, Luigi Ferrajoli28 entende que, em segundo
lugar, é necessário desenvolver um constitucionalismo do di-
reito internacional: os ataques aos bens ecológicos comuns - o
aquecimento global, a poluição do ar e dos mares, a redução da
biodiversidade - assumiram de facto um carácter global e exi-
gem, portanto, a introdução de normas, proibições, controles,
funções e instituições de garantia, elas próprias de nível plane-
tário. Em suma, é necessária uma constitucionalização da glo-
balização que ponha fim, através de instituições planetárias de
garantia, a esse terrível apartheid que condena um terço da raça
humana a condições de vida desumanas e, em conjunto, a ame-
aças cada vez mais graves de catástrofes ambientais ou nuclea-
res.

28 FERRAJOLI, Luigi. Manifesto per l’uguaglianza. Seconda edizione. Roma: La-


terza, 2019, p. 289 e 290. Tradução livre: “Ed è necessario, in secondo luogo, lo
sviluppo di un costituzionalismo di diritto internazionale: le aggressioni ai beni
comuni ecologici – il riscaldamento climatico, l'inquinamento dell'aria e dei mari,
la riduzione della biodiversità – hanno infatti assunto un carattere planetario e
richiedono per ci l'introduzione di norme, divieti, controlli, funzioni e istituzioni
di garanzia a loro volta di livello planetario. Si richiede, in breve, una costituzio-
nalizzazione della globalizzazione che ponga fine, per il tramite di istituzioni pla-
netarie di garanzia, a quel terribile apartheid che condanna un terzo del genere
umano a condizioni di vita disumane e, insieme, alle minacce sempre più gravi
di catastrofi ambientali o nucleari.”
William Paiva Marques Júnior | 51
É necessário superar o código binário amigo/ini-
migo, paz/guerra, considerando que a existência de um, pressu-
põe a ocorrência do outro. Toda a lógica do poder se constrói
sobre a lógica amigo/inimigo. Na evolução histórica, a Revolu-
ção Francesa mostrou-se como um pacto de iguais, uma vez que
a vontade de todos (a volontégénérale), ou seja, o consenso substitui
e se mostra superior às vontades individuais.
A ideia amigo/inimigo constantemente retorna e per-
siste nas relações internacionais, trata-se apenas de um jogo que
disfarça a violência e a exclusão do outro. O Direito Internacio-
nal não pode ocupar-se, portanto do “justo/inimigo” ou do in-
justo/amigo”. Nesse contexto, a soberania se constitui como um
verdadeiro poder constitucional.
Em nível prospectivo, faz-se imprescindível a reali-
zação de análises que harmonizem a Constituição da Terra ba-
lizada pelo Direito Fraterno e pela Solidariedade, inclusive para
efeitos de responsabilização jurídica internacional.
Para Éric Canal-Forgues e Patrick Rambaud 29, os
efeitos que o Direito Internacional atribui à responsabilidade
são duplos: criação de obrigações para o Estado cuja responsa-
bilidade é questionada e reconhecimento do direito de reagir
com contramedidas aos Estados cujos direitos foram violados.
No entanto, a criação desses direitos e obrigações não afeta a
existência da obrigação violada. Isso permanece e, desde que

29 CANAL-FORGUES, Éric. RAMBAUD, Patrick. Droit international public. 2e-


édition. Paris: Champs Université, 2011, p. 399. Tradução livre: “Les effets que le
droit international rattache à la responsabilité sont doubles: création d'obligations
pour l'État dont la responsabilité est mise en cause et reconnaissance aux États
dont les droits ont été atteints du droit de réagir en prenant des contre-mesures.
Pour autant, la création de ces droits et obligations n'effecte pas l'existence de
l'obligation violée. Celle-ci demeure et, à la condition qu'elle soit encore possible,
son exécution s'impose toujours à l'État qui ne l'a pas respectée.”
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
52 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

ainda seja possível, sua execução vincula o Estado que não o


respeitou.
A soberania, portanto, revela-se como uma dimen-
são da violência como fundadora, não instaura sistemas frater-
nos, algo superado, por exemplo com o teor do art. 1º da Carta
da ONU30.
Nessa ordem de ideias, defende Eligio Resta31 que o
Direito Fraterno é inclusivo no sentido de que elege direitos
fundamentais e define o acesso universalmente compartilhado
a bens "inclusivos". Os bens e direitos fundamentais são inclu-
sivos quando um indivíduo não pode desfrutá-los a menos que
todos os outros os gozem ao mesmo tempo. O ar, a vida, o pa-
trimônio genético só podem ser inclusivos; as propriedades po-
dem ser menores quando não são igualmente distribuídas.

30 Veja-se: “ARTIGO 1 - Os propósitos das Nações unidas são: 1. Manter a paz e a


segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas
para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer rup-
tura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da
justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou si-
tuações que possam levar a uma perturbação da paz; 2. Desenvolver relações
amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de di-
reitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao
fortalecimento da paz universal; 3. Conseguir uma cooperação internacional para
resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou hu-
manitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às li-
berdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião;
e 4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução
desses objetivos comuns.”
31 RESTA, Eligio. Il Diritto Fraterno. Tredicesima edizione. Roma: Laterza, 2020, p.
133. Tradução livre: “Il diritto fraterno è inclusivo, nel senso che sceglie diritti
fondamentali e definisce l'accesso universalmente condivisi a beni "inclusivi".
Beni e diritti fondamentali sono inclusivi quando un individuo non può goderne
se nello stesso momento non ne godono tutti gli altri. L'aria, la vita, il patrimonio
genetico non possono che essere inclusivi; possono esserlo meno le proprietà
quando non sono ugualmente distribuite.”
William Paiva Marques Júnior | 53
Em relação à duração da Guerra Rússia/Ucrânia a
humanidade está a testemunhar mudanças potencialmente in-
controláveis no sentido de um conflito cada vez mais aberto e
generalizado, como os ataques, principalmente por drones, em
território russo ou os encenados, como o ataque do drone russo
na Romênia, primeiro negado e depois endossado por seu pre-
sidente em setembro de 2023.
A lição do nazismo/fascismo tem a ver com o senso
de dignidade e adota o sistema providencial. Em nível interna-
cional, todas as Cartas de Direitos têm garantias primárias. A
globalização determina uma integração mundial como um gi-
gantesco apartheid socioeconômico. As violações dos direitos
fundamentais trazem verdadeiras catástrofes. A globalização
determina o caráter global da economia e armamentos nuclea-
res fora do eixo da Constituição. Assim, como o sistema sobre-
vive com processos de destruição? A resposta se dá por meio da
produção da lógica do inimigo em política multinível, incluindo
o poder do mercado global.
A solidariedade entendida como a não-indiferença a
outrem, surge como um dos caminhos plausíveis para a solução
de alguns problemas que permeiam a arena internacional.
Deve haver um pacto de solidariedade e de Direito
Fraterno para a solução dos problemas oriundos da política mi-
gratória, superando o código tradicional: “inclusão/exclusão”.
Conforme advertido por Sidney Guerra32, a obser-
vância do princípio da solidariedade é fundamental para o de-
senvolvimento da sociedade internacional, na medida em que
os Estados não são capazes de resolver seus problemas sozinhos

32 GUERRA, Sidney. Organizações Internacionais. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Ju-


ris, 2011, p. 264 e 265.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
54 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

e, por isso, verificou-se, principalmente após a segunda metade


do século passado, a proliferação de organizações internacio-
nais caracterizando o associativismo internacional. As manifes-
tações de solidariedade são extremamente importantes para a
convivência social no plano internacional e, por certo, no desen-
volvimento do Direito Internacional. Entretanto, defende-se
algo maior que possa nortear o comportamento dos Estados em
prol de uma sociedade mais igualitária e menos excludente: a
não-indiferença. Esta “não indiferença” deve pautar a atuação
dos diversos atores nas mais distintas relações constituídas na
órbita internacional e, em especial, mudanças que devem ser
observadas pelos Estados no intuito de reduzir os múltiplos
problemas existentes em todos os pontos do planeta. Propugna-
se, assim, pela defesa de uma nova postura e comportamento
diante das mais diversas e adversas situações que se manifes-
tam no campo das relações internacionais.
Entende-se queu ma das consequências da internaci-
onalização do sistema constitucional é o seu efeito diminuidor
dos poderes políticos do estado. Processos que ocorrem em de-
corrência da interferência da esfera da política diplomática so-
bre a estrutura doméstica geram a transferência dos debates po-
líticos para as instituições internacionais, onde as esferas de go-
verno e de governanças e confundem de modo a reconhecer um
constitucionalismo transnacional fundado na dinâmica da
Constituição da Terra, pautada pela Solidariedade e pelo Di-
reito Fraterno.
William Paiva Marques Júnior | 55
Considerações finais

A humanidade passa por um momento dramático no


período de pós-pandemia por diversos motivos:
(1) a continuidade do conflito Rússia/Ucrânia e a possibili-
dade de um conflito nuclear;
(2) os desequilíbrios ambientais inerentes à mudança climá-
tica;
(3) a desigualdade socioeconômica em níveis severos;
(4) os dramas dos fluxos migratórios, o direito de imigrar é
primevo no Direito Natural, como fundamento do flores-
cimento da Civilização Ocidental.

A realidade no mundo posterior à Covid-19 (trans-


pandemia) plasma as linhas mestras dessa nova faceta do cons-
titucionalismo que se propõe transformadora das relações inter-
nacionais. Conquanto as divergências contingenciais, as diretri-
zes futuras exprimem aspectos comuns no rompimento de uma
ordem jurídico-constitucional anterior e servem de paradigma
no constructo do constitucionalismo global (de nítido viés in-
clusivo, participativo e democrático).
Na construção do diálogo institucional, é fundamen-
tal o respeito às opiniões divergentes, que deve ser valorizado e
respeitado como alicerce do espírito dialógico tradicionalmente
norteador das políticas públicas estatais. Neste contexto diverso
e problemático, as opiniões divergentes são credoras de digni-
dade, respeito, diálogo e oitiva para soluções dos problemas vi-
venciados nos processos de melhorias da gestão que seja inclu-
siva, pacífica e fraterna.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
56 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

A democracia consagrou em seu âmbito, um ideal le-


gitimador baseado na igualdade política, participação e inclu-
são dos governados, bem como na possibilidade de responsabi-
lização dos atores governamentais por meio de mecanismos de
sanção e questionamentos das relações de poder. Contudo, a
amplitude e consideração desses elementos podem fazer surgir
várias ideias e concepções do que pode estar nesse modelo teó-
rico. Uma Constituição é democrática porque garante os mais
diversos direitos com respeito ao pluralismo de dimensão subs-
tancial com um pacto que estabelece a igualdade na convivên-
cia.
As assimetrias entre Direito e Política reverberam na
destruição dos direitos sociais. Deve-se sempre ter em mira que
o Estado Constitucional de Direito é um estado de progresso.
No horizonte do constitucionalismo global deve prevalecer a
dignidade humana de qualquer pessoa, superando as vicissitu-
des constantes da Guerra da Rússia, que tem se tornado uma
nova Alemanha, periclitante à manutenção da paz e do equilí-
brio nas relações internacionais contemporâneas, beirando a ca-
tástrofe ecológica e militar, colocando em risco a manutenção
da própria humanidade incluindo os desequilíbrios imanentes
ao arcabouço dos riscos climáticos.
Nesse contexto, a Constituição da Terra que propõe
elaborar se caracterizará, ao invés, por um alargamento do pa-
radigma constitucional para além do Estado, em três direções:
a) em primeiro lugar, na direção de um constitucionalismo su-
pranacional ou de direito internacional, em acréscimo ao cons-
titucionalismo de Estado atual, por meio da previsão de funções
e de instituições supranacionais de garantia, a altura dos pode-
res econômicos e políticos globais; b) em segundo lugar, na di
William Paiva Marques Júnior | 57
reção de um constitucionalismo de direito privado, em acrés-
cimo ao constitucionalismo de direito público atual, por meio
da introdução de um sistema adequado de regras e de garantias
em face dos poderes selvagens dos mercados atuais; c) em ter-
ceiro lugar, na direção de um constitucionalismo dos bens fun-
damentais, em acréscimo ao dos direitos fundamentais, por in-
termédio da previsão de garantias destinadas a conservar e as-
segurar o acesso de todos ao gozo de bens vitais como os bens
comuns, mas também de medicamentos essenciais e alimenta-
ção básica.
O Direito Positivo é Direito Vivente. Em nível de ju-
risdição, a Constituição tem dimensão de dignidade humana na
medida em que as violações por omissão dos direitos funda-
mentais são diferentes dos direitos patrimoniais. No contexto
de transpandemia, busca-se a efetividade das garantias primá-
rias no Direito à Saúde. Todos os princípios constitucionais (in-
cluindo a igualdade) fazem-se presentes nas constituições do
Estado Moderno. Não se proíbe ignorar a inefetividade dos di-
reitos fundamentais envolvendo milhões de pessoas.
O Direito Internacional é repleto de Cartas de Direi-
tos (Carta de 1948 da ONU, Declaração Americana dos Direitos
Humanos e a Carta da Organização dos Estados Americanos-
OEA, Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos), verifi-
cando-se a inadimplência dos direitos fundamentais como uma
lacuna a ser colmatada com diversas implicações normativas.
Tem-se, portanto, que a Constituição da Terra não é
uma novidade, mas a implementação do Direito Vivente. As
Cartas de Direito Internacional não são rigorosamente vincu-
lantes, revelando fluidez, mas significam movimentos de rei-
vindicação de direitos e emancipação coletiva.
A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
58| da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

A crise na desigualdade é escabrosa e bastante visí-


vel. Nesse ponto mostra-se como solução a tendência expansio-
nista e de universalidade da Constituição e dos direitos nela
consagrados. Em sede dos pleitos eleitorais democráticos, a
Constituição da Terra não se conforma com a deformação das
campanhas de ódio e fake news. Por isso, verifica-se que a tecno-
logia encontra-se a serviço do mercado e não da democracia.
A possibilidade de uma Constituição da Terra tem
como um de seus pressupostos a valorização das diferenças e a
superação do ódio ao outro (em especial os diferentes). Portanto
racismo, homofobia, classismo, nacionalismo belicista se funda
na ideia do inimigo.
Não existe consenso sobre armamentismo, mas a
ideia de Constituição da Terra instiga que deve haver um pro-
cesso de desarmamento. O progresso social deve comportar a
ideia de aniquilação do inimigo como forma de liberação do
ódio e do fascismo. Em verdade, tem-se que a construção do
inimigo compõe a lógica da manutenção do poder.
A Constituição da Terra nasce como um espírito teó-
rico e se caracteriza pela vocação universalista, informada pela
dignidade da pessoa humana o qual situa eticamente o huma-
nismo em uma expectativa de não lesão por meio dos direitos
fundamentais com vocação universal e garantista para todos.
No plano prospectivo, deve haver a Constituição
identitária que supere a ideologia da guerra e do ódio às dife-
renças. A construção da ideia de inimigo é prejudicial ao pró-
prio futuro do horizonte democrático. O radicalismo (de direita
ou de esquerda) não pode prevalecer em um regime que se ba-
liza pela lógica da temperança e da maturidade, e, neste ponto,
aproxima-se da ideia de Direito Fraterno.
William Paiva Marques Júnior | 59
Dispensando o jogo amigo-inimigo, o Direito Fra-
terno é não violento. Não incorpora a ideia do inimigo de ne-
nhuma outra forma, e por isso é diferente da guerra. A própria
ideia de consenso é a negação da lógica democrática, a partir do
reconhecimento de falsos inimigos e a exclusão da paz. Nesse
sentido, tem-se que a razão democrática pode ser uma emoção.
A invenção de inimigos (estrangeiros, imigrantes,
minorias sexuais, minorias raciais...), fomenta as dissidências, e,
nesse âmbito dissolve a democracia e a solidariedade. O ele-
mento identitário muitas vezes serve como fator de exclusão
por meio da exclusão e negativa dos desiguais. Indubitavel-
mente, todo totalitarismo se funda na lógica da guerra e da in-
tolerância às diferenças.
É necessário superar o código binário amigo/ini-
migo, paz/guerra, considerando que a existência de um, pressu-
põe a ocorrência do outro. Toda a lógica do poder se constrói
sobre a lógica amigo/inimigo. A maturidade da democracia se
dá a partir do respeito e valorização das opiniões adversas. Faz-
se fundamental a superação da ideia de inimigo. A Constituição
deve ser entendida como sujeito unitário de vontade da maioria
que não consente com a totalidade.
Uma das consequências da internacionalização do
sistema constitucional é o seu efeito diminuidor dos poderes
políticos do estado. Processos que ocorrem em decorrência da
interferência da esfera da política diplomática sobre a estrutura
doméstica geram a transferência dos debates políticos para as
instituições internacionais, onde as esferas de governo e de go-
vernanças e confundem de modo a reconhecer um constitucio-
nalismo transnacional fundado na dinâmica da Constituição da
Terra, pautada pela Solidariedade e pelo Direito Fraterno.
A superação da figura do inimigo no direito internacional : a constituição
601
da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

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A superação da figura do inimigo no direito internacional: a constituição
62 | da terra (Luigi Ferrajoli), a solidariedade (Stefano Rodotà) e o direito ...

OVERCOMING THE FIGURE OF THE ENEMY IN


INTERNATIONAL LAW: THE CONSTITUTION OF
THE EARTH (LUIGI FERRAJOLI), THE SOLIDARITY
(STEFANO RODOTÀ) AND FRATERNAL LAW
(ELIGIO RESTA)
Abstract: There are new horizons for International Law from the
transformations arising from the global pandemic situation caused by
Covid-19. There is, therefore, a genuine humanization of Interna-
tional Law, arising the need to overcome the figure of the enemy and
the consequent recognition of Fraternal Law and the Constitution of
the Earth. Considering the mutations analyzed, Luigi Ferrajoli pro-
poses a project of constitutionalism expanded to the international
level, designed to supplant the Constitutions of national states,
Stefano Rodotà addresses solidarity and Eligio Resta defends the con-
tributions of Fraternal Law. The balance of the contemporary interna-
tional context reveals that fundamental rights must be universal and
that the United Nations has failed to promote them, as seen in the
Russia/Ukraine War. It concludes that Fraternal Law assumes great
relevance for the success of diplomatic policy, enabling more harmo-
nious and pacifist external relations. It uses, as a methodology, re-
search of the bibliographical type through the analysis of books, legal
articles, international documents, legislation and jurisprudence, rely-
ing mainly on the works of Luigi Ferrajoli, Stefano Rodotà and Eligio
Resta. The research is pure, of a qualitative and quantitative nature,
with descriptive and exploratory purposes.
Keywords: Overcoming. Enemy. International law. The constitution
of the earth. Fraternal law.
CAPÍTULO II.
OS DIREITOS DAS PESSOAS COM
AUTISMO NA CONVENÇÃO DE NOVA
IORQUE

Helaine Cristina Pinheiro Fernandes*

DOI: 10.29327/5341937.1-2

Resumo: O presente capítulo parte da análise da evolução histórica


da proteção das pessoas com deficiência, incluindo pessoas com au-
tismo, desde a Roma antiga, demonstrando a trajetória de exclusão,
que perdurou por vários séculos, até o surgimento dos primeiros ins-
trumentos internacionais, que previram sua dignidade, surgindo ape-
nas no século XXI a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com De-
ficiência, também conhecida como Convenção de Nova Iorque. Esta
convenção veio reconhecer que as pessoas com deficiência têm os
mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais, inaugurando
todo um sistema voltado para “in dubio pro capacitas”. Nesta toada,
passa-se à conceituação e explicitação das características do trans-
torno do espectro autista, explicando-se os graus e as possíveis cau-
sas, assim como a relevância da temática. Analisam-se os direitos re-
conhecidos pela Convenção de Nova Iorque em favor das pessoas
com autismo, chegando-se ao problema da pesquisa, pertinente a im-
portância de se promover a participação plena e efetiva na sociedade,

*
Especialista em Direito Constitucional (Uniderp). Graduada em Direito pela Uni-
versidade de Fortaleza - UNIFOR. Atuação na área de Direito Constitucional e
Direito Civil. Atualmente é Oficial de Justiça - Tribunal de Justiça do Estado do
Ceará - TJCE. Artigo formulado para a disciplina Direito das Relações Internaci-
onais e Contemporaneidade, para o curso de Mestrado em Direito da Universi-
dade Federal do Ceará (UFC), ministrada pelo Professor William Paiva Marques
Júnior. Semestre 2023.1.
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
64 |
reconhecimento de suas capacidades e habilidades individuais, a pro-
moção de sua autonomia e independência, fornecimento de serviços
e apoios adequados para suas necessidades, constatando-se que os
direitos presentes na Convenção de Nova Iorque, não se efetivam por
si só, sendo necessária a conscientização, acessibilidade, adaptações e
solidariedade. Ao final, propõem-se exequíveis soluções, visando as-
segurar o acesso pleno ao conjunto de direitos garantidos, a fim de
realizar a inclusão social efetiva das pessoas com autismo.

Palavras-chave: Convenção de Nova Iorque. Autismo. Inclusão.

Introdução

Por muitos séculos, desde os primórdios da humani-


dade, pessoas com deficiência eram vistas como seres inferiores,
incapazes, destituídos de direitos e garantias fundamentais, re-
sultando em discriminação e exclusão social.
Considerando que aproximadamente 15% (quinze)
por cento da população mundial apresenta algum tipo de defi-
ciência1, redundando em prejuízo no exercício de direitos hu-
manos, foi que surgiu a Convenção de Nova Iorque sobre os
Direitos da Pessoa com Deficiência e seu protocolo facultativo,
no ano de 2007.
A Convenção foi assinada por 192 países e ratificada
por quase 100, incluindo o Brasil. A Convenção de Nova Iorque
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu protocolo
facultativo, assinados em 30 de março de 2007, foi aprovada
pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto n° 6.949/20092.

1 Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/58439-para-marcar-dia-internacional-


dos-deficientes-onu-pede-uma-sociedade-mais-inclusiva. Acesso em: 29 Jun.
2023.
2 BRASIL, Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Brasília. DF. 2009. Disponível
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 65
A partir da Emenda nº 45, o § 3º do art. 5º da Consti-
tuição Federal da República conferiu aos tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos, se aprovados em dois
turnos por 3/5 dos votos do Congresso Nacional, força de
emenda constitucional, sendo a Convenção de Nova Iorque o
primeiro tratado internacional a receber o status de emenda
constitucional, nos moldes do referido dispositivo constitucio-
nal.
Juntamente com a Convenção, em 09.07.2008, o Bra-
sil também ratificou o Protocolo Facultativo, o que significa di-
zer que qualquer pessoa no Brasil pode comunicar a Organiza-
ção das Nações Unidas, violação de direitos promulgados pela
Convenção, desde que sejam esgotados no País todos os meios
de se fazer cumprir os direitos reclamados.
Como decorrência do disposto no artigo 4 do texto
convencional, ocorreu a legiferação do Estatuto da Pessoa com
Deficiência, Lei nº 13.146/15, que faz referência específica ao re-
ferido tratado internacional, internalizado no Brasil.
Ademais, um pouco antes, foi promulgada a Lei nº
12.764/12, que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Di-
reitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e no seu
artigo 1º, parágrafo segundo, restou preceituado que a pessoa
com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com
deficiência, para todos os efeitos legais.
Partindo dessas premissas, considerando as normas,
os princípios e os objetivos constantes da Convenção de Nova

em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/
d6949.htm. Acesso em: 01 abr. 2023.
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
66 |
Iorque, o presente capítulo busca analisar os direitos das pes-
soas autistas consagrados no comando convencional, objeti-
vando:
1) extrair a relação com a legiferação do Estatuto da Pessoa
com Deficiência (Lei 13.146 de 2015), assim como com a
Lei n° 12.764/2012, que instituiu a Política Nacional de
Proteção dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Es-
pectro Autista, visto que a pessoa com autismo é equipa-
rada à pessoa com deficiência;
2) identificar os meios pelos quais o legislador brasileiro
efetivou direitos e princípios previstos na Convenção,
efetuados os ajustes à realidade brasileira, relativamente
às pessoas com transtorno do Espectro autista;
3) apreciar avanços e aspectos a serem melhorados, com
base no Comando Convencional;
4) ressaltar a questão da capacidade civil das pessoas com
autismo, que passa por mudanças significativas após a
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiên-
cia, posto que determinou que os Estados Partes estrutu-
rem instrumento de apoio ao exercício da capacidade.
Os objetivos da pesquisa demonstram que os dispo-
sitivos da convenção, fundados nos valores da justiça, da digni-
dade da pessoa humana e da isonomia, tencionam a excomun-
gar a discriminação, ao menos no plano ideal normativo, pro-
curando identificar as origens e causas de tal discriminação no
decorrer da história, assim como objetiva apontar soluções para
o arredamento ou otimização do problema da discriminação,
tais como políticas públicas de conscientização, de incentivo e
promoção de inclusão social da pessoa com autismo.
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 67
No que concerne à metodologia e ao tipo de pes-
quisa, mostra-se necessária a utilização do método intradiscipli-
nar de estudo e análise, de forma que as obras "Mundo Singu-
lar", de autoria da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva e "Au-
tismo e outros atrasos do Desenvolvimento", do também psi-
quiatra Ernest Christian Gauderer, serão o norte quando da
compreensão do Transtorno do Espectro Autista - TEA.
Na seara jurídica, foi utilizado o método dedutivo,
tendo sido o estudo feito por meio de pesquisas bibliográficas e
exploratórias, com abordagem qualitativa extraída da jurispru-
dência, da doutrina. Analisa-se a Convenção de Nova Iorque, o
Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Lei n° 12.764/2012, que
instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos das Pes-
soas com Transtorno do Espectro do Autismo, dispositivos do
Código Civil e de outros diplomas atinentes à matéria, a fim de
depreender os avanços sociais acarretados pelo comando con-
vencional e analisar, de forma crítica, a evolução da aplicação
destes comandos, destacando os pontos práticos que necessitam
de aprimoramento.

1. O tratamento das pessoas com deficiência no decorrer


da História

Resgata-se, na obra de Michel Foucault, alguns ele-


mentos que permitem a construção do limite entre o que a soci-
edade considera ser normal ou desviante da normalidade: “sua
loucura consistiu sempre em ocultar-se da sua família, em levar
uma vida obscura no campo, em passear sua pobre mente por
rotas desconhecidas.” 3

3 FOUCAULT, M. (2003) A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
68|
Ao longo da história, a sociedade tem promovido a
exclusão das pessoas que não se enquadram “nos padrões ditos
de normalidade”, que são diferentes. Os parcos relatos históri-
cos existentes sobre as pessoas com autismo e com deficiência
apontam para uma trajetória de incapacidade, privação de di-
reitos e de garantias fundamentais, resultando em discrimina-
ção e exclusão social.
Na Roma antiga, os direitos do nascituro eram aco-
lhidos, exceto se o parto prematuro, considerado como tal
aquele ocorrido antes do sétimo mês de gestação, acarretasse
deficiência, inviabilidade de sobrevivência pela prematuridade
ou monstruosidade, havendo previsão da morte por afoga-
mento. Caso sobrevivessem tais recém-nascidos, posterior-
mente eram comercializados numa espécie de mercado dito “es-
pecial”, composto por pessoas com deformidades físicas das
mais diversas, incluindo, anormalidades esqueléticas, anões, gi-
gantes, hermafroditas, cegos e quaisquer outros que ostentas-
sem uma debilidade.
A eclosão do Cristianismo trouxe preocupação vi-
sando ajudar os órfãos e os rejeitados, que eram recebidos por
bispos e freiras nos mosteiros existentes e atendidos pelas insti-
tuições envolvidas em ajudar esses excluídos.
Ao longo da Idade Média, paradoxalmente a pie-
dade defendida pela igreja, a sensação de ter indivíduos com
deficiência transitando pelas ruas, trazia desconforto às pes-
soas, que resolveram criar uma embarcação para levá-los em
alto mar, sem destino, conhecida como “Nau dos Loucos”, vi

saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.203-222.


Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 69
sando melhorar a linha de visão das pessoas da cidade, que as-
sim não precisariam dividir o mesmo espaço social com os cha-
mados mentalmente incapazes.4
Ademais, neste período, as deficiências físicas, men-
tais e as malformações congênitas passaram a ser consideradas
pela própria Igreja Católica “castigos de Deus”, e devido a isso
foram perseguidas, discriminadas e excluídas da caridade. As
pessoas com deficiência eram comumente sacrificadas junto às
mulheres consideradas bruxas, durante a era inquisitória.
Quando as pessoas com deficiência passaram a for-
mar uma grande quantidade de sequelados, pobres e estigma-
tizados, tais pessoas foram rejeitadas sumariamente da convi-
vência social.5
Com o advento do Renascimento, surgiu a reflexão
sobre os direitos universais, a partir da evolução científica e do
desenvolvimento da consciência filosófica humanística, ha-
vendo uma preocupação com a proteção das pessoas com defi-
ciência, minimizando privação e exclusão social. 6
A partir deste ponto da história, ocorreu uma mo-
desta humanização no comportamento social, aparentando
certa civilização e preocupação com o bem-estar, a saúde e os

4 FOUCAULT, Michel. Histoire de la Folie à l'ÂgeClassique. Tradução de José Tei-


xeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 13.
5 GARCIA, Vinicius Gaspar. As pessoas com deficiência na história do mundo.
Rio de Janeiro: Bengala Legal, 2011. Disponível em: http://www.bengalale-
gal.com/pcd-mundial. Acesso em: 23 mar. 2023. Disponível em: http://www.sci-
elo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462014000100010&lng=pt
&nrm=iso. Acesso em: 23 mar. 2023. http://dx.doi.org/10.1590/S1981-
77462014000100010. p. 167.
6 Ibidem, p. 167.
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
70 |
direitos humanos 7, apesar de que algumas iniciais previsões
constitucionais mostraram-se excludentes.
A Constituição Brasileira Imperial de 1824 excluía a
possibilidade do exercício de direitos políticos pela incapaci-
dade física ou moral, sem justificativas sobre quais incapacida-
des se referia (artigo 8°, I). 8
Em 1891, a Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil, sustentou a suspensão dos direitos devido a
incapacidade física ou moral.
Por sua vez, a Constituição de 1934, restringia os di-
reitos pela incapacidade civil absoluta, sem citar, contudo, qual-
quer incapacidade física, trazendo ainda nomenclaturas discri-
minatórias, como por exemplo: “órfãos, abandonados, liberti-
nos, alienados e outros tipos de doentes sociais”, além dos “pre-
tos ou pardos”, “débeis ou atrasados”. Ademais, o artigo 137,
incentivava a educação eugênica no propósito de “melhorar as
gerações futuras” e o artigo 121, § 6°, cerceava a entrada de imi-
grantes como garantia da integração étnica e da capacidade fí-
sica e civil, contrariamente a previsão da rejeição de toda e qual-
quer discriminação, que iguala todos perante a lei, disposta no
artigo 113, I. 9

7 Ibidem, p. 167.
8 CAMPANHOLE, Adriano; CAMPANHOLE; Hilton Lôbo. Todas as Constitui-
ções do Brasil / compilação dos textos, notas, revisão e índices. São Paulo: Atlas,
1971. 659 p. Disponível em: http://biblioteca2.senado.gov.br:8991/F/?func=item-
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582.
9 AGUILAR FILHO, Sidney. Educação, autoritarismo e eugenia = exploração do
trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945). 2011. 364 p.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação.
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Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 71
Durante a segunda guerra mundial, o médico austrí-
aco Hans Asperger, debruçou-se sobre o estudo individuali-
zado em crianças com sintomas de psicopatia de autismo. Ele
entrou para a história da psiquiatria ao ampliar os critérios de
definição dessa condição de saúde e dar uma “nova cara” ao
autismo. Entretanto, há estudos realizados a partir das análises
de documentos da época, que afirmam que ele esteve envolvido
nas políticas de homicídio de crianças no período nazista. Se-
gundo Edith Sheffer, “arquivos revelam que Asperger partici-
pou do sistema de assassinato infantil em múltiplos níveis: ele
era próximo de líderes do sistema de eutanásia infantil em Vi-
ena e, como membro do Estado nazista, enviou dezenas de cri-
anças para a instituição infantil de Spiegelgrund, onde eram
mortas”.10
Em 1948, após a segunda guerra, a Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, promoveu a defesa e o respeito
aos direitos e liberdades entre as civilizações dos Estados-Mem-
bros e dos territórios sob sua jurisdição, garantindo que as pes-
soas nascem livres e iguais em dignidade humana e direitos.
(artigo 1º da Resolução ONU n.º 217 A, III de 10 de dezembro
de 1948). 11
Conhecer a história dos direitos das pessoas com de-
ficiência e com autismo, contribui para a compreensão das ra-
zões pelas quais ainda há muitas dificuldades e desvantagens

10 SHEFFER, Edith. Asperger's Children: The Origins of Autism in Nazi Vienna.


Tradução de Alessandra Bonrruquer. Editora Record, 2019, p. 229.
11 RIO GRANDE DO SUL. Governo do Estado. Fundação de Articulação e Desen-
volvimento de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência e com Altas Ha-
bilidades no Rio Grande do Sul – FADERS.Legislação Internacional. Rio Grande
do Sul. Disponível em: http://www.faders.rs.gov.br/legislacao/6. Acesso em: 23
mar. 2023.
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
72 |
sociais, pois durante um longo período, a discriminação e a ex-
clusão era algo não apenas aceito pela ordem social, mas cons-
truído nas diversas formas organizacionais e estruturais da so-
ciedade.

2. Do transtorno do espectro autista

O transtorno do espectro autista constitui-se em um


distúrbio do neurodesenvolvimento global caracterizado por
déficits comunicativos, interacionais e por comportamentos re-
petitivos e restritos.12 Tal expressão foi primeiramente cunhada
em 1906, pelo psiquiatra Plouller, contudo, na ocasião não como
uma doença, mas como um sintoma clínico de isolamento, ao
analisar pacientes esquizofrênicos, tendo sido tal nomenclatura
inspirada do termo freudiano autoerotismo, com exclusão do
termo “eros”. Apenas em 1943, o autismo foi conceituado como
doença clínica, pelo psiquiatra Leo Kanner. Como se caracteriza
como um conjunto de sintomas, trata-se de uma síndrome, cujos
sinais se desenvolvem de várias maneiras, antes dos três anos
de idade, prolongando-se por toda a vida, ainda sem cura,
sendo mais comum entre os indivíduos do sexo masculino, aba-
lando aspectos de socialização, comunicação e comportamento,
comprometendo a interação social. É uma condição encontrada
em todo o mundo e em famílias de toda configuração racial, ét-
nica e social. Acredita-se, mas ainda sem conclusões científicas
definitivas, que a causa é epigenética.13

12 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual Diagnóstico e Estatístico


de Transtornos Mentais, DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. P. 50-55. ISBN
978-85-8271-089-0.
13 GAUDERER, Ernest C. Autismo e outros atrasos de desenvolvimento. 2 ed. São
Paulo: REVINTER,1997. p.3
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 73
Diante do aumento crescente de pessoas com au-
tismo em todo o mundo, especialistas cogitam tratar-se de uma
epidemia, voltando a atenção da comunidade médica para a
problemática, vez que no final dos anos 1980, havia de 3 a 5 ca-
sos em cada 10 mil nascimentos e atualmente, para cada 36
(trinta e seis) crianças de até 8 (oito) anos, uma desenvolve pelo
menos um sintoma do Espectro Autista.14
O autismo pode ser dividido em categorias: uns pos-
suem somente alguns traços leves, de maneira que poderão, em
tese, ter uma vida praticamente usual, estudando e traba-
lhando. O maior desafio é focar o pensamento em coisa diversa
do que lhes chamam a atenção. Alguns possuem a chamada sín-
drome de Aspenger que apresentam um conjunto de sintomas
que acarretam dificuldades na socialização. São, na maioria das
vezes, solitários e direcionam seus interesses de forma bastante
restrita. Para tratá-los, é essencial focar não só no que está "er-
rado", mas identificar as áreas que possuem mais habilidades,
no sentido de aguçá-las e canalizá-las de maneira correta. Exis-
tem os denominados autistas de "alto funcionamento", que tem
características bastante parecidas com as da síndrome de Asper-
ger, não apresenta retardo mental, mas sim atrasos na lingua-
gem, prejuízos na interação social, dificuldades comportamen-
tais, entre outros sintomas. Estes conseguem utilizar de sua in-
teligência para dominar as dificuldades do autismo. Por fim, o
grau mais severo do autismo, que é associado ao retardo mental
e prejuízos na autonomia. É como as pessoas, normalmente,

14 1 a cada 36 crianças tem autismo, diz CDC. https://g1.globo.com/educacao/noti-


cia/2023/04/02/1-a-cada-36-criancas-tem-autismo-diz-cdc-entenda-por-que-nu-
mero-de-casos-aumentou-tanto-nas-ultimas-decadas.ghtml. Acesso em
15.06.2023.
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
74 |
imaginam o autista (estereótipo). Estes possuem grandes difi-
culdades e seguramente serão dependentes por toda a vida. As
coisas mais simples do cotidiano podem ser um desafio.15 Atu-
almente a divisão das categorias se dar conforme o nível de
apoio, sendo o nível um, o de menor de apoio, relacionados ao
autismo anteriormente dito leve e o da síndrome de Aspenger,
nível dois, o de alto funcionamento e o nível três, o grau mais
severo.
O autismo, caracterizado como transtorno do espec-
tro por Lorna Wing16, não é binário. Neste sentido, não se deve
considerar que a pessoa tem muito autismo ou pouco autismo.
Para melhor compreensão do transtorno do espectro autista, ne-
cessário se analisar o cérebro, em todas as suas funções: habili-
dades de linguagem, motoras, sensoriais, percepção, funções
executivas, entre outras. Cada autista terá um impacto maior
numa área ou noutra. Uma determinada pessoa com autismo
pode ter um impacto maior nas funções de linguagem, motora
e quase nenhuma na função perceptiva ou de execução, por
exemplo, ao passo que outro autista pode ter pouco impacto nas
funções de linguagem, motora e ter comprometimento maior na
função perceptiva ou de execução. Isto significa que se se co-
nhecer uma pessoa com autismo, se conhece essa pessoa deter-
minada com autismo, pois outro autista apresentará outras fun-
ções ou comprometimentos no espectro. É importante entender
como o diagnóstico se dá em cada indivíduo, além de averiguar
quais as necessidades de apoio que precisa.

15 SILVA,
57 Ana Beatriz Barbosa. Mundo Singular. Rio de Janeiro: Fontanar. 2012, p.

16 WING, Lorna. Asperger's syndrome: a clinical account. Psychol Med


1981;11(1):115-29.
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 75
3. Direito das pessoas com autismo na Convenção de
Nova Iorque

Em 2006, na sede geral da ONU, em Nova Iorque, 192


países reuniram-se para discutir sobre os direitos das pessoas
com deficiência em diversas áreas, com o objetivo de “proteger
e garantir o total e igual acesso a todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência,
e promover o respeito pela sua inerente dignidade” (artigo 1°)17.
A Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas
com Deficiência, também conhecida como Convenção de Nova
Iorque, é o primeiro grande tratado do sistema universal de Di-
reitos Humanos do século XXI, onde os alicerces principiológi-
cos foram o da “intervenção mínima” e do “in dubio pro capa-
citas”. Essa nova interpretação estabelecida no artigo 12, passa
a reconhecer a capacidade legal de fato das pessoas com defici-
ência para o exercício dos atos civis. Assim, a deficiência não
seria mais uma causa ou justificativa única da incapacidade de
uma pessoa, operando-se a validação do texto da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948.
No ordenamento jurídico brasileiro, foi o primeiro
tratado internacional a receber o status de emenda constitucio-
nal, nos moldes do art. 5º, parágrafo 3º da CF.
O conceito de pessoa com deficiência trazido na Con-
venção de Nova Iorque passa a ter caráter interacional, depen-
dendo, portanto, de condições físicas e mentais de longo prazo
e de barreiras físicas, sociais e jurídicas, sendo dever do Estado

17 BRASIL, Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Brasília. DF. 2009. Disponível


em:
d6949.htm. Acesso
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/
em: 01 abr. 2023.
761 Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque

eliminar ao máximo as barreiras: 18 "Pessoas com deficiência são

aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou

sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem

obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as


demais pessoas. "19

Entre as obrigações gerais constantes na Convenção,

consta no artigo 4, a elaboração e implementação de legislação .

A partir deste comando da Convenção, foi elaborada

a Lei n nº 12.764/12, que institui a Política Nacional de Proteção


dos Direitos das Pessoas com Transtorno do Espectro Autista,
também conhecida como Lei Berenice Piana - em homenagem a

uma mãe de uma pessoa com autismo, que lutou pelo reconhe-
cimento desses direitos - que em seu art. 1º, parágrafo 2º, equi-

parou a pessoa com TEA à pessoa com deficiência, para todos

os efeitos legais . A razão legislativa de tal equiparação se deve


a recalcitrância social, no sentido de reconhecer a pessoa com

autismo como pessoa com deficiência, mesmo diante dos graus

de comprometimento cognitivo . A Lei Berenice Piana, portanto,


encerrou tais discussões no que concerne a tal reconhecimento .
Também foi promulgada a Lei Brasileira de Inclusão

(LBI) ou Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), Lei n°

13.146/2015, que alterou a capacidade civil, exposta no art. 3º do


Código Civil . Em decorrência, foi excluído do artigo 4° do Có-

digo Civil, a expressão "enfermidade ou doença mental", que


impedia a prática dos atos civis por falta de discernimento . Com

18 BEVERVANÇO, Rosana Beraldi. Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (da


Exclusão à Igualdade). Curitiba: MPE, 2001, p.13.
19
BRASIL, Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Brasília . DF . 2009. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil 03/ ato2007-2010/2009/decreto/
d6949.htm. Acesso em: 01 abr. 2023.
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 77
essas alterações na lei civil, os únicos considerados absoluta-
mente incapazes são os menores de 16 anos.
A condição deficiência não afeta a plena capacidade
civil, devendo haver a proteção das pessoas com deficiência de
toda forma de negligência, exploração, violência e tratamento
desumano ou degradante, sendo necessária a devida comunica-
ção à autoridade competente quando for detectada tal viola-
ção.20
Neste contexto, visando o desenvolvimento pleno da
personalidade e capacidade, extraem-se do artigo 3 da Conven-
ção, nos princípios gerais, direitos concernentes à igualdade,
dignidade, independência, autonomia e capacidade das pessoas
com autismo. A fim de não restar dúvidas acerca do reconheci-
mento de igualdade perante a lei, o art. 12 da Convenção traz
novamente tal reforço.
Como decorrência deste reconhecimento de igual-
dade perante a lei, a LBI trouxe o instituto da previsão da to-
mada de decisão apoiada, ao inserir o art. 1.783-A no Código
Civil Brasileiro. A tomada de decisão apoiada passa a ser o su-
porte das pessoas com deficiência intelectual, com o objetivo de
salvaguardá-los de prováveis ilegalidades e abusos.
Além do direito à igualdade, destacado em várias
passagens da convenção, este dispositivo internacional traz
ainda como ênfase ao referido direito à igualdade, o direito à
não-discriminação, destacado no artigo 5, o qual também cons-
tou no art. 4º da Lei n, 12.764/12.

20 CUNHA, Felipe Hotz de Macedo. Proteção contra qualquer forma de abuso e ex-
ploração e contra tratamentos desumanos ou degradantes. In: TIBYRIÇÁ, Renata
Flores; D’ANTINO, Maria Eloisa Famá (org.). Direitos das pessoas com autismo:
comentários interdisciplinares à Lei 12.764/12. 1 ed. São Paulo: Memnon Edições
Científicas, 2018. p. 190
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
78|
A não discriminação, como direito ora citado, consti-
tui uma vertente negativa do princípio da igualdade, pelo qual
são formuladas regras constitucionais e legais determinando
que os atos discriminatórios não poderão ser aceitos. Gilmar
Ferreira Mendes define, com base na doutrina alemã, que a iso-
nomia tanto pode ser vista como exigência de tratamento igua-
litário (Gleichbehanlungsgebot), como a proibição de trata-
mento discriminatório (Ungleichbehanlungsverbot).21
Diante de todo o contexto histórico já abordado no
presente capítulo, de desrespeito ao próprio direito à vida das
pessoas com deficiência, o texto convencional entendeu indis-
pensável trazer expressamente a previsão do direito à vida, à
liberdade e à segurança pessoal das pessoas com deficiência e
com autismo, constantes nos artigos 10 e 14. No mesmo sentido,
tais direitos também foram reforçados no art. 3º, I e II da Lei nº
12.764/12, protegendo as pessoas com autismo contra qualquer
forma de abuso e exploração, assim como tratamentos desuma-
nos e degradantes.22 Quando é dado à pessoa com autismo tra-
tamento justo, sensível e igualitário, há uma evolução positiva
do seu quadro clínico. Todavia, quando é exposto a qualquer
tipo de violência, abuso ou maus tratos, tende a isolar-se, desen-
volver agressividade, regredindo socialmente.23

21 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constituciona-


lidade. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos, 1999. p. 43.
22 MAGNO, Patrícia Carlos. Direito à vida, à integridade física e moral, ao livre de-
senvolvimento da personalidade, à segurança e ao lazer. Pesquisa Científica e Es-
tudos Epistemológicos. In: TIBYRIÇÁ, Renata Flores; D’ANTINO, Maria Eloisa
Famá (org.). Direitos das pessoas com autismo: comentários interdisciplinares à
Lei 12.764/12. 1 ed. São Paulo: Memnon Edições Científicas, 2018. p. 134.
23 CUNHA, Danilo Fontenele Sampaio. A Justiça Sensível. Perspectivas incomuns
e possibilidades utópicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2019. p. 181-190.
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 79
Nesta toada, ainda em decorrência do direito à iso-
nomia, com fundamento no valor dignidade da pessoa humana,
a Convenção de Nova Iorque, também disciplina direito à igual-
dade de oportunidades e participação na vida cultural, política,
econômica e social, nos termos dos artigos 29 e 30. No mesmo
sentido, reforçando a previsão convencional, constou no art. 3º,
I, da Lei n nº 12.764/12 o direito à participação na vida política,
direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer. Tais direitos
são fundamentais para garantir os avanços da luta das pessoas
com autismo, promovendo também avanços em termos de po-
líticas públicas e participação efetiva em todos os momentos da
vida da sociedade na qual estão inseridos, assegurando o pleno
exercício de seus direitos básicos, com acessibilidade e em con-
dições iguais às demais pessoas. No que concerne ao direito ao
lazer, este abrange shows, espetáculos, cinema, enquanto a cul-
tura se refere ao desenvolvimento humano, intelectual, compor-
tamental dos indivíduos na sociedade.24
A Convenção de Nova Iorque traz também expressa-
mente para as pessoas com deficiência – via de consequência às
pessoas com autismo - direito ao diagnóstico, à saúde e ao tra-
tamento multidisciplinar, segundo a inteligência do artigo 25,
estando referido direito replicado no art. 2º, III e art. 3º, III da
Lei n nº 12.764/12. O diagnóstico precoce para a pessoa com au-
tismo deve ocorrer desde os primeiros sinais de alerta, antes do
final do primeiro ano de vida, quando ocorrer a falta do contato
visual, a ausência da imitação e o não compartilhar a atenção,

24 AFFONSO, Deborah Kelly. Do direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer.


In: LEITE, FláviaPiva Almeida; RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes Ribeiro; COSTA FI-
LHO, Waldir Macieira da. (org.) Comentários ao Estatuto da Pessoa com Defici-
ência – Lei n° 13.146/2015. 2. ed. p. 236-258. São Paulo:Saraiva Educação, 2019. p.
236-241.
801 Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque

devendo haver o início imediato do tratamento multidisciplinar

específico, a fim de melhorar o prognóstico . O atendimento

multiprofissional é importante, especialmente quando é focado


na aplicação de análise comportamental, atividades de fisiote-

rapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, musicoterapia, psi-

comotricidade, apresentando esse modelo de tratamento me-


lhores resultados.25

No que concerne ao direito à educação, consta no ar-

tigo 24 da CDPD e no artigo 3º, IV, alínea a e art . 7º da Lei nº


12.764/12, o acesso à escola, inclusive, ao ensino profissionali-

zante (artigo 3 °, IV, a) , devendo punir o gestor escolar ou a au-

toridade competente que, porventura, venha a negar matrícula


de pessoa com TEA, desde multa até a perda do cargo, em caso
de reincidência (artigo 7º, § 1º) . Nos casos em que o autista pre-

cise de acompanhamento especializado (ou auxiliar de apoio)


em sala de aula, cita o artigo 3°, parágrafo único que, com a
comprovação dessa necessidade, o estudante com TEA incluído

em escolas regulares, tem direito a esse suporte psicopedagó-

gico . O intuito é minimizar os obstáculos da inclusão escolar,

garantindo a igualdade na participação das atividades com os

outros alunos . Saliente - se que tais disposições não podem ser

confundidas com privilégio, mas sim vistas como direitos .


Na seara laboral, tanto a CDPD (art. 27), quanto a Lei

nº 12.764/ 12 (art. 3º, IV, alínea ce art. 2º, V) trazem previsão ex-

pressa do direito ao trabalho e emprego, estimulando a inserção


da pessoa com autismo . Por existir uma grande falha e falta na

contratação de pessoas com deficiência e com autismo, ocorreu

25 SCHWARTZMAN, José Salomão; BRUNONI, Décio. Saúde. In: TIBYRICÁ, Re-


nata Flores; D'ANTINO, Maria Eloisa Famá (org.) . Direitos das pessoas com au-
tismo: comentários interdisciplinares à Lei 12.764/12. 1 ed . São Paulo: Memnon
Edições Científicas, 2018. p . 45-48 .
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 81
a edição do Decreto Federal 3.298/99, que garante reserva de va-
gas no serviço público e da Lei nº 8.213/91, a chamada Lei de
Cotas, que determina que empresas com 100 (cem) empregados
ou mais reservem vagas no quadro de empregados. O salário
do trabalhador com autismo deve ser igual aos dos demais em-
pregados da empresa que desempenham as mesmas atividades
que as suas, conforme o art. 461 da CLT. Essa equiparação sala-
rial também está assegurada na Constituição Federal (art.7º,
XXXI) na qual consta que não pode haver qualquer discrimina-
ção no que se refere ao salário pago aos empregados que são
pessoas com deficiência e neste mesmo sentido, que são pessoas
com autismo, assegurando também proibição de qualquer dis-
criminação no tocante a critérios de admissão.
Neste contexto, em razão dos princípios fundamen-
tais de proteção à dignidade da pessoa humana e do valor social
do trabalho (art. 1º, III e IV, da CF/88), deve haver estímulo à
inserção da pessoa com autismo no mercado de trabalho, obser-
vadas as singularidades apresentadas pelo transtorno, vistas
não como um déficit, mas como uma potencialidade de outras
habilidades, observando-se pontos de impacto que precisam de
acessibilidade, mas que podem trazer para as empresas outras
visões, habilidades, a partir da contratação destas pessoas neu-
rodivergentes26.

26 Algumas empresas que discriminam a contratação de pessoas com autismo, não


percebem que esses cérebros atípicos possuem habilidades, que potencializadas,
podem gerar ganhos para as corporações, a partir da visão de outras inteligências
voltadas para soluções de problemas que necessitam dessas características singu-
lares. Pessoas com autismo possuem aptidões e talentos específicos em determi-
nadas áreas do conhecimento como questões lógicas e matemáticas, atividades
repetitivas e metódicas, boa memória visual e de longo prazo, orientação maior a
detalhes e honestidade, por apresentarem um desenvolvimento cerebral voltado
para atividades mais concretas. (SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mundo Singular.
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
82 |
Apesar dos vários direitos expostos na Convenção de
Nova Iorque, ainda existem muitas barreiras para a inclusão so-
cial das pessoas com autismo. Por esta razão a convenção tam-
bém dispõe acerca do direito à conscientização, constante no ar-
tigo 8, estando referida previsão da mesma forma disposta no
art. 2º, VI, da Lei nº 12.764/12. A execução plena de todos os di-
reitos sociais (saúde, educação, trabalho e convivência em geral)
depende da efetiva acessibilidade e da almejada solidariedade
social, de uma coesão social fazendo valer os direitos previstos.
A visibilidade dada às limitações das pessoas com autismo e de-
mais pessoas com deficiência no intuito de manifestar, reivindi-
car e reforçar seu lugar de igualdade no meio social deve rever-
berar, de forma positiva, favorecendo o convívio social.
Nesta linha de reflexões, no que toca à solidariedade
social, segundo Durkheim, a coesão é parte da solidariedade so-
cial. Isso requer que os laços sociais sejam mais fortes e nume-
rosos, criando obrigações para o indivíduo, exercendo pressões
funcionais que moderam o egoísmo e lhe permitem reconhecer
sua dependência com respeito à sociedade.27
Estão previstas na convenção, entre as ações para
atingir os objetivos acima mencionados, campanhas públicas de
conscientização, tanto pelo poder público quanto pelas organi-
zações e pessoas com autismo, para: a) fomentar atitudes recep-
tivas em relação aos direitos das pessoas com deficiência; b)
promover percepções positivas e maior consciência social em
relação às pessoas com deficiência; c) promover o reconheci

Rio de Janeiro: Fontanar. 2012, p. 43.)


27 DURKHEIM, Émile. Lesrègles de laméthodesociologique. 17. ed. Tradução de
Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002,
p. 31.
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 83
mento das habilidades e capacidades das pessoas com deficiên-
cia e de suas contribuições ao local de trabalho e ao mercado
laboral. Entre essas ações, a ONU, em 2007, definiu o dia 2 de
abril como o Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo.
Com efeito, depreende-se avanço dos direitos da pes-
soa com autismo. Entretanto, ainda está em fase inicial, do
ponto de vista da real e efetiva acessibilidade e inclusão, visto
que ainda há descumprimento de direitos, que resulta na neces-
sidade da efetividade tutela jurisdicional, cujo acesso à Justiça,
também está assegurado no art. 13 da convenção, restando ga-
rantida a participação durante todo o processo judicial, de-
vendo o Poder Judiciário capacitar seus servidores quanto aos
direitos desses indivíduos. As tecnologias assistivas devem in-
tegrar a marcha processual, como recursos que devem ser ofe-
recidos, quando figurar pessoa com autismo e outras deficiên-
cias, em uma das partes do processo ou ocupando lugar de tes-
temunha, terceiro interessado, partícipe, advogado ou servidor
público. Para aqueles com autismo e outras deficiências que fo-
rem julgados e condenados, devem ser respeitados também os
princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana.
Por conseguinte, a Convenção de Nova Iorque res-
guarda os direitos das pessoas com autismo, posto que possuem
fundamento na dignidade da pessoa humana, norteando a le-
gislação interna e internacional. Ademais, tais direitos se encon-
tram em consonância com o disposto na CF, pois constitui fun-
damento da República Federativa do Brasil, a promoção do bem
de todos, sem qualquer forma de discriminação (art. 3º, inciso
VI).
Por sua vez, qualquer prática discriminatória fere o
princípio da igualdade, previsto no caput do art. 5º da Consti-
tuição Federal, e implica violação ao inciso III, art. 3º, CF/88, que
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
84|
estabelece que um dos objetivos da República é a erradicação
das desigualdades sociais, também mencionada no art. 170, in-
ciso VII. Estar-se diante de normas de direitos fundamentais
que dão concretude aos direitos humanos, irradiando eficácia
sobre todas as relações jurídicas, informando e condicionando
a atividade pública e privada.
Apesar da legislação protetiva, necessária também a
adoção de políticas públicas, que ora se propõe, a fim de asse-
gurar o acesso pleno ao conjunto de direitos garantidos na con-
venção e legislação decorrente, beneficiando com incentivos fis-
cais, por exemplo, empresas que promovem adaptações estru-
turais e de pessoal, visando a acessibilidade, por buscarem rea-
lizar a inclusão social de pessoas com autismo.

Considerações finais

À guisa de conclusão, a Convenção de Nova Iorque


contribuiu para estabelecimento de inúmeros direitos para as
pessoas com autismo.
Nesta esteira, a convenção tenciona promover a in-
clusão social, a partir do estabelecimento da autonomia da pes-
soa com deficiência e via de consequência da pessoa com TEA,
na medida em que reconheceu a capacidade civil como regra,
possibilitando o desenvolvimento da personalidade, da digni-
dade, além da criação de instrumentos de apoio para tomada de
decisões, como a Tomada de Decisão Apoiada (TDA). Tais ins-
trumentos são fundamentais, vez que a capacidade civil ainda
é muitas vezes questionada no que concerne a possibilidade de
viver em comunidade, de exercer a cidadania, enfim, no ponto
de vista de estar apto a cumprir as suas atividades civis como
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes 185

sujeitos de direito, 28 pois as deficiências ainda são vistas, na

maioria das vezes, como impedimento para o exercício de direi-


tos e para a convivência social .

Com efeito, a Convenção Internacional dos Direitos

da Pessoa com Deficiência esclareceu que as supostas barreiras

impostas às pessoas com autismo se devem pelos impedimen-


tos sociais impostos, desconhecimento acerca do transtorno do

espectro autista e discriminação histórica . Contudo, a digni-


dade efetiva somente poderá ser alcançada, quando os direitos
fundamentais forem efetivamente garantidos, com o reconheci-

mento de igualdade entre as pessoas, independentemente de


sua condição .

A Conscientização sobre o Transtorno do Espectro

Autista é indispensável para extirpar a discriminação e as atitu-


des desrespeitosas em relação ao conjunto normativo de leis ga-

rantidoras dos direitos, vez que os autistas ainda são constante-

mente vitimizados, ao serem impedidos de exercer seus direi-


tos, em ter determinado um diagnóstico preciso ou um trata-
mento direcionado para minimizar seus comprometimentos .

Diante disso, as demandas referentes à violação aos

direitos da pessoa com autismo chegam ao judiciário, enfren-

tando em não raras vezes, a ausência de prioridade no anda-

mento dos processos, os indeferimentos aos pedidos de trata-


mento direcionado, o que dificulta, muitas vezes, o aproveita-
mento das janelas de oportunidades neurológicas e, por sua

28 FARAH, Fabiana Barroca Alves . Os direitos das pessoas com autismo: uma abor-
dagem jurídica sob a Perspectiva social. p . 109. Dissertação (Mestrado) – Uni7.
Fortaaleza. Ceará. 2020. Disponível em: https://www.uni7.edu.br/wp-content/
uploads/2021/06/Dissert o F bi n Fr h.pdf. Acesso em: 01 jul. 2023.
Os direitos das pessoas com autismo na Convenção de Nova Iorque
86|
vez, a evolução do quadro clínico do autista, que necessita de
29
intervenção imediata logo após o diagnóstico elucidativo.
Necessário também que as empresas qualifiquem
seus empregados e o Poder Público capacite seus servidores,
além de promover a devida informação à sociedade, no intuito
de reforçar o respeito aos direitos da pessoa com autismo, pre-
servando a sua autonomia com dignidade, pois a inclusão e a
acessibilidade por si só não se efetivam. Dependem da solidari-
edade social para acontecerem, pois a vida em sociedade é ine-
vitável para a subsistência de cada um,30 sendo a solidariedade
o elo entre as pessoas e a possibilidade da inclusão para todos.
Segundo Danilo Fontenele Sampaio Cunha31, enxergar o outro
como sujeito é, portanto, respeitar e propiciar o desenvolvi-
mento uniforme de todas suas potencialidades e, para tanto, há
que se conhecerem, além de seus impulsos e necessidades, os
meios necessários às suas satisfações, sendo crucial que a liber-
dade e a sinceridade das expressões particulares sejam dirigidas
à meta comum de todo conhecimento, qual seja, o contínuo pro-
gresso da humanidade.
Neste aspecto, a solidariedade se mostra como o ca-
minho a ser seguido, na redescoberta dos laços comuns da ir-
mandade humana. Vencer o egoísmo, os comportamentos indi-
vidualistas, as tendências isolacionistas no empreendimento da
inclusão do outro no mundo, parece ser a maior meta de supe-

29 Ibidem, p. 109.
30 Aristóteles. A Política. 3. Ed. Brasília: UNB, 1997, p. 12. In TABOSA, Agerson. So-
ciologia Geral e Jurídica. Fortaleza: Qualygrf Editora e Gráfica,2005, p. 119.
31 CUNHA, Danilo Fontenele Sampaio. Sociologia Jurídica: Ordem jurídica, legiti-
midade social e justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p 421-422.
Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 87
ração individual e institucional de todos que lidam com o di-
reito, afinal a solidariedade é um princípio reitor não apenas das
relações interpessoais, mas sobretudo do Direito.

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Helaine Cristina Pinheiro Fernandes | 91
THE RIGHTS OF PEOPLE WITH AUTISM AT THE
NEW YORK CONVENTION
Abstract: This article starts with the analysis of the historical evolu-
tion of the protection of people with disabilities, including people
with autism, since ancient Rome, demonstrating the trajectory of ex-
clusion, which lasted for several centuries, until the emergence of the
first international instruments, which predicted their dignity, the
Convention on the Rights of Persons with Disabilities, also known as
the New York Convention, only appeared in the 21st century. This
convention came to recognize that people with disabilities have the
same human rights and fundamental freedoms, inaugurating a whole
system aimed at “in dubio pro capacitas”. In this tune, the conceptu-
alization and explanation of the characteristics of the autism spectrum
disorder are explained, explaining the degrees and possible causes, as
well as the relevance of the theme. The rights recognized by the New
York Convention in favor of people with autism are analyzed, reach-
ing the research problem, pertinent to the importance of promoting
full and effective participation in society, recognition of their individ-
ual capacities and abilities, the promotion of of their autonomy and
independence, provision of adequate services and support for their
needs, noting that the rights present in the New York Convention do
not become effective by themselves, requiring awareness, accessibil-
ity, adaptations and solidarity. In the end, feasible solutions are pro-
posed, aiming to ensure full access to the set of guaranteed rights, in
order to carry out the effective social inclusion of people with autism.

Keywords: New York Convention. Autism. Inclusion.


CAPÍTULO III.
DIREITO À DESCONEXÃO NA AMÉRICA
LATINA: ESTUDO COMPARADO ENTRE
BRASIL E COLÔMBIA

Hélio Barbosa Hissa Filho*

DOI: 10.29327/5341937.1-3

Resumo: Investiga-se o direito à desconexão na América Latina, em


estudo comparado entre Brasil e Colômbia, verificando-se, inicial-
mente, a natureza daquele no contexto dos direitos humanos, bem
como o identificando no ordenamento jurídico pátrio. Em seguida,
será averiguada a compatibilidade entre a Lei nº. 2.191, de seis de ja-
neiro de 2022, que o regulamentou em território colombiano, e o or-
denamento jurídico brasileiro, a fim de que se possa aferir se a refe-
rida norma pode servir de base para o legislador nacional. Para tanto,
foi realizado estudo propositivo, visando ao enriquecimento cientí-
fico a partir do direito comparado, bem como documental e bibliográ-
fico, fruto da análise da legislação nacional e internacional e de traba-
lhos científicos, tais como artigos e dissertações. A pesquisa caracte-
riza-se ainda por ser: hipotético-dedutiva, uma vez que tem como
ponto de partida a existência de lacuna jurídica; exploratório-descri-
tiva, já que trará maior proximidade com o direito à desconexão no

* Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC); especialista em


Direito do Trabalho pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá (FIJ); analista
judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 7ª Região (CE), onde exerce a fun-
ção comissionada de assistente de juiz; ID Lattes: 8640135358639379; e-mail: he-
liohissafilho@alu.ufc.br.
Hélio Barbosa Hissa Filho | 93
Brasil e na Colômbia, e qualitativa, posto que não tem por escopo re-
presentação numérica, mas a compreensão aprofundada do tema es-
tudado.
Palavras-chave: Desconexão. Lazer. Desligar. Trabalhador.

Introdução

A sociedade contemporânea mantém-se hiperconec-


tada ao trabalho, com uma mistura entre este e a vida pessoal,
em decorrência, principalmente, do uso de ferramentas tecno-
lógicas para a prestação dos serviços. Ligações telefônicas e
mensagens enviadas por redes sociais e correio eletrônico após
o expediente laboral, a qualquer momento do dia ou da noite (e
até mesmo de madrugada), são exemplos de como as questões
profissionais têm avançado sobre o tempo de convivência social
e familiar do trabalhador.
Nesse diapasão, emergiu primeiramente na França,
em 2016, o chamado direito à desconexão, com a finalidade de
assegurar que, após encerrada a jornada laboral, os trabalhado-
res não sejam demandados por seus patrões em relação a ques-
tões vinculadas ao trabalho. O referido direito já foi positivado
em outros países da Europa, adquirindo dimensão global ao ser
reconhecidos também por Estados em outros continentes, a
exemplo da Colômbia, o que, entretanto, ainda não ocorreu no
Brasil de maneira expressa.
O presente estudo terá por objetivo geral analisar a
desconexão na América Latina, em estudo comparado entre
Brasil e Colômbia. Em um primeiro momento, será verificada a
natureza daquela no contexto dos direitos humanos para, em
Direito à desconexão na América Latina:
94 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

seguida, identificá-la no ordenamento jurídico brasileiro. Poste-


riormente, será averiguada a compatibilidade deste com a Lei
nº. 2.191, de seis de janeiro de 2022, que regulamentou a desco-
nexão em território colombiano, a fim de que se possa aferir se
a referida norma pode servir de base para o legislador nacional.
Ressalte-se que embora a lei colombiana assegure a
desconexão para os servidores públicos e aos trabalhadores da
iniciativa privada, a situação daqueles não será analisada no
presente capítulo, já que, no Brasil, submetem-se a regime jurí-
dico estatutário. Portanto, o cap terá por escopo apenas os em-
pregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), a fim de que se possa fazer uma averiguação mais pre-
cisa.
Justifica-se a análise comparada com a Colômbia
porque, sendo este um país da América do Sul, a proximidade
geográfica, histórica e cultural com o Brasil torna as soluções
encontradas naquele país mais semelhantes da realidade brasi-
leira, o que pode contribuir de maneira mais precisa para a elu-
cidação ao problema apresentado.
Por fim, é importante destacar que a pesquisa reali-
zada é bibliográfica e documental, baseada na análise de artigos
científicos, trabalhos acadêmicos (dissertação), Constituição Fe-
deral de 1988, leis, tratados e declarações internacionais. Tam-
bém é propositiva, pois visa ao enriquecimento científico a par-
tir do direito comparado.
Ainda é: hipotética-dedutiva, já que parte de uma la-
cuna no ordenamento jurídico brasileiro; exploratória-descri-
tiva, uma vez que propiciará maior familiaridade com o direito
à desconexão no Brasil e na Colômbia, e qualitativa. A coleta e
a análise de dados para a verificação do fenômeno jurídico não
serão reduzidas numericamente.
Hélio Barbosa Hissa Filho | 95
1. A desconexão do trabalhador no contexto dos direitos
humanos

A desconexão, nos termos do artigo 3º da Lei colom-


biana nº 2.191, de seis de janeiro de 2022, trata-se do direito as-
segurado aos servidores públicos e aos trabalhadores da inicia-
tiva privada de não serem contatados, por qualquer meio ou
ferramenta, tecnológica ou não, sobre questões relacionadas ao
trabalho, após encerrada a jornada laboral, quando então os em-
pregadores deverão abster-se de formular requerimentos ou or-
dens.
Trata-se de um direito que ganha relevância na soci-
edade contemporânea, na medida em que o avanço tecnológico
não traz apenas benefícios. O uso abusivo da informática, sem
preocupação ética, permite que o trabalho invada a esfera indi-
vidual das pessoas, com danos à saúde, intimidade e vida pri-
vada dos trabalhadores, bens que a desconexão visa a proteger,
já que tem por objetivo assegurar momentos de lazer e convi-
vência social e familiar do obreiro, sem preocupação com ques-
tões profissionais.
Nesse contexto, é importante destacar o relatório
Working any time, anywhere: The effects on the world of work, elabo-
rado pela EUROFOUND e pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT) em 2017, que identificou como desvantagens do
uso de tecnologias da informação e comunicação: tendência
para originar horários mais longos de trabalho, para criar uma
sobreposição entre este e a vida pessoal (interferência trabalho-
casa) e para gerar uma intensificação da atividade laboral (EU-
ROFOUND; OIT, 2017, p. 1).
Direito à desconexão na América Latina:
96 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

O aludido relatório cita estudo de 2012 que mostra


que 68% dos trabalhadores espanhóis receberam e-mails ou te-
lefonemas após a jornada laboral. Já na Finlândia, 65% dos tele-
trabalhadores relataram que foram contatados sobre assuntos
do trabalho fora do horário deste, principalmente por correio
eletrônico, em 2013. Na Suécia, 53% dos entrevistados de uma
pesquisa com trabalhadores móveis e não móveis em 2013 dis-
seram estar disponíveis após o horário normal de labor (EU-
ROFOUND; OIT, 2017, p. 23).
É possível constatar que a desconexão encontra fun-
damento no artigo 24 da Declaração Universal dos Direitos do
Homem (DUDH), já que esta dispõe que a todas as pessoas deve
ser garantido o repouso, o lazer, a limitação da jornada de tra-
balho e as férias remuneradas (ONU, 1948). Segundo Piovesan,
a DUDH introduziu a concepção dos direitos humanos contem-
porânea, pós Segunda Guerra Mundial, em que aqueles se ca-
racterizam por serem: universais, haja vista que sua titularidade
tem como único requisito a condição de pessoa, e indivisíveis,
uma vez que a garantia dos direitos sociais, econômicos e cul-
turais só é possível se também forem observados os de natureza
civil e política e vice-versa, formando uma unidade indivisível,
interdependente e inter-relacionada (PIOVESAN, 2015, p. 49).
No que tange à desconexão, vislumbra-se seu caráter
universal, já que independentemente da nacionalidade, raça,
sexo, cor ou etnia, o trabalhador, em qualquer lugar da Terra,
tem a necessidade de descanso, lazer e convivência social e fa-
miliar. Tanto é que se estima, segundo o relatório Joint Estimate-
softheWork-relatedBurdenofDiseaseandInjury, 2000-2016: Global
Monitoring, elaborado em conjunto pela OIT e pela OMS e pu-
blicado em 2021, que em 2016, 744.924 pessoas morreram em
Hélio Barbosa Hissa Filho | 97
todo o planeta por causas atribuíveis à excessiva jornada de tra-
balho (superior a 55 horas por semana), sendo esta identificada
como o principal fator de risco ocupacional (OIT; OMS, 2021, p.
35).
Quanto à indivisibilidade, o Protocolo de San Salva-
dor, adicional ao Pacto de San José da Costa Rica, dispõe no
preâmbulo que as diversas categorias de direitos formam uma
unidade que não se divide e que se baseia na dignidade dos se-
res humanos, de maneira que a violação de uns em favor de ou-
tros é injustificável (OEA, 1988). Ademais, em seu artigo 7º, ca-
put, “g” e “h”, assevera que os Estados Partes deverão garantir:
a limitação razoável das horas de trabalho por dia e por semana;
repouso; gozo do tempo livre; férias remuneradas e o paga-
mento de salários nos dias feriados nacionais (OEA, 1988).
Por todo o exposto, pode-se concluir que a descone-
xão ostenta natureza de direito humano fundamental, o que, in-
clusive, foi reconhecido expressamente na Resolução do Parla-
mento Europeu de 21 de janeiro de 2021 (alínea “h” do preâm-
bulo), a qual contém recomendações à Comissão sobre o direito
a desligar (PE, 2021). Este, como visa a garantir o descanso, o
lazer e convivência social dos trabalhadores, decorre tão so-
mente da condição humana, sendo, assim, universal.
Além disso, é indivisível, posto que o repouso, o la-
zer e a própria saúde não podem ser garantidos plenamente
quando o empregado está submetido a excesso de jornada, ou
seja, sem a desconexão não há como assegurar outros direitos.
Por outro lado, não há prevalência do desenvolvimento econô-
mico sobre o desligamento, já que isso poderá causar a morte
de trabalhadores, como já vem ocorrendo, segundo constatado
pela OIT e pela OMS.
Direito à desconexão na América Latina:
98 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

2. O direito à desconexão no ordenamento jurídico


brasileiro

A desconexão dos trabalhadores no Brasil, ao contrá-


rio do que ocorre na Colômbia, não está prevista de forma ex-
pressa no ordenamento jurídico, apesar de o Estado brasileiro
ter como fundamentos, entre outros, a dignidade da pessoa hu-
mana e o valor social do trabalho, de acordo com o artigo 1º, III
e IV, da Constituição Federal de 1988.
O valor social do trabalho corresponde à dimensão
objetiva da dignidade da pessoa humana nas relações laborais
e impõe a garantia do patamar civilizatório mínimo. Este resta
consubstanciado nos direitos previstos nos artigos 7º a 11º da
Lei Maior, sem prejuízo de outros porventura estabelecidos na
legislação infraconstitucional, tratados internacionais, senten-
ças normativas, instrumentos coletivos e até atos administrati-
vos, desde que propiciem a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores (SENA, 2019, p. 141, 149 e 150).
Portanto, com base no artigo 7º, XIII, XIV, XV, XVI,
XVII, XVIII e XIX, da Lei Maior, pode-se afirmar que os seguin-
tes direitos constituem o mínimo existencial assegurado aos tra-
balhadores brasileiros urbanos e rurais: limite da jornada de
oito horas diárias e 44 semanais, facultada a compensação ou
redução por meio de convenção ou acordo coletivo; expediente
de seis horas para quem trabalha em turnos ininterruptos de re-
vezamento, salvo negociação coletiva; repouso semanal remu-
nerado, preferencialmente aos domingos; horas extras com
acréscimo de, no mínimo, 50%; férias anuais remuneradas com,
pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; licença à
gestante e paternidade.
Hélio Barbosa Hissa Filho | 99
Os incisos supra elencam direitos fundamentais, o
que se constata seja pelo critério formal, já que estão inseridos
no Título II da Constituição (DOS DIREITOS E GARANTIAS
FUNDAMENTAIS), seja por sua própria natureza, pois como
já exposto, decorrem do valor social do trabalho e integram o
patamar civilizatório mínimo assegurado aos trabalhadores.
Em última análise, todos têm por finalidade assegurar períodos
de repouso, o que, de acordo com Souto Maior, é a expressão
típica da desconexão no trabalho (SOUTO MAIOR, 2003, p.
310).
É importante ter em vista também que o Brasil rege-
se, nas suas relações internacionais, pela prevalência dos direi-
tos humanos, bem como que os direitos e garantias expressos
na Lei Maior não excluem outros que decorram dos princípios
e do regime por ela adotados, ou dos tratados internacionais em
que o Estado brasileiro seja parte (artigo 4º, II, e 5º, § 2º, da Cons-
tituição Federal).
Assim, as declarações e normas internacionais que
asseguram o efetivo descanso e o tempo livre dos trabalhadores
também fundamentam a desconexão no Brasil, a exemplo dos
artigos 24 da DUDH, XV da Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem e 7º, caput, “g” e “h”, do Protocolo de San
Salvador. Acrescente-se o artigo 7º, “d”, do Pacto Internacional
dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, das Nações Uni-
das, que garante o lazer, repouso, a limitação razoável da jor-
nada laboral, férias remuneradas periódicas e a remuneração
dos feridos.
É importante ressaltar, ainda, que no artigo 6º da
Constituição foram reconhecidos expressamente como direitos
sociais o lazer e o trabalho. Aquele, segundo Calvet, sob o as
Direito à desconexão na América Latina:
100 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

pecto jurídico, trata-se do direito das pessoas de desenvolve-


rem-se do ponto de vista existencial, atingindo suas aptidões ao
máximo nas relações que mantêm com o Estado e com os outros
indivíduos, bem como pelo usufruto do tempo livre como me-
lhor aprouver (CLAVET, 2005, p.103). A desconexão do traba-
lho sem dúvidas contribui para a efetivação de tal desenvolvi-
mento humano, ao propiciar a existência de lapso temporal li-
vre, sem obrigações profissionais.
O artigo 170, caput, da Lei Maior, por sua vez, asse-
vera que a ordem econômica funda-se na valorização do labor
humano e tem por fim assegurar a todos existência digna, con-
forme os ditames da justiça social, razão pela qual se pode cons-
tatar que o direito à desconexão existe no Brasil, já que tem na-
tureza de direito humano fundamental e que decorre tanto das
normas positivadas expressamente tanto no texto da Lei Maior,
quanto das internacionais.
Veja-se que o trabalhador não tem como descansar e
nem desconectar-se das questões relacionadas ao trabalho se
está em permanente sobreaviso. Ademais, a jornada laboral
torna mais difícil ou até mesmo impossibilita a melhor qualifi-
cação profissional, circunstâncias que fragmentam a condição
humana do obreiro e colocam em risco a própria existência
deste, bem como sua dignidade (BRUNO DA SILVA; COSTA
MACIEAL, 2018, p. 37). Por sua vez, Almeida e Silva reconhe-
cem que a desconexão está atrelada aos direitos fundamentais
(ALMEIDA; SILVA, 2021, p. 14).
No plano infraconstitucional do ordenamento jurí-
dico interno, a desconexão encontra fundamento ainda na CLT,
na qual se destacam, por exemplo, os seguintes artigos: 66, que
versa sobre o intervalo mínimo de 11 horas entre duas jornadas;
Hélio Barbosa Hissa Filho | 101
67 a 70, que tratam do repouso semanal e dos trabalhos aos do-
mingos; 71, que disciplina a pausa para descanso e alimentação
durante um mesmo expediente laboral e 134 a 153, que regula-
mentam as férias.
A jurisprudência do TST já reconheceu a existência
do referido direito, corroborando, assim, o entendimento de
Marques Júnior, segundo o qual a concreção materializada dos
direitos fundamentais sociais, na contemporaneidade, tem o Po-
der Judiciário como protagonista, em atenção aos valores que
emergem do neoconstitucionalismo inclusivo (MARQUES JÚ-
NIOR, 2014, p. 7).
Nesse aspecto, tem como exemplo decisão da 7ª
Turma, em 2017, por meio da qual foi negado provimento ao
AIRR nº. 2058-43.2012.5.02.0464, mantendo a condenação da
empregadora ao pagamento de indenização por danos morais
oriundos do atentado ao direito de desconexão, configurado
pelo regime de sobreaviso imposto pela empresa, que durava
14 dias seguidos.
De acordo com a fundamentação do acórdão, a
ofensa ao direito à desconexão resta caracterizada pela exigên-
cia de que o trabalhador esteja conectado por meio de smar-
tphone, notebook ou BIP, após a jornada laboral ordinária, pois
assim o empregado fica impossibilitado de ir a locais distantes,
que não possuam sinal telefônico ou de internet, sendo privado
de sua liberdade para gozar do tempo de descanso.
Por todo o exposto, sendo a desconexão um direito
humano fundamental cuja existência já foi reconhecida pelo
TST, entende-se que já integra o ordenamento jurídico brasileiro
independentemente de estar expressamente positivado em de-
terminado artigo de lei. Reconhece-se, porém, que o tema não é
pacífico. Almeida e Silva, por exemplo, afirmam que, enquanto
Direito à desconexão na América Latina:
102 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

parte dos autores entende que a desconexão seria um próprio


direito fundamental, outros defendem a necessidade de regula-
ção específica (ALMEIDA; SILVA, 2021, p. 14).
Há, portanto, um cenário de insegurança jurídica que
pode ser superado caso a desconexão seja regulamentada por
lei. Além disso, o relatório Working From Home From Invisibility
to Decent Work, da OIT, publicado em 2021, constatou, em rela-
ção às pessoas que trabalham em seus domicílios, que a intro-
dução de um “direito de desconexão” nos ordenamentos jurídi-
cos dos países, como ocorreu na França e em outros Estados,
ajuda a proteger a saúde dos trabalhadores e também é uma im-
portante medida política para limitar o tempo de trabalho (OIT,
2021, p. 258 e 266).
Nesse contexto, é importante destacar a chamada
síndrome de burnout, a qual foi reconhecida na 11ª revisão da
Classificação Internacional de Doenças (CID-11), da Organiza-
ção Mundial de Saúde (OMS), no ano de 2022, como problema
de saúde associado ao emprego e ao desemprego, que se refere
especificamente a fenômenos no contexto ocupacional e não
deve ser utilizada para descrever experiências em outras áreas
da vida (OMS, 2022).
Tendo em vista que a referida enfermidade decorre
de situação de estresse no ambiente de trabalho, a regulamen-
tação do direito ao desligamento, ao coibir o labor em horários
de descanso, pode contribuir para evitá-la. Almeida e Silva, in-
clusive, afirmam que o referido direito pode ser enquadrado em
face das consequências da doença sob comento (ALMEIDA;
SILVA, 2021, p. 14).
Portanto, embora a desconexão esteja prevista em
leis de outros países e o artigo 8º, caput, da CLT, autorize o uso
Hélio Barbosa Hissa Filho | 103
do direito comparado para suprir lacunas do ordenamento ju-
rídico brasileiro, entende-se importante regulamentar, por lei
específica, o direito sob comento, seja para afastar o cenário de
insegurança jurídica, seja por ser, a positivação, medida que
tem contribuído para garantir o efetivo descanso dos trabalha-
dores e proteger a saúde destes.

3. Análise da compatibilidade da Lei nº 2.191/2022 da


Colômbia com o ordenamento jurídico do Brasil

A desconexão dos trabalhadores foi positivada na


Colômbia por meio da Lei nº 2.191, de seis de janeiro de 2022. A
regulamentação no Brasil contribui para a superação das assi-
metrias regionais e para a ampliação da cidadania social, pois
viabiliza condições de trabalho mais dignas e que não aviltam a
condição humana, fatores que, segundo Marques Júnior, são ne-
cessários para o êxito do processo de desenvolvimento do valor
democrático na América do Sul (MARQUES JÚNIOR, 2014, p.
228). Isso posto, passa-se a analisar a norma sob comento.

3.1. Objeto da Lei (art. 1º)

O artigo 1º da Lei nº. 2.191/2022 dispõe que esta tem


por objeto criar, regular e promover a desconexão dos trabalha-
dores em relação aos diferentes tipos de contrato de trabalho
previstos no ordenamento jurídico, bem como quanto aos vín-
culos legais ou regulatórios, a fim de assegurar o gozo efetivo
do tempo livre e de descanso, férias, folgas autorizadas e licen-
ças, para a conciliação das esferas pessoal, familiar e profissio-
nal dos obreiros.
Direito à desconexão na América Latina:
104 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

Nesse contexto, o referido artigo dispensa maior


aprofundamento, posto que apenas explicita a finalidade da
desconexão no mesmo sentido já exposto nos capítulos anterio-
res, que é propiciar o repouso dos profissionais após encerrada
a jornada de trabalho. Assim, está em plena consonância com o
valor social do trabalho e com a dignidade da pessoa humana,
que fundamentam a Lei Maior brasileira.

3.2. Princípios Orientadores (art. 2º)

O artigo 2º assevera que a desconexão norteia-se pe-


los princípios constitucionais referentes ao Direito do Trabalho,
pelas convenções da OIT ratificadas pela Colômbia e por todas
as normas relacionadas com a finalidade da lei sob comento.
Analisando-se a Lei Maior colombiana, verifica-se
logo no artigo 1º que se fundamenta no respeito à dignidade da
pessoa humana e ao trabalho, o qual se trata de um direito que
goza de especial proteção do Estado e que é assegurado a todos
em condições dignas e justas (artigo 25). Além disso, restam
proibidas a escravidão e a servidão (artigo 17).
Já no artigo 53 observa-se que o Estatuto do Trabalho
(ET) deverá levar em consideração, entre outros, os princípios
da Interpretação Mais Benéfica ao Trabalhador e da Primazia da
Realidade, bem como a necessidade de descanso. Ademais, a
lei, os contratos, os acordos e convenções não podem atentar
contra a dignidade humana, a liberdade e os direitos dos traba-
lhadores. Portanto, a Lei Maior da Colômbia está em consonân-
cia com os artigos 1º, III e IV, 6º, 7º, XIII e 170, caput, da Consti-
tuição brasileira.
Além disso, os mencionados princípios que funda-
mentam o ET também norteiam o Direito do Trabalho brasileiro
Hélio Barbosa Hissa Filho | 105
(MARTINS, 2015, p. 278). Sob outro enfoque, Colômbia e Brasil
ratificaram as convenções da OIT números 14 e 106, ambas re-
ferentes ao descanso semanal, mas aquela dos trabalhadores da
indústria e esta dos do comércio e escritórios (OIT, online). Ade-
mais, o já citado relatório Working From Home From Invisibility to
Decent Work, da OIT, já constatou as vantagens de positivar o direito
à desconexão.
Em face do exposto, observa-se que as Constituições
dos dois países estão em consonância no que tange à limitação
de jornada e descanso dos trabalhadores, que ambos adotam
princípios do Direito do Trabalho convenções da OIT comuns e
que esta já tem estudo asseverando ser positiva a inclusão do
direito ao desligamento nos ordenamentos jurídicos. Assim, o
artigo 2º da Lei nº. 2.191/2022 também é compatível com a legis-
lação brasileira.

3.3. Conceito (art. 3º)

O artigo 3º da Lei colombiana nº 2.191/2022 traz o


conceito de desconexão já exposto no capítulo dois do presente
estudo e que serviu de base para este. Sua compatibilidade com
o ordenamento jurídico brasileiro decorre, em síntese, por tra-
tar-se de um direito humano fundamental, oriundo dos valores
sociais do trabalho e da dignidade da pessoa humana e que, in-
clusive, já foi reconhecido pelo TST.
Direito à desconexão na América Latina:
106 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

3.4. Garantia do direito à desconexão (art. 4º)

Dispõe o artigo 4º, caput, da Lei nº. 2.191/2022, que a


desconexão é assegurada aos trabalhadores da iniciativa pri-
vada e aos servidores públicos após encerrada a jornada de tra-
balho, quando poderão desfrutar, de maneira plena e efetiva,
dos períodos de descanso, licenças, férias, folgas autorizadas e
de suas vidas pessoais e familiares. O direito será exercido de
acordo com a natureza do cargo, segundo apropriado ao setor
público ou privado.
O aludido dispositivo legal reforça os objetivos da
desconexão já elencados nos artigos 1º e 3º e traz de novo apenas
a ressalva de que o direito será exercido conforme a natureza do
cargo ocupado pelo trabalhador. Contudo, não especifica quais
seriam as modalidades do desligamento aplicáveis aos diferen-
tes tipos de jornadas e funções, deixando um vácuo normativo.
Já o parágrafo primeiro assevera que qualquer cláu-
sula ou acordo que contrarie o objeto da Lei nº. 2.191/2022, ou
vá de encontro às garantias nesta estabelecidas, será ineficaz.
Está em consonância com o artigo 166, II e VI, do Código Civil
brasileiro, segundo o qual é nulo o negócio jurídico quando seu
objeto for ilícito, bem como quando se pretende fraudar lei im-
perativa. Ainda que nulidade e ineficácia não se confundam, os
ordenamentos jurídicos dos dois países são compatíveis, na me-
dida em que vedam a pactuação de contratos em desacordo com
a lei.
Destaque-se, contudo, que o artigo 7º, XXVI, da
Constituição do Brasil, preceitua que o reconhecimento das con-
venções coletivas de trabalho (CCT) e dos acordo coletivos de
trabalho (ACT) é direito dos trabalhadores urbanos e rurais. Já
Hélio Barbosa Hissa Filho | 107
o artigo 611-A, I, da CLT, assevera que as referidas normas co-
letivas prevalecem sobre a lei quando dispuserem sobre a jor-
nada de trabalho, observados os limites constitucionais.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Re-
curso Extraordinário com Agravo (ARE) nº. 1121633, fixou tese
com repercussão geral (tema nº. 1.046) no sentido de que são
válidos os ACTs e as CCTs que limitem ou afastem direitos tra-
balhistas, independentemente de explicitarem vantagens com-
pensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente
indisponíveis.
Nesse contexto e tendo em vista que a desconexão
tem natureza de direito humano fundamental, caracterizando-
se por ser universal e indivisível, bem como por decorrer da
dignidade humana e do valor social do trabalho, entende-se ser
também absolutamente indisponível, de maneira que não pode
ser excluído por normas coletivas, principalmente em relação
aos períodos de férias, descanso semanal remunerado, licença-
maternidade e licença-paternidade, pois o artigo 611-B, IX, XII,
XIII e XIV, da CLT, veda a supressão ou redução desses direitos
por ACT ou CCT.
O parágrafo 2º do artigo 4º, da Lei nº. 2.191/2022, por
sua vez, assevera que a ofensa à desconexão poderá caracterizar
assédio no trabalho, desde que presentes as características esta-
belecidas na Lei nº 1.010 de 2006. Esta dispõe sobre as medidas
para prevenir, corrigir e sancionar assédio nas relações laborais,
o que pode ocorrer, de acordo com o artigo 2.2, quando é im-
posta, de maneira reiterada ou arbitrária, excessiva jornada de
trabalho para induzir o trabalhador a pedir demissão.
Entende-se por assédio moral no Brasil, segundo
Calsing e Calsing, a exposição dos trabalhadores a situações hu-
milhantes e vexatórias, causando sofrimento e podendo gerar
Direito à desconexão na América Latina:
108 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

distúrbios psicológicos nas vítimas, inclusive burnout. As referi-


das autoras informam ainda, com base em dados do Ministério
do Trabalho e Emprego (MTE) brasileiro, que entre as condutas
abusivas mais comuns estão: exigir, sem necessidade, trabalhos
urgentes; sobrecarga de tarefas e imposição de horários injusti-
ficados (CALSING; CALSING, 2012, p. 108-111).
Portanto, se a ofensa à desconexão no Brasil implicar,
por exemplo, horários de trabalho sem justificativa e tarefas so-
licitadas desnecessariamente com urgência, deixando o funcio-
nário humilhado, pode caracterizar assédio se causar transtor-
nos à saúde daquele, ou mesmo se a intenção do empregador
for compelir o empregado a pedir demissão, ainda que não
cause dano físico ou psicológico.
Assim, entende-se que o artigo 4º da Lei nº 2.191/2022
é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, embora fa-
lhe ao não especificar como será exercido o direito à desconexão
de acordo com a natureza do cargo ocupado pelo trabalhador.

3.5. Política de desconexão no trabalho (art. 5º)

Todo empregador, seja pessoa física ou jurídica, pú-


blico ou privado, tem a obrigação, nos termos do artigo 5º da
Lei nº. 2.191/2022 da Colômbia, de ter em suas normas internas
uma política de desconexão no trabalho, a qual, no mínimo, de-
finirá: a forma como esta será exercida e assegurada, contendo
as diretrizes para o uso das TICs; um procedimento que deter-
mine os meios e os mecanismos para que os trabalhadores ou
servidores públicos possam, quando ofendido seu direito, ofe-
recer denúncia em nome próprio ou anonimamente, bem como
um procedimento interno que garanta o devido processo no trâ
Hélio Barbosa Hissa Filho | 109
mite dessas denúncias, que estabeleça meios de solução do con-
flito, verificação do cumprimento dos acordos pactuados e o tér-
mino da conduta abusiva.
Observa-se a implementação do denominado compli-
ance trabalhista, o qual equivale a uma cultura preventiva de
adequação e conformidade da empresa às leis e regulamentos,
entre outras normas nacionais e internacionais, que tem por ob-
jetivo principal o respeito aos direitos humanos e fundamentais
dos trabalhadores, inclusive à dignidade da pessoa humana e
aos valores sociais do trabalho, que deverão ser priorizados.
Tem como ferramentas mais importantes, além das atividades
de capacitação e palestras, os regulamentos internos, códigos de
conduta, sanções disciplinares e canais de denúncias (CAR-
LOTO, 2023, p. 22, 29 e 34).
Em que pese a norma sob comento ser um avanço, é
importante ressaltar, como afirma Queiroz, que aquela não es-
tabeleceu um procedimento claro e eficaz, com as sanções que
devem ser adotadas em caso de ofensa ao direito. A política de
desconexão ficou ao arbítrio do empregador e faltam mecanis-
mos efetivos que limitem o tempo de labor (QUIROZ, 2022, p.
44).
Nesse contexto, percebe-se o artigo 5º sob comento,
ao estabelecer o compliance para assegurar a desconexão dos tra-
balhadores, é compatível com o ordenamento jurídico brasi-
leiro. É importante destacar também que, nos termos da súmula
nº. 51, I, do TST, as normas internas das empresas integram o
contrato de trabalho, de maneira que futuras modificações que
revoguem ou alterem as vantagens deferidas anteriormente so-
mente se aplicarão aos empregados contratados após a mu-
dança.
Direito à desconexão na América Latina:
110 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

Por fim, entende-se que, para superar as críticas


apontadas, a política de desconexão poderia ser estabelecida, no
Brasil, por meio de acordo coletivo de trabalho, hipótese em que
seria garantida a participação dos trabalhadores por meio do
sindicato e, no mínimo, poderia ser estabelecida multa a ser
paga pelo empregador em caso de descumprimento do pactu-
ado.

3.6. Exceções (art. 6º)

Verifica-se no artigo 6º da Lei nº. 2.191/2022 que o di-


reito à desconexão não se aplica aos trabalhadores da iniciativa
privada ou servidores públicos que exerçam cargo de direção,
confiança e gestão, ou que desempenhem funções que exijam
disponibilidade permanente, como os profissionais da segu-
rança pública e órgão de socorro, o que se entende abranger, por
exemplo, policiais, bombeiros e médicos.
O desligamento também não é assegurado, de
acordo com o mencionado dispositivo legal, em situações de
caso fortuito ou força maior em que a colaboração do empre-
gado ou servidor público seja necessária para solucionar pro-
blemas difíceis ou urgentes, mas desde que, justificadamente,
não exista outra alternativa viável à convocação do trabalhador
ao serviço.
Isso posto, observa-se no artigo 62, II, consolidado,
que aos gerentes, assim considerados os que exercem cargos de
gestão, aos quais se equiparam os diretores e chefes de departa-
mento ou filial, não se aplicam as normas celetistas acerca da
duração do trabalho, de maneira que, em uma primeira leitura,
seria possível concluir que a lei colombiana está em consonân-
cia com a CLT.
Hélio Barbosa Hissa Filho | 111
Entretanto, foi a própria Constituição Federal de
1988, como já exposto, que assegurou a todos os trabalhadores
urbanos e rurais, sem distinção, o limite de jornada de oito ho-
ras diárias e 44 semanais, as férias anuais remuneradas e o des-
canso semanal remunerado. Como ressalta Souto Maior, o em-
pregador não pode utilizar as forças do alto empregado, diretor,
ou que exerce cargo de confiança, gestão e, principalmente che-
fes de departamento ou filial, 24 horas por dia, o que tem sido
possibilitado com o avanço tecnológico (SOUTO MAIOR, 2003,
p. 303).
Assim, entende-se que a desconexão precisa ser asse-
gurada mesmo aos que exercem cargo de gestão e confiança, até
porque, como ressaltam Alvarenga e Boucinhas Filho, o exces-
sivo volume de trabalho pode ocasionar dano existencial, na
medida em que impossibilitar o empregado de praticar ativida-
des culturais, sociais, recreativas, afetivas e familiares, ou de-
senvolver projetos de vida profissional, social e pessoal (ALVA-
RENGA; BOUCINHAS FILHO, 2013 p. 244).
No que tange aos trabalhadores cuja natureza do
cargo exija disponibilidade permanente, tem-se que se este for
de gestão, reitera-se o que já foi afirmado. Caso contrário, é pre-
ciso verificar se os obreiros cumprem expediente externo in-
compatível com o controle de horário ou laboram em teletraba-
lho, haja vista que também foram excluídos das normas celetis-
tas acerca da duração do trabalho (artigo 62, I, e III da CLT). Se
a resposta for negativa, a questão dispensa maior aprofunda-
mento, pois estão sujeitos, no Brasil, aos mesmos limites de jor-
nada dos trabalhadores em geral, fazendo jus à desconexão.
Em relação aos empregados que precisam estar dis-
poníveis de maneira permanente e que têm jornada externa in-
compatível com o controle de horário, ou laboram em regime
Direito à desconexão na América Latina:
112 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

de teletrabalho, também lhes é assegurado o desligamento, pois


não se pode exigir que estejam à disposição 24 horas por dia. A
impossibilidade de registro de ponto para quem trabalha fora
das dependências da empresa não significa trabalho sem fim.
É importante que não se evite a discussão do ponto
de vista jurídico sob a presunção falsa de que o trabalho externo
não está sujeito a limite, por estar longe dos olhos do emprega-
dor (SOUTO MAIOR, 2003, p. 307). Entende-se que este deve
fazer escala de revezamento, a fim de assegurar o efetivo des-
canso de todos.
No que tange às situações que envolvem necessidade
imperiosa do serviço por motivo de força maior, o artigo 61, §
2º, da CLT, autoriza, excepcionalmente, a extensão da jornada
até o limite de 12 horas, ou seja, é possível que sejam prestadas
quatro horas extras. Portanto, se após esse período não pode
mais haver a prestação dos serviços, deve ser assegurada a des-
conexão.
Em face do exposto, conclui-se ser incompatível com
o ordenamento jurídico brasileiro excluir, do direito à descone-
xão, os empregados que exercem cargos de direção, confiança e
gestão, ou que desempenhem funções que exijam disponibili-
dade permanente. Já nas situações de força maior, às quais se
equipara o caso fortuito, o desligamento pode ser suprimido,
porém até o limite de 12 horas de jornada.

3.7. Inspeção e vigilância (art. 7º)

Conforme preceitua o artigo 7º da Lei nº. 2.191/2022,


o servidor público ou o trabalhador que entenda que o seu di-
reito à desconexão tenha sido vulnerado, poderá denunciar o
caso ao Inspetor do Trabalho ou à Procuradoria-Geral da Nação
Hélio Barbosa Hissa Filho | 113
(PGN) competente no lugar dos fatos. O denunciante terá que
detalhar os fatos e anexar prova sumária destes. Em seguida, o
inspetor ou o funcionário competente da PGN comunicará o
empregador para que instaure os procedimentos estabelecidos
no artigo 5º da norma sob análise.
Os inspetores do trabalho, de acordo com o artigo 1º
da Lei nº. 1.610/2013, da Colômbia, exercem funções de inspe-
ção, controle e vigilância em todo o país e apreciam questões
trabalhistas individuais e coletivas do setor privado, bem como
de direito coletivo do setor público. Portanto, assemelham-se à
figura dos auditores-fiscais do Ministério do Trabalho no Brasil,
embora as competências não sejam exatamente iguais. Já a
PGN, nos termos do artigo 1º, do Decreto-Lei colombiano nº.
262/2000, trata-se da instância máxima do Ministério Público.
Tendo em vista que o Brasil possui instituições seme-
lhantes às previstas na lei da Colômbia para receber denúncias
sobre ofensa à desconexão, tem-se que o artigo sob comento é
compatível com o ordenamento jurídico pátrio. Ressalve-se,
contudo, que a competência do Ministério Público do Trabalho
brasileiro, nos termos do artigo 83, III e IV, da Lei Complemen-
tar nº 75/1993, está relacionada à proteção dos direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos dos trabalhadores, de ma-
neira que a denúncia apenas seria cabível na hipótese de ofensa
coletiva à desconexão.
Registre-se, por fim, que o artigo 8º, III, da Constitui-
ção Federal de 1988 assegura aos sindicatos a defesa, em ques-
tões judiciais ou administrativas, dos interesses coletivos ou in-
dividuais da categoria, razão pela qual os trabalhadores, no Bra-
sil, também podem denunciar às entidades sindicais eventual
ofensa ao desligamento, mesmo que esta não ultrapasse a esfera
individual de um empregado.
Direito à desconexão na América Latina:
114 | estudo comparado entre Brasil e Colômbia

Considerações finais

Analisando-se as declarações e tratados internacio-


nais firmados pelo Brasil, bem como a Constituição Federal de
1988 e o próprio ordenamento jurídico interno do país, especi-
almente a CLT, constata-se que aquele se comprometeu a pro-
mover a dignidade humana e o valor social do trabalho, dos
quais se extrai o direito dos trabalhadores ao descanso, lazer e
à convivência social e familiar, que é o objeto da desconexão.
O desligamento enquadra-se na concepção atual de
direitos humanos, posto que universal, já que todas pessoas ne-
cessitam de repouso e conviver com amigos e familiares. Ade-
mais, entende-se ser indivisível, na medida em que não pode
ser suprimido a pretexto de assegurar outros direitos, notada-
mente o do desenvolvimento, que deve vir junto com a promo-
ção da vida pessoal.
A desconexão, portanto, resta assegurada pelo orde-
namento jurídico brasileiro, ainda que não esteja positivada de
forma expressa. Interpretação em sentido contrário vai de en-
contro aos fundamentos que norteiam a Constituição Federal de
1988. Entretanto, como há divergências a respeito do tema, a re-
gulamentação em dispositivo legal próprio contribuirá para
maior segurança jurídica e para a efetivação do “não-trabalho”
após o fim da jornada laboral.
Nesse contexto, a Lei nº. 2.191/2022, da Colômbia,
pode, de maneira geral, servir de substrato ao legislador brasi-
leiro, posto que se caracteriza como um avanço normativo ao
disciplinar expressamente a forma como resta assegurada a des-
conexão e está em consonância com o que preceitua a legislação
Hélio Barbosa Hissa Filho | 115
do Brasil. Ambos os países, além de pertencerem à região geo-
gráfica da América do Sul, têm os mesmos compromissos com
a dignidade humana e com o valor social do trabalho.
É necessário, contudo, progredir mais em relação à
norma colombiana, especificando as sanções para o caso de
ofensa à desconexão e permitindo que os trabalhadores partici-
pem da elaboração da política de desligamento. Ademais, não
devem ser excluídos os que ocupam cargo de gestão, nem os
que exercem função que exija disponibilidade permanente e,
nos casos de força maior caso ou fortuito, deve ser assegurada
a desconexão após 12 horas de trabalho. Por fim, não se pode
esquecer do papel dos sindicatos na defesa dos interesses da ca-
tegoria que representam.
Adotando-se a lei colombiana como parâmetro e
avançando nos pontos ora destacados, propõe-se que o Brasil
caminhará em direção à efetividade do Texto Constitucional e à
maior integração regional na defesa dos direitos humanos, as-
sumindo posição compatível com os compromissos internacio-
nais que subscreveu e com a condição de protagonista na valo-
rização dos direitos fundamentais sociais tão necessários à for-
mação de uma economia humanista.

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Hélio Barbosa Hissa Filho | 123
RIGHT TO DISCONNECTION IN LATIN AMERICA:
A COMPARATIVE STUDY BETWEEN BRAZIL AND
COLOMBIA
Abstract: It investigates the right to disconnection in Latin America,
in a comparative study between Brazil and Colombia, initially verify-
ing the nature of that in the context of human rights, as well as iden-
tifying it in the national legal system. The compatibility between Law
no. 2.191, of January 6, 2022, which regulated it in Colombian terri-
tory, and the Brazilian legal system, in order to assess whether this
rule can serve as a basis for the national legislature. Therefore, a pur-
poseful study was carried out, aiming at the scientific enrichment
from comparative law, as well as documentary and bibliographic, the
result of the analysis of national and international legislation and sci-
entific works, such as articles and dissertations. The research is also
characterized by being: hypothetical-deductive, since its starting
point is the existence of legal gap; exploratory-descriptive, since it
will bring greater proximity to the right to disconnection in Brazil and
Colombia, and qualitative, since it does not have to scope numerical
representation, but the in-depth understanding of the studied theme.
Keywords: Disconnection. Leisure. To switch off. Worker.
CAPÍTULO IV.
O FLUXO MIGRATÓRIO VENEZUELANO
E OS IMPACTOS NA POLÍTICA EXTERNA
E MIGRATÓRIA BRASILEIRA

Pedro Emanuel Barreto de Azevedo*

DOI: 10.29327/5341937.1-4

Resumo: Analisam-se os impactos do aumento do ingresso de imi-


grantes venezuelanos no território nacional, verificado a partir de
2017, sobre a política externa e migratória brasileira. Para tanto, inici-
almente, serão estudados os registros e documentos que apontam o
crescimento desse fluxo migratório, investigando-se quais as suas
causas prementes, a partir das perspectivas política e econômica. Na
segunda parte do trabalho, far-se-á uma análise desse fenômeno,
tendo em vista as suas repercussões em face da população e do Estado
brasileiro. Por fim, o estudo apresenta ações do Estado brasileiro, no
âmbito da política externa e migratória, adotadas no contexto histó-
rico-político relativas à Venezuela e à sua população migrante, anali-
sando sua validade em relação aos parâmetros constitucionais aplicá-
veis. Em relação ao objetivo, a pesquisa é descritiva em relação ao au-
mento do fluxo migratório venezuelano. É explicativa quando inves-
tiga as suas causas, o seu impacto no Brasil e a política brasileira (po-
lítica externa e migratória) em reação a ele. É exploratória quando se
busca analisar a validade das medidas a partir dos parâmetros nor-
mativos aplicáveis. A abordagem é qualitativa, pois não busca quan-
tificar o fenômeno estudado, mas analisar suas implicações no Brasil.
As técnicas de pesquisa são a bibliográfica e documental.

* Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Defensor Público Fe-


deral.
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 125
Palavras-chave: Migração. Crise migratória. Refugiados. Política Ex-
terna. Política Migratória.

Introdução

Este capítulo inicialmente realiza a exposição de um


fenômeno relacionado ao tema da migração: aumento significa-
tivo do fluxo migratório de venezuelanos no Brasil, a partir de
2017. Tal fenômeno será quantificado e inserido num contexto
histórico-temporal, a partir da análise de dados fornecidos por
órgãos oficiais (Ministério da Justiça, Polícia Federal), bem
como por organizações internacionais que atuam com o tema
das migrações (Alto-comissariado das Nações Unidas para os
Refugiados - ACNUR e Organização Internacional para as Mi-
grações - OIM). No esforço de delimitação do objeto de estudo,
investiga-se, a partir das perspectivas política e econômica, as
causas que convergem para o advento desse aumento da imi-
gração venezuelana para o Brasil.
A importância da análise proposta reside na necessi-
dade de se compreender o papel do Brasil no processo migrató-
rio, especialmente em relação a países do continente sul-ameri-
cano. Esse papel é fundamental no cumprimento da determina-
ção constitucional (art. 4º, parágrafo único, da Constituição Fe-
deral) de busca da integração regional, visando a formação de
uma comunidade latino-americana de nações.
O fenômeno em questão, naturalmente, repercute so-
bre a população (convivência com imigrantes, aumento da po-
pulação local etc.) e sobre o Estado brasileiro (utilização de ser-
viços públicos, atuação dos órgãos com temática migratória,
como Polícia Federal, Defensoria Pública da União etc.). O im-
pacto do crescimento anômalo do fluxo migratório precisa ser
O fluxo migratório venezuelano e
126 | os impactos na política externa e migratória brasileira

dimensionado, permitindo a adoção das políticas públicas ne-


cessárias a responder de forma satisfatória às questões coloca-
das pelo processo de migração, tendo como referência os deve-
res decorrentes dos princípios constitucionais aplicáveis à Re-
pública Federativa do Brasil nas relações internacionais, nos ter-
mos do art. 4º da Constituição Federal.
É nessa perspectiva que o trabalho examina a política
externa adotada pelo Brasil em face da Venezuela, no contexto
pertinente ao objeto de estudo, bem como a política migratória
efetivamente implementada pelo estado brasileiro. Tal exame
permitirá avaliar se tais políticas se conformam com os princí-
pios constitucionais já referidos (art. 4º da Constituição Fede-
ral).
O objetivo geral do trabalho é examinar a política ex-
terna e migratória brasileira adotada em face do aumento do
fluxo migratório venezuelano. Para tanto, objetiva-se especifi-
camente:
a) investigar as causas do aumento do fluxo migratório de
venezuelanos para o Brasil, a partir de 2017;
b) analisar os impactos desse fluxo em relação à população
e ao Estado brasileiro;
c) delinear qual foi a resposta do Estado brasileiro ao pro-
blema analisado em relação às políticas externa e migra-
tória, examinando sua validade em relação aos parâme-
tros constitucionais incidentes.
Em relação ao objetivo, a pesquisa é descritiva em re-
lação ao aumento do fluxo migratório venezuelano. É explica-
tiva quando investiga as suas causas, o seu impacto no Brasil e
a política brasileira (política externa e migratória) em reação a
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 127

ele. É exploratória quando se busca analisar a validade das me-

didas a partir dos parâmetros normativos aplicáveis. A aborda-


gem é qualitativa, pois não busca quantificar o fenômeno estu-

dado, mas analisar suas implicações no Brasil . As técnicas de


pesquisa são a bibliográfica e documental .

1. Fluxo migratório venezuelano no Brasil e suas causas

O Brasil registra de 2010 a 2015 a entrada de 351.534

venezuelanos nos seus pontos de fronteira.¹ A partir de 2017,


verifica-se um aumento desse fluxo migratório quando, em ape-
nas um ano, 101.220 venezuelanos têm entrada no território na-

cional, isto é, 28,79% do total registrado naquele quinquênio.²

Tal aumento se revela progressivo tendo como ápice ao ano de

2019, quando 236.410 venezuelanos registram entrada no terri-


tório.³ A série de aumentos só é interrompida a partir de 20204

(47.682), quando há o fechamento das fronteiras em razão da


pandemia da COVID- 19.

1
CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T.; ARAÚJO, D. , A inserção dos imigrantes no
mercado de trabalho brasileiro . Relatório Anual 2016. Observatório das Migra-
ções Internacionais; Ministério do Trabalho/ Conselho Nacional de Imigração e
Coordenação Geral de Imigração. Brasília, DF: OBMigra, 2016, p.50. Disponível
em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/dados anuais/RelatorioCom-
pleto v8 0512 pagespelhada comcapa.pdf. Acesso em 13/04/2023 .
2
BRASIL. Ministério da Justiça . Informe migração venezuelana janeiro 2017 - fe-
vereiro de 2022. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/Sub-
comit% C3%AA federal/publica% C3% A7% C3%B5es/informe-migracao-venezu-
elana-jan2017-fev2022 -v5.pdf. Acesso em 12/04/2023.
3 Idem.
4 Idem .
O fluxo migratório venezuelano e
128 | os impactos na política externa e migratória brasileira

Os números apresentados revelam um fenômeno


preciso: o aumento do fluxo migratório de venezuelanos a par-
tir de 2017. É imperioso investigar quais as causas desse au-
mento, permitindo a compreensão mais profunda do fenômeno
estudado. Dada a sua natureza complexa, que demanda uma
análise econômica, social, geopolítica, histórica aprofundada
para definição de suas origens, a par das limitações do trabalho,
o estudo apenas colaciona, a partir de um prisma político-eco-
nômico, o que a doutrina apresenta sobre o assunto.
No campo político, com fissuras no processo demo-
crático ao longo de toda a história da Venezuela, herdando um
governo já marcado por contradições e tensão política, Nicolás
Maduro assume o poder, após uma eleição polêmica e muito
apertada em 2013.5 Esse passivo de crise no cenário político já
se fazia presente no fim do governo de Hugo Chavez, quando
medidas visando o controle do Judiciário, sucessivas reeleições,
perseguições a dissidentes políticos e ingerência na imprensa6,
todas subprodutos da falta de vigência de um regime democrá-
tico rígido, já fomentavam um quadro de instabilidade.
Em 2016, verifica-se uma escalada do cenário de fra-
gmentação política, quando o Tribunal Supremo, controlado
pelo governo, intervém no Parlamento de maioria opositora,
anulando atos de sua competência.7 Em 2017, o governo do pre-

5 SCHEIDT, Eduardo. A Revolução Bolivariana e a questão democrática na Vene-


zuela. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão-SE, v. 10, n. 02, p. 42-57, jul./
dez. 2019, DOI: https://doi.org/10.33662/ctp.v10i02.13102, p. 9.
6 MOREIRA, Gabriel Boff. A política regional da Venezuela entre 1999 e 2012: pe-
tróleo, integração e relações com o Brasil. Brasília: FUNAG, 2018, pags. 59 e 69.
7 PAIVA MARQUES JÚNIOR, William. O caso venezuelano como desafio à inte-
gração regional democrática Sul-Americana. Revista Brasileira de Direito Inter-
nacional | e-ISSN: 2526-0219 | Belém | v. 5 | n. 2 | p. 37-57 | Jul/Dez. 2019, p. 48.
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 129
sidente Nicolás Maduro dá posse a uma nova Assembleia Na-
cional Constituinte, composta por ampla maioria de represen-
tantes pró-governo, em eleição sobre a qual recaíram suspeitas
de fraude, conduzindo ao acirramento das manifestações popu-
lares, inclusive de caráter violento, com a presença de mortos e
feridos.8 O quadro de lancinante crise política aprofunda até
2019, quando há a cisão da ordem político-constitucional com a
autoproclamação por Juan Guaidó como Presidente da Repú-
blica, contando com importante reconhecimento internacional.9
Por fim, além de aspectos internos, há avaliações so-
bre o assunto que mencionam a ingerência externa sobre a polí-
tica venezuelana, especialmente dos Estados Unidos, com obje-
tivos econômicos e ideológicos,10 como causas do contexto polí-
tico disruptivo experimentado na Venezuela.
É legítimo apresentar tais vicissitudes do quadro po-
lítico institucional venezuelano como fatores que confluíram
para o fenômeno em análise, sobretudo em razão do marco tem-
poral dos eventos citados que se justapõem ao aumento do nú-
mero imigrantes no Brasil advindos da Venezuela.
Já sob o viés econômico, as causas da crise venezue-
lana possuem raízes no processo de formação das bases da sua
economia. Reconstruindo esse quadro histórico, sinaliza-se que
“a Venezuela passou por uma metamorfose econômica, que a
faz sair de uma trajetória semelhante à de seus vizinhos latino-
americanos – agrário-exportadora governada por elites latifun-
diárias – para se transformar em uma das principais produtoras

8 Idem. p. 49
9 Idem. p. 50.
10 SANTOS, Boaventura de Souza. En defensa de Venezuela. Disponível em:
https://www.aporrea.org/actualidad/a249886.html. Acesso em 18/04/2023.
O fluxo migratório venezuelano e
130 | os impactos na política externa e migratória brasileira

de petróleo do mundo”.11 Nota-se que, até a descoberta de enor-


mes reservas de petróleo no final do século XIX e início do sé-
culo XX,12 a Venezuela possuía uma economia eminentemente
agrícola, assim com o Brasil em relação ao açúcar e café, no
mesmo período.
Todavia, com a recentes descobertas de reservas de
petróleo, praticamente toda a economia venezuelana irá se es-
truturar em torno dessa commodity,13 o que representou uma
verdadeira indexação entre o preço do produto no mercado ex-
terno e a performance e saúde financeiras do país. Tal período
representou a desarticulação do desenvolvimento industrial na
venezuelana – dos setores não petrolíferos –, especialmente da
indústria agrícola, conduzindo o país a viver uma situação de
falta de soberania alimentar, vigente até os dias atuais.14
Entre 2014 e 2015, ocorre uma queda no valor do pe-
tróleo no mercado internacional por volta de 50%, tal fato, con-
siderando a lógica de funcionamento da economia venezuelana,
determina a sua deterioração, conduzindo a um cenário caótico:
inflação, aumento da dívida do País, descontinuidade dos pro-
gramas sociais, crescimento da violência.15

11 PEDROSO, C.S, Petróleo e Poder: a crise venezuelana e seus elementos históri-


cos, Revista de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima, v. 1 n. 34
(2020), DOI: https://doi.org/10.18227/2317-1448ted.v1i34.6415, p. 10.
12 NEVES, Rômulo Figueira. Cultura política e elementos de análise da política
venezuelana. Brasília: FUNAG, 2010, p. 55
13 PEDROSO, C.S, Petróleo e Poder: a crise venezuelana e seus elementos históri-
cos, Revista de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima, v. 1 n. 34
(2020), DOI: https://doi.org/10.18227/2317-1448ted.v1i34.6415, p. 11.
14 Idem, p.20.
15 PAIVA MARQUES JÚNIOR, William. O caso venezuelano como desafio à inte-
gração regional democrática Sul-Americana. Revista Brasileira de Direito Inter-
nacional | e-ISSN: 2526-0219 | Belém | v. 5 | n. 2 | p. 37-57 | Jul/Dez. 2019, p. 45.
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 131
Novamente, a atuação norte-americana é apontada
como fator contributivo para o cenário de crise econômica veri-
ficado na Venezuela, em razão de bloqueios econômicos adota-
dos pelos EUA, em alegada resposta ao cenário de violação a
direitos humanos e ao regime democrático.16
Os fatores apontados pertinentes à economia vene-
zuelana, seu modo de funcionamento e o quadro de crise decor-
rente da queda no preço do petróleo em 2014 e 2015 são sufici-
entes para que sejam indicados como agentes catalizadores do
fenômeno estudado no presente capítulo.
Fixadas as causas, ainda que parciais, do aumento do
fluxo migratório de venezuelanos no país, realiza-se em seguida
uma análise sobre a repercussão desse fenômeno em relação ao
Brasil e sua população.

2. Repercussões em face da população e do Estado


brasileiro

Relembrando números do fluxo migratório venezu-


elano, destaca-se que do total de entradas no território (702.222),
apenas 325.763 imigrantes permaneceram no país, havendo um
registro de 376.459 saídas.17 A avaliação desses números deve

16 RODRIGUES DE BRITO, Clara Kelliany, ANDRADE DA SILVA, Joasey


Pollyanna, CARMO, Valter Moura. Da crise humanitária em razão do bloqueio
econômico dos EUA sobre a Venezuela denunciado na OMC: uma análise a
partir do direito internacional público e dos direitos humanos. Revista Brasi-
leira de Direito Internacional | e-ISSN: 2526-0219 | Encontro Virtual | v. 7 | n. 2
| p. 111–131 | Jul/Dez. 2021, p. 117-119.
17 BRASIL. Ministério da Justiça. Informe migração venezuelana janeiro 2017 – fe-
vereiro de 2022. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/Sub
comit%C3%AA_federal/publica%C3%A7%C3%B5es/informe-migracao-venezu-
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O fluxo migratório venezuelano e
132 | os impactos na política externa e migratória brasileira

ser realizada em comparação com outros elementos de análise,


permitindo o dimensionamento do fenômeno em estudo.
Aponta-se que, durante o primeiro trimestre de 2018,
em entrevista com a população venezuelana em Roraima, foi
possível verificar que, entre os 3.516 entrevistados, 52% indica-
ram como destino um país diverso do Brasil, em especial a Ar-
gentina (58%), e apenas 48% indicaram o desejo de se fixar em
território brasileiro.18
A barreira linguística, a diferença cultural e a exten-
são do território nacional, ocasionando a dificuldade de loco-
moção interna, podem ser apontados como fatores que tornam
a migração para o Brasil menos atrativa para os imigrantes ve-
nezuelanos. A Colômbia, por exemplo, recebeu algo próximo de
1 milhão e oitocentos mil venezuelanos, durante todo o período
de crise.19
Logo, é possível concluir que, em um cenário geral, a
participação brasileira na questão da imigração venezuelana
não se dá como protagonista. O número de venezuelanos que
permaneceram no território brasileiro no período em análise
(325.763) representa apenas aproximadamente 0,15% da popu-
lação brasileira em geral. Ainda, do total de pessoas reconheci-
das como refugiadas até 2019, apenas 3% são nacionais da Ve-
nezuela.20

18 OIM. Organização Internacional para as Migrações (OIM). DTM Brasil – N. 1 Mo-


nitoramento do Fluxo Migratório 2018. Disponível em: https://brazil.iom.int/si-
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19 ONU. Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Dados sobre
Refúgio. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/
#:~:text=Principais%20pa%C3%ADses%20de%20acolhida,incluindo%20venezu-
elanos%20deslocados%20no%20exterior. Acesso em 18/04/2023.
20 ONU. Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Refúgios em
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 133

Não obstante o contexto exposto, a percepção da po-

pulação brasileira acerca da presença e dos impactos da imigra-


ção no país é diversa das conclusões apresentadas . Pesquisa do

instituto IPSOS21 aponta que o brasileiro acredita que a cada 100

pessoas morando no país 30 são imigrantes . Na verdade, apenas


0,4 o são (menos de 1 imigrante a cada 100 pessoas), ou seja,
ocorre um superdimensionamento de 75 vezes do verificado na
realidade .

Tal percepção equivocada da população é fomentada

(ou sintoma) de discursos e episódios xenofóbicos percebidos


22
no debate público e no dia a dia população .

Se firmamos que a migração venezuelana, conside-


rando o Brasil e sua população de modo geral, não pode ser con-

siderada como um fator desagregador da ordem interna ou que


seja capaz de comprometer as bases da organização dos serviços

públicos, dadas as suas proporções em números, uma análise

de como tal processo migratório se desenrolou, em suas parti-

cularidades, pode apontar repercussões que merecem destaque .

O primeiro ponto que vale menção é que a imigração


venezuelana se concentrou quase exclusivamente no estado de

Roraima, como local de entrada . Verifica- se que 81 % de todas

números 4ª edição . Disponível em https://www.acnur.org/portugues/wp-con-


tent/uploads/2019/07/Refugio-em-nu% CC%81meros versa% CC%830-23-de-ju-
lho-002.pdf. Acesso em: 18/04/2023, p. 30.
21 IPSOS. Perigos da percepção 2018. Disponível em: https://www.ipsos.com/sites/
default/files/ct/publication/documents/2019-01/perigos da percepcao 2018.pdf.
Acesso em 18/04/2023, p . 27.
22 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/06/28/onu-estrangeiro-
vive-xenofobia-no-brasil-e-desmonta-mito-de-pais-acolhedor.htm. Acesso em 18/
04/2023.
O fluxo migratório venezuelano e
134 |
os impactos na política externa e migratória brasileira

as solicitações de refúgio no ano 2018 de venezuelanos foram


apresentadas em Roraima.23

Outra dimensão importante do problema é o caráter


precário dessa imigração . É uma imigração que notadamente se

dá por meio terrestre (inclusive a pé), indicando a situação

emergencial em que ela ocorre, bem como o próprio perfil do


imigrante.24 Como destacam Gustavo do Vale Rocha e Natália
Ribeiro25 "São dias de caminhada até a fronteira com Pacaraima

e, posteriormente, até Boa Vista, levando poucos mantimentos



e, muitas vezes, documentação insuficiente uma migração

com baixo nível de segurança e elevado grau de vulnerabili-


dade .".

A extrema vulnerabilidade social característica do

imigrante venezuelano, que demanda necessariamente provi-


dências do Estado receptor nas áreas da saúde, da assistência

social, de emprego e trabalho, de regularização migratória etc.,

são fatores que podem contribuir para a desagregação social,


sob a perspectiva local.26 Tal problemática se agrava quando a

migração é demasiadamente concentrada em um ponto especí-

fico do território, acrescido do fato de que se trata de estado da

23
ONU. Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. Refúgios em
números 4ª edição . Disponível em https://www.acnur.org/portugues/wp-con-
tent/uploads/2019/07/Refugio-em-nu% CC%81meros versa% CC% 830-23-de-ju-
lho-002.pdf. Acesso em: 18/04/2023, p . 34 .
24 ROCHA, Gustavo do Vale, RIBEIRO, Natália Vilar Pinto. Fluxo migratório vene-
zuelano no Brasil: análises e estratégias. Revista Jurídica da Presidência Brasília
v. 20 n. 122 out. 2018/jan. 2019 p. 541-563, DOI: http://dx.doi.org/10.20499/2236-
3645.RJP2018v20e122-1820, p.
25 Idem, p . 548.
26 MOREIRA, Paula. Imigração Venezuela-Roraima: evolução, impactos e pers-
pectivas. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA 2021. DOI : https ://
dx.doi.org/10.38116.\ridirur.imigracaovenezuela-roraima, p. 28-41 .
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 135
federação distante geograficamente dos principais polos econô-
micos do país e que, por si, não é dotado de abastados recursos,
como é o caso do estado de Roraima.
Em razão de todo o exposto, verifica-se que, embora
a migração venezuelana, considerando o Brasil e as dimensões
de sua população, não possa ser considerada como um agente
de instabilidade geral, em virtude de particularidades do pro-
cesso migratório em estudo ‒ precariedade e extrema vulnera-
bilidade dos imigrantes ‒, uma resposta política era (e ainda é)
necessária para atender à toda essa problemática.
No próximo tópico, delineiam-se as políticas (no âm-
bito externo e migratório) implementadas pelo estado brasileiro
para lidar com o fenômeno analisado, examinando sua validade
de acordo com as normas constitucionais aplicáveis, tomando
como base o art. 4º da Constituição Federal.

3. A política externa e migratória brasileira em relação à


Venezuela e à população migrante

Inicialmente, analisa-se a política externa brasileira


adotada no contexto do fenômeno em exame. Para tanto, é sa-
lutar trazer um breve histórico das relações bilaterais entre Bra-
sil e Venezuela, permitindo a avaliação de eventuais mudanças
em decorrência da crise migratória.
Durante os governos FHC, Lula e Dilma, Brasil e Ve-
nezuela experimentaram uma aproximação das relações no âm-
bito diplomático e comercial. Houve fomento da integração re-
gional, através de entidades como o Mercosul e a Unasul, bem
O fluxo migratório venezuelano e
136 | os impactos na política externa e migratória brasileira

como a atuação conjunta para mitigar os efeitos negativos da


globalização em relação aos países desenvolvidos.27
No âmbito comercial, destaca-se a importância da
Venezuela como parceiro comercial do Brasil em áreas funda-
mentais como energia e exportações. Neste campo, a Venezuela
é um destino para onde o Brasil sempre exportou bens de valor
agregado, favorecendo o desenvolvimento da indústria nacio-
nal e a balança comercial.28 É um elo que permitia ao Brasil des-
fazer a figura de mero exportador de commodities. A título de
exemplo, em 2008, o Brasil exportou 5,13 bilhões de dólares para
Venezuela (nesse ano, o superávit total da balança comercial
brasileira foi de 24,7 bilhões de dólares). Mesmo com o agrava-
mento da crise venezuelana, ela ainda continuou sendo um país
importante e significativo do ponto de vista econômico com 1.28
bilhão de exportações em 2016.29
Em seguida, verifica-se uma deterioração das rela-
ções diplomáticas nos governo Temer e Bolsonaro, que se dão
justamente no contexto do agravamento da crise política e eco-
nômica na Venezuela, a partir de 2017.
Algumas posturas adotadas pelo governo brasileiro
podem ser indicadas como uma inflexão das relações com a Ve-
nezuela.

27 BARROS, Pedro Silva; LIMA, Raphael Camargo; CARNEIRO, Helitton Christof-


fer. Brasil-Venezuela: evolução das relações bilaterais e implicações da crise ve-
nezuelana para a inserção regional brasileira (1999-2021). Texto para discussão
/ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2022.
DOI: http://dx.doi.org/10.38116/td2761. p. 33-36.
28 Idem, p. 85
29 Idem, p. 85
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 137

Primeiro, o governo Temer buscou uma desarticula-

ção desse protagonismo da dupla Brasil-Venezuela na integra-


ção regional, na época executada pelo então chanceler José

Serra. O país buscou uma aproximação com países de posição

mais liberal no período, como Chile, Argentina e Peru.30


Após, já sob o governo Bolsonaro, há elementos de

construção de uma retórica beligerante em relação à Venezuela .

Declarações de membros do governo promoveram a deteriora-

ção completa das relações . Nesse sentido, palavras do então


chanceler Ernesto Araújo:

É impossível transformar numa região como todos


pretendemos que seja, de paz e prosperidade, se
não trabalharmos dia e noite pela plena vigência
da democracia em todos os países da região. Isso
muito especialmente hoje, porque regimes totalitá-
rios da região, particularmente a Venezuela, não
só negam a liberdade ao seu próprio povo, mas es-
tão intimamente associados à criminalidade, ao narco-
tráfico, ao terrorismo e procuram espalhar esses malefi-
cios, esses flagelos por todo o continente” 31 (grifo
nosso)

A progressiva deterioração das relações bilaterais en-

tre os países tem o seu ápice em agosto de 2019, quando há a


edição da Portaria Interministerial n. 7, do Ministério da Justiça

e Segurança Pública e do Ministério das Relações Exteriores,³2

30 Idem, p . 39.
31
Apresentação inicial do Ministro Ernesto Araújo na Comissão de Relações Exte-
riores e Defesa Nacional (CRE) do Senado Federal, em Brasília (05/03/2020) . Dis-
ponível em: https://antigo.funag.gov.br/index.php/es/politica-externa-brasileira/
3148-exposicao-do-ministro-ernesto-araujo-na-credn-do-senado. Acesso em: 24
abr. 2023.
32

32
BRASIL . Portaria Interministerial no 7, de 19 de agosto de 2019. Dispõe sobre o
O fluxo migratório venezuelano e
138 |
os impactos na política externa e migratória brasileira

tratando- se de sanção unilateral, tendo como objetivo o impedi-

mento de ingresso no País de "altos funcionários do regime ve-

nezuelano, que, por seus atos, contrariam princípios e objetivos


da Constituição Federal, atentando contra a democracia, a dig-

nidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos huma-


nos .". Em março de 2020, o Brasil promove a retirada dos diplo-
matas e funcionários brasileiros da embaixada, do consulado-

geral e dos demais consulados na Venezuela, sendo o marco de

rompimento formal das relações .

A partir do exposto, a conclusão é de que, quando do


agravamento da crise política, econômica e migratória na Vene-

zuela, a política externa adotada pelo Brasil foi de gradual dis-

tanciamento do referido país, abandonando uma valiosa e his-

tórica parceria bilateral (no âmbito comercial e da geopolítica) .


O movimento do Estado brasileiro, notadamente no

governo Bolsonaro, não se conforma com os princípios consti-


tucionais inscritos no art. 4º da Constituição Federal para as re-

lações internacionais quanto à defesa da paz e solução pacífica

dos conflitos . Embora tenha havido uma alegada postura de de-


fesa dos direitos humanos nas ações de política externa, os

meios empregados - discurso belicoso, aplicação de sanções

unilaterais e rompimento diplomático – não validam tais ações.

Em relação à política migratória adotada em resposta


ao fenômeno em estudo, verifica-se, ao contrário do constatado

regramento para efetivação de impedimento de ingresso no Brasil de altos funci-


onários do regime venezuelano, que, por seus atos, contrariam princípios e obje-
tivos da Constituição Federal, atentando contra a democracia, a dignidade da
pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos . Diário Oficial, Brasília, p .
51, 20 ago. 2019d. Seção 1. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/
images/portarias/PORTARIA_INTERMINISTERIAL_N %C2%BA 7 DE 19 DE
AGOSTO DE 2019.pdf. Acesso em: 24/04/2023.
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 139
na política externa, um movimento de acolhida e recepção dos
imigrantes venezuelanos, tendo sido adotadas medidas coorde-
nadas pelo governo federal nesse sentido.
Nas palavras de Gustavo do Vale Rocha e Natália Vi-
lar Pinto Ribeiro33 “Sendo Roraima um estado pequeno, sem
condições de absorver todo o fluxo migratório e tendo a política
de imigração lançado bases nacionais sobre o tema, o governo
brasileiro federalizou a questão”. Isto ocorreu por meio da Lei
nº 13.684, de 21 de junho de 2018, que dispõe sobre medidas de
assistência emergencial para acolhimento de pessoas em situa-
ção de vulnerabilidade decorrente de fluxo migratório provo-
cado por crise humanitária.
A Operação Acolhida representa uma ação conjunta
do governo brasileiro envolvendo uma série de órgãos (Polícia
Federal, Defensoria Pública da União, Forças Armadas, Sistema
Único de Saúde, organismos internacionais como Organização
Internacional para as Migrações – OIM e Alto-comissariado das
Nações Unidas para os Refugiados – ACNUR) visando prestar
assistência emergencial para o acolhimento das pessoas em si-
tuação de vulnerabilidade. Bernardo Silva de Seixas e Isabelle
Cristina Moura de Lima34 afirmam que “A missão acolhida foi
desenvolvida a partir do intuito de efetivar três pilares: organi-
zar a fronteira, abrigar e interiorizar os refugiados imigrantes”.
O primeiro é ligado ao fluxo migratório em si, buscando-se uma

33 ROCHA, Gustavo do Vale, RIBEIRO, Natália Vilar Pinto. Fluxo migratório vene-
zuelano no Brasil: análises e estratégias. Revista Jurídica da Presidência Brasília
v. 20 n. 122 out. 2018/jan. 2019 p. 541-563, DOI: http://dx.doi.org/10.20499/2236-
3645.RJP2018v20e122-1820, p. 554.
34 SEIXAS, Bernado Silva de, LIMA, Isabelle Cristina Moura. O Estado Democrático
de Direito e a Operação Acolhida: análise acerca do acolhimento dos refugiados
venezuelanos no estado de Roraima. Revista de Direito Internacional e Direitos
Humanos da UFRJ. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2 (2020), p. 13.
O fluxo migratório venezuelano e
140 |
os impactos na política externa e migratória brasileira

organização desse fluxo, seguida da recepção e identificação.35


O segundo tem caráter assistencial em face das demandas de

alimentação, assistência médica e abrigo, para, por último, ha-

ver o envio dos imigrantes para outras unidades da federação


em um contexto de reunião familiar ou inserção no mercado de
36
trabalho. Houve adoção da estratégia de interiorização, inclu-
sive em parceria com agências da ONU.37

Para além da implementação da Operação Acolhida,


houve edição de legislação infralegal específica, para atendi-

mento de interesse da política migratória nacional (Lei nº


13.445/2017, art . 30, III, e Decreto nº 9.199, de 20 de novembro

de 2017, art. 142, III, e art. 161 ) , por meio da instituição da Por-

taria Interministerial nº 9 de 14 de março de 201838, alterada pela

Portaria Interministerial n . 15 de 27 de agosto de 201839 e pela


Portaria Interministerial nº 2, de 15 de maio de 2019.40

35 Idem, p. 13.
36 Idem, p.13.
37 XAVIER, Fernando César Costa. A interiorização como um direito social univer-
salizável. Revista Direito GV. São Paulo . v. 17, n. 1, 2021 , p.3 .
38 BRASIL. Portaria Interministerial n. 9 de 14 de março de 2018. Diário Oficial (da)
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF PUBLICADO NO
DOU Nº 51 de 15/03/2018, Seção 1 , Página 57. Disponível em https://portaldeimi-
gracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA%20INTERMINISTERIAL%20N
%C2%BA%209,%20DE%2014% 20DE% 20MAR% C3%870%20DE%202018.pdf.
39 BRASIL. Portaria Interministerial n. 15 de 27 de agosto de 2018. Diário Oficial
(da) República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, PUBLICADO NO
DOU Nº 166 de 28/08/2018, Seção 1 , Página 32. Disponível em: https: //portaldei-
migracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA INTERMINISTERIAL N%C2
%BA 15 DE 27 DE AGOSTO DE 2018.pdf.
40 BRASIL. Portaria Interministerial nº 2, de 15 de maio de 2019. Diário Oficial (da)
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, PUBLICADO NO
DOU Nº 103 de 30/05/2019, Seção 1 , Página 55. Disponível em: https://portaldei-
migracao.mj.gov.br/images/portarias/PORTARIA INTERMINISTERIAL N% C2
%BA 2 DE 15 DE MAIO DE 2019 ALTERA A PORTARIA INTER. N% C2
%BA 9.pdf .
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 141
Tais atos normativos tiveram o condão de viabilizar
a regularidade do status migratório dos recém-chegados imi-
grantes venezuelanos, permitindo a concessão da autorização
de residência (por tempo determinado com possibilidade de re-
novação por tempo indeterminado).
Por todo o exposto, verifica-se que a política migra-
tória adotada pelo Brasil, em resposta ao fenômeno observado,
se coaduna com os princípios inscritos no art. 4º da Constituição
Federal, especialmente no que toca ao inciso II (prevalência dos
direitos humanos) e inciso X (concessão de asilo político). Em
relação ao inciso X, art. 4º, da CF, este é interpretado de modo
amplo, representando o direito de ser acolhido em estado es-
trangeiro.41

Considerações finais

A partir do conteúdo trazido, em relação ao objeto de


análise, é possível inferir as seguintes conclusões.
O fenômeno objeto de estudo, o aumento do fluxo
migratório de venezuelanos a partir de 2017, tem suas causas,
ainda que parciais, na crise econômica e política da Venezuela.
Tais crises têm suas raízes na própria organização interna do
país (economia do petróleo e inconsistências no regime demo-
crático), embora haja importante menção a ingerências externas
nesse processo.
O fluxo migratório venezuelano tem um impacto na-
cional reduzido, considerando o Brasil e as dimensões de sua

41 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público v.2.


14ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 1.052.
O fluxo migratório venezuelano e
142 | os impactos na política externa e migratória brasileira

população, não podendo ser considerado como um agente de


instabilidade geral. Verificou-se, porém, que ele foi capaz de ge-
rar crises locais, em razão da concentração da migração em pon-
tos específicos do território (notadamente, o estado de Ro-
raima). Não obstante tais conclusões, o discurso xenófobo e a
impressão da população de que há uma “onda de imigração” se
fazem presentes.
Por fim, delineou-se as políticas, no âmbito externo e
migratório, implementadas pelo estado brasileiro para lidar
com o fenômeno analisado, examinando sua validade de acordo
com as normas constitucionais aplicáveis, tomando como base
o art. 4º da Constituição Federal.
No âmbito da política externa, identificou-se que,
quando do agravamento da crise política, econômica e migrató-
ria na Venezuela, a ação do Brasil foi de gradual distanciamento
do referido país, abandonando uma valiosa e histórica parceria
bilateral (no âmbito comercial e da geopolítica).
O movimento do Estado brasileiro, notadamente no
governo Bolsonaro, não se conforma com os princípios consti-
tucionais inscritos no art. 4º da Constituição Federal para as re-
lações internacionais, quando se considera a defesa da paz e a
solução pacífica dos conflitos. Embora tenha havido uma ale-
gada postura de defesa do direitos humanos nas ações de polí-
tica externa, os meios empregados – discurso belicoso, aplicação
de sanções unilaterais e rompimento diplomático – não validam
tais ações.
Em sentido diverso, no âmbito migratório, houve
uma atenção especial e relativamente satisfatória do governo
brasileiro ao fluxo de imigrantes venezuelanos no implemento
de uma política pública de acolhimento, bem como na edição de
Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 143

atos infralegais que objetivavam a regularização do status mi-

gratório dos migrantes. Tais ações se coadunam com os princí-

pios inscritos no art. 4º da Constituição Federal, especialmente


no que toca à prevalência dos direitos humanos e à concessão

de asilo político, interpretado em sentido amplo, de modo a ga-


rantir a efetividade do Texto Constitucional na garantia de dig-

nidade e direitos dos refugiados oriundos da Venezuela .

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Pedro Emanuel Barreto de Azevedo | 147
THE VENEZUELAN MIGRATORY FLOW AND
IMPACTS ON BRAZILIAN FOREIGN AND
MIGRATORY POLICY
Abstract: This chapter aims to analyze the impacts of the increase in
the number of Venezuelan immigrants in the national territory, veri-
fied from 2017, on Brazilian foreign and migration policy. To do so,
initially, the records and documents that point to the growth of this
migratory flow will be studied, investigating its pressing causes, from
the political and economic perspectives. In the second part of the
work, an analysis of this phenomenon will be carried out, in view of
its repercussions in the face of the population and the Brazilian State.
Finally, study presents actions of the Brazilian State, within the scope
of foreign and migratory policy, adopted in the historical-political
context related to Venezuela and its migrant population, analyzing its
validity toward to applicable constitutional parameters. Regarding
the objective, the research is descriptive in relation to the increase in
the Venezuelan migratory flow. It is explicative when it investigates
its causes, its impact in Brazil and Brazilian policy (foreign and mi-
gration policy) in reaction to it. It is exploratory when seeking to an-
alyze the validity of the measures from the applicable normative pa-
rameters. The approach is qualitative, as it does not seek to quantify
the studied phenomenon, but to analyze its implications in Brazil. The
research techniques are bibliographical and documental.
Keywords: Migration. Migration crisis. Refugees. Foreign Policy. Mi-
gration Policy.
CAPÍTULO V.
OS PARÂMETROS DE PROTEÇÃO DO
SISTEMA INTERAMERICANO DE
DIREITOS HUMANOS SOBRE A
NEGLIGÊNCIA SISTEMÁTICA NO
COMBATE A VITIMIZAÇÃO LETAL
INTENCIONAL DE PESSOAS
LGBTIQIAPN+

Ythalo Frota Loureiro*

DOI: 10.29327/5341937.1-5

Resumo: O presente capítulo objetiva 1) identificar as normas jurídi-


cas da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) aplicá-
veis à vitimização letal e intencional de pessoas LGBTI+; 2) descrever
os casos admitidos pela Comissão Interamericana de Direitos Huma-
nos (CIDH) sobre vitimização LGBTI+; e 3) descrever os casos julga-
dos pela CIDH e pela CorteIDH que se relacionam a outras matérias
da pauta LGBTI+. Como metodologia, utiliza-se uma pesquisa quali-
tativa e exploratória, por meio da análise de casos julgados pelos ór-
gãos do SIDH relativos à vitimização LGBTI+; e, em especial, no Caso
Atala Riffo y niñas versus Chile, julgado em 24 de fevereiro de 2012, que
inaugurou o reconhecimento da discriminação baseada na orientação
sexual; e Vicky Hernández y familia versus Honduras, o primeiro caso em
que a CorteIDH reconheceu a violação do direito à vida de pessoa

*
Promotor de Justiça do Estado do Ceará, Doutorando e Mestre do Programa de
Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará. Lattes iD: http://
lattes.cnpq.br/6387713593384966. Orcid iD: https://orcid.org/0000-0001-8605-7208.
E-mail: ythalo.loureiro@mpce.mp.br.
Ythalo Frota Loureiro | 149
transsexual, interpretando o artigo 4 da CADH. Concluiu-se que são
parâmetros legais, para o reconhecimento de violação a direitos hu-
manos em casos de vitimização de pessoas LGBTI+: dever de não-dis-
criminação (art. 1.1); direito ao reconhecimento da personalidade ju-
rídica (art. 3); direito à vida (art. 4); direito à integridade pessoal (art.
5); direito à liberdade pessoal (art. 7); direito às garantias judiciais (art.
8); direito à proteção da honra e da dignidade(art. 11); direito à liber-
dade de pensamento e de expressão (art. 13); direito ao nome (art. 18);
igualdade perante a lei (art. 24); proteção judicial (art. 25 da CADH);
e proteção estatal ampla contra a violência de gênero (art. 7 da Con-
venção de Belém do Pará).

Palavras-chave: Vitimização LGBTI+. Crimes violentos letais intenci-


onais. Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Introdução

A ideia de parâmetros internacionais para o combate


da vitimização de pessoas LGBTIQIAPN+ (lésbicas, gays, bisse-
xuais, transsexuais, queer, intersexo, assexuais/arromânti-
cas/agênero, pan/polisexuais, não-binárias e mais)1 pressupõe a
necessidade de observância dos padrões mínimos normativos
do Direito Internacional e seus níveis de proteção. No âmbito
internacional, cabe ao Sistema Interamericano de Direitos Hu-
manos a garantia do direito de vida, à luz da dignidade da pes-
soa humana, que corresponde ao dever de prevenir, punir e re-
parar quaisquer formas de discriminação. Isso coincide com a
missão institucional da Organização das Nações Unidas, cuja
Declaração Universal de Direitos Humanos estipula o direito de
todos à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

1 Será utilizada a sigla “LGBTI+” de modo preferencial, de modo que o símbolo “+”
representa as diversas categorias de orientação sexual e de identidade de gênero.
150 | Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

A proteção constitucional implicaria na vedação de


discriminação por sexo, orientação sexual e identidade de gê-
nero, estabelecida nas constituições nacionais, por normas ex-
plícitas ou implícitas. Por sua, a nível de proteção infraconstitu-
cional, a proteção legal contra a vitimização LGBTIQIAPN+ de-
veria ser encontrada nas legislações penais que criminalizam a
homofobia letal, o transfeminicídio ou o homicídio com circuns-
tância qualificadora ou agravante, quando fundado em discri-
minação sexual, de orientação sexual ou de identidade de gê-
nero. Por fim, a garantia de proteção judicial é exigência dos Sis-
temas Internacionais de Direitos Humanos, entre os quais o In-
teramericano de Direitos Humanos, por meio da interpretação,
aplicação e integração da Convenção Americana de Direitos
Humanos, concretizada na atuação da Comissão (CIDH) e da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH). A par-
tir disso, as Cortes Constitucionais, Tribunais e Juízes deveriam
realizar o Controle de Convencionalidade de ofício ou mediante
provocação de advogados, membros do Ministério Público, De-
fensoria Pública e Advocacia Pública.
Em um cenário ideal, a atuação a interpretação de di-
reitos humanos deveria se pautar numa atuação precipuamente
local, a partir dos estímulos provindos da atuação dos órgãos
que integram o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
No caso da vitimização letal intencional de pessoas LGBTI+, a
ação dos agentes públicos se mostra ainda mais urgente diante
do elevado número de assassinados com motivação homofó-
bica. O objetivo desse trabalho é refletir quais são os parâmetros
de proteção do Sistema Interamericano de Direitos Humanos
(SIDH) sobre a negligência sistemática e institucional dos Esta-
dos-Partes da Organização dos Estados Americanos (OEA) no
Ythalo Frota Loureiro | 151
combate à vitimização letal e intencional de pessoas LGBTIQI-
APN+.
Não se pretende discorrer sobre todos os direitos
dessa pauta, como os direitos de identidade e de expressão de
gênero, o reconhecimento jurídico de corpos transexuais e tra-
vestis, os direitos relativos à homoparentalidade, à família ho-
moafetiva e a adoção por pessoas LGBTI+. Por óbvio, não se
trata de uma rol jurídico menos importante, contudo, como se
verá, as considerações sobre o direito à vida ainda são ainda
pouco desenvolvidas no âmbito do sistema de proteção regio-
nal: apenas o Caso Vicky Hernández y Familia versus Honduras,
que versa diretamente sobre violação do direito à vida, chegou
a ser objeto de sentença de mérito da Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CorteIDH). Em consequência, até então, so-
mente esse caso havia chegado à fase de “fondo”, no âmbito da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Por
outro lado, vários casos, envolvendo outros direitos da pauta
LGBTI+ contam com julgamento de mérito pela Corte.
A pretensão dessa pesquisa se restringe aos direitos
relacionados à proteção da vida. Portanto, são objetivos:
1) identificar as normas jurídicas da CADH aplicáveis à vi-
timização letal e intencional de pessoas LGBTIQIAPN+;
2) descrever os casos admitidos pela CIDH sobre vitimiza-
ção LGBTI+; e
3) descrever sumariamente os casos julgados pela CIDH e
pela CorteIDH que se relacionam a outras matérias da
pauta LGBTI+.

O Caso Atala Riffo y niñas versus Chile, julgado em 24


de fevereiro de 2012, inaugurou o reconhecimento da discrimi-
nação baseada na orientação sexual. Por sua vez, o caso Vicky
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
152 | sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

Hernández y familia versus Honduras, foi o primeiro em que a Cor-


teIDH reconheceu a violação do direito à vida de pessoa do
grupo LGBTI+.
Como metodologia, utiliza-se uma pesquisa qualita-
tiva e exploratória, por meio da análise de casos julgados pelos
órgãos do SIDH relativos à vitimização LGBTI+, comparando-
os com casos julgados pela CorteIDH que se referem a outras
pautas de direitos. Utiliza-se bibliografia especializada em Di-
reitos Humanos e Direitos LGBTI+ para oferecer uma interpre-
tação aos direitos declarados admitidos.
A primeira parte do trabalho se concentrará no con-
ceito de homofobia adotado pelo Sistema Interamericano e
como ele é descrito nos casos de violação a direitos humanos de
pessoas LGBTI+. Na parte seguinte, se demonstrará como o di-
reito à vida é encontrado nos casos submetidos à Comissão e à
CorteIDH e suas relações com os demais direitos da pauta
LGBTI+. Na última parte serão descritos os parâmetros míni-
mos do Sistema Americano de Proteção de Direitos Humanos
contra a homofobia letal intencional.

1. Homofobia e sua descrição na linguagem adotada


pela Comissão e pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos

A homofobia não é palavra utilizada pelo Sistema In-


teramericano de Direitos Humanos para descrever a discrimi-
nação em razão do sexo, da orientação sexual e da identidade
de gênero. Por exemplo, na sentença de 24 de fevereiro de 2012
do caso Atala Riffo y niñas versus Chile ‒ o que inaugurou o en
Ythalo Frota Loureiro | 153
tendimento da CorteIDH sobre discriminação homofóbica (PI-
OVESAN; CRUZ, 2021, p. 43) –, a palavra espanhola “homofo-
bia” (que possui a mesma escrita em português, apesar da pro-
núncia diversa) não aparece. Podem ser encontradas das pala-
vras “homosexual”, “homosexuales”, “homosexualidad”, e
“homosexualismo”. A palavra “discriminación” se repete 169
ao longo da sentença de 102 páginas (CORTE: 2012). Para a Cor-
teIDH:

93. Un derecho que le está reconocido a las perso-


nas no puede ser negado o restringido a nadie y
bajo ninguna circunstancia con base en su orienta-
ción sexual. Ello violaría el artículo 1.1. de la Con-
vención Americana. El instrumento interameri-
cano proscribe la discriminación, en general, inclu-
yendo en ello categorías como las de la orientación
sexual la que no puede servir de sustento para ne-
gar o restringir ninguno de los derechos estableci-
dos en la Convención. (CORTE: 2012, p. 35)

Assim, homofobia, para a CorteIDH, é a discrimina-


ção baseada na orientação sexual, que se inclui na categoria ge-
ral de discriminação prevista no artigo 1.1 da CADH. Ou seja,
os Estados-Partes estão obrigados a garantir às pessoas os direi-
tos e as liberdades estabelecidas na Convenção sem discrimina-
ção alguma por motivo de sexo, de qualquer natureza, ou con-
dição social. De modo sintético, Jaqueline de Jesus define a ho-
mofobia como o “Medo ou ódio com relação a lésbicas, gays,
bissexuais e, em alguns casos, a travestis, transexuais e interse-
xuais, fundamentado na percepção, correta ou não, de que al-
guém vivencia uma orientação sexual não heterossexual.” (JE-
SUS: 2015, p. 95).
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
154 |
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

A definição é didática para difusão de um conceito


facilmente compreensível: a repulsa e o ódio por aquelas pes-

soas que desafiam a heterossexualidade compulsória dentro da


ideologia difusa e enraizada de submissão do gênero feminino

ao masculino . Segundo Daniel Borrillo, a "homofobia é um fe-


nômeno complexo e variado que pode ser percebido nas piadas
vulgares que ridicularizam o indivíduo efeminado, mas ela

pode também assumir formas mais brutais, chegando até a von-


tade de extermínio, como foi o caso na Alemanha Nazista .”
(BORRILO, 2021, p . 16) . Trata-se de uma forma de discrimina-
ção que tem como ponto central um sistema de intolerância e

um dispositivo intelectual e político, socialmente enraizados


que consagram o monopólio da normalidade à heterossexuali-
dade e que

"merecem ser denunciados com o mesmo vigor uti-
lizado contra o racismo ou o antissemitismo ." (BORRILLO,

2021 , p . 23).

Segundo Louis- Georges Tin, a homofobia expressa

algo mais profundo, que envolve diretamente a preponderância


do patriarcado, e consagra uma maneira bem mais ampla de de-
generação das qualidades consideradas femininas . A discrimi-

nação contra gays, lésbicas, trans, e a homofobia em geral tem

suas raízes na submissão do gênero feminino ao masculino, e


na heterossexualidade obrigatória como única experiência se-

xual legítima. (TIN : 2012, p . 10-11 ) . Por essa razão Judith Butler

defende que o feminismo toma como ponto de partida a domi-


nação estrutural de mulheres, o que torna natural a aliança com
outros movimentos de combate à violência sexual e não -sexual,

afinal " [... ] a violência fóbica contra os corpos faz parte do que

une ativismo anti -homofóbico, antirracista, feminista, trans e in-

tersexual ." (BUTLER: 2004, p . 9, tradução nossa) . Não sem razão


Ythalo Frota Loureiro | 155
que, na doutrina alemã, se utiliza a sigla “FLINTA*” para de-
signar a experiência de violência letal patriarcal que sofrem
“Frauen, Lesben, inter, nichbinären, trans undagenderPer-
sonen” (mulheres, lésbicas, pessoas inter, não binárias, trans e
agênero): “As FLINTAs* [...] são particularmente afetadas pela
violência femi(ni)cida, devido a sua posição social e à desvalo-
rização associada.” (GOETZ et alli, 2023, p. 13, tradução nossa).
A homofobia é uma espécie de “um continuum de vi-
olência patriarcal em que incluímos violência verbal, psicoló-
gica e física, violência econômica, violência misógina, sexista,
anti-queer, violência dirigida contra trans, inter, não-binário,
agênero [...] (GOETZ et alli, 2023, p. 74, tradução nossa). O femi-
nismo de todas as modalidades, mesmo o branco e heterosse-
xual, tem razões para aderir ao combate da homofobia. Como o
feminismo pretende promover o combate às quaisquer opres-
sões sobre o gênero feminino, inclui-se as pessoas LGBTI+ e, por
imperativo categórico, e exige-se a adesão de toda pessoa hu-
mana que se preocupa com direitos humanos.
No caso dos países da América Latina e Caribe, existe
uma preocupação ainda acentuada, dado “[...] os altos índices
de violência registrados na região contra pessoas LGBTI+, ou
percebidas como tal, bem como com a ausência de uma resposta
estatal efetiva a esse problema.” (COMISIÓN INTERAMERI-
CANA: 2019, p. 12, tradução nossa). A ideia de parâmetros in-
ternacionais para o combate da vitimização de pessoas LGBTI-
QIAPN+ pressupõe a necessidade de observância dos padrões
mínimos normativos do Direito Internacional, cujo principal
instrumento são os Princípios de Yogyakarta. O Princípio 4 esti-
pulam que “Todos têm direito à vida. Ninguém deve ser arbi-
trariamente privado da vida, inclusive por referência a conside-
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
156 |
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

rações de orientação sexual ou identidade de gênero ." (COR-

RÊA; MUNTARBHORN, 2007, p . 12, tradução nossa) . Os “Prin-


cípios de Yogyakarta”, adotados em 2006 por especialistas em
direitos (sem representação oficial de Estados), não são vincu-

lantes, não pertencem ao conjunto de normas de soft law (direito


em formação), eis que não editados por Estados ou por organi-

zações internacionais . (RAMOS, 2023, p . 281 ) .

Em seu conjunto, os "Princípios de Yogyakarta” são

uma reinterpretação dos artigos 1 , 2 , 3 e 6 da Declaração Uni-


versal dos Direitos Humanos de 1948 : todos os seres humanos

têm direito à vida, eis que nascem livres e iguais em dignidade

e direitos, sem distinção de sexo ou outra condição, e merecem

o mesmo tratamento perante a lei (UNITED NATIONS: 2015, p .


4-8 e 14). As pessoas possuem o direito ao gozo universal dos

direitos humanos, em especial o direito à vida, o direito de

igualdade e de não- discriminação, e o direito de proteção legal .

Nesse sentido, os " Princípios de Yogyakarta” se destacam como


normativas de interpretação importantes para o combate da vi-

timização letal intencional de pessoas LGBTI+.

A nível regional, o principal documento é a Conven-


ção Americana de Direitos Humanos (CADH), aprovada em
1969 e com vigência a partir de 1978. A CADH estabelece obri-

gações vinculantes aos Estados- partes (PIOVESAN; CRUZ,

2021 , p. 115) e estipula, no art. 4.1 , o direito à vida, protegida

por lei, desde a concepção, de modo que ninguém pode ser pri-

vado da vida arbitrariamente (OAS: 1978, p . 2) . No âmbito de


proteção constitucional, a vedação de discriminação por sexo,

orientação sexual e identidade de gênero deve ser encontrada

nas constituições nacionais . Por sua vez, a nível de proteção in-


fraconstitucional, a proteção legal contra a vitimização LGBTI-
Ythalo Frota Loureiro | 157
QIAPN+, por compromisso internacional, deveria ser encon-
trada nas legislações penais que criminalizam a homofobia letal,
o transfeminicídio ou o homicídio com circunstância qualifica-
dora ou agravante quando fundado em discriminação sexual,
de orientação sexual ou de identidade de gênero.
A garantia de proteção judicial é princípio que obriga
ao Estado:
(1) prevenir, processar e punir a violência e a discriminação
com base na orientação sexual e identidade e expressão
de gênero e, quando apropriado, oferecer reparação às
vítimas ou seus familiares;
(2) reconhecer a liberdade de cada ser humano para deter-
minar os limites de sua existência, incluindo sua identi-
dade e expressão de gênero (NACIONES UNIDAS: 2021,
p. 19).

No âmbito regional, está prevista no artigo 25 da


CADH, de modo que toda pessoa tem direito ao acesso à Justiça
para proteção contra atos que violem seus direitos fundamen-
tais, ainda que tal violação seja cometida pelos Estados-Partes
(OAS: 1978, p. 9).

2. O direito à vida nos casos submetidos à Comissão e à


Corte Interamericana de Direitos Humanos

No sistema de peticionamento do SIDH, o art. 61.1


da Convenção Americana permite que somente os Estados-par-
tes e a Comissão Interamericana submetam o caso à Corte. Con-
tudo, a própria a Convenção prever reparações à “parte lesada”
(Artigo 63.1), ou seja, as vítimas e não a Comissão, de modo que,
como explicou Antônio Cançado Trindade, “[...] reconhecer o
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
158 | sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

locusstandi in judicio das vítimas (ou de seus representantes) pe-


rante a Corte contribui para a ‘jurisdicionalização’ da proteção
[...], pondo fim à ambiguidade da função do a Comissão, que
não é uma ‘parte’ no processo, mas sim uma guardiã da correta
aplicação da Convenção.” (TRINDADE: 2011, p. 37, tradução
nossa).
A negligência reiterada e grave na proteção de direi-
tos humanos é a principal matéria de cognição dos órgãos de
proteção do Sistema Interamericano. Contudo, diferente do que
ocorre em outros sistemas de proteção, o acesso ao peticiona-
mento individual pelas pretensas vítimas de violação de direi-
tos humanos se concretiza, preliminarmente, perante a Comis-
são Interamericana de Direitos Humanos. Na forma do 44 da
CADH, a CIDH possui a competência de receber petições que
contenham denúncias ou queixas de violação da Convenção por
parte de um Estado-parte. As petições podem ser apresentadas
por pessoa, grupo de pessoas, entidade não-governamental le-
galmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da
OEA.
Uma das fases de processamento é a admissibilidade
da petição, na forma do art. 48 da CADH, estabelecendo quais
direitos teriam sido supostamente violados. Por sua vez, na fase
de “fondo” (mérito), após a impossibilidade ou a inviabilidade
de solução amistosa, a CIDH emite um informe com sua opinião
e suas conclusões a respeito do caso, realizará as proposições e
as recomendações que julgar adequadas, transmitindo-as ao Es-
tado-parte art. 51 da CADH). Em caso de descumprimento, a
CIDH pode formular um informe definitivo e encaminhar o
caso à Corte Interamericana (PIOVESAN; CRUZ: 2021, p. 142).
Portanto, o processamento das petições se submete ao um pro-
cedimento bipartite, no qual o caso necessita passar pela análise
Ythalo Frota Loureiro | 159
e atuação da Comissão para, em caso de descumprimento do
informe preliminar, ser submetido a julgamento pela CorteIDH.
Isso demonstra a importância da Comissão em influenciar os
Estados-parte a cumprirem a CADH, apesar de não ser um ór-
gão jurisdicional dentro do sistema regional.
Um exemplo é a Resolución 34/2022 da Comissão In-
teramericana de Direitos Humanos (CIDH), que, reconhecendo
os requisitos de gravidades, urgência e irreparabilidade,solici-
tou ao Brasil medidas cautelares protetivas em favor da verea-
dora de Niterói/RJ, Benny Briolly, primeira parlamentar trans a
assumir um mandato na Câmara Municipal daquela cidade.
Pelo menos, desde 2018, a vereadora e três membros de sua
equipe de trabalho receberam sucessivas e graves ameaças de
morte por meio de mensagens ofensivas nas redes sociais e no
e-mail institucional, inclusive com a participação de outros par-
lamentares.
As ameaças de morte eram sérias e se sucederam ao
longo aos anos. Ainda assim, houve reiteradas recusas do Poder
Público em proteger a vida da vereadora ou a proteção ofere-
cida era insuficiente. As investigações sobre os crimes cometi-
dos não resultaram em qualquer prisão, processo ou condena-
ção. A CIDH reconheceu que as normas e os entendimentos do
sistema interamericano devem proteger as pessoas transexuais
e, que “as pessoas LGBTI+ são particularmente vulneráveis à
violência, o que é reforçado pela disseminação de ‘discursos de
ódio’ dirigidos a esta comunidade em diferentes contextos [...]”
(CIDH: 2022, p. 9 e 11). A CIDH determinou que o Estado ado-
tasse as medidas necessárias para proteção os direitos à vida e
a integridade física da vereadora e dos membros de sua equipe
parlamentar ameaçados, considerando os enfoques étnico-ra-
cial e de gênero, inclusive adotando medidas para investigar os
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
160 |
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

fatos que deram causa à medida cautelar, visando evitar sua re-

petição (CIDH : 2022, p . 15) .


Trata-se apenas do início de um longo processo de

acompanhamento da suposta negligência do Brasil na proteção

de direitos fundamentais da parlamentar. Outras matérias se-

melhantes foram objeto de admissibilidade pela CIDH, con-


forme a Tabela 1 .

No caso Alexa Rodríguez versus El Salvador a CIDH

realizou a admissibilidade nos artigos 5, 8 , 11 , 13, 24 e 25 da


CADH, em concordância com o artigo 1.1 da mesma Conven-

ção. A parte peticionária denunciou a discriminação generali-

zada sofrida por pessoas trans em El Salvador por parte das au-
toridades estatais, e, em particular, afirmou que “ [ ...] Alexa Ro-

dríguez, cidadã salvadorenha e mulher trans, foi vítima de aten-


tados contra sua vida em duas ocasiões distintas por membros

de gangues e oficiais da Polícia Nacional Civil". (CIDH : 2016, p .


3).

Foram identificados dois casos julgados pela Comis-


são Interamericana em fase de "fondo" . No caso Gareth Henry

y Simone Carline Edwards versus Jamaica, a CIDH julgou situ-


ação de discriminação por perseguição policial e violência ge-
neralizada provocada por lei que criminalizou as relações sexu-

ais consensuais entre pessoas do mesmo sexo . Em razão do

clima extrema hostilidade proporcionado pelo Estado e pela so-

ciedade contra pessoas LGBTI+, em 29 de agosto de 2008, Si-


mone Carline Edwards, mulher lésbica, “ sofreu um ataque ho-

mofóbico que quase acabou com sua vida . [ ... ] dois membros
de uma gangue homofóbica atiraram várias vezes na Sra.
Edwards e seus irmãos, um dos quais também é gay, enquanto

eles estavam em sua casa em Spanish Town." (CIDH : 2020a, p .


3, tradução nossa).
Ythalo Frota Loureiro | 161

Tabela 1 - Casos da CIDH - Admissibilidade . Matéria relacionado à

violência letal e intencional de pessoas LGBTIQIAPN+

N Caso Informe Petição Data Normas admitidas Fatos alegados

"Artículos 4 (derecho a la
"La parte peticionaria alega que el Estado
vida), 5 (integridad
brasileño es responsable de la violación de los
personal), 8 (garantías
Kérika de derechos a la integridad personal y a la vida de
24 judiciales) y 25 (protección
Souza Lima la mujer trans Kérika de Souza Lima, que su
1 337/20 993-13 | nov . judicial), en relación con el
y familiares asesinato por agentes de la policía militar sigue
2020 artículo 1.1 (obligación de
versus Brasil impune y que los agentes responsables
respetar los derechos) de la
permanecieron en los cuadros de la
Convención Americana."
institución ." (p. 3)
(p . 2)

"Artículos 4 (vida), 5 "La parte peticionaria denuncia la privación de


(integridad personal), 8 la vida de Octavio Romero, funcionario de la
Octavio
(garantías judiciales), 24 Prefectura Naval Argentina, con base en su
Romero y
20 (igualdad ante la ley) y 25 orientación sexual, así como la falta de debida
Gabriel
2 132/18 1225-12 nov. (protección judicial) de la diligencia en la investigación . La parte
Gersbach
2018 Convención Americana peticionaria alega que la última vez que
versus
sobre Derechos Humanos, Octavio Romero fue visto con vida fue el 11 de
Argentina
en relación con su artículo junio de 2011. Indica que Romero salió de su
1.1 (obligación de respetar casa ese día para encontrarse con amigos pero
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
162 | sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

N Caso Informe Petição Data Normas admitidas Fatos alegados

los derechos); artículos I nunca llegó a la reunión. Afirma que al día


(vida, libertad, seguridad e siguiente Gabriel Gersbach, pareja de Octavio
integridad de la persona), Romero con quien convivía en la ciudad de
II (igualdad ante la ley) y Buenos Aires, denunció su desaparición en la
XVIII (justicia) de la Seccional nº 15 de la Policía Federal Argentina.
Declaración Americana de Señala que el 17 de junio de 2011 se encontró el
los Derechos y Deberes del cuerpo desnudo y sin vida de Octavio Romero
Hombre; y otros tratados flotando en la intersección de la Av. San Martín
internacionales.” (p. 2) y el Río de la Plata, jurisdicción de la Prefectura
Naval Argentina. Sostiene que de acuerdo con
la autopsia realizada con posterioridad, la causa
de muerte había sido “asfixia por sumersión,
luego de haber quedado inconsciente tras haber
sido golpeado y arrojado al agua”. (p. 3)
Ythalo Frota Loureiro | 163

N Caso Informe Petição Data Normas admitidas Fatos alegados

“Las peticionarias sostienen que el Estado es


"Declarar admisible la responsable por el retardo injustificado en la
presente petición en investigación del asesinato de Vicky Hernández
relación con los artículos 4, Castillo y alegan discriminación en el acceso a
5, 8, 13 [liberdade de la justicia, en virtud de su orientación sexual .
Vicky
pensamento e de Alegan que el Estado es responsable por haber
Hernández 6
expressão], 24 y 25 en violado el derecho a la vida de la presunta
3 y familia 64/16 2332-12 dez.
concordancia con el víctima, dado que su muerte ocurrió en una
versus 2016
artículo 1.1 de la época y una zona de alta militarización y
Honduras
Convención Americana, y movilización de miembros de las fuerzas de
el artículo 7 de la seguridad, y pudiera haber sido una ejecución
Convención de Belém do extrajudicial . Adicionalmente, sostienen que el
Pará ." (p . 7) Estado violó el deber de protección del derecho
a la vida de la presunta víctima.” (p . 2)

Fonte: OEA. CIDH . Relatoría sobre los Derechos de las Personas LGBTI. Disponível em:
https://www.oas.org/es/CIDH/jsForm/?File=/es/cidh/r/DLGBTI/default.asp. Acesso em: 18 jun. 2023.
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
164 | sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

Ao final, a Comissão concluiu que o Estado era res-


ponsável pela violação dos artigos 5.1 (direito à integridade fí-
sica), 11 (proteção da honra e da dignidade), 22.1 (direito de lo-
comoção), 24 (igualdade perante a lei) e 25.1 (proteção judicial)
da Convenção Americana, em relação às obrigações previstos
nos artigos 1 e 2 do referido instrumento, em prejuízo dos peti-
cionários. (CIDH: 2020a, p. 24). Não se admitiu a violação do
direito à vida.
Caso semelhante, no mesmo contexto, foi T. B. y S. H.
versus Jamaica, em que os peticionários também sofreram reite-
radas violações a seus direitos em razão da mesma legislação
que criminalizava as relações entre pessoas do mesmo sexo. Os
peticionários foram perseguidos, hostilizados e ameaçados de
morte por pessoas e agentes do estado, contudo não houve aten-
tado à vida (CIDH: 2020c, p. 2-5). Da mesma forma, não houve
admissão de violação do direito à vida, apesar de reconheci-
mento de violação aos direitos previstos nos artigos 5.1, 11, 22.1,
24, 25 e 26 (direito à saúde) da Convenção Americana.
Nos três últimos casos, apesar de relatos de atentado
à vida de pessoas LGBTI+, o direito à vida não foi objeto de re-
conhecimento de violação pela CIDH. Desse modo, a Comissão
somente realizaria a admissão do artigo 4 (direito à vida) da
Convenção quando há efetiva supressão da vida de pessoas
LGBTI+. O atentado à vida se enquadra melhor no 5.1, que
prevê o direito à integridade física, psíquica e moral. A hipótese
é testada por meio da descrição de outros casos de “fondo” jul-
gados pela Comissão Interamericana envolvendo direitos da
pauta LGBTI+ violados pelos Estados-partes, a ver na Tabela 2.
Ythalo Frota Loureiro | 165

Tabela 2 - Casos da CIDH – Fondo . Matéria NÃO relacionada à

violência letal e intencional de pessoas LGBTIQIAPN +

Descrição sumária da violação a direitos Artigos da CADH violados


N Partes Informe Caso Fondo
humanos indicados pela CIDH

Discriminação sofrida em razão da orientação


Crissthian
sexual: seguranças de supermercados na 1.1 (vedação de discriminação)
Manuel
29 cidade de Lima solicitou que Crissthian 8.1 . (garantias judiciais)
Olivera
1 304/20 13.050 out. cessasse expressões homoafetivas em público |11 (vida privada)
Fuentes
2020 e o expulsou do local . Houve negligência do 24 (igualdade perante a lei )
versus
Estado na proteção de direitos de reparação e 25 (proteção judicial)
Perú
punição da empresa .

Discriminação por detenção ilegal em razão


da orientação sexual : Azul Rojas foi detida
1.1 (vedação de discriminação )
por policiais , sem registro oficial e sem justa
Azul Rojas 5.1 , 5.2 . ( integridade pessoal)
causa , e sofreu violência física, psicológica e
Marín y 24 7.1 , 7.2, 7.3 (liberdade pessoal)
2 24/18 12.982 fev. violência sexual por agentes de polícia . A mãe
Otra 8.1 . (garantias judiciais )
de Azul, Juana Rojas Martín sofreu graves
versus 2018 11 (vida privada)
implicações em sua saúde em face do que
Perú 24 (igualdade perante a lei)
havia ocorrido com a mãe. Houve negligência
25.1 (proteção judicial)
do Estado na proteção de direitos de
reparação e punição .
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
166 | sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

Descrição sumária da violação a direitos Artigos da CADH violados


N Partes Informe Caso Fondo
humanos indicados pela CIDH

Discriminação por negativa de concessão de


pensão à companheiro em razão da orientação
sexual ou identidade de gênero: Ángel
Ángel solicitou pensão por morte de seu 1.1 (vedação de discriminação)
companheiro homoafetivo, mas houve negada 5.1
Alberto 2 pela empresa que administrava o fundo de (integridade pessoal)
3 Duque 4/14 12.841 abr. 8.1. (garantias judiciais)
pensão dado que a legislação vigente não
versus 2014 24 (igualdade perante a lei)
admitia a condição de dependente em uniões
Colombia 25.1 (proteção judicial)
de pessoas do mesmo sexo. Ángel procurou
proteção judicial, mas sua pretensão foi
negada pelo tribunal competente. Houve
negligência do Estado na proteção de direitos.

Discriminação em baixa do Exército em razão


da orientação sexual: Homero era oficial da
Homero Polícia Militar, alcançou a patente de Tenente, 1.1 (vedação de discriminação)
4 8.1. (garantias judiciais)
Flor Freire contudo, ao ser descoberta sua orientação
4 81/13 12.743 nov.
versus homossexual, foi expulso da Força Terrestre 24 (igualdade perante a lei)
2013
Ecuador equatoriana por “má conduta profissional” e 25.1 (proteção judicial)
“práticas homossexuais”. Houve negligência
do Estado na proteção de direitos.
Ythalo Frota Loureiro | 167

Descrição sumária da violação a direitos Artigos da CADH violados


N Partes Informe Caso Fondo
humanos indicados pela CIDH

Discriminação em processo judicial que


retirou a guarda das filhas em razão da
orientação sexual (lésbica) da mãe . O pai das
crianças ingressou com pedido de guarda das
filhas, alegando que elas estariam em grave
1.1 (vedação de discriminação)
risco no seu desenvolvimento físico e
Karen 8.1 . (garantias judiciais)
Atala y emocional porque a mãe estava mantendo
17 11.2 (vida privada)
uma relação homoafetiva com outra mulher
LO

5 niñas 139/09 12.502 set. 17.1 , 17.4 (proteção à família)


durante o exercício da guarda das filhas . O
versus 2010 19 (direitos das crianças)
Poder Judiciário determinou e manteve a
Chile 24 (igualdade perante a lei)
perda da guarda, retirando as filhas do
25.1 (proteção judicial)
âmbito de convivência com a mãe, Karen
Atala, baseada na legislação vigente que
prevê a "opção sexual distinta " como causa de
"inabilitação parental" . Houve negligência do
Estado na proteção de direitos .

Fonte : OEA. CIDH . Relatoría sobre los Derechos de las Personas LGBTI. Disponível em:
https://www.oas.org/es/CIDH/jsForm/?File=/es/cidh/r/DLGBTI/default.asp . Acesso em: 18 jun. 2023 .
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
168 | sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

Apenas o caso Vicky Hernández e família versus


Honduras, relacionado diretamente do direito à vida, chegou
na fase de “fondo”, por meio do Informe nº 157/2018,Caso
13.051, de 7 de dezembro de 2018. A Comissão Interamericana
concluiu que:

[...] o Estado é responsável pela violação dos arti-


gos 4.1 (direito à vida), 5.1 (direito à integridade
pessoal), 8.1 (garantias judiciais), 11 (direito à
honra e à dignidade). , 13 (liberdade de expressão),
24 (direito à igualdade e não discriminação) e 25.1
(proteção judicial) da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, em relação às obrigações esta-
belecidas no artigo 1.1 do mesmo instrumento. Da
mesma forma, a Comissão declarou a violação do
artigo 7 da Convenção Interamericana para Preve-
nir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
(CIDH: 2018a, p. 24)

O caso Vicky Hernández e família versus Honduras


foi enviado à CorteIDH, tendo prolatada sentença de mérito, re-
parações e custas, em 26 de março de 2021. CorteIDH, por una-
nimidade, reconheceu violação dos artigos 1.1 (vedação de dis-
criminação), 3 (reconhecimento da personalidade jurídica), 4.1
(direito à vida), 5.1 (integridade pessoal), 7 (liberdade pessoal),
8 (garantias judiciais), 11 (proteção à honra e à dignidade), 13
(liberdade de pensamento e de expressão), 18 (direito ao nome),
24 (proteção judicial) e 25 (proteção judicial) da CADH.
(CORTE: 2021, p. 54-55). Em outro termo, houve uma ampliação
do rol de direitos humanos reconhecidos como violados.
Outros casos relacionados aos direitos da pauta
LGBTI+ foram julgados antes e depois do caso Vicky Her
Ythalo Frota Loureiro | 169
nández e família versus Honduras, conforme a Tabela 3, con-
tudo não estão relacionados especificamente à negligência de
combate da homofobia letal.
Conclui-se que o caso Vicky Hernández e família ver-
sus Honduras é o único julgado pela CorteIDH em que houve
reconhecimento de violação ao direito à vida, previsto no artigo
4 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Portanto, é
desse caso que devem ser extraídos os parâmetros mínimos do
Sistema Americano para a proteção de direitos humanos contra
a homofobia letal intencional.

3. Os parâmetros mínimos do sistema de proteção


americano contra a homofobia letal intencional

Como mencionados, três são os casos identificados


em que houve admissibilidade de violação do direito à vida (art.
4), a luz da interpretação da vedação de discriminação (art. 1.1)
da Convenção Americana: Kérika de Souza Lima y familiares
versus Brasil (2020); Octavio Romero y Gabriel Gersbach versus
Argentina (2018); e Vicky Hernández y família versus Honduras
(2016). Esse último caso chegou a todas as fases do processo de
peticionamento do SIDH: admissibilidade e mérito no âmbito
da Comissão e da CorteIDH. Em conjunto, todos esses casos se
referem à violação de normas da CADH, interpretados con-
forme a obrigação de respeitar os direitos e o princípio de não-
discriminação (art. 1.1).
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
170 | sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

Tabela 3 ‒ Casos da CorteIDH ‒ Sentença. Matéria NÃO relacionada à


violência letal e intencional de pessoas LGBTIQIAPN+
Artigos da CADH reconhecidas
N Caso Decisão Quórum como violadas pela CorteIDH

1.1 (vedação de discriminação)


7.1 (liberdade pessoal)
Crissthian Manuel Oliveira Sentencia de 4 de febrero de 2022 8.1 (garantias judiciais)
1 (Fondo, Reparaciones y Costas) Unânime
Fuentes versus Perú 11.2 (vida privada)
24 (igualdade perante a lei)
25 (proteção judicial)

1.1 (vedação de discriminação)


7.1 (liberdade pessoal)
Sandra Cecilia Pavez Sentencia de 4 de febrero de 2022 8.1. (garantias judiciais)
2 (Fondo, Reparaciones y Costas) Unânime
Pavez versus Chile 11.2 (vida privada)
24 (igualdade perante a lei)
25 (proteção judicial)

Sentencia de 31 de agosto de 2016


Homero Flor Freire versus 1.1 (vedação de discriminação)
3 (Excepción Preliminar, Fondo, Unânime 24 (igualdade perante a lei)
Ecuador
Reparaciones y Costas)
Ythalo Frota Loureiro | 171

Artigos da CADH reconhecidas


N Caso Decisão Quórum
como violadas pela CorteIDH

Sentencia de 26 de febrero de 2016


Ángel Alberto Duque 1.1 (vedação de discriminação)
4 (Excepción Preliminar, Fondo, Maioria
versus Colombia 24 (igualdade perante a lei)
Reparaciones y Costas)

1.1 (vedação de discriminação)


8.1 . (garantias judiciais)
Karen Atala y niñas versus Sentencia de 24 defebrero de 2012 11.2 (vida privada)
LO5

Unânime
Chile (Fondo, Reparaciones y Costas) 17.1 (proteção à família)
19 (direitos das crianças)
24 (igualdade perante a lei)

Fonte: OEA. CIDH . Relatoría sobre los Derechos de las Personas LGBTI. Disponível em:
https://www.oas.org/es/CIDH/jsForm/?File=/es/cidh/r/DLGBTI/default.asp . Acesso em: 18 jun. 2023.
172 | Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

Não obstante, o caso Vicky Hernández y familia versus


Honduras, julgado pela CorteIDH em 2021 sintetizou e abarcou
todos os direitos da pauta LGBTI+ no caso de vitimização letal
intencional de pessoa LGBTI+:
1. Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica
(art. 3);
2. Direito à vida (art. 4);
3. Direito à integridade pessoal (art. 5);
4. Direito à liberdade pessoal (art. 7);
5. Direito às garantias judiciais (art. 8);
6. Direito à proteção da honra e da dignidade (art. 11);
7. Direito à liberdade de pensamento e de expressão (art.
13);
8. Direito ao nome (art. 18);
9. Igualdade perante a lei (art. 24);
10. Proteção judicial (art. 25 da CADH)
11. Proteção estatal ampla contra a violência de gênero (art.
7 da Convención Interamericana para Prevenir, Sancio-
nar y Erradicar la Violencia contra la Mujer – Convención
de Belem do Para).
Esses são os parâmetros normativos mínimosde pro-
teção de pessoas LGBTI+ contra a vitimização letal intencional
em razão da discriminação por sexo, orientação sexual ou iden-
tidade de gênero.
Segundo Flávia Piovesan e Júlia Cruz, “[...] a afirma-
ção prática do direito à não discriminação envolve a análise das
desigualdades existentes na sociedade, de modo a identificar di-
ferenças no acesso a direitos, assim como suas causas”, inclu-
sive no que diz respeito às discriminações múltiplas e intersec
Ythalo Frota Loureiro | 173
cionais(PIOVESAN; CRUZ, 2021, p. 49). Isso demanda que o Es-
tado atue de forma proativa no sentidode prevenir situações de
discriminação, adotando “medidas positivas para reverter situ-
ações de discriminação existentes na sociedade, especialmente
se estas ocorrem com a tolerância ou aquiescência de agentes
estatais” (PIOVESAN; CRUZ, 2021, p. 49).
No caso Atala Riffo y niñas versus Chile, aCorteIDHad-
mitiu a mesma definição de discriminação do artigo 1.1 da Con-
venção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial e do artigo 1.1 da Convenção sobre Elimi-
nação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher:
toda distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada em
determinados motivos, como a raça, a cor, o sexo, e que tenha
por objeto ou efeito anular ou prejudicar o reconhecimento,
gozo ou exercício, em condições de igualdade, dos direitos hu-
manos e das liberdades fundamentais de todas as pessoas.
(CORTE: 2012, p. 29). No caso Vicky Hernández y familia versus
Honduras, a CorteIDH reiterou o entendimento de que “[...] as
pessoas LGBTI têm sido historicamente vítimas de discrimina-
ção estrutural, estigmatização, diversas formas de violência e
violação de seus direitos fundamentais” e que “a orientação se-
xual, a identidade de gênero ou a expressão de gênero de uma
pessoa são categorias protegidas pela Convenção.” (CORTE:
2021, p. 21). Portanto, a CorteIDH concluiu que entre os motivos
de discriminação estão a orientação sexual e a identidade de gê-
nero.
Jaqueline de Jesus explica a diferença entre sexo, ori-
entação sexual e identidade de gênero: o sexo é uma constitui-
ção biológica (cromossomos e conformação genital); a orienta-
ção sexual se relaciona com a atração afetivo-sexual, uma “[...]
174 | Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

vivência interna de cada pessoa, relativamente à sua sexuali-


dade. Orientação sexual é diferente do senso pessoal de perten-
cer a algum gênero.” (JESUS: 2015, p. 42 e 53). Nos Princípios de
Yogyakarta, orientação sexual é a inclinação individual para “[...]
uma profunda atração emocional, afetiva e sexual e para rela-
ções íntimas e sexuais com indivíduos de gênero diferente, do
mesmo gênero ou de mais de um gênero.”; e identidade de gê-
nero se relacional à:

[...] experiência interna e individual de gênero pro-


fundamente sentida por cada pessoa, que pode ou
não corresponder ao sexo atribuído no nasci-
mento, incluindo o sentido pessoal do corpo [...] e
outras expressões de gênero, incluindo vesti-
menta, fala e maneirismos. (CORRÊA; MUN-
TARBHORN, 2007, p. 6, tradução nossa).

A identidade de gênero se remete a como as pessoas


se identificam, a si mesma e perante asociedade, como homens
ou como mulheres. (JESUS: 2015, p. 43). Portanto, “[...] uma pes-
soa trans pode ser bissexual, heterossexual ou homossexual, de-
pendendo do gênero que adota e do gênero com relação ao qual
se atrai afetivo-sexualmente [...]” (JESUS: 2015, p. 50).Sob esse
aspecto, sexo teria uma conotação biológica, enquanto orienta-
ção sexual e identidade de gênero estaria no campo de constru-
ções sociais irrecusáveis. Em todos os casos, tudo estaria sob o
pálio do determinismo inevitável, de modo que suas expressões
seriam despersonalizadas e normalizadas como fatos consuma-
dos da convivência humana. Ter uma orientação sexual ou se
identificar com um determinado sexo ou gênero seria tão nor-
mal como ter olhos castanhos ou cabelos negros.
Ythalo Frota Loureiro | 175
Por sua vez, Judith Butler alerta que não é possível
realizar separações herméticas entre sexo e gênero. Butler ad-
mite “[...] configurações culturais do sexo e do gênero [...]”, en-
quanto discurso fundante feminismo” (BUTLER: 2020, p. 253-
256). O discurso articulável se aproveita, ao mesmo tempo, do
determinismo biológico e das irrecusáveis constituições cultu-
rais do gênero, dado que:

[...] não há como recorrer a um corpo que já não


tenha sido sempre interpretado por meio de signi-
ficados culturais consequentemente, o sexo não
poderia qualificar-se como uma facticidade anatô-
mica pré-discursiva. Sem dúvida, será sempre
apresentado, por definição, como tendo sido gê-
nero desde o começo. (BUTLER: 2020, p. 28-29).

Butler entende o conceito de gênero como algo histó-


rico e performativo, contudo existe uma crença que a diferença
sexual seja uma diferença primária, o que torna possível dife-
renciações no interior da teoria feminista (BUTLER: 2004, p. 10).
A orientação sexual seria mais importante para gays, lésbicas e
bissexuais, enquanto a identidade de gênero é mais relevante
para transsexuais. Essa simplificação esconde as potencialida-
des dos corpos. LGBTIQIAPN+ é apenas uma sigla que não ex-
plicam o significado exato das palavras. A legislação diz qual é
o tipo de corpo que cada um deve ter, apesar de o corpo ser uma
potência. A regulação somente é libertária se o devir da dife-
rença assegurar mais direitos, contudo, em geral, é opressiva
aos direitos de minorias. A diferenciação entre orientação se-
xual e identidade de gênero é importante, uma vez que:

A sexualidade não decorre do gênero no sentido


de que o gênero que você “é” determina que tipo
176 | Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

de sexualidade você “terá”. Tentamos falar de ma-


neira comum sobre esses assuntos, declarando
nosso gênero, revelando nossa sexualidade, mas
somos, inadvertidamente, apanhados em mata-
gais ontológicos e dilemas epistemológicos. (BU-
TLER: 2004, p. 16, tradução nossa)

Portanto, se o termo LGBTIQIAPN+ não expressa


toda a potencialidade dos corpos, ao menos, a sigla serve para
a formulação de políticas públicas em favor dos indivíduos que
compõem esse grupo, que, na qualidade de pessoas humanas,
merecem ter seus direitos protegidos.A construção da hetero-
normatividade compulsória oprimiu as demais orientações se-
xuais e identidades de gênero, não importando o quanto são di-
versas, complexas e colidentes. De qualquer sorte, para fins de
reconhecimento de violação de direitos, o Sistema Interameri-
cano reconhece o direito das pessoas de viverem sem discrimi-
nação de sexo, orientação sexual e identidade de gênero. Este é
um ponto comum em todos os casos submetidos à Comissão e
à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A vedação de dis-
criminação no exercício de direitos é norma geral de interpreta-
ção na Convenção.
O direito de igualdade perante a lei (art. 24 da
CADH) é consequência lógica do dever de não-discriminação.
Esse direito tem uma faceta positiva, na medida que o Estado
deve editar normas e procedimento que “[...] favoreçam aqueles
que estejam em situações de indevida desvantagem social (os vul-
neráveis) ou imponham um ônus maior aos que estejam numa si-
tuação de exagerada vantagem social.” (RAMOS, 2023, p. 724-725).
Nos casos da Tabela 1, não foi encontrada a justificativa explí-
cita para o enquadramento no art. 24 da CADH nos casos admi-
tidos. Contudo, por dedução lógica, a situação de desigualdade
Ythalo Frota Loureiro | 177
perante a lei revela-se pela reiterada negligência estatal em pro-
teger os direitos humanos das vítimas LGBTI+ assassinadas. A
orientação sexual ou a identidade de gênero das vítimas foi de-
terminante em todos os casos. O dever de não-discriminação e
o direito de igualdade funcionam como mecanismos para a in-
terpretação dos demais direitos violados, em especial o direito
à vida, que, no caso da vitimização LGBTI+, desempenha um
papel central.
A negligência estatal na prevenção, punição e repa-
ração dos assassinatos de pessoa LGBTI+ é o elemento irrecusá-
vel que atrai o reconhecimento pela Comissão e pela Corte In-
teramericana de violação ao direito à vida, previsto no artigo 4
da Convenção Americana de Direitos Humanos. Todos os ou-
tros direitos infringidos gravitam entorno do direito à vida.
Como explica André de Carvalho Ramos, “[...] toda pessoa tem
o direito de que se respeite sua vida, o qual deve ser protegido
por lei ‘e, em geral, desde o momento da concepção’. Assim,
ninguém pode ser privado de sua vida arbitrariamente.” (RA-
MOS, 2023, p. 358).
No caso Vicky Hernández y familia versus Honduras, a
CorteIDH considerou que a morte de Vicky Hernández foi con-
sumada no momento em que o Estado exercia controle absoluto
dos espaços públicos e de locomoção das pessoas em face da
decretação do toque de recolher (CORTE: 2021, P. 26). A Cor-
teIDHainda considerou que, no momento do assassinato, havia
“[...] um contexto de violência, prisões arbitrárias, homicídios e
discriminação às pessoas LGBTI e, em particular, conta as mu-
lheres trans que se dedicavam ao trabalho sexual.” (CORTE:
2021, p. 27).
O direito à integridade pessoal (art. 5 da CADH) se
refere ao respeito da “[...] integridade física, psíquica e moral,
178 | Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

não podendo qualquer pessoa ser submetida a torturas, nem a


penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes.” (RAMOS,
2023, p. 359). A violação da integridade pessoal é recorrente e
antecede o assassinato de pessoas LGBTI+, muitas vezes esti-
mulada, como se viu nos casos admitidos e julgados pela CIDH
e pela CorteIDH, por um contexto de homofobia generalizado
por leis anti-LGBTI+ e por pessoas ou grupos homofóbicos, in-
cluindo-se agentes do Estado que deveriam proteger as pessoas
sem distinção de qualquer espécie.
No caso Vicky Hernández y familia versus Honduras, fo-
ram apuradas evidências de que Vicky foi encontrada com si-
nais de estrangulamento e com dois ferimentos à bala, um no
olho e outro na cabeça. Antes dos disparos, a vítima teria so-
frido violações a sua integridade física, possivelmente no con-
texto das incursões da Polícia Nacional, durante um toque de
recolher (CIDH: 2016, p. 2). A CorteIDH ainda considerou o tes-
temunho de Claudia Spellmant Sosa, no qual indicou que Vicky
e ela mesma foram vítimas de ataques violentos por parte da
Polícia em outras ocasiões durante detenções arbitrárias
(CORTE: 2021, p. 27).
Por sua vez, no caso Octavio Romero y Gabriel Gers-
bach versus Argentina, assim que sua orientação sexual foi reve-
lada no ambiente de trabalho, Octavio foi alvo de ridiculariza-
ção e assédio. Há evidências de que, antes de seu assassinato, a
vítima foi submetida à tortura (CIDH: 2018b, p. 2). No caso Ké-
rika de Souza Lima y familiares versus Brasil, Kérika, mulher
trans foi detida e agredida severamente por agentes policiais
durante horas e, após libertada, morreria em consequência das
agressões físicas (CIDH: 2020b, p. 2).
O direito às garantias judiciais (art. 8 da CADH) ex-
pressa as garantias judiciais, ou seja, assegura-se “[...] a toda
Ythalo Frota Loureiro | 179
pessoa o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e den-
tro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente,
independente e imparcial [...]” (RAMOS, 2023, p. 360). Por seu
turno, o direito à proteção judicial (art. 25 da CADH) assegura
a que toda pessoa tenha direito a um recurso simples e rápido
ou a qualquer outro recurso efetivo perante os juízes, ou tribu-
nais competentes, que a proteja contra atos que violem seus di-
reitos fundamentais.
Em todos os casos, familiares das vítimas assassina-
das não tiveram proteção estatal devida para identificação, pro-
cessamento e punição dos agressores. Não tiveram respeitados
os direitos de serem adequadamente ouvidas dentro de um
prazo razoável. A sensação de impunidade se perpetuou com a
sistemática negligência estatal que não investigou, processou e
puniu os responsáveis pelos crimes em razão da orientação se-
xual ou da identidade de gênero das vítimas. Como indicaram
Flávia Piovesan e Júlia Cruz, a violação do direito às garantias
judiciais foi reconhecida em 95% dos casos contenciosos da Cor-
teIDH, de modo que “[...] os direitos relacionados à justiça são
não apenas importantes por si, mas são também instrumentais
para a garantia dos demais direitos humanos.” (PIOVESAN;
CRUZ, 2021, p. 177). Trata-se do direito fundamental de impul-
sionar o Estado no dever de investigar violações de direitos hu-
manos, processar e punir os culpados; adotar medidas para que
essas violações não se repitam; e prestar a devida assistência ju-
rídica, psicossocial e financeira às famílias de pessoas LGBTI+
assassinadas.
A violação ao direito de liberdade de pensamento e
de expressão (art. 13 da CADH) foi somente citada no caso Vicky
Hernández y familia versus Honduras. Segundo a CIDH, houve
uma série de dificuldades na investigação do assassinado de
Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
180 | sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

Vicky em razão da sua expressão gênero, como a negativa de


realização de autópsia do corpo da vítima com a desculpa de
era HIV positiva; e a negativa de empreender diligências inves-
tigatórias por considerar a vítima como pessoa diferente e sem
direitos (CIDH: 2016, p. 2).
A Corte IDH foi além e ampliou o rol de direitos vi-
olados: reconhecimento da personalidade jurídica, liberdade
pessoal, proteção da honra e da dignidade, e o direito ao nome.
(CORTE: 2021, p. 32-35 e 55). Todos esses direitos ampliados de-
correm do direito à liberdade de expressão a respeito do gênero
feminino a que Vicky Hernández se identificava. Ademais, o
respeito à autonomia existencial quanto à orientação sexual é
um dado sensível que merece proteção estatal. Em consequên-
cia, a CorteIDH ainda reconheceu a aplicação da obrigação de
proteção estatal ampla contra a violência de gênero, prevista no
art. 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e
Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Conven-
ção de Belém do Pará (CORTE: 2021, p. 35-38 e 55). Enfim, Vicky
Hernández y familia versus Honduras é o caso mais emblemático
que sintetiza o atual arcabouço legal do Sistema Americano de
Direitos Humanos.

Considerações finais

O SIDH possui regrais que asseguram a proteção de


pessoas LGBTIQIAPN+ contra a negligência sistemática e insti-
tucional dos Estados-Partes da OEA. Entre as principais obriga-
ções dos Estados estão os deveres de prevenir a vitimização le-
tal e intencional das pessoas LGBTI+, adotando normas e pro-
cedimentos que visem o combate à discriminação em razão do
Ythalo Frota Loureiro | 181
sexo, da orientação sexual e da identidade de gênero. Ainda de-
vem estabelecer protocolos para investigação, processamento e
julgamento dos assassinatos de pessoas LGBTI+.
Para fins de definição de homofobia letal intencional,
verificou-se que, em três casos, a Comissão Interamericana rea-
lizou a admissão de suposta violação ao direito à vida: caso
Vicky Hernández y familia versus Honduras (2016), Octavio Romero
y Gabriel Gersbach versus Argentina (2018) e Kérika de Souza Lima
y familiares versus Brasil (2020). Apenas o primeiro chegou às fa-
ses de mérito no âmbito da CIDH e CorteIDH.
Assim conclui-se que são parâmetros legais, para o
reconhecimento de violação a direitos humanos em casos de vi-
timização de pessoas LGBTI+, as considerações sobre: dever de
não-discriminação (art. 1.1); direito ao reconhecimento da per-
sonalidade jurídica (art. 3); direito à vida (art. 4); direito à inte-
gridade pessoal (art. 5); direito à liberdade pessoal (art. 7); di-
reito às garantias judiciais (art. 8); direito à proteção da honra e
da dignidade(art. 11); direito à liberdade de pensamento e de
expressão (art. 13); direito ao nome (art. 18); igualdade perante
a lei (art. 24); proteção judicial (art. 25 da Convenção Americana
de Direitos Humanos); e proteção estatal ampla contra a violên-
cia de gênero (art. 7 da Convenção Interamericana para Preve-
nir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher ‒ Con-
venção de Belém do Pará). Ainda se verificou que o direito à
vida e o dever de não-discriminação possuem centralidade na
admissão e julgamento dos casos de violação de direitos huma-
nos quando ocorre homofobia letal intencional. Assim, os de-
mais direitos violados gravitam em torno do direito à vida, in-
terpretado sob o dever estatal de não-discriminação.
Pelo levantamento dos casos julgado no âmbito da
CorteIDH, concluiu-se que o Sistema Interamericano protege
182 | Os parâmetros de proteção do sistema interamericano de direitos humanos
sobre a negligência sistemática no combate a vitimização letal intencional...

melhor direitos de identidade e de expressão de gênero, os di-


reitos relativos à homoparentalidade, à família homoafetiva, do
que o direito à vida de pessoas assassinadas em razão da discri-
minação de sexo, orientação sexual ou identidade de gênero.
Pelo menos até 26 de março de 2021, o caso Vicky Hernández y
familia versus Honduras, que versa sobre vitimização letal inten-
cional LGBTI+, chegou à fase de mérito, enquanto a CorteIDH
julgou outros cinco casos, antes e depois, de Vicky Hernández.
Certo que os julgamentos anteriores serviram como
preparação para a ampliação do rol de direitos fundamentais
que as pessoas LGBTI+ precisam ter protegidos em caso de viti-
mização letal. Contudo, estabelecidos os paradigmas de prote-
ção, os casos de vitimização letal LGBTI+ precisam ter priori-
dade de julgamento, inclusive porque, em geral, dizem respeito
a outros direitos da pauta LGBTI+, em especial os relativos ao
reconhecimento da personalidade jurídica e de liberdade de ex-
pressão. Isso implica na necessidade de inversão da pauta de
proteção de direitos humanos, dado que o direito à vida é pauta
prioritária, sem o qual não há exercício de outros direitos.

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Ythalo Frota Loureiro | 187
THE PROTECTION PARAMETERS OF THE INTER-
AMERICAN SYSTEM OF HUMAN RIGHTS OVER
SYSTEMATIC NEGLIGENCE IN COMBATING THE
INTENTIONAL LETHAL VICTIMIZATION OF
LGBTIQIAPN+ PEOPLE
Abstract: This chapter aims to 1) identify the legal norms of the Amer-
ican Convention on Human Rights (ACHR) applicable to the lethal
and intentional victimization of LGBTI+ people; 2) describe the cases
admitted by the Inter-American Commission on Human Rights
(IACHR) on LGBTI+ victimization; and 3) describe the cases judged
by the IACHR and the IACHR that relate to other matters on the
LGBTI+ agenda. As a methodology, a qualitative and exploratory re-
search is used, through the analysis of cases judged by the IAHRS
bodies concerning LGBTI+ victimization; and, in particular, in the
case of Atala Riffo y niñas versus Chile, judged on February 24, 2012,
which inaugurated the recognition of discrimination based on sexual
orientation; and Vicky Hernández y familia v. Honduras, the first
case in which the Inter-American Court recognized the violation of
the right to life of a transsexual person, interpreting Article 4 of the
ACHR. It was concluded that the legal parameters for the recognition
of human rights violations in cases of victimization of LGBTI+ people
are: duty of non-discrimination (art. 1.1); right to recognition of legal
personality (art. 3); right to life (art. 4); right to personal integrity (art.
5); right to personal freedom (art. 7); right to judicial guarantees (art.
8); right to protection of honor and dignity (art. 11); right to freedom
of thought and expression (art. 13); right to name (art. 18); equality
before the law (art. 24); judicial protection (art. 25 of the ACHR); and
broad state protection against gender-based violence (art. 7 of the
Convention of Belém do Pará).
Keywords: LGBTI+ victimization. Intentional lethal violent crimes.
Inter-American Human Rights System.
CAPÍTULO VI.
CIDADES INTELIGENTES E ODS 11:
PROTAGONISMO DOS MUNICÍPIO NA
EXTINÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL
PARA OS OBJETIVOS DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Lucas Saraiva

William Paiva Marques Júnior

DOI: 10.29327/5341937.1-6

Resumo: Na hipótese do governo federal brasileiro discordar, não


tornar efetivo ou permanecer inerte, os outros entes federativos po-
dem tomar a iniciativa para cumprir, voluntariamente, compromissos
internacionais, uma vez que a gestão do meio ambiente é comparti-
lhada. Assim, o capítulo busca compreender a possibilidade do pro-
tagonismo dos Municípios por meio do modelo de cidades inteligen-
tes para alcançar as metas da Agenda 2030, especificamente, o Obje-
tivo de Desenvolvimento Sustentável 11 (ODS 11), considerando a ex-
tinção da Comissão Nacional para os ODS e esse vácuo de espaço po-
lítico. Para tanto, utiliza-se o método bibliográfico, qualitativo e de-
dutivo, buscando-se as referências mais atuais e importantes sobre o
tema ao mesmo tempo que se desenvolve uma resposta objetiva para
os problemas apresentados.

Palavras-chave: Cidades inteligentes. Agenda 2030. Inércia do go-


verno federal. ODS 11. Municípios. Comissão Nacional para os Obje-
tivos do Desenvolvimento Sustentável
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 189
Introdução

Em 2017, Donald Trump, o então presidente ameri-


cano, surpreendeu o mundo, anunciando que pretendia retirar
os Estados Unidos do Acordo de Paris, pois as condições im-
postas não eram benéficas para os cidadãos e para o desenvol-
vimento do país. Isto é, que o cumprimento do acordo interna-
cional iria trazer grandes desvantagens ao governo Estado esta-
dunidense, tendo em vista que a Contribuição Nacionalmente
Determinado (NDC), travaria o seu crescimento, principal-
mente, em comparação com China e outros países em desenvol-
vimento, que possuem uma contribuição menor1. Em resumo,
na sua concepção entendeu que “no final das contas o Acordo
de Paris é muito injusto, em um nível superior, para os Estados
Unidos”2. No entanto, a federação não seguiu o mesmo raciocí-
nio.
Ocorre que o Acordo de Paris foi uma negociação
histórica, tentando mobilizar os atores internacionais para obter
resultados efetivos na luta contra as mudanças climáticas. Para
tanto, o documento estabeleceu metas a longo prazo para os
participantes, como diminuir substancialmente as emissões de
gases de efeito estufa para limitar o aumento da temperatura

1 WHITE HOUSE. Statement by President Trump on the Paris Agreement Accord.


1 jun. 2017. Disponível em: https://trumpwhitehouse.archives.gov/briefings-sta-
tements/statement-president-trump-paris-climate-accord/. Acesso em: 29 jun.
2023.
2 Tradução livre do trecho: “But the bottom line is that the Paris Accord is very unfair,
at the highest level, to the United States.”.WHITE HOUSE. Statement by President
Trump on the Paris Agreement Accord. 1 jun. 2017. Disponível em: https://
trumpwhitehouse.archives.gov/briefings-statements/statement-president-
trump-paris-climate-accord/. Acesso em: 29 jun. 2023.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
190 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

global em no máximo 1,5 ºC, revisar os compromissos dos Esta-


dos a cada 5 anos e prover financiamento para que os países em
desenvolvimento mitiguem as mudanças climáticas, melho-
rando a sua resiliência e capacidade de adaptação3.
A lógica do combate às mudanças climáticas tem
como base a resolução de um problema oriundo do modelo ca-
pitalista de desenvolvimento linear, que tenta crescer a qual-
quer custo. Nesse processo, desconsidera-se as externalidades
da degradação do meio ambiente, gerando a falha de mercado,
uma vez que os recursos naturais não são infinitos. O ajuste é
desenvolvimento sustentável como um novo modelo econô-
mico capitalista. Dito em outros termos, o capitalismo começou
a levar em conta que a degradação ambiental e o aquecimento
global são um risco para “si mesmo”4. Afinal, não existe um Pla-
neta B.
Considerando essa questão, bem como as divergên-
cias políticas e de visão de mundo, os estados americanos da
federação, juntamente, com uma parte da Casa Branca alinha-
ram as suas perspectivas de continuar a implementação das me-
tas do Acordo de Paris, mesmo com a saída do governo federal5.
Nesse contexto foi criada a United States Climate Alliance for-
mada por coalizão bipartidária entre 24 estados da federação
americana e juntos somam 58% da economia, 54% da população

3 UNITED NATIONS. The Paris Agreement. Disponível em: https://www.un.org/


en/climatechange/paris-agreement. Acesso em: 29 jun. 2023.
4 BUFFON, Marciano. Tributação, desigualdade e mudanças climáticas: como o
capitalismo evitará o seu colapso. Curitiba: Brasil Publishing, 2019, p. 322.
5 NAVARTE, Racquel Javier. The United States Climate Alliance: a communica-
tive action perspective. 2020. Master’s Thesis (master in Internacional Relations)
- Faculty on Landscape and Society, Norges Miljø- og Biovitenskapelige Univer-
sitet, Norway, 2023, p. 45. Disponível em: https://nmbu.brage.unit.no/nmbu-
xmlui/handle/11250/3049744. Acesso em: 29 jun. 2023.
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 191
e 41% das emissões dos gases de efeito estufa dos Estados Uni-
dos6. Dentre os principais objetivos, destacam-se a redução dos
gases de efeito estufa de pelo menos 26-28% até 2025, e 50-52%
até 2030, bem como a promoção de celeridade para o cumpri-
mento das novas leis e das já existentes7.
Portanto, a aliança americana entre os estados é uma
possibilidade que pode acontecer em uma federação quando o
governo federal entra em desacordo com o estadual. Mas esse
fenômeno pode ocorrer na ausência ou na inércia do poder cen-
tral? Por exemplo, é possível também que os outros entes fede-
rativos possam assumir compromissos voluntários internacio-
nais nas hipóteses do governo federal discordar, não tornar efe-
tivo ou permanecer inerte? A partir dessa compreensão, a pre-
sente pesquisa busca responder a esses questionamentos à luz
da federação brasileira, especialmente, na figura peculiar dos
Municípios, que são uma inovação federativa, no tocante ao Ob-
jetivo de Desenvolvimento Sustentável 11 (ODS 11), da Agenda
2030.
Dessa forma, em um primeiro momento, apresenta-
se a federação brasileira e a gestão compartilhada da proteção
do meio ambiente para justificar a paradiplomacia dos Municí-
pios no cenário de implementação das ODS no Brasil. Posteri-
ormente, os termos cidades sustentáveis e inteligentes são pro-
blematizados considerando as metas do ODS 11, como uma
forma de responder como deve se dar a atuação do poder local.
Por fim, o método abordado é bibliográfico, qualitativo e dedu-
tivo, buscando-se as referências mais atuais e importantes sobre

6 UNITED STATES CLIMATE ALLIANCE. States united for climate action. Dis-
ponível em: http://www.usclimatealliance.org/. Acesso em: 29 jun. 2023.
7 UNITED STATES CLIMATE ALLIANCE. States united for climate action. Dis-
ponível em: http://www.usclimatealliance.org/. Acesso em: 29 jun. 2023.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
192 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

o tema ao mesmo tempo que se desenvolve uma resposta obje-


tiva para os problemas atuais apresentados, que podem influ-
enciar o planejamento dos Municípios.

1. Os limites de atuação dos municípios na gestão


compartilhada da proteção do meio ambiente: só a
União pode participar de acordos internacionais?

Assim como a federação americana, a brasileira


conta com mecanismos de independência dos entes federativos
certas matérias de forma suplementar e concorrente. Em seu art.
24 da Constituição Federal de 1988 (CF)8, cabendo aos estados,
a União e ao Distrito Federal legislar de forma concorrente so-
bre florestas, caça, pesca fauna, conservação da natureza, defesa
dos recursos naturais do meio ambiente e controle da poluição
(inciso VI), bem como sobre a responsabilidade por dano ao
meio ambiente (inciso VIII). Como forma de harmonizar a hie-
rarquia das leis, a União se limita a legislar para estabelecer nor-
mas gerais, isto é, traçar objetivos, princípios e diretrizes (§ 1º).

8 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrente-
mente sobre: VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do
solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;
VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e di-
reitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; § 1º No âmbito
da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer nor-
mas gerais. § 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não
exclui a competência suplementar dos Estados § 3º Inexistindo lei federal sobre
normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender
a suas peculiaridades. § 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais
suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. BRASIL. Constitui-
ção da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 30
jun. 2023.
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 193
E em paralelo, os estados podem suplementar o que
já foi delimitado pela União (§ 2º). Inclusive em casos de inexis-
tência de lei federal sobre normas gerais, possibilitando o exer-
cer a competência plena a fim de atender os interesses regionais
(§ 3º), mas na superveniência de lei federal se faz necessária
uma adaptação e revisão, suspendendo as contradições (§ 4º).
Por sua vez, a constituição faz menção aos Municípios no art.
239, afirmando a sua competência comum, juntamente, com a
União, os estados, o Distrito Federal sobre a proteção do meio
ambiente e combate a poluição em qualquer de suas formas (in-
ciso VI), bem como a preservação das florestas, da fauna e da
flora (inciso VII).
Objetivando fixar normas para a cooperação harmô-
nica dessa competência comum, a Lei Complementar nº
140/2011, elencou as ações administrativas que cabem a cada
ente federativo, para evitar a sobreposição de atuações, confli-
tos normativos e garantir a gestão administrativa eficiente (art.
3º, inciso III)10. Desse modo, são ações administrativas do Mu-
nicípios para a proteção do meio ambiente (art. 9º), entre outras:

9 Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios: VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de
suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora; Parágrafo único. Leis
complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento
e do bem-estar em âmbito nacional.
10 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, no exercício da competência comum a que se refere esta
Lei Complementar: I - proteger, defender e conservar o meio ambiente ecologica-
mente equilibrado, promovendo gestão descentralizada, democrática e eficiente;
II - garantir o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico com a proteção do
meio ambiente, observando a dignidade da pessoa humana, a erradicação da po-
breza e a redução das desigualdades sociais e regionais; III - harmonizar as polí-
ticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
194 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

fazer cumprir, em âmbito local, as políticas nacionais e estadu-


ais (inciso I), gerir os recursos naturais a nível local (inciso II),
integrar ações e programas federais, estaduais e municipais (in-
ciso IV)11.
Fato é que os estados possuem uma autonomia
maior, tanto financeira quanto legislativa para atuarem na inér-
cia da União. Por exemplo, o estado do Ceará lançou a Política
Estadual de Resíduos Sólidos (Lei estadual nº 13.013/2001),
nove anos antes da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei
federal nº 12.305/2010), sendo necessário revisar a própria lei
depois do lançamento das diretrizes da União12. Ainda sobre a
atuação não efetiva do poder federal sobre a proteção do meio
ambiente, destaca-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade
861 (ADI) da Lei nº 64/1993 do Estado do Amapá, que proibiu a
pesca de arrasto em seu mar territorial. Por mais que este seja
um bem da União, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
constitucionalidade da lei estadual, tendo em vista que objetiva

federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação ad-


ministrativa eficiente; IV - garantir a uniformidade da política ambiental para
todo o País, respeitadas as peculiaridades regionais e locais. BRASIL. Lei Com-
plementar nº 140, de 8 de dezembro de 2011. Disponível em: https://www.pla-
nalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp140.htm. Acesso em: 30 jun. 2023.
11 Art. 9o São ações administrativas dos Municípios: I - executar e fazer cumprir, em
âmbito municipal, as Políticas Nacional e Estadual de Meio Ambiente e demais
políticas nacionais e estaduais relacionadas à proteção do meio ambiente; II -
exercer a gestão dos recursos ambientais no âmbito de suas atribuições; III - for-
mular, executar e fazer cumprir a Política Municipal de Meio Ambiente; IV - pro-
mover, no Município, a integração de programas e ações de órgãos e entidades
da administração pública federal, estadual e municipal, relacionados à proteção
e à gestão ambiental;
12 CEARÁ. Política Estadual de Resíduos Sólidos. Disponível em: https://www.ci-
dades.ce.gov.br/politica-estadual-de-residuos-solidos/. Acesso em: 30 jun. 2023.
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 195
a proteção do meio ambiente marinho de forma concorrente su-
plementar:
1. Ao disciplinar, no âmbito do Estado federado, a
pesca industrial de arrasto de camarões e o aprovei-
tamento compulsório da fauna acompanhante, a Lei
nº 64/1993 do Estado do Amapá veicula normas in-
cidentes sobre pesca, proteção do meio ambiente e
responsabilidade por dano ao meio ambiente, ma-
térias a respeito das quais, a teor do art. 24, VI e VIII,
da CF, compete à União, aos Estados e ao Distrito
Federal legislar concorrentemente. 2. No modelo fe-
derativo brasileiro, estabelecida pela União a arqui-
tetura normativa da Política Nacional de Desenvol-
vimento Sustentável da Pesca (hoje consubstanci-
ada na Lei nº 11.959/2009), aos Estados compete,
além da supressão de eventuais lacunas, a previsão
de normas destinadas a complementar a norma ge-
ral e a atender suas peculiaridades locais, respeita-
dos os critérios (i) da preponderância do interesse
local, (ii) do exaurimento dos efeitos dentro dos res-
pectivos limites territoriais ‒ até mesmo para preve-
nir conflitos entre legislações estaduais potencial-
mente díspares ‒ e (iii) da vedação da proteção in-
suficiente. Precedente: ADI 3829/RS, Relator Minis-
tro Alexandre de Moraes, em 11.4.2019, DJe
17.5.2019. 3. Não se confunde a competência da
União, dos Estados e do Distrito Federal para legis-
lar concorrentemente sobre pesca e proteção do
meio-ambiente (art. 24, VI, da CF) com a competên-
cia privativa da União para legislar sobre embarca-
ções (arts. 22, I e XI, e 178 da CF). Ao condicionar o
emprego de embarcações estrangeiras arrendadas,
na pesca industrial de arrasto de camarões, à satis-
fação de exigências relativas à transferência de tec-
nologia e inovações, o art. 1º, III, da Lei nº 64/1993
exorbita da competência estadual, invadindo a
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
196 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

competência privativa da União para legislar sobre


embarcações13.

Ou seja, os estados podem se utilizar da sua compe-


tência suplementar ambiental para atuarem tanto na inércia da
União ou em sua ineficiência, tendo em vista que a gestão do
meio ambiente é compartilhada. Portanto, assim como nos Es-
tados Unidos, nada impede que os estados da federação brasi-
leira se unam para cumprir voluntariamente metas de acordos
internacionais de proteção ambiental. Assim, não podem parti-
cipar das negociações, mas podem se comprometer a cumpri-
rem as demandas em sua jurisdição de forma voluntária. Con-
siderando a possibilidade de atuação dos estados, quais são os
limites dos Municípios?
Como se viu, esse ente federativo apesar de poder le-
gislar sobre a proteção do meio ambiente como matéria comum,
deve se ater às necessidades locais e observar as políticas esta-
duais e federais durante a execução. Desse modo, os limites de
atuação dos Municípios na gestão compartilhada da proteção
ambiental é o desenvolvimento de instrumentos conforme a ne-
cessidade local, considerando as leis hierarquicamente superio-
res às existentes. Com isso, não podem inovar na legislação de-
vendo aplicar as já existentes, mas podem usar a sua criativi-
dade para desenvolver soluções. É sobre essa perspectiva que
deve exercer a sua atuação na proteção do meio ambiente do

13 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 861.


Requerente: Governador do Estado do Amapá. Requerido: Assembleia Legisla-
tiva do Estado do Amapá. Relator: Min. Rosa Weber. Brasília, DF: STF, 5 de junho
de 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=
1561990. Acesso em: 30 jun. 2023.
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 197

art. 225 da CF, fornecendo sólido arcabouço jurídico ao socio-


ambientalismo14.

Aduz o artigo que "todos têm direito ao meio ambi-

ente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sa-

dia qualidade de vida, impondo- se ao Poder Público e à coleti-


vidade o dever de defendê-lo e preservá -lo para as presentes e

futuras gerações"15. Portanto, como figura do Poder Público o

Município deve atuar na defesa do meio ambiente equilibrado,


preservando -o para as presentes e futuras gerações no limite da
sua competência. Isto é, observando os interesses locais ao

mesmo tempo que executa as políticas nacionais e estaduais.

Nesse sentido, os Municípios da mesma forma que os estados

podem participar de reuniões internacionais e implementar as


metas de forma voluntária, uma vez que atuam para garantir a

efetiva proteção ambiental .

14 MARQUES JÚNIOR, William Paiva . Sustentabilidade, Socioambientalismo e Di-


reitos da Natureza na América Latina. In: 15º Seminário Internacional de Gover-
nança e Sustentabilidade Universidade de Alicante, Espanha, 2020. 15º Seminário
Internacional de Governança e Sustentabilidade Universidade de Alicante, Es-
panha. Itajaí, Santa Catarina: UNIVALI, 2019. v. 01. p . 412. Link: https://periodi-
cos.univali.br/index.php/acts/article/view/16668 . Acesso em: 26 jul. 2023.
15 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo -se ao Po-
der Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes
e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao
Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover
o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a
integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à
pesquisa e manipulação de material genético; V - controlar a produção, a comer-
cialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco
para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação
ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preser-
vação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei,
as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade .
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
198 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

No exemplo de Paulo Leme Machado, mesmo que o


Município não possa legislar sobre as águas, mas pode aplicar
outras legislações que trate sobre as águas, federal ou munici-
pal, no ordenamento do território municipal 16. Do mesmo
modo, completa Bessa Antunes, entendendo que o meio ambi-
ente está incluído no conjunto de atribuições legislativas e ad-
ministrativas municipais, devendo se levar em conta também
que as cidades são as primeiras a localizarem e identificarem o
problema, assim, é possível implementar o princípio ecológico
de agir localmente, pensando globalmente 17. Por fim, nessa
complexa repartição de competências os limites de atuação de
cada ente federativo nem sempre serão facilmente aferíveis, ca-
bendo ao poder judiciário dirimir os conflitos18.
Ocorre que no Brasil, persiste uma situação seme-
lhante ao que aconteceu nos EUA, mas no tocante à implemen-
tação dos ODS da Agenda 2030. Em 2018, a Comissão Nacional
para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (CNODS)
foi extinta, deixando o Brasil sem uma instância para acompa-
nhar a implementação dessas metas. Dessa forma, algumas ci-
dades e estados promoveram a criação de instituições seme-
lhantes.

16 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21. ed. São
Paulo: Malheiros, 2013, p. 446.
17 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p.
131.
18 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21. ed. São
Paulo: Malheiros, 2013, p. 445.
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 199
2. Cidades inteligentes e soluções sustentáveis:
implementando o ODS 11

A CNODS foi criada em 2016, pelo Decreto nº 8.892,


com a finalidade de internalizar, difundir e dar transparência
ao processo de implementação da Agenda 2030. Tratava-se de
uma instância colegiada partidária formada pelo entes federati-
vos e pela sociedade civil, tendo ainda o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) e o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), como órgãos de assessoramento técnico
permanente19. Apesar da comissão ter elaborado um plano de
ação para o biênio de 2017 até 2019, as metas da agenda reque-
rem também um planejamento a longo e médio prazo, para
além do curto prazo que foi o foco do documento20. Outro ponto
é que boa parte dos produtos apresentados ou já eram previstos
ou foram desenvolvidos pelos órgãos assessores permanentes,
como o IPEA e o IBGE, não identificando um produto de inici-
ativa própria21.

19 BRASIL. Comissão Nacional para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentá-


vel. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/desenvolvimento-
sustentavel-e-meio-ambiente/desenvolvimento-sustentavel/comissao-nacional-
para-os-objetivos-do-desenvolvimento-sustentavel-cnods. Acesso em: 30 jun.
2023.
20 ARAÚJO, Ana Beatriz Arantes. A Agenda 2030 para o desenvolvimento susten-
tável e o Brasil: uma análise da governança para a implementação entre 2015 e
2019. 2019. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) - Universidade Fe-
deral de Uberlândia, Uberlândia, 2020, p. 104-106. Disponível em: https://reposi-
torio.ufu.br/handle/123456789/29191. Acesso em: 30 jun. 2023.
21 ARAÚJO, Ana Beatriz Arantes. A Agenda 2030 para o desenvolvimento susten-
tável e o Brasil: uma análise da governança para a implementação entre 2015 e
2019. 2019. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) - Universidade Fe-
deral de Uberlândia, Uberlândia, 2020, p. 105. Disponível em: https://reposito-
rio.ufu.br/handle/123456789/29191. Acesso em: 30 jun. 2023.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
200 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

Não obstante, o CNODS foi extinto em 2019, pelo De-


creto nº 9.759, incluindo também outros colegiados22. Desde en-
tão, o governo federal está inerte no papel de coordenar no âm-
bito nacional a implementação dos ODS. Malgrado a ausência,
como se viu, os Municípios podem tomar a iniciativa e protago-
nizar esse processo, principalmente, por meio do ODS 11, que
busca tornar as cidades inclusivas, seguras, resilientes e susten-
táveis. Dentre as metas, destacam-se o acesso de todos à mora-
dia digna e adequada (meta 11.1), mobilidade urbana sustentá-
vel e inclusiva (meta 11.2), gestão integrada, participativa e sus-
tentável (meta 11.3), redução dos impactos dos desastres climá-
ticos (meta 11.5), melhoria da qualidade do ar e da gestão dos
resíduos sólidos (meta 11.6), e integração econômica, social e
ambiental entre áreas urbanas (meta 11.a)23.

22 BRASIL. Governança nacional para os ODS. Disponível em: http://www4.pla-


nalto.gov.br/ods/noticias/governanca-nacional-para-os-ods. Acesso em: 1 jul.
2023.
23 Meta 11.1: Até 2030, garantir o acesso de todos à moradia digna, adequada e a
preço acessível; aos serviços básicos e urbanizar os assentamentos precários de
acordo com as metas assumidas no Plano Nacional de Habitação, com especial
atenção para grupos em situação de vulnerabilidade; Meta 11.2: Até 2030, melho-
rar a segurança viária e o acesso à cidade por meio de sistemas de mobilidade
urbana mais sustentáveis, inclusivos, eficientes e justos, priorizando o transporte
público de massa e o transporte ativo, com especial atenção para as necessidades
das pessoas em situação de vulnerabilidade, como aquelas com deficiência e com
mobilidade reduzida, mulheres, crianças e pessoas idosas.; Meta 11.3: Até 2030,
aumentar a urbanização inclusiva e sustentável, aprimorar as capacidades para o
planejamento, para o controle social e para a gestão participativa, integrada e sus-
tentável dos assentamentos humanos, em todas as unidades da federação.; Meta
11.5: Até 2030, reduzir significativamente o número de mortes e o número de pes-
soas afetadas por desastres naturais de origem hidrometeorológica e climatoló-
gica, bem como diminuir substancialmente o número de pessoas residentes em
áreas de risco e as perdas econômicas diretas causadas por esses desastres em
relação ao produto interno bruto, com especial atenção na proteção de pessoas de
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 201

Dessa maneira, os Municípios brasileiros para imple-

mentarem o ODS precisam incluir todas as metas em seu plane-


jamento, principalmente, os do ODS 11 , tendo em vista servem

de base, elencando pontos de intersecção com as outras 11 me-

tas remanescentes, pois todas são interconectadas . Isto é, apesar

de haver outras metas da agenda, o ODS 11, pode ser conside-


rado como o mais relevante para as cidades, visto que trata dos
problemas localmente . Além disso, é característico das cidades

a sua capacidade de inovação para solucionar os problemas lo-


cais, principalmente, por meio do uso das tecnologias de infor-
mação e comunicação (TICs) , caracterizando o modelo de cida-

des inteligentes .

Por exemplo, o projeto Re -ciclo, que é executado em

Fortaleza/CE, funciona como uma plataforma gratuita de coleta


de recicláveis , conectando os catadores com esses materiais24 . A

ideia é que os geradores de lixo se cadastrem na plataforma e

agendem um dia para que a coleta porta a porta seja realizada


com triciclos elétricos . E no final, todo o acumulado é destinado

aos Ecopontos parceiros e depois aos catadores25. Conforme os

baixa renda e em situação de vulnerabilidade .; Meta 11.6: Até 2030, reduzir o im-
pacto ambiental negativo per capita das cidades, melhorando os índices de qua-
lidade do ar e a gestão de resíduos sólidos; e garantir que todas as cidades com
acima de 500 mil habitantes tenham implementado sistemas de monitoramento
de qualidade do ar e planos de gerenciamento de resíduos sólidos.; Meta 11.a:
Apoiar a integração econômica, social e ambiental em áreas metropolitanas e en-
tre áreas urbanas, periurbanas, rurais e cidades gêmeas, considerando territórios
de povos e comunidades tradicionais, por meio da cooperação interfederativa,
reforçando o planejamento nacional, regional e local de desenvolvimento. IPEA.
ODS 11 : Cidades e comunidades sustentáveis. Disponível em: https: //
www.ipea.gov.br/ods/ods11.html. Acesso em: 1 jul . 2023.
24 RE- CICLO. Re-ciclo. Disponível em: https://www.reciclofortaleza.com.br/.
Acesso em: 1 jul. 2023.
25

25
RE-CICLO. Re-ciclo . Disponível em: https://www.reciclofortaleza.com.br/.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
202 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

resultados, desde setembro de 2022, foram coletadas mais 261,6


toneladas de resíduos recicláveis e gerada uma renda acumu-
lada de R$ 342.760,00, para os catadores26. Apesar de apresentar
bons resultados, ainda requer estudos práticos para comprovar
a sua efetividade.
No entanto, em um primeiro momento, demonstra
ser uma solução tecnológica inovadora e sustentável. A neces-
sidade de pesquisas no campo se justifica pela importância da
revisão de dados para averiguar os impactos alcançados, uma
vez que as cidades inteligentes podem se tornar ferramentas da
desigualdade. No exemplo de Teresa Cristina, a cidade de Bos-
ton desenvolveu um aplicativo para que a população avisasse a
prefeitura dos buracos que existiam na cidade 27. Posterior-
mente, diversos buracos foram relatados o que significava um
sucesso no empreendimento, contudo era apenas aparente visto
que não era eficiente, pois os problemas foram relatados so-
mente nas partes mais nobres da cidade. Assim, por meio do
aplicativo somente as áreas mais ricas seriam beneficiadas en-
quanto que os bairros mais pobres e periféricos que não repor-
taram permaneceram com os buracos.
Diante disso, por mais que as cidades inteligentes
possam fornecer soluções sustentáveis para o cumprimento das
metas da ODS 11, como moradia digna e adequada, mobilidade

Acesso em: 1 jul. 2023.


26 RE-CICLO. Re-ciclo. Disponível em: https://www.reciclofortaleza.com.br/.
Acesso em: 1 jul. 2023.
27 MENDES, Teresa Cristina M. Smartcities: solução para as cidades ou aprofunda-
mento das desigualdades sociais. Observatório das Metrópoles, p. 4, 2020. Dis-
ponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/smart-cities-solucao-
para-as-cidades-ou-aprofundamento-das-desigualdades-sociais-texto-para-dis-
cussao/. Acesso em: 22 jun. 2023.
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 203
urbana, gestão participativa, melhoria da qualidade do ar, ges-
tão dos resíduos sólidos entre outros, os Municípios brasileiros
ao adotarem esse modelo de cidade precisam considerar em
seus planejamentos os riscos advindos dessa forma de se urba-
nizar. Isso porque na construção histórica do pensamento das
cidades inteligentes não se verifica uma reflexão sobre a desi-
gualdade socioeconômica, segregação socioespacial e condições
de acesso às novas tecnologias28. Em outras palavras, não adi-
anta que somente as partes mais ricas da cidade, que já contam
com a melhor infraestrutura, acabam sendo as mais beneficia-
das de uma solução tecnológica que deveria melhorar a condi-
ção de vida de todos.
Portanto, na implementação das metas do ODS 11,
por meio do modelo de cidades inteligentes, a gestão adminis-
trativa precisa ser eficiente, utilizando as novas tecnologias para
o combate às mudanças climáticas, considerando as desigual-
dades sociais, principalmente, na adaptação para o contexto
brasileiro. Na compreensão de Marrara, que é da lógica da de-
mocracia a racionalidade da gestão administrativa, concreti-
zando os interesses públicos e difusos escolhidos pela comuni-
dade por ele ordenada, assim, um Estado que ignora o seu povo
ou apenas finge respeitá-lo não deveria nem existir29.

28 CASIMIRO, Lígia Maria Silva de; CARVALHO, Harley. Para cidades justas, em
rede e inteligentes: uma agenda pública pelo direito à cidade sustentável. Inter-
nationalJournalof Digital Law, ano 2, n. 1, p. 205, 2021. Disponível em: https://
doi.org/10.47975/IJDL/1casimiro. Acesso em: 23 jun. 2023.
29 MARRARA, Thiago. A atividade de planejamento na administração pública: o
papel e o conteúdo das normas previstas no anteprojeto da nova lei de organiza-
ção administrativa. Revista Brasileira de Direito Público, v. 9, n. 34, p. 12, jul/
ago/set 2011.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
204 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

Em resumo, é obrigação da gestão administrativa


elaborar o seu planejamento para concretizar os direitos elegi-
dos pelo povo. Considerando a questão das mudanças climáti-
cas, os Municípios brasileiros têm um papel fundamental na im-
plementação da ODS 11, anunciando várias metas interrelacio-
nadas que devem constar em seu planejamento por meio das
cidades inteligentes. Afinal, a justificativa das políticas públicas
é a própria existência dos direitos sociais, necessitando de pres-
tação positiva do Estado para a sua efetivação30. Por isso, na
inércia da União, as cidades podem no limite da sua jurisdição
desenvolver métodos inovadores para alçarem resultados glo-
bais com impactos locais. Com isso, boa iniciativas que conside-
rem todos esses elementos podem ser replicadas no restante do
Brasil, uma vez que com a rápida evolução das novas tecnolo-
gias as cidades funcionam como laboratórios31.
Por fim, na hipótese da gestão do Município ser ine-
fetivo contra as mudanças climáticas, outras instituições podem
exigir da figura do gestor o comprometimento maior com a
causa, principalmente, por meio da luta e resistência, que é ca-
racterística dos movimentos sociais brasileiros. Isso porque, no
contexto brasileiro, por mais avançadas que sejam as leis, isso
não é suficiente para reformar um problema estrutural, possibi-
litando a existência de dois mundos, o que a lei prega e o vivido

30 DALLARI, Maria Paula Bucci. Políticas públicas e direito administrativo. Re-


vista de informação legislativa, v. 34, n. 133, p. 90, jan./mar. 1997. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/198. Acesso em: 1 jul. 2023.
31 CASIMIRO, Lígia Maria Silva Melo de; JEREISSATI, Lucas Campos. Smartcities e
mudanças climáticas: debates e tensões no âmbito da gestão urbana contemporâ-
nea. Revista de Direito Administrativo e Constitucional, v. 22, n. 88, p. 201-232,
abr./jun. 2022. Disponível em: http://dx.doi.org/10.21056/aec.v22i88.1609. Acesso
em: 1 jul. 2023.
Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 205
na realidade32. Nessa perspectiva, as cidades podem ser maqui-
adas na parte que tem mais infraestrutura e vendida, como se
essa pequena parte representasse o todo, isto é, a venda da ima-
gem da parte mais avançada da cidade pode ser usada para afir-
mar o bom uso da TICs33.

Considerações finais

Levando em consideração que nas federações cada


ente tem a sua autonomia com a devida competência, o acom-
panhamento da Agenda 2030, no Brasil, pode ser realizada
tanto pelos os estados quanto pelos Municípios. Com a extinção
do CNODS, esse protagonismo da pauta pode ser feito por
qualquer um dos dois entes, sendo que o estado tem mais auto-
nomia e poder financeiro para se planejar, contudo as cidades
também podem exercer essa iniciativa com destaque para as
mais capitalizadas que utilizam o modelo de cidades inteligen-
tes. Dessa forma, o uso das TICs podem ser essenciais para o
cumprimento das metas da agenda que busca mitigar o impacto
das mudanças climáticas.
Por conseguinte, o ODS 11, elenca uma série de me-
tas que podem guiar o planejamento das cidades inteligentes
para a execução dos demais objetivos, tendo em vista que são
interconectados entre si. No entanto, na elaboração do plano

32 TRINDADE, Thiago Aparecido. Direitos e cidadania: reflexões sobre o Direito à


cidade. Revista Lua Nova, n. 87, p. 160, 2012. Disponível em: https://www.re-
dalyc.org/articulo.oa?id=67325208007. Acesso em: 1 jul. 2023
33 ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensa-
mento único: desmanchando consensos. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2000, p.
81.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
206 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

para executá-los é necessário um cuidado da parte da gestão ad-


ministrativa para que seja eficiente. Por mais que as soluções
desenvolvidas possam ser inovadoras, tecnológicas e criativas,
devem também considerar as desigualdades sociais, junta-
mente, com os problemas que pretende resolver. Isso porque o
modelo de cidades inteligentes pode, na verdade, servir de ins-
trumento para ampliar as desigualdades sociais enquanto pre-
tende resolver o problema das mudanças climáticas, solucio-
nando o problema de alguns em detrimentos de todos.
Portanto, na inércia do poder federal brasileiro no to-
cante à Agenda 2030 e os ODS, o poder municipal no limite de
suas competências, pode preencher esse espaço político sem
que isso signifique inconstitucionalidade, pois a proteção do
meio ambiente é de gestão coletiva e descentralizada. Nesse
mesmo sentido, os movimentos sociais podem acompanhar o
poder público para exigir a ação positiva no cumprimento dos
direitos sociais, na hipótese de que todo o poder público fique
inerte, ou ainda, quando na tentativa de implementar esteja na
verdade ampliando as desigualdades sociais existentes.

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Lucas Saraiva e William Paiva Marques Júnior | 211
SMART CITIES AND SDG 11: THE ROLE OF
MUNICIPALITIES IN THE DEMISE OF THE
NATIONAL COMMISSION FOR SUSTAINABLE
DEVELOPMENT GOALS
Abstract: In the event that the Brazilian federal government disa-
grees, does not become effective or remains inert, the other federative
entities can take the initiative to voluntarily fulfill international com-
mitments, since environmental management is shared. Thus, the
chapter seeks to understand the possibility of the role of Municipali-
ties through the smart cities model to achieve the goals of the 2030
Agenda, specifically, Sustainable Development Goal 11 (SDG 11),
considering the extinction of the National Commission for the SDGs
and this vacuum of political space. To this end, the bibliographic,
qualitative and deductive method is used, seeking the most current
and important references on the subject while developing an objective
answer to the problems presented.
Keywords: Smart cities. Agenda 2030. Federal government inaction.
SDG 11. Municipalities. National Commission for Sustainable Deve-
lopment Goals.
CAPÍTULO VII.
A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS
AMBIENTAIS NAS DECISÕES DO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE
VERSAM SOBRE UTILIZAÇÃO DE
PLÁSTICO∴

Amanda Rodrigues Lavôr*

Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes**

DOI: 10.29327/5341937.1-7

RESUMO: Quais são os princípios ambientais utilizados pelo STF nas


decisões que envolvem a utilização de plástico? Como é feita essa
aplicação? A humanidade expandiu, gradativamente, sua capacidade
de produção e consumo. Cresceu também a quantidade de resíduos
gerados nesse processo, entre eles, encontram-se os plásticos. Os da-
dos alarmantes apresentados sobre a produção e o descarte dos ma-
teriais plásticos demonstram a gravidade do problema, em um nível
global. Diante da importância de resguardar o direito constitucional
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e sadio, de maneira
preventiva e não apenas reparatória, é indispensável destrinchar a


O presente capítulo foi feito com o apoio do Fundação Cearense de Apoio ao De-
senvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP.
*
Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza. Especialista em Direito Pro-
cessual Civil pela Universidade de Fortaleza. Mestranda em Direito pela Univer-
sidade Federal do Ceará.
**
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito
Internacional pela Universidade de Fortaleza. Mestrando em Direito pela Univer-
sidade Federal do Ceará.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 213
atuação do Poder Judiciário. Para compreensão da referida proposta,
aplica-se a pesquisa do tipo bibliográfica e documental, com base em
revisão de literatura de artigos científicos, natureza pura e descritiva,
na análise de projetos e relatórios que versam sobre o tema e aplicação
da MAD para análise das decisões. Esta pesquisa tem relevância teó-
rica e prática, pois oferece uma contribuição original sobre danos am-
bientais, especificamente pela utilização e descarte inadequado de
plásticos e possibilita uma maior visibilidade às questões ambientais
e de sustentabilidade, bem como apontará quais são os fundamentos
decisórios utilizados. Conclui-se que não existem muitos julgados do
STF que relacionam a matérias ambientais com a poluição por plás-
tico. Nas decisões analisadas, verificam-se que os princípios do pro-
tetor-recebedor; princípio da defesa do meio ambiente; princípio do
meio ambiente equilibrado; princípio da sustentabilidade; princípio
da precaução. Contudo, as decisões são frágeis e insuficientes para
reprimir a ocorrência e o crescimento desse tipo de ação lesiva ao
meio ambiente.
Palavras-chave: Direito Ambiental. Poluição. Plástico. PrincípiosAm-
bientais. Decisões.

Introdução

O presente capítulo pretende responder ao seguinte


problema de pesquisa: Quais são os princípios utilizados pelo
Supremo Tribunal Federal nas decisões que envolvem a utiliza-
ção de plástico? Como é feita essa aplicação?
Com o passar dos anos, vive-se uma crise ambiental
e paradigmática, uma vez que a humanidade expandiu, grada-
tivamente, sua capacidade de produção e consumo. Por conse-
guinte, cresceu também a quantidade de resíduos gerados nesse
processo, à proporção que o manuseio desses detritos não con-
seguiu acompanhar o aumento exponencial de sua produção, o
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
214 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

que acabou causando o despejo desses materiais na natureza de


forma indiscriminada e inadequada
Entre tais materiais, encontram-se os plásticos, que
possuem quase infinitas aplicações comerciais e estão presentes
em quase todas as áreas da vida humana. Entretanto, ainda que
seja utilizado em larga escala atualmente, o plástico é um mate-
rial de difícil decomposição, a qual pode perdurar por séculos,
tornando o seu despejo inadequado uma ameaça ao equilíbrio
do ecossistema.
Os dados alarmantes apresentados sobre a produção
e o descarte dos materiais plásticos demonstram a gravidade do
problema, em um nível global.
A perspectiva nacional não é favorável. O Brasil pro-
duz, anualmente, mais de 78,3 milhões de toneladas de resíduos
sólidos, dos quais 13,5% são de plástico. A quantidade é três ve-
zes maior do que a produção de grãos de café, um dos princi-
pais artigos agrícolas do país, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística.
Assim, apesar dos esforços intentados até o mo-
mento para controlar tal degradação ambiental, o que se ob-
serva é que as medidas utilizadas para esse fim, a exemplo da
reciclagem, não conseguem ter expressão diante do volume de
material produzido e descartado diariamente.
Atualmente, o direito ao meio ambiente ecologica-
mente equilibrado e sadio é uma prerrogativa constitucional-
mente e está caracterizado como direito fundamental de terceira
geração, que levam a restrições ao exercício de direitos subjeti-
vos.
Diante da gravidade da situação e da importância de
resguardar esse direito constitucional, de maneira preventiva e
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 215
não apenas reparatória, é indispensável destrinchar a atuação
do Poder Judiciário.
Para compreensão da referida proposta, tem-se como
objetivo identificar os princípios utilizados pela Suprema Corte
em ações que tratam da questão ambiental ligada a poluição por
plástico e verificar como é feita essa aplicação.
Utiliza-se pesquisa do tipo bibliográfica e documen-
tal, com base em revisão de literatura de artigos científicos reti-
rados de revistas indexadas de Qualis A e B e natureza pura e
descritiva.
A abordagem é qualitativa mediante a utilização da
Metodologia de Análise de Decisões (MAD), desenvolvida por
Roberto Freitas Filho e Thalita Moraes Lima, para o estudo das
decisões selecionadas no último tópico.
A periodização da pesquisa terá como marco inicial
o ano de 1988, ano da vigência da atual Constituição Federal,
que prevê o direito ao meio ambiente sadio como direito funda-
mental de terceira geração, e marco final dezembro de 2022, em
razão da atualidade dos dados ao tempo da realização da pes-
quisa.
Inicialmente, será realizada uma pesquisa explorató-
ria para se habituar à área do problema jurídico tratado, criando
uma base teórica sobre o tema, a ser elaborada nos dois primei-
ros tópicos. Mostrar-se-ão os indicadores alarmantes e versará
sobre a constituição do Direito Ambiental brasileiro e os seus
princípios norteadores.
Ressalta-se que os princípios selecionados no tópicos
2, além de serem princípios basilares e instrumentais do Direito
Ambiental, estarão diretamente relacionados às decisões seleci-
onadas no tópico 3 e os princípios nelas encontrados.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
216 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

O recorte objetivo foi feito quando suscitada a dú-


vida sobre de que forma as decisões do Supremo Tribunal Fe-
deral utilizam os princípios ambientais para conduzir e funda-
mentas as decisões que tratam de produtos plásticos.
Para o recorte institucional, foi selecionado o STF, em
razão de ser o órgão de cúpula do Poder Judiciário e ter compe-
tência de resguardar a Constituição, conforme definido no art.
102 da Constituição da República.
A pesquisa é relevante teórica ao trazer ao debate os
princípios do direito ambiental e a sua aplicação (ou não) nas
decisões do STF, retratando uma contribuição empírica sobre o
tema. A relevância prática e social do trabalho decorre de a pos-
sibilidade da resposta alcançada conferir maior visibilidade às
questões ambientais e de sustentabilidade, bem como pode for-
necer auxílio técnico-jurídico às ações governamentais para a
formulação de políticas públicas e programas nacionais de de-
senvolvimento nesse sentido.
A pesquisa promove uma discussão em torno da ju-
dicialização das questões ambientais e, ao investigar a tendên-
cia decisória do STF em ações que versem sobre a poluição por
plástico, apontará quais são os fundamentos decisórios utiliza-
dos.

1. A realidade da poluição por plásticos: indicadores


internacionais e nacionais

Com o passar dos anos, vive-se uma crise ambiental


e paradigmática, em razão de se experimentar um momento de
“superação da ideia do ser humano na posição de superioridade
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 217
em relação aos demais seres vivos” (MARQUES JÚNIOR, MO-
RAES, 2013, p. 44/45).
A humanidade expandiu, gradativamente, sua capa-
cidade de produção e consumo. Entre os materiais amplamente
produzidos, estão os plásticos, produtos que têm quase diversas
formas de utilização. Devido à sua versatilidade, o plástico tem
atendido diversas necessidades humanas, tanto domésticas
como industriais (BHATTACHARYA; LIN, 2010).
Fabricados a partir do petróleo, os plásticos conven-
cionais possuem como formas mais comuns o polipropileno,
polietileno, poliuretano, tereftalato de polietileno e poliestireno,
que servem de matéria prima para diversos produtos do cotidi-
ano, como garrafas PET, sacolas, potes, etc. Existem ainda outro
tipo de plástico que é produzido utilizando monômeros inorgâ-
nicos, um exemplo é o silicone (HARTMANN et al, 2019, p.
1042).
Entretanto, ainda que bastante utilizado, o plástico é
um material de difícil decomposição, a qual pode perdurar por
séculos, tornando o seu descarte inadequado uma ameaça ao
equilíbrio do ecossistema (STAFFORD; JONES, 2019. p. 189).
O volume de lixo que atinge o meio ambiente vem
aumentando a cada dia e se fragmenta em pedaços cada vez
menores (BROWNE et al., 2008). Os plásticos têm grande desta-
que no que diz respeito ao volume de lixo encontrado nas ruas,
nos aterros sanitários, nas praias, flutuando nos oceanos ou de-
positado no fundo do mar.
Percebe-se que o produto plástico não é nocivo, em
sua natureza. É uma invenção criada pelo homem que gerou
benefícios significativos para a sociedade. Contudo, a maneira
com a qual indústrias e governos lidaram com o plástico e a ma-
neira com a qual a sociedade o converteu em uma conveniência
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
218 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

descartável de uso único transformou esta inovação em um de-


sastre ambiental mundial.
Alguns dados atuais da realidade dos indicadores in-
ternacionais e muito relevantes sobre a poluição por plástico ra-
tificam a dimensão desse problema transcontinental.
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvi-
mento Econômico (OCDE), divulgou um estudo chamado Glo-
bal Plastic Outlook, um relatório que abrange o ciclo global da
cadeia dos plásticos. O relatório quantifica a atual produção,
uso, descarte e principais impactos ambientais ao longo de todo
o ciclo de vida do plástico e identifica oportunidades para redu-
zir as externalidades negativas (OCDE, 2022).
Segundo o relatório, verifica-se que estão sendo pro-
duzidos duas vezes mais resíduos plásticos hoje do que há 20
anos. Foram 460 milhões de toneladas de plástico produzidas
em 2019, que equivale ao peso de 45.500 torres Eiffel. Apenas
9% deste volume foi reciclado adequadamente, tornando o per-
centual de descarte quase o mesmo do percentual de utilização.

Figura 1 ‒ Comparativo da utilização global de plástico de


2019 a 2060, valor anual em milhões de toneladas
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 219
Figura 2 ‒ Comparativo do descarte global de plástico de
2019 a 2060, valor anual em milhões de toneladas

Até 2060, a quantidade de plásticos utilizados no


mundo, projetada para mais de 1,200 bilhão de toneladas, terá
um equivalente de mais 1 bilhão de toneladas de plástico usado
e descartado, ou seja, quase todo o plástico usado é descartado,
de uso único.
O embate entre o crescimento econômico e a utiliza-
ção dos recursos naturais de forma irracional gera inúmeros da-
nos ao meio ambiente, pondo em risco a conservação da vida na
Terra e a preservação do equilíbrio ecológico.
Portanto, apesar dos esforços e diligências para con-
ter essa degradação ambiental até o momento, observa-se que
as medidas utilizadas para esse fim, como a reciclagem, não
conseguem ter expressão diante do volume de material produ-
zido e, consequentemente, descartado diariamente.
Considerando-se a complexa realidade dos danos
em indicadores internacionais, importa verificar os indicadores
nacionais.
Segundo dados da WWF Brasil e da Associação Bra-
sileira das Empresas de Limpeza Pública, o Brasil é o 4º maior
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
220 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

produtor de lixo plástico no mundo, com 11,3 milhões de tone-


ladas de bens plásticos, ficando atrás apenas dos Estados Uni-
dos, China e Índia.
Outro levantamento realizado pelo WWF com base
nos dados do Banco do Mundial analisou a relação com o plás-
tico em mais de 200 países, e apontou que o Brasil produz, em
média, aproximadamente 1 quilo de lixo plástico por habitante
a cada semana.
Desse total, mais de 10,3 milhões de toneladas foram
coletadas (91%), mas apenas 145 mil toneladas (1,28%) são efe-
tivamente recicladas, ou seja, reprocessadas na cadeia de pro-
dução como produto secundário.
O país se encontra muito abaixo da média global de
reciclagem plástica mencionada anteriormente ‒ que é de 9%.

Figura 3 ‒ Comparativo de produção e reciclagem de


plásticos no mundo, valor em toneladas

Fonte: WWF, What a Waste 2.0: A Global Snapshot of Solid Waste Manage-
ment to 2050.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 221
Figura 4 ‒ Reciclagem de plásticos no Brasil

Fonte: WWF, What a Waste 2.0: A Global Snapshot of Solid Waste Manage-
ment to 2050.

Mesmo parcialmente passando por usinas de recicla-


gem, há perdas na separação de tipos de plásticos. Ao final, o
destino de 7,7 milhões de toneladas de plástico são os aterros
sanitários, enquanto os outros 2,4 milhões de toneladas de plás-
tico são descartados de forma irregular, sem qualquer tipo de
tratamento, em lixões a céu aberto.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
222 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

A poluição do plástico afeta a qualidade do ar, do


solo e sistemas de fornecimento de água. Os impactos diretos
estão relacionados a não regulamentação global do tratamento
de resíduos de plástico, ingestão de micro e nanoplásticos e con-
taminação do solo com resíduos. A queima ou incineração do
plástico pode liberar na atmosfera gases tóxicos, alógenos e dió-
xido de nitrogênio e dióxido de enxofre, extremamente prejudi-
ciais à saúde humana. (BHATTACHARYA; LIN, 2010).
Considerando-se a complexa realidade dos danos
em indicadores internacionais e nacionais, importa verificar a
consolidação do Direito Ambiental brasileiro e os princípios
ambientais ligados diretamente à poluição por plástico.

2. Os princípios ambientais ligados diretamente à


poluição por plástico

Diante do panorama geral da dimensão dos prejuí-


zos causados pela produção desenfreada e o descarte inade-
quado dos produtos plásticos em indicadores internacionais e
nacionais, necessário verificar os princípios ambientais
O direito ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado e sadio é uma prerrogativa constitucionalmente, con-
forme artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL,
1988), em razão de ser caracterizado como direito fundamental
de terceira geração, que levam a restrições ao exercício de direi-
tos subjetivos (MATIAS; SILVA; MATIAS FILHO, 2017).
A partir da previsão constitucional, o regime do Di-
reito Ambiental brasileiro evoluiu e, gradualmente, ganhou au-
tonomia como ramo da ciência jurídica a ponto de ter os seus
próprios princípios.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 223
Ao consagrar o meio ambiente como um direito fun-
damental, a Constituição Federal de 1988 consagrou também,
de forma explícita ou implícita, os mais relevantes princípios do
Direito Ambiental.
Os princípios substanciais são aqueles que decorrem
do direito fundamental previsto no artigo 225, da Constituição
Federal e que estão expressos no texto constitucional.
O caput do art. 225 traz o princípio do meio ambiente
ecologicamente equilibrado, no reconhecimento do direito a um
meio ambiente sadio, origina-se do direito à vida, quer sob o
enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos,
quer quanto ao aspecto da dignidade dessa existência humana
(FIORILLO, 2020).
Verifica-se que o meio ambiente ecologicamente
equilibrado, ao assumir proeminente papel de corolário a sus-
tentar os ideários de solidariedade advindos da terceira dimen-
são, encontra no princípio do direito à sadia qualidade de vida
resguardo.
O texto constitucional ressalta que o meio ambiente
é essencial para o desenvolvimento humano, assumindo, neste
passo, aspecto de moldura substancial para a obtenção da dig-
nidade da pessoa humana.
A qualidade de vida se destaca como um elemento
finalista do poder público, no qual confluem as realizações do
indivíduo e o bem comum, com o escopo de superar a estreita
visão quantitativa, conferindo materialização robusta à sadia
qualidade de vida, reunindo preceitos e premissas que são fun-
dantes para a promoção do indivíduo, precipuamente a partir
da perspectiva humanista do meio ambiente (HAONAT, 2007).
O princípio do acesso equitativo aos recursos natu-
rais garante que todos possam usufruir dos recursos fornecidos
224 | Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

pelo meio ambiente, devendo cada pessoa usar com razoabili-


dade os recursos naturais, para que todos o utilizem, de forma
a sanar suas necessidades, os bens ambientais são comuns e de
acesso a todos, ninguém podendo ter privilégios ou desequilí-
brios com seu uso (FIORILLO, 2020).
O princípio da defesa do meio ambiente foi positi-
vado como princípio conformador da ordem econômica (artigo
170, inciso VI) e é uma novidade da Constituição de 1988. A im-
plicação da positivação da defesa do meio ambiente diz respeito
ao modo de conduzir as atividades econômicas, que não podem
mais deixar de atentar para esse bem de uso comum do povo e
essencial à vida (PAGLIARINI; BASTOS, 2018, p. 43).
Resta claro que a defesa do meio ambiente, elencada
como um dos princípios da ordem econômica, não tem como
objetivo principal obstaculizar o exercício da atividade econô-
mica como um todo, mas àquela que provoque prejuízo e de-
gradação ambiental.
O princípio do desenvolvimento sustentável foi em-
pregado pela primeira vez quando da Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972, em Esto-
colmo.
O que se busca é a harmonização entre o postulado
do desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambi-
ente. O desenvolvimento sustentável é um marco axiológico na
interpretação da Constituição Federal e objetiva buscar o direito
à proteção do bem-estar e de um meio ambiente saudável de
forma preventiva e não apenas compensatória, bem como “visa
à manutenção das bases vitais da produção e reprodução ao ga-
rantir uma relação satisfatória entre o homem e o meio ambi-
ente”(BELCHIOR; MATIAS, 2009, p. 2285).
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 225
Além dos princípios substanciais, existem os princí-
pios que adquirem papel fundamental como instrumentos para
os direitos e garantias fundamentais.
O princípio da precaução, adotado pela Declaração
sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento do Rio de Janeiro,
formulada durante a Rio-92, afirma que, a fim de proteger o
meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente
implementado pelos entes estatais, conforme suas possibilida-
des (ONU, 1992).
Pode-se assumir que o princípio da precaução se ba-
seia na ideia de que os potenciais riscos e incertezas devem ser
interpretados de modo a estimular a adoção de medidas de res-
guardo.
Na era dos riscos inerentes à sociedade pós-moderna
(BECK, 2013), marcada pela diluição da certeza pela própria ci-
ência, são necessários novos paradigmas para as relações entre
ciência e direito.
Por isso, o princípio da precaução assume papel tão
importante, de maneira a intermediar ciência e direito. A apli-
cação do princípio da precaução deve ser suficiente para impe-
dir a ocorrência do dano ambiental (MATIAS, 2017).
Já o princípio da prevenção foi lançado à categoria
de mega princípio do direito ambiental, constando como prin-
cípio nº 15 da ECO-92. O princípio da prevenção se relaciona
com o perigo concreto de um dano, ou seja, sabe que não se deve
esperar que ele aconteça, fazendo-se necessário, portanto, a
adoção de medidas capazes de evitá-lo (PAGLIARINI; BAS-
TOS, 2018, p. 43).
A diferenciação entre esses dois princípios se dá pelo
fato de que o princípio da precaução, quando aplicado, é uma
medida para evitar o mero risco, e o princípio da prevenção é
226 | Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

aplicado para evitar diretamente o dano. O risco pode ser en-


tendido como a possibilidade de ocorrência de uma situação de
perigo. Já o perigo nada mais é do que a possibilidade de ocor-
rência de dano.
Princípio da reparação traz a ideia de a responsabili-
dade do poluidor reparar todo dano ambiental causado. Em al-
guns casos, o dano ao meio ambiente não pode ser reparado,
então deverá ser feita uma substituição monetária para suprir o
bem danificado.
No artigo 225, § 3º, da Constituição Federal, as con-
dutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujei-
tarão os infratores a sanções penais e administrativas, indepen-
dentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Dentro do conceito de reparação, o princípio do po-
luidor-pagador reflete um dos fundamentos da responsabili-
dade civil em matéria ambiental. Esse princípio reforça o co-
mando normativo, no sentido de que aquele que polui deve ser
responsabilizado pelo seu ato.
Recomendado pela Conferência das Nações Unidas
de Estocolmo de 1972, esse princípio estabelece que os custos da
poluição, externalidades negativas, sejam arcados pelo polui-
dor. Os princípios de Direito Ambiental do preservador-recebe-
dor e do usuário-pagador são desdobramentos do consagrado
princípio do poluidor-pagador.
O usuário-pagador estabelece que o usuário dos re-
cursos naturais deve pagar pelo seu real valor, no sentido de
sensibilizá-los para um uso racional e sustentável (FIORILLO,
2020). Enquanto o princípio do protetor-recebedor, ao contrário,
significa que aquele que protege o meio ambiente através de um
serviço ambiental prestado tem o direito de ser compensado fi-
nanceiramente.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 227
Em notável avanço, o princípio do preservador-rece-
bedor dispõe que aqueles que efetivamente contribuem para a
preservação e conservação da natureza, sejam compensados de
forma justa e equânime.

3. Quais são os princípios ambientais utilizados nas


decisões do STF que versam sobre poluição por
plástico?

Nesse último tópico, será realizada uma análise das


decisões do Supremo Tribunal, visando verificar quais são os
princípios expressamente utilizados por essas cortes nas deci-
sões que versam sobre utilização plástico e como foi feita essa
aplicação.
Ressalta-se a importância da base teórica nesse tó-
pico, uma vez que possibilita uma maior clareza sobre o tema e
como ele muitas vezes é abordado pelos tribunais.
Assim, verificar-se-á os critérios de seleção das deci-
sões e será feito um levantamento quantitativo das decisões e,
com base nisso, uma análise qualitativa das decisões.

3.1. Critérios de seleção das decisões

Neste subtópico, busca-se selecionar os termos chave


para desenvolvimento da pesquisa.
A informação é diretamente afetada pela qualidade
da indexação dos termos usados, que tem o seu maior desafio
no momento da análise de assunto. Essa análise depende dos
conhecimentos prévios do pesquisador sobre o tema, das de-
Cidades inteligentes e ODS 11 : protagonismo dos município na extinção
228 |
da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

mandas informacionais dos usuários e das políticas de indexa-

ção adotadas pelo sistema (FERREIRA; MACULAN, 2018, p .


110) .

No que concerne aos termos que serão utilizados

para filtrar as decisões judiciais cabíveis para a pesquisa, com o

suporte exploratório feito nos tópicos anteriores, pesquisou -se,

inicialmente, os termos básicos "ambiental" e "plástico", juntos,

bem como os termos "plástico ” e “descarte", na barra de pes-

quisa de jurisprudência do STF, uma vez que representam a cor-


relação entre Direito Ambiental e a poluição por plástico .

Ademais, conforme trazido o tópico 2, os plásticos

convencionais servem de matéria prima para diversos produtos

do cotidiano, como garrafas PET, sacolas, potes etc. Portanto,

utilizou-se os termos "ambiental" e "garrafa"; " ambiental" e


"sacola" .

Por fim, ressalta-se que a pesquisa analisará apenas

acórdãos, uma vez que as decisões proferidas nos processos dos

tribunais observam o princípio da colegialidade, razão pela

qual, em regra, devem ser proferidas pelo órgão colegiado com-


petente .

3.2. Análise quantitativa

Estabelecidos os parâmetros de seleção das decisões

judiciais do STF, fez-se um levantamento das decisões com a


pesquisa no sítio eletrônico do STF, no campo de jurisprudên-
cia.

Utilizando, inicialmente, apenas os termos básicos


"ambiental" e "plástico", com aspas, na pesquisa livre, apli-
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 229
cando o operador “e”, 6 acórdãos foram captados. Após utili-
zou-se os termos “plástico” e “descarte”, também fazendo uso
da partícula bayesiana “e”, filtrando-se 1 acordão.
Os termos “ambiental” e “garrafa” não captaram
acórdãos, enquanto as palavras “ambiental” e “sacola” capta-
ram 4 acórdãos e, por fim, “ambiental” e “embalagem” apare-
ceram 8 acórdãos.

Quadro 1 ‒ Quantidade de decisões captadas de acordo com


os termos
Termos Acórdãos
“Ambiental” E “Plástico” 6
“Plástico” E “Descarte” 1
“Ambiental” E “Garrafa” 0
“Ambiental” E “Sacola” 4
“Ambiental” E “Embalagem” 8
Fonte: Elaboração própria.

Como o objetivo da pesquisa é identificar os princí-


pios utilizados pelo STF em ações que tratam da questão ambi-
ental ligada a poluição por plástico e verificar como é feita essa
aplicação, foram retiradas as decisões que tratavam de outros
materiais, como vidro, alumínio etc., como a ADI 4066 e a ADI
5995. Igualmente, percebeu-se a repetição de algumas decisões
nas pesquisas dos acórdãos, pois tinham mais de um termo
combinado.
Assim, elaborou-se um banco de dados de 5 (cinco)
acórdãos:
Cidades inteligentes e ODS 11 : protagonismo dos município na extinção
230 |
da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

Quadro 2 — Base de dados coletada

Órgão Ministro Data de


Processo nº
Julgador Relator julgamento
Tribunal
RE 732.686 Luiz Fux 19/10/2017
Pleno

Primeira Roberto
RE 901.444 AgR 04/06/2018
Turma Barroso

Segunda
RE 729.726 AgR Dias Toffoli 06/10/2017
Turma

Segunda
RE 729.731 ED-AgR Dias Toffoli 06/10/2017
Turma

Tribunal
RE 607.109 Rosa Weber 08/06/2021
Pleno

Fonte: Elaboração própria.

Diante das apurações feitas, far- se-á uma análise


qualitativa das decisões coletadas sobre o tema.

3.3 . Análise qualitativa das decisões

O resultado da pesquisa jurisprudencial gerou um

banco de dados de 5 (cinco) acórdãos .


O Recurso Extraordinário 732686 discute a existência

de repercussão geral da questão constitucional de Lei do Muni-

cípio de Marília/SP, que exige a substituição de sacos e sacolas


plásticas por material biodegradável .
No voto, o Ministro relator Luiz Fux alega que a re-

percussão geral é necessária, em razão da questão da substitui-

ção dos sacos e sacolas plásticas por material biodegradável ser


decisiva para verificar a ofensa ao princípio da defesa do meio
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 231
ambiente e ao princípio do meio ambiente ecologicamente equi-
librado.
O Tribunal Pleno do STF, por unanimidade, reputou
constitucional a questão e, também por unanimidade, reconhe-
ceu a existência de repercussão geral da questão constitucional
suscitada.
O STF iniciou a análise no dia 13/10/2022 do Recurso
Extraordinário (RE) 732.686, que discute a constitucionalidade
de lei do Município de Marília/SP. O julgamento do recurso,
com repercussão geral de Tema 970, foi suspenso após as mani-
festações das partes e da Procuradoria-Geral da República e
ainda não foi retomado.
O Agravo Regimental no Recurso Extraordinário
901.444, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, versa sobre a
Lei Municipal nº 15.374/2011, dispõe sobre a proibição da distri-
buição gratuita ou venda de sacolas plásticas a consumidores
em todos os estabelecimentos comerciais do município de São
Paulo.
No presente caso, discutem-se os limites da compe-
tência local para estabelecer limitações em prol da preservação
ambiental, ao passo que, no caso a ser analisado em regime de
repercussão geral, se discute a harmonização entre o dever de
proteção ambiental e a viabilidade econômica dos meios de pro-
teção ambiental no processo produtivo.
Ademais, o relator aduz que a norma que veda o uso
das sacolas plásticas em estabelecimentos comerciais, para
transporte das mercadorias ali adquiridas, visa a não geração
de resíduos, permitindo, no entanto, o uso de sacolas reutilizá-
veis, o que compatibiliza com as diretrizes estabelecidas pelo
Plano Nacional de tratamento de resíduos sólidos na busca do
reaproveitamento e reciclagem dos materiais (STF, 2018, p. 03).
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
232 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

O Acórdão reconheceu que a Lei Municipal remeteu


ao sistema de sanções estabelecido pela Lei federal nº 9.605/1998
(Lei de Crimes Ambientais), não havendo que se cogitar uma
violação ao princípio do poluidor-pagador, “destinado a tornar
efetiva a proteção ao meio ambiente” (STF, 2018, p. 07).
O Ministro Marco Aurélio divergiu do voto do rela-
tor, alegando que o recurso se mostra voltado contra acórdão
por meio do qual o Tribunal de Justiça julgou improcedente pe-
dido veiculado em ação direta impugnando lei municipal que
proibiu estabelecimentos comerciais de distribuírem sacolas
plásticas aos consumidores. O Ministro recomendou a suspen-
são do processo para aguardar o julgamento do Recurso Extra-
ordinário nº 732.686, Tema nº 970 do repertório de repercussão
geral, a versar a possibilidade de Municípios obrigarem a subs-
tituição de sacolas plásticas.
Contudo, acordaram os Ministros da Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, em
negar provimento ao agravo interno, nos termos do voto do Re-
lator, vencido o Ministro Marco Aurélio.
Já o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário
nº 729.726, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, interposto pelo
Sindicato da Indústria de Material Plástico de São Paulo (Sindi-
plast) contra decisão monocrática que deu provimento ao re-
curso extraordinário interposto pelo Ministério Público do Es-
tado de São Paulo para julgar improcedente a ação direta, que
julgou inconstitucional a Lei nº 3.977, de 9 de setembro de 2009,
do Município de Rio Claro/SP, que determinou a obrigatorie-
dade de utilização de plásticas oxi-biodegradáveis, biodegradá-
veis e compostáveis, prevendo a aplicação de multa aos infrato-
res.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 233
No voto, o ministro relator Dias Toffoli afirma que “a
atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com
os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio am-
biente” (STF, 2018, p. 12). Ademais, o relator fundamenta a de-
cisão com o princípio do desenvolvimento sustentável como fa-
tor de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da econo-
mia e as da ecologia.
Nos termos do voto do Relator, acordaram os Minis-
tros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por una-
nimidade de votos, que o assunto tratado na lei municipal im-
pugnada constitui matéria de interesse do município, por estar
relacionada à gestão dos resíduos sólidos produzidos na locali-
dade, especificamente das sacolas plásticas e declararam a cons-
titucionalidade da lei e, assim, a obrigatoriedade de utilização
de plásticas oxi-biodegradáveis, biodegradáveis e compostá-
veis.
Igualmente, no RE 729731 ED-AgR, o Sindiplast
agravou da decisão monocrática que versa sobre a constitucio-
nalidade da Lei nº 5.026/2010, diploma normativo que cuida de
estabelecer, no âmbito do Município de Americana/SP, a proi-
bição de utilização, pelos estabelecimentos daquela localidade,
de embalagens plásticas à base de polietileno ou de derivados
de petróleo (art. 1º).
O Ministro relator Dias Toffoli utilizou os mesmo ar-
gumentos do AgR em RE nº 729.726, já analisado, fundamen-
tando a decisão no princípio do desenvolvimento sustentável
para declarar a constitucionalidade da Lei.
Ademais, o relator ainda ressalta que a Política Naci-
onal de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010), não estabelece ne
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
234 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

nhuma política a ser desenvolvida pelos municípios especifica-


mente acerca da gestão de sacolas plásticas, o que reafirma a
competência desses entes para dispor sobre o tema.
Por fim, o Recurso Extraordinário nº 607.109, de re-
latoria da Ministra Rosa Weber, discute, à luz dos artigos 170,
IV, VI e VIII; e 225, da Constituição Federal, a possibilidade, ou
não, de serem apropriados os créditos de PIS e COFINS na aqui-
sição de desperdícios, resíduos ou aparas de materiais plásticos.
A Associação Brasileira da Industria do Plástico
(ABIPLAST) também apresentou requerimento para participa-
ção na condição de amicus curiae, no qual reforça a tese defen-
dida pela recorrente quanto à inconstitucionalidade do artigo
47 da Lei 11.196/2005, realçando os impactos tributários do re-
ferido dispositivo legal nas empresas que utilizam material re-
ciclado para a produção de plástico.
No voto, a relatora afirma que é inconstitucional o
tratamento tributário mais gravoso ao elo mais frágil da cadeia
produtiva, que, no caso, seriam os catadores de materiais reci-
cláveis, população de baixa renda. Isso afrontaria às normas
fundamentais de defesa do meio ambiente e da valorização do
trabalho humano. Contudo, a relatora reconheceu o direito de
se creditar os produtos recicláveis apenas quando vendidos por
empresas optantes pelo SIMPLES NACIONAL. O Ministro
Marco Aurélio concordou com o posicionamento da então rela-
tora.
O voto do Ministro Gilmar Mendes foi vencedor e
este lavrou o acordão. O acórdão vencedor alega que, submeti-
das a condições de mercado similares, as empresas que adqui-
rem matéria-prima reciclável não competem em pé de igual
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 235
dade com as produtoras que utilizam insumos extraídos da na-
tureza, cujo potencial de degradação ambiental é indubitavel-
mente superior, mesmo as empresas optantes pelo Simples.
O ministro entendeu que os dispositivos impugna-
dos oferecem tratamento tributário prejudicial às cadeias eco-
nômicas ecologicamente sustentáveis, desincentivando a manu-
tenção de linhas de produção assentadas em tecnologias limpas
e no reaproveitamento de materiais recicláveis, fundamentando
a decisão no princípio do protetor recebedor.
A proibição de abatimento de créditos na aquisição
de insumos reutilizáveis (art. 47) não é suficientemente com-
pensada pela isenção de PIS/Cofins concedida na etapa anterior
da cadeia produtiva (art. 48), resultando em elevação da carga
tributária total incidente sobre o processo de reciclagem.
As normas, além de violarem diretamente o princí-
pio da igualdade, uma vez que o critério de distinção é ilegí-
timo, são incompatíveis com as finalidades que a Constituição
Federal almeja em matéria de proteção ao meio ambiente e de
valorização do trabalho humano.
Por fim, ao apreciar o Tema 304 da Repercussão Ge-
ral, o Plenário, por maioria, deu provimento ao recurso extraor-
dinário, reconhecendo a inconstitucionalidade do art. 47 da Lei
11.196/2005 e, por arrastamento, do art. 48 do mesmo diploma
normativo, nos termos do voto do Ministro Gilmar Mendes.
Vencidos o ministro Alexandre de Moraes, que negava provi-
mento ao recurso, parcialmente, os ministros Rosa Weber (rela-
tora), Marco Aurélio e Dias Toffoli, este interpretou o art. 48
como uma isenção tributária, de modo que a pessoa jurídica ad-
quirente dos materiais recicláveis favorecidos poderia, no re-
gime não cumulativo de PIS/COFINS, se utilizar do crédito.
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
236 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

Considerações finais

Diante do exposto, retomam-se os problemas de pes-


quisa do presente estudo: Quais são os princípios utilizados pe-
los Tribunais Superiores nas decisões que versam sobre utiliza-
ção plástico? Como é feita essa aplicação?
Para obter resposta a este problema, foi necessário fa-
zer uma análise exploratória da realidade da produção e do des-
carte dos resíduos plásticos, em indicadores internacionais e na-
cionais. Através de dados alarmantes sobre a poluição por plás-
tico, é possível concluir que quase todo o plástico produzido no
mundo é de uso único, o que torna a cadeia produtiva linear.
A recomendação para a resolução do problema está
na mudança na produção. Fala-se que as soluções estão relacio-
nadas à redução da produção de plásticos de uso único, descar-
táveis, sendo esse o primeiro princípio da economia circular.
Principalmente no Brasil, os estudos demonstram
que, além da alta quantidade de lixo plástico produzido, existe
um baixo índice de reciclagem, apenas 1,28%. Uma das alterna-
tivas que foram propostas pela Aliança Resíduo Zero Brasil,
movimento que diferentes instituições e ONGs participam, com
um Projeto de Lei que regulamenta a circularidade do plástico
de uso único ou descartável. A proposta trata desde o início da
produção, de formas de criar embalagens e produtos que sejam
viáveis para reciclagem e com maior durabilidade.
Toda essa complexa realidade desses indicadores in-
ternacionais e nacionais consolidou o Direito Ambiental brasi-
leiro e os princípios ambientais ligados diretamente à poluição
por plástico.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 237
Nas decisões do STF coletadas e analisadas, conclui-
se que não existem muitos julgados na Suprema Corte que rela-
cionam a matérias ambientais com a poluição por plástico. As
poucas decisões apresentam uma importante contribuição tanto
para o Poder Judiciário, quanto para proporcionar o equilíbrio
necessário para a realização do bem coletivo e influenciar dire-
tamente as relações sociais no que diz respeito à sustentabili-
dade.
Verifica-se que os princípios encontrados nos acór-
dãos foram princípio do protetor recebedor; princípio da defesa
do meio ambiente; princípio do meio ambiente equilibrado;
princípio da precaução, que são bem empregados.
O Recurso Extraordinário 732.686 reputa constituci-
onal a questão da substituição de sacos plásticos nos materiais
biodegradáveis, fundamentando a decisão tanto no princípio da
defesa do meio ambiente quanto no princípio do meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
No referido julgamento, percebe-se um embate entre
a economia e o meio ambiente, o que é bem fixado pelo princí-
pio de defesa do meio ambiente. Conclui-se que se busca uma
harmonização entre o postulado da ordem econômica e a pre-
servação do meio ambiente, corroborando também com o prin-
cípio do desenvolvimento sustentável.
Já no AgR no RE 901.444, analisa-se a constituciona-
lidade da lei municipal que proíbe a distribuição gratuita ou
venda de sacolas plásticas a consumidores em todos os estabe-
lecimentos comerciais do município de São Paulo.
O Ministro Marco Aurélio, que divergiu no voto do
relator, recomendou a suspensão do processo para aguardar o
julgamento do RE 732.686, por causa do Tema nº 970 do reper
Cidades inteligentes e ODS 11: protagonismo dos município na extinção
238 | da comissão nacional para os objetivos do desenvolvimento sustentável

tório de repercussão geral, pois entendeu que a situação versa-


ria sobre a possibilidade de Municípios obrigarem a substitui-
ção de sacolas plásticas.
Entretanto, nos termos do voto do relator Roberto
Barroso, é perceptível que, enquanto o RE 732.686 discute a
constitucionalidade de lei do Município de Marília que estabe-
leceu que os estabelecimentos devem substituir sacolas e sacos
de lixo de plástico por materiais biodegradáveis, no AgR no RE
901.444, a lei municipal restringe o uso de sacolas plásticas para
o acondicionamento de mercadorias adquiridas em estabeleci-
mentos comerciais, não implicando em aumento de custos para
o consumidor ou para o empresário.
Os acórdãos AgR no RE 729.726 e ED-AgR no RE
729731, ambos de relatoria do Ministro Dias Toffoli, julgados
antes do RE 732.686, reconheceram constitucional das leis mu-
nicipais. Contudo, respectivamente, a Lei nº 3.977, do Municí-
pio de Rio Claro/SP, que determinou a obrigatoriedade de utili-
zação de plásticas oxi-biodegradáveis, biodegradáveis e com-
postáveis, prevendo a aplicação de multa aos infratores, en-
quanto a Lei nº 5.026/2010, do Município de Americana/SP, a
proibição de utilização, pelos estabelecimentos daquela locali-
dade, de embalagens plásticas à base de polietileno ou de deri-
vados de petróleo.
O relator afirma, nos dois acórdãos, que a atividade
econômica não pode ser contrária aos princípios destinados a
tornar efetiva a proteção ao meio ambiente. Porém, não foi uti-
lizado, expressamente, o princípio da defesa do meio ambiente,
apenas o princípio do desenvolvimento sustentável.
Por fim, RE nº 607.109, de relatoria da Ministra Rosa
Weber, discute a possibilidade, ou não, de serem apropriados
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 239
os créditos de PIS e COFINS na aquisição de desperdícios, resí-
duos ou aparas de materiais plásticos.
O referido julgamento foi importante não apenas
para contribuintes, muito prejudicados por essa impossibili-
dade, mas também por aqueles que se dedicam à reciclagem e
ao meio ambiente, uma vez que esta vedação confere trata-
mento tributário mais oneroso para as cadeias produtivas que
utilizam insumos reciclados.
Dessa forma, um dos argumentos defendidos pelo
ministro que lavrou o acordão vencedor, era o de que, ao revés
da referida atividade ser incentivada, em razão de seus benefí-
cios ao meio-ambiente, era desestimulada pela vedação, pois a
aquisição dos referidos insumos não gerava créditos aos adqui-
rentes, portanto, foi colocado em voga o princípio do protetor-
recebedor.
Assim, as decisões se mostram fundamentadas, po-
rém insuficientes para reprimir a ocorrência e o crescimento
desse tipo de ação lesiva ao meio ambiente, dando a impressão
de que são toleráveis desde que se possa pagar pelo dano cau-
sado.

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tice/reviving_the_ocean_economy/. Acesso em: 16 jun. 2022.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 243
THE APPLICATION OF ENVIRONMENTAL
PRINCIPLES IN THE DECISIONS OF THE
SUPERIOR COURTS REGARDING PLASTIC USE
Abstract: What are the environmental principles used by the Su-
preme Court in decisions involving the use of plastic? How is this ap-
plication done? Humanity gradually expanded its cover-city of pro-
duction and consumption. The amount of waste generated in this pro-
cess has also increased, among them, plastics. The alarming data pre-
sented on the pro-deduction and disposal of plastic materials demon-
strate the severity of the problem on a global level. Given the im-
portance of safeguarding the constitutional right to environment bal-
anced and healthy, in a preventive way and not only reparatory way,
it is indispensable to unravel the action of the Judiciary. Bibliographic
and documentary research is applied, based on a literature review of
scientific articles, pure and descriptive nature, in the analysis of pro-
jects and reports that deal with the theme and application of MAD for
decision analysis. This research has theoretical and practical rele-
vance, as it offers an original contribution on environmental damage,
specifically by the inappropriate use and disposal of plastics and al-
lows greater visibility to environmental and sustainability issues, as
well as indicate what are the decision-making fundamentals used. It
is concluded that there are not many decisions of the Supreme Court
that relate to environmental matters with plastic pollution. In the de-
cisions analyzed, it is verified that the principles of the protector-re-
cipient; principle of environmental protection; balanced environmen-
tal principle; sustainability principle; precautionary principle. How-
ever, the decisions are fragile and insufficient to suppress the occur-
rence and growth of this type of action harmful to the environment.

Keywords: Environmental Law. Pollution. Plastic. Environmental


Principles. Legal Decisions.
CAPÍTULO VIII.
LEI EUROPEIA DO CLIMA E
TRANSIÇÃO ENERGÉTICA

Laís Maria Belchior Gondim*

William Paiva Marques Júnior**

DOI: 10.29327/5341937.1-8

Resumo: A crise ambiental, climática e energética, vivenciada na con-


temporaneidade; descrita por tantos estudos científicos é um desafio
global. Buscando soluções, os países passaram a se reunir periodica-
mente para discutir a temática. Desses encontros, resultaram muitos
documentos importantes a nível internacional, como o Acordo de Pa-
ris. No âmbito da União Europeia, nesse mesmo sentido, foi adotado
o Pacto Ecológico Europeu, cujas metas principais são a neutralidade
climática até 2050 e a transição energética justa e equitativa. Um dos
instrumentos desse Pacto é a Lei Europeia do Clima. Seu texto traz
tanto aspectos climáticos, quanto energéticos. Frente a isso, a proble-
mática consiste na análise dessa norma como estratégia para a efeti-
vação da transição energética na UE. Propõe-se os questionamentos:
Em que contexto se deu a adoção do PEE no cenário europeu? O que

*
Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2023). Graduada em
Direito pela Universidade Federal do Ceará (2017.2-2022.1). membro participante
do Grupo de Estudo em Direito e Assuntos Internacionais - GEDAI (UFC) - da
Linha Direito Internacional e Meio Ambiente (2018.2-atual). Email: laismbg@hot-
mail.com.
** Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFC. Professor Adjunto do De-
partamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFC de Direito Civil
II e Direito Civil V. Professor (Direito Internacional e Metodologia da Pesquisa
Jurídica) e Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC.
E-mails: williamarques.jr@gmail.com e williammarques@ufc.br.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 245
prevê a Lei Europeia do Clima? De que maneira se pode enquadrá-la
no que tange aos conceitos de desenvolvimento sustentável e susten-
tabilidade? Como podemos relacionar a LEC e a transição energética?
O objetivo desta pesquisa é examinar de que maneira esse ato norma-
tivo pode influenciar o processo de mudança da matriz energética na
UE. Quanto à metodologia, trata-se de estudo qualitativo, explorató-
rio, teórico-bibliográfico e documental acerca do tema. Realizou-se,
por meio do método indutivo, revisão bibliográfica de artigos, perió-
dicos, teses, dissertações, literatura, legislações e documentos nacio-
nais e internacionais. A estrutura do artigo será dividida em quatro
partes. De início, investiga-se o contexto em que o PEE foi estabele-
cido na UE, abordando marcos internacionais que culminaram no seu
surgimento. Depois, discorre-se sobre a Lei Europeia do Clima e suas
particularidades, trazendo-se ainda a diferenciação entre desenvolvi-
mento sustentável e sustentabilidade e qual definição ela prioritaria-
mente aborda. Em seguida, discute-se a relação entre essa norma e a
transição energética. Por fim, conclui-se que a LEC é uma estratégia
relevante para impulsionar esse processo no bloco, de forma que as
ações devem ser transversais, integrando-se clima e energia, pois um
reverbera no outro.
Palavras-chave: Lei Europeia do Clima. Pacto Ecológico Europeu.
Transição energética.

Introdução

A crise ambiental, climática e energética é um desafio


do mundo hodierno. Tal conjuntura é descrita por inúmeros es-
tudos científicos, como relatório de 2023 do Painel Intergover-
namental sobre as Alterações Climáticas (IPCC). Tal documento
Lei Europeia do Clima e transição energética
246 |
afirma que grande parte do problema é decorrente das volumo-
sas emissões de gases do efeito estufa (GEE)1.
Diante disso, os países passaram a se reunir periodi-
camente para discutir o assunto e procurar soluções. Nessa
senda, em 2015, dá-se o Acordo de Paris (AP), cujo propósito é
que o aumento da temperatura global fique abaixo de 2ºC, em
relação aos níveis pré-industriais, buscando que esse limite seja
1,5ºC2.
A situação europeia também é preocupante. Há pre-
visões de danos cada vez maiores e, muitas vezes, já irreversí-
veis. Alterações de precipitação, oceanos, ventos, inundações
fluviais e incêndios florestais são alguns exemplos. A intensifi-
cação desses fenômenos já está gerando custos elevados para
União Europeia (UE) e comprometendo a capacidade de seus
membros de produzirem alimentos3.

1 INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC). AR6 Syn-


thesis Report: Climate Change 2023. Synthesis Report of The IPCC Sixth Assess-
ment Report (AR6). Summary for Policymakers. 2023. Disponível em: https://re-
port.ipcc.ch/ar6syr/pdf/IPCC_AR6_SYR_SPM.pdf. Acesso em: 05 jun. 2023.
2 ARAÚJO, Beatriz Azevêdo de. O regime internacional do clima e as implicações
para o Brasil: o desafio do Acordo de Paris. 2016. 97 f. Monografia (Graduação em
Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016.
Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/25099. Acesso em: 29
maio 2023; ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Acordo de Paris.
Nova York, 12 dez. 2015. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/
2020-08/Acordo-de-Paris.pdf. Acesso em: 29 maio 2023; DUARTE, Beatriz Berga-
mim; TUPIASSU, Lise; CRUZ, Simone Nobre. O mercado de carbono na política
de mitigação das mudanças climáticas. Revista de Direito Ambiental e Socioam-
bientalismo, [S.L.], v. 6, n. 2, p. 93, 23 dez. 2020. Conselho Nacional de Pesquisa
e Pos-Graduacao em Direito - CONPEDI. http://dx.doi.org/10.26668/in-
dexlawjournals/2525-9628/2020.v6i2.7203. Disponível em: https://www.in-
dexlaw.org/index.php/Socioambientalismo/article/view/7203/pdf. Acesso em: 29
maio 2023.
3 CONSELHO EUROPEU; CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA (União Europeia).
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 247
Nesse contexto, surge o Pacto Ecológico Europeu
(PEE), em 11 de dezembro de 2019, com ações em diferentes
áreas, como clima e energia. Com isso, o bloco estabeleceu o in-
tuito da neutralidade climática até 2050, desassociando cresci-
mento do uso de recursos, com o fito de transformar a economia
da UE em eficiente na utilização destes, moderna e competitiva.
Pretende também uma transição energética de forma equitativa
e justa4.
Dentro do PEE, a UE, visando a atingir a descarboni-
zação da economia e o que foi previsto no AP, adotou diversos
instrumentos, como a Lei Europeia do Clima (LEC). Essa legis-
lação torna obrigação jurídica para a UE a meta de neutralidade
climática até 2050 e a intermediária de redução de, pelo menos,
55% das emissões até 2030 com base nos valores de 1990. Vale
ressaltar que a LEC traz, em seu texto, o termo desenvolvimento
sustentável como princípio, o qual deve ser observado5.

Alterações climáticas: medidas que a UE está a tomar. [S. l.], 07 fev. 2023. Dispo-
nível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/climate-change/. Acesso
em: 27 jun. 2023.
4 CONSELHO EUROPEU; CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA (União Europeia).
Alterações climáticas: medidas que a UE está a tomar. [S. l.], 07 fev. 2023. Dispo-
nível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/climate-change/. Acesso
em: 27 jun. 2023; COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). Comunicação da Co-
missão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu, ao Conselho, ao Comité
Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões: Pacto Ecológico Europeu.
Bruxelas, 11 dez. 2019. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/
TXT/?uri=CELEX%3A52019DC0640&qid=1685383999175. Acesso em: 27jun. 2023;
COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). Um Pacto Ecológico Europeu: Ser o
primeiro continente com impacto neutro no clima. [S. l.], [s. d.]. Disponível em:
https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/euro-
pean-green-deal_pt#:~:text=O%20Pacto%20Ecol%C3%B3gico%20Europeu%20ir
%C3%A1,saud%C3%A1veis%20e%20a%20pre%C3%A7os%20acess%C3%AD-
veis. Acesso em: 27 jun. 2023.
5 EUROPEAN COMMISSION (European Union). European Climate Law. [S. l.], [s.
Lei Europeia do Clima e transição energética
248 |
Dessa forma, a problemática do artigo consiste na
análise da Lei Europeia do Clima como estratégia para impulsi-
onar o processo de transição energética na União Europeia. A
relevância do tema fica justificada pela conjuntura ambiental
alarmante descrita anteriormente e pela urgência de ações con-
cretas para minimizar os danos, às vezes já sem poder serem
desfeitos.
Logo, surgem questionamentos. Em que contexto se
deu a adoção do Pacto Ecológico Europeu na União Europeia?
O que prevê a Lei Europeia do Clima? De que maneira se pode
enquadrá-la no que tange aos conceitos de desenvolvimento
sustentável e sustentabilidade? Como podemos relacionar a
LEC e a transição energética?
Essa pesquisa objetiva examinar de que modo esse
ato normativo pode influenciar o processo de mudança da ma-
triz energética na UE. Quanto à metodologia, trata-se que pes-
quisa qualitativa e exploratória, com estudo teórico-bibliográ-
fico e documental acerca do assunto. Realizou-se, por meio do
método indutivo, revisão bibliográfica de artigos, periódicos,
teses, dissertações, literatura, legislações e documentos nacio-
nais e internacionais.

d.]. Disponível em: https://climate.ec.europa.eu/eu-action/european-green-deal/


european-climate-law_en. Acesso em: 27 jun. 2023; CONSELHO EUROPEU;
CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA (União Europeia). Pacto Ecológico Euro-
peu. [S. l.], 06 dez. 2022. Disponível em: https://www.consilium.europa.eu/pt/po-
licies/green-deal/. Acesso em: 27 jun. 2023; UNIÃO EUROPEIA. REGULA-
MENTO (UE) 2021/1119 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO.
Lei Europeia em matéria de clima. Jornal Oficial da União Europeia, 30 jun. 2021.
Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CE-
LEX:32021R1119&from=FR. Acesso em: 27 jun. 2023.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 249
O texto será dividido em quatro partes. Primeiro, in-
vestiga-se o cenário em que o PEE foi estabelecido na UE, tra-
zendo-se ainda marcos internacionais que culminaram no seu
surgimento. Em seguida, discorre-se sobre a Lei Europeia do
Clima e suas particularidades, abordando ainda a diferenciação
entre desenvolvimento sustentável e sustentabilidade e seu
ajustamento nessas definições. Posteriormente, discute-se como
essa norma pode impulsionar a transição energética. Por fim,
conclui-se que a LEC é uma estratégia relevante para a imple-
mentação desse processo na UE e que as ações devem ocorrer
de maneira transversal, não sendo adequado separar clima e
energia, pois são setores que sofrem influências mútuas.

1. Pacto Ecológico Europeu: em que contexto foi adotado


pela União Europeia?

Os debates internacionais frente à situação das mu-


danças climáticas têm estado cada vez mais frequentes. Inúme-
ras conferências passaram a ocorrer desde 1970. São elas, em or-
dem cronológica: em 1972, em Estocolmo, a Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano; em 1992, no Rio
de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambi-
ente e Desenvolvimento; em 2002, em Joanesburgo, a Cúpula
sobre o Desenvolvimento Sustentável; a Conferência das Na-
ções Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, ou Rio+20 e,
cinquenta anos após a Conferência em Estocolmo de 1972, com
sede na Suécia e apoio do Governo do Quênia, o “Estocolmo+50:
250 I Lei Europeia do Clima e transição energética

um planeta saudável para a prosperidade de todos ― nossa res-

ponsabilidade, nossa oportunidade”, ou apenas Estocolmo+50,


visando impulsionar recuperação sustentável e inclusiva".

Em meio a esse cenário, a Convenção- Quadro das


Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, decor-

rente do inglês United Nations Framework Convention onClimate-

Change) criou formalmente o Regime Internacional do Clima,

possibilitando reuniões com intuito de resultar em políticas


para atenuar tal problema”.
Depois, na década de 80, buscando ter um diagnós-

tico mais verossímil da situação, o Programa das Nações Unidas

6 ARAÚJO, Beatriz Azevedo de. O regime internacional do clima e as implicações


para o Brasil: o desafio do Acordo de Paris. 2016. 97 f. Monografia (Graduação em
Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016.
Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/25099 . Acesso em: 27
jun. 2023; BARROS, Ana Flávia Granja . O Brasil na governança das grandes
questões ambientais contemporâneas, país emergente?: Textos para Discussão
CEPAL-IPEA, 40. Brasília: CEPAL. Escritório no Brasil/IPEA, 2011. 52p . Disponí-
vel em: https://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/28148/S2011968
pt.pdf?sequence=1 . Acesso em: 28 jun. 2023; UNITED NATIONS ENVIRON-
MENT PROGRAMME (UNEP) . Stockholm+50: About. 02/03 jun. 2022. Disponí-
vel em: https://www.stockholm50.global/about/about . Acesso em 28 jun. 2023.
7
ARAÚJO, Beatriz Azevêdo de. O regime internacional do clima e as implicações
para o Brasil : o desafio do Acordo de Paris. 2016. 97 f. Monografia (Graduação em
Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016.
Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/25099 . Acesso em: 27
jun. 2023;MALJEAN -DUBOIS, Sandrine; WEMAËRE, Matthieu. La diplomatie
climatique de Rio 1992 à Paris 2015. [ S.I. ] : Editions A. Pedone, 2015. Disponível
em: http://pedone.info/762/Cop21.html. Acesso em: 28 jun. 2023; SOUSA, Luan
Oliveira de. A emergência do direito climático no mundo: a litigância climática
como instrumento para a efetivação do acordo de Paris. 2021. 58 f. Monografia
(Graduação em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/58936/1/
2021 tcc losousa.pdf. Acesso em: 28 jun. 2023 .
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 251

para o Meio Ambiente (PNUMA) e a Organização Meteoroló-

gica Mundial (OMM) instituíram, em 1988, o Painel Intergover-


namental sobre Mudanças Climáticas. O IPCC faz relatórios

com avaliações científicas periódicas tencionando contribuir


para estruturar ações nesse sentidos.

Em 1997, foi aprovado o Protocolo de Quioto (PQ)

para regulamentar a UNFCCC e colocar escopos mais incisivos .


Entrou em vigor apenas em 2005, em razão da necessidade de

haver entre as partes signatárias ao menos 55% das emissões to-


tais, o que ocorreu em 2004 com a Rússia . Tal documento, em

seu artigo 3, previu, para o período de 2008 a 2012, a meta de


redução das liberações de GEE a pelo menos 5% abaixo dos ní-
veis de 19909.

8
ARAÚJO, Beatriz Azevêdo de . O regime internacional do clima e as implicações
para o Brasil : o desafio do Acordo de Paris . 2016. 97 f. Monografia (Graduação em
Direito) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016.
Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/25099 . Acesso em: 27
jun. 2023;INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE (IPCC) .
About: History of the IPCC. [S. 1.] , [ 20--] . Disponívelem: https://www.ipcc.ch/
about/history/. Acesso em: 28 jun. 2023.
9 UNITED NATIONS FRAMEWORK CONVENTION ON CLIMATE CHANGE .
Kyoto Protocol to enter into force 16 February 2005. [S.1 . ], 2005. Disponível em:
https://unfccc.int/files/press/news room/press releases and advisories/applica-
tion/pdf/press041118 eng.pdf. Acesso em: 28 jun. 2023; ARAÚJO, Beatriz Aze-
vêdo de. O regime internacional do clima e as implicações para o Brasil: o desafio
do Acordo de Paris . 2016. 97 f. Monografia (Graduação em Direito) - Faculdade
de Direito, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2016. Disponível em : http://
www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/25099 . Acesso em: 27 jun. 2023;ORGANI-
ZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU) . Convenção Quadro das Nações Unidas
sobre Mudança do Clima (1992) . Protocolos, etc., 1997. Protocolo de Quioto e le-
gislação correlata . Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas,
2004. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/
70328/693406.pdf?sequence=2. Acesso em : 28 jun. 2023.
Lei Europeia do Clima e transição energética
252 |
Já o Acordo de Paris data de 2015 e objetiva limitar a
elevação das temperaturas globais acima dos níveis pré-indus-
triais a menos de 2ºC, procurando atingir 1,5ºC, Do AP se des-
taca o seu artigo 6 à medida que traz a mitigação dos GEE como
objetivo conjunto regional e mundial, bem como a ambição de
promover o desenvolvimento sustentável e a integridade ambi-
ental. Motiva ainda a participação de entidades privadas e pú-
blicas10.
Vale ressaltar que esse dispositivo foi efetivamente
regulamentado na 26ª Conferência das Partes (COP26), em
2021, em Glasgow, na Escócia. Na ocasião, houve discussões
acerca da implementação integral do AP, culminando no Livro
de Regras de Paris (ou Paris Rulebook, em inglês), o qual traz no-
vos preceitos para mercados internacionais de carbono e prazos
comuns para metas de redução das emissões11.

10 LEMOINE-SCHONNE, Marion. La flexibilité de l’Accord de Paris sur les chan-


gements climatiques. Revue juridique de l’environnement, [S.I.], v. 41, n. 1, p.
37-55, 2016. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-juridique-de-l-environ-
nement-2016-1-page-37.htm#re22no22. Acesso em: 28 jun. 2023; ORGANIZA-
ÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Acordo de Paris. Nova York, 12 dez. 2015.
Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-08/Acordo-de-Pa-
ris.pdf. Acesso em: 27 jun. 2023; GAMA, Sofia Alexandra Vaz. A UE como Actor
Global no Combate às Alterações Climáticas. 2019. 55 f. Dissertação (Mestrado em
Estudos Internacionais) - Departamento de História ISCTE-Instituto Universitá-
rio de Lisboa, Lisboa, 2019. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/
bitstream/10071/19848/1/Master_Sofia_Vaz_Gama.pdf. Acesso em: 28 jun. 2023.
11 UK GOVERNMENT. UNITED NATIONS CLIMATE CHANGE. COP26: THE
NEGOTIATIONS EXPLAINED. 2021. Disponívelem: https://ukcop26.org/wp-
content/uploads/2021/11/COP26-NegotiationsExplained.pdf. Acesso em: 28 jun.
2023; UK GOVERNMENT. UNITED NATIONS CLIMATE CHANGE. COP26
THE GLASGOW CLIMATE PACT. 2021. Disponívelem: https://ukcop26.org/
wpcontent/uploads/2021/11/COP26-Presidency-Outcomes-The-Climate-Pact.pdf.
Acesso em: 28 jun. 2023.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 253
Nesse panorama, em 11 de dezembro de 2019, surge
o Pacto Ecológico Europeu na União Europeia. Trata-se de con-
junto de iniciativas do bloco almejando a uma transição ecoló-
gica e à neutralidade climática até 2050. Com o PEE, a UE visa
a uma sociedade justa e próspera, além de uma economia com-
petitiva e moderna12.
Dentro desse Pacto, também há o pacote Objetivo 55,
com propostas para revisar legislações da UE e adequá-las aos
seus novos intuitos climáticos, como revisão da Diretiva Ener-
gias Renováveis e do Sistema de Comércio de Licenças de Emis-
são (CELE), aumentando sua abrangência13.
Tal documento é uma estratégia do bloco frente aos
entraves ambientais e climáticos atuais, para executar a Agenda
2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e os Objetivos
do Desenvolvimento Sustentável (ODS). O PEE inclui ações em
diversas áreas, como clima, energia e transportes. Uma delas é

12 COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). Comunicação da Comissão ao Parla-


mento Europeu, ao Conselho Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e
Social Europeu eao Comité das Regiões:Pacto Ecológico Europeu. Bruxelas, 11
dez. 2019. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=
CELEX%3A52019DC0640&qid=1685383999175. Acesso em: 27jun. 2023; CONSE-
LHO EUROPEU; CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA (União Europeia). Pacto
Ecológico Europeu. [S. l.], 06 dez. 2022. Disponível em: https://www.consi-
lium.europa.eu/pt/policies/green-deal/. Acesso em: 27 jun. 2023.
13 COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). Comunicação da Comissão ao Parla-
mento Europeu, ao Conselho Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e
Social Europeu eao Comité das Regiões:Pacto Ecológico Europeu. Bruxelas, 11
dez. 2019. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=
CELEX%3A52019DC0640&qid=1685383999175. Acesso em: 27 jun. 2023; CONSE-
LHO EUROPEU; CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA (União Europeia). Pacto
Ecológico Europeu. [S. l.], 06 dez. 2022. Disponível em: https://www.consi-
lium.europa.eu/pt/policies/green-deal/. Acesso em: 27 jun. 2023.
Lei Europeia do Clima e transição energética
254 |
a Lei Europeia do Clima14. Esse instrumento normativo será
abordado no próximo tópico de forma mais aprofundada.

2. Lei Europeia do Clima: desenvolvimento sustentável


versus sustentabilidade?

A Lei Europeia do Clima é o Regulamento 2021/1119


do Parlamento Europeu e do Conselho. É importante mencio-
nar que os regulamentos, na União Europeia são atos jurídicos
por meio dos quais as instituições têm o poder de interferir de
maneira mais contundente nas ordens jurídicas internas15.
Duas características técnicas peculiares dessa estru-
tura normativa do Direito Europeu são essenciais para a com-
preensão deste texto. Explica-se. O caráter comunitário consiste
em que são válidas igualmente em toda a UE, não podendo ser
aplicadas parcialmente ou não o serem. aplicabilidade direta. Já
a aplicabilidade direta significa que é imediatamente cabível no
território do bloco, não necessitando de qualquer regra nacional
para serem admissíveis16.

14 CONSELHO EUROPEU; CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA (União Europeia).


Pacto Ecológico Europeu. [S. l.], 06 dez. 2022. Disponível em: https://www.consi-
lium.europa.eu/pt/policies/green-deal/. Acesso em: 27 jun. 2023.
15 UNIÃO EUROPEIA. REGULAMENTO (UE) 2021/1119 DO PARLAMENTO
EUROPEU E DO CONSELHO. Lei Europeia em matéria de clima. Jornal Oficial
da União Europeia, 30 jun. 2021. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32021R1119&from=FR. Acesso em: 27 jun.
2023; COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). O ABC do direito da União Eu-
ropeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2017. 158 p.
16 COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). O ABC do direito da União Europeia.
Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2017. 158 p.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 255
Dito isso, a base jurídica da LEC no Tratado sobre o
Funcionamento da UE, em seus artigos 191, 192 e 193. O pri-
meiro aborda os objetivos da política ambiental do bloco, são
eles: preservação, proteção e melhoria da qualidade do meio;
preservação da saúde dos indivíduos; utilização racional e com
cautela dos recursos naturais e aplicação de medidas afins no
plano externo17.
Cita ainda a cooperação internacional e os princípios
da precaução e da ação preventiva, dos danos causados ao am-
biente, da correção, prioritariamente na fonte, e do poluidor-pa-
gador. Deve-se observar também condições inerentes a cada re-
gião, dados técnico-científicos e desenvolvimento econômico e
social equilibrado18.
A LEC torna vinculativas as metas do bloco de redu-
ção de pelo menos 55% das emissões até 2030 em comparação
com os níveis de 1990 e de neutralidade climática até 2050. Esta
última consiste em zerar a liberação de GEE para a atmosfera,
em termos líquidos, nos países da UE como um todo19.

17 PRZYBOROWICZ, Jakub Stefan. European Climate Law - a new legal revolution


towards climate neutrality in the EU. Opolskie Studia Administracyjno-Prawne,
[S.l.], v. 19, n. 4, p. 39-53, 14 jan. 2022. Uniwersytet Opolski. http://dx.doi.org/
10.25167/osap.4510. Disponível em: http://cejsh.icm.edu.pl/cejsh/element/
bwmeta1.element.ojs-doi-10_25167_osap_4510. Acesso em: 28 jun. 2023; UNIÃO
EUROPEIA. Tratado Sobre O Funcionamento da União Europeia (Versão Con-
solidada). Jornal Oficial da União Europeia, 07 jun. 2016. Disponível em: https://
eurlex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:9e8d52e1-2c70-11e6-b497-
01aa75ed71a1.0019.01/DOC_3&format=PDF. Acesso em: 28 jun. 2023.
18 UNIÃO EUROPEIA. Tratado Sobre O Funcionamento da União Europeia (Ver-
são Consolidada). Jornal Oficial da União Europeia, 07 jun. 2016. Disponível em:
https://eurlex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:9e8d52e1-2c70-11e6-b497-
01aa75ed71a1.0019.01/DOC_3&format=PDF. Acesso em: 28 jun. 2023.
19 EUROPEAN COMMISSION (European Union). European Climate Law. [S. l.], [s.
d.]. Disponível em: https://climate.ec.europa.eu/eu-action/european-green-deal/
Lei Europeia do Clima e transição energética
256 |
Tal legislação pretende garantir a participação de to-
dos os setores da economia e da sociedade para esse fim, além
de criar um sistema para acompanhar o progresso das nações,
tomar outras medidas necessárias e assegurar que essa descar-
bonização seja irreversível20.
Tendo em vista a obrigação jurídica criada pela lei,
as instituições e os Estados-Membros são obrigados a executar
ações nacionais e regionais para atingir os seus objetivos, na ten-
tativa de alcançar justiça e solidariedade entre os países. Inclui
também a revisão de desempenho a cada cinco anos com base
na performance quanto ao AP. Isso é uma forma de influenciar
as nações a buscarem ações mais concretas21.
Ademais, frente a sua notória preocupação ambien-
tal, discorre-se sobre a diferenciação feita pela doutrina entre os

european-climate-law_en. Acesso em: 27 jun. 2023; UNIÃO EUROPEIA. REGU-


LAMENTO (UE) 2021/1119 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO.
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LEX:32021R1119&from=FR. Acesso em: 27 jun. 2023.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 257
termos sustentabilidade e desenvolvimento sustentável para,
em seguida, enquadrá-la.
O conceito de sustentabilidade decorre do reconhe-
cimento da natureza atuando como suporte do processo de pro-
dução. Significa manter a integridade dos sistemas ecológicos
terrestres. É uma ideia simples e complexa comparável à justiça.
Explica-se: é simples, pois as condições de vida dependem dela
e reflete necessidade. Porém, é complexa à proporção que não
existe definição unanimemente aceita. Relaciona-se à continui-
dade da natureza e da sociedade humana22.
Já o desenvolvimento sustentável é uma aplicação do
princípio acima explicitado. Ele contém a noção de sustentabi-
lidade ecológica para suprir as demandas presentes e futuras
das pessoas. Ligado à preocupação com o desenvolvimento,
com a equidade intragerações e com a justiça intergeracional23.
Esse paradigma se originou visando diminuir o embate entre
economia e meio ambiente, a partir de um modelo que busca
harmonizar os referidos interesses preservando suas essên-
cias24.

22 LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade,


poder. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001;
BOSSELMANN, K. O princípio da sustentabilidade: Transformando direito e
governança. São Paulo: Revista dos Tribunais (RT), 2015.
23 BOSSELMANN, K. O princípio da sustentabilidade: Transformando direito e
governança. São Paulo: Revista dos Tribunais (RT), 2015.
24 MARQUES JÚNIOR, William Paiva. Sustentabilidade, Socioambientalismo e Di-
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Lei Europeia do Clima e transição energética
258 |
Assim, a LEC não alude à sustentabilidade, mas se
refere aos termos desenvolvimento sustentável, crescimento
sustentável e parecidos25. Desse modo, entende-se que essa Lei
trabalha a compreensão deste segundo sentido à medida que

25 UNIÃO EUROPEIA. REGULAMENTO (UE) 2021/1119 DO PARLAMENTO


EUROPEU E DO CONSELHO. Instituto Serzedello Corrêa, Escola Superior do
Tribunal de Contas da União, Brasília DF. 101 fl.; GONÇALVES, Veronica Korber.
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mité das Regiões: Estado da União da Energia 2022 (nos termos do Regulamento
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Jornal Oficial da União Europeia, 30 jun. 2021. Disponível em: https://eur-lex.eu-
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em: 27 jun. 2023.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 259
prevê medidas de desenvolvimento econômico em consonância
com a proteção ambiental e social26.
Pode-se perceber tal fato em toda a sua extensão e até
pelos seus objetivos colocados anteriormente, como o de tornar
a economia da UE moderna, eficiente na utilização de recursos
e competitiva, assim como o da transição energética para um
sistema seguro, sustentável, acessível e protegido27. No próximo
tópico, examina-se a ligação entre a Lei Europeia do Clima e a
transição energética.

3. Transição energética: impulsionada pela Lei Europeia


do Clima?

Muitas atividades econômicas contribuem para o


agravamento do cenário climático, como uso da terra, agrope-
cuária e silvicultura, contudo é o papel mais incisivo cabe ao
consumo energético, que hoje é bastante dependente dos com-
bustíveis fósseis. Aliado a tal dado, o Acordo de Paris não men-
ciona a redução da utilização destes últimos, o que limitava o
atingimento dos resultados28.

26 UNIÃO EUROPEIA. REGULAMENTO (UE) 2021/1119 DO PARLAMENTO


EUROPEU E DO CONSELHO. Lei Europeia em matéria de clima. Jornal Oficial
da União Europeia, 30 jun. 2021. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
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2023.
27 UNIÃO EUROPEIA. REGULAMENTO (UE) 2021/1119 DO PARLAMENTO
EUROPEU E DO CONSELHO. Lei Europeia em matéria de clima. Jornal Oficial
da União Europeia, 30 jun. 2021. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
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2023.
28 REIS, Fernando Simões dos. Mudanças climáticas e transição energética justa:
reflexões sobre a atuação do TCU. 2023. Monografia (Especialização em Controle
da Desestatização e da Regulação) – Instituto Serzedello Corrêa, Escola Superior
260 | Lei Europeia do Clima e transição energética

A produção e a utilização de energia representam


mais de 75% das emissões de GEE na UE. Isso demonstra sua
intrínseca relação com o clima. O PEE baseia tal mudança em
princípios. São eles: garantir seu fornecimento seguro e a preços
acessíveis; implantar um mercado interligado, integrado e digi-
talizado; buscar a eficiência energética, melhorá-la nos edifícios
e basear o setor nas fontes renováveis29.
Com isso, alguns dos principais objetivos da Comis-
são Europeia são sistemas energéticos interligados, infraestru-
turas modernas, descarbonização do gás, integração dos setores
e capacitação dos consumidores. Para esse fim, a UE adotou
ações diversas30.
Entre elas há o Plano REPowerEU, apresentado em
maio de 2022 pela Comissão dentro do PEE, com o fito de eco

do Tribunal de Contas da União, Brasília DF. 101 fl.; GONÇALVES, Veronica Kor-
ber. A União Europeia na governança do clima: o caso da aviação civil internaci-
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29 COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). Energia e Pacto Ecológico: Transição


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ropa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/european-green-deal/energy-
and-green-deal_pt. Acesso em: 29 jun. 2023.
30 COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). Energia e Pacto Ecológico: Transição
para as energias limpas. [S. l.], [s. d.]. Disponível em: https://commission.eu-
ropa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/european-green-deal/energy-
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&from=EN. Acesso em: 29 jun. 2023.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 261
nomizar energia, impulsionar a implantação de matrizes reno-
váveis, diversificar os fornecedores e alcançar a eficiência ener-
gética31.
A própria Lei Europeia do Clima é uma legislação
que traz muitos dispositivos referentes à energia. De início,
afirma que para sua boa implementação, é necessária a transi-
ção energética para um sistema seguro, acessível, sustentável e
protegido, voltado para energias renováveis. Isso se justifica, se-
gundo seu próprio conteúdo, pela estreita relação entre os pro-
blemas climáticos em decorrência especialmente da alta taxa de
emissões de GEE e a esfera em questão32.
Outrossim, a LEC também cita diversos textos jurídi-
cos relacionados a tal setor, como o Regulamento (UE)
2018/1999, o qual prevê ações em cinco dimensões de energia
(segurança energética, mercado interno de energia, eficiência
energética, descarbonização, e investigação, inovação e compe-
titividade), além das Diretivas 2012/27/EU, (UE) 2018/2001 do
Parlamento Europeu e do Conselho e 2010/31/EU do Parla-
mento Europeu e do Conselho, dentro do pacote Energias lim-
pas para todos os europeus de 2016, atentando para o intuito de
descarbonização33.

31 COMISSÃO EUROPEIA (União Europeia). Relatório da Comissão ao Parla-


mento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Co-
mité das Regiões: Estado da União da Energia 2022 (nos termos do Regulamento
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EUROPEU E DO CONSELHO. Lei Europeia em matéria de clima. Jornal Oficial
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content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32021R1119&from=FR. Acesso em: 27 jun.
2023.
33 UNIÃO EUROPEIA. REGULAMENTO (UE) 2021/1119 DO PARLAMENTO
Lei Europeia do Clima e transição energética
262 |
O ato normativo em questão cita também, em dife-
rentes pontos, que deve haver diálogo entre as medidas toma-
das no que concerne à energia e ao clima, sempre objetivando a
neutralidade climática, a descarbonização da economia e a tran-
sição energética. Isso, porque para alcançar as emissões nulas,
faz-se essencial modificar a matriz energética para fontes mais
limpas e, por consequência, reduzir as emissões de gases do
efeito estufa34.
Além disso, a LEC trata dos sumidouros de carbono
e da avaliação periódica que deve haver nos Estados-Membros
do bloco a fim de averiguar o que está sendo feito para alcançar
as obrigações, as metas propostas e o que pode ser modificado
de modo a aumentar a eficácia das ações35.
Dessa forma, entende-se que a Lei Europeia do
Clima é relevante para efetivar a transição energética na União
Europeia, já que trata bastante desta na sua extensão e a relaci

EUROPEU E DO CONSELHO. Lei Europeia em matéria de clima. Jornal Oficial


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35 UNIÃO EUROPEIA. REGULAMENTO (UE) 2021/1119 DO PARLAMENTO
EUROPEU E DO CONSELHO. Lei Europeia em matéria de clima. Jornal Oficial
da União Europeia, 30 jun. 2021. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-
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2023.
Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 263
ona com os seus outros escopos. É inadequado, portanto, traba-
lhar os setores de clima e energia separadamente, posto que um
influencia o outro diretamente. Percebe-se tal fato, por exemplo,
na extensão da norma referida, conforme explicado acima.

Considerações finais

A conjuntura atual pela qual o mundo passa é de


uma alarmante crise ambiental, climática e energética, atestada
por inúmeras pesquisas científicas, com danos, muitas vezes, ir-
reversíveis. Assim, os países passaram a se reunir, em busca de
formas para solucionar essa situação, a exemplo do Acordo de
Paris e seus desdobramentos.
No âmbito da União Europeia, foi adotado, nesse
mesmo sentido, o Pacto Ecológico Europeu, cujo principal obje-
tivo é atingir a neutralidade climática até 2050 e a transição
energética justa e equitativa. Ele apresenta ações em diferentes
áreas, como energia e clima, com a Lei Europeia do Clima.
Essa legislação torna juridicamente vinculativa a
meta das emissões neutras até 2050, criando uma obrigação. Ela
visa assegurar a participação de todos os setores para alcançar
esse fim e cria um mecanismo de monitoramento. Percebe-se,
ao longo da análise, uma ampla preocupação ambiental ao
longo do seu texto.
A LEC cita várias vezes o termo desenvolvimento
sustentável e correlatos, abordando a concepção de crescimento
econômico associado a proteção dos recursos para as gerações
presentes e futuras, em consonância com os propósitos da pró-
pria União Europeia de aprimorar sua economia, tornando-a
Lei Europeia do Clima e transição energética
264 |
moderna e competitiva, e promover a transição energética de
maneira segura e sustentável.
Tendo isso em vista, menciona-se que o consumo
energético é uma das atividades humanas que mais contribuem
para agravar o cenário climático hodierno, e ele decorre, em
grande parte da alta taxa de emissões de GEE pelo uso de com-
bustíveis fósseis.
Vale salientar que a Lei em questão traz diversos dis-
positivos tratando desse âmbito. Tal fato é esperado, uma vez
que é perceptível a forte relação em matéria de clima e energia,
consoante já explanado neste artigo.
Destarte, reconhece-se a Lei Europeia do Clima como
uma estratégia importante na implementação do processo de
transição energética na União Europeia. Ademais, não se deve
isolar ações que envolvam clima e energia, já que um interfere
no outro. Um grande exemplo é tal ato normativo, o qual mate-
rializa os clamores por uma preocupação com o desenvolvi-
mento sustentável no arcabouço normativo europeu.

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Laís Maria Belchior Gondim e William Paiva Marques Júnior | 271
EUROPEAN CLIMATE LAW AND ENERGY
TRANSITION
Abstract: The environmental, climate and energy crisis experienced
in contemporary times; described by so many scientific studies is a
global challenge. Seeking solutions, countries started to meet period-
ically to discuss the theme. Many important international documents
have resulted from these meetings, such as the Paris Agreement.
Within the European Union, in the same vein, the European Green
Deal was adopted, whose main goals are climate neutrality by 2050
and a fair and equitable energy transition. One of the instruments of
this Pact is the European Climate Law. Its text includes both climate
and energy aspects. In view of this, the problem consists in analyzing
this law as a strategy for the implementation of the energy transition
in the EU. The following questions are proposed: in what context was
the adoption of the EGD in the European scenario? What does the
European Climate Law provide for? How can it be framed in terms of
the concepts of sustainable development and sustainability? How can
we relate the ECL and the energy transition? The objective of this re-
search is to examine how this normative act can influence the process
of change of the energy matrix in the EU. As for the methodology, this
is a qualitative, exploratory, theoretical-bibliographical and docu-
mentary study on the subject. By means of the inductive method, a
bibliographic review of national and international articles, journals,
theses, dissertations, literature, legislation, and documents was car-
ried out. The structure of the article will be divided into four parts.
First, the context in which the EGD was established in the EU is in-
vestigated, addressing international milestones that culminated in its
emergence. Then, the European Climate Law and its particularities
are discussed, also bringing the differentiation between sustainable
development and sustainability and which definition it primarily ad-
dresses. Then, the relationship between this norm and the energy
transition is discussed. Finally, it is concluded that the ECL is a rele-
vant strategy to drive this process in the bloc, so that actions should
be cross-cutting, integrating climate and energy, because one rever-
berates in the other.
Keywords: European Climate Law. European Green Deal. Energy
transition.
CAPÍTULO IX .

A LOCALIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA

PARA A IMPLEMENTAÇÃO DOS ODS ·

Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes*

**
Milena Alencar Gondim

DOI: 10.29327/5341937.1-9

RESUMO: Ao longo da evolução humana, o modo de as comunida-


des interagirem com o ambiente ao seu redor mudou drasticamente,
resultando em um tipo de desenvolvimento pautado na degradação
insustentável dos recursos do planeta . Observando essa realidade e
entendendo a necessidade de encontrar uma forma de crescimento

econômico que proporcione não só o aumento de capital, mas tam-


bém a evolução social e a perpetuação do meio ambiente a todas as
demais gerações, encontrou-se a solução no que viria a ser conceitu-
ado como desenvolvimento sustentável. Assim, analisa-se, inicial-
mente, que, após a introdução do assunto na Conferências de Esto-

colmo de 1972, sua conceituação pelo Relatório Brundtland de 1987,


e outras diversas convenções voltadas ao amadurecimento da temá-
tica, o Desenvolvimento Sustentável teve a sua importância no cená-
rio global refletida na edição da Agenda 2030 e dos ODS, passando a

..
O presente capítulo foi feito com o apoio do Fundação Cearense de Apoio ao De-
senvolvimento Científico e Tecnológico– FUNCAP.
*
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará . Especialista em Direito
Internacional pela Universidade de Fortaleza . Mestrando em Direito pela Univer-
sidade Federal do Ceará.
**
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito
Previdenciário e Processo Previdenciário pelo Ibmec São Paulo. Mestranda pela
Universidade Federal do Ceará.
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 273
ser o objetivo primordial de toda a atuação internacional. Posterior-
mente, verifica-se que, ao ser elaborada com a finalidade de instituir
objetivos e metas universais, a Agenda 2030 trouxe importantes avan-
ços no campo do desenvolvimento sustentável, uma vez que a criação
dos 17 ODS e suas 169 metas serviu para balizar as políticas públicas
e avançar a implementação desse novo ideal de progresso da huma-
nidade. Dessa forma, partindo-se do questionamento sobre o papel
da atuação local para implementação dos ODS, investigou-se como a
localização de medidas universais, criadas para atender às demandas
do cenário internacional, pode ser essencial para garantir a adaptação
dessas medidas às realidades locais, oferecendo assim respostas mais
efetivas a essas problemáticas. Por fim, utilizando-se de uma metodo-
logia descritivo-analítica, por meio de pesquisa bibliográfica e docu-
mental, conclui-se que, apesar de alguns desafios ainda a serem en-
frentados no momento da implementação local dos objetivos de de-
senvolvimento sustentável globais, o caráter específico dessa aplica-
ção mostra-se como o meio mais propício para atender às desigualda-
des de cada local e garantir maior efetividade ao seu combate, tendo
em vista o maior poder de adaptação e de oportunização de uma par-
ticipação múltipla no processo decisório, responsável por gerar uma
maior aceitação da comunidade local e, consequentemente, propiciar
o sucesso dos ODS.
Palavras-chave: ODS. Agenda 2030. Localização.

Introdução

Ao longo de sua evolução, a forma como os seres hu-


manos interagiam e modificavam o ambiente à sua volta sofreu
uma drástica mudança. Com o passar dos séculos e das revolu-
ções nos campos científicos e tecnológicos, o progresso e desen-
volvimento das sociedades passou a acontecer de maneira ex-
ponencial, sendo necessário, para isso, uma interferência cada
274 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

vez maior no meio ambiente, de modo a obter os recursos es-


senciais para manter o constante aumento do desenvolvimento
e do padrão de consumo das populações.
Em observância a esse contexto, por volta da metade
do século XX, a forma como ocorria essa corrida pelo desenvol-
vimento e o seu impacto nos recursos naturais do planeta foram
se tornando alvo de preocupações globais, tendo a comunidade
internacional começado a se mobilizar para conceber um tipo
de desenvolvimento que fosse saudável e pudesse perdurar por
inúmeras gerações.
Surgia então, no meio internacional, o conceito de
desenvolvimento sustentável, posteriormente elencado ao con-
ceito de princípio, o qual passou a fazer parte de todas as dis-
cussões a partir de sua concepção e se tornou um dos principais
objetivos a serem perseguidos pela humanidade. Este se con-
centra na ideia de um desenvolvimento pautado nos pilares
econômicos, sociais e ambientais, podendo ser expresso como:
um processo de mudança no qual a exploração de
recursos, a direção dos investimentos, a orientação
do desenvolvimento tecnológico e a mudança ins-
titucional, estão todos em harmonia e aumentam,
conjuntamente, o potencial de suprir as necessida-
des e aspirações dos seres humanos na atualidade
e no futuro (ONU, 1987, p.38) (tradução livre).

Assim, na atualidade, por meio dos seu amadureci-


mento, o desenvolvimento sustentável culminou na criação da
Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e dos
seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), os quais
são uma declaração universal, assinada por todos os membros
da ONU, e foram elaborados visando instituir metas e objetivos
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 275
universais, voltados a orientar políticas e promover o alcance
do desenvolvimento sustentável, de maneira uniforme, em to-
dos os lugares do globo terrestre.
Observa-se que, a ideia inicial e os parâmetros trazi-
dos pelos ODS são, em especial, voltados ao nível internacional
de atuação. Porém, os problemas globais aos quais os ODS bus-
cam solucionar estão presentes em diferentes escalas nos con-
textos nacionais e locais de cada localidade do planeta, sendo
possível se questionar se somente uma norma de nível interna-
cional seria apta a oferecer uma resposta satisfatória a esses pro-
blemas específicos de cada lugar.
É nesse sentido que o presente capítulo busca res-
ponder o seguinte problema de pesquisa: qual o papel da atua-
ção local para a consecução dos ODS?
Para isso, no campo metodológico, utiliza-se uma
pesquisa de natureza pura, analítico-descritiva, exploratória e
de abordagem qualitativa, assim como do tipo bibliográfica e
documental, com base em revisão de literatura de artigos cien-
tíficos e análise de tratados e demais documentos elaborados
pelas organizações internacionais e pelos poderes públicos de
cada nação.
Este artigo se divide em 3 tópicos. Inicialmente, veri-
fica-se a evolução do conceito de desenvolvimento sustentável
e sua incorporação na pauta global, analisando as convenções
que deram origem, definiram e amadureceram o assunto mun-
dialmente.
Na sequência, busca-se analisar a Agenda 2030 e a
criação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, de
modo a entender o contexto de sua elaboração e bem como exa-
minar todas as inovações trazidas pelo documento. Por fim, no
276 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

último tópico, investiga-se a atuação multinível para a consecu-


ção dos ODS, visando compreender, especificamente, qual o pa-
pel da atuação local para a implementação desses objetivos.
Esta pesquisa tem relevância social e prática por dar
visibilidade à necessidade de aplicação local de normas estabe-
lecidas em âmbito internacional, para que essas tenham a sua
efetividade garantida e cumprimento de suas metas alcançado.
Além disso, a pesquisa intenta auxiliar na promoção e adequa-
ção de políticas públicas para a aplicação dos ODS às realidades
e exigências locais e internacionais.

1. A evolução do conceito de desenvolvimento


sustentável e sua incorporação na pauta global

As mudanças na sociedade humana, ao longo dos sé-


culos, alteraram profundamente a relação entre esses seres e a
natureza ao seu redor, podendo-se reparar que, quanto maior o
progresso e desenvolvimento das populações, mais predatória
e destrutiva se torna sua exploração do meio ambiente natural.
Devido ao isso, insurgiram-se, já na segunda metade do século
XX, preocupações relacionadas à oposição entre o direito ao
meio ambiente e o direito ao desenvolvimento, bem como
quanto aos interesses entre nações desenvolvidas e em desen-
volvimento e os conflitos a partir daí gerados (FIGUEIREDO,
2009).
Assim, na busca de um novo modelo de desenvolvi-
mento e pautada em um contexto de surgimento de diversas
Organizações não Governamentais (ONGs), de aumento da
pressão pública sobre os políticos, e de maior percepção das po-
pulações acerca dos graves problemas ambientais existente e
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 277
dos impactos econômicos e sociais por eles gerados, elaborou-
se a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente
Humano de 1972, conhecida como Conferência de Estocolmo,
na qual foram iniciadas as primeiras discussões do modelo de
desenvolvimento que viria a ser definido como desenvolvi-
mento sustentável (CRETELLA NETO, 2012).
Como frutos da convenção, pode-se destacar a apro-
vação da Declaração sobre o Meio Ambiente, ou Declaração de
Estocolmo, composta de 26 princípios, nos quais são reforçados
os ideais de cooperação internacional, de execução das medidas
de proteção ambiental, de assistência financeira e compartilha-
mento de tecnologia, de planejamento racional e da responsabi-
lidade do homem pela preservação do patrimônio ambiental
global (UN, 1972a).
Como consequência dos debates travados na Confe-
rência de Estocolmo, foi estabelecida em 1983 a Comissão Mun-
dial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, que culminou
na publicação, em 1987, do documento intitulado “Nosso Fu-
turo Comum”, também conhecido por “Relatório Brundtland”,
responsável por apresentar uma resposta de alcance universal,
que proporcionasse indefinidamente a conservação dos seres
humanos, sendo esta o desenvolvimento sustentável.
De acordo com o relatório, conceitua-se o desenvol-
vimento sustentável como um processo de mudança no qual to-
das as ações de desenvolvimento humanas, como a exploração
dos recursos, a direção dos investimentos, a orientação do de-
senvolvimento tecnológico, estão voltadas para o completo al-
cance das necessidades e das aspirações presentes e futuras da
humanidade (UN, 1987).
Assim, conforme dispõe Silva (2010, p. 102)
278 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

[...], é possível identificar três pilares indissociá-


veis na base do conceito de desenvolvimento sus-
tentável: o econômico, o social e o ambiental.
Trata-se de garantir a transmissão da capacidade
produtiva de uma geração à outra geração, permi-
tindo a satisfação das necessidades essenciais e a
preservação dos recursos naturais, assegurando,
portanto, que o desenvolvimento leve em conside-
ração, além da dimensão econômica, a coesão so-
cial e a capacidade de reprodução do meio ambi-
ente.

O desenvolvimento passa a ser visto, a partir de en-


tão, como algo complexo, que deve envolver todas as esferas da
vida humana, sem deixar renegado nenhum setor, de modo a
garantir um equilíbrio na sua consecução e permitir a sua con-
tinuidade.
Na continuidade das discussões sobre o assunto, sur-
giram no meio internacional diversas conferências destinadas a
tratar e desenvolver a matéria, conforme pode-se observar na
figura abaixo:

Figura 1 - Evolução das conferências relacionadas ao


desenvolvimento sustentável

Fonte: PEREIRA, RICARDO et al. A MUNICIPALIZAÇÃO DOS ODS: uma


revisão integrativa e agenda de pesquisa. 2021, online.
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 279
Desse modo, após a elaboração do Relatório Brun-
dtland e da definição do que seria o desenvolvimento sustentá-
vel, o próximo grande evento a abordar a temática foi a Confe-
rência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvol-
vimento, sediada no Rio de Janeiro, em 1992, conhecida também
como ECO92 ou Rio92.
Essa conferência ocorreu em um período no qual vi-
nham sendo adotados diversos acordos multilaterais em decor-
rência da Conferência de Estocolmo de 1972, destacando, no ce-
nário internacional, uma visão global de preocupação pela con-
servação da natureza e da luta contra novos tipos de poluição,
questões essas que repercutiam devido a ocorrência de uma
grande quantidade de catástrofes ambientais de larga escala
(SILVA, 2010).
Quanto ao contexto histórico de sua realização,
pode-se observar que a Rio92 foi preparada com o intuito de
amadurecer os temas emergentes à época, em especial o do de-
senvolvimento sustentável.
Assim, a Declaração do Rio, como foi chamado o
principal documento advindo da Conferência, buscando abar-
car todas as preocupações e referenciais em pauta naquele mo-
mento, trouxe a consagração dos princípios originários ou deri-
vados da Declaração de Estocolmo, dando-lhes uma nova cono-
tação e os consolidando como meios para garantir o desenvol-
vimento equilibrado do planeta (SOARES, 2003).
Ainda, pode-se observar, também com fruto da
ECO92, a elaboração da Agenda 21, documento este com carac-
terísticas de plano de ação, buscando “estabelecer um programa
global de política de desenvolvimento e de política ambiental,
elaborado por países industrializados e pelos em vias de desen
280 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

volvimento, com seus princípios válidos para ambos os conjun-


tos, embora com exigências distintas para cada qual.” (SOARES,
2003).
Este documento deixa claro, logo em seu preâmbulo,
que se deve haver uma associação mundial em prol do desen-
volvimento sustentável, visto não ser possível o alcance sozinho
das metas, enaltecendo-se, então, que, para o seu cumprimento,
é necessário um fortalecimento da capacidade produtiva das
instituições internacionais e um aumento no fluxo de recursos
financeiros aos países em desenvolvimento, de forma a cobrir
os custos de ações neles realizadas em prol do desenvolvimento
sustentável.
Dando sequência ao aprofundamento do desenvol-
vimento sustentável na ordem social internacional, dez anos
após a Rio92 ocorreu, no ano de 2002, em Johannesburgo, a
Rio+10, oficialmente denominada Cúpula Mundial sobre o De-
senvolvimento Sustentável. Este evento teve como foco a revi-
são das metas trazidas pela Agenda 21 e uma maior concentra-
ção em identificar aquelas que estavam em pior evolução, ne-
cessitando de maiores esforços para a sua implementação.
Como consequência dos trabalhos realizados na Cú-
pula, elaborou-se a Declaração de Johannesburgo sobre o De-
senvolvimento Sustentável e o Plano de Implementação da Cú-
pula Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável, instru-
mentos que, apesar de não terem trazidos muitos avanços
quando comparados às declarações anteriores, resultaram em
metas concretas para a consecução da Agenda 21.
Observa-se então que, a Declaração, em relação à Cú-
pula, “representou ponto positivo a constatação quanto ao fato
de que, se por um lado os estados não estavam dispostos a criar
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 281
novos instrumentos jurídicos, passou-se o foco para a imple-
mentação dos instrumentos existentes” (CASELLA, ACCIOLY
e SILVA, 2012, p. 697).
Posteriormente à edição da Rio+10, após mais um de-
cênio, ocorreu em 2012, novamente na cidade do Rio de Janeiro,
a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento
Sustentável ou Rio+20.
A Rio+20 teve como objetivos principais a renovação
do compromisso com o desenvolvimento sustentável, culmi-
nando na elaboração de sua declaração final “O Futuro que
Queremos”, a qual pretendeu reafirmar os compromissos assu-
midos em conferências anteriores; oportunizar a integração, a
implementação e a coerência, pautada na avaliação dos progres-
sos obtidos e das lacunas existentes na efetividade das medidas
que já haviam sido estabelecidas; e aproximar-se dos grandes
grupos e de outras partes interessadas, em razão do papel es-
sencial dos organismos públicos e legislativos, da ampla parti-
cipação pública e da sociedade civil, do acesso à informação e à
justiça para a promoção do desenvolvimento sustentável.
Assim, pode-se observar que, desde sua menção ini-
cial na Conferência de Estocolmo de 1972, o conceito de desen-
volvimento sustentável continuou a ser sistematicamente traba-
lhado pela comunidade internacional, trabalho este que não se
encerrou com a Rio+20, pelo contrário, se amplificou nos anos
seguintes com a criação da Agenda 2030 da ONU para o Desen-
volvimento Sustentável e os objetivos globais por ela trazidos,
a serem apresentados no tópico a seguir.
282 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

2. A Agenda 2030 da ONU e a criação dos objetivos de


desenvolvimento sustentável

Seguindo os passos determinados pela Rio+20, esta-


beleceu-se em setembro de 2015, durante a Cúpula das Nações
Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, realizada em
Nova Iorque, um grupo de trabalho aberto voltado à elaboração
de metas de desenvolvimento sustentável. Desta intentada, sur-
giu a agenda “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030
para o Desenvolvimento Sustentável”, que consistia em uma
Declaração, 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) e 169 metas, uma seção sobre meios de implementação e
uma renovada parceria mundial, além de um mecanismo para
avaliação e acompanhamento (ONU BRASIL, 2022).
A Agenda 2030 foi então elaborada com a finalidade
de instituir objetivos e metas universais, visando orientar polí-
ticas e promover o alcance do desenvolvimento sustentável,
conforme conceituado no Relatório Brundtland de 1987.
Para o alcance dos referidos propósitos, foram esta-
belecidos pelo documento 17 Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável, quais sejam: erradicação da pobreza; fome zero e
agricultura sustentável; saúde e bem-estar; educação de quali-
dade; igualdade de gênero. água potável e saneamento; energia
limpa e acessível; trabalho decente e crescimento econômico; in-
dústria inovação e infraestrutura; redução das desigualdades;
cidades e comunidades inteligentes; consumo e produção res-
ponsáveis; ação contra a mudança global do clima; vida na
água; vida terrestre; paz, justiça e instituições eficazes; e parce-
rias e meios de implementação (ONU BRASIL, 2022).
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 283

Fonte: (ONU BRASIL, 2022, online).

Desse modo, observa-se que os 17 ODS, mais as suas


169 metas, buscam por meio da ação dos diversos níveis de go-
verno, setor privado e sociedade civil, uma cooperação multila-
teral que promova a mobilização de forças para atuar internaci-
onal, nacional, regional e localmente em cinco áreas de extrema
importância à humanidade, quais sejam: pessoas, buscando er-
radicar a pobreza e a fome em todas as suas formas e garantir
dignidade e igualdade a todos; planeta, determinando a prote-
ção contra a degradação, o consumo, a produção e o manejo sus-
tentável dos recursos, além do combate urgente às mudanças
climáticas; prosperidade, visando garantir que o progresso tec-
nológico, social e econômico esteja em harmonia com a natu-
reza; paz, criando sociedades pacíficas, justas e inclusivas, livres
de medo e violência; e parcerias, estreitando a solidariedade
global, focando nos interesses dos mais vulneráveis e estabele-
cendo uma participação múltipla de todos os atores globais
(DENNY; PAULO; CASTRO, 2017; UN, 2015).
Além disso, da análise do conteúdo da Agenda, ob-
serva-se seu empenho em reafirmar as Conferências anterior
284 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

mente realizadas e assegurar o cumprimento de suas disposi-


ções, frisando a importância do princípio 7 da Declaração do
Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, referente à Rio92,
o qual trata das responsabilidades comuns porém diferenciadas
e da necessidade de abordagens integradas para o alcance do
desenvolvimento sustentável (UN, 2015).
Assim, logo após a sua criação, a Agenda 2030 e os
ODS foram identificados, a nível mundial, como os sucessores
diretos dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM),
que estiveram em vigor entre os anos de 2000 e 2015, e tinham
como seu foco principal a estruturação de políticas públicas
para garantir o alcance aos valores de liberdade, igualdade, so-
lidariedade, respeito à natureza, responsabilidade comparti-
lhada e tolerância (DENNY; PAULO; CASTRO, 2017; UN,
2000).
A diferença entre os ODM e os objetivos trazidos
pela Agenda 2030, entretanto, é que estes últimos possuem uma
área de atuação mais ampla, tendo seu foco nas raízes de pro-
blemas como a pobreza e a obtenção de um desenvolvimento
que funcione para todos de maneira universal, bem como abar-
cam as dimensões econômicas, de inclusão social e de proteção
ambiental do desenvolvimento sustentável (UN, 2022, online).
Soma-se às diferenças entre os dois documentos, o
fato de os ODS serem objetivos universais, sob a missão de “não
deixar ninguém para trás”, e aplicáveis a todos os países,
quando, em comparação, os ODM focaram suas ações nos paí-
ses em desenvolvimento. Ainda, outra característica fundamen-
tal dos ODS é a sua preocupação com os meios de implementa-
ção de suas metas, o monitoramento e a análise de resultados e
o desenvolvimento de capacitação e tecnologia (UN, 2022, on
line).
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 285
Quanto aos aspectos diferenciativos entre os Objeti-
vos globais, destaca-se que os ODS, diferente dos ODM, não fo-
ram elaborados apenas por um grupo de experts da ONU, mas
envolveram um processo consultivo com a participação ativa de
uma multiplicidades de atores, como governos, experts técni-
cos, sociedade civil, setor privado e público em geral, o que per-
mitiu que houvesse um debate com vários pontos de vista, e,
consequentemente, uma maior ambição e ampliação dos cam-
pos de atuação da Agenda (FODAY JUNIOR; KOKOFELE,
2019).
Contudo, mesmo com os avanços trazidos pelos
ODS, pode-se constatar que, a criação de objetivos mais com-
plexos, que se deu em oposição à simplicidade que permeava
os ODM, ensejou o surgimento de algumas críticas quanto à ve-
rificabilidade das metas da Agenda 2030, em especial quando
relacionada aos critérios de valores numéricos, prazos específi-
cos e conceitos claros (VANDEMOORTELE, 2017).
Concomitantemente, pondera Vandemoortele (2017)
que a intensificação de tais questionamentos sobre a verificabi-
lidade das metas se deu pela fragmentação do multilateralismo
e das comunidades globais, assim como pelo fortalecimento da
polarização norte-sul, fatos estes que dificultam a adoção de
metas globais claras, concisas e computáveis.
Nesse sentido, é passível de questionamentos a su-
posta universalidade dos ODS, pois ao serem analisadas com
maior profundidade, as metas com maior potencial de verifica-
bilidade seriam aquelas que tratassem de assuntos relativos aos
países em desenvolvimento, enquanto que as temáticas de
maior relevância àquelas nações com maior nível de desenvol-
vimento seriam ou deixadas de lado ou destinadas às metas de
286 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

caráter mais complexo e de maior dificuldade de verificação


(VANDEMOORTELE, 2017).
Desse modo, entende-se que, apesar das críticas elen-
cadas, a Agenda 2030 trouxe sim avanços à implementação do
desenvolvimento sustentável, uma vez que elevou às priorida-
des globais assuntos que até então não tinham tido relevância
nos planos de ação internacionais.
Na sequência, passar-se-á a analisar o modo como a
localização de metas até então criadas e destinadas ao ambiente
internacional, pode ser fundamental para garantir a efetivação
dessas medidas e o sucesso do plano global em prol do desen-
volvimento sustentável.

3. A atuação local como instrumento essencial para a


implementação dos ODS

A Agenda 2030 e seus objetivos compõem um docu-


mento de caráter não vinculante, inserido em um cenário inter-
nacional marcado pela fragmentação de suas normas e vasto
campo de atuação. Dessa forma, configura-se, pois, como um
instrumento de soft law, uma espécie de “direito diferenciado,
com caráter informal e juridicamente não vinculante” (DIÓGE-
NES, 2020, p. 67).
Nesse sentido, ainda quanto ao conceito de soft law,
entende-se que

o conceito de soft law amplamente aceito é o de


normas que não são juridicamente obrigatórias,
mas não são desprovidas de força legal. Assim,
soft law refere-se às normas do direito internacio-
nal que não são obrigatórias, de per si, mas que de-
sempenham um papel interpretativo importante
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 287
na construção e interpretação dos princípios e nor-
mas do direito internacional ambiental formal
(SOUZA; LEISTER, 2015, p. 771).

Sobre o assunto, é importante observar que os instru-


mentos internacionais de soft law possuem grande relevância
na estrutura do Direito Internacional, em especial nos assuntos
ligados ao meio ambiente e na arquitetura de governança global
ambiental, uma vez que possibilitam o uma maior elasticidade
aos atores internacionais quanto às fontes tradicionais de di-
reito, facilitando a regulação e ratificação de temas complexos e
a adoção de regras às temáticas que encontram resistência na
esfera política (DIÓGENES, 2020).
A esse respeito, quanto à sua implementação, a
Agenda reflete em seu texto a necessidade de meios que garan-
tam uma abordagem integrada, baseada no reconhecimento de
interações profundas entre os objetivos e metas e prezando pelo
respeito às políticas e prioridades nacionais, e às diferentes rea-
lidades, capacidades e níveis de desenvolvimento dos países.
Para isso, o documento reforça a importância de uma atuação
conjunta, pautada na responsabilidade compartilhada de todos
os atores da sociedade e destaca o papel essencial dos governos
nacionais e locais no desenvolvimento de estratégias nacionais
próprias e coerentes, apoiadas por modelos integrados de finan-
ciamento de suas ações (UN, 2015).
Desse modo, observa-se que é feito um compromisso
“em perseguir a coerência nas políticas de implementação e
proporcionar um ambiente favorável ao desenvolvimento sus-
tentável em todos os níveis e por todos os atores” (UN, 2015,
p.28) (tradução livre).
288| A localização como estratégia para a implementação dos ODS

Quanto às esferas de implementação dos ODS, im-


porta salientar que, apesar de adotado pelos líderes de gover-
nos, as Nações Unidas procuram enfatizar a necessidade de
união entre os atores estatais e não-estatais em todos os níveis
da sociedade, por meio da aplicação de estratégias pautadas em
ações com atuação de baixo para cima e que promovam a parti-
cipação de diferentes agentes de mudança, como as empresas,
as cidades e as comunidades locais (UN, 2015).
Assim, as metas e objetivos estabelecidos especifica-
mente a um país ou localidade mostram-se mais propícias a re-
fletir adequadamente as desigualdades locais e serem mais efe-
tivas no seu combate, uma vez que, ao se evitar a busca de so-
luções universais, que se encaixem perfeitamente a todas as si-
tuações, e focar em uma atuação pautada em ações personaliza-
das, que consideram as especificidades locais, pode-se obter
muito mais efetividade e precisão na implementação dos ODS
(OLIVEIRA et al., 2020).
Ademais, constata-se que uma participação múltipla
no processo decisório tende a melhorar a percepção de adequa-
ção das decisões tomadas para o desenvolvimento e implemen-
tação das estratégias a nível local, as quais têm como condição
para o seu sucesso, um desenvolvimento conjunto com a comu-
nidade local e a sua aceitação e apoio pelos cidadãos, sociedade
civil, administração e classe política (EICHHORN; HANS;
SCHÖN-CHANISHVILI, 2021).
Por isso, conforme observam Okitasari et al. (2019),
nos anos que passaram após a adoção da Agenda 2030, houve
um desenvolvimento, na maioria dos países, de suas metodolo-
gias de governança para a implementação do documento, per-
cebendo-se o mapeamento de políticas relacionadas aos ODS, a
priorização e adaptação das metas, e o início do estabelecimento
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 289
de indicadores nacionais. Entretanto, os autores ainda apontam,
como desafios a esse processo de implementação, a integração
dos ODS aos orçamentos nacionais e locais, que se encontra ape-
nas em suas fases iniciais, bem como a inclusão efetiva dos go-
vernos locais na estrutura de governança nacional para a imple-
mentação e monitoramento dos ODS.
Nesse sentido, Moallemi et al. (2019) ainda observam
que a implementação das metas da Agenda 2030 requer uma
apropriação local dos ODS, buscando-se identificar os indica-
dores e as ações mais relevantes à realidade local e moldar ca-
minhos robustos para o seu alcance. Por isso, os autores desta-
cam que mesmo com a concordância internacional quanto à im-
portância dessa forma específica de atuação, ainda são poucos
os acordos que versam sobre medidas que instiguem e propor-
cionem as ações locais, e entendem que qualquer ação nesse
sentido deve levar em consideração o histórico global de res-
posta local a outras Agendas e compromissos mundiais.
Dessa forma, as ações locais de dimensão global
constituem forma de articulação do local com o global, como
resposta às políticas globais que afetam as populações e geram
nelas respostas de resistência e busca por alternativas. Diante
disso, “o local passa, portanto, a ser o espaço no qual pode-se
desenvolver melhor a política cotidiana, com iniciativas espon-
tâneas de novas formas de se fazer política, que depois são ab-
sorvidas e redesenhadas pela política institucional” (PEREIRA,
2019, p. 39).
Por conseguinte, mostra-se evidente que, apesar dos
desafios de localizar medidas internacionais complexas, que
buscam abarcar uma diversidade de realidades, a atuação local,
por seu caráter mais específico, é uma das melhores estratégias
290 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

para garantir a qualidade e a efetividade na consecução desses


objetivos globais.

Considerações finais

Diante do exposto, percebe-se que, há várias déca-


das, a comunidade internacional vem se mobilizando para per-
petuar uma nova forma de desenvolvimento econômico, que
permita não só aumentar o poder aquisitivo e os recursos finan-
ceiros dos Estados e seus indivíduos, mas que também propor-
cione o desenvolvimento social e a manutenção do meio ambi-
ente sadio para todas as demais gerações.
Nesse sentido, desde a Conferência de Estocolmo de
1972, a resposta encontrada parece ser o desenvolvimento sus-
tentável, o qual, após a sua conceituação, em 1987, pelo Relató-
rio Brundtland, como um processo de mudança no qual todas
as ações de desenvolvimento humanas estão voltadas para o
completo alcance das necessidades e das aspirações presentes e
futuras da humanidade, vem sendo tratado como o fim primor-
dial a ser buscado por todo os atores do meio internacional.
Dessa forma, a culminação máxima do ideal veio
com a edição da Agenda 2030 da ONU, que estabeleceu 17 Ob-
jetivos para o Desenvolvimento Sustentável, os quais, a partir
de sua criação, serviram para nortear toda a atuação internaci-
onal pelos próximos 15 anos, visando o alcance, por todas as
nações, de um desenvolvimento equilibrado, responsável e sa-
dio de suas comunidades.
Contudo, criados em um ambiente internacional e
voltados primeiramente para atuação nesse nível supranacio
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes e Milena Alencar Gondim | 291
nal, os ODS são compostos, em sua maioria, de normas comple-
xas e gerais, voltadas a abarcar toda a diversidade de realidade
de todas as nações dispostas pelo globo terrestre. Pautados em
uma abordagem integrada, os ODS reforçam a importância de
uma atuação conjunta e da responsabilidade compartilhada de
todos os atores da sociedade, sendo essencial o papel dos go-
vernos nacionais e locais no desenvolvimento de estratégias
próprias e coerentes para o alcance das suas metas.
Por isso, verifica-se que a localização dessas metas
globais, apesar dos desafios para a sua implementação, surge
como o meio mais propício para atender às desigualdades e es-
pecificidades de cada local e garantir maior efetividade ao seu
combate, visto o maior poder de adaptação a essas diferentes
realidades e a oportunização de uma participação múltipla no
processo decisório, responsável por gerar uma maior aceitação
da comunidade local e, consequentemente, propiciar o sucesso
dos ODS.

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296 | A localização como estratégia para a implementação dos ODS

LOCALIZATION AS A STRATEGY FOR


IMPLEMENTING THE SDG
Abstract: Throughout human evolution, the way communities inter-
act with the environment around them has changed dramatically, re-
sulting in a type of development based on the unsustainable degra-
dation of the planet's resources. Observing this reality and under-
standing the need to find a form of economic growth that provides
not only an increase in capital, but also social evolution and the per-
petuation of the environment for all other generations, the solution
was found in what would become conceptualized as sustainable de-
velopment. Thus, it is initially analyzed that, after the introduction of
the subject in the Stockholm Conferences of 1972, its conceptualiza-
tion by the Brundtland Report of 1987, and other diverse conventions
aimed at the maturation of the theme, Sustainable Development had
its importance in the global scenario reflected in the edition of the
2030 Agenda and the SDGs, becoming the primary objective of all in-
ternational action. Subsequently, it is verified that, when it was elab-
orated with the purpose of instituting universal objectives and goals,
the 2030 Agenda brought important advances in the field of sustain-
able development, since the creation of the 17 SDGs and their 169
goals served to guide the public policies and advance the implemen-
tation of this new ideal of humanity's progress. In this way, starting
from the questioning about the role of local action for the implemen-
tation of the SDGs, it was investigated how the localization of univer-
sal measures, created to meet the demands of the international sce-
nario, can be essential to ensure the adaptation of these measures to
local realities, thus offering more effective responses to these prob-
lems. Finally, using a descriptive-analytical methodology, through
bibliographic and documentary research, it is concluded that, despite
some challenges still to be faced at the time of the local implementa-
tion of the global sustainable development objectives, the specific
character of this application is shown to be the most favorable way to
address the inequalities of each location and ensure greater effective-
ness in combating them, in view of the greater power of adaptation
and opportunity for multiple participation in the decision-making
process, responsible for generating greater acceptance of the local
community and, consequently, enable the success of the SDGs.
Keywords: SDG. Agenda 2030. Localization.
CAPÍTULO X.
TRABALHO DOMÉSTICO: UMA
PERSPECTIVA DO TRABALHO DECENTE
NA RELAÇÃO LATINO-AMERICANA DE
BRASIL E ARGENTINA

Lanna Maria Peixoto de Sousa*

DOI: 10.29327/5341937.1-10

RESUMO: O trabalho decente surgiu na década de 1990 com o intuito


de defender a promoção do emprego frente à precarização e crescente
informalidade no mercado. A Organização Internacional do Trabalho
(OIT) procurou difundir os objetivos estratégicos e metas traçadas
para efetivar postos de trabalho atrelados ao princípio da dignidade
da pessoa humana. Com as Recomendações e Convenções sobre o
tema, os países avançariam em direção à formalização progressiva, à
equidade de gênero no ambiente do trabalho, ao trabalho estruturado
juntamente com a promoção dos direitos fundamentais no trabalho,
a proteção social e o diálogo social. Na América Latina, em especial
nas economias brasileira e argentina, a efetivação do trabalho decente
reduziria os abismos da desigualdade social e da pobreza, principal-
mente em trabalhos historicamente relegados a não regulamentação
e não proteção legal. Para observar isso, a metodologia utilizada foi a
exploratória, visto que a perspectiva geral do trabalho digno foi ex-
plorada defronte à realidade singular do trabalho doméstico no Brasil

*
Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universi-
dade Federal do Ceará (UFC), Especialista em Direito do Trabalho e Previdenci-
ário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e pesqui-
sadora do Grupo de Estudos e Defesa do Direito do Trabalho e do Processo Tra-
balhista (GRUPE).
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
298 | latino-americana de Brasil e Argentina

e na Argentina. O objetivo da pesquisa é comparar a relação latino-


americana entre os dois países no que diz respeito ao trabalho domés-
tico decente. A problemática central baseou em elementos dissocian-
tes e convergentes entre os dois países, de modo que a partir das hi-
póteses foi possível visualizar o progresso maior da Argentina no re-
conhecimento e proteção do trabalho doméstico e a presença de ele-
mentos, mesmo que parcamente, do trabalho digno em ambas as na-
ções. Ademais, é partilhada a dificuldade e atraso de ambos os países
em normatizar o trabalho doméstico com garantias trabalhistas e
constitucionais.
Palavras-chave: Trabalho Decente. Trabalho Doméstico. Relação la-
tino-americana.

Introdução

No ano de 1999, a Organização Internacional do Tra-


balho (OIT) trouxe o debate envolvendo o Trabalho Decente em
escala mundial. A preocupação da Organização se mostrava
atenta à crise de emprego surgida no início do século XXI. O
trabalho digno se origina, portanto, com o intuito de proteger o
emprego da precarização e fomentar a oferta de trabalho con-
forme o princípio da dignidade da pessoa humana.
A conceituação desse primado possui inúmeras nu-
ances que abrangem o caráter pragmático de sua definição, as
formas que os objetivos estratégicos refletem nos compromissos
estabelecidos com os países membros e o grau de efetividade
diante da necessidade de políticas públicas que suscitem o cum-
primento material do trabalho digno.
Para sua concretização, o trabalho decente é esque-
matizado de forma estratégica, possuindo objetivos, a Agenda
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 299
2030 e a integração entre os países signatários para elaboração
de metas, realização de conferências e fóruns.
Os quatro objetivos estratégicos da OIT sobre traba-
lho decente centram na promoção dos direitos fundamentais no
trabalho, no emprego equitativo e de qualidade, na proteção e
no diálogo social correlacionado com a ideia de democracia e
exercício da cidadania perante as instituições representativas.
Contudo, a doutrina e pesquisadores do tema inda-
gam sobre a precisão do que seria o trabalho digno e como ele
alcançaria realidades subdesenvolvidas e tão distintas, abor-
dando cultura, legislação, povo e problemas sociais intrínsecos
da região.
Por outro lado, a OIT acredita que o alinhamento dos
quatros objetivos estratégicos, a elaboração de Agendas e a pró-
pria integração dos países membros podem reduzir os desafios
e auxiliar no cumprimento de metas projetadas para fins de efe-
tivação de garantias constitucionais trabalhistas.
Ciente dos desafios e da importância da concretiza-
ção do trabalho digno nos Estados, principalmente diante de
países subdesenvolvidos como ocorre na América Latina, torna-
se necessário analisar não somente o Brasil enquanto personifi-
cação estatal, mas abordar o contexto argentino como segunda
maior economia latina, detentora de avanços recentes do traba-
lho doméstico1 e que se estrutura de maneira plural perante a
liberdade sindical.

1 ROSA, Luciana. A Argentina passa a reconhecer a dupla jornada feminina nos


cálculos para a aposentadoria. Carta Capital. Buenos Aires. 22 ago. 2021. Edição
nº 1171.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
300 | latino-americana de Brasil e Argentina

A problemática central desta pesquisa, portanto, re-


flete na abordagem do Trabalho Decente pela OIT, singulari-
zando e se efetivando nos estados membros, de modo que surge
a questão: o trabalho doméstico, no âmbito da relação latino-
americana de Brasil e Argentina, consegue atingir níveis de ma-
terialização de Trabalho Digno?
Como hipótese, há de se reconhecer a dificuldade em
adequar o conceito de trabalho decente conforme o nível de de-
sigualdade social, pobreza e outros problemas oriundos de pa-
íses subdesenvolvidos, de modo que a Argentina caminha pro-
gressivamente quanto ao reconhecimento do trabalho domés-
tico sob o aspecto quanti-qualitativo em razão das recentes ati-
vidades legislativas e de campanhas financiadas pelo Estado
com finalidade conscientizar a importância da filiação e registro
sindical. De outro lado, há similaridades no perfil da trabalha-
dora doméstica de ambos países e no atraso de sua regulamen-
tação laboral.
O objetivo geral deste capítulo é analisar o trabalho
doméstico nos dois países sul-americanos sob a ótica do traba-
lho decente e de seus objetivos estratégicos; tendo como objeti-
vos específicos observar a finalidade da Agenda 2030; definir
similaridades e divergências acerca da estrutura do trabalho do-
méstico entre os dois parceiros de Mercosul e, por fim, especifi-
car como a legislação regulamenta o trabalho doméstico em am-
bos, correlacionando-o com a proteção e o diálogo social.
A relevância da pesquisa é bastante nítida; trata-se
de uma classe trabalhadora historicamente relegada à desprote-
ção e desregulamentação nos dois países, tendo nos dias atuais
casos alarmantes de trabalho escravo doméstico, de trabalho in
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 301
fantil, além do grande número de trabalhadoras2 na informali-
dade e excluídas de qualquer garantia trabalhista constitucio-
nal.
Como metodologia, este trabalho utilizará o método
hipotético-dedutivo na abordagem, tendo em vista que testará
a hipótese referenciada juntamente com os posicionamentos di-
vergentes e similares entre Brasil e Argentina, procedendo ao
modelo comparativo do trabalho doméstico de ambos os países
e a forma como o trabalho decente está inserido na realidade
social das duas nações.
A natureza será aplicada, descrevendo como o traba-
lho doméstico e o trabalho decente conversam, explorando os
impactos sociais deles e seus viés explicativo.
Como procedimento técnico, a pesquisa será essenci-
almente bibliográfica, utilizando Constituição brasileira e ar-
gentina, leis infraconstitucionais do trabalho doméstico, Con-
venções Internacionais, Recomendações da OIT, entre outros
documentos nacionais e internacionais.
Por último, o trabalho será dividido em três seções.
A primeira corresponderá ao conceito de trabalho decente cri-
ado pela OIT; na segunda seção dará atenção à Agenda 2030 e
às Convenções ratificadas nos países membros latinos. Por úl-
timo, se dará enfoque aos quatro objetivos estratégicos do tra-
balho decente e a comparação dos dois países quanto ao traba-
lho doméstico decente.

2 Usa-se o termo trabalhadoras no feminino em correspondência com o entendi-


mento da OIT e com o grande número de mulheres que perfazem a categoria do-
méstica em escala mundial e continental.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
302 | latino-americana de Brasil e Argentina

1. O conceito de trabalho decente criado pela OIT

A definição de trabalho decente possui diversas con-


tribuições de estudiosos, pesquisadores e entidades internacio-
nais. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) trouxe
este conceito de forma escrita em 1999, formalizando o primado
do trabalho digno e ultrapassando sua significância além da
transcrição de normas, de convenções ou de fóruns dos países-
membros.
A base mínima de direitos fundamentais conforme a
situação econômica e social dos países e a fixação da Agenda do
Trabalho Decente são palavras-chave para materializar o que a
OIT denomina e objetiva com o trabalho digno.
Assim, com a 87ª Reunião da Conferência Internaci-
onal do Trabalho (CIT), em Genebra, a conceituação desse
termo ganhou espaço e formalização nos atos conseguintes ao
ano de 2003, sendo desenvolvido em conferências, e encontros
da OIT com os países signatários.3
A multiplicidade4 do termo é exemplificada pela
adoção de quatro pontos estratégicos, sendo o primeiro envol-
vendo a promoção dos direitos fundamentais no trabalho, se-
guido da valorização do emprego, da proteção social e do diá-
logo social.
Tais eixos principais evidenciam a correlação do Tra-
balho Decente como o princípio da dignidade humana, do
avanço em direção à formalização de empregos, da equidade de

3 OIT - ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO. CONFERENCIA


INTERNACIONAL DEL TRABAJO. 87ª reunión. Memoria Del Director General:
Trabajo Decente. Oficina Internacional del Trabajo, Ginebra, jun. 1999, p. 5.
4 ABRAMO, Laís. Trabalho Decente: o Itinerário de uma proposta. Bahia análise e
dados, Salvador, v. 20, n. 2/3, p.151-171, jul./set. 2010
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 303
gênero como eixo transversal e da existência de garantias não
somente no âmbito do vínculo formal ou estruturado, mas que
atenda às necessidades e garantias do, também, vínculo infor-
mal.
A ausência de concretude, contudo, é fator de apon-
tamento na pesquisa da Ministra Delaíde Alves de Miranda.
Para ela, a dificuldade estaria relacionada à crescente precariza-
ção das relações entre empregado e empregador e na definição
de objetivo-ação.5
O próximo tópico descreverá sobre como a Agenda
2030 pretende corporificar as estratégias e objetivos da OIT na
relação tripartite entre Governo, organização sindical e organi-
zação trabalhista dos estados-membros composta por trabalha-
dor e empregador.

2. A Agenda 2030 e as convenções internacionais


ratificadas na América Latina

As convenções internacionais e recomendações que


compõem a Declaração Relativa aos Princípios e Direitos Fun-
damentais do Trabalho, editada em 1998, se resume a:

Convenção 87 sobre Liberdade Sindical e Proteção


ao Direito de Sindicalização; Convenção 98 sobre
Direito de Sindicalização e Negociação Coletiva;
Convenção 105 sobre Abolição do Trabalho For-
çado; Convenção 111 sobre Discriminação em Ma-
téria de Emprego e Ocupação; Convenção 151 so-

5 MIRANDA, Delaíde Alves. Trabalho Decente: uma análise na perspectiva dos di-
reitos humanos a partir do padrão decisório do TST Dissertação de Mestrado.
Universidade de Brasília (UNB). Brasília: 2022, p. 56.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
304 | latino-americana de Brasil e Argentina

bre Direito de Sindicalização e Relações de Traba-


lho na Administração Pública; Convenção 154 so-
bre Fomento à Negociação Coletiva; Convenção
182 sobre a Proibição das Piores Formas de Traba-
lho Infantil e Ação Imediata para sua Eliminação.6

As convenções são importantes porque auxiliaram,


em documento oficial, a definição do que seria trabalho decente
criado pela OIT.
Assim, tais documentos sinalizam para a liberdade
de associação e reconhecimento efetivo do direito à negociação
coletiva, da eliminação de todas as formas de trabalho forçado,
da abolição efetiva de trabalho infantil e da eliminação de dis-
criminações no emprego e na ocupação.
A Agenda 2030, por sua vez, é o ponto de materiali-
zação do trabalho decente, consolidando os objetivos traçados
entre a OIT e os países, na busca da ratificação universal das
oito convenções, de modo que todos os Estados-membros este-
jam comprometidos com a estratégia-ação da OIT, governo e
empregador/empregado.7
Ou seja, o Estado se desloca de forma conjunta com
o progresso econômico e social de cada população, sendo a con-
venção instrumento de fixação de padrões mínimos, não pos-
suindo teto ou limite.8
A autora informa que no caso do Brasil, o Estado da
Bahia foi promissor na promoção do trabalho digno, sendo con-
siderado como fatores importantes a vontade política do go

6 Ibidem, p.56.
7 Ibidem. p. 15.
8 Ibidem. p. 157.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 305
verno, a formação de um grupo técnico, o diálogo social e a pre-
ocupação permanente com a institucionalização do processo de
sustentabilidade.9
Na Argentina, o caso de maior relevância foi da Vila
de Santa Fé, tendo, inclusive, participação do governo baiano
na construção da Agenda de 2030 com a Comisión Provincial
Tripartida para el Trabajo Decente para Provincia de Santa Fé.10
Por meio da Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda
e Esporte (Setre), a coordenação da Agenda subnacional parti-
cipou de encontros em Santa Fé para fortalecimento e instituci-
onalização do trabalho decente, tendo como resultado políticas
públicas para formalização do emprego na Argentina e planeja-
mento de fóruns para discussão do tema.
Em termos mais precisos, a Agenda 2030 compre-
ende desde o compromisso firmado entre a autoridade compe-
tente do estado e a secretária do órgão com a proposta de coor-
denação e formulação da agenda, a criação do Grupo Técnico
por Decreto, competente para elaborar e organizar a sua cons-
trução, bem como a comissão gestora composta pela relação tri-
partite entre Estado, Empregador e empregador e, por fim, a

9 A eleição de Jaques Wagner como governador do estado da Bahia abriu espaço


para uma experiência até então inédita, e que rapidamente se transformou em
referência nacional e internacional: o fortalecimento e enraizamento do compro-
misso com o Trabalho Decente, mediante a construção de agendas subnacionais.
Com efeito, o governador, que havia sido anteriormente Ministro do Trabalho e
Emprego e Ministro da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da
República e, nessa qualidade, coordenador do CDES entre os anos de 2003 e 2006,
já na sua mensagem inaugural à Assembleia Legislativa do Estado assumiu o
compromisso com a Agenda do Trabalho Decente, considerada um elemento cen-
tral para que o estado da Bahia pudesse “[...] construir uma trajetória nova, de
desenvolvimento com inclusão social” (BAHIA, 2008, p.161).
10 FERREIRA, Lício. Setre participa na Argentina de jornada de Trabalho Decente.
Governo do Estado Bahia, 2015.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
306 | latino-americana de Brasil e Argentina

instauração de Câmaras Temáticas para dialogar socialmente e


implementar medidas de incentivo, como redução fiscal para
promoção do trabalho decente e debate do trabalho digno no
Plano Plurianual do Governo (PPA).

3. Os quatro objetivos estratégicos diante da realidade


de Brasil e Argentina

A pobreza e a relação com o trabalho formal é o pri-


meiro objetivo da OIT para implementação do trabalho decente
nos países-membros.
Na América Latina, por exemplo, a pobreza é con-
centrada em mais da metade da população, o que foi conside-
rado como fator crucial para o desenvolvimento do trabalho
digno nessa região. A relação da pobreza e do emprego formal
nos países latinos encontra no documento oficial da XX Reunião
as seguintes soluções:

1) que o crescimento econômico seja promotor do


emprego para todos; 2) que os direitos do trabalho
sejam cumpridos e efetivamente aplicados; 3) que
a democracia seja fortalecida; 4) que sejam adota-
dos novos mecanismos de proteção adequados à
realidade atual; 5) que, por essa via, a exclusão so-
cial seja combatida.11

Portanto, a pobreza é o fator comum entre as estatís-


ticas de alta informalidade e de não desenvolvimento do traba-
lho decente, figurando o trabalho doméstico como uma questão
não apenas do Brasil e na Argentina, mas atingindo o continente

11 Ibidem, p. 8.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 307
sul-americano, já que se trata de região eminentemente subde-
senvolvida.
A pobreza também repercute no baixo orçamento
dos sindicatos, tendo em vista que nem todas as trabalhadoras
possuem condições de contribuir para seu sindicato representa-
tivo. No caso dos dois países objeto de comparação desta pes-
quisa, a situação agrava-se em ambos lados.
No Brasil, a Reforma Trabalhista12 e a consequente
modificação do financiamento da contribuição compulsória re-
duziu exponencialmente o orçamento dos sindicatos, levando à
falência o sistema de representação que já necessitava de ajus-
tes.
No caso da Argentina, em correspondência com a
pluralidade sindical, contribui-se conforme a representação do
sindicato, sendo o fator pobreza também condicionante no país
vizinho.
A OIT também enumera outros desafios do movi-
mento sindical doméstico a nível global, como a dispersão das
trabalhadoras nas residências, não tendo contato com outras
domésticas sindicalizadas durante a jornada de trabalho.13

12 art. 8º, da CRFB/88. É livre a associação profissional ou sindical, observado o se-


guinte: [...] IV - a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de
categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confe-
derativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribui-
ção prevista em lei; [...].
Art. 579, CLT.O desconto da contribuição sindical está condicionado à autoriza-
ção prévia e expressa dos que participarem de uma determinada categoria eco-
nômica ou profissional, ou de uma profissão liberal, em favor do sindicato repre-
sentativo da mesma categoria ou profissão ou, inexistindo este, na conformidade
do disposto no art. 591 desta Consolidação.
13 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Relatório Global.
OIT, 2019, p.5.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
308 | latino-americana de Brasil e Argentina

O panorama se agrava quando a OIT relata que as


dirigentes não são remuneradas para exercer a função, afetando
no fator comum demonstrado aqui reiteradas vezes, qual seja, a
pobreza. A não remuneração para atividade sindical proporci-
ona a diminuição do tempo disponível para as atividades do
sindicato, reduzindo no interesse de participação e inclusão na
entidade sindical.
O encontro de forças de Brasil e Argentina ocorreu
em razão da ausência de recursos e da pobreza advinda do tra-
balho doméstico, posto que, com a pouca representação de am-
bos os países, os sindicatos nacionais se reuniram e formaram
uma organização internacional de sindicatos desta categoria, a
Federação Internacional de Trabalhadoras Domésticas (FIFTH),
formada por Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Mé-
xico, Paraguai, Peru, Venezuela, República Dominicana e Uru-
guai.14
Portanto, considerar a oferta de emprego como me-
canismo de concretização do trabalho decente é correlacionar
diretamente com o crescimento econômico do país e por um pe-
ríodo de tempo, não havendo mudança de contexto em curto
prazo; do contrário, a falta de emprego formal reflete no índice
da pobreza, da sub-representação e na dificuldade de negociar

14 No que diz respeito ao movimento sindical doméstico, atualmente, conforme os


dados da Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), em
2018, 26 sindicatos de trabalhadoras domésticas eram cadastrados e filiados à FE-
NATRAD, porém somente cinco dessas entidades possuíam Registro Sindical,
também conhecido de carta sindical, o qual representa a legalidade quanto à
constituição no registro. Assim, grande parte dos sindicatos das trabalhadoras
domésticas não podem representa-las nas negociações coletivas com os emprega-
dores. A própria FENATRAD, originada em 1997, só conseguiu o registro em 2017,
numa assembleia realizada em Brasília. Antes disso, seu trabalho se resumia à
organização em associação.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 309
coletivamente em virtude da ausência de sindicato representa-
tivo.

3.1. Os princípios fundamentais do trabalho

O segundo objetivo estratégico do trabalho decente


busca garantir os direitos da categoria nas relações laborais. Bel-
tramelli Neto e Julia De Carvalho Voltani recordam que esse é
o primeiro ponto estratégico e foi dividido em três ações:

O primeiro objetivo estratégico, intitulado “Os di-


reitos humanos e o trabalho”, foi dividido em três
prioridades: promover a Declaração da OIT sobre
Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho
de 1987, intensificar a luta contra o trabalho infan-
til e renovar as atividades relativas às normas da
OIT, todas com o desígnio de preservar os princí-
pios e direitos do trabalho.15

A América Latina, porém, encontra problema no que


diz respeito à aplicação de tais princípios e da norma trabalhista
em geral, tanto na individualização de direitos quanto no de-
senvolvimento de direitos coletivos.
Os dados do Relatório da América Latina expõem
que 69% ratificaram todas as oito convenções fundamentais,
comparando-se, a nível global, em índices altos de aderência e
ratificação. Entretanto, o fato de ter havido ratificação em
grande parte dos países latinos não impacta na diminuição de
denúncias ou queixas apresentadas ao Comitê de Liberdade
Sindical (CLS).16

15 Ibidem, p. 180.
16 Não obstante, o nível de ratificação de cada uma das convenções fundamentais é
Trabalho doméstico : uma perspectiva do trabalho decente na relação
310 | latino-americana de Brasil e Argentina

Diferente do Brasil, a Argentina ratificou todas as

convenções pertinentes para materialização do trabalho de-

cente. Em seu artigo 14bis, a Constitución de la Nación Argen-


tina estabelece o rol de direitos fundamentais dos trabalhado-

res. É o que pode ser visualizado abaixo:

Artículo 14 bis.- El trabajo en sus diversas formas


gozará de la protección de las leyes, las que asegu-
rarán al trabajador: condiciones dignas y equitati-
vas de labor, jornada limitada; descanso y vacacio-
nes pagados; retribución justa; salario mínimo vi-
tal móvil; igual remuneración por igual tarea; par-
ticipación en las ganancias de las empresas, con
control de la producción y colaboración en la di-
rección; protección contra el despido arbitrario; es-
tabilidad del empleado público; organización sin-
dical libre y democrática, reconocida por la simple
inscripción en un registro especial (Argentina,
1994) .17

muito elevado em relação ao contexto mundial . 43. Apesar da alta taxa de ratifi-
cação de convenções, há evidência de violações frequentes (sic) aos direitos fun-
damentais no trabalho, mesmo nos países que as ratificaram. Em matéria de li-
berdade sindical, as queixas procedentes da região apresentadas ao Comitê de
Liberdade Sindical (CLS) passaram de 164, na primeira metade dos anos 1990,
para 194 na primeira metade da presente década . Além disso, dados oficiais dos
governos mostram a deterioração da negociação coletiva, como demonstra o fato
de que a sua cobertura tenha diminuído notavelmente nos últimos 15 anos.
17 Tradução nossa : Artigo 14 bis.- O trabalho em suas diversas formas gozará da
proteção das leis, que assegurarão ao trabalhador: condições dignas e equitativas
de trabalho, dia limitado; descanso e férias remuneradas; remuneração justa; sa-
lário mínimo móvel; Pagamento igual para trabalho igual; participação em lucros
da empresa, com controle de produção e colaboração em a direção; proteção con-
tra demissão arbitrária; estabilidade do empregado público; organização sindical
livre e democrática, reconhecida pelo simples inscrição em cartório especial. ”
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 311
A Constituição argentina, então, exibe o rol de direi-
tos fundamentais trabalhistas com traços-reflexos do trabalho
decente, como as condições dignas e equitativas de trabalho, a
remuneração justa, descanso e férias remuneradas e o paga-
mento de salário de igual para igual.
Um ponto de notável interesse nas relações de traba-
lho argentinas é depreendido do artigo 24, primeira parte, e do
artigo 75, inciso 22 e 24, que promovem a integração supranaci-
onal, originando o princípio de direito público argentino e o di-
reito comunitário supranacional.18

18 Artículo 24.- El Congreso promoverá la reforma de la actual legislación en todos


sus ramos [... ] Art. 75, inciso 22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las
demás naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos con la
Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leyes. La
Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre (1); la Declaración
Universal de Derechos Humanos (2); la Convención Americana sobre Derechos
Humanos (3); el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Cultu-
rales (4); el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Fa-
cultativo (5); la Convención sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Geno-
cidio (6); la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas
de Discriminación Racial (7); la Convención sobre la Eliminación de todas las For-
mas de Discriminación contra la Mujer (8); la Convención contra la Tortura y otros
Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes (9); la Convención sobre los
Derechos del Niño (10); en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía cons-
titucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y
deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconoci-
dos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo Nacional,
previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de
cada Cámara. Los demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego
de ser aprobados por el Congreso, requerirán del voto de las dos terceras partes
de la totalidad de los miembros de cada Cámara para gozar de la jerarquía cons-
titucional.
Inciso 24. Aprobar tratados de integración que deleguen competencias y jurisdic-
ción a organizaciones supraestatales en condiciones de reciprocidad e igualdad,
y que respeten el orden democrático y los derechos humanos. Las normas dicta-
das en su consecuencia tienen jerarquía superior a las leyes. La aprobación de
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
312 | latino-americana de Brasil e Argentina

3.2. Do diálogo e da proteção social

Os últimos objetivos estratégicos estipulados pela


OIT sobre trabalho digno possuem relação com a democracia
social, quando se compreende que o diálogo é o canal de parti-
cipação das organizações representativas dos setores sociais, e
do arcabouço jurídico e garantista acerca da proteção dos traba-
lhadores, em especial da categoria dos domésticos, objeto cen-
tral desta pesquisa.
O trabalho doméstico tem histórico de atraso na re-
gulamentação legislativa concernente aos direitos da classe e no
próprio reconhecimento dela enquanto categoria. Essa não é
uma realidade exclusiva do Estado brasileiro, a Argentina tam-
bém possui um histórico de desproteção, tendo regulamentado
recentemente o rol de direitos sociais trabalhistas mais amplos,
como a licença maternidade para a empregada doméstica.
No documento tido como marco central do trabalho
decente na América Latina, a OIT se refere ao diálogo social
como um problema do exercício da cidadania, empreendendo
do Estado uma redefinição do seu papel e tendo como instru-
mento a negociação coletiva como forma de colocar em prática
a 87ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho de
1999.19

estos tratados con Estados de Latinoamérica requerirá la mayoría absoluta de la


totalidad de los miembros de cada Cámara. En el caso de tratados con otros Esta-
dos, el Congreso de la Nación, con la mayoría absoluta de los miembros presentes
de cada Cámara, declarará la conveniencia de la aprobación del tratado y sólo
podrá ser aprobado con el voto de la mayoría absoluta de la totalidad de los
miembros de cada Cámara, después de ciento veinte días del acto declarativo. La
denuncia de los tratados referidos a este inciso, exigirá la previa aprobación de la
mayoría absoluta de la totalidad da los miembros de cada Cámara.
19 Conferencia Internacional del Trabajo. Trabajo Decente: Memoria del Director
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 313
Assim, indicar o diálogo social como processo que
deve atingir os níveis nacionais, locais e o ambiente de trabalho,
é corroborar o que Felipe Prata Mendes20 denomina de binômio
democracia e representação, sendo demonstrada por diversos
aspectos, como nas relações sindicais, visto que a sociedade civil
é formada a partir da pluralidade de atores sociais, só podendo
ser representativa a democracia se ela corresponder à plurali-
dade ou ao conjunto de possibilidades de representação capa-
zes de viabilizarem a satisfação dos interesses de determinada
classe.
A democracia para ser representativa é preciso que,
além de eleições livres, os interesses sociais sejam representá-
veis. Logo, seria necessário que a sociedade possuísse ferramen-
tas autônomas de organização, a exemplo dos sindicatos. 21

Geral: 87ª reunión. Ginebra: OIT, 1999, p. 45. Por outro lado no primeiro Relatório
Global de seguimento à “Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais no
Trabalho”, apresentado à 88ª Conferência Internacional do Trabalho – “Su voz en
el trabajo” (Genebra, OIT, 2000) –, assinala a necessidade de promover a negocia-
ção coletiva e de incorporar a ela, em posição ativa, as mulheres sindicalistas, as-
sim como as demandas de gênero nas estratégias de negociação dos sindicatos:
“Com vistas a estabelecer a igualdade entre os sexos e dar um maior vigor aos
sindicatos, é indispensável que as mulheres possam exercer seu direito de filiação
a um sindicato e que seus interesses estejam representados em um plano de igual-
dade com os dos homens. Não somente deveriam estar presentes na mesa de ne-
gociação, como também será imprescindível precisar mais claramente seus inte-
resses próprios durante a negociação coletiva, para ter a segurança de que em
todo o convênio coletivo sejam consideradas as prioridades e aspirações de umas
e outros” (pag. 14, parágrafo 33).
20 MENDES, Felipe Prata. Os sindicatos no brasil e o modelo de democracia ampli-
ada. Dissertação- Área de Ciências Sociais Aplicadas, Centro Universitário do Es-
tado do Pará. Belém, p. 129. 2017.
21 CADEMARTORI, Daniela Mesquita Leutchuk de. O diálogo democrático. Curi-
tiba: Juruá, 2011, p. 15.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
314 | latino-americana de Brasil e Argentina

A Argentina comporta modelo diverso do brasileiro.


O diálogo social se apresenta em diferentes vertentes, seja a ní-
vel nacional e centralizada, envolvendo todo o ramo de ativi-
dade profissional, seja em nível provincial, municipal ou, inclu-
sive, em nível de empresa.
Bruna Stephanie e Santiago Duhalde analisam que a
estrutura complexa de vários níveis e de forma centralizada do
sindicalismo argentino favorece o diálogo social em todos os se-
tores envolvidos, havendo conciliação de interesses e dele-
gando ao Estado a fiscalização da legalidade de modo que im-
peça a aprovação de convênios ou acordos que confrontem a
legislação e o interesse geral da classe.22
O sistema corporativo da Argentina, apesar de con-
ter texto base da Constituição de 1853, possui reforma provinda
do ano de 1957, o qual se incluiu na Constituição o artigo 14-bis,
maximizando o rol de direitos trabalhistas e de proteção aos tra-
balhadores.
As associações sindicais possuem legislação especí-
fica com a Lei nº 23.551/1988, que dispõe em seu artigo 5º, a pre-
missa de negociar coletivamente. Assim, a Comissão Nacional
Tripartite (NEG) compõe mesa paritária para negociar com a
presença de representantes do Estado, empregadores e empre-
gados.
Gabriela Marques Silva defende que a Argentina
possui uma pluralidade mitigada ou diferida, o que se corro-
bora com tal pensamento diante da natureza desta pesquisa,

22 Bruna Stephanie Miranda dos Santos, Santiago Duhalde. Movimento sindical ar-
gentino: Revitalização e protagonismo de Kirchner a Macri. Século XXI, Revista
de Ciências Sociais, v.10, no 2, p.65-85, jul./dez. 2020.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 315
uma vez que a existência de sindicatos com maior representati-
vidade há de obter condição de concentrar sindicalmente as for-
ças para negociar defronte a categoria e tendo legitimidade do
Estado.23
Ressalta-se que o Sistema de Unidade Sindical Pro-
mocionada (personería gremial) não é sinônimo de adoção do
modelo de unicidade, como ocorre no Brasil com a CRFB/8824; o
que advém dessa estrutura é a compreensão para que se evite a
fragmentação da força sindical, promovendo e garantindo a
consolidação de entidades que tenham relevância frente à cate-
goria de empregadores e sua representação.
Desse modo, não há qualquer restrição sobre a cria-
ção de sindicatos nas bases territoriais, havendo a possibilidade,
por exemplo, de existir múltiplos sindicatos na mesma base ter-
ritorial e com a mesma categoria de trabalhadores. O que irá di-
vergir e classificar o modelo argentino como plural e mitigado
é a legitimação dada pelo Estado aos sindicatos mais represen-
tativos para negociar, havendo discriminação entre as associa-
ções.

23 SILVA, Gabriela Marques. Liberdade Sindical: estudo comparativo entre o trata-


mento jurídico aplicado no Brasil e na Argentina. Monografia. Universidade Fe-
deral de Ouro Preto, Minas Gerais, 2019, p 50.
24 Art. 8: I - é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer
grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base ter-
ritorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não
podendo ser inferior à área de um Município; III - ao sindicato cabe a defesa dos
direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões
judiciais ou administrativas; IV - a assembléia geral fixará a contribuição que, em
se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do
sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente
da contribuição prevista em lei.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
316 | latino-americana de Brasil e Argentina

Já no Brasil, a luta pela proteção social do trabalho


doméstico obteve resultados maiores com a Emenda Constitu-
cional (EC) nº 72/2013 25 e da Lei Complementar (LC)
nº150/201526, que permitiram a inclusão da categoria no rol de
trabalhadores do artigo 7º da Constituição de 1988 e no radar de
proteção social brasileira.27
Sendo definido pelo artigo 1º, da LC nº 150/2015, o
emprego doméstico seria aquele:

Art. 1o Ao empregado doméstico, assim conside-


rado aquele que presta serviços de forma contínua,
subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não
lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residen-
cial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana,
aplica-se o disposto nesta Lei. Parágrafo único. É
vedada a contratação de menor de 18 (dezoito)
anos para desempenho de trabalho doméstico, de

25 Emenda Constitucional nº 72/2013. Altera a redação do parágrafo único do art. 7º


da Constituição Federal para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre
os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais.
26 Lei Complementar nº 150/2015. Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico;
altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991, e
no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009,
de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no
5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26
de dezembro 1995; e dá outras providências.
27 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem
à melhoria de sua condição social: [...] Parágrafo único. São assegurados à catego-
ria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VII, VIII,
X, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXI, XXII, XXIV, XXVI, XXX, XXXI e XXXIII e,
atendidas as condições estabelecidas em lei e observada a simplificação do cum-
primento das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes da rela-
ção de trabalho e suas peculiaridades, os previstos nos incisos I, II, III, IX, XII,
XXV e XXVIII, bem como a sua integração à previdência social.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 317
acordo com a Convenção no 182, de 1999, da Orga-
nização Internacional do Trabalho (OIT).

Em seguida, a Lei Complementar rege carga horária


de 44 horas semanais, não excedendo 8 horas diárias, consolida
o Fundo de Garantia de Trabalho e Seguridade Social (FGTS), a
licença maternidade de 120 dias, entre outros direitos elencados
no artigo 7º, da CRFB/88 e abrangidos pelas domésticas a partir
da EC nº 72/2013.
Tratando-se do perfil desta categoria, conforme o
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), são cerca de
6,2 milhões de trabalhadores domésticos em escala mundial,
sendo 92% mulheres no Brasil, e 80% no mundo. A especialista
em trabalhadores vulneráveis da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), Clear Holden, considera o trabalho doméstico
a principal fonte de renda das mulheres, sendo 66% negras, re-
cebendo 86% delas menos que mulheres brancas na mesma fun-
ção. 28
Quanto à origem do trabalho doméstico, Angela Da-
vis especifica a relação do trabalho doméstico com o gênero fe-
minino somada à historicidade do povo negro. Para ela, a típica
escrava singularizava uma figura presente na Casa Grande e
que desempenhava funções de cozinheira, arrumadeira e
mammy. 29
Alguns fatores para a desvalorização do trabalho do-
méstico são históricos, entre eles, a blindagem dos domicílios e
a invisibilidade dos responsáveis pelos afazeres domésticos,

28 IPEA, INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Nota Técnica:


Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de
Covid19 no Brasil. Brasília: Ipea, 2010.
29 DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 11ª ed. São Paulo: Boitempo, 2020, p.18.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
318 | latino-americana de Brasil e Argentina

além do sistema patriarcal tão comum em países sul-america-


nos.
Toda essa conjuntura brasileira encontra no modelo
argentino o também atraso legislativo e a não regulamentação
do trabalho doméstico durante décadas. A categoria foi um dos
últimos grupos ocupacionais a serem incorporados no sistema
de proteção social e no rol de direitos trabalhistas em 1940,
tendo como garantia neste ato apenas alguns direitos sociais e a
previdência.
Somente em 1956, com o Governo Ditatorial, as tra-
balhadoras domésticas tiveram maior proteção social reconhe-
cida, dando direito a férias, à compensação de jornada e englo-
bando como jornada de trabalho o equivalente a 4 dias e 4 horas
semanais, deixando de lado as demais trabalhadoras que não
computavam na jornada tais números.
Na edição da Ley de Contrato de Trabajo em 1974, as
trabalhadoras domésticas, assim como na CLT em 1937, foram
excluídas do rol de proteção trabalhista. A exclusão alcançou
também a Lei Nacional de Trabalho, de nº 24.013/1991, que tra-
tava da aplicação, regularização do emprego registrado; da pro-
moção e defesa do emprego; da proteção de trabalhadores de-
sempregados e da indenização por despedida injustificada.30
Somente com a Lei nº 26.844/2013 que foi possível
maior cobertura de direitos e garantias ao emprego doméstico,
trazendo em seu artigo 1º a definição de trabalho doméstico
como o que se estabelece com empregados em âmbito domici-

30 PEREYRA, Francisca. Trabajadoras domésticas y protección social en Argentina:


avances y desafíos pendientes: documento de trabajo nº 15. Buenos Aires: Orga-
nização Internacional do Trabalho, 2017. 128 p. (Serie Documentos de Trabajo).
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 319

liar particular ou no seio familiar, não devendo haver nesta re-

lação lucro ou benefício econômico, não necessitando da fixação

de dias e da jornada de trabalho para configurar serviço domés-


tico . 31

A Lei também aborda a modalidade de entrega do

serviço, considerando três espécies de prestação da atividade


que integram o meio laboral do trabalhador doméstico inserido

em domicílio particular.32
definição do emprego
Em seu artigo 2º, há a segunda definição
doméstico esboçado expressamente :

ARTICULO 2º— Aplicabilidad . Se considerará


trabajo en casas particulares a toda prestación de
servicios o ejecución de tareas de limpieza, de
mantenimiento u otras actividades típicas del ho-
gar. Se entenderá como tales también a la asisten-
cia personal y acompañamiento prestados a los
miembros de la familia o a quienes convivan en el
mismo domicilio con el empleador, así como el
cuidado no terapéutico de personas enfermas o
con discapacidad (ARGENTINA, 1956)33

31 Tradução nossa: Artigo 1º. Âmbito de aplicação. A presente lei regerá em todo o
território da Nação as relações de trabalho que se estabeleçam com os emprega-
dos pelo trabalho que prestem em domicílios particulares ou no âmbito da vida
familiar e que não importe ao empregador lucro ou benefício econômico direto,
qualquer seja o número de horas diárias ou dias semanais em que são ocupados
para tais tarefas.
32 Estão estabelecidas as seguintes modalidades de entrega: 1 -Trabalhadores que
prestem tarefas sem aposentadoria para o mesmo empregador e residam no en-
dereço onde as executam; 2 -Trabalhadores que exercem funções com aposenta-
doria para o mesmo e único empregador; 3-Trabalhadores que prestam tarefas
com aposentadoria para diferentes empregadores.
33 Tradução nossa : ARTIGO 2— Aplicabilidade. Considera-se trabalho em domicí-
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
320 | latino-americana de Brasil e Argentina

Percebe-se, portanto, que a regulamentação de Brasil


e Argentina, além de possuir atraso legislativo, perseguiu o ca-
ráter não lucrativo e não econômico do serviço doméstico, se
assemelhando ao artigo 1º da LC 150/2015, quando cita a finali-
dade não lucrativa à pessoa ou à família e por mais de dois dias
na semana.
Entretanto, no modelo argentino, não há uma jor-
nada regulamentada para figurar trabalho doméstico, sendo
aquele trabalho que utiliza qualquer hora para designar ativi-
dade no domicílio do empregador.
Outro ponto semelhante e essencial para esta pes-
quisa, é o cuidado com idosos e pessoas com deficiência, tido
como assistência e acompanhamento pessoal no lar do empre-
gador. No Brasil, o cuidador de idosos também se encaixa na
categoria doméstica e é regulado pela mesma lei, a LC 150/2015.
No que diz respeito ao contexto social, em recente re-
latório, a representação da OIT na Argentina formulou dados
sobre o trabalho doméstico e sua evolução legislativa no país.
Para eles, há uma complexidade afetiva nas relações laborais
desta categoria, o que dificulta a validação do emprego formal,
já que a tratativa seria paternalista e como alguém da família ou
com uma relação nutrida pela idealização materna. 34
Outro fator considerado pela OIT na Argentina é a
percepção de que o trabalho doméstico reside na interseção de
desigualdades sociais, principalmente por se tratar de postos de

lio particular qualquer prestação de serviços ou execução de limpeza, manuten-


ção ou outras atividades domésticas típicas. Também serão entendidos como tal
a assistência e o acompanhamento pessoal prestados a familiares ou pessoas que
coabitem com o empregador, bem como os cuidados não terapêuticos a pessoas
doentes ou deficientes.
34 Ibidem, p.10.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 321
trabalho compostos majoritariamente por mulheres e de classe
social baixa, além de outras subordinações levantas em reunião,
como a raça, etnia e nacionalidade.35
A migração de mulheres de regiões próximas e a alta
demanda de mão-de-obra barata é um dado estatístico diver-
gente do Brasil, já que a maioria das domésticas brasileiras são
natas e residentes no Estado Brasileiro.
A Argentina, todavia, vem caminhando progressiva-
mente para reconhecimento e formalização do trabalho domés-
tico no país, propondo campanhas e incentivo fiscal para em-
pregadores, bem como legislando para maior proteção social
das domésticas, a exemplo do recente reconhecimento do cui-
dado materno como trabalho digno de aposentadoria, afetando
cerca de 155 mil mulheres que terão como tempo de trabalho
aquele dedicado aos filhos, podendo variar de um a três anos o
tempo de serviço por filho que tenha nascido com vida e um
ano por filho com deficiência.
Apesar da grande progressão, os dados ainda são
alarmantes, já que a formalidade da categoria passou de 5%
para 25%, em 2017, conforme dados do Inquérito Permanente
aos Agregados Familiares (EPH).36
Juan Cruz Llambías recorda que a taxa de informali-
dade com cerca de 72% é a maior taxa da Argentina de todo o
mercado de trabalho. Entretanto, a regra do salário mínimo fun-
ciona como referência para os contratos formais e informais,
sendo ocupados absolutamente pelo gênero feminino e caracte

35 Ibidem, p.18.
36 Ibidem, p.16.
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
322 | latino-americana de Brasil e Argentina

rizado pela presença de imigrantes bem acima da média econô-


mica do país, tendo com Buenos Aires 37% de mulheres imi-
grantes no serviço doméstico.37
Em termos definidos e conforme a 17ª Conferência
Internacional de Estatísticos do Trabalho, a informalidade para
OIT resumiria ser um trabalho não regulamentado pela legisla-
ção nacional; em que não há cobertura pela segurança social;
que não esteja sujeito a contribuições fiscais ou não tem benefí-
cios trabalhistas como aviso prévio, licença maternidade e inde-
nização.
A própria OIT revela que, assim como a Argentina, a
América Latina possui trabalhadores que são sujeitos de rela-
ções laborais que até detêm legislação, porém a ausência de co-
bertura social, a contribuição fiscal e negação de benefícios tra-
balhistas dominam a realidade da categoria do serviço domés-
tico.38
Dessa maneira, considerar proteção social entre os
dois países é observar o reflexo de um trabalho circundado na
informalidade, com baixos salários, com baixa filiação, mas com
políticas públicas divergentes, já que a Argentina caminha pro-
gressivamente para o reconhecimento do trabalho decente do-
méstico. Além disso, o recorte de raça é mais evidente no Brasil,
possuindo como estatística de 69% de mulheres negras domés-
ticas, enquanto na Argentina a taxa de imigração é responsável
pela maior demanda do serviço doméstico, com mão de obra
oriunda das regiões vizinhas do país.

37 LLAMBÍAS, Juan Cruz. Caracterización del empleo doméstico en la Argentina.


ENSAYOS DE POLÍTICA ECONÓMICA – AÑO 2021 ISSN 2313-979X - Año XV
Vol. III Nro. 3, p.108.
38 Ibidem, p. 20.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 323
Considerações finais

O trabalho doméstico reflete que a materialização de


normas garantistas não são suficientes para promover a digni-
dade da pessoa humana entre o empregado e o empregador, es-
pecialmente com categorias que historicamente foram relega-
das e excluídas de pautas políticas estatais.
A partir desta pesquisa, é possível inferir que o labor
doméstico ainda está entrelaçado ao trabalho de servidão e ao
atraso normativo para forma de garantir direitos trabalhistas
mínimos.
Além disso, no Brasil, é possível visualizar o labor
doméstico com raízes no período escravocrata, principalmente
em países colonizados e em subdesenvolvimento.
A problemática centra na inexistência de condições
dignas para a trabalhadora doméstica em geral, agravando-se
as condições de trabalho quando são mulheres periféricas e ne-
gras.
Denota-se, ao mesmo tempo, um trabalho ligado ao
afeto entre empregada doméstica e empregador, com identifi-
cações de quase da família, mas que é mal remunerado e infor-
mal.
As raízes sociais que refletem na precarização do tra-
balho doméstico são diversas, portanto. A tardia regulamenta-
ção é o maior exemplo de que se trata, também, de questão po-
lítica e de agenda de estado, e, principalmente, de toda a estru-
tural social demarcada pelo racismo, patriarcado e colonia-
lismo, especialmente em países sul-americanos, como no caso
do objeto desta pesquisa.
Inserir a América Latina para o contexto de trabalho
doméstico é demonstrar que há uma comunhão de desafios e
Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
324 | latino-americana de Brasil e Argentina

dificuldades que as trabalhadoras sul-americanas possuem no


mercado de trabalho subdesenvolvido, considerando, contudo,
as peculiaridades de cada país como raça, gênero, escolaridade
e diferenças formas de normatizar a profissão.
Desenvolver os objetivos estratégicos do trabalho de-
cente nessa categoria e, no âmbito de Brasil e Argentina, é o ca-
minho para alcançar a eficácia da norma e a efetividade, garan-
tindo à classe doméstica um planejamento político e centrali-
zado na busca de trabalhos formais, na democracia social e na
proteção e assistência social.
Os obstáculos, no entanto, centram na dificuldade da
OIT e dos países membros em singularizar, para sua realidade,
as estratégias do trabalho decente. Além disso, a exatidão do
que seria trabalho decente também é um dos problemas enfren-
tados pelos países.
Portanto, a pesquisa aqui elaborada buscou relacio-
nar os dois países que tiveram experiências eficazes com a
Agenda do trabalho decente e com seus os objetivos estratégi-
cos, sendo evidente a necessidade da vontade política para que
ocorra a promoção da dignidade da pessoa humana no plano
concreto, bem como os aspectos culturais e sociais que precisam
ser enfrentados no cotidiano e na realidade de cada país para
que o trabalho doméstico tenha condições mais dignas.
A comparação das duas realidades mostrou que am-
bos os países possuem suas singularidades quando se trata de
labor doméstico, tendo o Brasil o fator raça como algo a ser en-
carado politicamente, à medida que na Argentina o trabalho do-
méstico envolve a mão de obra imigrante, também mal remu-
nerada, mas que evoluiu com o enquadramento de cuidado ma-
terno como labor doméstico.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 325
Referências

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2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de
1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no 5.859,
de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250,
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Trabalho doméstico: uma perspectiva do trabalho decente na relação
326 | latino-americana de Brasil e Argentina

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rais, 2019.
Lanna Maria Peixoto de Sousa | 331
DOMESTIC WORK: A PERSPECTIVE OF DECENT
WORK IN THE LATIN AMERICAN RELATIONSHIP
OF BRAZIL AND ARGENTINA
Abstract: Decent work emerged in the 90s with the aim of defending
the promotion of employment in the face of precariousness and grow-
ing informality in the market. The International Labor Organization
(ILO) sought to disseminate the strategic objectives and goals set to
create jobs linked to the principle of human dignity. With the Recom-
mendations and Conventions on the subject, countries would move
towards progressive formalization, gender equity in the work envi-
ronment, structured work together with the promotion of fundamen-
tal rights at work, social protection and social dialogue. In Latin
America, especially in the Brazilian and Argentinean economy, the
implementation of decent work would reduce the abyss of social ine-
quality and poverty, mainly in jobs historically relegated to non-reg-
ulation and legal protection. To observe this, the methodology used
was exploratory, since the general perspective of decent work was ex-
plored in the face of the unique reality of domestic work in Brazil and
Argentina. The objective of the research is to compare the Latin Amer-
ican relationship between the two countries with regard to decent do-
mestic work. The central issue was based on dissociating and con-
verging elements between the two countries, so that from the hypoth-
eses it was possible to visualize Argentina's greater progress in the
recognition and protection of domestic work and the presence of ele-
ments, even if scarcely, of decent work in both nations. Furthermore,
the difficulty and delay of both countries in regulating domestic work
with labor and constitutional guarantees is shared. Finally, the meth-
odology proved to be satisfactory, allowing to achieve the objectives
of this research.
Keywords: Decent Work. Housework. Latin American relationship.
CAPÍTULO XI.
VULNERABILIDADES DO MERCADO DE
CRÉDITO DE CARBONO NO BRASIL: A
NECESSÁRIA SUPERAÇÃO DO VAZIO
NORMATIVO EM MATÉRIA PENAL
AMBIENTAL

Monalisa Rocha Alencar*

DOI: 10.29327/5341937.1-11

RESUMO: Analisa-se a configuração penal ambiental do mercado de


crédito de carbono no Brasil, a fim de serem identificadas as suas vul-
nerabilidades, em uma abordagem crítica, viabilizada mediante pes-
quisas bibliográficas, documentais, legislativas e eletrônicas. Tem-se
como questão central o exame dos riscos em que se insere o mercado
nacional voluntário, visando à proposição de alternativas para preve-
nir e punir condutas criminosas cometidas no âmbito da geração e da
comercialização do crédito de carbono. Como resultado da pesquisa,
identifica-se que as estratégias descarbonizadoras avançaram muito
mais rápido do que a legislação penal em matéria ambiental, cujas
tipificações se mostram insuficientes para prevenir e reprimir as con-
dutas desleais, fraudulentas e danosas ao meio ambiente no âmbito
da criação e das transações realizadas no mercado de crédito de car-
bono no País. Logo, há urgente necessidade de superação do vazio
normativo em matéria penal ambiental nesse segmento, de modo que

*
Auditora Fiscal Jurídico da Receita Estadual da Secretaria da Fazenda do Estado
de Ceará – SEFAZ/CE. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará
– UFC. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tri-
butários – IBET. Especialista em Direito Público pela Faculdade Adelmar Rosado.
Ex-Consultora Técnico-Jurídica da Câmara Municipal de Fortaleza – CMFOR.
Monalisa Rocha Alencar | 333
sejam efetivamente tutelados a sustentabilidade e o equilíbrio ambi-
entais.
Palavras-chave: Mercado. Carbono. Vulnerabilidades. Sustentabili-
dade.

Introdução

Diante da lacuna normativa acerca da regulamenta-


ção legal sobre o mercado brasileiro de crédito de carbono (atu-
almente, conforme a Agência Senado1, o PL 412/2022 será deba-
tido na Comissão do Meio Ambiente – CMA do Senado Fede-
ral), muitas inquietações surgem em razão das implicações jurí-
dicas que a matéria suscita, sobretudo no âmbito penal ambien-
tal, cujo recrudescimento é essencial para ser garantido o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
nos termos do artigo 225 da Constituição Federal.
Nesse sentido, o presente capítulo possui o escopo de
analisar o mercado de crédito de carbono no Brasil, identifi-
cando sua configuração atual, suas nuances e vulnerabilidades,
bem como verificando os riscos a que se submetem os partici-
pantes de um mercado não regulado.
Essa abordagem é um necessário convite à reflexão
quanto às escolhas institucionais realizadas no País, cujo des-
prestígio da pauta ambiental pode ser evidenciado diante do
fato de que o Brasil, em 2022, ocupou nono pior lugar em emis-
são de gases do efeito estufa2.

1 Regulamentação do mercado de carbono será debatida na CMA. Agência Senado,


24 jan. 2023. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2023/
01/regulamentacao-do-mercado-de-carbono-sera-debatida-na-cma. Acesso em:
11 mar. 2023.
2 Brasil fica em 81° lugar no Índice de Desempenho Ambiental. G1, 01 jun. 2022.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
334 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

Nesse contexto adverso, o mercado de crédito de car-


bono brasileiro destaca-se em prol tanto da proteção dos bio-
mas, quanto da minimização das mudanças climáticas. Con-
tudo, é fundamental questionar se ambos correspondem ao
anunciado no âmbito das transações, considerando-se que,
inobstante haja vultosos investimentos envolvidos, o meio am-
biente deve ser resguardado de modo prioritário, com transpa-
rência, confiabilidade, segurança jurídica e efetiva responsabili-
dade dos participantes.
Nesse raciocínio, há recorte temático referente à tu-
tela ambiental circunscrita ao âmbito penal, a fim de serem in-
vestigadas criticamente as disposições legais vigentes, inda-
gando-se a pertinência destas em cotejo com a configuração do
mercado de crédito de carbono no Brasil, considerando-se a ne-
cessidade de fiscalização, controle e monitoramento da geração
e da comercialização do crédito, assim como de repressão efe-
tiva a condutas ambientais delituosas.
Portanto, mediante pesquisas bibliográficas, docu-
mentais, legislativas e eletrônicas, o núcleo da presente pes-
quisa é direcionado à interseção entre Direito Ambiental e Di-
reito Penal, especificamente quanto à tutela do mercado de cré-
dito de carbono no Brasil, de modo que sejam propostas alter-
nativas para que a efetiva responsabilidade penal, sobretudo
em um caráter preventivo, consista efetivamente em instru-
mento de proteção ecológica e sustentabilidade.

Disponível em:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/06/01/brasil-fica-em-81-lugar-
no-indice-dedesempenho-ambiental.ghtml. Acesso em: 19 nov. 2022.
Monalisa Rocha Alencar 1335

1. Mercado voluntário de crédito de carbono no Brasil

A tônica central da atualidade consiste em responsa-

bilidade socioambiental e sustentabilidade, cuja relevância vem

apresentando notoriedade desde a celebração do Protocolo de


Kyoto em 1997 e, sobretudo, desde sua efetivação em 2005.
Nesse contexto, o crédito de carbono assume posição

de destaque, sendo oportuno ressaltar que sua nomenclatura

técnica se refere à Redução Certificada de Emissão - RCE, con-

forme artigo 1º, alínea “b” do Anexo da Decisão 3/CMP.13, bem

como que este corresponde à redução ou remoção de uma tone-


lada de dióxido de carbono da atmosfera.

Não obstante possa ser considerado que a visibili-


dade alcançada pelo mercado de crédito de carbono decorra dos

duplos ganhos que este gera (favorece o fomento ao meio am-

biente ecologicamente equilibrado, ao mesmo tempo em que o

seu mercado movimenta, de modo expressivo, a economia glo-


bal), sabe-se que o elemento financeiro alcança a primazia em
se tratando dos investimentos das grandes corporações, tor-

nando mais atrativo o argumento de uma economia de baixo

carbono. Por exemplo, "o crescimento das fontes renováveis é


estimado unicamente em função de sua capacidade de competir

com preços, de se impor pela eficiência"4.

3 UNITED NATIONS FRAMEWORK CONVENTION ON CLIMATE CHANGE


(UNFCCC) . Report of the Conference of the Parties serving as the meeting of
the Parties to the Kyoto Protocol on its first session, held at Montreal from 28
November to 10 December 2005, 2006, p . 6-7. Disponível em: https://cdm.un-
fccc.int/Reference/COPMOP/08a01.pdf . Acesso em: 09 set. 2023 .
4
CALDEIRA, Jorge; SCHABIB, Luana; SEKULA, Julia Marisa. Brasil: País Restau-
rável. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2020, p . 90 .
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
336 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

Nesse contexto, o referido mercado trata-se de um


segmento global em ascensão, o qual expandiu quatro vezes em
2021, gerando um bilhão de dólares na economia mundial, ao
passo que movimentou o equivalente a vinte e cinco milhões de
dólares no Brasil. Há ainda a estimativa de que esse mercado
alcance cem bilhões de dólares em 20305.
Na realidade brasileira, a comercialização do crédito
de carbono desenvolve-se no chamado mercado voluntário (ou
livre), caracterizado pela ausência de regulamentação legal
quanto às diretrizes para a criação do crédito e suas correspon-
dentes transações.
Apesar disso, esse segmento já está recebendo inves-
timentos públicos, apresentando-se como expoente o Banco Na-
cional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, o qual
decidiu tornar frequente o programa de compra de créditos de
carbono, cuja chamada pública de 2023 já está prevista, com a
expectativa de movimentar entre R$150 milhões e R$200 mi-
lhões6. Além do BNDES, o Banco do Brasil – BB7 tem atuado no
mercado de carbono, participando de todo o seu ciclo, desde a
geração do crédito até a sua comercialização.

5 Crédito de Carbono gera US$1 bi no mundo. Valor Econômico, São Paulo, 25 mar.
2022. Disponível em: https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2022/03/25/
credito-de-carbono-gera-us-1-bi-no-mundo.ghtml. Acesso em: 15 nov. 2022.
6 BNDES prepara compra regular de crédito de carbono. Valor Econômico, São
Paulo, 10 nov. 2022. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/
2022/11/10/bndes-prepara-compra-regular-de-credito-de-carbono.ghtml. Acesso
em: 19 nov. 2022.
7 BB passa a atuar em todo o ciclo do mercado de carbono. Valor Econômico, São
Paulo, 29 set. 2022. Disponível em: https://valor.globo.com/financas/noticia/2022/
09/29/bb-passa-a-atuar-em-todo-o-ciclo-do-mercado-de-carbono.ghtml. Acesso
em: 19 nov. 2022.
Monalisa Rocha Alencar | 337
Diante desse contexto, “é necessário que haja uma es-
trutura de governança transparente e responsável para que o
público apoie os programas de compensação florestal, especial-
mente quando se espera que um grande comprador das com-
pensações seja o setor público.”8
Nesse sentido, a transparência, a segurança jurídica
e a responsabilidade penal ambiental são léxicos fundamentais
a integrarem o mercado de crédito de carbono no Brasil, cujo
destaque no âmbito do mercado voluntário mundial é evidente,
uma vez que ocupa o quarto lugar quanto ao volume de crédito
de carbono gerado9. Inclusive, “há grandes chances de o crédito
de carbono ser uma nova commodity brasileira”10. Apesar disso,
“a oferta atual de crédito de carbono no mercado brasileiro é de
menos de 1% do potencial anual do país”11.
Tal situação pode ser atribuída à inexistência das ba-
lizas legais, haja vista que a normatização da matéria é essencial
para que seja concedida segurança jurídica e transparência aos

8 OLIVEIRA, Letícia de; SILVEIRA, Caroline Soares da. Análise do mercado de car-
bono no Brasil: histórico e desenvolvimento. Novos Cadernos NAEA, v. 24, n. 3,
2021, p. 20.
9 DELAZERI, Linda Márcia Mendes; FERREIRA, Vinícius Hector Pires; VARGAS,
Daniel Barcelos. Mercado de carbono voluntário no Brasil na realidade e na prá-
tica. São Paulo: FGV-EESP, 2022, p. 11. Disponível em: https://eesp.fgv.br/sites/
eesp.fgv.br/files/ocbio_mercado_de_carbono_1.pdf. Acesso em: 12 mar. 2023.
10 CAVALCANTE, Denise Lucena. O papel da tributação ambiental em prol do ODS
13: ações contra as mudanças climáticas. In: GODINHO, Heloisa Helena Antona-
cio Monteiro; IOCKEN, Sabrina Nunes; WARPECHOWSKI, Ana Cristina Moraes.
(Org.). Políticas Públicas e os ODS da Agenda 2030. 1ed. Belo Horizonte: Fórum,
2021, v. 1, p. 408.
11 Brasil pode ser protagonista em créditos de carbono. Valor Econômico, São Paulo,
28 out. 2022. Disponível em: https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/
noticia/2022/10/28/brasil-pode-ser-protagonista-em-creditos-de-carbono.ghtml.
Acesso em: 19 nov. 2022.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
338| superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

investidores, cuja reticência é compreensível diante de um ce-


nário que apresenta múltiplas oportunidades ao passo que en-
volve riscos nebulosos a título de, por exemplo, garantia da qua-
lidade na geração do crédito e responsabilidade penal ambien-
tal.
Sobre obstáculos à ampliação dos investimentos ver-
des, Daniela Kletzan-Slamanig e Angela Köppl12 destacam (tra-
dução nossa):

A regulamentação inadequada a nível nacional, a


insuficiente consideração dos riscos relacionados
com o clima e a pressão exercida pelos operadores
históricos (sectores "castanhos") são consideradas
as principais questões que impedem o crescimento
do financiamento verde. Além disso, a falta de
transparência e o risco de lavagem de dinheiro
verde são considerados obstáculos significativos.

Ademais, no cenário brasileiro, ao lado da ausência


de regulamentação legal, ainda não há manifestação dos Tribu-
nais Superiores atinente a discussões envolvendo negociações
no mercado de crédito de carbono, o qual, realmente, carece de
segurança jurídica para que seja aproveitado o potencial brasi-
leiro em sua íntegra.
Dessa forma, em um segmento em que há diversas e
crescentes demandas inerentes, por exemplo, à consultoria, à
certificação, ao gerenciamento e ao monitoramento de projetos

12 KLETZAN-SLAMANIG, Daniela; KÖPPL, Angela. Green finance: contribution to


climate policy, supporting factors and barriers. In: WEISHAAR, Stefan E.; MILNE,
Janet E.; ANDERSEN, Mikael Skou; ASHIABOR, Hope. Green Deals in the Mak-
ing: Perspectives from Across the Globe. Critical Issues in Environmental Taxa-
tion Volume XXIV. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2022, p. 133-134.
Monalisa Rocha Alencar | 339
de geração de crédito de carbono, além dos trâmites de comer-
cialização, que, por vezes, envolvem o setor financeiro; a confi-
abilidade, possibilitada pela segurança jurídica, assim como
pela transparência, é mandamental para que se consubstancie
uma agenda consistente de créditos de carbono e, consequente-
mente, seja viabilizada a proteção ambiental conforme anunci-
ada.
Enquanto a regulamentação legal não é positivada
no ordenamento jurídico pátrio, há orientações a serem segui-
das, disponibilizadas pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e
Inovação mediante o Guia de Orientação do Mecanismo de De-
senvolvimento Limpo13.
No aludido guia, está prescrito o ciclo a ser percor-
rido para que um projeto potencialmente redutor de gases do
efeito estufa seja assim certificado e, por consectário, possibilite
a comercialização do crédito de carbono gerado. Esse ciclo é
composto pelas seguintes fases: elaboração do documento de
concepção do projeto, validação, aprovação, registro, monitora-
mento, verificação/certificação e emissão de RCE’s.
A primeira fase compreende a elaboração do Docu-
mento de Concepção do Projeto (DCP), o qual norteará todo o
ciclo, pois deverá conter aspectos técnicos, operacionais e orga-
nizacionais que contemplem todo o projeto, desde a sua concep-
ção.

13 BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. O Meca-


nismo de Desenvolvimento Limpo: guia de orientação 2009. Rio de Janeiro: Im-
perial Novo Milênio: FIDES, 2009. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-
br/acompanhe-o-mcti/cgcl/arquivos/autoridade-nacional-designada-para-o-mdl/
o-mecanismo-de-desenvolvimento-limpo-guia-de-orientacao.pdf. Acesso em: 12
mar. 2023.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
340 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

Em sequência, os participantes do projeto encami-


nharão o DCP a uma Entidade Operacional Designada (EOD),
a qual será responsável por emitir o Relatório de Validação do
DCP. De posse deste, os participantes o enviarão juntamente
com o DCP à Autoridade Nacional Designada (no Brasil, cor-
responde à Comissão Interministerial de Mudança Global do
Clima) para fins de obtenção da Carta de Aprovação.
Após aprovado, a EOD submeterá ao Conselho Exe-
cutivo14 o Formulário de Solicitação de Registro, incluindo: o
DCP, o Relatório de Validação e a Carta de Aprovação, com o
escopo de ser obtido o Registro da Atividade do Projeto.
Após a emissão do registro, os participantes do pro-
jeto realizarão o monitoramento, o qual se refere à etapa de co-
leta e armazenamento de todos os dados para fins de cálculo da
redução de emissões de gases do efeito estufa ou do aumento
das remoções de dióxido de carbono, em conformidade com a
metodologia designada no DCP. Assim, emitirão o Relatório de
Monitoramento e o enviarão à EOD, a qual pode ser uma certi-
ficadora nacional ou estrangeira, para fins de verificação/certi-
ficação.
Essa etapa de verificação/certificação é essencial para
que seja assegurada transparência e confiabilidade na prestação
de contas quanto à eficácia do projeto, porém a periodicidade
em que ocorre consiste em discricionariedade dos proponentes
do projeto.
Durante o processo de verificação, a entidade certifi-
cadora examinará a documentação do projeto a fim de informar

14 Conselho Executivo da Convenção Quadro das Nações Unidas para Mudanças


Climáticas – United Nations Framework on Convention Climate Change (UN-
FCCC).
Monalisa Rocha Alencar | 341
se atende às especificações do DCP, bem como promoverá ins-
peções no local, se necessário, com o escopo de analisar regis-
tros de desempenho, entrevistas com os participantes do projeto
e atores locais, coletas de dados e medições, precisão dos méto-
dos e equipamentos de monitoramento, entre outros aspectos
relevantes ao projeto.
Além disso, durante o período de verificação, a cer-
tificadora poderá recomendar alterações na metodologia de
monitoramento, assim como informar aos participantes eventu-
ais suspeitas quanto à conformidade das atividades do projeto,
o que demandará possivelmente a apresentação de esclareci-
mentos adicionais.
Uma vez concluída a verificação, será elaborado o
Relatório de Verificação, bem como será iniciada a etapa da cer-
tificação, a qual versa sobre a garantia de que o projeto alcançou
o êxito almejado quanto à redução da emissão de gases do efeito
estufa ou ao aumento das remoções de dióxido de carbono.
Com a emissão desse certificado, torna-se possível a solicitação
de emissão do Certificados de Emissões Reduzidas (RCE) ao
Conselho Executivo.
Diante da emissão do Crédito de Carbono, viabiliza-
se a sua comercialização, que, na realidade brasileira, pode ser
realizada tanto por meio de contrato bilateral de cessão quanto
mediante negociações na bolsa de valores.
Sobre o contrato de cessão de créditos, Karina Cla-
deira Toledo15 elucida:

15 TOLEDO, Karina Caldeira. A não Incidência de Impostos Estaduais e Municipais


nas Comercializações de Créditos de Carbono. Revista Direito Tributário Atual
nº 48. ano 39. p. 223-241. São Paulo: IBDT, 2º quadrimestre 2021, p. 239.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
342 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

Assim, o contrato de cessão de créditos de carbono


são elaborados entre o proprietário das Reduções
Certificadas de Emissão e a pessoa, física ou jurí-
dica, adquirente da certidão, estabelecendo nele o
valor que foi pago pelo título, bem como o mon-
tante de créditos de carbono que serão transferidos
de titularidade.

Ainda sobre a cessão de créditos, é imperioso ressal-


tar que essa comercialização pode ser realizada, inclusive, no
âmbito internacional, por entidades públicas ou privadas, con-
forme aduz Danielle Limiro16:

[...] é caracterizado pelo fato de as entidades públi-


cas ou privadas do país, financiando ou não o de-
senvolvimento de projetos de MDL, adquirirem as
RCEs correspondentes e operarem sua comerciali-
zação internacional em bases mais vantajosas,
competitivas e no momento mais favorável.

Diante do exposto, evidencia-se que os procedimen-


tos pertinentes à geração e às transações envolvendo o crédito
de carbono são complexos, demandam transparência, confiabi-
lidade, responsabilidade e segurança jurídica. Contudo, embora
haja interesses econômicos assaz relevantes, não se pode olvi-
dar que a principal tutela deve ser direcionada ao meio ambi-
ente ecologicamente equilibrado.

16 LIMIRO, Danielle. Créditos de carbono: Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL.


Curitiba: Juruá, 2012, p. 124.
Monalisa Rocha Alencar | 343
2. Vulnerabilidades do mercado brasileiro de crédito de
carbono

O atual destaque econômico do mercado de crédito


de carbono traz não apenas a visibilidade quanto ao equilíbrio
ecológico, mas também atrai a atenção de organizações crimi-
nosas, sobretudo diante de um mercado promissor como o bra-
sileiro, que ainda padece da ausência de regulamentação legal.
A possibilidade de prosperidade do mercado de cré-
dito de carbono no País depende, de modo indubitável, de suas
balizas legais, sobretudo no âmbito penal ambiental; assim
como de efetiva fiscalização e de verdadeiro rigor preventivo e
punitivo. Desse modo, “os mercados de carbono podem ser
concebidos de forma sustentável, de modo a satisfazerem crité-
rios ambiciosos de eficiência econômica, eficácia ambiental e
justiça social”17 (tradução nossa).
No entanto esse intercâmbio bem-sucedido entre os
domínios econômico, ambiental e social demanda a análise e a
superação dos potenciais elementos de vulnerabilidade atinen-
tes à geração e à comercialização do crédito de carbono no mer-
cado nacional, de modo que sejam facilitadas a prevenção e a
repressão a eventuais condutas delituosas.

17 RUDOLPH, Sven; KAWAKATSU, Takeshi; LERCH, Achim. Developing the


North American carbon market: prospects for sustainable linking. In:
WEISHAAR, Stefan E.; KREISER, Larry; MILNE, Janet E.; ASHIABOR, Hope;
MEHLING Michael. The Green Market Transition: Carbon taxes, Energy Sub-
sidies and Smart Instrument Mixes. Critical Issues in Environmental Taxation
Volume XIX. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2017, p. 228.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
344 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

2.1. Imprecisão quanto à natureza jurídica do crédito de


carbono

Inicialmente, é importante ponderar que as fragilida-


des em que se cinge o mercado brasileiro surgem a partir da
complexidade que envolve o próprio crédito de carbono, cuja
natureza jurídica sequer possui definição uníssona no ordena-
mento jurídico pátrio.
Embora não seja o objetivo deste capítulo examinar a
supramencionada feição jurídica, faz-se necessário ressaltar que
a divergência é tão evidente que há pelo menos cinco possibili-
dades normativas, quais sejam: ativo financeiro, com supedâ-
neo no artigo 2º, I do Decreto nº 11.075/2022; serviço ambiental,
nos termos do artigo 2º, III da Lei nº 14.119/2021 e da Circular
Bacen nº 3.690/2013; título de direito sobre bem intangível e
incorpóreo transacionável, consoante artigo 3º, XXVII da Lei nº
12.651/2012, conhecida como Código Florestal, assim como bem
intangível, conforme as Soluções de Consulta 192 e 193 da Re-
ceita Federal, ambas de 2009 e título mobiliário, segundo artigo
9º da Lei nº 12.187/2009.
Essa dificuldade conceitual consiste em uma questão
tormentosa para os participantes das transações, cuja compre-
ensão exata sobre a matéria resta prejudicada diante da insegu-
rança jurídica que a assola, tornando-a terreno fértil para poten-
ciais atividades criminosas.
Essa imprecisão jurídica também é perniciosa para a
própria Administração Pública, que se encontra em uma situa-
ção difícil para compatibilizar eventual conduta delituosa com
os tipos penais previstos na ordem jurídica vigente, o que, por
vezes, pode ser até mesmo inviabilizado.
Monalisa Rocha Alencar | 345
Ademais, é interessante mencionar que há outros as-
pectos sensíveis que envolvem o mercado de crédito de car-
bono, os quais foram, inclusive, objeto de exame pela Internati-
onal Criminal Police Organisation – Interpol, cujo estudo desenvol-
vido no Guide to Carbon Trading Crime18 norteará a presente aná-
lise, notadamente o trecho a seguir (tradução nossa):

Este guia procura identificar as áreas nos merca-


dos de carbono emergentes que são potencial-
mente, ou provaram ser, vulneráveis a atividades
criminosas. Em termos gerais, as atividades ilegais
identificadas incluem:
(i) Manipulação fraudulenta de medições para rei-
vindicar mais créditos de carbono de um projeto
do que os efetivamente obtidos;
(ii) Venda de créditos de carbono inexistentes ou
de terceiros;
(iii) Alegações falsas ou enganosas com relação aos
benefícios ambientais ou financeiros dos investi-
mentos no mercado de carbono; […]

Os âmbitos de vulnerabilidade supramencionados


versam sobre situações passíveis de análise à luz da ordem ju-
rídica brasileira, razão pela qual serão examinados a seguir.

2.2. Medição fraudulenta de crédito de carbono

A manipulação fraudulenta do crédito de carbono de


modo a gerar créditos adicionais inexistentes é uma situação de

18 INTERNATIONAL CRIMINAL POLICE ORGANISATION (INTERPOL). Envi-


ronmental Crime Programme: Guide to Carbon Trading Crime. Junho de 2013,
p. 11. Disponível em: https://www.interpol.int/content/download/5172/file/
Guide%20to%20Carbon%20Trading%20Crime.pdf. Acesso em: 12 mar. 2023.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
346| superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

evidente risco a que o mercado se encontra submetido, máxime


na fase de monitoramento, cujo relatório é elaborado pelos pró-
prios participantes do projeto.
Embora haja a atuação da entidade certificadora para
fins de verificação/certificação, sabe-se que esta não se encontra
indene de pressões econômicas (considerando-se as vultosas
quantias envolvidas nas transações) e até mesmo subornos e ou-
tras formas de corrupção, para que certifique a geração de cré-
ditos de carbono em níveis maiores do que os reais.
Além disso, não se pode olvidar que a entidade cer-
tificadora é remunerada pelos próprios participantes do pro-
jeto19, o que pode gerar situações desconfortáveis e, inclusive,
conflito de interesses quando da realização do processo de vali-
dação dos créditos.
Esse cenário susceptível a fraudes, potencializado
pela ausência de regulamentação legal no Brasil, gera uma situ-
ação em que a integridade do crédito de carbono pode ser facil-
mente comprometida, o que demanda esforços da Administra-
ção Pública em prol da criação do mercado regulado assim
como em favor de uma ação pública planejada e direcionada à
prevenção desses riscos e à correção de eventuais desvios cons-
tatados, o que pode ser realizado inicialmente, por exemplo,
mediante o credenciamento das entidades certificadoras junto
ao governo brasileiro, de modo que haja um acompanhamento
fidedigno de suas condutas.
Essa atuação da Administração Pública é essencial,
considerando-se o próprio interesse público, tanto em razão dos
investimentos públicos que estão sendo realizados, por exem

19 Ibid., 12.
Monalisa Rocha Alencar | 347
plo, pelo BNDES e pelo BB, conforme já aludido; quanto em de-
corrência da proteção ambiental, a qual consiste no cerne da cri-
ação desse mercado.
Por derradeiro, quanto ao enquadramento penal de
condutas fraudulentas relacionadas à medição do crédito de
carbono gerado, vale enfatizar que não há tipo penal específico
para reprimi-las, mas, apesar dessa lacuna, é possível, a depen-
der das circunstâncias que permeiam o caso concreto, ser reali-
zada a correspondência, por exemplo, com os seguintes crimes:
estelionato (artigo 171 do Código Penal - CP) e falsidade ideo-
lógica (artigo 299 do CP).

2.3. Venda fraudulenta de crédito de carbono e falsidade


quanto aos benefícios ecológicos ou financeiros gerados
pelos investimentos neste mercado

Outro fator crítico quanto ao mercado de crédito de


carbono consiste na possibilidade de ocorrência de fraudes en-
volvendo as transações, sobretudo as internacionais, haja vista
que, dada a sua intangibilidade, o crédito de carbono trata-se de
elemento dissociado do projeto físico que lhe deu origem, de
modo que há dificuldades operacionais em rastrear a sua gê-
nese.
Essas dificuldades podem ser percebidas também di-
ante da possibilidade de que o crédito de carbono tenha sido
gerado por titulares distintos daqueles que tenham adquirido
os direitos de comercialização. Dessa forma, essa obscuridade
no rastreamento concede espaço à oportunidade de fraudes ín-
sitas a vendas de créditos inexistentes bem como pertencentes a
terceiros e, ainda, a múltipla venda do mesmo crédito.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
348| superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

Além disso, no âmbito das vendas de crédito de car-


bono, também pode ser configurada mácula referente a argu-
mentações falsas ou enganosas para atrair potenciais investido-
res, sobretudo relacionadas a benefícios ecológicos ou financei-
ros diversos dos reais. Trata-se de situação sensível, pois diante
da complexidade que envolve o tema e da ausência de informa-
ções claras e precisas, os compradores podem ser ludibriados
com facilidade.
Diante desses cenários adversos, seriam medidas in-
teressantes a serem adotadas pelo governo brasileiro a fim de
minimizar os riscos inerentes à operação pelo menos no mer-
cado interno: a edição de diploma normativo contendo diretri-
zes de investigações acerca da proveniência do crédito de car-
bono; o estabelecimento de um banco de dados oficial, contendo
as informações basilares da cadeia de transmissão do crédito; e
a criação de uma plataforma digital contendo um cadastro dos
vendedores e compradores, onde houvesse o registro de ambas
as reputações corporativas em relação, por exemplo, à quanti-
dade de créditos comercializados, bem como à certificação da
qualidade destes.
Essas seriam iniciativas potencializadoras de trans-
parência e confiabilidade, e, por consectário, possibilitariam
uma gestão salutar do mercado nacional que, embora ainda seja
incipiente, já apresenta um notável potencial para ser protago-
nista em créditos de carbono, podendo ser responsável por 50%
da oferta de crédito no mercado internacional até 203020

20 Brasil pode ser protagonista em créditos de carbono. Valor Econômico, São Paulo,
28 out. 2022. Disponível em: https://valor.globo.com/publicacoes/suplementos/
noticia/2022/10/28/brasil-pode-ser-protagonista-em-creditos-de-carbono.ghtml.
Acesso em: 19 nov. 2022.
Monalisa Rocha Alencar | 349
Por fim, quanto à repressão penal, pode-se aplicar o
raciocínio semelhante ao desenvolvido no tópico anterior.

3. O mercado brasileiro de crédito de carbono perante o


sistema normativo penal ambiental

As vulnerabilidades indicadas no tópico anterior


versaram essencialmente sobre aspectos patrimoniais decorren-
tes de condutas delituosas fraudulentas no âmbito do mercado
de crédito de carbono, contudo não se pode deixar de conceder
ênfase ao mais relevante bem juridicamente tutelado, qual seja:
o meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual demanda
proteção a nível penal, uma vez que os âmbitos administrativo
e cível são insuficientes para assegurá-lo, consoante elucida Lé-
lio Braga Calhau21:

A conhecida incapacidade do Direito Administra-


tivo e do Direito Civil de lidarem satisfatoriamente
com o problema da degradação ambiental acabou
provocando o incremento da tutela penal ambien-
tal nas últimas décadas em vários países.
Muito embora deva ficar com o Direito Adminis-
trativo a maior parcela de responsabilidade do
meio ambiente, verdade é que bem jurídico de ta-
manha envergadura não pode, muitas vezes, pres-
cindir da proteção do Direito Penal. Deve este, é
óbvio, ser utilizado minimamente, observado o

21 CALHAU, Lélio Braga. Efetividade da tutela penal do meio ambiente: a busca do


“ponto de equilíbrio” em Direito Penal Ambiental. Prolegis, 11 nov. 2007. Dispo-
nível em: https://prolegis.com.br/efetividade-da-tutela-penal-do-meio-ambiente-
a-busca-do-%e2%80%9cponto-de-equil%c3%adbrio%e2%80%9d-em-direito-pe-
nal-ambiental-1/. Acesso em: 11 mar. 2023.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
350 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

princípio da intervenção mínima, mas não se po-


derá jamais prescindir do uso da lei penal, quando
se sentir não bastar a sanção administrativa para a
evitação de resultados extremamente danosos
para a natureza.
A imposição de sanções administrativas e civis
quando houvesse violação da legislação ambiental
vinham se revelando, de certa forma, eficientes
para os casos em concreto, mas insuficientes para
desacelerar o processo de degradação ambiental.

A tutela penal ambiental, mediante a severa repres-


são às condutas delituosas, assume ênfase em seu caráter pre-
ventivo, o qual consiste no aspecto nuclear para a efetivação da
sustentabilidade e do equilíbrio ecológicos. Sobre o princípio da
prevenção em matéria ambiental, prelecionam Celso Antônio
Pacheco Fiorillo e Christiany Pegorary Conte22:

Os pilares da tutela penal ambiental, traçados em


normas constitucionais, não são necessariamente
coincidentes com os diplomas e conceitos clássicos
de direito material e processual ordinários. Isso
porque o surgimento de novos bens jurídicos, de
natureza supraindividual, passou a demandar
uma nova visão sobre o direito criminal que pu-
desse atender de forma efetiva à tutela dos direitos
difusos.
O direito criminal ambiental possui características
peculiares, dentre as quais destacamos a prospec-
ção ou caráter preventivo (e não apenas retrospec-
tivo/repressivo, isto é, que surge somente após o
dano), o que leva à antecipação da tutela penal,
vale dizer, à criação de crimes de perigo concreto

22 CONTE, Christiany Pegorary; FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Crimes Ambi-


entais. Editora Saraiva: 2012, ebook.
Monalisa Rocha Alencar | 351
e, principalmente, de perigo abstrato, de mera con-
duta, de normas penais em branco, à existência de
elementos normativos dos tipos (para a caracteri-
zação dos delitos ambientais) etc.
[...] Ademais, o princípio da prevenção norteia a
proteção constitucional do meio ambiente, inclu-
indo a tutela penal.

É expressão do princípio da prevenção na ordem pe-


nal ambiental a tipificação dos crimes de perigo, uma vez que a
previsão apenas referente aos crimes de dano seria o mesmo
que aviltar ainda mais a proteção aos ecossistemas, os quais de-
vem ser resguardados diante de quaisquer possibilidades de
ameaças ao seu equilíbrio e à sua sustentabilidade. Acerca dos
crimes ambientais de perigo, explica Raquel Quaresma Bonavi-
des23:

Os crimes ambientais são classificados como cri-


mes de perigo, pois se consubstanciam com a mera
possibilidade de dano. Diferenciam-se, portanto,
dos crimes de dano, nos quais há necessidade de
efetiva “destruição” a um bem jurídico penal-
mente protegido.
Crimes, como são subdivididos na doutrina, po-
dem ser de dano e de perigo. O primeiro exige
comprovação do efetivo prejuízo. Os de perigo
não o exigem. Exigem o perigo concreto.
[...] Nos crimes ambientais, portanto, antecipa-se a
proteção penal para que não haja exaurimento do
crime. Aliás, todas as disciplinas que tratam do Di-
reito Ambiental, apresentam esse comum objetivo,
qual seja o de incluir os riscos e não somente o

23 BONAVIDES, Raquel Quaresma. Bem jurídico ambiental. Tutela penal e aplica-


ção do princípio da insignificância nos crimes ambientais. Belo Horizonte: Ed-
itora Dialética, 2021, ebook.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
352 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

dano, pois este último, depois de causado, é de di-


fícil reparação e larga dimensão.

Nesse linear, percebe-se que a sustentabilidade em


matéria ambiental depende não apenas da implementação das
iniciativas para a redução da emissão dos gases do efeito estufa
ou aumento das remoções de dióxido de carbono, mas também
e, máxime, de efetiva legislação cogente no âmbito penal ambi-
ental direcionada a prevenir práticas delituosas. Esse escopo
preventivo está contido no rigor punitivo, que atua de modo
pedagógico a desencorajar as condutas infracionais. Com essa
estrutura normativa, o Direito Penal Ambiental apresenta po-
tencial para ser instrumento de contribuição ao desenvolvi-
mento sustentável no País.
É importante mencionar que “o desenvolvimento
sustentável recomenda um quadro holístico, no qual a socie-
dade visa a objetivos econômicos, sociais e ambientais” 24, os
quais estão intrinsecamente relacionados, de modo que os efei-
tos de um reverberam nos outros, demandando-se, portanto,
uma coexistência sistêmica e harmônica.
Nesse raciocínio, o conceito de desenvolvimento sus-
tentável aqui utilizado pode ser compreendido como “aquele
que atende às necessidades do presente sem comprometer a
possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias
necessidades”25.
Essa acepção foi desenvolvida pela Comissão Mun-
dial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a qual ainda

24 SACHES, Jeffrey D. The age of sustainable development. New York: Columbia


University Press, 2015, p. 3.
25 COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO.
Nosso Futuro Comum. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas,
1991, p. 46.
Monalisa Rocha Alencar | 353
apresentou aspectos conexos como a “noção das limitações que
o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio
ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e
futuras”26.
Essas limitações da organização social brasileira,
quanto à efetiva tutela do equilíbrio ecológico, perpassam pela
necessidade urgente de adoção de estratégias definidas de con-
trole mais rígido, responsabilização efetiva e legislação penal
ambiental consentânea à dinâmica da realidade social.

3.1. Considerações sobre a Lei de Crimes Ambientais (Lei


9.605/1998)

A adoção de iniciativas institucionais direcionadas à


sustentabilidade consistem em verdadeiros desafios, conside-
rando-se que, historicamente, o desenvolvimento do pensa-
mento social brasileiro negligenciou a questão ambiental, o que,
inclusive, pode ser demonstrado por meio da própria origem da
Lei 9.605/1998 (que dispõe sobre as sanções penais e adminis-
trativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio am-
biente), conforme aduz Renata Franco27:

[...] a Lei de Crimes Ambientais foi votada em ca-


ráter de urgência, em fevereiro de 1998, em virtude
dos altos índices de desmatamento na Amazônia
(21.050 Km² em 1998) e à pressão internacional

26 Ibid., p. 46.
27 FRANCO, Renata. Jornal Jurid, 09 mar. 2023. Uma análise crítica sobre as quei-
madas na Amazônia. Disponível em: https://www.jornaljurid.com.br/doutrina/
ambiental/uma-analise-critica-sobre-as-queimadas-na-amazonia. Acesso em: 11
mar. 2023.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
354 |
superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

para que o Governo Brasileiro adotasse medidas


eficientes para o seu combate .
Tal votação foi motivada pela publicação do Pri-
meiro Relatório Nacional para a Convenção sobre
Diversidade Biológica ( CDB) que apresentava da-
dos sobre o desflorestamento na Amazônia, de
acordo com informações do IBAMA e do INPE,
apontando, à época, como principal causa a con-
versão da floresta para produção de pastagens e
lavouras temporárias .

Dessa forma, percebe- se que a edição da Lei de Cri-


mes Ambientais consistiu muito mais em uma estratégia polí-

tica para atender aos anseios internacionais do que propria-


mente uma vontade institucional em coibir práticas delituosas
ambientais .

Por isso, em não raras oportunidades, a legislação


ambiental brasileira "reveste-se de um caráter simbólico por ser

muitas vezes o meio ambiente alvo de desconsideração en-


quanto prioridade política [ ...]"28. Inclusive, o Instituto de Pes-

quisa Econômica Aplicada – IPEA29 foi conclusivo quanto à ne-


cessidade de revisão da Lei de Crimes Ambientais .

Essa necessidade de ajustes é notória na prática coti-

diana, a qual revela situações preocupantes, por exemplo: a

28
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA) . Comunicados do
Ipea 81: Sustentabilidade ambiental no Brasil: biodiversidade, economia e
bem-estar humano: Direito ambiental brasileiro; Lei dos crimes ambientais.
IPEA: Brasília, 2011 , p. 8. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/
bitstream/11058/4602/1/Comunicados n81 Direito Ambiental.pdf. Acesso em:
12 mar. 2023.
29 Idib., p . 22.
Monalisa Rocha Alencar | 355
atual emergência climática30, a ampliação da área de desmata-
mento na Amazônia31, a recente destruição de 26% (vinte e seis
por cento) do bioma do Pantanal mato-grossense32, bem como
os recentes desastres ambientais, como o ocorrido em Mari-
ana/MG33 e em Brumadinho/MG 34, cujos responsáveis ainda
permanecem impunes.
A superação dessa postura passiva e descuidada pe-
rante o meio ambiente é medida imperiosa da contemporanei-
dade, cuja tolerância a esse desrespeito à própria vida não pode
ser mais aceita, reclamando soluções estruturais diversas, as
quais vão desde o necessário fortalecimento dos órgãos com po-
der de polícia ambiental até a rigorosa aplicação da lei penal.
Sobre essa temática, ressalta-se o entendimento de
Douglas Teodoro Fontes35:

30 Fatos sobre a Emergência Climática. Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA). Disponível em: https://www.unep.org/pt-br/explore-to-
pics/climate-change/fatos-sobre-emergencia-climatica. Acesso em: 11 mar. 2023.
31 COP27: 3 gráficos que mostram piora do Brasil em desmatamento, queimadas e
emissões de CO2. BBC, 15 nov. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/por-
tuguese/brasil-63614414. Acesso em: 11 mar. 2023.
32 Imagens de queimadas em 'Pantanal' são reais e mostram impactos no bioma:
'Ainda dói', diz biólogo. G1, 29 jun. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/
ms/mato-grosso-do-sul/noticia/2022/06/29/pantanal-mostra-imagens-de-queima-
das-e-faz-alerta-sobre-impactos-no-bioma-e-tudo-real-e-ainda-doi-diz-bio-
logo.ghtml. Acesso em: 11 mar. 2023.
33 Mariana: tragédia completa 7 anos de impunidade e atrasos na reparação às víti-
mas. G1, 05 nov. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/no-
ticia/2022/11/05/mariana-tragedia-completa-7-anos-de-impunidade-e-atrasos-
na-reparacao-as-vitimas.ghtml. Acesso em: 11 mar. 2023.
34 Quatro anos da tragédia em Brumadinho: 270 mortes, três desaparecidos e ne-
nhuma punição. G1, 25 jan. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-
gerais/noticia/2023/01/25/quatro-anos-da-tragedia-em-brumadinho-270-mortes-
tres-desaparecidos-e-nenhuma-punicao.ghtml. Acesso em: 11 mar. 2023.
35 FONTES, Douglas Teodoro. Direito Penal Ambiental. Uma visão socioeducaci-
onal. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, ebook.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
356 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

A ineficácia da Lei 9.605/1998 não está expressa no


seu texto, mas no sistema jurídico obsoleto do país
que se soma à cultura da população que insiste em
não levar a sério as questões ambientais. Assim,
não é necessário substituir a lei, mas inserir nela
alguns dispositivos que a modernizem como, por
exemplo, a concessão de benefícios para quem pre-
vine danos ambientais, a exemplo do que se ob-
serva na esfera jurídica internacional.

Portanto, restam evidentes as falhas que atingem o


âmago do próprio sistema penal ambiental, o qual se mostra in-
suficiente quanto à aplicação e à atualização dos diplomas le-
gais vigentes, que necessitam de modernização constante, con-
soante o fluxo de alterações que a dinâmica social e econômica
impõe, sob pena de ser dificultada ou, até mesmo, inviabilizada
a persecução penal, considerando-se o princípio da estrita lega-
lidade que a norteia.

3.2. A necessária superação do vazio normativo penal


ambiental no âmbito do mercado brasileiro de crédito de
carbono

Na ordem jurídica pátria, evidencia-se que as estra-


tégias descarbonizadoras avançaram muito mais rápido do que
a legislação penal em matéria ambiental, cujas tipificações se
mostram insuficientes para prevenir e reprimir as condutas
fraudulentas e danosas ao meio ambiente no âmbito da criação
e das transações realizadas no mercado de crédito de carbono.
Nessa senda, esse segmento tão relevante para a ho-
diernidade não pode passar despercebido pelo sistema norma-
tivo penal ambiental, cuja atuação é imprescindível para que
Monalisa Rocha Alencar | 357
haja segurança jurídica e confiabilidade quanto à geração do
crédito, sobretudo no que concerne às atividades desenvolvidas
pelas empresas certificadoras; assim como quanto às comercia-
lizações que o envolvem, de modo que sejam coibidas condutas
como venda fraudulenta e falsidade quanto aos benefícios eco-
lógicos ou financeiros gerados pelos investimentos nesse ambi-
ente.
Diante desse contexto, assume relevo elucidar que a
necessidade de tipificação penal de condutas infracionais no
âmbito do mercado de crédito de carbono versa essencialmente
sobre o caráter de potencial perigo que desses crimes emana,
haja vista que de pouca eficácia seria punir tão somente o dano
já concretizado, dada a possibilidade de ser exígua ou, até
mesmo, inócua a reparação efetiva do prejuízo ambiental.
É interessante esclarecer que essa possibilidade de
perigo é deveras grave em se tratando de mercado de crédito de
carbono, pois, caso concretizada, pode, inclusive, macular o
próprio escopo desse segmento, corrompendo a anunciada neu-
tralidade das emissões, bem como contribuindo para o agrava-
mento da situação climática global, já tão adversa atualmente.
A referida neutralidade “é alcançada quando nenhum equiva-
lente de dióxido de carbono é adicionado à atmosfera por uma
organização, empresa, edifício ou país. Isso pode envolver a eli-
minação de emissões, a compensação delas ou uma combinação
de ambas"36.
Tal situação é tão delicada que se o perigo for consu-
mado, a sua percepção não é obtida de modo instantâneo, pois

36 Entenda a diferença entre net zero e neutralidade de carbono. EXAME, 30 jul.


2021. Disponível em: https://exame.com/ciencia/diferenca-entre-net-zero-neutra-
lidade-de-carbono/. Acesso em: 12 mar. 2023.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
358 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

se trata de uma degradação paulatina, cujos efeitos acumulam-


se ao longo do tempo, demandando um estudo técnico com-
plexo, multidisciplinar e abrangente. Uma vez detectada a se-
veridade do dano, pode ser, inclusive, que seus efeitos sejam
irreversíveis.
Observa-se que, embora não seja possível a medição
exata, em curto prazo, dos danos ambientais provenientes de
eventual quantidade de dióxido de carbono que permaneceu,
indevidamente, na atmosfera; é possível sim ser vislumbrado
um perigo abstrato ao meio ambiente decorrente dessa conduta.
Por isso, é fundamental que a ordem jurídica esteja
um nível de excelência em seu amadurecimento, de forma a
contemplar uma tipificação específica para crimes ambientais
de perigo abstrato ou presumido cometidos no âmbito do mer-
cado de crédito de carbono, tanto na fase de geração quanto na
de comercialização deste.
Diante da dimensão sensível que o crime de perigo
abstrato apresenta no âmbito do mercado de crédito de carbono,
é essencial a edição de diploma normativo contendo previsões
penais específicas que compreendam severas penas restritivas
de direitos, bem como multas pecuniárias direcionadas a fun-
dos destinados à causa ambiental.
Em se tratando das penas restritivas de direitos da
pessoa jurídica, a Lei de Crimes Ambientais vigente dispõe em
seu artigo 22 sobre as seguintes: a) suspensão parcial ou total de
atividades; b) interdição temporária de estabelecimento, obra
ou atividade; c) proibição de contratar com o Poder Público,
bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações.
No caso do mercado de crédito de carbono, é bas-
tante salutar que essas penas restritivas de direitos sejam man-
tidas para as organizações envolvidas na geração e na venda
Monalisa Rocha Alencar | 359
dos créditos. Contudo, seria bastante proveitoso ter o acréscimo
de uma pena restritiva de direitos específica para as entidades
certificadoras, como o descredenciamento de sua atividade no
Brasil pelo tempo estimado equivalente ao necessário para re-
florestar uma área que conseguisse capturar os créditos de car-
bono vendidos de forma fraudulenta.
No que concerne à pena de multa pecuniária, im-
porta aduzir sobre seus parâmetros vigentes: “As sanções para
quem comete crime ambiental são multas pecuniárias que va-
riam de R$50,00 (cinquenta reais) e o máximo de
R$50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais), conforme descrito
no artigo 75 da lei”37. Além disso, a multa pecuniária devida em
razão de crime ambiental é destinada ao Fundo Penitenciário
Nacional.
Contudo, a delimitação exata dos citados valores
pode aviltar a proteção ambiental, de modo que não haja a efe-
tiva punição pelo dano ao ecossistema, como nos casos já men-
cionados dos recentes desastres ambientais ocorridos nas cida-
des de Mariana/MG e Brumadinho/MG.
Sobre esses parâmetros pecuniários, é bastante lou-
vável o entendimento de Celso Antônio Pacheco Fiorillo e
Christiany Pegorary Conte38:

[...] melhor seria se o legislador houvesse trans-


plantado o sistema de dias-multa do Código Penal
para a legislação protetiva do meio ambiente, com
as devidas adaptações, de modo a fixar uma uni-
dade específica que correspondesse a um dia de
faturamento da empresa e não ao padrão de dias-
multa contidos na Parte Geral do Código Penal.

37 FONTES, Douglas Teodoro, op. cit., ebook.


38 CONTE, Christiany Pegorary; FIORILLO, Celso Antônio Pacheco, op. cit., ebook.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
360 I
superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

Em outras palavras, o legislador perdeu a oportu-


nidade de fazer incidir de forma mais efetiva os ca-
racteres retributivo e preventivo da cominação da
pena de multa.

Realmente, a solução de ser utilizado o faturamento


da empresa delituosa como critério balizador da multa é me-

dida da mais lídima justiça, porém sugere-se que a quantifica-

ção dos dias de faturamento seja contabilizada conforme o


tempo estimado que seria necessário para o reflorestamento de

uma área que conseguisse capturar os créditos de carbono ven-


didos de forma fraudulenta.

Por fim, também se recomenda a alteração do desti-

natário da multa pecuniária, de modo que os valores arrecada-


dos a esse título sejam direcionados a fundos comprovada-

mente comprometidos com a proteção ambiental, como o


Fundo Nacional de Mudança Climática (FNMC), criado pela

Lei nº 12.114/2009 e regulamentado pelo Decreto nº 7.343/2010 .

Considerações finais

O mercado de crédito de carbono no Brasil, ao desen-


volver-se de modo voluntário (sem regulamentação legal espe-

cífica), é submetido a um vazio normativo de diretrizes, direitos

e deveres, transparência, segurança jurídica e responsabilidade


no âmbito penal ambiental .

Essa é uma das muitas vulnerabilidades que tornam

as transações susceptíveis à ação de organizações criminosas,

assim como as fragilidades referentes à própria complexidade


Monalisa Rocha Alencar | 361
que envolve a geração e a comercialização do crédito de car-
bono, o qual ainda padece de imprecisão quanto à sua natureza
jurídica.
Essa inexatidão conceitual não é mero devaneio eru-
dito ou de uma discussão cerebrina, ao revés gera severos im-
pactos de natureza prática, uma vez que dificulta e, até mesmo,
pode inviabilizar a persecução penal, dado o princípio da estrita
legalidade que a norteia.
Nesse contexto, não se pode olvidar a própria razão
da existência do crédito de carbono, cuja gênese é ecológica, vi-
sando ao equilíbrio ambiental a partir da redução de emissões
de gases do efeito estufa ou do aumento das remoções de dió-
xido de carbono na atmosfera. Essa clareza em seu propósito é
fundamental para a compreensão acerca da insuficiência do en-
quadramento penal apenas em tipos que protejam, por exem-
plo, o patrimônio, pois se deve conceder primazia ao mais rele-
vante: o meio ambiente como bem juridicamente tutelado.
Nesse raciocínio, faz-se imperiosa a edição de di-
ploma normativo penal ambiental em consonância com a hodi-
erna dinâmica social, contendo tipos penais específicos para
condutas delituosas envolvendo tanto a geração quanto a co-
mercialização do crédito de carbono, haja vista que a lei vigente
que regulamenta os crimes ambientais (Lei 9.605/98) encontra-
se defasada perante a atual morfologia em que se insere o mer-
cado de crédito de carbono.
Contudo, a tutela mais adequada não consiste tão so-
mente em positivar as condutas criminosas, mas também em se-
rem envidados esforços governamentais direcionados ao plane-
jamento e à execução de estratégias de fiscalização, monitora-
mento e controle do mercado de crédito de carbono, a fim de
serem efetivamente coibidos os delitos ambientais.
Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
362 | superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

Além de serem instituídas rigorosas penas restritivas


de direitos, seria bastante salutar a previsão de multas destina-
das a fundos específicos de proteção ambiental, como o Fundo
Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC) ou outros com pro-
pósitos semelhantes.
Por derradeiro, importa ressaltar que essa necessária
superação do vazio normativo em matéria penal ambiental con-
siste em um verdadeiro desafio, considerando-se a realidade
institucional brasileira indubitavelmente marcada pela deses-
truturação de órgãos atuantes em fiscalização ambiental; pelo
aumento significativo de degradação de biomas nacionais,
como a expansão da área de desmatamento na Amazônia e a
ampliação de severas queimadas no Pantanal mato-grossense;
assim como pela complacência na responsabilização dos causa-
dores de desastres ambientais.

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Vulnerabilidades do mercado de crédito de carbono no Brasil: a necessária
368| superação do vazio normativo em matéria penal ambiental

VULNERABILITIES OF THE CARBON CREDIT


MARKET IN BRAZIL: THE NEED TO OVERCOME
THE REGULATORY VOID IN ENVIRONMENTAL
CRIMINAL MATTERS
ABSTRACT
The environmental criminal configuration of the carbon credit market
in Brazil is analyzed, in order to identify its vulnerabilities, through a
critical approach, made possible through bibliographic, documen-
tary, legislative and electronic research. The central issue is the exam-
ination of the risks involved in the voluntary national market, with a
view to proposing alternatives to prevent and punish criminal con-
duct within the scope of the generation and commercialization of car-
bon credits. As a result of the research, it is identified that decarbon-
izing strategies have advanced much faster than criminal legislation
in environmental matters, whose typifications prove to be insufficient
to prevent and repress unfair, fraudulent and environmentally dam-
aging conduct within the scope of creation and transactions carried
out in the carbon credit market in the country. Therefore, there is an
urgent need to overcome the regulatory gap in environmental crimi-
nal matters in this segment, so that sustainability and environmental
balance are effectively protected.
Keywords: Market. Carbon. Vulnerabilities. Sustainability.
CAPÍTULO XII.
INFLUÊNCIA DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS NO BRASIL PELA PROTEÇÃO
DA MULHER E PROTOCOLO PARA
JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE
GÊNERO

Ana Paula França Rolim*

DOI: 10.29327/5341937.1-12

Resumo: A pesquisa objetiva analisar a influência da Corte Interame-


ricana de Direitos Humanos no Brasil pela proteção da mulher a par-
tir do cotejo da condenação no caso Márcia Barbosa de Souza e outros
vs. Brasil e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero
(2021), elaborado em colaboração entre o Conselho Nacional de Jus-
tiça (CNJ) e a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da
Magistratura (ENFAM), inicialmente recepcionado pelo CNJ com o
status de Recomendação e, posteriormente, como Resolução de apli-
cação obrigatória pelo Poder Judiciário, com o fito de diminuir a de-
sigualdade de gênero e promover julgamentos mais justos e não-dis-
criminatórios. Quanto ao método científico da pesquisa é hipotético-
dedutiva – pois busca preencher uma lacuna consistente na identifi-
cação da relação entre a atuação da Corte Interamericana de Direito
no Brasil pela proteção da mulher e o Protocolo para Julgamento com

* Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito (PPGD/UFC). Especialista


em Processo Civil pela FUMEC/MG. Advogada inscrita na OAB/CE. Membro da
Comissão de Direito de Família da OAB/CE. Bacharela em Direito pela Universi-
dade Federal do Ceará.
370 | Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

Perspectiva de Gênero. Já quanto à natureza é básica, pois visa à for-


mação de novos conhecimentos científicos e quali-quanti, conquanto
quanto à abordagem do problema, visto que serão elaboradas análi-
ses fruto da interação do pesquisador com o tema, além da utilização
de dados numéricos objetivos. Os objetivos caracterizam-se como ex-
ploratórios-descritivos. As fontes de pesquisa são bibliográfica e do-
cumental.
Palavras-chave: Corte Interamericana De Direitos Humanos; Proto-
colo para Julgamento com Perspectiva de Gênero; desigualdade de
gênero; direitos da mulher.

Introdução

O intuito desta pesquisa é o de analisar a influência


da atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no
Brasil pela proteção da mulher enquanto categoria de gênero, a
partir do estabelecimento da relação dessa atuação com a re-
cente instituição do Protocolo para Julgamento com Perspectiva
de Gênero (CNJ/2021), tendo em vista principalmente a conde-
nação do Brasil no caso Barbosa de Souza e outras vs. Brasil.
Para isso, inicia-se pela identificação do Sistema In-
teramericano de Direitos Humanos, no qual se insere a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, para lhe situar e qualifi-
car enquanto entidade membro desse sistema de proteção. Em-
pós, passa-se pela análise da atuação da Corte em demandas de
violação à mulher pelo gênero enquanto fator determinante.
Ato contínuo, a partir de um recorte específico de
condenação brasileira na Corte por questões de gênero, analisa-
se a sentença de mérito condenatória do caso Barbosa de Souza
e outros vs. Brasil, processado pela Corte IDH.
Ana Paula França Rolim | 371
Em sequência, apresenta-se o Protocolo para Julga-
mento com Perspectiva em Gênero para, em seguida, identificar
a relação que essa condenação brasileira possui com a medida
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em lançar o Protocolo
para Julgamento com Perspectiva em Gênero.
Quanto ao método científico utilizado, a pesquisa é
hipotético-dedutiva ‒ pois busca preencher uma lacuna consis-
tente na identificação da relação entre a atuação da Corte Inte-
ramericana de Direito no Brasil pela proteção da mulher e o Pro-
tocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero e quali-
quanti, conquanto quanto à abordagem do problema, visto que
serão elaboradas análises fruto da interação do pesquisador
com o tema, além da utilização de dados numéricos objetivos.
Já quanto à natureza, esta pesquisa é básica, pois visa à forma-
ção de novos conhecimentos científicos, bem como seus objeti-
vos são exploratório-descritiva, direcionados à reunião de infor-
mações sobre o tema, como ao registro e descrição dos fatos que
circundam a relação que se pretende estabelecer entre a Corte
IDH e a edição do citado Protocolo. Para isso, utiliza-se do pro-
cedimento técnico da realização de pesquisa bibliográfica e do-
cumental, pois tanto são utilizados livros e produções acadêmi-
cas, quanto documentos oficiais, como a análise do próprio Pro-
tocolo para Julgamento com Perspectiva em Gênero.

1. Proteção dos direitos humanos das mulheres na Corte


Interamericana de Direitos Humanos

O Sistema de proteção Interamericano aos Direitos


Humanos se constituiu a partir do desígnio coletivo de países
americanos em promover uma cultura de cooperação internaci-
onal e regional para buscar objetivos comuns ao pós-segunda
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
372 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

guerra, quais sejam, (I) o fortalecimento da democracia; (II) a


promoção dos direitos humanos; (III) a segurança multidimen-
sional e (IV) o desenvolvimento integral.1 Nesse jaez, considera-
se a Organização dos Estados Americanos (OEA) como base so-
bre a qual se desenvolveu esse sistema de proteção, a partir da
adesão dos 35 Estados independentes das Américas à Carta da
Organização dos Estados Americanos, em 30 de abril de 1948
em Bogotá.
Por meio da Carta, os Estados signatários vincula-
ram-se a um dever geral de respeito e promoção dos Direitos
Humanos. Na Carta, inclusive, há a previsão de uma série de
direitos e garantias os quais devem ser observados pela jurisdi-
ção interna de cada um, fundados num regime de liberdade indi-
vidual e justiça social, em vistas ao respeito dos direitos essenciais
do homem. Além do compromisso com a Carta da OEA, con-
temporaneamente à 9ª Conferência Interamericana em Bogotá,
foi aprovada a Declaração Americana de Direitos e Deveres do
homem, cujo teor são direitos fundamentais que deveriam ser
alvo de tutela dos Estados signatários. Sobreleva nessa compre-
ensão o caráter da universalidade desses direitos, porquanto são
essenciais ao homem independente da cidadania, nacionali-
dade ou outro demarcador social, visto que derivam da condi-
ção humana (Preâmbulo da Declaração).2
Em crítica atemporal, Cançado Trindade destaca a
importância da visão integral dos direitos humanos, abortando

1 PIOVESAN, Flávia; CRUZ, Julia C. Curso de Direitos Humanos: Sistema Intera-


mericano. Barueri: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9786559640010. Disponível em:
https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559640010/. Acesso em: 28 jun.
2023. p. 110.
2 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva,
2017. 4 ed. E-book. p. 311.
Ana Paula França Rolim | 373
qualquer tentativa de hierarquizá-los e, por conseguinte, privi-
legiar uns às expensas de outros. Inclusive julga-se fantasiosa a
categorização dos direitos humanos em “gerações de direitos”,
cuja propagação ideológica mais enfraquece do que fortalece a
proteção internacional dos direitos humanos. Nessa ordem de
ideias, assim como todos os direitos humanos são indivisíveis,
em conjunto, o é o próprio titular desses direitos, o ser humano.3
Ao longo do tempo, somaram-se a esse sistema de
proteção interamericano de direitos humanos a Convenção In-
teramericana de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa
Rica –, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) e, após, a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
os quais são instrumentos para efetivação dos objetivos da
OEA.
Nesse sentido, neste artigo, atém-se ao papel da
Corte Interamericana de Direitos Humanos no que tange à pro-
teção dos direitos humanos das mulheres, motivo pelo qual se
passa doravante a investigar essa relação.
A Corte Interamericana é um órgão que exerce fun-
ção jurisdicional no Sistema Interamericano, nas modalidades
contenciosa ou consultiva. A primeira se dá por meio da re-
messa dos casos analisados pela CIDH, a qual verifica se houve
violação aos direitos humanos – com base na Convenção Inte-
ramericana – e, em caso positivo, formula recomendações para
o Estado violador. Uma vez que o Estado descumpra as reco-
mendações, a CIDH remete o caso para a Corte exercer a com-
petência contenciosa. De acordo com Flávia Piovesan “As sen-

3 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos


humanos e o Brasil. 2 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2000. p. 126.
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
374 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

tenças da Corte são vinculantes e, por isso, tais medidas de re-


mediação e reparação são de cumprimento obrigatório pelo Es-
tado envolvido.”4 A segunda, trata-se da competência para emi-
tir pareceres técnicos acerca de dúvidas que envolvam o Sis-
tema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.5
Os órgãos internacionais do Sistema Interamericano
de Direitos Humanos detêm competência contenciosa subsidiá-
ria6, significando que os casos que lhe são denunciados passam
previamente por várias instâncias de jurisdição interna dos pa-
íses signatários da Convenção Americana de Direitos Humanos
para, empós, uma vez preenchido o requisito do art.46, a,7 da
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica), serem recebidos pela Comissão de Direitos Hu-
manos para admissibilidade do caso à Corte.

4 PIOVESAN, Flávia; CRUZ, Julia C. Curso de Direitos Humanos: Sistema Intera-


mericano. Barueri: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9786559640010. Disponível em:
https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559640010/. Acesso em: 28 jun.
2023. p. 110.
5 PIOVESAN, Flávia; CRUZ, Julia C. Curso de Direitos Humanos: Sistema Intera-
mericano. [Digite o Local da Editora]: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN
9786559640010. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/
9786559640010/. Acesso em: 28 jun. 2023. p. 121.
6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Convenção americana sobre Direitos Hu-
manos. Anotada com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. 2ª edição. Brasília, 2022. Disponível em:
https://stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaInternacional/anexo/STF_Conven-
caoAmericanaSobreDireitosHumanos_SegundaEdicao.pdf. Acesso em: 30 jun.
2023.
7 1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos
44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será necessário: a) que hajam sido inter-
postos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios
de direito internacional geralmente reconhecidos; (Convenção Americana de Di-
reitos Humanos)
Ana Paula França Rolim | 375
O sistema de proteção regional se justifica necessário
à medida que o continente americano encerra vicissitudes his-
tóricas específicas atinentes à proteção aos Direitos Humanos,
principalmente relacionadas aos períodos de ditaduras na
América Latina entre os anos de 1960-1990. Nesse sentido, Wil-
liam Marques elenca como desafios hodiernos à primazia dos
direitos humanos nos países americanos a corrupção institucio-
nalizada; deficiências em infraestrutura de acesso à água potá-
vel e ao saneamento básico; as acentuadas desigualdades sociais
e econômicas; a influência do narcotráfico e o crime organizado
em âmbito transnacional; violência urbana e violações aos direi-
tos humanos; as questões ambientais (poluição do ar e da água,
desmatamento das flores, utilização de técnicas agrícolas noci-
vas à vida); precários índices educacionais; deficiência ao acesso
à saúde; práticas arbitrárias e ilegais dos Estados ante os cida-
dãos, entre outras questões.8
Quanto à proteção das mulheres pelo sistema intera-
mericano, enquanto grupo reconhecidamente alvo de opressões
e vilipêndios sistemáticos de direitos por motivação de gênero,
salienta-se que a identificação desse recorte determinante tem
um marco teórico dentro do sistema interamericano consistente
na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher (também conhecida como Conven-
ção do Belém do Pará), adotada em 1994. Isto porque o norma-
tivo se detém expressamente a definir a violência contra mulher

8 MARQUES JÚNIOR, William Paiva. A sentença da Corte Interamericana de Di-


reitos Humanos no Caso Vladimir Herzog e outros versus Brasil: responsabili-
dade internacional do Estado e controle de convencionalidade. In: Gilmar Anto-
nio Bedin; Maurides Batista De Macedo Filha. (Org.). Direito internacional dos
direitos humanos II. 01ed. Florianópolis: CONPEDI, 2019, v. 01, p. 27-47. Link:
http://site.conpedi.org.br/publicacoes/no85g2cd/q65xj7i6/ElAmriCQjc794uJ7.pdf.
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
376 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

em razão do gênero, conforme art. 1º9, uma espécie de violência


cuja falta de individuação corroborava para a invisibilização em
cifras específicas.
Sobre isso, registra-se que a supracitada Convenção
também é parâmetro para aplicação do direito interno, con-
forme pontua Guerra, na medida que se insere no âmbito do
controle de convencionalidade, dispositivo jurídico fiscalizador
de leis infraconstitucionais o qual permite o duplo controle de
verticalidade, dessa forma estabelecendo a necessidade das nor-
mas internas do país compatibilizarem-se não só da Constitui-
ção (controle de constitucionalidade), mas também com os tra-
tados internacionais ratificados pelo país onde vigoram tais
normas (controle de convencionalidade).10
Registram-se, neste tópico, dados quantitativos con-
cernentes aos casos julgados pela CIDH envolvendo demandas
específicas atinentes a violações de direitos humanos determi-
nadas pela condição de ser mulher, para trazer um panorama
quantitativo da violência de gênero no âmbito do Sistema Inte-
ramericano de Direitos Humanos.
Tamara Amoroso Gonçalves11 analisou todos os ca-
sos denunciados à CIDH de 1970 a 2008 –1.141 casos analisados

9 “Art. 1º Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mu-
lher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofri-
mento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera
privada.”
10 GUERRA, Sidney. A proteção internacional dos direitos humanos no âmbito da
Corte Interamericana e o controle de convencionalidade. Nomos: Revista do Pro-
grama de Pós-Graduação em Direito UFC, Fortaleza, v. 32, n. 2, p. 341-366, dez.
2012. Semestral. Disponível em: http://periodicos.ufc.br/nomos/article/view/365/
347. Acesso em: 17 set. 2023. p. 359.
11 GONÇALVES, Tamara A. Direitos humanos das mulheres e a Comissão Intera-
mericana de Direitos Humanos, 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. E-book. ISBN
9788502187825. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/
Ana Paula França Rolim | 377
–, pesquisa da qual se retirou os seguintes dados importantes
para a compreensão do contexto da proteção da mulher pelo
sistema interamericano, aos quais se remete a seguir.
O primeiro recorte feito na pesquisa é quanto à pro-
porção de denúncia dividida entre os países signatários, de
acordo com o gráfico a seguir.

Gráfico 01 ‒ Distribuição de demandas denunciadas à Corte


Interamericana de Direitos Humanos por países no período
entre 1970-2008 (1.141 casos analisados).
14 12,7112,09
12
8,85 8,41
10
8 5,96 5,43
64

4,82 4,65
2

3,77 3,42 3,33 3,33 3,24 2,8 2,72 2,54 2,19

Distribuição de demandas apresentadas à CIDH por países no período entre


1970-2008

Fonte: elaborado pela autora (2023)

Em relação ao perfil vitimológico, tem-se que as de-


núncias que há apenas vítimas do sexo feminino somam 12,2%;
contra 63,7% referente a vítimas exclusivamente masculinas;
20,9% em que há pessoas de ambos os sexos e 3,2% em que não
é possível identificar. Sobre isso, a pesquisadora explica que os

9788502187825/. Acesso em: 28 jun. 2023. p. 161-171.


378 | Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

dados revelam uma dificuldade para as vítimas mulheres alcan-


çarem o sistema internacional, ao contrário do que se poderia
imaginar de que necessariamente há mais vítimas masculinas
de violação aos direitos humanos. Porém, para chegar essa con-
clusão, é imprescindível compreender os entraves culturais, so-
ciais e inclusive legais, os quais são responsáveis pela invisibili-
zação dos índices de violência contra mulher.
Por certo, nem todos os casos em que as vítimas são
exclusivamente mulheres necessariamente serão violações co-
metidas em razão de gênero, contudo, é importante desenvol-
ver mecanismos para reconhecer quando acontecem e, especial-
mente, formular políticas de prevenção.
Sobre isso, reporta-se a um dado brasileiro o qual au-
xilia a compreensão da diferença do contexto preponderante da
violência sofrida pela mulher e pelo homem no Brasil. Proveni-
ente do Relatório Retrato das Desigualdades de Gênero e de
Raça (2011) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA), tem-se o dado12 – de 2009 - atinente à vitimização da po-
pulação de 10 anos ou mais de idade que foi vítima de agressão
sexual, segundo sexo e local, o qual indicava que, enquanto os
homens sofriam 80% dessas violências em locais públicos e ape-
nas 12% na própria residência, as mulheres as enfrentavam 43%
desse tipo de violência no ambiente doméstico, contra 49% em
ambientes públicos. Esses índices corroboram o caráter privado
da violência vivida pelas mulheres brasileiras, denotando as-
pectos como a domesticidade e a proximidade do agressor – ge-
ralmente alguém com quem a vítima coabita –, dificultando a
publicidade, denúncia e persecução de tais agressões.

12 IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Retrato das desigualdades de


gênero e raça. Brasília, Ipea, 2014. p. 38.
Ana Paula França Rolim | 379
A particularidade da vitimização do gênero mulher
também parte de uma importante compreensão e definição do
que são critérios discriminatórios, para assim categorizar
quando uma violação ocorre em virtude de uma crença e moti-
vação discriminatória ou não. Nesse sentido, a Corte IDH já foi
provocada a se manifestar sobre o assunto, quando da análise
acerca de Identidade de gênero, e igualdade e não discrimina-
ção para casais do mesmo sexo, conforme sintetizado a seguir
em material bibliográfica produzido pelo Supremo Tribunal Fe-
deral:

66. No entanto, a Corte lembra que nem todas as


diferenças de tratamento serão consideradas dis-
criminatórias, mas apenas aquelas que se baseiam
em critérios que não podem ser razoavelmente
avaliados como objetivos e razoáveis, ou seja,
quando não perseguem um fim legítimo e não
existe relação razoável de proporcionalidade entre
os meios utilizados e a finalidade almejada. Do
mesmo modo, em casos de diferentes tratamentos
desfavoráveis, quando o critério diferenciador cor-
responde a um daqueles protegidos pelo artigo 1.1
da Convenção, que se refere a: i) características
permanentes das pessoas, das quais estas não po-
dem prescindir sem perder a identidade; ii) gru-
pos tradicionalmente marginalizados, excluídos
ou subordinados, e iii) critérios irrelevantes para
uma distribuição equitativa de bens, direitos ou
encargos sociais, indicam que a Corte se encontra
diante de um indício de que o Estado agiu arbi-
trariamente. [Corte IDH. OC-24/2017. Opinião
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
380 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

consultiva sobre Identidade de gênero, e igual-


dade e não discriminação para casais do mesmo
sexo, proferida em 24-11-2017.13 – grifou-se

Da leitura, percebe-se que a violência em razão do


gênero se encaixa nos quesitos indicativos de um tratamento
discriminatório de forma patente, visto que as características se-
xuais femininas são também elementos identitários de gênero,
bem como constitui-se um grupo tradicionalmente subordi-
nado, além de não justificarem distribuição desigual de bens,
direitos ou encargos sociais em vistas do sexo.14
Não obstante, é salutar que a definição de gênero a
qual se utiliza nessa pesquisa - enquanto categoria útil para uma
análise histórica - é referenciado por Joan Scott, segundo a qual
– sinteticamente – gênero é (I) um elemento constitutivo de re-
lações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos
e (II) forma primeira de significar as relações de poder.15

13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Convenção americana sobre Direitos Hu-


manos. Anotada com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos. 2ª edição. Brasília, 2022. Disponível em:
caoAmericanaSobreDireitosHumanos_SegundaEdicao.pdf. Acesso em: 30 jun.
https://stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaInternacional/anexo/STF_Conven-

2023. p. 17.
14 Historicamente, mediante a divisão sexual do trabalho, as tarefas reprodutivas
foram sistematicamente atribuídas às fêmeas, no caso, às mulheres, principal-
mente fundamentando-se na lógica “Tradicionalista”, cujos defensores sustentam
que as diferenças biológicas entre homens e mulheres justificariam a atribuição
de papéis e de funções distintas entre os sexos, conforme explica Gerda Lerner.
Dessa forma, essa corrente de pensamento vê a divisão sexual do trabalho como
uma decorrência natural biológica, pela qual as desigualdades entre os sexos e a
dominação masculina seriam consectários inerentes, qualificando-as ainda como
justas e funcionais.
15 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: HOLANDA,
Heloisa Buarque (org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. 7. ed.
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. 440 p. p. 49-80. Título original "Gender: a
Ana Paula França Rolim | 381
A seguir, passa-se à análise da primeira condenação
brasileira na Corte IDH por violação com discriminação em ra-
zão de gênero.

2. Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil: a primeira


condenação com discriminação em razão de gênero
pelo Brasil na Corte IDH

O caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil foi alvo


de recorte desta pesquisa tendo em vista que se trata de uma
condenação brasileira – até o momento – inédita na Corte Inte-
ramericana por violação aos direitos humanos com perspectiva
específica de questões de gênero. Isto posto, é necessário reali-
zar a análise dessa condenação na Corte IDH ao se proceder à
investigação da influência deste organismo internacional na
proteção da mulher no Brasil.
Data de 24 de novembro de 2021 a sentença conde-
natória da Corte Interamericana de Direitos Humanos respon-
sabilizando o Estado brasileiro pela violação aos direitos às ga-
rantias judiciais, à igualdade perante a lei e à proteção judicial,
estabelecidos nos artigos 8.1, 24 e 25 da Convenção Americana,
em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo tratado, além dos re-
gramentos contidos no artigo 7.b da Convenção do Belém do
Pará, em desfavor da Sra. M. B. S. e do senhor S. R. S. O Brasil
também foi responsabilizado pela violação ao direito à integri-
dade pessoal, estatuído no artigo 5.1 da Convenção.16

useful category of historical analysis", The American Historical Review, vol. 91,
nº 5, Nova York: American Historical Association, 1986, p. 1053-1075. Tradução
de Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila.
16 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Márcia Bar
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
382 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

M. B. S. e S. R. S. são mãe e pai, respectivamente, da


jovem Márcia Barbosa de Souza, assassinada em um motel em
junho de 199817 pelo então deputado estadual, Aércio Pereira de
Lima. Márcia era uma jovem de vinte anos de idade, afrodes-
cendente, pobre e com residência em Cajazeiras – interior do es-
tado da Paraíba. A causa da morte, de acordo com perícia mé-
dico-legal, foi asfixia por sufocamento.
O assassinato de Márcia, contudo, per si, não teria al-
cançado a jurisdição da Corte IDH se não fosse o desenrolar da
persecução penal que o crime desencadeou. Márcia foi assassi-
nada em junho de 1998, porém seu algoz e os partícipes do
crime nunca tiveram seus julgamentos e respectivas condena-
ções concluídas.
Em relação ao autor do crime, Aércio Pereira de
Lima, este chegou a ser condenado a 16 anos de prisão pelos
crimes de homicídio e ocultação de cadáver pelo Primeiro Tri-
bunal do Júri de João Pessoa em 26 de setembro de 2007 – quase
10 anos após o crime –, porém, desta sentença houve recurso,
apresentado em 27 de setembro de 2007 e, em 12 de fevereiro de
2008 – com este recurso pendente de análise –, o acusado mor-

bosa de Souza e outros vs Brasil. Sentença (exceções preliminares, mérito, repa-


rações e custas), 7 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.cor-
teidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 29 jun. 2023.
17 Registra-se que o Brasil só ratificou a competência contenciosa da Corte IDH em
10 de dezembro de 1998, por isso, no ponto “46”, a sentença do referido caso deixa
consignado que os fatos relacionados ao homicídio de Márcia Barbosa de Souza
e os primeiros atos investigativos se encontram fora da competência jurisdicional
da Corte. Por oportuno, salienta-se que as violações que o Brasil foi condenado
foi em desfavor dos parentes (pai e mãe) de Márcia, devido à forma como as in-
vestigações e penalizações foram conduzidas e os danos causados em desfavor
da família nesse intercurso.
Ana Paula França Rolim | 383
reu de infarto, extinguindo-se a punibilidade e, por conse-
guinte, acarretando o arquivamento da ação penal. Mesmo não
sendo mais deputado estadual quando de sua morte, o senhor
Pereira de Lima foi velado no salão nobre da Assembleia Legis-
lativa da Paraíba, tendo sido decretado luto oficial de três dias
em virtude do falecimento.
Ressalta-se que a demora do processamento da ação
penal contra Aércio teve um fator constitucional a seu favor,
qual seja, a imunidade parlamentar que o deputado gozava en-
quanto membro da Câmara Legislativa da Paraíba. À época do
crime, a Constituição brasileira estabelecia a imunidade parla-
mentar aos deputados e senadores, os quais não poderiam ser
presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processa-
dos criminalmente, sem prévia licença de sua Casa. Ou seja,
Aércio enquanto deputado do estado da Paraíba, que em sua
constituição estadual reproduzia o referido dispositivo prote-
tivo, só poderia ser processado criminalmente com prévia li-
cença. A referida autorização foi negada por duas vezes pela
Assembleia Legislativa pertinente, uma em 17 de dezembro de
1998 e outra em 29 de setembro de 1999.
Sobrevém em 20 de dezembro de 2001 a Emenda
Constitucional nº 35/2001, a qual modifica a lógica da autoriza-
ção da Casa Legislativa para início da persecução penal em des-
favor de parlamentar para possibilidade de suspensão de um
processo criminal em curso ocorrido após a diplomação. A par-
tir dessa modificação constitucional, a ação penal contra Aércio
não mais carecia de autorização, tendo o Procurador Geral de
Justiça apresentado parecer ao Poder Judiciário que o competia
a continuidade do caso, em 21 de outubro de 2002. O processo
penal, contudo, só teve início formalmente em 14 de março de
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
384 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

2003, cerca de quatro anos antes do acusado falecer, sem sen-


tença condenatória transitada em julgado.
Quanto aos demais partícipes, que concorreram para
o crime junto ao então deputado estadual, os autos foram arqui-
vados em março de 2003 a pedido do Ministério Público por in-
suficiência de provas que individualizassem a conduta dos qua-
tro acusados, após idas e vindas de Promotor de Justiça para
Delegado de Polícia (responsável pela investigação) – mediados
pelo juízo competente – solicitando produção de mais provas,
sendo alguns requerimentos detalhados, outros genéricos.
No interregno entre 1998 e 2003 também houve alte-
rações de Promotor responsável pelo caso, com três substitui-
ções ocorrendo apenas em 1999 e mudança do Delegado em
2000. Mesmo com o relatório médico-legal entregue, a investi-
gação não foi finalizada, ainda naquele ano. Prazos eram reno-
vados para produção de mais diligências investigativas, as
quais passaram a não ser realizadas por recusa da autoridade
policial sob inúmeras escusas – como a suficiência de provas, a
falta de recursos humanos e materiais etc. Assim, findou-se com
o arquivamento por insuficiência de provas em 2003, sem se-
quer oferecimento de denúncias.
Nessa construção do cenário da persecução penal
contra os acusados e suspeitos de assassinar e ocultar o cadáver
de Márcia, salienta-se que o crime teve notória repercussão mi-
diática, justamente pelo envolvimento de um parlamentar. A re-
percussão, conforme registrado na sentença da Corte IDH, re-
sultou em mais de 320 notas jornalísticas18, as quais especula-

18 Há fortes indícios de que houve violência processual no decurso da ação penal


contra Aércio – por meio da violação da dignidade e personalidade da mulher
Ana Paula França Rolim | 385
vam sobre a vida pessoal, adição em entorpecentes e até a sexu-
alidade de Márcia19, reforçando estereótipos de gênero e culpa-
bilizando a vítima pelo destino fatal, implicando a revitimiza-
ção da jovem assassinada e infligindo desgastes emocionais na
família enlutada.
Além disso, a sentença também ressalta o contexto
da violência contra a mulher no Brasil, com uma subseção espe-
cífica acomodada em quatro páginas, as quais perfazem um re-
pertório histórico de dados e reconhece a violência contra as
mulheres no Brasil – tanto na data do ocorrido (1998), quanto
no momento da prolação da sentença (2021) – como um pro-
blema estrutural e generalizado.
Pontua-se ainda, o registro da sentença, acerca de
como a violência contra a mulher era romantizada ao invés de
contestada em veículos de comunicação, corroborando para
uma cultura de tolerância e indulgência para com a prática cri-
minosa, podendo assim influenciar no aumento de taxas de fe-
minicídio (§160). Nesse mesmo sentido, pareceres periciais e re-
latórios de organizações como o Comitê CEDAW indicaram
para a Corte que o Brasil não possuía ferramentas de controle e
registro de feminicídios, sem base de dados competente para
formulação de políticas públicas eficazes (§190 a 192).

dentro do processo como defesa do acusado –, um tipo de violência que só veio a


ser reconhecida no Brasil juridicamente por meio da Lei nº 14.245 de 22 de no-
vembro de 2021 (Lei Mariana Férrer), a qual estabeleceu alterações no Código de
Processo Penal para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e
de testemunhas e para estabelecer a causa do aumento de pena no crime de coa-
ção no curso do processo.
19 FALCÃO, Bruna Cavalcanti. Caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs Brasil:
análise da sentença da CIDH. Consultor Jurídico. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/2022-jan-03/falcao-marcia-barbosa-souza-outros-vs-brasil.
Acesso em: 28 jun. 2023.
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
386 |
proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

No capítulo "IX" da sentença encontram - se as medi-

das de reparação ao qual o Estado brasileiro foi condenado pela


Corte IDH, entre as quais, para essa pesquisa, a fim de investi-

gar a relação desse decisum com o Protocolo para Julgamento


com Perspectiva de Gênero pelo CNJ, destaca-se as medidas de

garantia de não-repetição, compiladas pelo site da Assembleia

Legislativa da Paraíba a partir da obrigação de divulgar a sen-

tença emitida pela Corte no caso em questão:

B) Garantias de não repetição: 1 ) o desenho e a im-


plementação de um sistema nacional e centrali-
zado de recopilação de dados que permitam a aná-
lise quantitativa e qualitativa de fatos de violência
contra as mulheres e, em particular, de mortes vi-
olentas de mulheres, 2 ) criação e implementação
de um plano de formação, capacitação continuada
e sensibilização das forças policiais responsáveis
pela investigação e de operadores da Justiça do Es-
tado da Paraíba, com perspectiva de gênero e raça,
3) uma jornada de reflexão e sensibilização na As-
sembleia Legislativa do Estado da Paraíba sobre o
impacto do feminicídio, a violência contra a mu-
lher e a utilização da figura da imunidade parla-
mentar, e 4) a adoção e implementação de um pro-
tocolo nacional para a investigação de feminicí-
dios;20

A partir da leitura, percebe-se que a Corte Interame-


ricana de Direitos Humanos detectou falhas das autoridades

20 ALPB disponibiliza sentença pública do Caso Barbosa de Souza e outros vs Brasil.


Assembleia Legislativa da Paraíba. Disponível em: http://www.al.pb.leg.br/
43983/alpb- disponiliza-sentenca-publica-do-caso-barbosa-de-souza-e-outros-vs-
brasil.html. Acesso em: 01 jul . 2023 .
Ana Paula França Rolim | 387
policiais e judiciárias no que tange à investigação e processa-
mento do caso da jovem Márcia Barbosa de Souza, especial-
mente voltando-se ao aspecto discriminatório por razão do gê-
nero, sendo confirmado durante a sentença que, em vários mo-
mentos, estereótipos eram reforçados no sentido de culpabilizar
a vítima ou dificultar as investigações, bem como servir de es-
teio para a defesa do acusado.
Entre as medidas de garantia de não repetição, a
Corte IDH dá ênfase à formulação de políticas públicas a partir
de uma base de dados quantitativos e qualitativos oficial acerca
da violência contra a mulher praticada no território nacional;
bem como planos de formação para a Justiça da Paraíba e a res-
pectiva força policial; uma jornada de reflexão e sensibilização
pela Assembleia Legislativa da Paraíba e, por fim, a adoção e
implementação de um protocolo nacional para investigação de
feminicídios.
Essa não é a primeira vez que a Corte condenou um
Estado tendo em vista a discriminação devido ao gênero, espe-
cialmente a partir da visualização da deficiência dos agentes do
sistema de justiça em reconhecer e combater entraves e estereó-
tipos decorrentes desse componente social. Nesse sentido, re-
gistra-se o caso Gonzáles e outras (Campo Algodoeiro) vs. Mé-
xico, cuja sentença da Corte IDH data de 16 de novembro de
2009, no qual o contexto das vítimas de homicídio e violência
sexual foi relevante para o julgamento do ato de violência con-
tra a mulher e ensejou a determinação pela Corte IDH de que o
Estado Mexicano formulasse um “Protocolo para Julgamento
com Perspectiva em Gênero”, bem como o primeiro caso em
que a perspectiva de gênero foi aplicada, no caso Prisão Miguel
| Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
388 proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

Castro Castro vs. Peru (2006), no qual se reconheceu as mulhe-


res sofreram violências diferenciadas em relação aos homens
pela condição do gênero.21
Encerrado este tópico, passa-se à análise do Proto-
colo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ) no Bra-
sil, para investigar como a implementação desse documento se
comunica com a condenação brasileira pela Corte IDH no caso
Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil.

3. Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero


no Brasil e compromisso brasileiro para o
enfrentamento da violência contra a mulher

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gê-


nero – doravante Protocolo - é um documento proveniente do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) produzido junto à Escola
Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (En-
fam), o qual foi desenvolvido pelo Grupo de Trabalho instituído
pela Portaria CNJ n. 27, de 2 de fevereiro de 2021. Conforme o
próprio prefácio da publicação revela, ele se presta a servir de
instrumento para alcance da igualdade de gênero, servindo
como guia para o Poder Judiciário, a fim de concretizar a não
discriminação das pessoas, a não repetição de estereótipos e não
perpetuação de diferenças.
É referenciado como inspiração o Protocolo para
Juzgar con Perspectiva de Género, do México. Além disso, é

21 LA CORTE INTERAMERICANA de Derechos Humanos sentencia en el “Caso


González y otras (“Campo Algodonero”) vs. México. CNDH México. Disponível
em: https://www.corteidh.or.cr/noticias.cfm?lang=es&n=75. Acesso em: 01 jul.
2023.
Ana Paula França Rolim | 389
consignado que o Protocolo brasileiro visa à colaboração com a
implementação das Resoluções ns. 254 e 255 do CNJ.
Embora seja de 2021, apenas em 15 de fevereiro de
2022 foi aprovada a Recomendação nº 12822 (CNJ) que incenti-
vava a adoção do documento pelo Poder Judiciário. Porém o
documento não restou muito no status de Recomendação,
sendo aprovado por decisão unânime da 3ª Sessão Ordinária do
CNJ a obrigatoriedade de sua aplicação –Resolução n. 492 de
17/03/2023 (CNJ)23 – em 17 de março de 2023.
Nesse diapasão, é possível visualizar na aba “legisla-
ção correlata” dessa Recomendação, compromissos do Brasil
com a redução da violência contra a mulher, entre as quais, des-
taca-se a Sentença da Corte Interamericana de Direitos Huma-
nos, de 07 de setembro de 2021, no caso Márcia Barbosa de
Souza e outros vs. Brasil.
Isto posto, faz-se uma digressão à sentença do refe-
rido julgado, destacando-se o reconhecimento pela Corte da

22 BRASIL. Recomendação nº 128 de 15/02/2022. Conselho Nacional de Justiça. Re-


comenda a adoção do “Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero”
no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Dje/CNJ nº 42/2022, de 17 de fevereiro
de 2022, p. 4-5; 11-142. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4377.
Acesso em: 01 jul. 2023. p. 56.
23 BRASIL. Resolução nº 492 de 17/03/2023. Conselho Nacional de Justiça. Estabe-
lece, para adoção de Perspectiva de Gênero nos julgamentos em todo o Poder Ju-
diciário, as diretrizes do protocolo aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído
pela Portaria CNJ n. 27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistra-
dos e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em pers-
pectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre
Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incen-
tivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário. DJe/CNJ nº 53/2023,
de 20 de março de 2023, p. 2-4. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/deta-
lhar/4986. Acesso em: 01 jul. 2023.
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
390 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

discriminação em razão de gênero ‒ com parâmetro na Conven-


ção para Eliminação de Todas as Formas de Violência Contra
Mulher (Convenção do Belém do Pará) e uma das medidas de
garantia de não repetição impostas respectivamente:

150. Tendo em vista as considerações acima, o Tri-


bunal conclui que a investigação e o processo pe-
nal pelos fatos relacionados ao homicídio de Már-
cia Barbosa de Souza tiveram um caráter discrimi-
natório por razão de gênero e não foram conduzi-
dos com uma perspectiva de gênero de acordo
com as obrigações especiais impostas pela Con-
venção de Belém do Pará. Portanto, o Estado não
adotou medidas dirigidas a garantir a igualdade
material no direito de acesso à justiça em relação a
casos de violência contra as mulheres, em prejuízo
dos familiares de Márcia Barbosa de Souza. Esta
situação implica que, no presente caso, não foi ga-
rantido o direito de acesso à justiça sem discrimi-
nação, assim como o direito à igualdade.
201. Em consequência, a Corte considera perti-
nente ordenar ao Estado que adote e implemente
um protocolo nacional que estabeleça critérios cla-
ros e uniformes para a investigação dos feminicí-
dios. Este instrumento deverá ajustar-se às diretri-
zes estabelecidas no Modelo de Protocolo Latino-
Americano de Investigação de Mortes Violentas
de Mulheres por Razões de Gênero, bem como à
jurisprudência deste Tribunal. Este protocolo de-
verá estar dirigido ao pessoal da administração de
justiça que, de alguma maneira, intervenha na in-
vestigação e tramitação de casos de mortes violen-
tas de mulheres. Ademais, deverá incorporar-se ao
trabalho dos referidos funcionários através de re
Ana Paula França Rolim | 391
soluções e normas internas que obriguem sua apli-
cação por todos os funcionários estatais.24 Grifou-
se.

Nesse sentido, é interessante consignar os compro-


missos internacionais do Estado brasileiro para enfrentamento
e reconhecimento da violência contra a mulher. Inicia-se, então,
pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Dis-
criminação contra as Mulheres (CEDAW) e a Convenção Inte-
ramericana par Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher (Convenção de Belém do Pará).
A CEDAW é o primeiro documento internacional a
reconhecer a relação entre a desigualdade de gênero e a cultura
de estereotipização e discriminação da mulher em status subor-
dinado ao gênero masculino.25 Apesar de o documento ter sido
adotado pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 1979,
só foi ratificado no Brasil em 1984 e promulgada pelo Decreto
4.377 de 13 de setembro de 2002.
Após, destaca-se a Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica – também co-
nhecida por Convenção de Belém do Pará e por Convenção so-
bre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres –, a qual foi adotada pela Assembleia Geral da Or-
ganização dos Estados Americanos (OEA) em 1994, promul-
gada no Brasil pelo Decreto 1.973 de 1º de agosto de 1996, o qual

24 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Márcia Bar-


bosa de Souza e outros vs Brasil. Sentença (exceções preliminares, mérito, repa-
rações e custas), 7 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.cor-
teidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em: 29 jun. 2023.
25 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 7. ed. Salvador: Juspo-
divm, 2021. p. 44.
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
392 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

tem o mérito de trazer o conceito de violência contra a mulher


em seu art. 1º.26
Tais compromissos internacionais se revestem da
qualificação de Tratados Internacionais sobre Direitos Huma-
nos, os quais dependem – por regra expressa constitucional – de
procedimento incorporatório. Tal procedimento, segundo a
doutrina, depende da opção do legislador, o qual, a partir da
Emenda Constitucional nº 45/04 acrescentou o §3º ao art. 5º da
Constituição Federal, dessa forma, podendo a incorporação
ocorrer com o status de Emenda Constitucional - dá-se por meio
de aprovação em dois turnos de cada uma das Casas do Con-
gresso Nacional, mediante três quintos dos votos dos seus
membros – ou com status ordinário (art. 49, I da CF/88).27
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gê-
nero brasileiro, com inspiração em todo esse arcabouço de pres-
são internacional pela proteção da mulher contra violência em
razão de gênero é um documento de 132 páginas, dividido em
três partes: (I) Conceitos; (II) Guia para Magistradas e Magistra-
dos: Um passo a passo e (III) Questões de gênero específicas dos
ramos da justiça.
Nas palavras registradas da juíza Patricia Pérez Gol-
dberg, em conferência realizada no Encuentro para conformar
la I Red Interamericana para la Justicia con Perspectiva de
Género ocorrido no México:

26 Artigo 1 - Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mu-
lher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofri-
mento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera
privada. (Convenção de Belém do Pará) Disponível em: http://www.cidh.org/basi-
cos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em: 01 de jul. 2023.
27 DIAS, 2021. Op. cit. p. 48.
Ana Paula França Rolim
| 393
(...) “conceptualmente podemos definir a la pers-
pectiva de género como el instrumento de análisis
destinado al estudio de las construcciones cultura-
les y sociales propias para las mujeres y los hom-
bres y el impacto diferenciado que éstas tienen”
con el objetivo de atacar la desigualdad histórica,
social, cultural y económica y alcanzar la igualdad
sustantiva. Y en términos operativos, agregó,
avanzar en la dirección donde “nos permita a no-
sotras como juzgadoras tres puntos muy determi-
nados: i) evaluar el impacto diferenciado de las
vulneraciones con base en el género de las vícti-
mas, ii) identificar o visibilizar los estereotipos de
género; y cómo entiende la Corte Interamericana
estos estereotipos y, finalmente, iii) reparar ade-
cuadamente las vulneraciones, teniendo en cuenta
un enfoque también diferenciado en las reparacio-
nes.28

Tendo como parâmetro o Protocolo para Juzgar con


Perspectiva de Género29, do México, o qual é referenciado pelo

28 (...) “conceitualmente podemos definir a perspectiva de gênero como o instru-


mento de análise destinado ao estudo das construções culturais e sociais especí-
ficas de mulheres e homens e o impacto diferenciado que elas têm com o objetivo
de atacar a desigualdade histórica, social, cultural e econômica e alcançar a igual-
dade substantiva.” E em termos operacionais, acrescentou, avançando no sentido
de "permitir-nos como juízes três pontos muito concretos: i) avaliar o impacto di-
ferenciado das violações em função do género das vítimas, ii) identificar ou tornar
visíveis os estereótipos de gênero; e como a Corte Interamericana entende esses
estereótipos e, finalmente, iii) reparar adequadamente as violações, levando em
consideração também um enfoque diferenciado nas reparações. Tradução livre.
CORTE IDH. Protegiendo Derechos. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/
noticias.cfm?lang=es&n=75. Acesso em: 02 jul. 2023.
29 MÉXICO. Suprema Corte de Justicia de la Nación. Protocolo para juzgar con
perspectiva de género. 1ª ed. Ciudad de México: Suprema Corte de la Justicia de
la Nación. Disponível em: https://www.scjn.gob.mx/derechos-humanos/sites/de-
fault/files/protocolos/archivos/2020-11/Protocolo%20para%20juzgar%20con
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
394 |
proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

brasileiro, tem -se que o nosso protocolo é bem me nor, visto que
menor,

o protocolo mexicano tem 306 fólios - mais que o dobro do bra-


sileiro . Embora não seja o escopo desta pesquisa realizar a com-

paração de ambos os protocolos , como a referência mexicana é

a pioneira, registra -se que a versão brasileira contempla bem

menos aspectos da perspectiva de gênero do que a mexicana,


especialmente no que tange ao aprofundamento da temática

para os operadores do sistema de justiça .


Voltando-se à sentença condenatória do caso Márcia
Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, contudo, tem- se que a sen-

tença condenou o Brasil a implementar um protocolo específico


para investigação de casos de feminicídio . Nesse sentido, em-

bora o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero

trate de feminicídio às páginas 93-95, o faz de forma superficial,


com a explanação de alguns conceitos, resumidamente acerca

da identificação da tipificação legal do delito, em seguida, da

competência constitucional do Tribunal do Júri; da Aplicação


da Lei Maria da Penha aos casos; quesitação do feminicídio e
acerca da Legítima defesa da honra . Uma síntese que por certo
não tem o condão de servir como Protocolo para Investigação

de Feminicídios pelas autoridades judiciárias, apenas como in-

trodução teórica ao tema.

Considerações finais

Esta pesquisa se propôs a analisar a influência da


Corte Interamericana de Direitos Humanos no Estado brasileiro

- jurisdicionado pela Corte IDH desde dezembro de 1998 - pela

%20perspectiva%20de%20g%C3%A9nero%20%28191120%29.pdf. Acesso em: 01


jul. 2023.
Ana Paula França Rolim | 395

proteção da mulher, fazendo um recorte do caso Barbosa de

Souza e outros vs. Brasil, o qual foi inédito para o Brasil no que

tange à perspectiva da discriminação em razão de gênero.

Nesse jaez, a pesquisa percorreu primeiro o Sistema


Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), perscrutando em
que momento a proteção da mulher se dá dentro do desenvol-

vimento desse sistema, encontrando como marco temporal

Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a


Violência contra a Mulher (também conhecida como Convenção

do Belém do Pará), adotada em 1994. Isto porque o normativo


se detém expressamente a definir a violência contra mulher em

razão do gênero, conforme art. 1º, uma espécie de violência cuja

falta de individuação corroborava para a invisibilização dos ca-


sos. Também foram registradas algumas análises no que tange
aos casos denunciados à Corte IDH no pertinente à vitimização
da mulher e seu acesso à instância Internacional .

Em seguida, passou -se à explanação e análise do caso


Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, verificando aspectos da

condenação que identificam a sentença da Corte IDH no que


tange à individualização da conduta discriminatória do Estado

brasileiro em razão dos recortes interseccionais da jovem afro-


descendente, pobre e nordestina, Márcia Barbosa de Souza, ví-

tima de feminicídio – em junho de 1998 – por um deputado es-
tadual num contexto de violência doméstica , tendo em vista
também o relacionamento afetivo .

Na última seção, trata-se do Protocolo para Julga-

mento com Perspectiva em Gênero, analisando seu teor à luz da

condenação do Brasil no caso referenciado no tópico anterior,


do que se conclui que, apesar de o Protocolo brasileiro estabele-
cer conceitos básicos, bem como um passo a passo de guia para
Influência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil pela
396 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

magistrados(as) e questões de gênero específicas, quanto à con-


denação da Corte IDH para que o Estado produzisse um proto-
colo específico para a investigação de feminicídios, o Protocolo
para Julgamento com Perspectiva de Gênero só contém quatro
páginas sobre o assunto, tendo um viés mais abrangente e su-
perficial da temática. Contudo, o Protocolo ainda faz parte de
um arcabouço teórico-normativo que, em conjunto com os de-
mais compromissos brasileiros, sinaliza para um avanço na pre-
ocupação do preparo do Poder Judiciário para fortalecer o com-
bate à violência contra a mulher.
Por fim, reitera-se a importância do Estado brasileiro
atender às ordenações da Corte IDH no sentido de acatar as con-
denações e implementar as medidas de garantia de não repeti-
ção, a fim de que casos como a persecução penal dos feminici-
das de Márcia Barbosa de Souza não se repitam, visto que o Po-
der Judiciário e as autoridades policiais e investigadoras preci-
sam atuar em consonância com os desígnios não só nacionais ‒
Lei Maria da Penha, Lei Mariana Férrer, entre outras ‒, mas
também observar os normativos internacionais, como o Pacto
de São José da Costa Rica, a Convenção de Belém do Pará e a
CEDAW, os quais são normativos que regulamentam a atuação
da Corte IDH no Brasil ‒ e do nosso sistema regional de prote-
ção dos direitos humanos, SIDH ‒ mas também o direito interno
(controle de convencionalidade), especialmente no que tange à
proteção da mulher e que, no contexto do caso Márcia Barbosa
de Souza e outros vs. Brasil, influenciaram na condenação do
Brasil e reconhecimento do viés discriminatório adotado nas in-
vestigações.
Em arremate, registra-se que a pesquisa contribui
para a compreensão da importância do sistema interamericano
Ana Paula França Rolim | 397
de direitos humanos na proteção dos direitos humanos das mu-
lheres americanas, particularmente atingidas por um histórico
de machismo e patriarcado latente enraizado do passado colo-
nial, em que o contexto sociocultural e o sistema econômico de
produção favoreceram ideologias de inferiorização em razão do
gênero. Mister, nessa ordem de ideias, ressaltar que, a partir do
caráter visto como universal dos direitos humanos, a proteção
da dignidade humana da mulher deve ser elemento informa-
tivo mandatório para alcance de efetividade em políticas públi-
cas e exercício da atividade jurisdicional em defesa desse grupo
minoritário.

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aprovado pelo Grupo de Trabalho constituído pela Portaria CNJ n.
27/2021, institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e
magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia,
em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanha-
mento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero
no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institu-
cional Feminina no Poder Judiciário. DJe/CNJ nº 53/2023, de 20 de
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402 | proteção da mulher e protocolo para julgamento com perspectiva ...

INFLUENCE OF THE INTER-AMERICAN COURT OF


HUMAN RIGHTS IN BRAZIL FOR THE
PROTECTION OF WOMEN AND PROTOCOL FOR
TRIAL WITH A GENDER PERSPECTIVE
Abstract: The research aims to analyze the influence of the Inter-
American Court of Human Rights in Brazil for the protection of
women based on the comparison of the conviction in the case of Már-
cia Barbosa de Souza and others vs. Brazil and the Protocol for Judg-
ment with a Gender Perspective (2021), prepared in collaboration be-
tween the National Council of Justice (CNJ) and the National School
for Training and Improvement of the Judiciary (ENFAM), initially re-
ceived by the CNJ with the status of Recommendation and , later, as
a Resolution of mandatory application by the Judiciary, with the aim
of reducing gender inequality and promoting fairer and non-discrim-
inatory judgments. As for the scientific method of the research, it is
hypothetical-deductive ‒ as it seeks to fill a consistent gap in identi-
fying the relationship between the work of the Inter-American Court
of Law in Brazil for the protection of women and the Protocol for
Judgment with a Gender Perspective. In terms of nature, it is basic, as
it aims to form new scientific and qualitative knowledge, while in
terms of the approach to the problem, analyzes will be developed as
a result of the researcher's interaction with the topic, in addition to
the use of objective numerical data. The objectives are characterized
as exploratory-descriptive. The research sources are bibliographic
and documentary.
Keywords: Inter-American Court of Human Rights Protocol for Trial
with a Gender Perspective; gender inequality; women rights.
CAPÍTULO XIII .

O IMPACTO DAS DECISÕES DO

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUE

SUGEREM CONDUTAS

AMBIENTALMENTE DESEJADAS NOS

CUSTOS DE TRANSAÇÃO

EMPRESARIAIS .

Amanda Rodrigues Lavôr*

Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes **

DOI: 10.29327/5341937.1-13

RESUMO: De que forma as decisões do Supremo Tribunal Federal


que incentivam condutas ambientalmente desejadas podem ter im-
pacto nos custos de transação das empresas? Utiliza-se pesquisa do
tipo bibliográfica e documental, com base em revisão de literatura de

artigos científicos, natureza pura e descritiva . A abordagem é quanti-


tativa-qualitativa mediante a utilização da Metodologia de Análise de
Decisões (MAD) . Esta pesquisa tem relevância teórica e prática, pois

..
O presente capítulo foi feito com o apoio do Fundação Cearense de Apoio ao De-
senvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP.
*
Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza.Especialista em Direito Pro-
cessual Civil pela Universidade de Fortaleza . Mestranda em Direito pela Univer-
sidade Federal do Ceará.
**
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito
Internacional pela Universidade de Fortaleza . Mestrando em Direito pela Univer-
sidade Federal do Ceará.
404 | O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

oferece uma contribuição original sobre essa relação das decisões ju-
diciais, principalmente as do STF, nos custos de transação de empre-
sas e decorre muito da necessidade que as empresas têm de ter con-
dutas ambientalmente corretas e equilibrar os custos de transação e
isso está diretamente ligado às decisões judiciais nesse sentido, para
uma efetiva modificação e até uma previsibilidade, que tende a redu-
zir alguns custos. Conclui-se que as decisões do STF que incentivam
condutas ambientalmente desejadas têm impacto nos custos de tran-
sação das empresas, tanto exercendo um controle de constitucionali-
dade de leis infraconstitucionais que vão de encontro à previsão cons-
titucional do meio ambiente saudável, quanto beneficiando, financei-
ramente, condutas ambiental corretas das empresas.
Palavras-chave: Custos de Transação. Supremo Tribunal Federal. Di-
reito ambiental.

Introdução

O presente estudo busca responder ao seguinte pro-


blema pesquisa: de que forma as decisões do Supremo Tribunal
Federal que incentivam condutas ambientalmente desejadas
podem ter impacto nos custos de transação das empresas?
Os objetivos do trabalho são discutir sobre os custos
de transação das empresas diante da previsão constitucional do
meio ambiente saudável; também verificar as implicações do in-
centivo às condutas ambientalmente desejadas pelas decisões
judiciais para as empresas e identificar o comportamento deci-
sório do STF sobre esses casos, para encontrar resultados e pro-
por resoluções.
Utiliza-se pesquisa do tipo bibliográfica e documen-
tal, com base em revisão de literatura de artigos científicos reti-
rados de revistas indexadas de Qualis A e B e natureza pura e
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 405
descritiva. A abordagem é quantitativa-qualitativa mediante a
utilização da Metodologia de Análise de Decisões (MAD), de-
senvolvida por Roberto Freitas Filho e Thalita Moraes Lima,
para o estudo de casos do último tópico.
A MAD se efetiva em três momentos, na pesquisa ex-
ploratória, no recorte objetivo e no recorte jurisprudencial. A
periodização é a partir da vigência da Constituição Federal de
1988, o que se justifica pelo estabelecimento do direito ao meio
ambiente saudável no Brasil, até o momento de conclusão da
pesquisa.
Este artigo se divide em 3 tópicos. Inicialmente, veri-
ficar-se-á a perspectiva dos custos de transação das empresas
em face das decisões legislativas, judiciais e corporativas, fa-
zendo uma análise do conceito de custos de transação e seus
determinantes para a atividade econômica e observar a impor-
tância dos custos de transação das decisões.
No segundo tópico, objetiva-se traçar um paralelo
entre a atividade econômica e o meio ambiente no Judiciário
brasileira, verificando a utilização do conceito do desenvolvi-
mento sustentável como forma para buscar um relacionamento
equilibrado com o meio ambiente e a economia.
Por fim, no terceiro tópico, uma análise das decisões
da Suprema Corte, visando verificar a influência dos julgamen-
tos que privilegiam condutas ambientalmente desejadas, apli-
cando a vertente do desenvolvimento sustentável, em relação
aos custos de transação.
Esta pesquisa tem relevância teórica, uma vez que
oferece uma contribuição original sobre essa relação das deci-
sões judiciais, principalmente as do STF, que possuem caráter
erga omnes, nos custos de transação de empresas. A relevância
prática e social do trabalho decorre muito da necessidade que
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
406 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

as empresas têm de ter condutas ambientalmente corretas e


equilibrar os custos de transação e isso está diretamente ligado
às decisões judiciais nesse sentido, para uma efetiva modifica-
ção e até uma previsibilidade, que tende a reduzir alguns cus-
tos.

1. A perspectiva dos custos de transação das empresas


em face das decisões legislativas, judiciais e
corporativas

Todas as atividades humanas envolvem custos, se


não há custo, não há atividade e nem mercado. A ideia de custo
de transação foi trazida por Ronald Coase e, à princípio, estava
ligada apenas à Economia. Contudo, a ideia passou a ser em-
pregada em diversas áreas, como no Direito e Economia.
A teoria busca a maximização de resultados eficien-
tes, mais do que redução drástica dos custos, isso tudo a partir
do comportamento das pessoas dentro de uma organização.
Existem diversos custos dentro do conceito de custos de transa-
ção, tal como, custos de contratação, de informação, custos go-
vernamentais, incluído pelo economista Douglas North, e cus-
tos de decisões, sendo elas judiciais, administrativas e legislati-
vas.
Neste tópico, será elucidada uma visão panorâmica
dos custos de transação das empresas, inclusive dentro das po-
líticas públicas. Ademais, será verificada a importância dos cus-
tos ambientais envolvidos nas transações econômicas das em-
presas.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 407
1.1. O conceito de custos de transação e seus determinantes
para as atividades econômicas

Apresentado originalmente pelo economista britâ-


nico Ronald Coase, no artigo intitulado The Nature of the Firm,
publicado em 1937, o termo ‘custos de transação’ foi cunhado
para unir “elementos institucionais da economia capitalista à te-
oria econômica tradicional” (SARTO; ALMEIDA, 2015, p.03).
Coase (1937) indagou sobre os motivos pelos quais a
empresa incorpora atividades que poderia obter a um custo in-
ferior no mercado, supondo a existência de ganhos de eficiência
provenientes da divisão do trabalho. Diante da ideia da teoria
econômica tradicional, que sugeria um mercado "eficiente", Co-
ase observou que há uma série de custos de transação para pro-
ceder no mercado.
Caso o custo para a obtenção de bens e serviços por
uma empresa se tornasse excessivamente elevado, Coase suge-
riu que as empresas se organizassem para produzir interna-
mente o que precisassem e, de alguma forma, afastar esses cus-
tos, denominados “custos de transação”.
A solução atribuída por Coase a este questionamento
estabeleceria um marco para os estudos seguintes sobre Teoria
da Firma, uma vez que instaura a compreensão de que “as rela-
ções entre os agentes econômicos dadas no mercado envolve-
riam custos concretos, referidos, basicamente, como custos de
coleta de informação e negociação e confecção de contratos”
(SARTO; ALMEIDA, 2015, p.05).
Assim, no que se refere aos custos de transação, ape-
sar de não ter especificado que custos seriam considerados cus-
tos de transação, Coase evidenciou que abrangeria os custos de
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
408 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

elaboração de contratos, de monitorar a performance desse con-


trato e de assegurar o cumprimento das obrigações contratuais
(MATIAS; ARRUDA, 2019. p. 8).
Tais custos seriam, na realidade, mais do que apenas
o preço do produto. Essa definição de Coase foi expandida
quando da sua publicação do artigo The Problem of Social Cost,
publicado em 1960, no periódico Journal of Law and Economics.
Coase (1960) propõe que consistiriam também em custos de
busca e informação, custos de barganha, manutenção de segre-
dos comerciais e custos de policiamento e fiscalização. Inclu-
sive, Coase ponderou o custo de remuneração para que redu-
zisse uma atividade nociva.
O economista Oliver Williamson desenvolveu a Teo-
ria do Custo de Transação (TCT), a partir de seus estudo sobre
a origem, evolução e atributos da Corporação Moderna, em
1981. O economista se utilizou das contribuições de Coase sobre
custos de transação, apesar de diferir deste em relação à pers-
pectiva da teoria neoclássica da escolha.
A TCT busca superar a visão tradicional da firma
como uma função de produção inserida em um modelo de con-
corrência perfeita, uma vez que a utilização destes supostos ir-
reais é incapaz de explicar sem distorções o comportamento
econômico (PONDÉ, 1993, p. 187).
Essa teoria considera aspectos importantes das rela-
ções sociais de produção ocorridas dentro e entre empresas,
como o reconhecimento de fatores humanos, transacionais e
ambientais, bem como a existência de imperfeições de mercado
e de custos transacionais, além do reconhecimento do papel das
organizações institucionais que intervêm na tomada de decisões
dos agentes econômicos (SARTO; ALMEIDA, 2015, p. 20).
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 409
Essa teoria oferece contribuições inéditas e indispen-
sáveis para os estudos das micro instituições, tratando o tema
com uma maior complexidade e explicando pormenorizada-
mente à visão atomista tradicional, embora reconhecidamente
não tenha se desvinculado de alguns de seus instrumentos.
Em paralelo, o economista Douglas North (1990) in-
seriu no conceito de custos de transação os custos governamen-
tais, ao comparar as economias capitalista e comunista e perce-
ber variação dos custos de transação, diante do sistema socioe-
conômico aplicado.
Ademais, a visão de que os custos de transação de-
vem ser sempre reduzidos tem desempenhado um papel fun-
damental no apoio a uma ação de maior dependência dos mer-
cados livres (AXELROD, 1984).
Outra definição interessante de custo de transação é
elaborada por Driesen e Ghosh (2005, p. 63) de que são custos
de se ocupar com pessoas e informações, tanto na área privada
quanto na pública.
O estudo analisa, criticamente, o objetivo de minimi-
zar os custos de transação, incluindo os custos de tomada de
decisão legal e conclui que os custos de transação possuem be-
nefícios resultantes deles. Os autores reconhecem como benefí-
cios inerente aos custos de transação a prevenção de transações
ineficientes, possibilitando transações mais equitativos e efici-
entes.
Isso significa que não se deve buscar diminuir am-
plamente os custos de transação, uma vez que a redução dos
custos de transação pode prejudicar significativamente os bene-
fícios corolários e a eficácia da produção. Muitas vezes, é possí-
vel que ocorram benefícios se os custos de transação forem au-
mentados.
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
410 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

A vasta conceituação de custos de transação possibi-


lita uma justa comparação entre alternativas institucionais, uma
vez que ao se preocupar apenas para a diminuição dos custos
de transação privados, desconsiderando eventual elevação nos
custos de transação governamentais, ocorrerá uma imprecisão
na utilização e nos cálculos desses custos (MATIAS; ARRUDA,
2019. p. 10).
Indispensavelmente os custos de transação devem
abranger os custos administrativos, governamentais e os custos
privados associados com as transações de mercado, compreen-
dendo os custos de obtenção de informações necessárias para as
decisões públicas e transações privadas.
Amplamente, argumenta-se que a existência de um
corpo normativo que regulamente as atividades privadas favo-
rece a redução dos custos de transação (MATIAS; ARRUDA,
2019. p. 10).
Assim, considerando-se o conceito de custos de tran-
sação e seus determinantes para as atividades econômicas, im-
porta verificar a importância dos custos de transação de deci-
sões legislativas, judiciais e corporativas.

1.2. A importância dos custos de transação de decisões


legislativas, judiciais e corporativas

De acordo com Douglas North (1990), o direito apre-


senta duas vertentes, uma como sendo um mecanismo social de
implementação coercitiva de decisões, políticas públicas ten-
dentes a superar o problema da coletividade no fornecimento
de bens públicos pela convergência obrigatória de interesses e
outro como sendo uma forma de diminuição de custos de tran-
sação diante de negociações privadas.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 411
A utilização do direito como uma ferramenta interes-
sante para manipular os custos de transação o torna um inter-
mediário muito forte no mercado. A problemática de se ter uma
instituição com esse poder, que consegue impedir a usurpação
da propriedade de outrem e de fazer cumprir obrigações volun-
tariamente assumidas, igualmente é capaz de expropriar e im-
por obrigações (LIRA; MACHADO; ORTIZ, 2013, p. 13). Por
isso, é necessário limitações ao próprio poder do Estado. A
forma que as sociedades encontraram, cada uma a sua maneira,
é a imposição do que se convencionou chamar de separação dos
poderes (NORTH, 1990).
De uma perspectiva econômica, é possível compre-
ender o funcionamento da estrutura tripartite como uma estru-
tura delineada para a imparcialidade dos três poderes, bus-
cando um alinhamento entre o Executivo, o Legislativo e o Ju-
diciário, que é conhecido como alinhamento entre poderes
(GICO JÚNIOR, 2012).
Assim, a formação de um Estado para dar suporte à
sociedade civil e à limitação do poder estatal para proteger e
manter a sociedade civil são os aspectos públicos do problema
fundamental de busca de mecanismos para a criação da coope-
ração entre os agentes, cerne do desafio de desenvolvimento de
todas as nações.
O Poder Judiciário executa um papel fundamental,
seja do ponto de vista público seja do privado. No âmbito pú-
blico, os custos de transação entram as negociações dos inte-
grantes do Legislativo e do Executivo se materializam na forma
de legislação, que depois deve ser aplicada. É o Judiciário que,
ao aplicá-la, garante credibilidade aos acordos políticos e polí-
ticas públicas consubstanciados em lei. No âmbito privado,
compete ao Judiciário proteger os direitos subjetivos atribuídos
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
412 |
condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

a cada cidadão, bem como as alocações de tais direitos realiza-

das pelo próprio agente, diante da elaboração de contratos, por


exemplo .
Não é viável desenvolver um contrato, pensar na me-

lhor estratégia para pôr em prática uma determinada política


pública, comparar instituições prever os efeitos de uma nova le-

gislação sem a atribuição dos custos de transação .


Portanto, o Poder Judiciário influencia diretamente

no funcionamento de empresas, uma vez que deve ser incluído


como custos de transação .

Figura 1 - Função Econômica do Poder Judiciário

Negociação entre cidadãos Contratos


Necessidade de um
aplicador (enforcer)
independente.

Negociação entre politicos Leis

As garantias fazem com que a


riqueza e o poderdo aplicador
Judiciário I não variem com a proteção dos
contratos e aplicação das leis.

Fonte: (LIRA; MACHADO; ORTIZ, 2013, p . 16).

Nesse contexto, a função econômica do Judiciário é


atuar como um terceiro desinteressado capaz de impor às partes
as obrigações assumidas .

A sociedade muda com o tempo, e as características

estruturais, que antes tornavam uma regra jurídica adequada,

podem não mais persistir, ou novas situações que não se mode-


Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 413
lem às antigas regras podem surgir. Essas mudanças geram in-
certezas acerca de como eventuais disputas serão resolvidas pe-
los magistrados. Gico Jr. (2012) se reporta a segurança jurídica
como uma previsibilidade que, por sua vez, permite aos agentes
econômicos saberem e negociarem ex ante a quem fica alocado
o risco de um determinado evento.
Além disso, caso o risco de um determinado evento,
seja ele material, moral ou até ambiental, não tenha sido expres-
samente previsto em um contrato, seja por uma ausência con-
trato, seja por uma lacuna contratual, a segurança jurídica de
uma conduta do julgador permite aos agentes que, na presença
do evento conflituoso, emulem o resultado de um julgamento
sem precisar recorrer ao Judiciário.
Ademais, diante de uma normatização, que possui
enforcemente, por isso, deve ser seguida pelas empresas pública
e privadas, pessoas físicas etc., o Judiciário está como agente ga-
rantidor, trazendo igualmente uma previsibilidade.
Essa segurança jurídica resulta em menores custos de
transação, o que permite que os agentes saibam orientar suas
condutas a fim de gerar mais riqueza e bem-estar. Essa segu-
rança jurídica permite o planejamento de longo prazo, a melhor
alocação de riscos, o desestímulo a determinados comporta-
mentos oportunistas e, em última análise, a cooperação entre os
agentes.
Assim, necessário verificar o incentivo às condutas
ambientalmente desejadas na sociedade e como isso afeta os
custos de transação dentro do panorama econômico.
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
414 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

2. O paralelo entre atividade econômica e o meio


ambiente no judiciário brasileiro

O embate entre o desenvolvimento econômico e a


utilização dos recursos naturais de forma irrefreada gera inú-
meros danos ao meio ambiente, pondo em risco a conservação
da vida na Terra e a preservação do equilíbrio ecológico. Atual-
mente, apesar dos esforços para conter essa degradação ambi-
ental até o momento, observa-se que as medidas utilizadas para
esse fim, não conseguem ter expressão diante do volume de ma-
terial produzido e, consequentemente, descartado diariamente.
A Constituição Federal de 1988 prevê o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito funda-
mental e a defesa do meio ambiente como um princípio consti-
tucional, bem como a livre iniciativa. Diante disso, é importante
a percepção dos custos ambientais envolvidos nas transações
econômicas de empresas e os impactos dos precedentes nos cus-
tos de transação.
O direito ao meio ambiente ecologicamente equili-
brado e sadio é uma prerrogativa constitucionalmente prevista,
conforme artigo 225 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL,
1988), em razão de ser caracterizado como direito fundamental
de terceira geração, que levam a restrições ao exercício de direi-
tos subjetivos (MATIAS; SILVA; MATIAS FILHO, 2017).
O desenvolvimento sustentável é um marco axioló-
gico na interpretação da Constituição Federal e objetiva buscar
o direito à proteção do bem-estar e de um meio ambiente sau-
dável de forma preventiva e não apenas compensatória, bem
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 415

como "visa à manutenção das bases vitais da produção e repro-


dução ao garantir uma relação satisfatória entre o homem e o
meio ambiente" (BELCHIOR; MATIAS, 2009) .

Embora haja uma imprecisão entre a utilização do


termo desenvolvimento sustentável e sustentabilidade e uma

divergência doutrinária sobre a classificação do desenvolvi-

mento sustentável como um princípio ou um conceito, este foi


empregado pela primeira vez quando da Conferência das Na-

ções Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972, em Esto-


colmo .

Nessa ocasião, inquietações acerca do antagonismo


travado entre o direito do meio ambiente e o direito ao desen-

volvimento surgiram e os conflitos gerados entre os interesses

das nações desenvolvidas e daquelas em desenvolvimento (UN,


1972) .
Diante disso, através da Comissão Mundial sobre o

Meio Ambiente e Desenvolvimento, foi publicado, em 1987, o

documento "Nosso Futuro Comum", conhecido como "Relató-

rio Brundtland", no qual foi sugerido o desenvolvimento sus-


tentável para que o ser humano sobreviva indefinidamente e al-

cance o planeta inteiro sem desigualdades .


De acordo com o relatório, o desenvolvimento sus-
tentável seria, essencialmente, um processo de mudança, no

qual a obtenção de recursos, a direção do investimento, a dire-

ção do desenvolvimento tecnológico e as mudanças no sistema

devem ser comprometidos e focados em conciliar todas as ne-


cessidades e expectativas humanas atuais e futuras (UN, 1987) .

Assim, conforme dispõe Cherni (2001 ) , existem 3


sustentáculos intrínsecos ao conceito de desenvolvimento sus-

tentável, seriam o econômico, o social e o ambiental . Significa

garantir a difusão da capacidade produtiva de uma geração à


O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
416 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

outra geração, possibilitando a satisfação das necessidades es-


senciais e a preservação dos recursos naturais, assegurando,
portanto, que o desenvolvimento leve em consideração, além da
dimensão econômica, a coesão social e a capacidade de repro-
dução do meio ambiente.
Percebe-se, então, que o desenvolvimento sustentá-
vel é o meio para atingir a sustentabilidade. Mantém-se um nú-
cleo constante e imutável, incluindo a necessidade de sempre
buscar o equilíbrio, de modo que os homens ocupados tenham
a obrigação de garantir uma relação equilibrada com o meio
ambiente, tanto para manter suas próprias vidas, quanto para
manter as vidas de gerações futuras (OLIVEIRA, 2007).
Portanto, manter uma postura sustentável significa
buscar um relacionamento equilibrado com o meio ambiente a
cada dia. A sustentabilidade deve ser encarada sob uma pers-
pectiva multidimensional, para que esse equilíbrio se estenda a
todas as áreas da vida humana (OLIVEIRA; CECATO, 2016).
Percebe-se que o princípio da sustentabilidade pos-
sui grande importância, porquanto numa sociedade desre-
grada, à deriva de parâmetros de livre concorrência e iniciativa,
é necessário conciliar o processo de desenvolvimento econô-
mico com a preservação dos recursos naturais em busca de um
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Assim, a livre iniciativa, que rege as atividades eco-
nômicas, passou a ser compreendida de forma mais restrita,
buscando-se, na verdade, a coexistência, sem que a ordem eco-
nômica inviabilize um meio ambiente ecologicamente equili-
brado e sem que este obste o desenvolvimento econômico. A
Constituição Federal estabelece que a ordem econômica, fun-
dada na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano,
deverá se regrar pelos ditames de justiça social, respeitando o
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 417
princípio da defesa do meio ambiente, contido no inciso VI do
art. 170:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valori-


zação do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados
os seguintes princípios:
[...]
VI ‒ defesa do meio ambiente, inclusive medi-
ante tratamento diferenciado conforme o impacto
ambiental dos produtos e serviços e de seus pro-
cessos de elaboração e prestação.

O princípio não objetiva impedir o desenvolvimento


econômico. Sabe-se que a atividade econômica, na maioria das
vezes, acarreta alguma degradação ambiental. Todavia, o que
se procura é minimizá-la, pois pensar de forma contrária signi-
ficaria dizer que nenhum empreendimento que venha a afetar
o meio ambiente poderá ser instalado.
Diante dessa ideia de desenvolvimento sustentável,
o Supremo Tribunal Federal na decisão da Ação Direta de In-
constitucionalidade nº 3540, julgada em 2005, fixou de maneira
clara a denominada obrigação constitucional ambiental:

atento à circunstancia de que existe um perma-


nente estado de tensão entre o imperativo do de-
senvolvimento nacional (CF, art.3º, II), de um lado,
e a necessidade de preservação da integridade do
meio ambiente (CF, art. 225), de outro, torna-se es-
sencial reconhecer que a superação desse antago-
nismo, que opõe valores constitucionais relevan-
tes, dependerá da ponderação concreta, em cada
caso ocorrente, dos interesses e direitos postos em
situação de conflito, em ordem a harmonizá-los e
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
418 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

a impedir que se aniquilem reciprocamente,


tendo-se como vetor interpretativo, para efeito da
obtenção do mais justo e perfeito equilíbrio entre
as exigências da economia e da ecologia, o princí-
pio do desenvolvimento sustentável, tal como for-
mulado nas conferencias internacionais (a “Decla-
ração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvol-
vimento de 1992”, p. ex.) e reconhecido em valio-
sos estudos doutrinários que lhe destacam o cará-
ter eminentemente constitucional.

Percebe-se que o desenvolvimento sustentável, cons-


titucionalmente previsto, vem sedimentando a jurisprudência,
principalmente do Supremo Tribunal Federal, de onde advém
os precedentes, e isso está diretamente relacionado aos custos
de transação.
Pelo fato de o Poder Judiciário acabar assumindo um
papel fundamental na formação dos custos de transação, uma
alteração de perspectiva nas decisões também interferirá. O
exercício da jurisdição de maneira ágil e eficiente contribui para
o desenvolvimento econômico.
Segundo Gomes (2021), no panorama das relações
privadas, o aumento da segurança jurídica advinda da maior
previsibilidade do julgamento dos magistrados permite que os
agentes econômicos conheçam e já negociem antecipadamente
os riscos do negócio, diminuindo os custos de transação e ga-
rantindo uma alocação dos riscos mais eficiente. Com isso, au-
menta-se a cooperação entre os agentes econômicos e compor-
tamentos oportunistas são dissuadidos. Por conseguinte, fo-
menta-se um ambiente de negócios mais propício para o incre-
mento da geração de riquezas.
Contudo, diante de uma perspectiva de direito pú-
blico, mais precisamente do direito e proteção ambiental, no
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 419
caso das condutas ambientalmente desejadas, faz-se necessário
verificar os impactos das decisões judiciais que privilegiam es-
sas práticas no que se refere aos custos de transação, na possibi-
lidade de diminuição ou aumento destes.

3. Análise das decisões do Supremo Tribunal Federal que


sugerem condutas ambientalmente desejadas diante dos
custos de transação das empresas

Nesse último tópico, será realizada uma análise das


decisões da Suprema Corte, visando verificar a influência dos
julgamentos que privilegiam condutas ambientalmente deseja-
das, aplicando a vertente do desenvolvimento sustentável, em
relação aos custos de transação.
Para alcançar este objetivo, o desenvolvimento se
dará através da utilização da Metodologia de Análise de Deci-
sões (MAD). Essa metodologia foi desenvolvida por Roberto
Freitas Filho, professor dos Programas de Mestrado e Douto-
rado do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), mestre e
doutor pela Universidade de São Paulo (USP), e coordenador
do Curso de Direito, conjuntamente Thalita Moraes Lima.
Freitas Filho e Lima (2010, p. 03) aduzem que a MAD
possibilita a composição das informações referentes às decisões
proferidas em um determinado contexto, a apuração da coerên-
cia decisória no contexto determinado previamente e a produ-
ção de uma explicação do sentido das decisões a partir de inter-
pretação sobre o processo decisório, a forma das decisões e so-
bre os argumentos produzidos.
A MAD se efetiva em três momentos: na pesquisa ex-
ploratória, no recorte objetivo e no recorte jurisprudencial. Ini
420 | O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

cialmente, o pesquisador deve realizar uma pesquisa explorató-


ria para se habituar à área do problema jurídico tratado, criando
uma base teórica sobre o tema, que já foi realizado nos dois pri-
meiros tópicos. Em um segundo momento, faz-se um recorte
objetivo, uma escolha conceitual dentro da área na qual se en-
contra o problema do pesquisador, identificando problema que
contraponha, pelo menos, dois princípios ou duas teorias, en-
volvendo a aplicação de um conceito ou instituto jurídico. O re-
corte objetivo deve ter relevância teórica e empírica, para que a
pesquisa tenha aplicabilidade e seja socialmente útil.
Por fim, o terceiro passo é o recorte institucional, a
escolha dos órgãos julgadores que serão pesquisados; deve ser
justificada necessariamente pelos critérios de pertinência temá-
tica e relevância decisória.

3.1. Critérios de seleção de decisões

Neste tópico, o recorte objetivo foi feito quando sus-


citada a dúvida sobre de que forma as decisões do Supremo Tri-
bunal Federal que incentivam condutas ambientalmente dese-
jadas podem ter impacto nos custos de transação das empresas.
A delimitação temporal feita para analisar as deci-
sões será da data da vigência da Constituição Federal de 1988,
em razão da previsão ao meio ambiente equilibrado, até 01 ju-
nho de 2022, data de finalização da pesquisa. Para o recorte ins-
titucional, foram selecionados o Supremo Tribunal Federal
(STF), em razão de ser o órgão de cúpula do Poder Judiciário e
ter competência de resguardar a Constituição, conforme defi-
nido no art. 102 da Constituição da República.
No que concerne aos termos que serão utilizados
para filtrar as decisões judiciais cabíveis para a pesquisa, com o
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 421

suporte exploratório feito nos tópicos anteriores, utilizar - se-ão


os termos "desenvolvimento sustentável", "meio ambiente" e

"empresas", uma vez que representam a correlação entre ativi-

dade econômica e a proteção ao meio ambiente .

3.2. Análise quantitativa

Estabelecidos os parâmetros de classificação das de-


cisões judiciais do STF que incentivam às condutas ambiental-

mente desejadas, fez-se um levantamento das decisões com a

pesquisa no sítio eletrônico do STF, no campo de jurisprudên-


cia.

Utilizando, inicialmente, apenas o termo " desenvol-

vimento sustentável”, com aspas, na pesquisa livre, 21 (vinte e


um) acórdãos foram encontrados . Após utilizou - se os termos
“meio ambiente"; "empresas", fazendo uso da partícula bayesi-

ana “ e ”, filtrando-se 24 (vinte e quatro) acórdãos. Por fim, apli-

cou- se os três termos juntamente, utilizando também a partícula


e entre eles, o que gerou 3 (três) resultados .

Evidencia- se que a pesquisa será feita apenas com a

ADI, ADPF, uma vez que possuem efeito erga omnes e efeito re-

troativo, retirando do ordenamento jurídico o ato normativo ou


lei incompatível com a Constituição, sendo os outros resultados

gerados, como Medidas Cautelares, RE, Habeas Corpus, Agra-


vos, inviabilizadores da pesquisa .

Os acórdãos filtrados apenas com o termo "desenvol-


vimento sustentável” não possuíam a expressão na ementa,
apenas nas palavras de indexação . Como os termos "meio am-

biente" e "empresa" são mais abrangentes, resolveu - se adicio-

nar o tópico “ desenvolvimento sustentável” . Assim, elaborou-


O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
422 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

se um banco de dados de 17 (dezessete) acórdãos, conforme Ta-


bela 1.

Tabela 1 ‒ Base de dados coletada


Processo nº Órgão Ministro Data de
Julgador Relator julgamento
ADI 5683 Pleno Roberto 22/04/2022
Barroso
ADPF 749 Pleno Rosa Weber 14/12/2021
ADI 4970 Pleno Cármen Lúcia 15/09/2021
ADI 5489 Pleno Roberto 24/02/2021
Barroso
ADI 5374 Pleno Roberto 24/02/2021
Barroso
ADI 3355 Pleno Edson Fachin 18/08/2020
ADI 5963 Pleno Rosa Weber 29/06/2020
ADI 5685 Pleno Gilmar 16/06/2020
Mendes
ADI 3931 Pleno Cármen Lúcia 20/04/2020
ADI 5480 Pleno Alexandre de 20/04/2020
Moraes
ADI 861 Pleno Rosa Weber 06/03/2020
ADI 6233 Pleno Alexandre de 14/02/2020
Moraes
ADI 5592 Pleno Cármen Lúcia 11/09/2019
ADPF 324 Pleno Roberto 30/08/2018
Barroso
ADPF 101 Pleno Cármen Lúcia 24/06/2009
ADPF 130 Pleno Carlos Britto 30/04/2009
ADI 3583 Pleno Cezar Peluso 21/02/2008
Fonte: Elaboração própria.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 423
Diante das apurações feitas, far-se-á uma análise
qualitativa das decisões coletadas sobre o tema.

3.3. Análise qualitativa das decisões

O resultado da pesquisa jurisprudencial gerou um


banco de dados de 17 (dezessete) acórdãos. Com isso, em uma
observação geral, 13 estão relacionados à algum ODS, que são
os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, instituídos pela
Agenda 2030 (UN, 2015).
A ADPF 130, ADI 6233, ADI 3931, ADI 5685, ADI
5963, ADI 5489, ADI 5374, ADI 5480 e ADI 5683 tratam, exclusi-
vamente, sobre competência para legislar, tributar, sobre apli-
cação da lei da imprensa, etc. Portanto, não é objeto para esta
pesquisa.
A ADPF 101, julgada em 2009, cuja relatora é a Mi-
nistra Cármen Lúcia, dispõe sobre decisões judiciais nacionais
permitindo a importação de pneus usados de Países que não
compõem o Mercosul. A relatora entendeu, nesse caso, pela ne-
cessidade de destinação ecologicamente correta dos pneus usa-
dos para submissão dos procedimentos às normas constitucio-
nais e legais vigentes. Ao final, jugou-se procedente a ADPF,
não se aplicando, entretanto, o efeitoextunc.
Assim, é possível perceber que, ao não aplicar o
efeito retroativo, as empresas que tivesse importado os produ-
tos plásticos não teriam seus custos de transação afetados, po-
rém a destinação não poderia mais ocorrer, em respeito à previ-
são constitucional do meio ambiente equilibrado (art. 225 da
CF/88). Na ementa do referido acordão, é relatado:
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
424 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

8. Demonstração de que: a) os elementos que com-


põem o pneus, dando-lhe durabilidade, é respon-
sável pela demora na sua decomposição quando
descartado em aterros; b) a dificuldade de seu ar-
mazenamento impele a sua queima, o que libera
substâncias tóxicas e cancerígenas no ar; c) quando
compactados inteiros, os pneus tendem a voltar à
sua forma original e retornam à superfície, ocu-
pando espaços que são escassos e de grande valia,
em especial nas grandes cidades; d) pneus inserví-
veis e descartados a céu aberto são criadouros de
insetos e outros transmissores de doenças; e) o alto
índice calorífico dos pneus, interessante para as in-
dústrias cimenteiras, quando queimados a céu
aberto se tornam focos de incêndio difíceis de ex-
tinguir, podendo durar dias, meses e até anos; f) o
Brasil produz pneus usados em quantitativo sufi-
ciente para abastecer as fábricas de remoldagem
de pneus, do que decorre não faltar matéria prima
a impedir a atividade econômica.
9. Ponderação dos princípios constitucionais: de-
monstração de que a importação de pneus usados
ou remoldados afronta os preceitos constitucio-
nais de saúde e do meio ambiente ecologicamente
equilibrado (arts. 170, inc. I e VI e seu parágrafo
único, 196 e 225 da Constituição do Brasil).

Já a ADPF 324 está correlacionada ao ODS 8 (Traba-


lho decente e crescimento econômico) e julgou procedente a
ação para assentar a licitude da terceirização de atividade-fim
ou meio. A decisão afirma que a terceirização das atividades-
meio ou até das atividades-fim de uma empresa “tem amparo
nos princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre con-
corrência, que asseguram aos agentes econômicos a liberdade
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 425
de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência
econômica e competitividade”.
Por fim, a ADPF 749, julgado em 2021, declarou a in-
constitucionalidade da Resolução CONAMA nº 500/2020, que
dispunha sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de
Preservação Permanente de reservatórios artificiais e o regime
de uso do entorno e revogou as Resoluções CONAMA nºs
284/2001, 302/2002 e 303/2002. Contudo, reconheceu a constitu-
cionalidade da Resolução CONAMA nº 499/2020, que dispõe
sobre o licenciamento da atividade de coprocessamento de resí-
duos em fornos rotativos de produção de clínquer.
No que diz respeito às Ações Diretas de Inconstituci-
onalidade filtradas, a ADI 3583, de relatoria do Ministro Cezar
Peluso, julgada em 2008, declarou a inconstitucionalidade da lei
estadual que estabelece como condição de acesso a licitação pú-
blica, para aquisição de bens ou serviços, que a empresa lici-
tante tenha a fábrica ou sede no Estado-membro.
Nesse mesmo sentido, em 2020, a ADI 861, de relato-
ria da Ministra Rosa Weber julgou parcialmente procedente o
pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucio-
nalidade apenas do art. 1º, III, e da expressão “priorizar as em-
presas instaladas no Estado e”, contida no art. 3º, caput, da Lei
nº 64/1993 do Estado do Amapá, em razão da proteção do meio
ambiente e responsabilidade por danos ao meio ambiente.
Os acórdão orientam que o controle do esforço de
pesca em consideração ao poder de pesca, o desempenho das
embarcações e o volume da fauna acompanhante desperdiçada,
estipularem limites de aproveitamento da fauna acompanhante
à pesca industrial de arrasto de camarões e veicularem normas
seguem a proporcionalidade e os imperativos de preservação e
defesa do meio ambiente mediante o controle do emprego de
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
426 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

técnicas, métodos e práticas potencialmente danosos à fauna


(arts. 170, VI, e 225, § 1º, V e VII, da CF) e não destoam das nor-
mas gerais sobre a matéria objeto da legislação federal (Lei nº
11.959/2009).
A ADI 5592, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia,
privilegiou apenas o meio ambiente, ao julgar parcialmente pro-
cedente a ADI, reconhecendo que, apesar de submeter a incor-
poração do mecanismo de dispersão de substâncias químicas
por aeronaves para combate ao mosquito transmissor do vírus
da dengue, do vírus chikungunya e do vírus da zika à autoriza-
ção da autoridade sanitária e à comprovação de eficácia da prá-
tica no combate ao mosquito.
Nesse caso, o legislador assumiu a positivação do
instrumento sem a realização prévia de estudos em obediência
ao princípio da precaução, o que pode acarretar uma violação à
sistemática de proteção ambiental contida no artigo 225 da
Constituição Federal.
Por fim, a ADI 3355 versa sobre a obrigação das em-
presas de fibrio-cimentos pelos danos causados à saúde dos tra-
balhadores e meio ambiente, privilegiam do meio ambiente
equilibrado e saudável e proteção e defesa da saúde.
O Ministro-relator Fachin aduz que são relevantes os
argumentos trazidos pelas partes na ADI, uma vez que não se
discute que há um aparente conflito entre o direito econômico à
exploração de um determinado mineral e o direito à saúde e ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Alega que o texto constitucional, no entanto, afasta,
no art. 170, VI, uma interpretação que contraponha ambos os
direitos, dispondo a ordem econômica não apenas para valori-
zar o trabalho humano e a livre iniciativa como também promo-
ver a defesa do meio ambiente. Não sendo possível, portanto,
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 427
imaginar que um dos direitos possa excluir o outro. A questão
da referida ADI é a de examinar se a exploração admitida é com-
patível com o texto constitucional, que foi considerada, deter-
minando a responsabilidade do Estado e das empresas na ex-
tração, industrialização, utilização, comercialização e trans-
porte do asbesto/amianto e dos produtos que o contenham, bem
como das fibras naturais e artificiais, de qualquer origem, utili-
zadas para o mesmo fim, conforme a Lei 9.055/95.

Considerações finais

Diante do exposto, retoma-se o problema de pes-


quisa do presente estudo: de que forma as decisões do Supremo
Tribunal Federal que incentivam condutas ambientalmente de-
sejadas podem ter impacto nos custos de transação das empre-
sas?
Com base nas investigações realizadas, conclui-se
que as decisões do STF que incentivam condutas ambiental-
mente desejadas têm impacto nos custos de transação das em-
presas, tanto exercendo um controle de constitucionalidade de
leis infraconstitucionais que vão de encontro à previsão consti-
tucional do meio ambiente saudável, quanto beneficiando, fi-
nanceiramente, condutas ambiental corretas das empresas.
Isso impacta diretamente nos custos de transação
para as empresas, que devem verificar o equilíbrio nas suas con-
dutas e atividades perante o meio ambiente.
A Constituição Federal de 1988 prevê o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito funda-
O impacto das decisões do Supremo Tribunal Federal que sugerem
428 | condutas ambientalmente desejadas nos custos de transação empresariais

mental e a defesa do meio ambiente como um princípio consti-


tucional. Diante disso, é importante a percepção dos custos am-
bientais envolvidos nas transações econômicas de empresas.
Conforme análise exploratório, verificou-se que o
conceito de custos de transação são valores que as pessoas gas-
tam para negociar ou cumprir um contrato, não são os custos
diretamente relacionados com o contrato, para a execução. São
os custos que tangenciam o cumprimento do contrato.
Esses custos, de forma geral, são negligenciados, po-
rém estes afetam diretamente o preço, o lucro, o custo final de
uma atividade. A formalidade estará diretamente ligada ao
risco. Quanto maior o risco, mais se gasta com custos de transa-
ção, para que se torne efetivo aquela atividade.
A Suprema Corte vem ampliando o reconhecimento
de características especiais do bem ambiental, sob a luz do ar-
tigo 225 da Constituição Federal de 88, em que estão previstos
igualmente deveres fundamentais.
Os precedentes reconhecem o dever de preservação
do meio ambiente e reparação de danos ambientais a todos: seja
Poder Público e coletividade, não podendo o proprietário se exi-
mir de responsabilização em razão de degradação anterior.
Essas decisões em prol do meio ambiente saudável
geram custos de transação, sejam custos de condenação para
tentar reparar o dano ambiental, sejam custos para reforma de
condutas, a fim de evitar algum tipo de dano e de condenações.
Vê-se que o é possível perceber uma previsibilidade
nas decisões do STF que versam sobre matéria ambiental. Isso
acarreta o aumento da segurança jurídica e permite que os agen-
tes econômicos conheçam e se preparem para os riscos do negó-
cio, diminuindo os custos de transação e garantindo uma aloca-
ção dos riscos mais eficiente.
Amanda Rodrigues Lavôr e Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 429
Referências

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Inc. Publisher, 1984, capítulo VII.

BELCHIOR, Germana Parente Neiva; MATIAS, João Luis No-


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430 I
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THE IMPACT OF SUPREME FEDERAL COURT
JUDICIAL DECISIONS THAT SUGGEST
ENVIRONMENTALLY DESIRED CONDUCT ON
COMPANIES' TRANSACTION COSTS
Abstract: How can the decisions of the Federal Supreme Court that
encourage environmentally desired behaviors impact on the transac-
tion costs of companies? Bibliographic and documentary research is
used, based on a literature review of scientific articles, pure and de-
scriptive nature. The approach is quantitative-qualitative through the
use of the Decision Analysis Methodology (MAD). This research has
theoretical and practical relevance, as it offers an original contribution
on this relationship of judicial decisions, especially those of the Su-
preme Court, which have an erga omnes character, in the transaction
costs of companies and stems much from the need that companies
have to have environmentally friendly conducts. It is concluded that
the decisions of the Supreme Court that encourage environmentally
desirable conducts have an impact on the transaction costs of compa-
nies, both exercising a control of constitutionality of infraconstitu-
tional laws that go against the constitutional provision of a healthy
environment, and benefiting, financially, environmental conducts.
Keywords: Transaction Costs. Supreme Federal Court. Environmen-
tal Law.
CAPÍTULO XIV.
PROCESSO DE MEDIDA PROVISÓRIA NA
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS QUE RESULTOU NA
CONTAGEM EM DOBRO DO TEMPO DE
PRISÃO

Filipe Brayan Lima Correia

DOI: 10.29327/5341937.1-14

Resumo: A Corte Interamericana de Direitos Humanos desempenha


um papel significativo na prevenção de violações recorrentes das
liberdades fundamentais por parte dos Estados membros. Neste
artigo, conduzimos uma análise qualitativa da submissão do Brasil à
Corte Interamericana de Direitos Humanos devido às repetidas
infrações no sistema carcerário de Curado. Ao examinar as sessões da
CIDH, procuramos elucidar o processo de tratamento de medidas
provisórias, a postura do Estado acusado durante o processo, a
evolução do tema após a intervenção da Corte e a eficácia das suas
decisões. Concluímos que, apesar das tentativas do Estado
representado de se eximir das suas responsabilidades, a atuação da
Corte começou com discussões e consultas que não produziram
resultados tangíveis, progredindo posteriormente para medidas
diretas e vinculativas. A metodologia empregada baseou-se em
pesquisa bibliográfica e na análise das resoluções da CIDH, que
contêm um resumo minucioso das discussões e resoluções de cada
sessão, classificando, assim, o artigo como descritivo e exploratório.
Por meio da análise das sessões, nosso objetivo foi destacar a evolução
da atuação da Corte e a eficácia das suas decisões.
Filipe Brayan Lima Correia | 435
Palavras-chaces: Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Curado. Medidas provisórias. Sistema Carcerário. Sistema
Internacional de Proteção a Direitos Humanos.

Introdução

O aumento da preocupação global com os direitos


humanos ganhou força devido às atrocidades ocorridas durante
a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), perpetradas pelo movi-
mento nazista, que seguia valores genocidas estabelecidos na
Constituição Alemã.
Diante das barbáries cometidas pelo regime totalitá-
rio da Alemanha nazista, o mundo se viu diante da necessidade
de não apenas proteger os direitos internos de cada nação, mas
também de buscar uma proteção legal que ultrapassasse as
fronteiras nacionais, superando questões de soberania, a fim de
evitar que tragédias semelhantes ao Holocausto se repetissem
em outras partes do mundo. É importante ressaltar que a ascen-
são e o avanço do regime nazista na Alemanha contaram com o
apoio do Estado e da legislação, que deveriam, em teoria, atuar
como guardiões da dignidade humana, mas acabaram desem-
penhando o papel de promotores dessa tragédia. Como William
Paiva Marques Júnior ensina:
O reconhecimento do Direito Internacional dos Di-
reitos Humanos deu-se após a Segunda Guerra Mundial, ante a
comprovação de imensuráveis violações de direitos humanos
cometidas pelos regimes nazifascistas em face de grupos mino-
ritários, tais como: judeus, ciganos, homossexuais, pessoas com
deficiência, prisioneiros de guerra. A necessidade da reconstru-
ção de uma nova ordem internacional, na qual se adotassem os
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
436 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

direitos humanos como o paradigma ético-jurídico fundante de-


flagrou o início de um sistema global e dos sistemas regionais
de proteção de direitos humanos, entre os quais avulta em im-
portância o Sistema Interamericano de Direitos Humanos
(SIDH), criado com o escopo de aplicar e interpretar a Conven-
ção Americana sobre Direitos Humanos, o que reverbera no
plano da internacionalização e universalização dos direitos hu-
manos na região dos Estados americanos. (2019, p 28)
Após o trauma da Segunda Guerra Mundial, líderes
globais uniram esforços para criar uma entidade internacional
capaz de monitorar o cumprimento de normas fundamentais
para a humanidade. Dessa colaboração surgiu a Organização
das Nações Unidas (ONU) em 1945. Com o propósito de esta-
belecer princípios essenciais que norteariam as relações interna-
cionais sob a supervisão da ONU, foi redigida em 1948 a Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A essência da
DUDH era a promoção da paz, a prevenção de conflitos, a eli-
minação do preconceito e a busca pela igualdade entre os seres
humanos. Abaixo, apresento a transcrição dos três primeiros ar-
tigos da DUDH:

Artigo 1
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotados de razão e cons-
ciência e devem agir em relação uns aos outros
com espírito de fraternidade.
Artigo 2
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os
direitos e as liberdades estabelecidos nesta Decla-
ração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou
de outra natureza, origem nacional ou social, ri-
queza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Filipe Brayan Lima Correia | 437
2. Não será também feita nenhuma distinção fun-
dada na condição política, jurídica ou internacio-
nal do país ou território a que pertença uma pes-
soa, quer se trate de um território independente,
sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a
qualquer outra limitação de soberania.
Artigo 3
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e
à segurança pessoal.
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948)

O texto da Declaração Universal dos Direitos Huma-


nos (DUDH) é, sem dúvida, uma resposta contundente aos hor-
rores ocorridos durante o Holocausto, um dos capítulos mais
sombrios da história da humanidade. Esse período cruel teste-
munhou a perda de seis milhões de vidas humanas, incluindo
judeus, ciganos, pessoas com deficiência, homossexuais e outras
minorias perseguidas. O Holocausto é recordado não apenas
pela impressionante escala de mortes, mas também pelos méto-
dos desumanos usados, como tortura, câmaras de gás, execu-
ções em massa e experimentos médicos cruéis. Essas atrocida-
des enfatizaram a imperativa necessidade da comunidade glo-
bal reconhecer e afirmar a dignidade intrínseca de todos os se-
res humanos como titulares de direitos.
Quando examinamos os objetivos da DUDH, vemos
que a Declaração atua como um farol de esperança. Ela busca
assegurar que os direitos fundamentais sejam universalmente
reconhecidos e respeitados, independentemente de raça, reli-
gião, nacionalidade, origem étnica, gênero ou qualquer outra
característica. Seu objetivo é estabelecer uma base sólida para a
paz, justiça e dignidade em todo o mundo, estabelecendo pa-
drões éticos e morais para a convivência global. A DUDH tam-
bém serve de inspiração para ação coletiva em prol dos direitos
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
438 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

humanos, instando os Estados e a sociedade civil a colaborarem


para proteger e promover esses direitos fundamentais.
Em resumo, a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos representa uma firme resposta às atrocidades do Holo-
causto, uma afirmação da dignidade de todos os seres humanos
e um conjunto de princípios que guia a humanidade em direção
a um futuro mais justo e compassivo. Ela nos lembra que, ape-
sar das nossas diferenças, compartilhamos uma humanidade
comum e o compromisso de proteger os direitos inalienáveis de
todos os indivíduos em todo o mundo. Como Mazzuoli destaca
em suas palavras:
O que se deve entender é que a Declaração Universal
visa estabelecer um padrão mínimo para a proteção dos direitos
humanos em âmbito mundial, servindo como paradigma ético
e suporte axiológico desses mesmos direitos. Assim, por ter afir-
mado o papel dos direitos humanos, pela primeira vez e em es-
cala mundial, a Declaração de 1948. (2014, p 70).
Com o propósito de estabelecer uma instituição de-
dicada à resolução de disputas, a Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos (DUDH) deu origem ao Tribunal Internacional
de Justiça, conhecido também como Corte Internacional de Jus-
tiça de Haia. A principal missão deste tribunal é adjudicar lití-
gios entre Estados soberanos com base no direito internacional
e nos princípios da DUDH. De acordo com as palavras de Flávia
Piovesan:
Surge o Tribunal Penal Internacional como aparato
complementar às cortes nacionais, com o objetivo de assegurar
o fim da impunidade para os mais graves crimes internacionais,
considerando que, por vezes, na ocor-tência de tais crimes, as
instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na realiza
Filipe Brayan Lima Correia | 439
ção da justiça. Afirma-se, desse modo, a responsabilidade pri-
maria do Estado com relação ao julgamento de violações de di-
reitos humanos, tendo a comunidade internacional a responsa-
bilidade subsidiária. (2015, p 313).
Após a fundação da ONU, seus membros passaram
a realizar encontros com o propósito de criar mecanismos seme-
lhantes adaptados às particularidades de cada continente. Isso
culminou na criação da Convenção Europeia de Direitos Huma-
nos em 1954, seguida pela Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em 1969 e, posteriormente, pela Carta Africana dos
Direitos do Homem e dos Povos em 1998.
Dado o grande número de instrumentos internacio-
nais de proteção dos direitos humanos disponíveis, este artigo
se concentrará exclusivamente nas questões relacionadas aos
direitos humanos que foram levadas à Corte Interamericana de
Direitos Humanos devido a violações cometidas pelo Estado
brasileiro.
A Convenção Americana, também chamada de Pacto
de San José da Costa Rica, representa um marco significativo na
preservação dos direitos humanos nas Américas. Sua aborda-
gem ampla vai além das questões ligadas aos direitos civis e po-
líticos, abrangendo também as esferas econômicas, culturais e
sociais.
Embora tenha sido adotada pelas Organizações dos
Estados Americanos em 1969, o Brasil demorou consideravel-
mente para formalmente aceitá-la, o que só ocorreu em 1992,
com o reconhecimento de sua jurisdição em 1998. Essa demora
pode ser atribuída, em grande parte, ao período de ditadura mi-
litar que o Brasil atravessou. Durante essa época, divergências
ideológicas e políticas tornaram incompatíveis os princípios e
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
440 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

direitos garantidos pela Convenção Americana com o governo


autoritário vigente na nação.
No entanto, a formalização e o aceite da jurisdição da
Convenção marcaram um passo significativo na consolidação
da democracia no Brasil. Isso refletiu o compromisso do país em
respeitar e fomentar os direitos humanos, mesmo diante de de-
safios históricos. Hoje, a Convenção Americana desempenha
um papel central na proteção e promoção dos direitos funda-
mentais dos cidadãos brasileiros e de toda a região, contribu-
indo para um ambiente mais equitativo e justo.
Da mesma forma que a Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos estabeleceu um órgão para julgar as nações, o
Pacto de San José estabelece em seu estatuto todo um sistema
de proteção dos direitos, com a atuação de instâncias como a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a
Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). No
próprio texto do pacto americano, são delineadas a estrutura
desses órgãos, suas funções, competências e procedimentos.
Dado que este artigo tem como foco a análise das de-
cisões provisórias, geralmente atribuídas à Corte Interameri-
cana de Direitos Humanos, concentraremos nossa atenção nesta
instância. Com relação à CIDH, conforme ensinado por Héctor
Fix-Zamudio:
De acordo com o disposto nos arts. 1° e 2° de seu Es-
tatuto, a Corte Interamericana possui duas atribuições essenci-
ais: a primeira, de natureza consultiva, relativa à interpretação
das disposições da Convenção Americana, assim como das dis-
posições de tratados concernentes à proteção dos direitos hu-
manos nos Estados Americanos; a segunda, de caráter jurisdici-
onal, referente à solução de controvérsias que se apresentem
Filipe Brayan Lima Correia | 441
acerca da interpretação ou aplicação da própria Convenção.
(1993, p 177)
No dizer de Thomas Buergenthal:

A Convenção Americana investe a Corte Intera-


mericana em duas atribuições distintas. Uma en-
volve o poder de adjudicar disputas relativas à de-
núncia de que um Esta-do-parte violou a Conven-
ção. Ao realizar tal atribuição, a Corte exerce a
Chamada jurisdição contenciosa. A outra atribui-
ção da Corte é a de interPretar a Convenção Ame-
ricana e determinados tratados de direitos huma-
nos, em procedimentos que não envolvem a adju-
dicação para fins específicos. Esta é a jurisdição
consultiva da Corte Interamericana. (1982, p 460)

No entanto, as medidas provisórias abordadas neste


artigo representam uma modalidade de procedimento que não
se alinha com as descrições mencionadas anteriormente, sendo
estabelecidas através da jurisprudência desenvolvida pela pró-
pria Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Ao examinarmos as sessões da CIDH, nosso objetivo
é apresentar o processo de tramitação das medidas provisórias,
o comportamento do Estado denunciado durante o processo, a
evolução do caso após a intervenção da Corte e a eficácia das
decisões proferidas. A metodologia adotada baseou-se na pes-
quisa bibliográfica e na análise das resoluções da CIDH, que
contêm um resumo detalhado das discussões e determinações
de cada sessão. Isso classifica o presente capítulo como um es-
tudo descritivo e exploratório.
Através da análise de cada sessão, buscamos desta-
car a progressão da atuação da Corte e a eficácia de suas deci-
sões ao longo do tempo.
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
442 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

1. Medidas provisórias na CIDH

Após a apresentação dos sistemas de controle de di-


reitos humanos, é fundamental adquirir um entendimento mais
profundo das particularidades dos processos de medidas pro-
visórias analisados por este artigo.
No que diz respeito ao tema do sistema carcerário
brasileiro, embora tenha havido diversos pronunciamentos da
Corte Interamericana a respeito, ele nunca foi tratado como uma
denúncia contenciosa. Isso pode ser atribuído a dois fatores: pri-
meiro, o fato de o Estado brasileiro sempre reconhecer as viola-
ções alegadas e, segundo, porque tais alegações costumam ser
tratadas como medidas provisórias. Quando uma denúncia en-
volve situações de extrema gravidade e urgência que deman-
dam ação imediata para prevenir danos irreversíveis às pessoas,
a Corte costuma aceitá-la como uma medida provisória. O Pacto
de San José aborda essa questão da seguinte forma:
Artigo 63 - 1. Quando decidir que houve violação
de um direito ou liberdade protegidos nesta Con-
venção, a Corte determinará que se assegure ao
prejudicado o gozo do seu direito ou liberdade vi-
olados. Determinará também, se isso for proce-
dente, que sejam reparadas as consequências da
medida ou situação que haja configurado a viola-
ção desses direitos, bem como o pagamento de in-
denização justa à parte lesada.
2. Em casos de extrema gravidade e urgência, e
quando se fizer necessário evitar danos irrepará-
veis às pessoas, a Corte, nos assuntos de que esti-
ver conhecendo, poderá tomar as medidas provi-
sórias que considerar pertinentes. Se se tratar de
assuntos que ainda não estiverem submetidos ao
Filipe Brayan Lima Correia | 443
seu conhecimento, poderá atuar a pedido da Co-
missão.
(ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICA-
NOS, OEA. COMISSÃO INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS, 2009)

Embora o dispositivo mencione a medida provisória


como uma forma de decisão urgente, o que se observa na prá-
tica perante a Corte é a transformação da denúncia em um tipo
de processo designado como medida provisória, com caracte-
rísticas distintas.
Na realidade, devido à necessidade premente de
ação dos mecanismos interamericanos, quando um caso relaci-
onado ao sistema carcerário é apresentado à Comissão, esta en-
caminha diretamente para a Corte sem emitir um julgamento
prévio, fazendo apenas recomendações. Subsequentemente, pe-
los mesmos motivos mencionados anteriormente, a Corte tende
a imediatamente emitir recomendações ao Estado envolvido na
medida provisória, a fim de evitar danos irreversíveis às pes-
soas.
Outro aspecto singular no tratamento das medidas
provisórias, especialmente aquelas relacionadas ao sistema car-
cerário brasileiro, diz respeito ao seu desfecho. Nas denúncias
contenciosas, que envolvem um procedimento diferenciado de
coleta de evidências e manifestação das partes, há uma decisão
final ao final do processo. Porém, no caso das medidas provisó-
rias, não se busca uma instrução para julgamento nem mesmo
um veredito; em vez disso, sua finalidade, além do caráter cau-
telar, é de natureza protetora.
Quando a Corte concede uma medida provisória em
um assunto, ela passa a monitorá-lo, buscando entender suas
particularidades e propondo soluções com o intuito constante
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
444 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

de melhorias. Ao contrário de um processo contencioso, que


culmina em uma decisão final que determina qual parte está
correta, na medida provisória, mesmo que se reconheça que as
alegações de uma parte prevalecem sobre as da outra, o assunto
não é encerrado. Isso ocorre porque o dever de proteção da
Corte se estende até que o problema seja completamente resol-
vido.
A partir do momento em que um tópico é abordado
por meio de uma medida provisória, a Corte assume a respon-
sabilidade de monitorá-lo, buscando seu progresso na socie-
dade. Após cada reunião, são registrados os avanços e metas a
serem alcançadas pelo Estado em questão, que serão reavalia-
dos na próxima reunião e assim por diante, enquanto persistir
a insatisfação da Corte em relação ao caso.
Outro ponto relevante é o funcionamento das medi-
das provisórias na prática. Quando a Corte ou Comissão deter-
mina uma medida específica para um Estado, as reuniões do
órgão internacional têm o propósito de solicitar informações, re-
alizar uma análise diagnóstica, avaliar progressos ou retroces-
sos e estabelecer novos compromissos para o Estado denunci-
ado resolver o problema.
Ao examinar as medidas provisórias às quais o Brasil
foi submetido, a natureza protetora, além de ser explicitamente
mencionada nas votações, pode ser observada nas recomenda-
ções finais de cada resolução. Independentemente de o Estado
denunciado ter implementado melhorias ou de os representan-
tes terem suas argumentações reconhecidas, sempre se faz a so-
licitação de novas medidas para aprimorar as condições do as-
sunto, bem como a apresentação de novos dados para aprofun-
dar a análise da Corte. Em todas as reuniões conduzidas pela
Filipe Brayan Lima Correia | 445
Corte, é elaborado um relatório que resume tudo o que foi dis-
cutido sobre o tema e oferece uma análise da situação atual, in-
cluindo novas recomendações e exigências. Abaixo, encontra-se
um trecho retirado da resolução da Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos, datada de 22 de maio de 2014, referente à me-
dida provisória relacionada ao Brasil, relativa ao Complexo Pri-
sional do Curado:

4. En el Derecho Internacional de los Derechos Hu-


manos las medidas provisionales tienen un carác-
ter no sólo cautelar, en el sentido de que preservan
una situación jurídica, sino fundamentalmente tu-
telar, por cuanto protegen derechos humanos, en
la medida en que buscan evitar daños irreparables
a as pessoas. A ordem de adoção de medidas é
aplicável desde que atendidos os requisitos bási-
cos de extrema gravidade e urgência e a prevenção
de danos irreparáveis às pessoas. Dessa forma, as
medidas provisórias tornam-se uma verdadeira
garantia jurisdicional de caráter preventivo3.
(CIDH, 2014)

Através de um profundo conhecimento dos sistemas


de proteção dos direitos humanos e da compreensão dos proce-
dimentos de medidas provisórias, torna-se possível realizar
uma análise mais aprofundada dos casos de maior relevância
que permanecem sob a jurisdição da Corte Interamericana de
Direitos Humanos. O objetivo desta análise é destacar os pro-
gressos notáveis no campo dos direitos humanos e as decisões
impactantes que a Corte proferiu ao longo do tempo.
Contudo, é importante salientar uma significativa li-
mitação no acesso à documentação histórica da Corte Interame-
ricana. Os registros das reuniões mais antigas, frequentemente
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
446 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

denominados como resoluções, não estão disponíveis no site da


Corte. Essa falta de documentação pode dificultar a análise crí-
tica dos primeiros momentos da Corte e sua evolução ao longo
dos anos.

2. Análise do caso Complexo Prisional de Curado ‒ PE


pelo Sistema Interamericano

O primeiro registro documentado sobre a submissão


da Penitenciária de Curado aos órgãos interamericanos encar-
regados da proteção dos direitos humanos data de 4 de agosto
de 2011. Nessa data, a Comissão recebeu uma denúncia apre-
sentada por várias organizações, incluindo a Justiça Global, a
Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de
Harvard, a Pastoral Carcerária de Pernambuco, o Serviço Ecu-
mênico de Militância nas Prisões e a Pastoral Carcerária Nacio-
nal. Essa denúncia continha informações alarmantes, relatando
cinquenta e cinco mortes violentas, casos de tortura e episódios
de motins na penitenciária.
Ao receber essa denúncia, a Comissão tomou medi-
das provisórias não especificadas, conforme documentação dis-
ponível, e passou a acompanhar o assunto em reuniões anuais.
No ano de 2012, a situação se agravou com a morte de um fun-
cionário da penitenciária e ocorrência de mais motins. Já em
2013, houve o registro de mais seis mortes de detentos e cin-
quenta e cinco motins (Convenção Interamericana de Direitos
Humanos - CIDH, Resolução de 22 de maio de 2014, p. 2).
No ano seguinte, em 2014, foram feitas mais de cin-
quenta denúncias de violência, incluindo espancamentos,
agressões contra visitantes, uso de choques elétricos, cães para
Filipe Brayan Lima Correia | 447
tortura, ameaças de morte, tentativas de homicídio com armas
brancas, uso indiscriminado de gás e balas de borracha, violên-
cia sexual individual e coletiva, bem como a presença de "cha-
veiros". Também houve preocupações relatadas em relação ao
atendimento médico dos detentos, embora esse aspecto tenha
sido inicialmente tratado de forma secundária (CIDH, Resolu-
ção de 07 de outubro de 2015, p. 6).
Os "chaveiros" eram prisioneiros selecionados pela
administração do sistema penitenciário para manter a disci-
plina e controlar a segurança dos demais detentos. Estes indiví-
duos detinham as chaves das celas e decidiam quem tinha per-
missão para circular na penitenciária, incluindo o controle de
visitantes. Essa situação ilustrava a ausência de controle estatal
devido à falta de pessoal, equipamentos, infraestrutura e orga-
nização, o que era incontestável diante da superlotação. Em fe-
vereiro de 2014, a Penitenciária de Curado abrigava 6.444 de-
tentos, enquanto sua capacidade era de apenas 1.514 (Conven-
ção Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, Resolução de
22 de maio de 2014, p. 3).
Apesar da gravidade dos problemas identificados, o
governo brasileiro reconheceu a necessidade de melhorias es-
truturais, mas permaneceu em silêncio em relação às demais de-
núncias de violência. Posteriormente, o Estado apresentou pla-
nos de educação contra a tortura e reestruturação, mas essas
medidas não resultaram em melhorias concretas. Diante da ine-
ficácia das ações adotadas, a Comissão solicitou a intervenção
da Corte no caso.
Em 22 de maio de 2014, a Corte realizou uma reunião
para examinar o caso de Curado. Durante os pronunciamentos
da Comissão, todos os relatórios, denúncias e evidências acu
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
448 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

mulados desde o início da medida provisória foram apresenta-


dos. O Estado argumentou que a medida provisória era exces-
siva, que as denúncias de violência não foram devidamente in-
vestigadas pela Comissão e que já haviam sido tomadas medi-
das para resolver outros problemas. A Corte emitiu o seguinte
pronunciamento:
A esse respeito, a Corte considera que as medidas
adotadas pelo Estado até a presente, incluindo os mutirões de
saúde denunciados, não parecem ser suficientes para proteger
a vida e a integridade física dos internos do Complexo Curado.
Em relação aos casos de doenças contagiosas, o Estado deve to-
mar medidas urgentes para garantir atenção médica adequada
aos enfermos e também garantir que outros internos e pessoas
presentes naquela prisão não sejam infectados. (CIDH, 2014)
Ao final da reunião, a Corte decidiu manter as medi-
das provisórias que haviam sido anteriormente adotadas pela
Comissão e assumiu a responsabilidade de supervisionar o as-
sunto relacionado ao Complexo Prisional do Curado. A pró-
xima reunião para abordar esse tema foi agendada para 7 de
outubro de 2015.
Durante essa segunda reunião, o Estado, em confor-
midade com as exigências das medidas provisórias, apresentou
planos destinados a abordar questões como a melhoria das con-
dições de saúde emergenciais, a redução da superlotação, a eli-
minação de armas, a garantia de segurança e respeito pela vida
e integridade pessoal dos detentos, a eliminação de práticas hu-
milhantes, a adaptação da infraestrutura para atender grupos
vulneráveis e a criação de mecanismos para monitorar o cum-
primento das medidas provisórias. É importante destacar que,
ao contrário das manifestações anteriores do Estado no pro-
cesso, nas quais algumas delas nem sequer receberam resposta,
Filipe Brayan Lima Correia | 449
nessa reunião foi apresentado um plano detalhado para abordar
os problemas, indicando uma mudança de postura do Estado
em relação ao processo.
Apesar dos esforços demonstrados nos planos apre-
sentados, a Corte parabenizou o Estado pelas melhorias realiza-
das, mas, levando em consideração as evidências apresentadas
pela Comissão, considerou que todos os planos ainda tinham
falhas em sua implementação que resultariam na manutenção
do estado de gravidade e emergência. Além disso, a Corte aler-
tou o Estado sobre um incidente ocorrido dentro da penitenciá-
ria, no qual a administração não permitiu que fossem feitas fil-
magens pelos denunciantes para a coleta de provas perante a
Corte. Diante dessas considerações, a Corte decidiu manter as
medidas provisórias em vigor.
Em 18 de novembro de 2015, a Corte se reuniu nova-
mente, mas sua agenda se limitou a tomar conhecimento de no-
vos incidentes de violência, a proibição imposta aos represen-
tantes de capturarem provas em vídeo dentro da penitenciária
e a revelação de um plano para atentar contra a vida da ex-de-
putada Wilma Melo. Além disso, a Corte reiterou as medidas
provisórias previamente determinadas, enfatizando a necessi-
dade de o Estado adotar ações para garantir a segurança da ex-
deputada.
Wilma Melo, assistente social e ex-deputada envol-
vida nas questões relacionadas ao sistema carcerário de Per-
nambuco, estava sujeita a múltiplas ameaças de morte devido
às denúncias que fazia. Ela frequentemente enfrentava dificul-
dades e humilhações durante suas visitas ao Complexo de Cu-
rado.
Em 23 de novembro de 2016, ocorreu uma nova reu-
nião na qual foi apresentado o relatório da visita realizada pelos
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
450 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

representantes à penitenciária e novos planos do Estado para


lidar com os problemas existentes. O relatório de visita destacou
a impossibilidade de acesso aos presos mais perigosos, pois a
administração penitenciária não conseguia garantir a segurança
dos representantes.
Em relação à área de saúde, observou-se boas condi-
ções de infraestrutura e um estoque razoável de medicamentos.
Quanto à estrutura geral, foram apontadas falhas significativas,
como a falta de separação entre presos provisórios e condena-
dos, superlotação persistente e condições físicas inadequadas
em várias áreas, com críticas severas. Em relação ao controle in-
terno, constatou-se que o Estado não conseguia garantir a segu-
rança de todos que frequentavam a penitenciária. Além disso,
persistia a presença de "presos chaveiros" e foi observado um
fenômeno descrito como "favelização" da penitenciária, no qual
os próprios detentos eram responsáveis pela organização, cons-
trução e distribuição das celas.
No que diz respeito aos novos planos apresentados
pelo Estado para abordar os problemas mencionados, a Corte
reconheceu as melhorias propostas, porém as considerou insu-
ficientes. Portanto, a Corte decidiu manter as medidas provisó-
rias em vigor e continuar supervisionando o assunto. Várias
questões merecem destaque, incluindo a crítica reiterada da
Corte à presença de "presos chaveiros", que foi descrita como
uma evidência da ausência do Estado dentro de suas próprias
instituições.
Além disso, a Corte reiterou a necessidade de prote-
ger a vida e os direitos da ex-deputada Wilma Melo, mencio-
nando um episódio de revista íntima vexatória e excessiva, que
parecia ser uma tentativa de desencorajar sua defesa pelos di-
reitos dos presos. Também foi determinada a elaboração de um
Filipe Brayan Lima Correia | 451
relatório técnico para investigar as causas da superlotação. Vale
ressaltar que, de forma significativa, não houve relatos de vio-
lência, motins e tortura, indicando uma melhoria positiva nos
problemas após a intervenção da Corte.
A Corte voltou a abordar o tema em 15 de novembro
de 2017, começando com a análise do relatório técnico solici-
tado. O diagnóstico do Estado apontou o aumento substancial
no número de presos ao longo de uma década, passando de
15.777 para 30.029, enquanto o número de vagas no sistema pri-
sional de Pernambuco subiu de 7.467 para 10.968 (Convenção
Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, Resolução de 15
de novembro de 2017). Além disso, uma pesquisa conjunta do
Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça
e Segurança Pública e do Instituto de Pesquisa Econômica Apli-
cada (IPEA) apontou que 37,2% dos casos analisados envol-
vendo detentos provisórios não resultaram em condenação.
Apenas no ano de 2016, foram registradas 24.051 prisões em fla-
grante (CIDH, Resolução de 15 de novembro de 2017, p. 3).
O Estado apresentou um amplo plano de ação desti-
nado a enfrentar os sérios desafios que o sistema prisional en-
frenta. Este plano envolve a criação de 3.754 novas vagas, me-
lhorias na infraestrutura das prisões, uma revisão dos processos
penais para considerar alternativas à prisão e um compromisso
com a garantia dos direitos humanos e da integridade física dos
detentos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos reco-
nheceu os esforços realizados pelo Estado e os progressos alcan-
çados até o momento. No entanto, apesar desses esforços, a
Corte optou por manter as medidas provisórias em vigor, de-
vido à persistência de resultados insatisfatórios. Isso reflete a
gravidade da situação no sistema prisional e a necessidade de
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
452 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

medidas mais eficazes e de longo prazo para solucionar os pro-


blemas existentes.
Para contextualizar a dimensão do desafio, mesmo se
a criação das novas vagas fosse implementada de imediato, a
proporção entre vagas disponíveis e número de detentos ainda
permaneceria desequilibrada, com 19.531 vagas para acomodar
30.029 presos. Isso enfatiza a urgência de uma reforma abran-
gente e profunda do sistema prisional, que não se limite apenas
a aumentar a capacidade, mas também promova a reabilitação,
reduza a reincidência e respeite os direitos fundamentais dos
presos. Em resumo, a decisão da Corte sublinha a necessidade
de um compromisso contínuo por parte do Estado em melhorar
o sistema prisional e garantir condições dignas para os detentos,
destacando que a simples expansão das vagas não é suficiente
para abordar os problemas estruturais do sistema.
Na data de 13 de fevereiro de 2017, durante uma
breve reunião que abordou as medidas provisórias relacionadas
à Unidade Internacional Socioeducativa de Cariacica, ao Com-
plexo Pedrinhas Penitencial, ao Instituto Penal Plácido de Sá
Carvalho e ao Complexo Curado Penitencial, a Corte elaborou
um conjunto de 63 perguntas destinadas a serem respondidas
pelos Estados acusados.
Essa reunião se destacou como a mais significativa,
resultando em decisões imediatas e efetivas proclamadas pela
Corte contra o Estado acusado. Isso representou uma mudança
substancial em relação às resoluções anteriores, que apenas mo-
nitoravam a situação, passando agora a impor soluções para os
problemas. Em 28 de novembro de 2018, a Corte voltou a abor-
dar o assunto, elogiando os esforços do Estado em implementar
os planos de combate às questões levantadas. No entanto, a
Filipe Brayan Lima Correia | 453
Corte solicitou relatórios de diagnóstico mais detalhados e afir-
mou que as medidas adotadas até então eram ineficazes.
Durante esse período, os representantes apresenta-
ram diversas novas denúncias de violência no sistema prisional,
o que levou a Corte a emitir críticas contundentes e uma decisão
que interferia diretamente na gestão dos presos pelo Estado
acusado. A decisão destacou a preocupante situação do sistema
prisional, que persiste desde 2014, caracterizada pela falta de
reformas efetivas.
O ponto crítico aqui é a alarmante discrepância entre
o número de agentes penitenciários e detentos, o que piora as
condições nas prisões e contribui para um ambiente propício à
violência e à desordem. Além disso, a presença constante de ar-
mas dentro das prisões representa um sério problema, colo-
cando em risco tanto os presos quanto os funcionários da insti-
tuição. Isso ressalta a urgente necessidade de adotar medidas
de controle e segurança mais eficazes.
A referência aos "presos líderes" expõe uma situação
ainda mais alarmante. Esses reclusos assumiram o controle in-
terno do sistema carcerário, incluindo a gestão das visitas e a
imposição de dívidas às esposas dos presidiários por meio de
coerção sexual. Essas práticas perturbadoras indicam a ineficá-
cia do Estado em manter a ordem e a segurança nas prisões.
Essa determinação da Corte ressalta a iminente ne-
cessidade de realizar reformas substanciais no sistema prisio-
nal. Isso não se limita apenas a reduzir a superlotação e fortale-
cer a segurança, mas também a proteger os direitos humanos
dos detentos e combater a impunidade. É um apelo urgente à
ação por parte das autoridades encarregadas da administração
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
454 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

prisional, com o objetivo de assegurar condições dignas e o res-


peito aos direitos fundamentais daqueles sob a custódia do Es-
tado.
Na resolução, foram apresentados os fatores que
contribuíram para os inúmeros problemas do sistema prisional,
que em última análise se resumiam à superlotação. Além disso,
destacou-se que os esforços empreendidos pelo Estado não con-
seguiram aliviar o problema, e a persistência dessa situação es-
tava prejudicando a reintegração social dos detentos. Vejamos
um trecho da decisão:

É impossível que este objetivo seja alcançado


quando os presos estão imersos em uma ordem in-
terna controlada pelos grupos de força que, por
sua natureza, são conhecidos por impor padrões
de comportamento violento que, tanto nos grupos
que exercem o poder quanto nos naqueles que de-
vem submeter-se a eles, são claramente propensos
a condicionar novos desvios comportamentais em
sua futura vida livre. (CIDH, Resolução de 28 de
novembro de 2018, p 18).

Considerando o debate em questão, a Corte reconhe-


ceu que o cumprimento de penas em condições degradantes vai
além de seu propósito, e que a superlotação é a raiz desse pro-
blema. Portanto, a Corte considerou que era necessário explorar
alternativas. Para encontrar uma solução, a Corte iniciou uma
análise de casos semelhantes decididos por outros tribunais.
A primeira análise concentrou-se na decisão da Corte
Constitucional da Colômbia, que destacou que a abordagem de
construir mais celas presumia que a quantidade excessiva de
presos não era o problema central, quando, na verdade, era o
uso excessivo de penas de prisão que causava a superlotação. A
Filipe Brayan Lima Correia | 455
construção de novas celas não resolveria o problema, uma vez
que essas vagas seriam rapidamente preenchidas. Como resul-
tado, a Corte Colombiana exigiu a implementação de uma polí-
tica de libertação razoável para reduzir a superlotação em suas
prisões.
A segunda análise considerou a Suprema Corte dos
Estados Unidos, que avaliou a superlotação nas prisões da Ca-
lifórnia, que tinham uma capacidade de 40.000 vagas, mas esta-
vam operando com uma ocupação de 200%. A decisão desta
corte tinha semelhanças com o caso de Curado, uma vez que
ambos os casos enfrentavam o problema de longa data da su-
perlotação sem perspectiva de solução. Isso resultou em uma
ordem direta para a Califórnia implementar uma política de li-
bertação que reduzisse a ocupação prisional para 137,5% de sua
capacidade (CIDH, Resolução de 28 de novembro de 2018, p.
23).
Em uma terceira análise, examinou-se a sentença
proferida pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na
qual o Estado da Itália, também enfrentando uma situação de
superlotação semelhante, foi considerado culpado e instruído a
alocar seus recursos para resolver o problema de superlotação,
com a exigência de apresentar resultados concretos no prazo de
um ano.
Por fim, a decisão emitida pelo Supremo Tribunal Fe-
deral do Brasil resultou na estabelecimento da súmula vincu-
lante nº 56:

A falta de estabelecimento penal adequado não


autoriza a manutenção do condenado em regime
prisional mais gravoso, devendo-se observar,
nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE
641.320/RS.(STF, 2016)
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
456 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

Naquela ocasião, a Defensoria Pública do Estado de


São Paulo (DPSP), preocupada com o elevado número de de-
tentos que deveriam estar cumprindo pena em regime semia-
berto, mas estavam reclusos em regime fechado devido à falta
de vagas em instalações apropriadas, argumentou que isso re-
presentava uma violação do princípio da individualização da
pena. Como uma solução para essa questão, a DPSP propôs que,
se o Estado não pudesse proporcionar a execução da pena no
regime apropriado, deveria permitir que os detentos com di-
reito ao regime semiaberto cumprissem suas penas no regime
aberto. O Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, já alinhado
com os argumentos da DPSP, reconheceu a recorrente negligên-
cia do Estado em relação à individualização das penas e emitiu
a súmula vinculante nº 56.
A decisão do STF relacionada à falta de estabeleci-
mentos prisionais adequados devido à superlotação teve um
impacto substancial nas avaliações realizadas pela Comissão In-
teramericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o sistema pe-
nitenciário brasileiro. A CIDH utilizou essa decisão como base
sólida para fundamentar e afirmar inequivocamente a violação
dos direitos humanos dentro do sistema carcerário do Brasil.
Essa conexão entre a decisão do STF e o posicionamento da
CIDH destaca a importância de os órgãos nacionais e internaci-
onais de proteção dos direitos humanos colaborarem para ga-
rantir a promoção e a preservação desses direitos fundamentais.
Além disso, enfatiza a necessidade urgente de encontrar solu-
ções eficazes para abordar a superlotação e melhorar as condi-
ções no sistema penitenciário brasileiro, a fim de assegurar o
respeito pelos direitos humanos de todos os detentos.
Filipe Brayan Lima Correia | 457
Após uma análise abrangente de como a questão tem
sido abordada globalmente, a Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos (CIDH) chegou à conclusão de que a solução
para resolver os problemas no sistema penitenciário de Curado
envolve a redução da população carcerária. Além disso, a CIDH
determinou que o cumprimento de penas em condições desu-
manas ultrapassa os limites aceitáveis e que esse excesso deve
ser considerado como parte da pena cumprida. Aqui está um
trecho integral da decisão:

O Estado deverá tomar as providências necessá-


rias para que, de acordo com o disposto na 4. Cláu-
sula Vinculante nº 56 do Supremo Tribunal Fede-
ral do Brasil, a partir da notificação desta Resolu-
ção, novos presos não ingressem no Complexo de
Cura, nem sejam transferidos dos aí alojados para
outros estabelecimentos penais por ordem admi-
nistrativa. Quando, por ordem judicial, o preso ti-
ver que ser transferido para outro estabeleci-
mento, aplicar-se-á o disposto abaixo quanto à du-
pla contagem dos dias em que esteve privado de
liberdade no Complexo de Cura, de acordo com o
disposto nos Considerandos 118 a 133 desta Reso-
lução .
O Estado deverá adotar as providências necessá-
rias para que o mesmo 5. cálculo seja aplicado, na
forma do disposto abaixo, aos egressos do Com-
plexo de Cura, em tudo que se relacione com o cál-
culo do tempo em que nele permaneceram. , nos
termos dos considerandos 118 a 133 desta Resolu-
ção.
O Estado deve arbitrar os meios para que, no
prazo de seis meses a partir de 6. desta decisão,
cada dia de privação de liberdade cumprido no
Complexo de Cura seja contado duas vezes, para
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
458 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

todas as pessoas aí alojadas que não tenham sido


condenadas ou acusadas de crimes contra a vida,
integridade física ou sexual, nos termos dos Con-
siderandos 118 a 133 desta Resolução. (CIDH, Re-
solução de 28 de novembro de 2018, p 38).

Unindo essas duas conclusões de maneira inteira-


mente inovadora em suas medidas provisórias relacionadas a
este assunto, a Corte estabeleceu que os prisioneiros de Curado
devem ter suas penas contabilizadas em dobro. No entanto,
houve uma exceção: aqueles que cometeram crimes violentos
seriam submetidos a um exame criminológico para determinar
se são elegíveis para esse benefício.

Considerações finais

Ao examinar o caso de Curado, que foi submetido às


medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos, podemos chegar a uma conclusão positiva sobre a utili-
dade e eficácia do sistema. Embora demande algum tempo para
implementar medidas concretas, este sistema apresenta caracte-
rísticas que impedem o Estado de se eximir de sua responsabi-
lidade.
No decorrer desse processo, foi evidente uma melho-
ria substancial nos problemas do sistema prisional após a inter-
venção da Corte. Além de uma significativa redução, os proble-
mas passaram a abranger questões relacionadas à saúde, super-
lotação, grupos vulneráveis e infraestrutura, em contrapartida
aos episódios de violência, tortura e motins que antes eram a
principal preocupação.
Também se constatou que alguns privilégios conce-
didos ao Estado dentro do seu próprio sistema judiciário, como
Filipe Brayan Lima Correia | 459
a presunção de veracidade de seus atos e declarações, não foram
aplicados perante a Corte. Em várias ocasiões durante o pro-
cesso, houve divergências entre as versões apresentadas pelo
Estado e pelos representantes, porém, diferentemente do que
geralmente ocorre nos processos do sistema judiciário interno
do Estado, a Corte deu preferência à apresentação de provas e
realização de diligências.
Por fim, a última decisão da Corte, que determinou a
computação da pena em dobro para os detentos de Curado, re-
presenta um marco tanto para o sistema prisional brasileiro
quanto para o sistema internacional de direitos humanos. Após
anos de inação por parte do Estado diante do problema, a Corte
abandonou a mediação diplomática e tomou medidas concre-
tas.
Vale ressaltar que, em uma decisão proferida no Ha-
beas Corpus 208337, datada de 19 de dezembro de 2022, o Su-
premo Tribunal Federal (STF) tomou uma medida significativa
em relação aos direitos dos presos e consolidou a eficácia das
decisões da CIDH. O Ministro Edson Fachin, ao seguir o enten-
dimento estabelecido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ),
concedeu uma liminar reconhecendo o direito à contagem em
dobro do tempo de prisão para os detentos beneficiados pela
Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Essa decisão representa um passo importante em di-
reção ao respeito pelos direitos humanos no sistema prisional
brasileiro, uma vez que a contagem em dobro do tempo de pri-
são implica que cada dia de detenção seja considerado como
dois dias na redução da pena. Essa mudança na interpretação e
aplicação da lei demonstra o compromisso das autoridades ju-
diciais brasileiras em garantir que os presos sejam tratados de
Processo de medida provisória na Corte Interamericana de Direitos
460 | Humanos que resultou na contagem em dobro do tempo de prisão

acordo com os princípios de justiça e dignidade, além de mos-


trar a disposição do Brasil em acatar as recomendações e deci-
sões da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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Filipe Brayan Lima Correia | 461
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Filipe Brayan Lima Correia | 463
PROVISIONAL MEASURE PROCESS IN THE INTER-
AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS THAT
RESULTED IN A DOUBLE COUNTING OF PRISON
TIME
Abstract: The Inter-American Court of Human Rights plays a
significant role in preventing recurrent violations of fundamental
freedoms by member states. In this article, we conduct a qualitative
analysis of Brazil's submission to the Inter-American Court of Human
Rights due to repeated infractions in the Curado prison system. By
examining the sessions of the IACHR, we sought to elucidate the
process of dealing with provisional measures, the attitude of the
accused State during the process, the evolution of the issue after the
Court's intervention and the effectiveness of its decisions. We
conclude that, despite the represented State's attempts to exempt
itself from its responsibilities, the Court's actions began with
discussions and consultations that did not produce tangible results,
later progressing to direct and binding measures. The methodology
used was based on bibliographical research and analysis of IACHR
resolutions, which contain a detailed summary of the discussions and
resolutions of each session, thus classifying the article as descriptive
and exploratory. Through the analysis of the sessions, our objective
was to highlight the evolution of the Court's actions and the
effectiveness of its decisions.
Keywords: Inter-American Court of Human Rights. Curator. Provi-
sional measures. Prison system. International System for the Protec-
tion of Human Rights.
CAPÍTULO XV.
DA AGENDA 2030 AO PACTO
ECOLÓGICO EUROPEU: A EVOLUÇÃO DA
PROTEÇÃO DOS OCEANOS CONTRA A
POLUIÇÃO POR (MICRO)PLÁSTICOS∴

Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes*

DOI: 10.29327/5341937.1-15

RESUMO: O capítulo tem como problema de pesquisa: Quais as con-


tribuições do Pacto Ecológico Europeu no tocante à proteção dos ma-
res e oceanos, estabelecidas pelo ODS 14, com enfoque na poluição
causada por (micro)plásticos? Utiliza-se pesquisa do tipo bibliográ-
fica e documental, com base em revisão de literatura de artigos cien-
tíficos, natureza pura, descritiva e exploratória, na análise de docu-
mentos e relatórios que versam sobre o tema. Esta pesquisa tem rele-
vância teórica e prática, pois oferece uma contribuição original sobre
como as iniciativas internacionais têm contribuído para a consecução
dos ODS e o combate à degradação dos oceanos por resíduos plásticos
e possibilita uma maior visibilidade à sustentabilidade e à proteção
dos ecossistemas oceânicos, bem como pode fornecer auxílio técnico-
jurídico às ações governamentais para a formulação de políticas pú-
blicas e programas de desenvolvimento nesse sentido. Conclui-se que
o Pacto Ecológico Europeu e os seus Planos de Ação, vão de encontro


O presente capítulo foi feito com o apoio do Fundação Cearense de Apoio ao De-
senvolvimento Científico e Tecnológico– FUNCAP.
*
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito
Internacional pela Universidade de Fortaleza. Mestrando em Direito pela Univer-
sidade Federal do Ceará.
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 465
às metas estabelecidas pela ONU, servindo como um importante me-
canismo para o sucesso dos ODS, e, no tocante ao ODS 14 e à poluição
marinha causada por (micro)plásticos, as medidas que vêm sendo ela-
boradas por essas iniciativas, buscam mitigar, na origem, as causas
que levam a chegada dos resíduos nos mares e oceanos, trazendo uma
perspectiva de efetiva redução dessa problemática no futuro.
Palavras-chave: ODS 14. Agenda 2030. Pacto Ecológico Europeu.
Plásticos e microplásticos.

Introdução

Os mares e oceanos são espaços de caráter universal


e transnacional, fundamentais para o equilíbrio e a perpetuação
de todas as formas de vida existentes no planeta. Do mesmo
modo, esses espaços foram de extrema importância para o de-
senvolvimento da raça humana, uma vez que, desde a antigui-
dade, as civilizações se estabeleceram próximo a grandes corpos
d’água, sendo estes os locais responsáveis pela subsistência,
pelo progresso econômico e pela expansão de grande parte da
humanidade (MENEZES, 2015).
Contudo, embora conectado, direta ou indireta-
mente, à sobrevivência de todos os seres vivos até então conhe-
cidos, os ecossistemas marinhos encontram-se ameaçados, na
atualidade, por uma série de impactos, que vão desde a polui-
ção, acidificação e elevação de suas águas, até a exploração exa-
gerada de seus recursos, levando ao esgotamento dos recursos
vivos e não vivos presentes nesses espaços aquáticos.
Dentre essas ameaças, destaca-se a poluição causada
pelos plásticos, os quais podem ser divididos em macro e micro
plásticos, sendo estes últimos aqueles com dimensão menor que
5mm, tamanho este que os torna muitas vezes imperceptíveis,
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
466 | oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

o que dificulta o manejo dessas partículas e aumenta o seu po-


tencial danoso (AROSEMENA; ZARELLI; DE ARAUJO, 2019).
Assim, embora fundamentais para o modo de vida e de produ-
ção atuais, esses materiais de degradação lenta e difícil decom-
posição passaram a ser os um dos pontos de preocupação das
autoridades globais quando na busca de um desenvolvimento
sustentável e saudável ao meio ambiente (AROSEMENA; ZA-
RELLI; DE ARAUJO, 2019).
Dessa forma, sob a perspectiva de conter a degrada-
ção dos ecossistemas oceânicos, os plásticos, bem como a polu-
ição por eles gerada, tornaram-se tema de debates em âmbito
internacional, os quais evoluíram para a realização de conferên-
cias e, então, para a propositura de documentos e acordos vol-
tados à solução dessa problemática, destacando-se, nesse as-
pecto, a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas
(ONU).
Criada com intenção de estabelecer objetivos para
guiar a atuação global rumo ao desenvolvimento sustentável da
humanidade, a Agenda 2030 trouxe, dentre seus objetivos, o de
nº 141, voltado exclusivamente à conservação e proteção dos
mares e oceanos. Esse objetivo ainda faz menção explícita à ne-
cessidade de mitigar todas as formas de poluição, em especial
aquela ligada ao lixo plástico que é a originária de atividades
terrestres e os detritos marinhos.
Desse modo, entende-se necessário analisar as inici-
ativas que sobrevieram à Agenda 2030 e o estabelecimento dos
ODS, de modo a analisar suas contribuições para solucionar a

1 Trata-se do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 14: conservar e usar sus-


tentavelmente os oceanos, os mares e os recursos marinhos para o desenvolvi-
mento sustentável (UN, 2015).
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 467
problemática da poluição dos oceanos por partículas de plás-
tico. Com essa finalidade, escolheu-se o Pacto Ecológico Euro-
peu, em razão da influência que o bloco econômico possui
quando da edição de diretrizes ambientais, bem como devido a
sua posição como um dos maiores produtores de plásticos do
planeta.
Para tal, busca-se investigar, no presente capítulo, as
contribuições do Pacto Ecológico Europeu no tocante à proteção
dos mares e oceanos, estabelecidas pelo ODS 14, com enfoque
na poluição causada por (micro)plásticos. Assim, inicialmente,
analisar-se-á o contexto de criação da Agenda 2030 e a influên-
cia de seu objetivo nº14 na proteção dos mares e oceanos contra
a degradação por plásticos. Na sequência, serão verificadas as
propostas de implementação das metas trazidas pela Agenda.
Por fim, será realizada a análise dos mecanismos trazidos pelo
Pacto Ecológico Europeu para garantir a proteção dos ecossis-
temas marinhos contra a degradação causada por (micro)plás-
ticos.
Por conseguinte, o trabalho se justifica devido aos
mares e oceanos serem provedores de importantes serviços
econômicos, que movimentam em torno de 1,5 trilhão de dóla-
res anuais, e contribuintes diretos ao bem estar da humanidade,
sendo a principal fonte, em muitas localidades, de alívio da po-
breza, ao garantir a segurança alimentar, nutrição e renda de
suas populações, estando ligados a mais de 350 milhões de pos-
tos de trabalho (VIRTO, 2018).
Devido à importância desses espaços, a ameaça tra-
zida pela poluição gera uma preocupação global quanto ao im-
pacto sistêmico que essas atividades degradantes trazem para o
meio ambiente marinho e para a humanidade como um todo,
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
468 | oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

comprometendo a sua capacidade de fornecer benefícios econô-


micos, sociais e ambientais. Tais fatos tornam-se mais descon-
certantes uma vez que 80% da poluição mencionada seja origi-
nária de atividades terrestres, sendo os plásticos 80% dos detri-
tos presentes nos oceanos, convivendo-se atualmente com a es-
timativa de que, dentro de 30 anos, haverá mais plástico que
peixes nos oceanos e que quase todas as aves aquáticas terão
ingerido partículas do material (VIRTO, 2018).
Ainda, soma-se às preocupações globais a constata-
ção de diversos danos causados pelos plásticos e microplásticos
em suas interações com os organismos humanos e dos demais
seres vivos presentes no meio ambiente. A esse respeito, ob-
serva-se que as partículas (micro)plásticas são responsáveis por
diversos malefícios às populações aquáticas, como a obstrução
do trato digestório, o aprisionamento de animais marinhos, a
liberação de compostos tóxicos durante a sua degradação e o
transporte de patógenos e poluentes, por meio da adsorção ou
absorção desses componentes, os quais podem se acumular nos
organismos dos animais que ingerirem essas partículas e serem
transmitidos a outros seres por meio da cadeia alimentar, po-
dendo chegar, assim, ao seres humanos, sendo ligados a diver-
sos problemas de saúde, como cânceres e disrupções do sistema
endócrino (AWUCHI; AWUCHI, 2019).
Por isso, tem-se como o intuito deste capítulo reali-
zar, por meio de pesquisa de natureza pura, analítico-descritiva,
exploratória e de abordagem qualitativa, assim como do tipo bi-
bliográfica e documental, a partir do estudo de doutrinas, legis-
lações, artigos científicos e resoluções emitidas por órgãos inter-
nacionais (ONU, Comissão Europeia, etc.), a obtenção dos da-
dos necessários para a abordagem do tema proposto e conse-
quente análise das contribuições do Pacto Ecológico Europeu no
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 469
tocante à proteção dos mares e oceanos, estabelecidas pelo ODS
14, com enfoque na poluição causada por (micro)plásticos, con-
forme será feito a seguir.
Esta pesquisa tem relevância social e prática por dar
visibilidade às iniciativas internacionais que têm contribuído
para a consecução dos ODS e o combate à degradação dos oce-
anos por resíduos plásticos. Além disso, a pesquisa intenta au-
xiliar na promoção e adequação de políticas públicas para a
aplicação dos ODS e redução das poluição marinha causada por
(micro)plásticos.

1. Agenda 2030 da ONU e seus reflexos na proteção do meio


ambiente marinho contra a poluição por lixo
(micro)plástico

Assinada em 25 de setembro de 2015, na cidade de


Nova Iorque, durante a septuagésima sessão da Assembleia Ge-
ral das Nações Unidas (AGNU), a Resolução A/RES/70/1, inti-
tulada “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o
Desenvolvimento Sustentável”, é um documento de caráter ju-
rídico não vinculante, estabelecido sob a forma de uma declara-
ção universal e um acordo político assinado por todos os mem-
bros da Organização das Nações Unidas (ONU) (DENNY;
PAULO; CASTRO, 2017; UN, 2015).
A Agenda foi elaborada com o objetivo de instituir
metas e objetivos universais, de forma a orientar políticas e pro-
mover o alcance ao desenvolvimento sustentável, que, con-
forme definido em 1987 no Relatório Brundtland da AGNU,
consistiria em
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu : a evolução da proteção dos
470 I
oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

um processo de mudança no qual a exploração de


recursos, a direção dos investimentos, a orientação
do desenvolvimento tecnológico e a mudança ins-
titucional, estão todos em harmonia e aumentam,
conjuntamente, o potencial de suprir as necessida-
des e aspirações dos seres humanos na atualidade.
e no futuro (p.38) (tradução livre) .

Nesse sentido, para o alcance dos propósitos citados,


o documento estabeleceu 17 Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) , com 169 metas, os quais buscam, por meio

da ação dos diversos níveis de governo, setor privado e socie-

dade civil, uma cooperação multilateral que promova a mobili-

zação de forças para atuar internacional, nacional, regional e lo-


calmente em cinco áreas de extrema importância à humanidade,
quais sejam: pessoas, buscando erradicar a pobreza e a fome em

todas as suas formas e garantir dignidade e igualdade a todos;

planeta, determinando a proteção contra a degradação, o con-


sumo, a produção e o manejo sustentável dos recursos, além do

combate urgente às mudanças climáticas; prosperidade, vi-


sando garantir que o progresso tecnológico, social e econômico

esteja em harmonia com a natureza; paz, criando sociedades pa-

cíficas, justas e inclusivas, livres de medo e violência; e parce-


rias, estreitando a solidariedade global, focando nos interesses
dos mais vulneráveis e estabelecendo uma participação múlti-

pla de todos os atores globais (DENNY; PAULO; CASTRO,


2017; UN, 2015) .

Dessa forma, o plano de ação da ONU, no momento


de sua elaboração, foi elencado como sucessor, a nível mundial,

dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), os quais


vigoraram entre os anos de 2000 e 2015, focando sua atuação na

estruturação de políticas públicas que garantissem o alcance aos


Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 471

valores de liberdade, igualdade, solidariedade, tolerância, res-

peito à natureza e responsabilidade compartilhada (DENNY;


PAULO; CASTRO, 2017; UN, 2000) . Contudo, os objetivos pro-

postos pela Agenda 2030 diferenciam-se dos ODM visto que os

ODS possuem uma área de atuação mais ampla, cobrindo as


três dimensões do desenvolvimento sustentável — desenvolvi-

mento econômico, inclusão social e proteção ambiental —, bem


como focando nas raízes de problemas como a pobreza e a ne-
cessidade de desenvolvimento universal que funcione para to-
dos (UN, 2022, online).

Como diferença entre os dois documentos, pode -se

perceber, ainda, que os ODS se comprometem com a missão de

"não deixar ninguém para trás”, sendo os seus objetivos univer-

sais e aplicáveis a todos os países, enquanto os ODM estabele-

ciam como foco de ações apenas os países em desenvolvimento .


Além disso, os ODS possuem, entre suas características funda-

mentais, uma preocupação maior com os modos de implemen-


tação de suas metas, o desenvolvimento de capacitação e tecno-

logia, e o monitoramento e a análise dos resultados (UN, 2022,


online).
Ainda no tocante aos dois planos, percebe-se uma

clara diferença quanto ao seu processo de concepção, pois, en-

quanto os ODM foram elaborados apenas por um grupo de ex-

perts da ONU, os ODS envolveram um processo consultivo com

extensa participação de governos, experts técnicos, sociedade


civil, setor privado e do público em geral, favorecendo um de-

bate com múltiplos pontos de vista, que teve como consequên-


cia a maior ambição e a ampliação dos campos de atuação da

nova Agenda (FODAY JUNIOR; KOKOFELE, 2019) .

No entanto, apesar dos claros avanços trazidos pelos

ODS , observa-se que, ao reverterem a ideia de simplicidade


Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
472 | oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

proposta pelos ODM, a partir da criação de objetivos mais com-


plexos, estes ensejaram o surgimento de críticas quanto à veri-
ficabilidade das metas trazidas pela Agenda 2030, em relação
aos critérios de valores numéricos, prazos específicos e concei-
tos claros (VANDEMOORTELE, 2017).
Ao mesmo tempo, tais questionamentos passariam a
ser intensificados, conforme dispõe Vandemoortele (2017), pela
fragmentação do multilateralismo e das comunidades globais,
assim como pelo fortalecimento da polarização norte-sul, difi-
cultando a adoção de metas globais claras, concisas e computá-
veis.
Nesse âmbito, pode-se ainda questionar a suposta
universalidade dos objetivos, uma vez que uma análise mais
profunda das metas mostraria que aquelas com maior potencial
de verificabilidade tratariam de assuntos que se referem princi-
palmente às nações em desenvolvimento, sendo as temáticas
mais relevantes à realidade dos países desenvolvidos ou deixa-
das de lado ou destinadas às metas de caráter mais complexo e
de maior dificuldade de verificação (VANDEMOORTELE,
2017).
Ainda assim, apesar das críticas supracitadas, deve-
se reconhecer o avanço dos objetivos da Agenda 2030 em trazer
para as prioridades globais assuntos que até então não tinham
grande destaque nos planos de ação internacionais.
Por conseguinte, quanto ao direito do mar e questões
ligadas à proteção do oceano, percebe-se um claro progresso
com a adoção da Agenda, que abordou o assunto em um obje-
tivo específico, o ODS 14, demonstrando a relevância dessa te-
mática no cenário internacional atual.
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 473
2. O ODS 14 e a proteção integrada dos mares e oceanos

O ODS 14, denominado “Vida na Água”, tem como


meta principal o alcance do desenvolvimento sustentável por
meio da conservação e promoção do uso sustentável dos ocea-
nos, mares e recursos marinhos. Nesse sentido, como foco de
ação do objetivo, são elencados compromissos ecológicos e so-
cioeconômicos, os quais tratam dos temas: poluição marinha
(14.1), gestão sustentável e proteção dos ecossistemas marinhos
e costeiros (14.2), acidificação dos oceanos (14.3), práticas de
pesca destrutivas e sobrepesca ilegal, não reportada e não regu-
lamentada (14.4), conservação das zonas costeiras e marinhas
(14.5), proibição de subsídios que contribuam à sobrepesca e so-
brecapacidade, bem com à outras práticas de pesca destrutivas
(14.6), e aumento dos benefícios econômicos para os pequenos
Estados insulares em desenvolvimento e os países de menor de-
senvolvimento relativo (14.7) (UN, 2015).
Quanto aos assuntos abordados pelo Objetivo em
questão, faz-se necessário destacar a preocupação explícita com
a poluição marinha, trazendo na meta 14.1 o compromisso de
“até 2025, prevenir e reduzir significativamente todas as formas
de poluição marinha, em particular a oriunda de atividades ter-
restres, incluindo detritos marinhos e a poluição por nutrien-
tes.” (UN, 2015, p. 23) (tradução livre). Observa-se, então, que,
embora não tenha sido diretamente mencionada, a problemá-
tica do lixo (micro)plástico foi abarcada pelo documento, ao se-
rem pontuados os detritos marinhos e a poluição advinda de
atividades terrestres, as quais são as principais contribuidoras
para a poluição dos oceanos por plásticos (STURESSON;
WEITZ; PERSSON, 2018).
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
474 | oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

Sobre o ODS 14, Singh et al. (2018) faz atenção ao pro-


gresso pouco identificável do objetivo, destacando, ainda, a
baixa destinação dos fundos internacionais à sua consecução, o
que torna o objetivo um dos mais desprivilegiados no tocante
ao aporte de investimento em suas ações. Contudo, o autor pon-
dera a importância do cumprimento desse objetivo para o su-
cesso da Agenda 2030 como um todo, uma vez que, mesmo
sendo apresentados de forma independente, os ODS se interco-
nectam e dependem uns dos outros, de forma que o avanço em
um deles impacta diretamente no progresso dos demais (con-
forme demonstrado nas Figuras 1 e 2). Por isso, nota-se o poten-
cial que uma gestão sustentável dos oceanos tem para contri-
buir à evolução das metas mundiais de desenvolvimento sus-
tentável, o que se torna preocupante ao se constatar o estado em
que os oceanos se encontram protegidos atualmente.
Assim, a partir da análise dos dados trazidos nas fi-
guras 1 e 2, percebe-se que ocorre uma interação de todos os
ODS com ao menos uma meta destinada ao desenvolvimento
sustentável dos oceanos, relação essa que se dá por meio de me-
tas que se cobeneficiam, são pré-requisito umas das outras, pos-
suem um caráter de interdependência, ou ainda proporcionam
trocas uma vez executadas suas ações.
Quanto às interações específicas entre a cadeia de
produção e a gestão sustentável dos resíduos plásticos (abran-
gidos no ponto 14.1) e o restante do documento global, Dióge-
nes (2020) destaca a conexão entre a meta e os objetivos 3, 6 e 12,
que tratam, respectivamente, sobre a redução dos danos à saúde
causados por produtos químicos perigosos, a melhora na quali-
dade da água, e o gerenciamento ambientalmente correto de
produtos químicos e todos os seus resíduos.
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 475

Figura 1. Representação das interações entre as metas do


ODS 14 e os demais Objetivos de Desenvolvimento

:Sustainable
9:nnovation
Sustentável.

ndustry
Education

institutions
7:Affordable

12esponsible
4:uality

Cities
8:ecent

Infrastructure
Equality

,ISDG

Communities
Health

Consumption
Work
5:Gender

SDG
Water
3:Good

Strong
:Pustice
6:Clean

and
QSDG
SDG

11
and

DSDG
SDG

eace
Hunger

and
SDG

Economic

,JSDG
and
SDG
Poverty

: educed
Growth

Land
and
2:ero

SDG
R:SDG

Below
ZSDG

16
: limate

:Life
15
on
Inequalities

SDG
:Life
SDG

Production
and
RSDG

and

ADG
and
1:No

14
Sanitation

10
Energy

C13
Clean
- eing
bWell

Water
Action
SDG 14.1:
Marine

T
Pollution
SDG 14.2:
Environmental
Restoration
SDG 14.3:
Ocean
Acidification
SDG 14.4: End
Overfishing
SDG 14.5:
Marine
Protection
SDG 14.6: End
Harmful
Subsidies
SDG 14.7: Small
Islandand
Developing
States

Co-Benefit/Prerequisite/Context Co-Benefit/Optional/Context Co-Benefit/Optional/Context Trade-off/Optional/Context Neutral


Independent Independent Dependent Dependent

Fonte: SINGH, Gerald G. et al . A rapid assessment of co -benefits and trade-


offs among Sustainable Development Goals. Marine Policy, [ S.L.], v. 93, p.
223-231, jul. 2018. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1016/j.mar-
pol.2017.05.030 . Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/ar-
ticle/pii/S0308597X17302026 . Acesso em : 01 jan. 2021 .
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
476 | oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

Figura 2. Demonstrativo das principais interações das metas


do ODS 14 entre si e com os demais Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável.

Fonte: VIRTO, Laura Recuero. A preliminary assessment of the indicators


for Sustainable Development Goal (SDG) 14 “Conserve and sustainably use
the oceans, seas and marine resources for sustainable development”. Ma-
rine Policy, [S.L.], v. 98, p. 47-57, dez. 2018. Elsevier BV.
http://dx.doi.org/10.1016/j.marpol.2018.08.036

A partir da Figura 3 podem ainda ser observadas as


conexões entre as metas dos ODS que são relevantes para a re-
dução dos resíduos plásticos marinhos e seus impactos.
Constata-se a importância da persecução das metas
sobre os oceanos para o sucesso da Agenda de um modo geral,
bem como para a mitigação da poluição causada pelos (mi-
cro)plásticos aos ecossistemas marinhos.
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 477
Figura 3. Metas dos ODS relevantes à mitigação dos resíduos
plásticos no meio ambiente marinho.

Fonte: Barboza et al., 2019.

Nesse espectro, resta observar, ainda, que, desde a


sua criação, o ODS 14 passou a pautar todas as discussões pos-
teriores sobre o assunto, servindo de base para o estabeleci-
mento de políticas e estratégias de combate a degradação do
ambiente marinho e para a elaboração de conferências globais
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
478 | oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

específicas sobre o tema, como foi o caso da Conferência da


ONU sobre os Oceanos de 2017, voltada exclusivamente a de-
bater e apoiar a implementação do ODS 14.
Culminando no documento final “Our ocean,our fu-
ture: call for action”, a Conferência reafirmou as preocupações
trazidas pelo ODS 14 e ressaltou a urgência de medidas volta-
das à redução da poluição marinha advinda de fontes terrestres,
por meio da propositura de ações, pautadas na implementação
de estratégias de longo prazo, para reduzir o uso de todas as
formas de (micro)plásticos, em especial os de uso único (DIÓ-
GENES, 2020; UNEP, 2021, online). Para tal, importa salientar
que foram estabelecidos na Convenção, mais de 1300 compro-
misso voluntários, pelos mais diversos atores internacionais —
como governos nacionais, ONGs, instituições mundiais e indi-
víduos — dos quais mais 540 (39%) se referiam diretamente à
meta 14.1 (BARBOZA et al., 2019).
Ademais, por se tratar de um objetivo voltado ao am-
biente natural, o ODS 14 e suas metas encontram-se profunda-
mente conectados com os outros instrumentos internacionais
responsáveis por regular e reger essas temáticas no âmbito
mundial, como a Convenção sobre a Diversidade Biológica
(CDB), a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Mu-
danças Climáticas (CQNUMC) e a Convenção das Nações Uni-
das sobre Direito do Mar (CNUDM) (VIRTO, 2018). Da mesma
forma, o ODS em questão ainda se relaciona diretamente, como
motivo de sua criação, ou indiretamente, servindo como com-
plemento, com estratégias e ações voltadas à redução da polui-
ção causada pelo lixo originário de atividades terrestres, como
é o caso da Estratégia de Honolulu, o Programa de Ação Global
para a Proteção do Meio Ambiente Marinho das Atividades
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 479
Terrestres, a Campanha Mares Limpos e do Ad Hoc Open En-
ded Expert Group, grupo de especialistas criado no âmbito do
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)
para examinar barreiras e buscar opções para a enfrentar a de-
gradação gerada pelos (micro)plásticos (DIÓGENES, 2020)
Assim, entendendo-se fundamental a correta execu-
ção dos ODS para o alcance dos compromissos trazidos pela
Agenda 2030, bem como para o sucesso global na redução da
poluição causada pelos plásticos nos oceanos, é necessário com-
preender como iniciativas surgidas após edição dos ODS vêm
contribuindo para o assunto. Para tal, no tópico a seguir, far-se-
á a análise das contribuições do Pacto Ecológico Europeu para
a mitigação da poluição marinha por (micro)plásticos.

3. Contribuições do Pacto Ecológico Europeu para a proteção


dos oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

Diante das alterações climáticas e da extensa degra-


dação ambiental que ameaça toda a humanidade nos dias de
hoje, a União Europeia, preocupada com a situação mundial e
com os desafios atuais e futuros advindos da crise climática,
propôs o Pacto Ecológico Europeu, como uma estratégia de en-
frentamento dessa situação (COMISSÃO EUROPEIA, 2022, on-
line).
Essa iniciativa da Comissão Europeia consiste em
um compromisso do bloco econômico voltado a guiar a trans-
formação da sua economia em uma mais moderna, competitiva
e com uma utilização eficiente dos recursos, porém que garanta,
ao mesmo tempo, emissões líquidas nulas de gases do efeito es-
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu : a evolução da proteção dos
480 I
oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

tufa até 2050; um crescimento econômico dissociado da explo-


ração de recursos; e o cuidado em não deixar nenhuma nação
para trás nesse processo (COMISSÃO EUROPEIA, 2022, online) .

Sob essa perspectiva, observa -se que, por meio da

adoção de propostas legislativas, o Pacto Ecológico Europeu ob-

jetiva que as políticas públicas da União Europeia possa estar

aptas a reduzir as emissões líquidas dos gases causadores do


efeito estufa em um mínimo de 55% até o ano de 2030, levando-

se em comparação os níveis nos anos 1990 (COMISSÃO EURO-

PEIA, 2022, online) .

Dessa forma, a partir das intenções dessa iniciativa

da Comissão Europeia, pode- se ver que as propostas trazidas


pelo Pacto e suas frentes de atuação – ações voltadas ao setores

de clima, energia, agricultura, indústria, ambiente e oceanos,


transportes, desenvolvimento turístico e regional, e investiga-

ção e tecnologia – tem um escopo ligado diretamente à promo-


ção de um desenvolvimento sustentável, nos moldes determi-

nados pela Agenda 2030, contribuindo de forma direta à conse-


cução dos ODS.

Por isso, ao direcionar a abordagem ao ODS 14 e à

poluição marinha por plásticos, percebe- se que a União Euro-

peia tem um histórico de atuação abrangente, levando em con-

sideração aspectos econômicos, sociais e ambientais ligados ao

problema, assim como tendo a integração como um dos seus

princípios basilares de atuação . Busca - se alcançar o desenvolvi-


mento sustentável por meio de ações integradas promovidas

pelos Estados e com políticas setoriais harmonizadas, visto que

o caráter transfronteiriço e difuso da poluição e proteção ambi-

ental exige esse tipo de abordagem (LEITÃO, 2021 ) .


Importa salientar que, como já abordado anterior-

mente, ao se falar de poluição marinha por resíduos sólidos, os


Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 481
plásticos são os principais e mais danosos materiais responsá-
veis por este tipo de degradação ambiental. Esses resíduos, de-
vidos à sua extensa produção e uso, afetam de maneira uni-
forme todos os continentes, havendo, na atualidade a estimativa
que o fluxo anual de (micro)plásticos adentrando os oceanos
pode triplicar até 2040, alcançando um total de 29 milhões de
toneladas métricas ao ano, ou, em equivalência, 50 quilos de
plásticos por metro de costa marítimas no mundo (Pew Chari-
table Trusts & SYSTEMIQ, 2020).
Nesse aspecto, verifica-se, ainda, que no tocante à
origem da poluição plástica, as fontes terrestres possuem clara
predominância sobre as demais, representando cerca de 80%
das emissões nos oceanos do material, estando a União Euro-
peia diretamente relacionada essa situação, visto que, assu-
mindo a posição de segunda maior produtora de plástico do
mundo, contribui de modo inequívoco às mais de 150.000 tone-
ladas plásticos e 70.000 toneladas de microplásticos que entram
nos mares europeus todos os anos (ALESSI; DI CARLO, 2018;
FAO, 2020).
Assim, de modo a enfrentar esse cenário de contami-
nação dos corpos marinhos, o bloco econômico europeu tem se
mobilizado desde 2008, com a edição da Diretiva-Quadro Estra-
tégia Marinha ‒ que se preocupou em definir a poluição mari-
nha, seus efeitos deletérios a todos os seres vivos e a necessi-
dade do uso sustentável dos bens e serviços do mar ‒, passando
pela Plano de Ação para a Economia Circular, em 2015, e , pos-
teriormente, pela Estratégia Europeia para Plásticos na Econo-
mia Circular, até chegar ao Pacto Ecológico Europeu, objeto de
estudo do presente tópico (EUROPEAN COMMISSION, 2021b;
LEITÃO, 2021).
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu : a evolução da proteção dos
482 |
oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

Figura 4. Emissões anuais de microplásticos na superfície da


água (faixas superior e inferior)
140,000
Created through wear or
120,000 un-intentional loss
600
Intentionally Added
500

tonnes
100,000 400
300
tonnes

80,000 200
100 Fer

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Fonte: HANN, S.; SHERRINGTON, C.; JAMIESON, O.; HICKMAN, M.;
KERSHAW, P.; BAPASOLA, A.; COLE, G. Investigating options for reduc-
ing releases in the aquatic environment of microplastics emitted by (but not
intentionally added in) products. 2018. Report for DG Environment of the
European Commission, 335.

Nesse sentido, levando em consideração a prevalên-


cia da emissões oriundas de atividades terrestres quando da po-

luição dos oceanos por plásticos, a iniciativa de desenvolvi-

mento sustentável mais recente da União Europeia foca a sua

atuação na implementação da economia circular e da produção


zero de poluição, para garantir um combate efetivo a essa situ-

ação (EUROPEAN COMMISSION, 2021b) .

A economia circular almeja estabelecer um ciclo per-

pétuo de reaproveitamento de materiais, de modo a garantir a

manutenção de valor dos produtos e, também, evitar a extração


Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 483
desses recursos e a produção de resíduos, que hoje correspon-
dem ao destino final de cerca de 20% de tudo que é retirado do
meio ambiente (EUROPEAN INVESTMENT BANK, 2020). As-
sim, ligada à mais de um ODS ‒ a exemplo do ODS 12, sobre
produção e consumo responsáveis ‒, a economia circular vem
sendo incentivada há muito tempo no âmbito da União Euro-
peia, o que não é diferente com a edição do Pacto Ecológico,
pois, entre os seus planos de ação, está um diretamente ligado
à economia circular, lançado em 2020, e que visa garantir: a pro-
dução de bens sustentáveis com norma na União Europeia; o
foco nos setores que usam mais recursos, como os eletrônicos,
baterias, veículos e plásticos; uma menor produção de resíduos;
e o empoderamento dos consumidores e compradores públicos
quanto ao direito de reparar seus produtos e informações mais
precisas sobre a durabilidade desses, de forma a ajudá-los na
tomada de decisão e realização de escolhas mais sustentáveis
(EUROPEAN COMMISSION, 2020).
No esteio, ressalta-se também, como mais um instru-
mento advindo do Pacto Ecológico Europeu, o Plano de Ação
Poluição Zero, adotado em 2021, e que tem o escopo de mover
o bloco econômico à ambição de alcançar um nível zero de po-
luição, prevenindo e remediando a contaminação do ar, solo,
água. Esse plano busca reunir todas as políticas da União, pre-
vendo revisões legislativas para a identificação e o preenchi-
mento de lacunas, e recorrendo às soluções digitais, com a fina-
lidade de impactar no combate e prevenção da poluição (EU-
ROPEAN COMMISSION, 2021a).
A fim de orientar um o alcance de um planeta saudá-
vel no ano de 2050, o Plano já possui algumas metas fundamen-
tais que devem ser alcançadas até o ano de 2030, mesmo ano
final para as metas trazidas pelos ODS, podendo-se destacar,
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
484 | oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

entre elas, a meta de melhorar a qualidade da água reduzindo a


produção de lixo, os resíduos de plástico libertados no mar (em
50 %) e os microplásticos libertados no ambiente (em 30 %) (EU-
ROPEAN COMMISSION, 2021a).
Desse modo, entende-se que o Pacto Ecológico Euro-
peu e os seus Planos de Ação, surgidos após a edição da Agenda
2030 e dos ODS, vão de encontro às metas estabelecidas pela
ONU, servindo como um importante mecanismo para o sucesso
dos ODS, e, no caso apresentado do ODS 14, no tocante à polu-
ição marinha causada por (micro)plásticos, uma vez que as me-
didas que vêm sendo elaboradas por essas iniciativas, buscam
mitigar, na origem, as causas que levam a chegada dos resíduos
nos mares e oceanos, trazendo uma perspectiva de efetiva redu-
ção dessa problemática no futuro.

Considerações finais

Diante do exposto, percebe-se que, na atualidade, há


um esforço global na busca por um desenvolvimento sustentá-
vel de todas as nações, o que reflete no estabelecimento de com-
promissos internacionais voltados a garantir condições e pro-
mover caminhos para esse fim. Alinhada a essas intenções da
comunidade internacional, foi elaborada, em 2015, a Agenda
2030 da ONU, documento responsável por determinar 17 obje-
tivos, cada um dividido em diversas metas, que serviram para
nortear a atuação internacional no espaço temporal de 15 anos
rumo ao alcance, por toda as nações, de um desenvolvimento
de suas sociedades de forma responsável e equilibrada.
Uma das inovações trazidas pela Agenda foi o esta-
belecimento de um objetivo voltado exclusivamente para a pro
Lucas Salles Gazeta Vieira Fernandes | 485
teção e desenvolvimento dos ecossistemas marinhos e oceâni-
cos, o ODS 14, que demonstra a relevância que esses espaços
transnacionais possuem na atualidade, podendo-se destacar,
ainda, a preocupação explícita no ODS em questão quanto à
ameaça causada pela poluição destes ambientes e a necessidade
urgente de mitigar essa problemática, em especial, em relação
aos resíduos plásticos e microplásticos, os quais mostram-se, no
contexto mundial recente, como uma das mais perigosas fontes
poluidoras, necessitando de urgente atenção.
Assim, uma vez constata a importância do ODS 14,
verifica-se o papel dos mecanismos surgidos após a edição da
Agenda 2030, voltados a dar continuidade ao seu cumprimento,
analisando-se, então, as contribuições advindas do Pacto Ecoló-
gico Europeu, iniciativa da Comissão Europeia consiste em um
compromisso do bloco econômico voltado a guiar a transforma-
ção da sua economia em uma mais moderna, competitiva e com
uma utilização eficiente dos recursos, porém que garanta, ao
mesmo tempo, emissões líquidas nulas de gases do efeito estufa
até 2050; um crescimento econômico dissociado da exploração
de recursos; e o cuidado em não deixar nenhuma nação para
trás nesse processo.
Por conseguinte, constata-se que, uma vez que a
maior parte da poluição por (micro)plásticos é oriunda de ativi-
dades terrestres, o Pacto Europeu concentra sua atuação em
uma abordagem integrada, pautada em planos de ação voltados
à promoção da economia circular e ao alcance de nível zero de
poluição, buscando, dessa forma, garantir o reaproveitamento
dos recursos e evitar que estes se transformem em lixo e acabem
chegando no corpos aquáticos.
Por isso, entende-se que o Pacto Ecológico Europeu
e os seus Planos de Ação, surgidos após a edição da Agenda
Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
486 | oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

2030 e dos ODS, vão de encontro às metas estabelecidas pela


ONU, servindo como um importante mecanismo para o sucesso
dos ODS, e no, caso apresentado, do ODS 14, no tocante à polu-
ição marinha causada por (micro)plásticos, uma vez que as me-
didas que vêm sendo elaboradas por essas iniciativas, buscam
mitigar, na origem, as causas que levam a chegada dos resíduos
nos mares e oceanos, trazendo uma perspectiva de efetiva redu-
ção dessa problemática no futuro.

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492 | Da Agenda 2030 ao Pacto Ecológico Europeu: a evolução da proteção dos
oceanos contra a poluição por (micro)plásticos

FROM THE AGENDA 2030 TO THE EUROPEAN


GREEN DEAL: THE EVOLUTION OF THE
PROTECTION OF THE OCEANS AGAINST THE
POLLUTION BY (MICRO)PLASTICS
ABSTRACT: The chapter has as research problem: What are the con-
tributions of the European Green Deal regarding the protection of the
seas and oceans, established by SDG 14, with a focus on pollution
caused by (micro)plastics? Bibliographic and documentary research
is used, based on a pure, descriptive and exploratory literature review
of scientific articles,, in the analysis of documents and reports that
deal with the topic. This research has theoretical and practical rele-
vance, as it offers an original contribution on how international initi-
atives have contributed to the achievement of the SDGs and the fight
against the degradation of the oceans by plastic waste, and allows
greater visibility to the sustainability and protection of ocean ecosys-
tems, as well as how it can provide technical and legal assistance to
governmental actions for the formulation of public policies and de-
velopment programs in this sense. It is concluded that the European
Green Deal and its Action Plans meet the goals established by the UN,
serving as an important mechanism for the success of the SDGs, and,
with regard to SDG 14 and marine pollution caused by (micro)plas-
tics, the measures that have been developed by these initiatives, seek
to mitigate, at the source, the causes that lead to the arrival of waste
in the seas and oceans, bringing a perspective of effective reduction
of this problem in the future.

Keywords: SDG 14. Agenda 2030. European Green Deal. Plastics and
microplastics.
CAPÍTULO XVI.
A MEDIAÇÃO SANITÁRIA COMO
MECANISMO DE PROMOÇÃO DO
DIREITO À SAÚDE NA PANDEMIA DA
COVID-19: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS
RELAÇÕES BILATERAIS ENTRE BRASIL E
URUGUAI

Carolina Lima Ciríaco Scipião*

William Paiva Marques Júnior**

DOI: 10.29327/5341937.1-16

Resumo: A pandemia da Covid-19 representa um dos maiores desa-


fios sanitários enfrentados pela humanidade, sendo considerada uma
crise sanitária de repercussão globalizada. Diante desse contexto de
globalização, o artigo pretende avaliar a possibilidade de aplicação
da mediação sanitária nas relações internacionais, com base na inter-
nacionalização dos direitos humanos, ênfase na promoção do direito
à saúde, e formulação de políticas públicas bilaterais ou multilaterais,
com o objetivo de promover o direito à saúde em tempo de pandemia.

*
Mestranda em Direto, Constituição e Justiça pela Universidade de Fortaleza –
UFC. Pós-graduanda em Direito e Processo Constitucionais pela Universidade de
Fortaleza – UNIFOR. Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza – UNI-
FOR. E-mail: carolina.sergestor@gmail.com.
** Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFC. Professor Adjunto do De-
partamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFC de Direito Civil
II e Direito Civil V. Professor do PPGD- UFC (Metodologia do Ensino Jurídico,
Metodologia da Pesquisa Científica e Direito Internacional). Assessor do Reitor
da UFC. E-mail: williamarques.jr@gmail.com
494 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

Para analisar a aplicabilidade desses conceitos avalia-se o Acordo Sa-


nitário firmado entre Brasil e Uruguai. A pesquisa foi realizada com
uma metodologia pura, bibliográfica, descritiva, exploratória e quan-
titativa, com aplicação de método hipotético-dedutivos. Conclui-se
que a mediação sanitária aplicada às relações internacionais é um me-
canismo eficaz de construção de políticas de promoção da saúde para
enfrentamento de crises sanitárias globalizadas.
Palavras-chave: Pandemia Covid-19. Direito à Saúde. Direitos Huma-
nos. Políticas Públicas. Mediação Sanitária.

Introdução

Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da


Saúde (OMS) declarou situação de Emergência em Saúde Pú-
blica de Importância Internacional (ESPII), em decorrência da
identificação de um surto ocasionado pelo surgimento do novo
coronavírus 2019-nCoV, identificado inicialmente na China. A
ocorrência da doença causada pelo patógeno, denominada de
Covid-19, logo foi identificada em várias localidades e países
diferentes, de forma simultânea, ocasionando o reconhecimento
pelo OMS do estado de pandemia.
A infecção causada pelo coronavírus é transmitida
pelo ar, e apresenta uma alta taxa de transmissibilidade, condi-
ção que alertou às autoridades sanitárias e científicas de todo o
mundo, diante da necessidade de definir protocolos, planos de
contingência e estratégias que fossem capazes de dirimir os efei-
tos nocivos da doença, envolvendo medidas de vigilância sani-
tária, protocolos para os casos suspeitos, medidas de prevenção
(p.ex.: distanciamento social), tratamento dos pacientes diag-
nosticados, entre outras.
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 495
O apelo da OMS era para que os países adotassem
“uma abordagem de todo governo e toda sociedade, construída em
torno da estratégia abrangente para prevenir infecções, salvar vidas e
minimizar o impacto”1, considerando que se tratava não apenas
de uma crise de saúde pública, mas que afetaria a todos os seto-
res e indivíduos.
O direito à saúde é reconhecido pelos tratados inter-
nacionais como um direito humano fundamental e universal,
inderrogável e indisponível, que deve ser concretizado no âm-
bito interno de cada Estado por meio da elaboração e execução
de políticas públicas necessárias ao seu atendimento integral,
nas medidas da prevenção e do cuidado.
A proteção dos direitos humanos constitui um dos
propósitos da Organização das Nações Unidas (ONU), entidade
internacional, integrada por 193 (cento e noventa e três) Esta-
dos-nação, que diante dos compromissos contidos na Carta das
Nações Unidas, de 1945, assumiram relações diplomáticas, tor-
nando-se sujeitos de Direito Internacional Público, adquirindo
direitos e contraindo deveres no plano das relações internacio-
nais.
Os direitos humanos são todos aqueles reconhecidos
como inerentes à dignidade humana, aplicáveis indistintamente
a todas as pessoas, de todos os povos, indistinta e independen-
temente da raça, cor, sexo, território de nascimento, tempo, e
outros elementos que constituem o ser humano, em uma pre-
tensão de universalidade.

1 WHO. Discurso de abertura do Diretor-Geral da OMS na coletiva de imprensa


sobre COVID-19 – 11 de março de 2020. Disponível em: https://www.who.int/
emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/interactive-timeline#!. Acesso em:
22 de jun. de 20222.
496 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

Chama-se de internacionalização dos Direitos Hu-


manos o reconhecimento e normatização no ordenamento jurí-
dico de cada Estado, que embora dotados de soberania e auto-
nomia, possuem o dever de garantir os direitos fundamentais
da sociedade sob sua égide, por intermédio de prestações posi-
tivas ou negativas.
As prestações estatais, visando a garantia e a imple-
mentação de direitos humanos é em grande parte realizada me-
diante a formulação de políticas públicas, onde após a identifi-
cação de uma demanda social concreta, se revertem da ação es-
tatal para concretização de objetos sociais e políticos, dentro de
determinado prazo e visando o alcance de um resultado social,
quantitativo e qualitativo.
Na pandemia da Covid-19, a crise sanitária ultra-
passa as barreiras domésticas dos Estados, demandando a ne-
cessidade de ações conjuntas dos entes nacionais para um pro-
cesso coeso de enfrentamento ao vírus. A internacionalização
da agenda de política pública tem a possibilidade de dar maior
eficiência em momentos de crise.
Dessa forma, pretende-se avaliar: é possível a aplica-
ção da mediação sanitária às relações internacionais, com base
na internacionalização dos direitos humanos, para formulação
de políticas públicas binacionais ou multinacionais, com o obje-
tivo de promover o direito à saúde em tempos de pandemia?
Assim, o artigo aborda o contexto internacional do
Direito à Saúde e dos desafios impostos pela pandemia ocasio-
nada pelo novo coronavírus Covid-19, para a seguir discorrer
acerca da internacionalização dos direitos humanos e seus re-
flexos nos ordenamentos jurídicos internos, através da imple-
mentação de políticas públicas para sua promoção, e, final
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 497
mente, averiguar se há possibilidade de adoção da mediação sa-
nitária, para construção de política pública binacional, visando
à promoção do direito à saúde no decorrer da pandemia, tendo
como fio condutor o acordo sanitário firmado entre Brasil e
Uruguai.
Para o presente estudo foi utilizado o método hipo-
tético-dedutivo, por meio de levantamento bibliográfico e do-
cumental, por meio do estudo de livros, artigos jurídicos, docu-
mentos oficiais e notícias. A pesquisa é de natureza pura, des-
critiva e exploratória, e de natureza qualitativa.

1. A pandemia da Covid-19 e o panorama internacional do


direito à saúde

Em 31 de dezembro de 2019, a representação da Or-


ganização Mundial de Saúde (OMS) na República Popular da
China teve conhecimento através de uma declaração noticiada
pela Comissão Municipal de Saúde de Wuham, capital da pro-
víncia chinesa Hubei, de casos incomuns de uma “pneumonia
viral”2.
Decorridos 3 (três) dias, a China fornece as primeiras
informações oficiais à OMS, sobre uma pneumonia atípica, com
evolução incomum. Logo em seguida, em 09 de janeiro de 2020,
a OMS comunicou ao mundo que as autoridades chinesas de-
terminaram que a doença era causada por um novo coronaví-
rus, inicialmente chamado de 2019-nCoV. Após 02 (dois) dias, a

2 WHO. Linha do tempo: resposta da OMS à COVID-19. Disponível em: https://


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498 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

primeira morte ocasionada pelo patógeno foi noticiada pela mí-


dia chinesa.
Em 30 de janeiro de 2020, o diretor-geral da OMS de-
clarou o surto do novo coronavírus uma Emergência em Saúde
Pública de Importância Internacional (ESPII), o mais alto nível
de alerta existente no Regulamento Sanitário Internacional
(RSI). A doença causada pelo novo tipo de coronavírus foi de-
nominada pela OMS de Covid-19 (WHO, 2020), em 11 de feve-
reiro de 2020. A decisão da OMS, ora referenciada, buscou apri-
morar a coordenação, a cooperação e a solidariedade global
para interromper a propagação do vírus.
Dada a ocorrência simultânea da doença em diferen-
tes países, não tardou para que a Organização reconhecesse a
crise sanitária como uma pandemia global, o que ocorreu em 11
de março de 2020, por meio de uma coletiva de imprensa do
Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus3.

3 Na coletiva de impressa, o Diretor-geral da OMS destacou: “Nas últimas semanas


duas semanas, o número de casos de COVID-19 fora da China aumentou 13 vezes
e o número de países afetados triplicou. Existem agora mais de 118.000 casos em
114 países e 4.291 pessoas perderam a vida. Milhares de outros estão lutando por
suas vidas em hospitais. Nos próximos dias e semanas, esperamos ver o número
de casos, o número de mortes e o número de países afetados aumentar ainda mais.
A OMS tem avaliado esse surto 24 horas por dia e estamos profundamente preo-
cupados tanto com os níveis alarmantes de disseminação e gravidade quanto com
os níveis alarmantes de inação. Portanto, avaliamos que o COVID-19 pode ser
caracterizado como uma pandemia.
Pandemia não é uma palavra para usar de forma leve ou descuidada. É uma pa-
lavra que, se mal usada, pode causar medo irracional ou aceitação injustificada
de que a luta acabou, levando a sofrimento e morte desnecessários. Descrever a
situação como uma pandemia não muda a avaliação da OMS sobre a ameaça re-
presentada por esse vírus. Não muda o que a OMS está fazendo e não muda o
que os países deveriam fazer. Nunca antes vimos uma pandemia desencadeada
por um coronavírus. Esta é a primeira pandemia causada por um coronavírus. [...]
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 499
Esta crise sanitária, de consequências incalculáveis,
atingiu a todos os continentes do globo terrestre. Conforme re-
gistrado pela OMS, até 07 de novembro de 2022, houve a con-
firmação da ocorrência de 629.370.889 (seiscentos e vinte e nove
milhões, trezentos e setenta mil e oitocentos e oitenta e nove)
casos confirmados de Covid-19, dos quais 6.578.245 (seis mi-
lhões, quinhentos e setenta e oito mil, duzentos e quarenta e
cinco) resultaram em óbito4.
Os resultados advindos da pandemia não poderiam
ter sido estatisticamente previstos, contudo, foram anunciados.
O enfrentamento da pandemia demandava uma governança
centralizada, de caráter global, pautada na colaboração, frater-
nidade, solidariedade, no pensar coletivo. No entanto, a OMS,
como maior autoridade sanitária do planeta, o que pôde fazer
em termos práticos não foi o suficiente para garantir que os pa-
íses, cada qual com seus sistemas de governo, legislações, cul-

Não podemos dizer isso alto o suficiente, com clareza suficiente ou com frequên-
cia suficiente: todos os países ainda podem mudar o curso dessa pandemia. Se os
países detectarem, testarem, tratarem, isolarem, rastrearem e mobilizarem seu
povo na resposta, aqueles com um punhado de casos podem impedir que esses
casos se tornem clusters e esses clusters se tornem transmissão comunitária. [...]
Todos os países devem encontrar um bom equilíbrio entre proteger a saúde, mi-
nimizar as perturbações econômicas e sociais e respeitar os direitos humanos.
O mandato da OMS é a saúde pública. Mas estamos trabalhando com muitos par-
ceiros em todos os setores para mitigar as consequências sociais e econômicas
dessa pandemia. Esta não é apenas uma crise de saúde pública, é uma crise que
afetará todos os setores – portanto, todos os setores e todos os indivíduos devem
estar envolvidos na luta. Eu disse desde o início que os países devem adotar uma
abordagem de todo o governo, de toda a sociedade, construída em torno de uma
estratégia abrangente para prevenir infecções, salvar vidas e minimizar o im-
pacto”.
4 WHO. Painel da OMS sobre o coronavírus (COVID-19). Disponível em: https://
covid19.who.int/. Acesso em: 07 nov. 2022.
500 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

tura, costumes, e diferentes sistemas de saúde, realizassem to-


das as ações necessárias a aplacar ou amenizar os impactos vin-
douros.
O direito à saúde reconhecido em âmbito internacio-
nal como direito humano, deve ser garantido nas dimensões da
prevenção e do cuidado, a partir de uma perspectiva de bem-
estar físico e mental a todos os seres humanos. Atualmente, este
direito humano tratado em âmbito internacional através das
principais legislações sanitárias que serão a seguir apresenta-
das.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) é uma
agência da Organização das Nações Unidas (ONU), cujo papel
principal é coordenar a saúde em nível global, constituída em
22 de julho de 1946, e oficialmente criada em 07 de abril de 1948,
quando entrou em vigor a sua Constituição.
A Constituição da OMS conceitua a saúde como “um
estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não con-
siste apenas na ausência de doença ou de enfermidade”, e pre-
ceitua que a saúde é um “direito fundamental de todo o ser hu-
mano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de
condição econômica ou social” (WHO, 1948).
Conforme as diretrizes oriundas da Organização
Mundial da Saúde (OMS), deve-se respeitar a autodetermina-
ção dos povos e colocar a saúde no centro das agendas para ela-
boração de políticas públicas, já que a saúde assume papel ve-
torial na efetividade dos demais direitos fundamentais sociais.
Nessa esteira, o direito à saúde foi consagrado como
direito fundamental no plano internacional, por meio da Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assem-
bleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, reconhecida
como o primeiro instrumento internacional, de caráter geral
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 501
(MARTINS, 2017), que em seu art. 25 expressou a universali-
dade dos direitos humanos.
Posteriormente à Declaração, a Assembleia das Na-
ções Unidas com o objetivo de positivar estes direitos, solicitou
a Comissão de Direitos Humanos a elaboração de um texto que
acolhesse direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais
(MARTINS, 2017).
Em 1966, o trabalho realizado pela Comissão de Di-
reitos Humanos resultou na elaboração de 02 (dois) pactos in-
ternacionais: Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Polí-
ticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, realizando a institucionalização dos direitos do ho-
mem nas relações internacionais (COMPARATO, 2003).
O direito humano à saúde foi retratado e detalhado
no Artigo 12 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômi-
cos, Sociais e Culturais (BRASIL, 1992), dando ênfase a necessi-
dade de prestações positivas por parte dos entes estatais para
implementação de ações que visem a promoção da saúde.
Nessa conjuntura, Comparato (2003) adverte que a
implementação de políticas de saúde é um direito universal,
que engloba a prevenção e a assistência, cabendo aos sistemas
de saúde de cada Estado estabelecer os mecanismos necessários
para seu atendimento.
Vê-se, portanto, que o direito à saúde, reconhecido
como um direito humano, inderrogável e indisponível, se con-
cretiza através da elaboração e execução de políticas públicas,
que a partir de seu reconhecimento universal passa a ser não
apenas de responsabilidade dos Estados, em plano doméstico,
mas de toda a coletividade internacional (COMPARATO, 2003).
502 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

Essa premissa foi ratificada na Convenção Mundial


de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em 1993, que culmi-
nou na elaboração da Declaração e Programa de Ação de Viena
(1993), que dispõe:
4. A promoção e proteção de todos os direitos hu-
manos e liberdades fundamentais devem ser con-
sideradas como um objetivo prioritário das Na-
ções Unidas, em conformidade com seus propósi-
tos e princípios, particularmente o propósito da
cooperação internacional. No contexto desses pro-
pósitos e princípios, a promoção e proteção de to-
dos os direitos humanos constituem uma preocu-
pação legítima da comunidade internacional. Os
órgãos e agências especializados relacionados com
os direitos humanos devem, portanto, reforçar a
coordenação de suas atividades com base na apli-
cação coerente e objetiva dos instrumentos inter-
nacionais de direitos humanos.
5. Todos os direitos humanos são universais, indi-
visíveis interdependentes e inter-relacionados. A
comunidade internacional deve tratar os direitos
humanos de forma global, justa e equitativa, em pé
de igualdade e com a mesma ênfase. Embora par-
ticularidades nacionais e regionais devam ser le-
vadas em consideração, assim como diversos con-
textos históricos, culturais e religiosos, é dever dos
Estados promover e proteger todos os direitos hu-
manos e liberdades fundamentais, sejam quais
forme seus sistemas políticos, econômicos e cultu-
rais.

Para definir os métodos e os meios de regulação que


os Estados-membros devem seguir para promoção e a tutela
universal do direito à saúde, na 58ª Assembleia da Organização
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 503
Mundial da Saúde, realizada em 2005, foi aprovado o Regula-
mento Sanitário Internacional (RSI), considerado instrumento
jurídico vinculante, e ratificado pelos países integrantes da
ONU.
O propósito do Regulamento é “prevenir, proteger,
controlar e dar uma resposta de saúde pública contra a propa-
gação internacional de doenças, de maneiras proporcionais e
restritas aos riscos para saúde pública...”, por meio da definição
de obrigações a serem cumpridas pelos Estados, que envolvem
a comunicação com a OMS, o sistema de notificações e troca de
informações, o desenvolvimento de serviços de vigilância, a res-
posta aos eventos de saúde pública, entre outros instrumentos
gerenciais.
Contudo, um outro ponto focal do Regulamento, que
é de extrema relevância para o presente estudo, diz respeito à
cooperação entre os Estados, estabelecida no artigo 44, cuja re-
dação diz: “Artigo 44 Colaboração e assistência 1. Os Estados
Partes comprometem-se a colaborar entre si na medida do pos-
sível”.
A ratificação dos termos do RSI representa a concor-
dância dos Estados-partes em relação a necessidade de uma go-
vernança sanitária internacional, que seja capaz de coordenar
ações, concentrar esforços e desenvolver soluções para os pro-
blemas globais em saúde.
Com o reconhecimento da pandemia da Covid-19, e
a rápida disseminação da doença, a comunidade global passou
a enfrentar o mesmo desafio simultaneamente, a necessidade de
garantir o direito humano à saúde e a preservação da vida.
Segundo Norberto Bobbio (2004), apenas através da
proteção dos direitos humanos é possível assegurar a sobrevi-
vência frente às guerras e terrorismos, e, assim o tema saúde
A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
504 |
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

passou a figurar no topo das preocupações da sociedade global

(ALMEIDA e ALMEIDA, 2021 ) , uma vez que todos os segmen-


tos sociais foram atingidos de alguma forma pela pandemia, o

maior desafio era o de preservar o maior número de vidas, atra-


vés da promoção da saúde e do combate à Covid- 19 .

Embora a crise sanitária não possa ser denominada


de guerra, em sentido estrito, o enfrentamento ao novo corona-
vírus demandou uma verdadeira operação conjunta dos princi-

pais setores da comunidade internacional, reunindo esforços


sociais, econômicos, jurídicos, ambientais e científicos na busca

por respostas e soluções que fossem capazes de atenuar os im-

pactos da pandemia .
O disciplinamento normativo das medidas combati-

vas ao Coronavirus surge a partir da proteção aos direitos fun-

damentais sociais, especialmente a necessidade de criação de

sistemas de proteção à saúde . Na visão de Luigi Ferrajoli , tam-


bém os direitos sociais, como os direitos à saúde e ao meio am-

biente, exigem limites e proibições de lesões.


A situação demandou da Organização Mundial de

Saúde a coordenação da crise, e assim foi elaborado o primeiro

documento de preparação e resposta à pandemia, denominado

Plano Estratégico de Preparação e Resposta à Covid- 19 (SPRP)

(PAHO/WHO, 2020), que apresentava ações estratégicas e ori-


entações a serem tomadas em níveis nacional e internacional .

Seguindo as diretrizes do plano, a grande maioria


dos países afetados, também estabeleceram individualmente

seus planos de contingência e enfrentamento ao coronavirus,

5
FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Debate sobre el derecho y la democracia. Tra-
ducción: Andrea Greppi. Segunda edición . Madrid : Editorial Trotta, 2009, p . 115.
Tradução livre: “...también los derechos sociales, como por ejemplo los derechos
a la salud y al medio ambiente, requieren límites y proibiciones de lesión..."
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 505
estabelecendo estratégicas sanitárias, epidemiológicas e de tra-
tamento.
Importante ressaltar que o Mercosul (2020), alinhado
às diretrizes da OMS, elaborou a “Declaración de Asunción de la
Reunión de Altas Autoridades sobre Derechos Humanos em el MER-
COSUR (RAADDHH) sobre la Promoción y Protección de los Dere-
chos Humanos en Situación de Pandemia COVID-19”, reforçando
uma importante mensagem quanto à necessidade do planeja-
mento de ações coordenadas entre os Estados.
Nessa ordem de ideias, em seus primeiros meses, o
PROSUL logo foi obrigado a responder a um desafio inédito na
história recente da integração regional sul-americana, qual seja:
a necessidade de combate à pandemia sanitária da COVID-19.
Respeitando a soberania dos países participantes, o bloco criou
mesas de trabalho ad hoc sobre o quadro pandêmico, com resul-
tados práticos e contribuições para as respostas nacionais à do-
ença.
Contudo, nem todos os esforços e planos estratégicos
e de enfrentamento parecem ter sido suficientes para aplacar os
efeitos causados pela pandemia da Covid-19, principalmente no
quesito salvar vidas.
A pandemia da Covid-19 tornou clarividente a ne-
cessidade de pensar a saúde em nível global, através de planos
e ações coordenadas que tornem os resultados mais rápidos e
eficazes para proteção do direito à saúde, em contraponto as ati-
tudes concorrentes e descoordenadas (ALMEIDA e ALMEIDA,
2021), como a concorrência entre os países na corrida para a
compra de medicamentos, materiais médico-hospitalares, equi-
pamentos de proteção individual, fechamento de fronteiras, a
omissão de informações e a falta de compartilhamento de des-
cobertas científicas.
506 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

A crise da Covid-19 representa um marco na globali-


zação dos problemas sociais, reforçando a necessidade da cria-
ção de alternativas e meios eficazes de enfrentamento para os
problemas coletivos, analisando possibilidades, limites e explo-
rando novas formas de construção social, através da colabora-
ção e da fraternidade. Muito embora, a colaboração entre os pa-
íses prevista no texto do RSI não possua um caráter vinculante
(AKAOUI e SOUZA, 2021) o que se pretende é avaliar e explo-
rar alternativas adotadas entre os países para o enfrentamento
da pandemia.

2. A internacionalização dos direitos humanos e a formação


de agendas de políticas públicas nas relações
internacionais

A globalização representa a quebra de barreiras físi-


cas entre os Estados, demonstra a necessidade de pensar cole-
tivo, em âmbito de atuação maior que o território e as fronteiras
dos países considerados em plano doméstico. Exige a transcen-
dência das relações humanas, sociais, ambientais, jurídicas, e
econômicas, em busca da compatibilização com uma vida glo-
balizada, sem fronteiras.
A proteção internacional aos Direitos Humanos,
constitui um dos propósitos da Organização das Nações Unidas
(ONU), organização internacional que possui 193 (cento e no-
venta e três) países integrantes6, que subscrevem a Carta das
Nações Unidas, assinada em 26 de junho de 1945, na cidade de

6 ONU. UNITED NATIONS, ABOUT-US. Disponível em: https://www.un.org/en/


about-us. Acesso em 22 jun. 2022.
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 507

São Francisco, Estados Unidos , ou seja, que assumiram relações

diplomáticas dela inerentes, adquirindo direitos e deveres no


plano das relações internacionais .

Desse modo, imperioso delinear a noção dos termos:

relações internacionais e Estado, conferindo uma melhor per-

cepção da correlação existente com a análise a ser apresentada


adiante .

A disciplina Relações Internacionais se dedicada a

estudar as interações e os fenômenos internacionais, que ultra-

passam os limites territoriais de um país . A matéria propõe a


estruturação das relações sociais que se estabelecem além dos

limites fronteiriços de cada território nacional, oferecendo pa-


drões, técnicas e instrumentos para esta interação (PECE-

QUILO, 2012) .

Propondo-se a estudar o formato destas interações

entre os países, a prática da disciplina exige uma multiplicidade

de perspectivas e temas, adotando conceitos multidisciplinares


e "emprestados " das Ciências Sociais, como a Ciência Política,
a Economia, a História e o Direito (PECEQUILO, 2012) .

Com essa metodologia, o estudo das interações entre


as sociedades é realizado de forma complexa e aplicada de
forma sincrônica às mais variadas relações que possam se esta-

belecer entre os autores e sujeitos do direito internacional .

Quanto ao conceito de Estado, à margem das diver-


sas definições existentes, sobre diferentes perspectivas sociais,
políticas e filosóficas, Boson ( 1996) afirma que se trata da con-

centração de competências, em 3 (três) esferas: administrativa,

7 ONU. BRASIL . Carta das Nações Unidas. Disponível em: https://brasil.un.org/si-


tes/default/files/2022-05/Carta-ONU.pdf. Acesso em: 22 jun. 2022.
508 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

legislativa e jurídica, que regulamentam os valores sociais, vi-


sando a promoção do bem-estar e a pacificação. O Estado repre-
senta o poder da sociedade, exercido por meio de seus repre-
sentantes.
Essa definição associa a noção de Estado ao conjunto
de condições inerentes para que haja organização social e polí-
tica de um território, com delimitação de competências, em que
o poder e a autoridade máxima são delegados aos representan-
tes do povo, que, em contrapartida, devem garantir aos seus
concidadãos a realização de direitos individuais e coletivos.
Ademais, Boson (1996) defende que no âmbito do Di-
reito Internacional Público, compreendido como uma ramifica-
ção do direito internacional que se dedica as normas, leis, trata-
dos e demais instrumentos que regem as relações transnacio-
nais, os Estados são compreendidos como sujeitos de direitos,
dotados de personalidade jurídica internacional, dispondo de
direitos e contraindo deveres, frente a ordem jurídica internaci-
onal.
Nesse plano, o Estado é conectado aos conceitos de
soberania nacional, enquanto detentor de poder político dentro
de seu território, e, autonomia, caracterizada pelas aptidões de
autogovernar-se, auto-organizar-se e autoadministrar-se, impli-
cando em definir sua ordem jurídica pela adoção de uma Cons-
tituição, que delimite as competências legislativas, executivas e
judiciárias, inerentes às funções estatais, possuindo a “compe-
tência das competências” (BOSON, 1996).
Todavia, ainda que avultada a ideia da soberania es-
tatal, não pode ser desprezada a necessidade imperativa aos Es-
tados de delimitar suas competências, o que torna essencial o
reconhecimento de direitos e deveres internamente para com o
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 509
seu povo, e, frente à ordem jurídica internacional, pois como su-
jeito personificado é considerado titular de direitos e deveres, e
por isso, subordinado e protegido pelos seus regramentos.
Nesse cerne, desponta o dever elementar de proteção
dos direitos humanos no âmbito de cada ordenamento jurídico
dos Estados-membros que fazem parte da Organização das Na-
ções Unidas (ONU), uma vez que acataram e subscreveram a
Carta, e seus propósitos, dos quais destaca-se para o momento
o item 3 do Artigo 1, que trata da cooperação internacional para
resolução de problemas internacionais e para promoção e estí-
mulo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para
todos, sem qualquer distinção.
Os direitos humanos elementares à dignidade hu-
mana devem ser garantidos e integrados no sistema jurídico in-
terno de cada nação, pois, embora o Estado goze de soberania e
autonomia do ponto de vista internacional, possui interna-
mente o dever de delimitar competências e garantir direitos
fundamentais aos seus indivíduos, através da instituição de
uma Constituição, com a previsão de prestações positivas e ne-
gativas pelo ente estatal, em contrapartida aos direitos e deveres
de seus cidadãos.
Para Caridad Velarde (2006, p. 229/230), os direitos
humanos são culturais e a-históricos, o que não significa que
eles são absolutamente relativos: eles pertencem a uma deter-
minada cultura, e através do diálogo intercultural e pode ser as-
sumida por outras. Pode-se dizer, nesse sentido, eles são uni-
versalizáveis, porque o fato de que os direitos, tanto como um
conceito, como no que diz respeito ao seu conteúdo, sejam cul-
turais, não significa que só fazem sentido no campo cultural.
Eles têm, no entanto, a capacidade de transcender aos limites do
espaço e do tempo.
510 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

Conforme dito, o Estado é ator responsável pela pro-


moção do bem-estar social, o que lhe confere a função de garan-
tir o pleno exercício dos direitos subjetivos dos cidadãos que vi-
vem sob a égide de sua ordem jurídica. Pari passu, a estes indi-
víduos é conferida a prerrogativa de cobrar dos entes estatais as
ações necessárias para efetividade dos seus direitos individuais
e coletivos, realizando o Estado perante os objetivos de sua ins-
titucionalização (BOSON, 1996).
Juntos, esses dois elementos, subscrição da Carta da
ONU e o “dever ser” do Estado, impõem a internalização destes
direitos em cada ordenamento, o que se pode denominar de in-
ternacionalização dos direitos humanos, que demuda a antes
prerrogativa em dever e obrigações inafastáveis, que altera a
ideia de total soberania em detrimento da necessidade de ga-
rantir a inviolabilidade dos direitos humanos, mesmo que inter-
namente (JAPIASSU, 2008)
Entende-se, portanto, que a internacionalização nada
mais é do que a compatibilização dos direitos internos de um
determinado sistema jurídico com os direitos, regras e tratados
produzidos no plano internacional, evidenciando o que Kelsen
(2005) explica, que “não existe nenhuma fronteira absoluta en-
tre o Direito nacional e o Direito internacional”.
Esse movimento é retratado nos processos de consti-
tucionalização dos direitos humanos observados com maior in-
tensidade a partir da Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos de 1948 (LAFER, 2005), que consagra a liberdade e igual-
dade de todos os homens, em dignidade e direitos.
O processo de constitucionalização representa o re-
conhecimento dos direitos dos homens consagrados na Carta
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 511
das Nações Unidas e ratificados na Declaração dos Direitos Hu-
manos, representando a codificação e a tutela desses direitos
nos ordenamentos jurídicos internos de cada Estado.
No tecido das relações firmadas entre os direitos hu-
manos e as relações domésticas e internacionais, é que são cria-
das as condições de efetividade e democratização da dignidade
humana, como afirma Bobbio (2004) em sua obra “A era do Di-
reitos”.
A internacionalização dos direitos humanos e seu re-
conhecimento interno mediante a constitucionalização e a codi-
ficação de cada ordenamento, conferem-lhe a garantia de prote-
ção e de efetividade, exigindo de cada Estado-nação a adoção
dos meios necessários à sua consecução, o que se desdobra na
agenda de políticas públicas sociais.
Quando a ameaça aos direitos humanos perpassa as
fronteiras territoriais, entretanto, apresenta-se de forma irres-
trita a comunidade global, como no caso da pandemia da Co-
vid-19, faz-se necessária a conjugação de esforços alinhados en-
tre os países para tutela do direito à saúde e à vida. E, nesse
panorama, o desenvolvimento de políticas públicas transfron-
teiriças, que tenham a fraternidade como elemento fundamen-
tal, que visem a proteção de direitos humanos não apenas do
seu espaço doméstico, mas de forma globalizada.
Para Lasswell (1936), a definição de políticas públi-
cas pode ser compreendida como o conjunto de elementos que
compõem os processos de análises e decisões que buscam solu-
cionar demandas sociais e coletivas, por meio da criação de pla-
nos de ação, a partir dos questionamentos: quem ganha o quê?
Porquê? Que diferença faz?
No plano operacional, Bucci (2006) afirmar que as
políticas públicas podem ser definidas como ações de governo
A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
512 | pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

que decorrem de processos juridicamente regulados, que pre-


tendem a concretização de objetos sociais e políticos, através de
um plano de ação que contemple seus objetivos, a definição dos
métodos e meios empregados para sua consecução, o estabele-
cimento de prazos, e o resultado esperado.
A formulação de políticas públicas demanda a estru-
turação de elementos essenciais, que sejam capazes de definir:
(I) o programa administrativo, que define o conteúdo da polí-
tica, seus objetivos, os meios de operacionalização e os compe-
tentes de aferição de seus resultados; (II) a ação-coordenação,
que se reveste no programa de ação para alcançar o objetivo so-
cial pretendido, que demanda a estipulação de metas quantita-
tivas e qualitativas a serem alcançadas em um prazo determi-
nado; e, (III) o processo, que envolve a participação dos grupos
de interesse implicados (BUCCI, 2006).
É considerando o elemento “processo” que se abre o
campo de formação das políticas públicas além das fronteiras
domésticas de um Estado, a partir da identificação de situações-
problema que extrapolam as barreiras de um território, e se tor-
nam globalizadas, como nos casos das políticas de preservação
do meio-ambiente, políticas econômicas, políticas sanitárias, en-
tre outras.
Para BUCCI (2006), quando identificada a multinaci-
onalização de um problema, ainda que o Estado nacional não
perca o seu protagonismo nos processos de definição de políti-
cas públicas domésticas, a interação e as articulações com atores
externos, que estão no enfrentamento simultâneo da crise, po-
dem tornar-se compulsórias entre o local e o internacional.
Estas obrigações, que decorrem dos tratados interna-
cionais, podem oferecer soluções mais eficazes para a superação
global, diante da adoção de ações coordenadas, conjugadas e
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 513
complementares, que não se encerram na fronteira de um país,
que ao ser atravessada encontram-se espelhadas nos territórios
vizinhos.
Assim, a internacionalização da agenda de uma po-
lítica pública pode conferir uma maior eficiência ao enfreta-
mento da crise global, auxiliar as políticas internas, fortalecer as
ações locais, garantir o apoio de outros Estados, ampliar a ex-
tensão de proteção dos direitos humanos, e, sobretudo, confir-
mar as boas intenções de uma país no âmbito de suas relações
internacionais.
Ademais, aponta Almeida (2022) que este processo
pode corroborar na política interna através da superação de vul-
nerabilidades locais, através da troca de experiências e disponi-
bilização de recursos, garantindo o acesso à informação, as ex-
periências e os conhecimentos produzidos pelos entes externos,
a busca de recursos e investimentos e a legitimação da atuação
política, fortalecendo o fundamento de suas decisões na exper-
tise dos atores extranacionais.
A participação do que convencionou chamar de ato-
res extranacionais (ALMEIDA, 2022), que são considerados
aqueles que estão “fora” das atividades domésticas de governo,
é essencial para a construção das políticas públicas bilaterais ou
multilaterais, conquanto oferecem suporte para conectar todos
os envolvidos na conjugação de esforços necessários à solução
dos problemas identificados, envolvendo cada vez mais a par-
ticipação de entidades extranacionais, que atuam como verda-
deiros mediadores das relações entre diferentes nações.
Esclarecido o fenômeno da internacionalização dos
direitos humanos, e a possibilidade da construção conjunta de
políticas públicas que ultrapassam os territórios nacionais,
514 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

passa-se a perquirir a possibilidade da adoção da mediação, es-


pecificamente, da mediação sanitária na construção de agendas
políticas que visem a garantia de proteção e de acesso do direito
à saúde em tempo de pandemia.

3. A mediação sanitária aplicada para formação de uma


política pública bilateral de proteção ao direito humano à
saúde: o enfrentamento à pandemia nas zonas de fronteira
entre o Brasil e Uruguai

Antes de adentrar no mérito e na análise da possibi-


lidade de aplicação da mediação sanitária, aqui, especifica-
mente, para construção e consecução de políticas públicas bila-
terais ou multilaterais, faz-se mister compreender os conceitos
empregados à técnica de mediar, e seu emprego no campo das
relações internacionais.
A mediação é considerada um processo que busca
superar a lógica litigiosa, onde há necessidade de intervenção
de um “juiz”, para solução de controvérsias entre duas ou mais
partes. Fundamentada no Direito Fraterno, propõe a participa-
ção ativa dos atores envolvidos no conflito, na busca por uma
resposta em que a ideia de vencedor e perdedor é completa-
mente destituída de força, uma vez que o resultado a ser pro-
duzido deve convergir à vontade das partes (MARTINI, 2019).
A técnica deve fomentar as relações humanas, com
base no diálogo, fazendo com que os envolvidos sejam capazes
de apresentar soluções pacíficas para as disputas e desentendi-
mentos, incentivando o protagonismo dos sujeitos (LOPES e
BETARSO, 2022).
O processo de mediar pode ser aplicado a todo tipo
de conflito, através da autocomposição assistida, em que há a
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 515
participação de um terceiro, que deve estar dotado de imparci-
alidade, cujo interesse deve estar voltado unicamente à auxiliar
as partes no processo de auto decisão, conduzindo a uma reali-
zação mútua, onde a decisão é expressão de um acordo de von-
tade dos envolvidos, e não uma imposição do terceiro (WA-
RAT, 2001).
Warat (2001) define mediação, a partir da seguinte
descrição:

A mediação é:
A inscrição do amor no conflito
Uma forma de realização da autonomia
Uma possibilidade de crescimento interior através
do conflito
Um modo de transformação dos conflitos a partir
das próprias identidades
Uma prática dos conflitos sustentada pela compai-
xão e pela sensibilidade
Um paradigma cultural e um paradigma especí-
fico do Direito
Um modo particular de terapia
Uma nova visão da cidadania, dos direitos huma-
nos e da democracia

Essa definição apresenta a mediação como um meca-


nismo que ultrapassa a barreira dos conflitos individuais, con-
ferindo-lhe uma nova visão de concretude da “cidadania, dos
direitos humanos e da democracia”, elevando o emprego da téc-
nica às relações sociais, políticas, econômicas, ambientais, sani-
tárias, entre outras, que emanam a necessidade de um uma vi-
são coletiva, pública e fraterna.
No campo das relações internacionais, a mediação é
utilizada como um meio de solução das controvérsias que pos-
sam suceder entre os Estados-nação, conforme o Artigo 33 da
516 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

Carta das Nações Unidas, em que constam os meios de “Solução


Pacífica de Controvérsias” adotados pela ONU.
Sobre a necessidade de construção de um processo
de solidariedade global, Stefano Rodotà (2016, p. 4) entende
que, nos tempos difíceis é a força das coisas que faz referência a
princípios que nos permitem escapar à contingência e à lógica
nua e crua do poder, redescobrindo uma raiz profunda da soli-
dariedade como sinal de não agressão entre os homens, como
necessidade ineliminável.
Na interseção das definições desenvolvidas, no
campo das Relações Internacionais, e, especificamente para o
Direito Internacional Público, o Estado é considerado sujeito de
direito, ou seja, titular de direitos e deveres. Dessa forma, em
relação aos seus pares, que gozam de iguais prerrogativas e
obrigações, ficam submetidos às normas internacionais para in-
termediar suas interações.
Tendo em consideração que cada nação possui seus
próprios regramentos, esta associação necessita da convergên-
cia entre o ordenamento jurídico de um Estado e o sistema jurí-
dico Internacional, arrefecendo as diferenças e preenchendo
possíveis lacunas contribuindo para que haja sinergia e a obser-
vância das normas (GUERRA, 2007).
Quando não há consenso surgem as disputas e os
conflitos, que são orientados pelas normas internacionais, e que
podem ser resolvidos por meios diplomáticos, meios políticos,
meio semijudicial, meios judiciais, sanções ou meios coercitivos
(MAZZUOLI, 2011).
A mediação aplicada para soluções de conflitos
transnacionais, é definida pela doutrina de Direito Internacio-
nal Público como um método de composição amigável, em que
há a participação de um terceiro nas negociações entre as partes
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 517
(GUERRA, 2007), com a finalidade de solucionar os possíveis
impasses com a participação ativa dos envolvidos.
Com o advento da Carta das Nações Unidas, a reso-
lução dos litígios deve privilegiar os modos pacíficos, dos quais
a mediação é uma ferramenta que emprega a negociação assis-
tida para solução de uma disputa surgida entre dois ou mais
Estados (MELLO, 2002).
Em que pese, o fenômeno da globalização, que des-
cola o indivíduo para um espaço de cidadania comum, na ideia
da coletivização dos direitos humanos e de cidadania, os cha-
mados direitos dos homens, demandam a constante ampliação
e extensão de ações para sua concretude (WARAT, 2001), rei-
vindicando dos Estados ações inovadoras, criativas e conjuntas
em momentos de instabilidade social, política e econômica.
No contexto da pandemia da Covid-19, uma das mai-
ores crises sanitárias globais já registradas, a mediação sanitária
se apresenta como uma via de construção para garantia do
acesso ao direito humano à saúde. Dada a circunstância imposta
pela doença, torna-se clarividente a impossibilidade de tratar
com rivalidade as demandas impostas para salvaguardar um
direito elementar à preservação da vida humana.
A mediação sanitária oferece a alternativa de pensar
os desafios de forma coletiva, envolvendo os agentes responsá-
veis à necessidade de trabalhar a tríade Direito, Saúde e Cida-
dania por meio de um diálogo que seja capaz de apresentar so-
luções para efetividade do direito à saúde (ASSIS, 2015), deve
ser compreendida como um importante mecanismo de criação
de política pública que demanda a participação ativa dos atores
envolvidos em realizar os pactos sociais advindos de seus res-
ponsabilidades estatais, e no plano internacional, na colabora-
ção para promoção e estímulo aos direitos humanos.
A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
518 |
pandemia da Covid-19 : uma análise a partir das relações bilaterais ...

A importância de pensar na mediação sanitária apli-

cada às relações internacionais, em contexto de pandemia, veri-


fica-se pela impossibilidade de delimitar o espaço de crise, ante
uma doença que desconhece barreiras físicas, as alternativas de

enfrentamento ao patógeno invisível do coronavirus exige ul-


trapassar a mentalidade local e extrapolar o território de cada

país.
O surgimento de espaços globalizados, não naciona-

lizados, demanda democratização política dos direitos huma-

nos em face dos Estados-nação, o que pode em determinado


contexto exigir ações conjuntas, bilaterais ou multilaterais para
materialidade desses direitos .

Essa situação é ainda mais imperativa sob a ótica de

fronteira, de países vizinhos, que possuem cidades-gêmeas,

contíguas, em que os seus cidadãos transitam sem barreiras por

um e outro território . Nesses espaços, a mediação sanitária

transnacional seria um meio possível de solucionar possíveis


impasses, permitir a colaboração fraterna entre os Estados, e a
criação e internacionalização de uma política pública com vista

a garantir o direito humano à saúde, independentemente do lo-


cal de nascimento e moradia fixa do indivíduo.

Como exemplo tem - se o Acordo Sanitário firmado

entre o Brasil e o Uruguai, que se tornou o primeiro convênio

formalizado entre países latino-americanos na busca de ações


conjuntas de enfrentamento à pandemia do Covid- 198.

8 RIO GRANDE DO SUL . Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul. CORONAVÍ-


RUS - Acordo Santitário entre Brasil e Uruguai começa a dar resultados . Publica-
ção em 08/07/2020 às 16h28min. Disponível em: https://saude.rs.gov.br/acordo-
sanitario-entre-brasil-e-uruguai-e-tema-de-reuniao-da-comissao- do-mercosul-e-
assuntos-internacionais . Acesso em: 10 jun 2022 .
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 519
Em 26 de junho de 2020, o Ministerio de Salud Pública
do Uruguai noticiou em seu sítio eletrônico oficial a formaliza-
ção de um “Acuerdo histórico entre Uruguay-Brasil para el control
de la COVID-19 en la frontera”9, com inovação no conceito de uni-
dade de saúde binacional, e cooperação internacional entre os
países, destacando que o convênio representa um grande
avanço para a capacidade diagnóstica, métodos diagnósticos e
o controle da doença nos município de Sant’Ana do Livra-
mento, localizado no Brasil, e o município de Rivera, localizado
em território uruguaio, por intermédio da definição de uma po-
lítica sanitária conjunta entre as fronteiras, com o estabeleci-
mento de uma investigação epidemiológica em comum, a coo-
peração através do fornecimento de exames para pacientes com
suspeita de infecção, entre outras ações eficazes em matéria sa-
nitária.
O acordo firmado entre Brasil e Uruguai, contou com
a participação da Comissão Binacional Assessora de Saúde na
Fronteira Brasil-Uruguai (CBAS), que diante da relevância e ur-
gência do combate à pandemia da Covid-19, convocou o Subco-
mitê de Cooperação em Matéria de Saúde do Comitê de Fron-
teira Sant’ana do Livramento-Rivera, em comum acordo, para
discutir as propostas de coordenação sanitária e epidemiológica
nas cidades gêmeas (BRASIL, 2022).
A iniciativa pode ser considerada como o desdobra-
mento das negociações iniciadas no âmbito do Mercado Co-
mum do Sul – MERCOSUL, bloco econômico de natureza inter-

9 URUGUAY. Ministerio de Salud Pública. Notícias. Acuerdo histórico entre Uru-


guay- Brasil para el control de la COVID-19 en la frontera. Disponível em: https://
www.gub.uy/ministerio-salud-publica/comunicacion/noticias/acuerdo-histo-
rico-entre-uruguay-brasil-para-control-covid-19-frontera. Acesso em: 10 jan. 2022.
520 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

governamental, criado pelo Tratado de Assunção em 1991, e re-


gido pelas normas de Direito Internacional Público, logo após o
reconhecimento pela OMS do estado de emergência de impor-
tância internacional em decorrência do novo coronavírus.
As tratativas restaram na oficialização da “Declara-
cion de los Presidentes del MERCOSUL sobre Coordinacion Regional
para la Contencion y Mitigacion del Coronavirus y su Impacto”,
subscrita pelos 04 (quatro) países que integram o bloco, quais
sejam: República Argentina, República Federativa do Brasil, Re-
pública do Paraguai e República Oriental do Uruguai (MERCO-
SUL, 2020). A declaração assinada em 18 de março de 2020, res-
tou em compromisso conjunto, com destaque para os seguintes
pontos:

Que los Estados Partes han tomado medidas de


prevención y contención que buscan minimizar la
diseminación de la enfermedad y adoptar planes
estratégicos capaces de dar respuesta a las situa-
ciones producidas por la circulación de personas y
bienes, el tránsito y el transporte, la producción y
el comercio, la economía y las finanzas públicas,
así como en otros sectores.
Que es necesario generar espacios de concertación
regional multisectoriales, que aborden esta proble-
mática con perspectiva estratégica y solidaria, co-
locando a la ciudadana en el centro de los esfuer-
zos colectivos,
[...]
2. Tomar en consideración las especificidades pro-
pias de las comunidades residentes en áreas fron-
terizas, en el proceso de diseño y ejecución de me-
didas aplicables a la circulación de bienes, servi-
cios y personas, de manera de reducir su impacto
en dichas comunidades.
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 521
3. otificar a los demás Estados Partes las medidas
que se hayan adoptado o vayan a adoptarse en
frontera. Los Ministerios de Relaciones Exteriores
podrán establecer un sistema de compilación, or-
ganización y difusión.
[...]
6. Disponer que los Ministros de Relaciones Exte-
riores, Salud, Interior / Seguridad organicen
reuniones virtuales sectoriales periódicas en las
que compartirán información, buenas prácticas y
coordinarán acciones en áreas de interés común.

Na condição de entidade intergovernamental, o


MERCOSUL tem o condão de mediar as crises que possam sur-
gir entre os países que o integram, assim como auxiliar processo
de construção e fortalecimentos das políticas públicas conjun-
tas, e, ainda prestar auxílios econômicos para solução conjunta
dos problemas. A exemplo, em abril de 2020, para ajudar no
combate à pandemia, o MERCOSUL (2020) aprovou um fundo
de 16 milhões de dólares destinados ao projeto Plurinacional
“Investigação, Educação e Biotecnologias aplicadas à Saúde”,
destinados ao combate coordenado contra a COVID-19, e que
serão financiados através do Fundo para Convergência Estru-
tural do MERCOSUL (FOCEM).
O resultado das políticas coordenadas por meio do
Acordo Sanitário binacional restou na ampliação da área terri-
torial, passando a ter abrangência em outras zonas de fronteiras
entre o Brasil e o Uruguai, comprovando a eficácia da parceria
adotada (RIO GRANDE DO SUL, 2020).
A aplicação da mediação sanitária para construção
de políticas públicas além das fronteiras de um Estado tem o
condão de reduzir os impactos negativos gerados por uma situ-
ação tão grave quanto a pandemia da Covid-19 se mostrou ao
522 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

mundo. Diante do fortalecimento de espaço e da criação de


ações coordenadas, que reconhecem a inexistência de barreiras
físicas para a disseminação do vírus, é possível fortalecer tam-
bém as políticas locais através da cooperação internacional.
Contudo, ainda que este espaço fronteiriço tenha
sido integrado, no caso entre Brasil e Uruguai, questiona-se
quando os países estarão preparados para uma integração total
em termos sanitários? Diante de uma das maiores crises em sa-
úde do planeta, quando haverá uma concretização para a ga-
rantia efetiva de um direito humano global à saúde?
Atualmente, existem iniciativas para a proposta de
um tratado de enfrentamento para futuras pandemias. No en-
tanto, faz-se necessário o reconhecimento de uma governança
global em termos sanitários e epidemiológicos, e o fortaleci-
mento da Organização Mundial de Saúde, para que seja capaz
de centralizar as demandas vindouras e, que, além de cobrar aos
Estados-nação a adoção de medidas e posturas coordenadas em
nível global, tenha capacidade de impor-lhes sanções diante da
inobservância de um tratado global.
As discussões em sede de governança sanitária, in-
cluindo a mediação envolvendo os países do MERCOSUL di-
ante da urgência de políticas públicas que salvem vidas, enqua-
dra-se no diagnóstico de Yuval Noah Harari (2020, págs. 94 e
95) conforme o qual, neste momento de crise, os países podem
escolher competir por recursos escassos, promovendo políticas
egoístas e isolacionistas, ou podem escolher ajudar uns aos ou-
tros num espírito de solidariedade global. Essa escolha moldará
o curso tanto da presente crise como do futuro sistema interna-
cional nos anos por vir. Toda crise é também uma oportuni-
dade. Com sorte, a atual crise ajudará a humanidade a compre-
ender o perigo agudo representado pela desunião global. Se
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 523
essa pandemia, ao fim de tudo, resultar de fato numa coopera-
ção global mais próxima, ter-se-á uma vitória não apenas contra
o coronavírus, mas contra todos os perigos que ameaçam a hu-
manidade- da mudança climática à guerra nuclear.

Considerações finais

O estudo objetiva averiguar a possibilidade de apli-


cação da mediação sanitária às relações internacionais, com
base na internacionalização dos direitos humanos, para forma-
lização de políticas públicas binacionais ou multinacionais, que
tenham por objetivo promover o direito à saúde em tempos de
pandemia da Covid-19. Parte a análise do reconhecimento do
direito à saúde como um direito humano, universal, inderrogá-
vel e indisponível, que deve ser concretizado mediante ações
positivas de cada Estado, em âmbito nacional, e, no plano inter-
nacional, mediante ações coordenadas de cooperação entre os
Estados-partes que subscrevem o Regulamento Sanitário Inter-
nacional (RSI).
Com a situação de pandemia reconhecida pelo Orga-
nização Mundial de Saúde (OMS), em março de 2020, que re-
presenta uma das maiores crises sanitárias globalizadas, faz-se
necessário que cada País, como sujeitos de Direito Internacional
Público, diante da responsabilidade de garantir a inviolabili-
dade dos direitos humanos, por meio de suas relações interna-
cionais e diplomáticas, adotem ações efetivas que visem a pro-
teção dos irrestrita dos direitos humanos, com ênfase no direito
à saúde, inerente ao gozo do direito à vida.
Apresenta-se, portanto, mediante a multinacionali-
zação da crise, a possibilidade de formulação de políticas públi
A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
524 | pandemia da Covid-19: uma análise a partir das relações bilaterais ...

cas binacionais ou multinacionais, que podem ser compreendi-


das como políticas formuladas por um ou mais países, visando
a criação de uma agenda pública, mediante a identificação de
um problema comum entre um ou mais Estados, com a coorde-
nação de um programa de ação, que estipule os meios de ope-
racionalizar as atividades, e que defina metas quantitativas e
qualitativas a serem perseguidas em conjunto, e, por fim, a de-
finição de todas as áreas envolvidas e os grupos de interesses
envolvidos.
No contexto de pandemia, tais como a da Covid-19,
diante de um “inimigo” comum, e, invisível, dada que se tratou
da primeira pandemia causada por um coronavírus, e todas as
características da doença até então desconhecidas, como as altas
taxas de transmissibilidade, os altos índices de agravo, a falta
de vacinas, a necessidade de ações epidemiológicas, sanitárias,
adoção de ações conjuntas com outros setores da sociedade ex-
ternos ao setor saúde, as medidas domésticas e individualiza-
das não foram capazes de conter o lastro de mortes ocasionadas
pelo vírus, as dificuldades econômicas, e todos os demais im-
pactos socialmente vividos com a pandemia.
Aponta-se, portanto, a prática da mediação sanitária
aplicada às relações internacionais, binacionais, ou multilate-
rais, como uma medida plausível para construção de uma polí-
tica pública adotada a partir de uma governança globalizada em
saúde, e que possa dar resposta melhores e efetivas à sociedade
internacional, para o caso de futuras pandemias. Como exem-
plo concreto, foi indicado o Pacto Sanitário firmado entre o Bra-
sil e o Uruguai para adoção de ações conjuntas de enfrenta-
mento à pandemia nas suas cidades de fronteiras, que conforme
noticiado pelos países alcançou os resultados esperados.
Carolina Lima Ciríaco Scipião e William Paiva Marques Júnior | 525

Esse exemplo, faz refletir de que modos a pandemia

da Covid- 19 poderia ter sido enfrentada, com a atenuação de


seus efeitos, caso todos os Estados integrantes das Nações Uni-

das tivessem agido em uníssono para combater o novo corona-


vírus, através da coordenação da Organização Mundial da Sa-

úde e de um possível pacto multinacional que tivesse como


principal objetivo a defesa do direito humano à saúde em todas

as suas dimensões, da promoção, proteção e recuperação, ga-

rantido o completo estado de bem-estar de cada cidadão.

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532 | A mediação sanitária como mecanismo de promoção do direito à saúde na
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HEALTH MEDIATION AS A MECHANISM FOR


PROMOTING THE RIGHT TO HEALTH IN THE
COVID-19 PANDEMIC: AN ANALYSIS BASED ON
BILATERAL RELATIONS BETWEEN BRAZIL AND
URUGUAY
Abstract: The Covid-19 pandemic represents one of the greatest
health challenges faced by humanity, being considered a health crisis
with global repercussions. Given this context of globalization, the ar-
ticle intends to evaluate the possibility of applying health mediation
in international relations, based on the internationalization of human
rights, emphasis on the promotion of the right to health, and the for-
mulation of bilateral or multilateral public policies, with the aim of
promote the right to health in times of a pandemic. To analyze the
applicability of these concepts, the Sanitary Agreement signed be-
tween Brazil and Uruguay is evaluated. The research was carried out
with a pure, bibliographical, descriptive, exploratory and quantita-
tive methodology, with application of the hypothetical-deductive
method. It is concluded that health mediation applied to international
relations is an effective mechanism for building health promotion
policies to face globalized health crises.
Keywords: Covid-19 pandemic. Right to health. Human rights. Pub-
lic policy. Health Mediation.

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