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Revista Brasileira de Sociologia do Direito ISSN 2359-5582

NEOCONSTITUCIONALISMO EUROPEU E
NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO- João Paulo Allain Teixeira 1
Raquel Sparemberger 2
-AMERICANO: UM DIÁLOGO POSSÍVEL?

EUROPEAN NEOCONSTITUCIONALISM AND THE NEW


LATIN-AMERICAN CONSTITUTIONALISM: A POSSIBLE
DIALOGUE?

RESUMO: A presente pesquisa pretende estabelecer ABSTRACT: This research intends to establish bases and
bases e fundamentos para a compreensão das práticas foundations for understanding the contemporary
constitucionais contemporâneas observadas no constitutional practices observed in Europe and Latin
continente europeu e no continente latino-americano. America. It aims to investigate the way in which the
Trata-se aqui de investigar a maneira pela qual o constitutional discourse has provided the protection of
discurso constitucional tem proporcionado a tutela da the human condition , whether in European post-war
condição humana, seja nas experiências europeias do experiences , whether in Latin American experiences
pós-guerra, seja nas experiências latino-americanas that arose at the end of the first decade of this century .
surgidas no final da primeira década do século XXI. A From these elements , the authors intend to verify the
partir destes elementos, pretende-se verificar a possibility of establishing a dialogue between the two
possibilidade de estabelecimento de diálogo entre as experiments, from a mutual learning process.
duas experiências, a partir de um processo de
aprendizado recíproco.

Palavras-chave: Constitucionalismo. Neoconstitucionalis- Keywords: Constitutionalism. Neoconstitutionalism. New


mo. Novo constitucionalismo latino americano. latin american constitucionalism.

1
Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Professor da Universidade Católica de
Pernambuco (UNICAP), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco
(PPGD-UNICAP) (Mestrado e Doutorado), Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Professor da Faculdade de Direito do Recife (CCJ/UFPE),Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal de Pernambuco (Mestrado e Doutorado). Líder do Grupo de Pesquisa REC – Recife Estudos
Constitucionais. (CNPq).Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Filosofia do Direito e Teoria Geral do
Direito e do Estado. E-mail: jpallain@hotmail.com.
2
Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Doutora em Direito pela Universidade
Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Direito pela UFPR. Possui Graduação em Direito pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1995). Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande -FURG,
professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande -FURG. Professora dos cursos
de graduação e do Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do
Ministério Público-FMP. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria Geral do Direito, Direito
Constitucional, Direito Ambiental e Direitos Humanos, América latina e questões decoloniais. Professora pesquisadora
do CNPq e FAPERGS. Professora participante do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica -GPAJU da UFSC e
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e ciências criminais e Direito e justiça social da Universidade
Federal do Rio Grande. Responsável pelo Grupo de Estudos da FURG sobre o Constitucionalismo Latino-
Americano.Advogada. Advogada do escritório de Advocacia Luciane Dias Sociedade de Advogados-Pelotas-RS.

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João Paulo Allain Teixeira e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

■■■

1 INTRODUÇÃO
Pesquisar bases para um diálogo entre o modelo europeu de realização
constitucional da dignidade humana e a proposta latino-americana de reconstrução do
constitucionalismo nos levou a investigar as possibilidades de entrecruzamento de
contribuições recíprocas para a emancipação política e social a partir de duas matrizes
contemporâneas do constitucionalismo contemporâneo. Parte-se do pressuposto de que
tanto a proposta de construção de um “novo constitucionalismo” no continente latino-
americano quanto a proposta do “neoconstitucionalismo” europeu possuem preocupações
comuns, e que, apesar das distintas e específicas pautas, podem contribuir reciprocamente
com a efetiva consolidação de uma pauta de proteção à condição humana. De um lado,
encontramos nos países do norte uma releitura da tradição constitucional a partir da
atribuição de um papel diferenciado para as Constituições e para a jurisdição
constitucional, enquanto instância reconhecida como legítima intérprete dos direitos
fundamentais. O neoconstitucionalismo europeu é fortemente impregnado pela
compreensão de que as Constituições representam, sobretudo, valores que conferem
estatura jurídico-normativa à condição humana.
De outro lado, temos o chamado “novo constitucionalismo latino-americano”,
nascido a partir das experiências constitucionais de países da América Latina propondo a
refundação da teoria constitucional envolvendo o abandono das propostas totalizantes e
uniformizadoras típicas de uma modernidade que se estabelece no plano da racionalidade
e individualismo e a aproximação de modelos de compreensão da realidade
caracterizados pela multiplicidade e pelo pluralismo. As principais experiências nesse
sentido decorrem da adoção de constituições pluralistas pelo Equador e pela Bolívia
respectivamente nos anos de 2008 e 2009.

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Quando no horizonte historiográfico estabiliza-se o referencial universalista da


razão, configura-se aquilo que convencionamos chamar de modernidade. A modernidade,
racionalista, universalista e individualista, pretende, a partir da ampliação dos espaços da
razão em escala universal, oferecer emancipação e felicidade a partir do desenvolvimento
humano e social. Sob o ponto de vista institucional, o aparecimento do Estado e do
constitucionalismo éfruto deste imaginário.
Na narrativa consagrada pela Modernidade, o constitucionalismo confunde-se com
o processo histórico de afirmação dos direitos fundamentais, sendo o resultado de um
processo de estabilização institucional de expectativas normativas em torno da afirmação
de direitos. Estes direitos, inicialmente destinados à limitação do poder do Estado,
assumem após a Revolução Industrial o perfil de potencializadores da atuação estatal.
Temos assim, as duas grandes matrizes ideológicas do constitucionalismo moderno: a
primeira, com os direitos individuais, (ditos de 1ªgeração, ou dimensão); e os segundos,
com os direitos sociais (ditos de 2ªgeração, ou dimensão).
O processo de afirmação dos direitos fundamentais na tradição europeia decorre de
uma evolução política e institucional que tem sua origem na fundação do Estado enquanto
ente capaz de conferir unidade política a um grupo humano. O surgimento do modelo
institucional estatal é viabilizado a partir da centralização do poder como resultado das
lutas travadas pela monarquia tanto no plano interno, contra a nobreza feudal, como na
plano externo, contra o Sacro Império Romano-Germânico. A partir da Paz de Vestfalia, a
afirma-se o conceito de Soberania e com ele importantes desdobramentos para a
legitimação discursiva das formas de exercício do poder pelo Estado.
Uma destas consequências resulta na definição dos chamados elementos
constitutivos do Estado, compreendendo-se tais elementos, de acordo com a clássica
Teoria Geral do Estado, como uma estrutura unitária, entre o elemento humano, sua
dimensão pessoal (o povo), o elemento territorial, sua dimensão espacial (o próprio

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território, em sentido jurídico), e o elemento formal (o governo, qualificado pela própria


Soberania).
No horizonte da Modernidade, esta forma de organização política e jurídica
representa algo inédito, sobretudo pela pretensão de construção de uma unidade quanto
ao exercício do poder a partir de bases identitárias, tais como Nacionalidade e
Territorialidade.
Da mesma forma, é possível encontrar preocupações identitárias na tradição do
constitucionalismo europeu. Aqui o constitucionalismo é compreendido como conjunto de
narrativas sobre o papel da Constituição, a convergência das diversas perspectivas para a
configuração da organização das formas de exercício do poder, e também a organização do
reconhecimento das liberdades. Nesse contexto, a Constituição exerceria um duplo papel.
A Constituição seria simultaneamente fator de integridade, enquanto elemento
fundamental para a organização do poder, mas é também fator de integração, enquanto
elemento de organização dos direitos fundamentais e das liberdades reconhecidas pelo
Estado.
Uma das principais forças motrizes que permitiram a estabilização do Estado
Moderno na Europa se deu através da operacionalização do conceito de nação,
compreendida como grupo culturalmente homogêneo.
Considerando as formas como a Modernidade incorporou institucionalmente
questões relativas à diversidade e ao pluralismo, percebe-se uma certa dificuldade em lidar
com as forças de fragmentação. Sob certo sentido, a ideia de cidadania representou um
meio relativamente eficiente de lidar com a diferença. A construção discursiva em torno
do referencial da cidadania representa um eficiente meio para permitir a convivência entre
diferentes, já que permite a separação do âmbito privado (onde as pessoas podem ser
diferentes em suas crenças, convicções, etc) do âmbito público (onde as pessoas devem
ser iguais, já que cidadãos).

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Nesse sentido, o conceito de cidadania surge como forma de alargar os laços de


pertinência ao grupo. Assim, o estabelecimento da cidadania permite transcender as
diferenças, criando um estatuto homogeneizador fundado não mais em uma identidade
cultural, mas no reconhecimento jurídico de uma igualdade formal.
Na América Latina, o Estado foi criado no contexto das lutas pela independência do
século XIX, a partir de um processo de intensa exclusão dos povos originários e africanos, e
a construção de uma burocracia destinada a assegurar interesses de elite, reproduzindo
majoritariamente os compromissos fundamentais de uma democracia liberal-burguesa.
Mas como pensar democracia, cidadania, igualdade e diferença no horizonte de um
pluralismo político que cada vez mais expõe as fragilidades de qualquer pretensão
homogeneizadora e totalizante?
Para enfrentar o problema, encontramos diferentes respostas:
A primeira resposta é dada pelos países do norte, que propõem uma releitura da
tradição constitucional e a fundação de um novo constitucionalismo, a partir da atribuição
de um papel diferenciado para as Constituições e para a jurisdição constitucional,
enquanto instância reconhecida como legítima intérprete dos direitos fundamentais. O
neoconstitucionalismo europeu é fortemente impregnado pela compreensão de que as
Constituições representam sobretudo valores que conferem estatura jurídico-normativa à
condição humana. Daí a importância dos discursos constitucionais construídos em torno
do referencial da “dignidade humana”. Este é também o modelo normativo-principiológico
característico do constitucionalismo europeu do pós-guerra. Enquanto resposta aos
regimes autoritários e totalitários que resultaram no holocausto, o neoconstitucionalismo
oferece um conjunto de mecanismos de interpretação e aplicação do direito que introduz
critérios materiais quanto à aferição da validade do direito. Nesse horizonte, questões
ético-morais, relegadas pela tradição liberal clássica a um segundo plano, assumem status
diferenciado, orientando e conduzindo a compreensão do direito enquanto ordem
normativa especificamente voltada à realização dos direitos fundamentais.

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São características do neoconstitucionalismo europeu: a) reconhecimento de um


amplo catálogo de direitos fundamentais; b) afirmação da força normativa da Constituição;
c) ampliação do poder jurisdicional sobre o poder legislativo; c) afirmação de técnicas
ponderativas voltadas para a interpretação e aplicação do direito; d) afirmação do direito
em uma dimensão principiológica.
Uma segunda resposta é dada pelo constitucionalismo latino-americano, que a
partir do esgotamento dos regimes militares e autoritários dos anos 80 do século 20, passa
a identificar-se com o momento europeu do pós-guerra e em um processo de mimetismo,
adota padrões teóricos bastante semelhantes àqueles experimentados pelo
constitucionalismo europeu. As Constituições Latino-Americanas surgidas a partir dos anos
80, fruto do processo de redemocratização na região, reproduzem em grande medida
compromissos institucionais e respostas jurídicas forjadas a partir de problemas
formatados pelo discurso jurídico europeu, reeditando na América Latina uma ideologia
constitucional que apresenta dificuldades quanto à realização de suas promessas.
Uma terceira e distinta resposta é dada pelo chamado “novo constitucionalismo
latino-americano”. A proposta de um “novo constitucionalismo latino-americano” rompe
com a pretensão de universalidade epistêmica consagrada pela modernidade. O
constitucionalismo em suas matrizes originarias européias, tem como compromisso
fundamental a reprodução de uma lógica colonialista e subalternizante, O “novo
constitucionalismo”nasce a partir das experiências constitucionais de países da América
Latina que passam a rever as pautas do constitucionalismo europeu tradicionalmente
sedimentado na região e apresentando novos olhares sobre os direitos fundamentais e
sobre a organização do Estado. O “novo constitucionalismo latino-americano”propõe a
refundação da teoria constitucional envolvendo o abandono das propostas totalizantes e
uniformizadoras típicas de uma modernidade que se estebelece no planoda racionalidade
e individualismo e a aproximação de modelos de compreensão da realidade
caracterizados pela multiplicidade e pelo pluralismo. As principais experiências nesse

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sentido decorrem da adoção de constituições pluralistas pelo Equador e pela Bolívia


respectivamente nos anos de 2008 e 2009.
São características do “novo constitucionalismo latino-americano”: a) ênfase na
participação popular na elaboração e interpretação constitucionais; b) adoção de um
modelo de “bem viver” fundado na percepção de que o ser humano é parte integrante de
um cosmos; c) re-articulação entre Estado e Mercado a partir da reestruturação do modelo
produtivo; d) rejeição do monoculturalismo e afirmação de pautas pluralistas de justiça e
direito.

II
Percebe-se, assim que o “novo” constitucionalismo latino americano emerge da
necessidade de um novo conceito de nação (e nisso difere do neoconstitucionalismo), em que
as questões de ordem pluriétnica, multicultural, intercultural e ambiental estejam
representadas. Para pensar a diferença na representatividade da nação, Homi Bhabha (1998)
propõe um novo olhar, o qual se volta mais para a temporalidade do que para a historicidade do
evento. Assim ele rompe com as associações historicamente lineares a respeito da ideia de
nação (adotadas pelo neoconstitucionalismo), realizadas através de um tempo de causa e
efeito. Para este autor, há diferentes formas de identificação cultural que a nacionalidade
comporta através de um tempo disjuntivo. Esse tempo nacional duplo e descontinuo
reconhecido por Bhabha (1998) revela as identificações culturais de um grupo através de uma
disputa de forças entre o presente e o passado.
O indiano Homi Bhabha (1998, p. 111) prefere caracterizar o discurso colonial e seus
objetivos: a construção do colonizado como população de tipo degenerado, possuindo como
base uma origem racial, de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas administrativos
e culturais. A América Latina, em especial Bolívia e Equador, com seus novos textos
constitucionais tem possibilitado o debate sobre os novos rumos e avanços numa tentativa

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descolonial e intercultural de reconhecimento do “subalterno”e do resgate de práticas do Bem-


Viver.
Segundo Damázio (2011), e Walsh (2009), é no interior desse projeto do novo
constitucionalismo latino-americano a idéia de descolonialidade e interculturalidade tem um
papel central. Segundo as autoras, a partir do pensamento indígena do Equador, o conceito de
interculturalidade, torna-se um projeto político, social e epistêmico, que difere do chamado
neoconstitucionalismo europeu. A interculturalidade faz parte do pensamento "outro" que é
construído do particular lugar político de enunciação do movimento indígena, mas também de
outros grupos subalternos. Para Damazio (2011, p. 190),
a noção de interculturalidade, para Walsh, contrasta com o conceito de
multiculturalismo, é a lógica e a significação deste que tende a sustentar os
interesses hegemônicos. Dessa forma o reconhecimento e a tolerância que o
paradigma multicultural liberal promete, não só mantém a permanência da
iniquidade social, mas também deixa intacta a estrutura social e institucional que
constrói. Para Walsh a interculturalidade pode ser considerada uma ferramenta
conceitual que organiza a rearticulação da diferença colonial e das subjetividades
políticas dos movimentos indígenas e afros, e possivelmente de outros
movimentos, além disso, é de grande importância para o estudo do problema da
colonialidade. A interculturalidade como processo e projeto social, político, ético
e intelectual, assume a descolonialidade como estratégia, ação e meta.

Nessa linha, percebe-se, portanto, que a tarefa de construção do Estado nacional


(do Estado moderno), que dependeu da construção de uma identidade nacional, ou em
outras palavras, da imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos
diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim todos
reconhecessem o poder do Estado, do soberano, bem como, a criação da nacionalidade
vinculada a imposição e aceitação de valores comuns, como um inimigo comum, uma luta
comum, um projeto comum, ou até mesmo uma religião comum, gerou a intolerância
religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites
(MAGALHAES, 2013).
Nesse sentido, mesmo que alguns pontos do neoconstitucionalismo sejam
relevantes como o aumento da força normativa da Constituição, valorização de princípios,

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expansão da jurisdição constitucional, nova interpretação constitucional, marcos


importantes do chamado neoconstitucionalismo europeu, percebe-se que o novo
constitucionalismo latino americano quer ir além.
Assim, a ideia (mais concreta) de um Estado Plurinacional pode superar as bases
uniformizadoras e intolerantes do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem se
conformar aos valores determinados na Constituição nacional em termos de direitos,
dentre outros aspectos importantes da vida social. Esse avanço vem crescendo nos países
da América Latina. No entanto, a Bolívia e o Equador promulgaram novas Constituições
que já trazem em seus textos o novo conceito de Estado, chamado de plurinacional. Isso
ocorreu devido ao apoio popular, onde os povos originários tiveram participação e
autonomia, diferente do passado de exclusão e de subalternidade colonial e puderam
resgatar o seus valores ambientais, sociais, econômicos e culturais. O que parece não ser
uma semelhança tão latente com as características do chamado neoconstitucionalismo
Europeu.
O Estado plurinacional foge ao modelo uniformizador imposto pelo colonizador
europeu, dando ênfase a um novo tipo de texto constitucional. Verifica-se, nesse sentido,
que mesmo que alguns pontos ainda sejam convergentes com o neoconstitucionalismo,
como a ideia de integridade, enquanto elemento fundamental para a organização do
poder, e também a integração, enquanto elemento de organização dos direitos
fundamentais e das liberdades reconhecidas pelo Estado, quer-se ir além. Busca-se no
“novo constitucionalismo latino-americano” uma democracia para todos, respeitando que
estes “todos”, “subalternizados”, podem ser diferentes em suas religiões, crenças,
costumes tradicionais, valores e relações que estabelecem com o ambiente.
Percebe-se nestas Constituições pontos comuns que formam parte de uma corrente
conhecida como o “novo” constitucionalismo latino-americano. Trata-se de Constituições
que, por um lado, são originais e próprias de cada país, na medida em que tentam
solucionar os problemas de cada uma das sociedades onde estão sendo implantadas. Mas,

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por outro lado, estamos diante de denominadores comuns óbvios, principalmente no


campo da participação, da economia e de uma vigência efetiva dos direitos para todos, na
ordem de tentativas descoloniais.
A partir da análise descolonial é possível refutar formulações teóricas monoculturais
e universais que posicionam o conhecimento científico ocidental (e que estão presentes no
chamado neocontitucionalismo) como central, negando assim os saberes locais produzidos
a partir de racionalidades sociais e culturais distintas. Tal refutação não implica descartar
por completo esta racionalidade, mas sim observar suas pretensões coloniais/imperiais e
questionar seu posicionamento como única (DAMAZIO, 2011).
Merece atenção no desenvolvimento do “novo constitucionalismo latino-
americano”a ruptura com padrões epistemológicos aceitos pela Modernidade. Nesse
contexto, a originalidade do pensamento constitucional na América Latina alcança uma
dimensão significativamente distinta ao redefinir o papel do Homem enquanto objeto de
tutela jurídica. Se para o constitucionalismo do Pós-Guerra o debate constitucional se
manifesta a partir da valorização antropomórfica do ser humano enquanto detentor de um
status de dignidade (daí a importância do conceito de “Dignidade Humana” no
constitucionalismo europeu a partir da década de 50), no “novo constitucionalismo latino-
americano”, são incorporadas aos textos constitucionais elementos que revelam a adoção
de uma visão de mundo que olha para o Homem como parte integrante de um todo,
centrando as referências para o bem viver, não mais na autonomia moral do Homem, mas
nas suas relações enquanto manifestação de harmonia e respeito para com a natureza.
Esta forma de enxergar o Homem e o seu entorno, rompe com o modelo consumista e
desenvolvimentista consagrado pelas constituições liberais, à medida em que relega para
um segundo plano a lógica do acúmulo de capital na formatação das instituições jurídicas.
Com a positivação das cosmosvisões indígenas, o “novo constitucionalismo latino-
americano”institucionaliza a importância da Pachamama e da busca por modelos de bem-
viver, como o Sumak Kawsay, (Suma Qamaña). O reconhecimento de formas de vida

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anteriormente negadas e ocultadas no discurso constitucional clássico desvela as formas


de vida das populações originárias, que desde a chegada do colonizador europeu na
América Latina.foram excluídas e marginalizadas, por não se adequarem ao projeto
colonial da Modernidade.
Raquel Fajardo Yrigoyen oferece um mapa dos novos processos constituintes
observados na América Latina, propondo uma visualização em diferentes ciclos: teríamos
assim, a) primeiro ciclo, caracterizado para o reconhecimento da diversidade cultural e o
reconhecimento de uma pluralidade de línguas oficiais, como acontece com Guatemala
(1985) e Nicarágua (1987).; b) o segundo ciclo apresenta compromissos com a afirmação
do pluralismo cultural, reconhecendo tradições e práticas indígenas como constitutitvas
do modelo de organização do Estado, influenciados sobretudo pela Convenção 169 da OIT,
relativizando a tutela dos povos indígenas. Com base no referido documento, algumas
constituições na América Latina passam a reconhecer autoridades e jurisdição indígenas
legitimadas à solução de conflitos específicos. São constituições enquadradas no contexto
do segundo ciclo, Colombia (1991), Mexico (1992), Equador (1998) e Venezuela (1999); c) o
terceiro ciclo, conhecido como Constitucionalismo Plurinacional, além de trazer uma ampla
positivação de direitos indígenas, buscam a refundação do Estado a partir do
protagonismo indígena.
Nas palavras de Raquel Yrigoyen (2012), verifica-se que há alguns pontos que
podemos realmente chamar de novo, há o que se pode chamar de um constitucionalismo
pluralista de características decoloniais (para além do neoconstitucionalismo) começou a
ser desenvolvido em três ciclos: Constitucionalismo multicultural (1982-1988), com a
introdução do conceito de diversidade cultural e reconhecimento de direitos indígenas
específicos; Constitucionalismo pluricultural (1988-2005), com adoção do conceito de
“nação multiétnica” e o desenvolvimento do pluralismo jurídico interno, sendo
incorporados vários direitos indígenas ao catálogo de direitos
fundamentais;Constitucionalismo plurinacional (2005-2009), no contexto da aprovação da

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Declaração das Nações Unidas sobre o direito dos povos indígenas. Nesse ciclo há e houve
a demanda pela criação do Estado plurinacional e de um pluralismo jurídico igualitário.
Este processo, nítida e conscientemente vinculado a uma proposta descolonizadora
(para além das propostas do neoconstitucionalismo), representa uma mudança de
paradigmas na teoria constitucional moderna. São exemplos de práticas institucionais
reconhecidas pelas constituições do terceiro ciclo, a ampliação das possibilidades de
participação popular na formulação de pautas políticas vinculantes e o reconhecimento do
direito indígena para a criação de normas e procedimentos próprios para a organização e
solução de conflitos relativos aos povos originários. São exemplos de constituições do
terceiro ciclo, Equador (2008) e Bolívia (2009).
O “novo constitucionalismo”latino americano, apresenta novas possibilidades de
pensar a organização do Estado, definindo novas potencialidades para o direito. Um
exemplo destas potencialidades esta na Constituição boliviana de 2009. Na Bolívia, existem
36 etnias distintas, e a população boliviana de origem indígena compreende cerca de 2/3
do total de 10 milhões de habitantes. Em atenção a esta realidade, a nova constituição
dedica 80 dos seus cerca de 400 artigos para o tratamento da questão indígena. Como
resultado, a Bolivia reconhece a plurinacionalidade 3, estabelecendo todos os idiomas de
nações e povos indígenas como idiomas oficiais, além do castelhano 4. A Constituição

3
Artículo 1.
Bolivia se constituye en un Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, libre, independiente,
soberano, democrático, intercultural, descentralizado y con autonomías. Bolivia se funda en la pluralidad y el
pluralismo político, económico, jurídico, cultural y lingüístico, dentro del proceso integrador del país.
4
Artículo 5.
I.Son idiomas oficiales del Estado el castellano y todos los idiomas de las naciones y pueblos indígena originario
campesinos, que son el aymara, araona, baure, bésiro, canichana, cavineño, cayubaba, chácobo, chimán, ese ejja,
guaraní, guarasu’we, guarayu, itonama, leco, machajuyai-kallawaya, machineri, maropa, mojeño-trinitario, mojeño-
ignaciano, moré, mosetén, movima, pacawara, puquina, quechua, sirionó, tacana, tapiete, toromona, uru-chipaya,
weenhayek, yaminawa, yuki, yuracaré y zamuco.

II.El Gobierno plurinacional y los gobiernos departamentales deben utilizar al menos dos idiomas oficiales. Uno de
ellos debe ser el castellano, y el otro se decidirá tomando en cuenta el uso, la conveniencia, las circunstancias, las

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boliviana traz também a equivalência da justiça indígena com a justiça institucionalizada,


atribuindo aos povos indígenas e originários a possibilidade de aplicação dos seus próprios
princípios, valores e procedimentos 5. De modo análogo, a Constituição boliviana de 2009
garante a representação dos povos originários em instância parlamentar, com participação
proporcional dos povos originários 6. Chama a atenção o esforço boliviano no sentido de
reorganização territorial do Estado, atribuindo autonomia para territórios indígenas
originários 7.
Como se pode perceber, o “novo constitucionalismo latino-americano”oferece para
o tema pluralismo uma resposta original e distinta do caminho tradicional europeu,
reconhecendo a necessidade de modelar instituições a partir da própria experiência latino-
americana, e valorizando a singularidade da história do continente. Isso implica em romper
com os padrões europeus tradicionalmente estabelecidos e buscar formas alternativas de
tutela de direitos fundamentais. Se o modelo europeu aposta na “efetividade

necesidades y preferencias de la población en su totalidad o del territorio en cuestión. Los demás gobiernos
autónomos deben utilizar los idiomas propios de su territorio, y uno de ellos debe ser el castellano.
5
Artículo 190.
I.Las naciones y pueblos indígena originario campesinos ejercerán sus funciones jurisdiccionales y de competencia a
través de sus autoridades, y aplicarán sus principios, valores culturales, normas y procedimientos propios.
II.La jurisdicción indígena originaria campesina respeta el derecho a la vida, el derecho a la defensa y demás derechos
y garantías establecidos en la presente Constitución.
6
Artículo 147.
II.En la elección de asambleístas se garantizará la participación proporcional de las naciones y pueblos indígena
originario campesinos.
7
Artículo 269.
Bolivia se organiza territorialmente en departamentos, provincias, municipios y territorios indígena originario
campesinos
Artículo 271.
I.La Ley Marco de Autonomías y Descentralización regulará el procedimiento para la elaboración de Estatutos
autonómicos y Cartas Orgánicas, la transferencia y delegación competencial, el régimen económico financiero, y la
coordinación entre el nivel central y las entidades territoriales descentralizadas y autónomas.
Artículo 272.
La autonomía implica la elección directa de sus autoridades por las ciudadanas y los ciudadanos, la administración de
sus recursos económicos, y el ejercicio de las facultades legislativa, reglamentaria, fiscalizadora y ejecutiva, por sus
órganos del gobierno autónomo en el ámbito de su jurisdicción y competencias y atribuciones.

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constitucional”e na percepção de que as constituições representam o compromisso


fundamental da proteção da “dignidade humana”, o referencial adotado pelo
constitucionalismo latino-americano a partir da segunda metade dos anos 2000 aponta
para uma concepção radicalmente distinta de bem-viver, orientado sobretudo à percepção
de que o ser humano é parte de uma totalidade que com ele não se confunde. Justamente
por isso, as categorias do constitucionalismo clássico orientadas por um padrão
universalista e totalizante, ao adotar referenciais ideais, deixam escapar a riqueza da
diversidade cultural, sendo incapazes de enfrentar problemas referentes àtutela dos
direitos fundamentais de povos originários na América Latina.
Nesse sentido, o caminho do constitucionalismo latino-americano foi marcado pelo
procedimento de ruptura com o sistema pretérito, com a participação direita do poder
constituinte resgatando o lugar da soberania popular na teoria constitucional. As
características materiais de sua Constituição constituem-se pela inovadora inclusão de
mecanismos de democracia participativa, extensão do reconhecimento e proteção dos
direitos fundamentais e ingerência estatal na economia (WOLKMER, 2013).
O exemplo mais contundente do “novo” paradigma constitucional foi o processo
constitucional ocorrido na Venezuela, onde foi majoritária a aprovação popular de sua
Carta Magna. O povo consolidou seu anseio em adentrar na esfera democrática por meio
da participação, do estabelecimento de uma igualdade substancial, melhorias na condição
de vida, instauração de políticas sociais e públicas, distribuindo melhor a renda e criando
um tecido produtivo. Foi estabelecido ainda um maior limite ao poder constituinte pela
vinculação de qualquer alteração constitucional à anuência popular via referendo
(DALMAU, 2008).
As constituições elaboradas dentro deste “novo paradigma” 8 têm delineamentos
próprios: preâmbulos de caráter programático que inserem a história do país nos seus

8
Novo paradigma no sentido.. Em suma, revolução científica chamamos ao abandono de um paradigma e á adoção de
um outro, não por um cientista individualmente, mas por toda uma comunidade científica, sendo a transição

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textos; introduzem capítulos destinados aos princípios e conceitos basilares da ordem


jurídica, dando ao povo uma ferramenta importante, que é poder se afastar de uma regra
por conta do seu desrespeito a um princípio; elencam princípios carregados de
normatividade e preceitos teleológicos e axiológicos; Constituição concebida como
substrato de validade de normas constitucionais estabelecendo a supremacia
constitucional.
Trata-se de um conjunto de constituições flexíveis em suas estruturações
semânticas de modo a abrir aos intérpretes, isto é, a todos aqueles que vivem sob a égide
da Constituição, a possibilidade de ampliar a extensão do “dever ser” pactuado em forma
constitucional.
Elas abrem margem à ponderação de princípios que, naturalmente, colidem entre
si, pois é justamente aí que se assenta o escopo de um direito que faz da coexistência
entre os opostos um dos mais significativos conteúdos da democracia.
Todas essas mudanças encontram suporte na luta dos povos subalternizados,
silenciados, marginalizados e na decadência do modelo colonial/eurocêntrico que não
corresponde as necessidades de uma sociedade pluriétnica.
É necessário reconhecer a participação de todos os povos, e isso se inicia com o
reconhecimento legal de seus direitos, bem como a efetivação destes direitos, como algo
que se concretiza com a quebra de velhos paradigmas, numa transição que se finalizará
com uma sociedade mais democrática, multicultural e intercultural e de resgate do Bem-
Viver.
Um novo paradigma, ou um momento de transição paradigmática que se visualiza
neste cenário latino-americano, invoca uma teoria fundada epistemologicamente na
urgência de um rompimento com um modelo colonialista. Tal modelo encontra no “Outro”
um objeto. A matriz eurocêntrica/colonial, com suas diferentes totalizações, calou anseios,

sucessiva de um paradigma para outro por meio de uma revolução, o modelo ideal de desenvolvimento de uma
ciência madura.(KHUN,1975).

66
João Paulo Allain Teixeira e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

saberes e identidades dos povos. A ciência moderna, enquanto conhecimento regulador


tem identidade própria, aliás, tem “raça”, “sexo”, “classe”, “religião” (é o homem burguês,
branco, cristão, questões que o neoconstitucionalismo insiste em preservar). Todo o seu
mundo encontra-se confinado a esse estreito horizonte de compreensão e a linguagem e,
portanto, só é capaz de carregar as experiências de um modo único de vivência, tornando
inexpressivas as manifestações dos povos marginalizados (SANTOS, 2002).
Daí a necessidade de uma sociologia de tradução, que corporifique e represente
outras formas culturais, estabelecendo uma inteligibilidade que abra espaço à efetiva
participação social. O extenso período de ausências e indiferenças das massas campesinas
e populares ante as constituições conclamam uma epistemologia solidária (não pensada
pelo neoconstitucionalismo) que chame todos à participação (SANTOS, 2002).
Sobre estes “outros” saberes silenciados, Foucault (1999, p. 11) chama-os de savoirs
assujettis (traduzido para o português como “saberes sujeitados”). Primeiramente,
Foucault (1999) considera como saberes sujeitados os “conteúdos históricos que foram
sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais.”, ou
seja, os “blocos de saberes históricos que estavam presentes e disfarçados no interior dos
conjuntos funcionais e sistemáticos” (DAMAZIO, 2011, p.87). São conteúdos do
conhecimento histórico meticuloso, erudito. Tais saberes históricos permitem descobrir a
clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as organizações funcionais ou sistemáticas
objetivaram, justamente, mascarar e que o neoconstitucionalismo insiste em preservar.

III
Mesmo diante das mudanças do constitucionalismo surgidas a partir do século 20, 9
em geral se deixou de lado as críticas relativas às relações coloniais e a universalidade

9
O constitucionalismo do Estado de direito o da sociedade liberal passou a partir do século XX, a abrir espaço para o
constitucionalismo político e social. Mantém-se o núcleo liberal de direitos individuais e ampliasse os direitos sociais
relativos ao trabalho, à saúde, à educação, à previdência, e os direitos econômicos. Marcos desta modificação foram a
Constituição do México de 1917 e da Alemanha de 1919.

67
Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 3, n. 1, jan./abr. 2016

epistêmica. Neste cenário, não se questionou o monismo, o estado-nação, o sujeito de


conhecimento do constitucionalismo, tampouco foi debatida sua fundamentação
contratualista baseada na racionalidade dos seres humanos a partir do modelo racional
ocidental.
A imagem simbólica que o direito e o constitucionalismo contemporâneo continuam
a propor é a de uma pirâmide jurídica, no topo e de forma hierárquica localiza-se a
Constituição.
As novas Constituições trazem mudanças que abrangem não só a questão cultural e
os direitos coletivos, mas mudanças nos sistemas políticos e jurídicos. O objetivo é que um
Estado que assista todos os seus cidadãos possa crescer com menos conflitos, que o
respeito às diferenças e peculiaridades de cada grupo possa criar uma sociedade mais
humana, e que os povos de cultura diferenciada, antes excluídos das sociedades nacionais,
possam somar na luta por um meio ambiente saudável e uma sociedade inclusiva.
Percebe-se, assim que diferentemente do neoconstitucionalismo o chamado “novo
constitucionalismo latino-americano” surge a partir de sujeitos e saberes tradicionalmente
subalternizados pela universalidade epistêmica, apresenta diferentes elementos
epistemológicos, políticos e jurídicos que o situam em um patamar diferenciado do
constitucionalismo tradicional.

■■■

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Recebido em: 30/06/2016


Aprovado em: 01/08/2016

70
203

De Rubens Paiva a Amarildo. E “Nego Sete”? O regime


militar e as violações de direitos humanos no Brasil
From Rubens Paiva to Amarildo. And “Nego-Sete”? Military regime and human
rights violations in Brazil


Luciano Oliveira
Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. Email:
lgo5283@gmail.com


Artigo recebido em 19/01/2018 e aceito em 30/01/2018.


This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License















Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 1, 2018, p. 202-225.


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DOI: 10.1590/2179-8966/2018/32431| ISSN: 2179-8966
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Resumo
Partindo de um conhecido caso de violência policial ocorrido no Rio de Janeiro em 2013
– a prisão, tortura, morte e “desaparecimento” do pedreiro Amarildo, o artigo questiona
a tese, comum entre os militantes de direitos humanos, de que as violações desses
direitos praticadas pela polícia brasileira seriam uma “herança maldita” do regime
militar. Sem negar que a ditadura tenha reforçado tais práticas, o artigo explora uma
questão: se de fato prisões ilegais, torturas, mortes e até “desaparecimentos” foram
uma invenção do regime, como explicar que, mais de trinta anos após a
redemocratização do país, tais práticas continuem acontecendo? A hipótese sustentada
é a de que tais práticas, em relação às classes populares, antecedem o regime, com ele
conviveram e sobreviveram ao seu fim.
Palavras-chaves: Amarildo; Tortura; Regime militar.

Abstract
Starting from a famous case of police violence occurred in Rio de Janeiro in 2013 (the
imprisonment, torture, death and “disappearance” of a mason called Amarildo), this
article questions the thesis, common among human rights activists, that the violations
perpetrated by the Brazilian police is a “cursed legacy” of the military regime. Albeit not
denying that the dictatorship strengthened such practices, this article explores the
following question: if indeed illegal imprisonment, torture, death and even
“disappearance” were invented by the military regime, how can we explain, more than
thirty years after democratization, the persistence of such practices? This article argues
that the use of such methods against the “underclasse” already existed before the
regime, and persisted despite its end.
Keywords: Amarildo; Torture; Military regime.







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... sua primeira tarefa é [...] reconhecer os fatos incômodos, ou seja,


aqueles fatos que são incômodos para a sua opinião partidária; e
para todas as opiniões partidárias – inclusive a minha – há fatos
extremamente incômodos.

Max Weber, A Ciência como Vocação


Começo com “Nego Sete”,* um nome desconhecido das “nossas novas gerações”, como
dizia Chico Buarque num inesquecível sucesso do ano de 1985, Vai Passar, um samba
flamejante comemorando o fim da ditadura militar e o começo de um novo tempo. Mas
isso foi bem depois da morte de “Nego Sete”, alcunha de Antônio de Souza Campos,
delinquente da periferia de São Paulo assassinado em novembro de 1968 pelo delegado
Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe na porta de sua casa, numa missão de vingança pela
morte de um policial assassinado num confronto com uma quadrilha da qual ele
supostamente fazia parte. “Nego Sete” foi sumariamente executado por “uma chuva de
balas”. Seu cadáver, “enrolado num cobertor e carregado [...], foi encontrado no dia
seguinte na estrada [...] que vai para Mogi das Cruzes, nas imediações da cidade de São
Paulo”. Sua companheira, que a linguagem da época chamava de “amásia”, foi também
levada pelos policiais que tinham acabado de executar seu amásio – “e dela jamais teve
alguém notícia ou rastro do seu destino”, como informa um bravo promotor público
paulista de então, Hélio Bicudo, que, designado em julho de 1970 para se ocupar das
denúncias envolvendo o “denominado Esquadrão da Morte” em São Paulo, levou a sério
uma missão que seus superiores preferiam cobrir rapidamente com panos quentes
(Bicudo, 1977, pp. 45-48). Às vezes, as pressões extravasavam os corredores aveludados
dos palácios. Seis meses depois da sua designação, em dezembro de 1970, num
programa de televisão, ninguém menos que o próprio governador de São Paulo, Abreu
Sodré, desancou Hélio Bicudo negando pura e simplesmente a existência do Esquadrão
paulista:

*
Este artigo começou a ser pensado quando, no início de 2014, recebi um convite de Túlio Barreto e Celma
Tavares, da Fundação Joaquim Nabuco, para escrever um texto sobre o caso Amarildo e o que ele podia nos
ensinar sobre o regime militar. O convite aflorou divergências geradoras de uma discussão fraterna e
produtiva. Mas terminei desistindo do artigo naquele momento. Posteriormente, convidado pelo professor
Bruno Galindo para participar de um debate na Faculdade de Direito do Recife sobre os 50 anos do golpe
militar, retomei as reflexões que tinha deixado de lado. Mas o artigo continuou sem ser escrito. Agora,
finalmente, retomei-o. Sou muito grato aos três pela oportunidade de pensar nessas coisas e, finalmente,
pôr o que penso desse tenebroso assunto no papel. Digo, na tela!

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Isso é sensacionalismo: o que existe é como existe em qualquer parte
do mundo: a polícia precisa se defender em termos de não morrer
para que nós não morramos nas mãos dos marginais. [...] Então
quando [...] vai um grupo de policiais, quer da militar ou da civil, para
prender um homem perigoso como esse, é evidente que é um
tiroteio ferrado em cima [...] do criminoso. E daí aparecer com muitos
tiros. Então, aí inventam que fazem aquilo em termos de presunto,
essas coisas (idem, p. 126).


Naquele momento, já estávamos sob a vigência do Ato Institucional n.5 e o
delegado Fleury, que tinha um reconhecido know-how no assunto, foi “chamado pelos
órgãos de segurança para a luta contra o terrorismo”. E saiu-se bem: “chegou a ser
considerado, pelas Forças Armadas, como herói nacional, condecorado, dentre outros,
pelo Ministério da Marinha, com a medalha ‘Amigo da Marinha’” (idem, p. 51). Quando
morreu, em 1º de maio de 1979, num mal explicado acidente no mar do litoral norte de
São Paulo, seu desaparecimento foi diversamente recebido: de um lado, velório com
pompas oficiais; de outro, em São Bernardo do Campo, regozijo numa celebração pelo
dia do trabalho: “Estamos comemorando também a morte do maior torturador do país”,
vibrava o orador no palanque (Souza, 2000, p. 15). A trajetória de Sérgio Paranhos
Fleury – o mais notório e emblemático torturador da época do regime militar, mas
sempre oficiando na polícia civil de São Paulo – serve de ilustração para o argumento
que quero desenvolver nesse texto: a de que as brutais violações de direitos humanos
perpetradas ainda hoje pela polícia brasileira (torturas, execuções e mesmo
“desaparecimentos”) não são, como quer uma versão corrente no Brasil, uma “herança
maldita” daqueles tempos. A questão, que não é recente, retornou ao debate público
quando, em 2013, ocorreu o famoso “caso Amarildo”.
Foi num 14 de julho, uma data emblemática. Na França, ela é patrioticamente
comemorada e, no resto do mundo, lembrada por ter sido nesse dia que, no longínquo
ano de 1789, revoltosos parisienses promoveram o assalto a uma velha prisão
transformada em fortaleza, num episódio que ficou conhecido como a Queda da
Bastilha. Foi o início da Revolução Francesa, espécie de marco inaugural dos tempos
modernos. Logo depois, a Assembleia Nacional francesa iria produzir a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, em cujo artigo 7º se lê: “Nenhum homem pode ser
indiciado, preso ou detido exceto em casos determinados pela lei e segundo as formas

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que a lei prescreve”. O Brasil, desde a Carta Política do Império de 1824, repete
dispositivos desse jaez em todas as suas constituições. Mas exatos duzentos e vinte
quatro anos depois da tomada da Bastilha, a polícia do Rio de Janeiro, no dia 14 de julho
de 2013, prendeu, torturou, matou e fez desaparecer o corpo de Amarildo, um pobre
trabalhador brasileiro que tinha nome de bicampeão mundial de futebol. Os novos
tempos, anunciados pelo espetacular Vai Passar, sem tortura e sem
“desaparecimentos”, vieram. Mas não para todos.
Amarildo foi mais um “desaparecido” nas mãos da polícia brasileira.
Diferentemente daqueles sumidos durante os anos mais duros da ditadura militar, esses
outros são de todos os tempos e regimes, formam incontável legião e são obscuros.
Deles, geralmente nem o nome fica. Desse, ficou: Amarildo de Souza, 47 anos, mulato,
morador da Rocinha, ajudante de pedreiro. Um típico trabalhador brasileiro. Preso, foi
levado a uma Unidade de Polícia dita Pacificadora. Suspeito de esconder armas do
tráfico de drogas, foi interrogado com os métodos reservados para a classe social a que
pertencia: levou socos e pontapés, e passou por sessões de asfixia com saco plástico.1 O
“interrogatório” de Amarildo – como provavelmente aconteceu com o ex-deputado
Rubens Paiva em 1971, e o jornalista Vladimir Herzog em 1975 – desandou e o ajudante
de pedreiro morreu. Foi mais um “acidente de trabalho”. No contexto do caso Amarildo,
uma pergunta foi recorrentemente colocada: o que ele podia nos ensinar sobre os anos
de chumbo? Ou, de forma inversa: o que as brutais violações de direitos humanos
daqueles anos têm a ver com o caso Amarildo?
Uma resposta que tem sido dada é a de que têm tudo a ver. Marcelo Rubens
Paiva, filho do “desaparecido” Rubens Paiva, em entrevista ao jornal El País (03/04/14),
defrontou-se com a pergunta: “A morte, ou desaparecimento de pessoas comuns como
Amarildo é uma das heranças da ditadura?” Ele não titubeou na resposta: “É”. Noutro
registro, idêntica opinião pode ser encontrada nos meios acadêmicos, dos quais
destaco, a título de exemplo, uma publicação coletiva de alguns anos atrás sobre “o que
resta da ditadura” (Teles e Safatle, 2010). Uma hipótese perpassa toda a coletânea: a
ausência de uma autêntica “justiça de transição” entre nós – já que os torturadores que

1
A técnica tornou-se familiar do grande público brasileiro através do filme Tropa de Elite, de 2007. Para
além do enorme sucesso de bilheteria que foi, o filme tornou-se um fenômeno cultural com rebatimentos
políticos de grande significação no Brasil por causa da adesão entusiasmada do público aos métodos do
Capitão Nascimento, seu herói, que incluíam a tortura e o abate de marginais ou simples suspeitos com um
descaso absoluto por qualquer vestígio de um “estado democrático de direito” que supostamente somos.

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fizeram o “trabalho sujo” na época do regime militar foram acobertados pela Lei de
Anistia – é responsável pela continuidade das práticas daquela época depois do
processo de redemocratização. Para os organizadores da coletânea, “a incapacidade de
reconhecer e julgar os crimes de Estado transforma-se em uma espécie de referência
inconsciente para ações criminosas perpetradas por nossa polícia, pelo aparato
judiciário, por setores do Estado” (pp. 10-11 – itálicos meus).
Este artigo investe numa hipótese divergente. Considero que é hora de assumir,
talvez com um grão de sal e outro de ousadia, a hipótese de que a versão da “herança
maldita” repousa mais na retórica do que na análise cuidadosa dos fatos; de que o caso
Amarildo praticamente nada nos ensina sobre o regime militar, e que este e sua
ferocidade, na via inversa, não servem para iluminar o evento na Rocinha. Minha
hipótese é a de que as torturas, as execuções e os desaparecimentos perpetrados pelo
regime dos generais não antecipam o que aconteceu no Rio de Janeiro em 14 de julho
do ano da graça de 2013, porque o que aí aconteceu acontecia antes e durante, e
continuou acontecendo depois que o general Figueiredo saiu pela porta dos fundos do
Palácio do Planalto em 1985. Como veremos, já havia ferocidade bastante na sociedade
brasileira dos dourados anos 50 e começo dos anos 60 para, com ou sem ditadura
militar, produzir máquinas mortíferas estatais como a ROTA de São Paulo e o BOPE do
Rio de Janeiro; semiestatais, como os esquadrões da morte; e civis como os
“justiceiros”. Se a ditadura reforçou essa ferocidade, trata-se, evidentemente, de uma
hipótese razoável. Mas se a ditadura acabou há mais de trinta anos, por que essa
ferocidade lhe sobreviveu? Em minha opinião, porque lhe antecedeu e, indiferente à
redemocratização dos anos 1980, lhe sobreviveu.
Trata-se de uma hipótese, é verdade, a exigir validação um tanto difícil de ser
obtida – para falar no jargão positivista. Mas a tese contrária, a da “herança maldita”,
também não é fácil de ser validada. Ela beneficia-se, a meu ver, de uma adesão quase
espontânea, facilitada por nossa aversão ao regime dos generais. Ela é, além disso,
reconfortante. Afinal, se a violência policial brasileira deita raízes no regime de 1964, a
democracia brasileira, por que tanto lutamos, não é responsável por ela. Mas se desde o
inesquecível ano de 1984 – o das “Diretas, Já!” e da eleição de Tancredo Neves para a
presidência da república – vivemos, sem solução de continuidade, mais de trinta anos de
democracia, já não seria tempo, se a tese da “herança maldita” fosse correta, de termos
dela nos livrado? Minha tese, sem dúvida, minimiza a possível influência que a

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impunidade dos torturadores do regime teve sobre a sequência da história. Mas, de


novo, enfatizo: a prática de torturar e de executar sumariamente (e eventualmente
fazer desaparecer) delinquentes, no Brasil, antecede de muito o regime militar.
Resta, é claro, a questão de saber se, e em que medida, a impunidade dos
torturadores do regime alimentou e incrementou essas práticas. Mas, como quer que
seja, dificilmente alguém discordará da tese de que as violações de direitos humanos
durante o regime militar seriam, para usar uma expressão da moda, um “ponto fora da
curva”, porque suas práticas mais odiosas já eram amplamente usadas contra bandidos
comuns ou meros suspeitos das classes populares, o “ponto fora” residindo no fato de
que a classe média, inesperadamente, teria sentido na própria pele o que era
corriqueiro em relação aos seus concidadãos menos afortunados pelo dinheiro, pela
posição, pelas relações sociais. Amarildo, aquele que tinha nome de bicampeão mundial
de futebol, nasceu em 1966 e foi morto em 2013 pela polícia encarregada de pacificar a
favela onde morava. Viveu, portanto, a maior parte da sua vida relativamente breve sob
um regime democrático. É, no meu modo de ver, à democracia brasileira – uma
democracia à brasileira – que devemos dirigir nossas cobranças. Dito isso, é tempo de
passarmos a alguns fatos incômodos.
É nos amenos anos 1950 que começa a história do famoso Esquadrão da Morte.
Tal abominação surgiu na cidade do Rio de Janeiro na época da Bossa Nova, quando, na
Secretaria de Segurança Pública do então Distrito Federal (sendo presidente da
república o sorridente JK), se criou um grupo conhecido como “homens de ouro” – uma
unidade da policia encarregada de limpar a cidade dos seus bandidos. Um valioso relato
dessa história encontra-se no livro Cidade Partida, de Zuenir Ventura, do qual me valho
para relembrá-la. A nossa memória “afetiva, proustiana” funciona de maneira seletiva,
“e muita gente acredita que o melhor do Rio ocorreu por volta dos anos 50, os anos
dourados”, lembra o autor (Ventura, 1994, p. 17). Mas foi em 1958, ano da primeira
Copa do Mundo ganha pelo Brasil e da revolução musical promovida por João Gilberto
com o lançamento de Chega de Saudade, que os diretores da Associação Comercial do
Rio de Janeiro procuraram o então chefe de polícia, general Amauri Kruel, para resolver
o problema dos assaltos a lojas. Como alardeavam os jornais, a cidade estava “infestada
de facínoras”. Os bandidos de então eram conhecidos por nomes como “Coisa Ruim”,
“Praga de Mãe”, “Paraibinha”, “Buck Jones” etc. Em resposta, o general Kruel anunciou
a adoção de “medidas drásticas”, e ordenou ao delegado Cecil Borer que criasse

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imediatamente uma “organização de combate aos marginais, o Serviço de Diligências


Especiais (SDE), com carta branca para aplicar as tais ‘medidas drásticas’”. Na época, o
chefe de polícia do Distrito Federal tinha o poder de um quase Ministro da Justiça, pois
era nomeado diretamente pelo presidente da República. Com tais credenciais, “a ordem
do general Kruel equivalia a instituir na prática a pena de morte, concedendo aos seus
subordinados o livre arbítrio para aplica-la”. Tanto mais que o delegado Cecil Borer,
nomeado para comandar o SDE, conhecia do riscado. Ele era um dos egressos da
truculenta Polícia Especial do Estado Novo, “terror de prisioneiros políticos” da era
varguista.
Articulando corrupção e violência [...], o SDE reuniu homens violentos
e decididos a exterminar os bandidos do Rio e adjacências. Esses
Homens de Ouro ou Turma da Pesada, também conhecidos como
Esquadrões da Morte, subiriam morros, invadiriam barracos e
desentocariam assaltantes, caçando-os como ratos. Limpariam a
cidade (idem, pp. 34-35).


Passaram-se os anos, mas não os costumes. Em 1962, já com a cidade do Rio de
Janeiro – que perdeu o status de Distrito Federal com a transferência da capital para
Brasília – transformada em estado da Guanabara, ocorreu um caso do qual muito se
falou à época: o “caso Mineirinho”. Quem foi Mineirinho? Hoje em dia é facílimo saber.
Basta ir ao Google e digitar: “Mineirinho e Clarice Lispector”. Sim, Clarice Lispector!
Mineirinho foi, no começo dos anos 1960, um bandido carioca que virou o que, de
quando em vez, a imprensa elevava à categoria de “inimigo público n° 1” – e, portanto,
tornava-se alguém destinado ao abate. Foi abatido, em 1962 (isto é, dois anos antes de
1964...), com treze tiros. Na ocasião, Clarice Lispector escreveu uma crônica impactante,
da qual realço o seguinte trecho, uma irretocável pequena obra-prima:
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o
segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa
alerta, no quarto, desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de
vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de
horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo
primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo
chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina. [...] Essa
justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela.

O primeiro sentimento confessado por Clarice é “um alívio de segurança”, logo
substituído por um “alerta” ao som do terceiro tiro. Mas não são todas as pessoas que
chegam à lucidez da escritora a partir do quarto estampido. No começo dos anos 1960, a

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maioria dos seus concidadãos (como ocorre ainda hoje) preferia não se colocar questões
sobre o modus operandi que pôs fim à carreira de Mineirinho. E a polícia carioca,
resolvida a limpar a cidade sem prestar contas a ninguém, terminou protagonizando um
dos episódios mais chocantes daqueles idos, o famoso “caso do Rio da Guarda”. Carlos
Lacerda era o governador da Guanabara, e o caso está relatado por ele mesmo em suas
memórias:
Certa vez leio na Última Hora que tinha aparecido boiando no Rio da
Guarda [...] o corpo de um sujeito amarrado com perfurações de
balas na nuca e não sei mais o quê, e que um outro tinha sobrevivido
e ido à delegacia [...] e contado que a polícia o tinha levado para lá e
atirado no rio (Lacerda, 1978, p. 226).


Chamado para dar explicações, seu Secretário de Segurança esclareceu tudo.
Como o Rio atraía muitos mendigos de outras cidades, de vez em quando “eles [a
polícia] dão uma limpeza assim na cidade e devolvem os mendigos para as terras de
origem. [...] Pagam a passagem de ônibus e o ‘cara’ vai embora, mas depois volta. E fica
nesse eterno negócio” (idem, p. 227). Esclarecida a história, Lacerda diz ter tomado a
decisão de “abrir um inquérito sério”. Aparentemente, foi, pois é o próprio ex-
governador que conta:
E fomos bater no negócio, numa coisa trágica! Havia um serviço
chamado Serviço de Recuperação de Mendigos, dirigido por um
rapaz que tinha sido um modesto membro do gabinete [...] do
Juscelino, que também, evidentemente, não tinha culpa nenhuma
nesse caso [...]. E ele começou participando daquela história de
mendigo pra cá, mendigo pra lá. Depois começou a fazer um
pequeno “esquadrão da morte”, e com outros auxiliares agarravam o
mendigo, iam para o Rio da Guarda; chegando lá, amarravam o
sujeito, davam um tiro nele, jogavam o corpo dentro d´água e
vinham embora (idem, p. 227).

Como se vê, já havia iniquidade bastante na sociedade brasileira daqueles anos
contra nossos desvalidos – bandidos ou não – antes que os militares empalmassem o
poder e começassem a usar os mesmos métodos contra os inimigos do regime. Pode-se
especular se tais abjeções teriam sido suprimidas se não tivesse havido o golpe militar e
o país, levando adiante as “reformas de base” do presidente Goulart, tivesse se tornado
mais justo. Pode-se igualmente especular – retomando a hipótese da brutalidade policial
do presente como uma “herança maldita” da ditadura – se uma verdadeira “justiça de
transição” que tivesse punido os torturadores do regime não teria levado à abolição de

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tais práticas. Dando asas à imaginação, pode-se até mesmo especular sobre o que teria
acontecido se a esquerda revolucionária que pegou em armas contra o regime de 1964
tivesse vencido e implantado o socialismo no país... Pode-se especular à vontade. Mas,
infelizmente, não se pode fazer análise histórica com base no que não aconteceu – “a
vida inteira que podia ter sido e que não foi”, como diria o poeta Manuel Bandeira.
E na vida que foi, naquele começo dos maravilhosos anos 60, a questão da
violência policial comum não fazia parte das preocupações da sociedade de um modo
geral, muito menos da agenda de suas expressões políticas, aí incluída a esquerda. Sobre
isso, encontra-se no livro de memórias do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira uma
passagem bastante instrutiva a respeito do choque que sentiu quando, preso e
torturado em 1969, descobriu o inferno das prisões brasileiras. E se pergunta:
Até que ponto não fomos cúmplices disto, nós da esquerda? Até que
ponto não somos simetricamente injustos para aqueles que não
pertencem ao mercado de trabalho, que não são trabalhadores reais
ou em potencial? Nunca nos comovemos de fato com o Esquadrão da
Morte – as misérias e torturas que se passavam nos porões da polícia
comum eram apenas injustiças que iam desaparecer com o
socialismo. Marginal não dá voto, marginal não faz greve. A violência
a que era submetido o preso comum não foi discutida em detalhe,
não foi analisada minuciosamente (Gabeira, 1982, p. 245).

Noutras palavras, o aparato de repressão ensaiado em 1964 e consolidado a
partir de dezembro de 1968, com seu cortejo de prisões arbitrárias e clandestinas, de
torturados e desaparecidos, não foi uma invenção ex nihilo do regime militar. Antes dele
tudo isso já existia, como continuou existindo depois dele. O “pau-de-arara”, um
método de tortura tão característico dos “anos de chumbo” a ponto de ter se tornado
símbolo do movimento Tortura Nunca Mais, vem de muito longe. De forma rudimentar,
ele já era utilizado pelos senhores de escravos para imobilizá-los, como se pode ver
numa gravura de Debret, que andou por aqui na primeira metade do século XIX. O
escravo era colocado numa posição semelhante à de um remador inclinado para frente,
e tinha os pulsos amarrados aos tornozelos. Em seguida, passava-se um pau através da
concavidade formada pelo arqueamento dos cotovelos e joelhos: o escravo não podia
mais se mexer. Então, como mostra a célebre gravura, era chicoteado.
Mas, aí, poder-se-ia dizer – retomando a frase famosa com que Manuel Antonio
de Almeida abre o seu delicioso Memórias de um Sargento de Milícias –, “era no tempo
do rei”. Sim, era aquele tempo. Com a vinda da Corte para o Brasil, o Rio de Janeiro, sua

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capital, deveria tornar-se uma cidade à altura do seu novo status. E criou-se uma
“guarda real” com poder de polícia para disciplinar uma cidade onde se misturavam,
com seus costumes pouco apresentáveis a uma corte européia, escravos e negros livres.
A Guarda tinha seus “agentes implacáveis”, entre eles Miguel Nunes Vidigal – o famoso
Major Vidigal, personagem que aparece no livro de Manuel Antonio de Almeida. Como
escreve um historiador, “Vidigal tornou-se o terror dos vadios e ociosos, que podiam
encontrá-lo ao virar uma esquina à noite ou vê-lo aparecer de repente nos batuques que
aconteciam com frequência nos arredores da cidade”. E continua:
Dessas reuniões, participavam pessoas comuns, na maioria escravos,
que confraternizavam, bebiam cachaça e dançavam ao som de
músicas afro-brasileiras até tarde da noite. Sem ligar a mínima aos
procedimentos legais [...], Vidigal e seus soldados, escolhidos a dedo
em função do tamanho da truculência, batia em qualquer
participante, vadio ou tratante que conseguissem capturar
(Holloway, 1997, pp. 48-49).

Era no tempo do rei, certo. Mas as práticas desse tempo sobreviveram aos dois
reinados e às várias repúblicas que desde então tivemos. Voltemos à gravura de Debret.
A polícia brasileira, bem antes de 1964, aperfeiçoou o castigo ali retratado: uma vez a
vítima imobilizada, ela era suspensa e o pau apoiado pelas extremidades em duas
mesas. Nessa posição, recebia choques elétricos até que, como se diz, “desse o serviço”.
O método sobreviveu à Lei de Anistia do general Figueiredo em 1979 e à Nova República
de Tancredo Neves em 1984. No ano seguinte, em 10 de agosto de 1985, já sob a
presidência do civil José Sarney, o Jornal do Brasil publicou uma foto chocante: numa
delegacia de polícia de Porto Alegre, um jovem negro de 19 anos, Antonio Clovis Lima
dos Santos, conhecido por “Doge”, aparecia pendurado num pau-de-arara. “Doge”, gari
de profissão e suspeito de ter participado de um assalto a um caminhão de bebidas, foi
arrancado do seu barraco às 4 horas da manhã e levado à delegacia, onde foi torturado
para confessar seu crime. Uma história banal como milhares de outras no Brasil. Se o
seu caso saiu da rotina foi graças a essa foto feita por um policial, contrário aos métodos
dos seus colegas, num instante em que esses tinham abandonado a sala de tortura. Essa
súbita notoriedade de “Doge” parece ter sido, ao mesmo tempo, sua perdição: anos
depois, dezoito dias antes de depor num inquérito instaurado para apurar as
responsabilidades das torturas que lhe foram infligidas, “Doge” foi misteriosamente
assassinado (Veja, 27.06.90).

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Convenhamos: o que de novo ocorre a partir de 1964, mas, sobretudo, depois


de 1968 com o AI-5, é que a tortura passa a atingir segmentos da população
normalmente protegidos pelas imunidades sociais inerentes à sua condição: estudantes,
jornalistas, políticos, advogados etc. Normalmente porque, também em períodos de
exceção anteriores a 1964, esses segmentos já haviam experimentado o tratamento
reservado aos seus concidadãos mais desprotegidos. Algo ao acaso (porque os
exemplos, para quem se disponha a procura-los, são muitos), relembro o que está
escrito no livro de memórias de Mário Lago – radialista, ator e compositor brasileiro,
autor, entre outros sucessos, da letra do famoso “Ai! que saudades da Amélia”. Nascido
em 1911, nosso memorialista era um jovem adolescente no começo dos anos 1920, e o
Brasil vivia sob o estado de sítio vigente durante quase toda a presidência de Artur
Bernardes. Mário Lago morava num prédio em frente à Polícia Central, no Rio de
Janeiro, “chefiada pelo sinistro general Fontoura” (Lago, 2011, p. 96). Estudando bem
tarde da noite no apartamento onde morava, o jovem conta: “De repente tive a atenção
despertada por gritos e imprecações vindos de uma sala da Polícia, em frente à janela
onde eu me encontrava”. O que viu, “[lhe] ficou grudado nos olhos, resistindo à
superposição de milhões de imagens que a vida foi fixando depois”:
Um homem já de idade, mas ainda bastante forte, lutava
desesperadamente contra cinco ou seis policiais. Do rosto não havia
como se perceber muitos detalhes de fisionomia, pois era
praticamente todo uma pasta de sangue, levando a concluir que o
espancamento já vinha durando algumas horas. [...] À proporção que
a luta se tornava mais encarniçada, o grupo foi se aproximando da
janela. [...] E a certa altura [...] um dos policiais o empurrou com
violência, indo ele estatelar-se na calçada como um saco (Lago, 2011,
pp. 93-94).

O morto não era nenhum Zé-ninguém. Tratava-se de Conrado Niemeyer,
“conceituado engenheiro e arquiteto, pertencente a uma família de alto gabarito e
ferrenho adversário de Bernardes”. Nessa condição, “sua morte não podia ficar no ora-
veja”. Instaura-se o competente inquérito. A versão oficial para a sua morte, o leitor já
adivinhou: suicídio. Ele mesmo teria se atirado pela janela. No inquérito, entretanto,
peritos demonstraram que, pela trajetória do corpo, ele fora atirado. Mas, como lembra
o memorialista, a Polícia havia cometido o crime, e ela mesma conduzia as
investigações. Assim, “deu tudo em água de barrela” (idem, p. 96).

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Cerca de uma década depois, instala-se o regime de Vargas, e outra vez as


camadas médias e mesmo altas da sociedade brasileira, ainda que de maneira bastante
minoritária em relação aos opositores de origem operária, caem momentaneamente na
categoria dos “torturáveis” – para usar uma expressão do escritor inglês Graham
Greene. A tortura volta a ser posta a serviço de um desígnio político relacionado
diretamente ao governo. Cria-se a Polícia Especial, chefiada por um militar que havia
participado da famosa Coluna Prestes, o tenente Filinto Müller. O regime de Vargas,
deve-se reconhecê-lo, bateu à esquerda e à direita. À esquerda primeiro, por ocasião da
insurreição promovida pela Aliança Nacional Libertadora em 1935, que ficou conhecida
como Intentona Comunista. Uma vez a insurreição dominada, seguiu-se uma violenta
repressão contra comunistas e simpatizantes. Três anos mais tarde, foi a vez da direita:
em maio de 1938, militantes da Ação Integralista Brasileira (AIB) ─ que havia apoiado
Vargas, mas que se sentiu traída quando o ditador, em 1937, fechou todos os partidos
políticos ─ lançaram uma ação armada contra o palácio do Catete, sede do governo. A
tentativa de golpe foi rapidamente dominada e foi a vez de os militantes da AIB
conhecerem, eles também, os métodos da Polícia Especial de Filinto Müller. Esses fatos
estão relatados num livro hoje esquecido do jornalista David Nasser, muito
apropriadamente chamado Falta Alguém em Nuremberg. Estrela maior da extinta
revista O Cruzeiro, Nasser era um jornalista inescrupuloso, mas o seu relato é
convalidado por outras fontes. Entre elas, o monumental Memórias do Cárcere, de
Graciliano Ramos, que, se não foi torturado, conheceu as prisões do Estado Novo e
colheu vários fatos como os narrados por Nasser. O “alguém” do título do livro do
jornalista, já se adivinha, refere-se ao próprio Filinto Müller, o qual, aliás, passou de uma
ditadura a outra sem maiores problemas: quando morreu, em 1970, num acidente
aéreo no aeroporto de Orly, na França, era o líder do governo Médici no Senado. Com o
que chegamos ao regime militar.
É consensual que foi em São Paulo, com a famosa “Operação Bandeirante”
(OBAN), em 1969, que a repressão política se instituiu nos moldes que viriam depois a
formar o modelo dos DOI-CODIS, espalhados pelo Brasil. Até então, a repressão
institucional aos inimigos do regime, mesmo se esporadicamente as forças armadas
tomavam iniciativas nesse sentido, cabia precipuamente às delegacias de ordem política
e social existentes nos estados (DOPS), formada por policiais civis. E sabemos como,
desde sempre, eram os métodos de trabalho da polícia comum no Brasil, notadamente

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as famosas delegacias de roubos e furtos. “Quando estourou o golpe de 1964, já estava


em curso na polícia, e há muito tempo, uma ‘cultura’ diferenciada sobre o trato com
homens que viviam à margem da lei: a cultura do pau” – informa um conhecedor do
assunto, o jornalista Percival de Souza (2000, p. 29). Mesmo os “desaparecimentos”,
como aconteceu com a amásia de “Nego Sete”, não eram novidade: “Jogados em
qualquer ponto da cidade, os cadáveres engrossavam a lista dos crimes misteriosos.
Nascia assim, com prisioneiros comuns, a cultura dos desaparecidos” (idem, p. 30). O
resto, teria vindo por acréscimo:
Quando os chamados atos de subversão começaram [...], o DOPS foi
apanhado de surpresa. Na instituição, ninguém sabia exatamente o
que fazer, porque nunca, apesar de sua longa existência, se vira nada
igual. Os militares começaram a cobrar respostas. Foi quando o DOPS
pediu reforço à Secretaria da Segurança. A ajuda veio da Delegacia de
Roubos com todo o seu estilo, a sua cultura, os seus métodos (idem,
p. 33).

Era nesse ambiente que pontificavam figuras como o delegado Fleury, aureolado
em novembro de 1969 por ter conseguido, com os métodos que se conhece, emboscar e
matar Carlos Marighella, o maior líder da luta armada no Brasil. Em algum momento do
começo dos anos 1970, quando a OBAN começava a se transformar em DOI-CODI, o
capitão Ênio da Silveira, um dos mais importantes quadros da repressão militar, fez
“uma espécie de ‘estágio’ na Divisão de Ordem Social do Dops, onde teve como
professor o Doutor Fleury, o símbolo do Esquadrão da Morte e da repressão política
daqueles tempos” (Godoy, 2014, p. 36). Por essas e outras Percival de Souza, biógrafo
de Fleury, não hesita no seu julgamento: “O know-how da repressão nos porões foi civil”
(Souza, p. 33).
O juízo talvez precise ser matizado, particularmente no que diz respeito ao
aspecto expertise da coisa. Sabe-se, afinal, que desde a revolução cubana de 1959 os
Estados Unidos, resolvidos a não deixar a experiência se repetir na América Latina,
investiram no treinamento de militares do continente para o exercício de tarefas
policiais de repressão aos grupos revolucionários, o que incluía cursos de contra
insurreição ministrados na “Escola das Américas” instalada na Zona do Canal do
Panamá, então sob sua jurisdição, bem como em vários endereços militares instalados
no próprio território americano. Vários militares brasileiros (assim como argentinos,
chilenos, uruguaios etc.) que depois, nos “anos de chumbo”, iriam se destacar no

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combate à guerra revolucionária – alguns inclusive como torturadores – foram alunos de


tais cursos. Mas esse não foi um movimento de mão única. Se militares iam daqui para
lá, de lá vinham “experts” ministrar seus conhecimentos in loco. Um relato dessa
história encontra-se no livro do jornalista americano A. J. Langguth (1979), A Face Oculta
do Terror, que tem como fio condutor a história de Dan Mitrione, um ítalo-americano
que andou por aqui entre 1960 e 1967 como instrutor de um Programa de Segurança
Pública do governo americano que tinha como objetivo modernizar as polícias do
“mundo livre”, tornando-as capazes de enfrentar as ameaças de insurreição que
rondavam o hemisfério depois do exemplo cubano. Em 1969, Mitrione foi enviado para
exercer seu ofício no Uruguai, onde foi sequestrado e finalmente executado pelos
tupamaros em agosto do ano seguinte. A execução fez de Mitrione um nome conhecido
mundo afora. Sob o nome de Philip Santore, ele foi apresentado ao grande público em
1973 através do filme de Costa-Gavras, Estado de Sítio, onde é interpretado por Yves
Montand.
O que faziam esses instrutores por aqui? Oficialmente, eles cumpriam um
programa de “modernização” das nossas polícias: cursos sobre o uso de gás
lacrimogêneo, o manejo de cassetetes etc.; e intermediavam o recebimento de veículos,
algemas, equipamentos de comunicação à distância etc. Mas também testemunhos dão
conta de que, off the record, suas atividades não se limitavam ao que podia ser
publicado. Os equipamentos de comunicação, por exemplo, incluíam geradores que
podiam ser usados – e foram – na aplicação de choques elétricos em prisioneiros. É
verdade que quando Mitrione deixa o Brasil, em 1967, a tortura política ainda estava
longe de ser largamente aplicada pelos nossos aparelhos de repressão, como vai ocorrer
depois. Segundo Langguth, os policiais que haviam trabalhado na época de Vargas
contavam como se “arrancavam informações” naquele tempo: “Suas técnicas, muitas
vezes brutais [...], geralmente envolviam o espancamento até que o preso estivesse
quase morto, ponto em que ou falava ou morria”. Nesse contexto, “alguns instrutores
argumentavam que era mais humanitário aplicar dor intensa, mas não mortal, do que
espancar indiscriminadamente”. Mitrione era um desses instrutores, e um policial da
“velha guarda” conta que ele, ao ouvir uma dessas histórias, “observou que um
prisioneiro morto não podia prestar muita informação” (Langguth, p. 123). Quando foi
destacado para o Uruguai, a tortura já tinha se incorporado aos usos e costumes das
forças de segurança locais encarregadas da repressão aos tupamaros, mas ele teria

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contribuído para “modernizar” os métodos: “quando o equipamento de tortura se


tornou mais sofisticado”, um dos informantes do jornalista americano “creditou a
mudança ao instrutor de polícia dos Estados Unidos” (idem, p. 223).
Mas tem mais. Se já dispomos há bastante tempo de informações bem
assentadas sobre a atuação desses experts americanos entre nós, de uns tempos para cá
não podemos desconhecer o papel que também tiveram spécialistes franceses sobre o
assunto. Para não me alongar, remeto ao trabalho de João Roberto Martins Filho sobre
a influência da “doutrina francesa” da guerre révolutionnaire sobre os militares
brasileiros bem antes de 1964, uma vez que foi introduzida na ESG já em 1959 (Martins
Filho, 2009). Gestada no contexto das guerras anticolonialistas movidas pela Indochina e
pela Argélia contra a França nos anos 1950, a “doutrina francesa” assume que numa
guerra desse tipo, onde as forças regulares têm de combater inimigos não identificados
por um uniforme, escondidos no meio da população e praticando o terrorismo, há que
se usar, para combatê-los, métodos propriamente policiais. Entre eles, o que os
franceses chamam eufemisticamente de interrogatoire musclé – o que, numa tradução
literal, seria “interrogatório musculoso”, mas que, o leitor já percebeu, quer dizer de
fato tortura. Mais recentemente, a jornalista Leneide Duarte-Plon apresentou ao leitor
brasileiro o general Paul Aussaresses, um “especialista” francês que no começo dos anos
1960 foi instrutor de militares latino-americanos nas escolas de contra insurreição
sediadas nos Estados Unidos e mais tarde, entre 1973 e 1975, foi adido militar da França
no Brasil, onde continuou ministrando seus cursos (Duarte-Plon, 2016).
Esse breve desvio a respeito de um expert americano e um spécialiste francês
agindo no Cone Sul objetiva retomar a hipótese enunciada mais atrás do “ponto fora da
curva”. Acho que a ingerência de estrangeiros na nossa “guerra suja” a reforça. Figuras
turvas como Dan Mitrione ou Paul Aussaresses não introduziram a tortura entre nós –
longe disso! –, mas, sem dúvida, tiveram um papel não desprezível na organização e
sofisticação de sua prática nos “anos de chumbo”. O “espancamento até que o preso
estivesse quase morto”, típico dos velhos tempos, certamente não desapareceu; mas as
instalações adredemente preparadas para a aplicação da tortura, com sua sinistra
parafernália de máquinas de dar choques e infligir outros tipos de sofrimento, além da
assistência de médicos para dizer até onde o torturado pode aguentar sofrer, não são
certamente de todos os tempos. Tudo isso exige uma organização de estado e um
desembaraço garantido por uma férrea censura, o que só é possível em tempos de

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exceção. Com a “normalidade” democrática, a tortura reflui para os locais de onde na


verdade nunca sumiu: as repartições policiais e carcerárias comuns, onde continuam em
vigor métodos mais improvisados.
Num livro recente, fruto de uma tese de doutorado em sociologia na
Universidade de Salamanca, Marcelo Barros, delegado de polícia em Pernambuco,
discorre sobre a tortura na polícia brasileira como uma prática de todos os tempos.
Barros usa uma expressão para se referir aos colegas que praticam ou toleram a tortura:
“a caixa das maçãs podres”. Elas estão em Pernambuco, por onde a pesquisa começou,
mas estão também em Alagoas, na Paraíba, na Bahia, no Amazonas, em Minas Gerais,
em São Paulo, no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul, para onde a pesquisa se
expandiu. Ou seja: a “caixa” é na verdade um “pomar” do tamanho do Brasil! A
pergunta inicial é aquela já tantas vezes feita: como, “vinte e cinco anos depois da
Constituição Federal de 1988”, e mesmo sendo “punida de forma bastante severa em lei
penal especial”, a tortura continua “sendo uma prática clandestina nas corporações
policiais?” (Barros, 2015, p. 15). A resposta do autor vai além daquela mais evidente e
ao alcance de qualquer um: justamente porque não é punida. A riqueza do seu trabalho
consiste em ir além do que todo mundo sabe e analisar tais práticas: as condições em
que são exercidas; que “cumplicidades” se estabelecem entre os que “metem a mão na
massa” e aqueles outros, numerosos, que preferem não saber o que se passa nos
porões de suas jurisdições; os que, ouvindo gritos, preferem passar sem parar; ou,
surpreendendo um preso com um saco plástico enfiado na cabeça, virar o rosto.
Marcelo Barros esmiúça tudo isso num livro que, doravante, não pode deixar de ser
considerado por quem quer que, no Brasil, se debruce sobre o assunto. Afinal, ele é um
insider...
Além disso, Barros toca numa questão que, de um modo geral, preferimos não
olhar de frente: “a enorme anuência da sociedade” brasileira a tais práticas (idem, p.
20). Para o autor, “a tortura que ocorre hoje nas delegacias não advém de períodos de
exceção, ao contrário, os períodos de exceção se apropriam e superdimensionam as
práticas policiais cotidianas”. É a hipótese do “ponto fora da curva” de que falava.
Noutros termos, “o padrão da prática da tortura utilizada hoje mais se assemelha às
práticas anteriores às ditaduras” (idem, p. 50). Cedo-lhe a palavra:

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Quanto ao modo de praticar, não há novidades. Os policiais


costumam utilizar qualquer meio capaz de causar sofrimento, se
possível, sem deixar marcas, demonstrando preferência por
espancamento e utilização de sacos plásticos, de supermercado, para
sufocamento (idem, p. 155).

Estamos falando de hoje. Mas voltemos no tempo – aquele em que os
revolucionários que pegaram em armas contra o regime, de que Fernando Gabeira é
talvez o melhor exemplo, descobriram toda a dimensão da violência praticada desde
sempre contra presos comuns. Essa geração de esquerdistas torturados descobriu a
questão dos direitos humanos no Brasil e a transformou numa palavra de ordem. Com o
fim da ditadura, experimentaram um transbordante otimismo. Os primeiros anos da
década de 1980 assistiram a uma verdadeira proliferação de grupos de defesa desses
direitos, desta feita, entretanto, voltados para a classe dos “torturáveis”. Considerando-
se o prestígio acumulado na luta contra o regime militar, seria de se esperar idêntica
fortuna daí para a frente. Mas foi o contrário que aconteceu. A tortura e o abate
sumário de delinquentes – reais ou não – do meio popular continuaram atravessando
galhardamente nossa história, independentemente do regime político vigente. Vamos a
alguns números.
No começo dos anos 1990 o jornalista Caco Barcellos publicou o livro Rota 66,
com um subtítulo bem apropriado: “A História da Polícia que Mata” (Barcellos, 1992).
Ele se referia à ROTA – Rondas Ostensivas “Tobias de Aguiar” –, esquadrão da polícia
paulista que nessa época executava bandidos ou simples suspeitos praticamente às
escâncaras. Segundo seus cálculos, a Polícia Militar de São Paulo, entre abril de 1970 e
meados de 1992, foi responsável pela morte de mais de 4.000 pessoas. A corriqueira
afirmação de que as mortes decorriam de tiros trocados entre as duas partes revelava-
se uma fantasia a partir da constatação de que não há registro na história dos
confrontos armados com uma desproporção tão grande entre as baixas de cada um dos
lados: 97 civis mortos para cada policial morto. Dando um salto de vinte anos,
pesquisadores do Rio de Janeiro lançaram um livro (Misse et alii, 2013) que parece
repercutir o subtítulo do livro de Caco Barcellos: Quando a Polícia Mata. O subtítulo
explica: “Homicídios por ‘autos de resistência’ no Rio de Janeiro (2001-2011)”. São mais
de dez mil mortos. Comparando os dados de um e de outro, verifica-se uma progressão
assustadora: no primeiro caso, o estudo abrange mais de vinte anos; no segundo, dez.
Lá, os mortos são mais de quatro mil; aqui, mais de dez. Ou seja: enquanto o tempo foi

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dividido por dois, os mortos foram multiplicados igualmente por dois! Dir-se-ia que a
violência letal da policia piorou. Mas o problema é que não foi só ela...
Por uma infeliz coincidência, a partir dos anos 1980 – justamente quando o
problema dos direitos humanos emergiu entre nós – a criminalidade urbana violenta,
aquela que faz as pessoas terem medo, cresceu assustadoramente no Brasil. Foi quando
a defesa desses direitos começou a ser hostilizada. Os militantes que saíam em defesa
dos que eram torturados e mortos pela polícia costumavam ser interpelados com uma
pergunta capciosa e incômoda: “E os direitos humanos das vítimas?” A pergunta
continua sendo tão insistentemente ouvida que não é exagerado dizer que estamos em
presença de uma verdadeira campanha, renovada cotidianamente pelo rádio e pela
televisão nos assim chamados “programas policiais”, de grande prestígio e audiência
entre o público. Daí o grande complicador com que se defrontam os militantes dos
direitos humanos no Brasil: a oposição estado-torturador versus sociedade civil-
torturada, tão clara nos anos 1970, foi substituída por uma relação bem mais complexa
e ambígua, pois ela varia da revolta explícita contra massacres como o de Vigário Geral,
em 1993 (21 mortos), ao apoio tácito à chacina do Carandiru, em 1992 (111 mortos).
Apanhada no fogo cruzado entre a violência da polícia e dos marginais, a população
tanto é capaz de protestar quando as vítimas são honestos pais de família, quanto de
aplaudir quando os mortos são bandidos – reais ou supostos.
Aqui entra a hipótese adjacente de que a persistência dessas práticas de
violações de direitos humanos no Brasil resulta da infeliz confluência de uma
mentalidade escravocrata (dentro da qual os “inferiores” são naturalmente
“torturáveis”) com o fenômeno da “criminalidade urbana violenta” que explodiu nos
anos 1980, justamente quando o país se redemocratizava. É importante recuperar isso
porque, no bojo do processo de redemocratização de então, houve iniciativas de romper
a mentalidade vigente na política de segurança pública – que, como se sabe, é de
competência dos estados. É interessante e didático relembrar o que ocorreu, por
exemplo, em São Paulo, na sequência da primeira eleição direta para governador desde
o golpe, a de 1982.
Como se sabe, com a “abertura” levada a cabo aos trancos e barrancos pelo
presidente Figueiredo, os governadores dos estados voltaram a ser eleitos pelo voto
direto. Em São Paulo, o eleito foi Franco Montoro, um liberal moderado, mas histórico
combatente pelo retorno do país ao estado de direito. Nessa conjuntura, o novo

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governador anunciou algumas medidas que sinalizavam uma ruptura com a tradição de
violação sistemática dos direitos humanos pelos aparelhos de repressão. Para atacar o
problema da violência nas prisões, Montoro tomou uma atitude corajosa: nomeou o
advogado José Carlos Dias para ocupar a Secretaria de Justiça. Antigo defensor de
prisioneiros políticos, Dias anunciou abertamente que iria aplicar uma política de
direitos humanos na sua gestão. Os ataques não se fizeram esperar. Eles vinham da
imprensa sensacionalista, dos “programas policiais”, mas também de membros do seu
próprio partido, o PMDB. A sua política era acusada de defender os criminosos e
incentivar rebeliões nas prisões. À medida que o número de crimes na cidade subia nas
estatísticas, o grito “Segurança Já!” tornava-se o slogan preferido do principal adversário
de Montoro, o impagável Paulo Maluf. Aos poucos, a posição de Dias tornou-se
insustentável. Nessas circunstâncias, o mais surpreendente é que tenha conseguido
manter-se no cargo por mais de três anos. Em junho de 1986, entretanto, com a
proximidade das novas eleições, sua hora soou. O candidato do próprio Montoro à
sucessão estadual, Orestes Quércia, começou a falar a mesma linguagem dos
adversários do governador. Nesse momento, Dias renunciou. A reação do eleitorado
parece ter sido positiva: Quércia ganhou as eleições.
E no Rio de Janeiro, onde padeceu Amarildo? Também em 1982 foi eleito um
dos arqui-inimigos do regime: Leonel Brizola. Todos ainda se lembram da gritaria que
houve quando o novo governador anunciou que a sua polícia não iria mais adotar a
política do “pé na porta” no barraco de favelados para prender bandidos. Depois de
Brizola, veio Marcello Alencar. Ele, que nos “anos de chumbo” tinha sido um dos
corajosos defensores de presos políticos, nomeou para seu secretário de segurança
ninguém menos que o coronel Nilton Cerqueira, que ocupou o cargo entre 1995 e 1998.
Cerqueira foi o comandante da operação que executou Carlos Lamarca no sertão da
Bahia em 1971. Em 1995, quase vinte e cinco anos depois, foi chamado por um antigo
defensor dos direitos humanos para se ocupar da política de segurança do estado de
que era governador. Condizente com sua vocação guerreira, Cerqueira instituiu na
corporação policial uma gratificação para agentes que tivessem praticado “atos de
bravura”. O resultado é de todos conhecido: tais atos, na maioria das vezes, referiam-se
a ações que resultavam na morte de criminosos – reais ou suspeitos. A coisa ficou tão
escancarada que os aumentos salariais ficaram conhecidos como “gratificação faroeste”
(Misse et alii, p. 16).

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Com isso introduzo eu mesmo um matiz na hipótese inicial – estabelecida a


guisa de hipótese de trabalho – de que os casos Rubens Paiva e Amarildo nada têm a ver
um com o outro. Bem pensadas as coisas, as violações de direitos humanos em tempos
de exceção e em tempos ordinários não são realidades estanques. Mesmo se no
contexto e nas motivações elas são diversas, isso não significa dizer que não se cruzaram
em vários momentos, ou que não prestaram serviço uma à outra. Há vários exemplos
disso. Um deles: em retribuição aos serviços que o delegado Fleury lhe prestava, o
regime militar editou em 1973 uma lei permitindo que réus primários e com bons
antecedentes (por mais surrealista que pareça, era “tecnicamente” o caso dele!)
respondessem a processos penais em liberdade até o julgamento final. Isso o livrou da
cadeia, para onde, pela lei antiga, seria fatalmente despachado por ter sido enviado a
júri no processo movido por Hélio Bicudo contra o Esquadrão da Morte. A lei ficou
conhecida como “Lei Fleury” e continua em vigor.2 Mas o exemplo não é único. Chega
mesmo a ser lógico que tenha havido outros cruzamentos promíscuos entre a repressão
policial comum e a repressão política promovida pelo regime. Afinal, as duas coisas
eram contemporâneas e conviviam muito bem. É perfeitamente defensável a hipótese
de que a segunda tenha estimulado e reforçado a primeira. Numa quadra histórica em
que a classe média (e mesmo alta) brasileira tinha caído no rol dos “torturáveis”,
certamente os responsáveis pela repressão policial “normal” sentiram-se mais à vontade
para dar vazão à opinião tão nossa conhecida de que “bandido bom é bandido morto”.
Convém também não esquecer que mais de uma vez militares foram chamados
pelo poder civil para se ocupar da segurança pública em relação à criminalidade comum,
como o general Amaury Kruel por Juscelino Kubitschek e o coronel Nílton Cerqueira pelo
governador Marcello Alencar, da mesma maneira que também militares foram
deslocados para as repartições policiais quando se tratou de reprimir inimigos políticos,
como o general Fontoura no estádio de sítio de Artur Bernardes e o tenente Filinto
Müller na ditadura de Getúlio Vargas. E um personagem como o delegado Cecil Borer,
que aterrorizou presos políticos durante a ditadura de Vargas, continuou aterrorizando
presos comuns no período democrático de Juscelino Kubitschek. Como se vê, em muitas
ocasiões os atores são os mesmos. Mas se, de fato, a passagem do coronel Cerqueira
pela secretaria de segurança do Rio de Janeiro foi parte da “herança maldita”,

2
Considerada – inclusive por mim mesmo – como um avanço em relação à legislação anterior, ela mostra
que o Diabo, como se diz de Deus, também pode escrever certo por linhas tortas...

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convenhamos que foi um legado aceito de bom grado por um governador civil eleito
pelo povo e com um histórico de luta contra as violações de direitos humanos na época
do regime militar. Francamente, que responsabilidade têm nessa nomeação os generais
que em dezembro de 1968 tiraram a focinheira dos seus torturadores?

***

Mas não quero concluir de modo pessimista. Por um dever de justiça – além do
dever da honestidade intelectual –, devo lembrar que os tempos, pelos dias que correm,
já não são os mesmos. Os que mataram Amarildo em 2013 foram presos e estão à
disposição da justiça. Será que não há, apesar de aberrações como o seu caso, alguma
diferença entre a polícia das UPPs e os “homens de ouro” que matavam delinquentes
como Mineirinho e tantos outros nos anos 1950 e 1960, e eram publicamente
enaltecidos por seus superiores? Tudo isso na indiferença do Ministério Público e do
Judiciário brasileiros?


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Sobre o autor

Luciano Oliveira
Luciano Oliveira é mestre em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e
Doutor também sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris). É
professor aposentado da Faculdade de Direito do Recife e atualmente professor na
Universidade Católica de Pernambuco. Publicou, entre outros, um Manual de Sociologia
Jurídica (Vozes) e O Aquário e o Samurai: uma leitura de Michel Foucault (Lumen Juris).
Email: lgo5283@gmail.com.

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

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Caso Xukuru e o Bem Viver do povo Fulni-ô (PE)


The Xukuru Case and the Well-Living of the Fulni-ô People (PE)

Paula Manuella Silva de Santana1


1
Universidade Federal Rural de Pernambuco, Serra Talhada, Pernambuco, Brasil. E-mail:
paula.manuella@ufrpe.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1730-1953.

Tiago Queiroz de Magalhães 2


2
Universidade Federal Rural de Pernambuco, Serra Talhada, Pernambuco, Brasil. E-mail:
tiago14magalhaes@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4168-5870

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 2/02/2022.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro , Vol. 13, N. 01, 2022, p. 607-635
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Resumo
O Bem Viver dos povos indígenas, isto é, a articulação entre os direitos à terra, à água, à
natureza em harmonia com as culturas locais, à dignidade e à vida, corriqueiramente é
ferido no Brasil. Em Pernambuco, região Nordeste do país, estado que congrega uma
significativa população indígena, os territórios sagrados são o alvo de conflitos sangrentos
entre produtores rurais, latifundiários, garimpeiros, madeireiros e os povos tradicionais,
sob a displicência ingênua, colonial e, cada vez mais, permissiva do Estado brasileiro.
Diante desse cenário, o presente ensaio busca discutir o caso do povo indígena Xucuru,
localizado no município de Pesqueira (PE), na Corte Interamericana de Direitos Humanos
e suas reverberações não apenas na garantia de direitos aos povos indígenas no país, mas
também nos contornos que a luta de outros grupos étnicos de Pernambuco ganha a partir
do resultado do pleito. A proposta aqui é pensar, junto com os povos indígenas, sobre as
particularidades da luta pelo Bem Viver entre as comunidades de Pernambuco e como o
caso Xucuru possibilita uma crítica decolonial a uma concepção universalista no campo
do Direito e na efetivação de Direitos Humanos.
Palavras-chave: Povos indígenas; Pensamento decolonial; Direito; Interculturalidade.
Abstract
The well-being of the indigenous peoples, i.e., the articulation between the rights to land,
to water, to nature in harmony with local cultures, to dignity and to life, are constantly
wounded in Brazil. In Pernambuco, located in the Brazilian Northeast, a state that
congregates a significant indigenous population, their sacred territories are the target of
bloody conflicts between rural producers, landowners, miners and loggers, and the
traditional peoples, under the naïve, colonial and increasingly permissive negligence of
the Brazilian State. Before this setting, this article aims to discuss the case of the Xucuru
indigenous people, located in the city of Pesqueira (PE), in the Brazilian Northeast, in the
Inter-American Court of Human Rights and its reverberations not only in guaranteeing the
rights of the indigenous peoples in the country, but also regarding the contours that the
fights by other ethnic groups in Pernambuco gain from the results of the plea. The
proposal here is to think, alongside the indigenous peoples, about the particularities of
the fight for the Well-Being among the communities in Pernambuco and how the Xucuru
case allows for a decolonial critique to a universalist conceptualization in the field of Law
and in the actualization of Human Rights.

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Keywords: Indigenous peoples; Decolonial Thought; Law; Interculturality.


Apresentação

O Bem Viver dos povos indígenas, isto é, a articulação entre os direitos à terra, à água, à
natureza em harmonia com as culturas locais, à dignidade e à vida, corriqueiramente é
ferido no Brasil. Em Pernambuco, região Nordeste do país, estado que congrega uma
significativa população indígena, os territórios sagrados são o alvo de conflitos sangrentos
entre produtores rurais, latifundiários, fazendeiros, invasores e os povos tradicionais, sob
a égide da displicência diligente, colonial e, cada vez mais, permissiva do Estado brasileiro.
A proposta aqui é refletir sobre o caso do povo indígena Xucuru, localizado no município
de Pesqueira (PE), na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e suas
reverberações não apenas na garantia de direitos aos povos indígenas no país, mas
também nos contornos que a luta de outros grupos étnicos de Pernambuco ganha a partir
do resultado do pleito.
Para tanto, este ensaio busca agregar algumas das reflexões elaboradas na
pesquisa Contribuições da Filosofia do Bem Viver e do Pensamento Indígena a uma
Pedagogia Antirracista, desenvolvida no programa de Iniciação Científica da Universidade
Federal Rural de Pernambuco – Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE-UAST),
durante os anos de 2018 e 2019, a partir da perspectiva da antropologia simétrica
proposta por Latour (2009) e Ingold (2012). Por meio de um diálogo intercultural com
Tosowmlaka Fulni-ô, reflete-se sobre as particularidades da luta pelo Bem Viver entre as
comunidades indígenas de Pernambuco e como o caso Xucuru possibilita uma crítica
decolonial a uma concepção universalista no campo do Direito e na efetivação de Direitos
Humanos. O arcabouço conceitual da teoria crítica de direitos humanos desenvolvida por
Flores (2009), a perspectiva intercultural em Direitos Humanos de Santos (2009), a teoria
do pluralismo jurídico desenvolvida por Wolkmer (2015) e o potencial crítico e
paradigmático aberto pelos novos constitucionalismos latino-americanos serão o aporte
para sulear1 o diálogo intercultural neste ensaio. Diante disso, propomos um exercício de

1Optamos pelo termo sulear em contraponto à nortear. As línguas são construções sociais dinâmicas e o
exercício crítico em torno delas é ferramenta importante no campo da Antropologia. Por isso, quando
operamos essa troca, seguimos a perspectiva lançada pelo artista uruguaio Torres García (1874-1949), que
propôs um mapa onde o sul estaria no topo, dando visibilidade a um olhar a partir do sul como forma de
contrariar a lógica hegemônica eurocêntrica em que o norte surge como referência universal. Dessa forma,
abre-se senda para problematizar e contrapor o viés ideológico do termo nortear (norte: acima, superior x
sul: abaixo, inferior).

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deslocamento e desconstrução epistêmica. A ideia é trazer o manancial teórico e


metodológico à medida que se faça necessário, recorrendo-se, para isto, a uma escrita
ensaística que aprofunda e problematiza questões pertinentes postas ao longo do texto.
Neste sentido, é pertinente perguntar: como as noções que utilizamos nas
Ciências Sociais e no Direito podem ser atingidas e desestabilizadas por experiências de
vida radicalmente distintas? Muitas vezes não nos empenhamos em localizar nossos
paradigmas teóricos, ou, em outras palavras, falta-nos comprometimento em mostrá-los
como parte de um local. Mesmo diante de todas as controvérsias que perpassam o vasto
campo das Ciências Sociais – marcado pelo dissenso epistemológico e pela profunda
interdisciplinaridade com outras ciências humanas –, ainda há centros de gravidade
epistêmicos que levam à valorização de certas experiências de vida ou de certas
perspectivas de conhecimento em detrimento de outras. As Ciências Sociais já aceitam os
relatos de experiência e os saberes tradicionais como corpus de estudo; todavia, ainda
assim, persiste uma profunda disparidade epistêmica. Essa crítica é empreendida desde
a Virada Linguística, e aqui, em Abya Ayla 2 , é mobilizada com força por intelectuais
indígenas, pensadores/as pretas/os, pelas epistemologias feministas e cuir, assim como
pelo grupo Modernidade/Colonialidade. Por sua vez, o Direito, por si só, já é a
manifestação de uma certa colonialidade. Se há uma hegemonia epistêmica eurocêntrica
nas Ciências Sociais, de maneira ainda mais monolítica e intransigente, isto também
acontece com o Direito. Por tal, apenas no jogo de contraponto entre tradições e
esquemas conceituais é que podemos fraturar ou desestabilizar esses centros de poder.
A terra, um dos elementos centrais das disputas jurídicas no Brasil, precisa ser
pensada a partir de seus múltiplos significados. Müller e Simioni (2016), ao discutir os
desafios para a demarcação das terras Guarani no Brasil, observam que a perspectiva do
Ocidente sobre o conceito encontra-se alicerçada em uma semântica capitalista, a qual
compreende a terra como um meio de produção e acumulação de riquezas. Na
Modernidade, torna-se não apenas uma infraestrutura econômica, mas também um
modo de produção do ser e passa a ter também um sentido político (MÜLLER; SIMIONI,
2016). Ainda para os autores, o modo de vida dos povos indígenas aponta para uma

2 Segundo Carlos Walter Porto-Gonçalves, Abya Yala vem da língua do povo Kuna e significa “Terra Viva”.
Pouco a pouco, nos diferentes encontros do movimento dos povos originários, o nome América vem sendo
substituído por Abya Yala, indicando, assim, não só outro nome, mas também a presença de um outro sujeito
enunciador de discurso, até aqui silenciado e subalternizado em termos políticos: os povos originários. Mais
informações disponíveis em: http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/abya-yala.

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experiência de entendimento do significado da terra absolutamente diferente da


cosmovisão da sociedade ocidental. Um significado que, aos olhos etnocêntricos da
cultura do Ocidente, só pode ser entendido como algo místico e alheio à
contemporaneidade dos sistemas capitalistas. Dentro das lógicas de manutenção e
disputa de poder, esse modo de vida é sinônimo de atraso e precisa ser extinto em prol
do progresso e do desenvolvimento econômico predatório (MÜLLER; SIMIONI, 2016).
Diante disto, a questão central deste ensaio está em um esforço de reflexão sobre
a forma como os povos indígenas de Pernambuco, especialmente os Xucuru e os Fulni-ô,
concebem a ideia de terra e como, por sua vez, tanto as Ciências Sociais quanto o Direito
têm estabelecido mediações interculturais para a efetivação dos direitos básicos dessas
populações. Trata-se de um aspecto relevante, porquanto abre senda para um processo
de crítica decolonial do Direito ocidental a partir das lutas e cosmovisões dos próprios
intelectuais indígenas.

O Bem Viver e a educação pela natureza

A filosofia do Bem Viver é um projeto ético compartilhado na atualidade pelos povos


originários do mundo inteiro. Segundo Acosta (2016), o Bem Viver3 é uma categoria em
permanente construção e reprodução. Ela foi incorporada na Constituição do Equador de
2008 como sumak kawsay, da língua quéchua (sumak significando plenitude, o ideal, o
bom, e kawsay significando vida), bem como na Constituição da Bolívia de 2009 como
suma qamaña, da língua aimará (Suma significando plenitude, sublime, e Qamaña
significando vida, conviver, viver). Nesses países, a categoria representa uma alternativa
às atuais compreensões ocidentais de desenvolvimento e crescimento econômico.
Os povos indígenas do Equador, em 2008, conseguiram um feito inédito na
história da América Latina, tendo, através de muita luta e resistência, garantido

3 Segundo Tadeu Breda, tradutor da obra escrita por Acosta (2016, p. 10-11, grifos do autor), ‘“Bom Viver’ é
a tradução que mais respeita o termo utilizado pelo autor (Buen Vivir) e também o termo em kíchwa (sumak
kawsay), língua da qual nasceu o conceito em sua versão equatoriana. De acordo com o Shimiyukkamu
Dicionario Kichwa-Español, publicado pela Casa de Cultura de Ecuador em 2007, sumak se traduz como
hermoso, bello, bonito, precioso, primoroso, excelente; kawsay, como vida. Ou seja, buen e sumak são
originalmente adjetivos, assim como ‘bom – ’seu melhor sinônimo em português, no caso. Vivir e sumak, por
sua vez, são sujeitos. Contudo, em atenção ao termo utilizado há alguns anos por movimentos sociais
brasileiros, decidimos traduzir o título do livro como O Bem Viver, considerando ‘bem ’como advérbio e
‘viver ’como verbo. [...]. Afinal, assim como Buen Vivir é usado no Equador e Vivir Bien, na Bolívia, Bem Viver
é a expressão em uso no Brasil.

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juridicamente a manutenção de um dos mais importantes traços de sua cosmologia, o


direito à Pachamama (WILHELMI, 2009). A Pachamama é, na língua dos povos indígenas
do Equador, o que entendemos como espaço e natureza. Neste caso, é um sentimento
compartilhado por todos os povos indígenas que reivindicam como parte de sua
existência a terra, a água, a natureza como divindade e fundamento mitológico para a
existência humana. A Pachamama é a síntese do que acreditam os povos originários em
sua complexidade social, cultural e existencial. Deste modo, as Constituições do Equador
e da Bolívia garantem, até então, a natureza como prioridade e digna de ter seus direitos
resguardados, assim como os seres humanos:
Na Constituição boliviana é apresentado como ‘Viver Bem ’e aparece na
seção dedicada às bases fundamentais do Estado, onde se fala dos princípios,
valores e fins do Estado (ensaio 8). Ali se diz que o Estado ‘assume e promove
como princípios ético-morais da sociedade plural: amoa qhilla, amoa llulla,
amoa suwa (não sejas preguiçoso, não sejas mentiroso nem sejas ladrão),
suma qamaña (Viver Bem), ñandereko (vida harmoniosa), teko kavi (vida
boa), ivi maraei (terra sem males) e qhapaj ñan (caminho ou vida nobre)’. Esta
formalização boliviana é pluricultural, já que oferece a ideia do Viver Bem a
partir de vários povos indígenas e todas as ideias estão no mesmo plano
hierárquico (GUDYNAS, 2008, p. 8, grifos do autor).

Walsh (2009) afirma que a incorporação do conceito de Bem Viver nas


Constituições da Bolívia e do Equador foi uma conquista histórica emblemática. Antes
disso, assim como ocorre na Constituição brasileira de 1988, o modo de vida indígena
estava contemplado no aparato constitucional desses países, mas apenas como política
de inclusão, direitos especiais e, ainda assim, tendo como modelo dominante o ocidental.
Nas novas Constituições, o modelo plurinacionalista propõe a incorporação e a
contribuição do Bem Viver para toda a sociedade, promovendo transformações reais e
profundas na estrutura social. Um exemplo disso é que os saberes tradicionais passam a
ser considerados como fonte de conhecimento para toda a sociedade, trazendo novas e
mais profundas formas de interpretar e compreender o mundo.
A filosofia do Bem Viver é a visão de um mundo melhor a partir da
descentralização dos Mercados e da desconstrução das estruturas do racismo indígena e
do etnocentrismo. Deste modo, o Bem Viver é muito mais do que um estilo de vida, sendo,
antes, um pacto ético e moral. É necessário que se faça entender essa forma de enxergar
o mundo, uma vez que a perspectiva do Bem Viver denuncia o capitalismo e o seu suporte
ideológico centralizado na razão instrumental historicamente estruturada no
etnocentrismo europeu (LANDER, 2005).

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Quijano (2005), por sua vez, declara que é fundamental pensar o racismo como
alicerce ideológico para a manutenção de uma ordem capitalista estabelecida. Para tanto,
se faz necessário problematizar, também, a sua configuração em escalas que sobressaem
o micro e se articulam em um entendimento encontrado na própria definição de ciência.
Quando se diz ciência, ciência tout court, está se falando de ciência ocidental; para se falar
de ciência tradicional, é necessário acrescentar o adjetivo (CUNHA, 2007). Logo, ao
pensarmos a natureza como algo que não se fundamenta como “corpo”, mas enquanto
“verdade”, podemos buscar nos saberes tradicionais – ou seja, a ciência de povos
originários – a relevância que existe em suas compreensões. Deste modo, em consonância
com Ailton Krenak (2019), é válido refletir como o método de fazer ciência eurocêntrico
contribuiu para as crises civilizatórias atuais e relativizou a independência e soberania do
pensamento indígena e sua importância.
Ao aportar esse debate no contexto brasileiro, Santana (2017) reforça que é
preciso atentar que vivemos em uma das maiores e mais complexas sociedades
multirraciais e pluriétnicas do mundo, composta majoritariamente por descendentes de
africanos dispersos na diáspora e povos indígenas. Após quinhentos anos das invasões
europeias e uma intensa miscigenação entre europeus, africanos e indígenas, ainda
persiste, mesmo que de maneira velada, a hegemonia de padrões eurocêntricos e, por
consequência, a sedimentação de uma série de práticas racistas que corroboram as
desigualdades sociais com relação aos povos indígenas e aos negros (SANTANA, 2017).
A questão da terra, em contexto brasileiro, tangencia uma série de nuances
pertinentes ao que se convencionou chamar de Pensamento Social Brasileiro, uma
subárea das ciências sociais que, entre outras coisas, se esforça em construir um painel
interpretativo acerca da formação do país. Mas, como sabiamente nos lembra o pensador
quilombola Antônio Bispo dos Santos (2015), o viés eurocêntrico da origem e formação
de muitos dos mais importantes autores que perfazem essa subárea acabou por
invisibilizar aspectos como a profunda interrelação entre a questão fundiária e o modelo
católico de colonização, a escravização e a dominação indígena, a instituição do
escravismo na formação econômica e social brasileira, a ideologia da mestiçagem, a
democracia racial e, além disso, as lógicas de desenvolvimento sedimentadas no regime
capitalista de exploração da terra e dos recursos naturais das florestas e dos rios e mares.
A mensagem final e oficial desse tipo de interpretação elitizada e míope sobre o país,
reproduzida no nosso universo acadêmico, no Direito e na vida política desde os anos

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1930 até hoje, é a de que somos um único povo, especial porquanto é capaz de conviver
harmoniosamente com a diversidade (SANTOS, 2015). Ainda para Santos (2015), esse
padrão de sociedade imposto às populações indígenas e pretas pelos portugueses
reverbera em revoltas, rebeliões, lutas antirracistas e autodemarcações levadas a cabo
por esses grupos diante da morosidade genocida do Estado brasileiro.
Para dar conta dos objetivos deste ensaio, torna-se necessário definir alguns
conceitos que ajudarão a compreender a história peculiar dos territórios indígenas em
Pernambuco. Em primeiro lugar, terra indígena pode ser entendida como um conceito
jurídico, designando uma unidade territorial delimitada e demarcada de acordo com
princípios engendrados pela política indigenista. Deste modo, qualquer terra indígena é
resultado não de condições imutáveis e atemporais, mas de processos políticos com sua
própria historicidade, processos que geralmente envolvem uma gama de atores sociais
indígenas e não indígenas nos mais diversos níveis hierárquicos (LIMA, 2005; OLIVEIRA,
2006). Porém, terra indígena também pode ser compreendida sob a perspectiva do Bem
Viver: uma cosmopolítica que se faz articulada aos deuses das religiões de matriz indígena
e à natureza, num esforço contínuo de manter aquilo que Aílton Krenak (2019) chama de
viver em coletivo mantendo um vínculo profundo com a memória ancestral, com as
referências que dão sustentação a uma identidade.
Essa ambivalência de abordagem se dá em função da complexidade da discussão.
Há aqui disputas narrativas, de sentido e interesse em torno da terra. O poder público,
ruralistas de toda sorte e povos indígenas reivindicam significados e funções distintas
sobre a ideia de terra e é preciso lançar luz sobre essas concepções.
No plano ideal, uma terra indígena e um território indígena coincidem
completamente, o que parece ser um sentido implícito e comum das normas de
regularização de terras indígenas pautadas pela definição do artigo 231 da Constituição
(BRASIL, 2018). Na prática, esse ideal não é alcançado por diversos motivos, os quais são
perpassados, porém, de forma imperiosa, pelas forças políticas em disputa. Para entender
melhor a conexão entre terra e território, em particular no Nordeste indígena, é profícuo
lançar mão de um terceiro conceito, o de territorialização, proposto e elaborado por João
Pacheco de Oliveira (1998):
A noção de territorialização tem a mesma função heurística que a de situação
colonial [...], da qual descende e é caudatária em termos teóricos. É uma
intervenção da esfera política que associa – de forma prescritiva e
insofismável – um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem
determinados. [...]. O que estou chamando aqui de processo de

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territorialização é precisamente o movimento pelo qual um objeto político-


administrativo – [...], no Brasil as ‘comunidades indígenas – ’vem a se
transformar em uma coletividade organizada, formulando uma identidade
própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e
reestruturando as suas formas culturais (inclusive as que o relacionam com o
meio ambiente e com o universo religioso) (OLIVEIRA, 1998, p. 56).

Oliveira (1999) demonstra como a territorialização, enquanto processo social


desencadeado por imposições políticas históricas, é distinta do conceito de
territorialidade. Nesta conjuntura, a visibilidade da luta do movimento social indígena na
esfera pública brasileira é relativamente recente, tendo ganhado os holofotes após a
Constituição de 1988. Entretanto, é vital frisar, as lutas e a ação coletiva indígena têm
início no dia que as primeiras naus portuguesas desembarcaram por aqui. O Brasil foi
formado a partir da espoliação e injustiça contra os povos indígenas e africanos e, em
meio a uma conjuntura de sangue e guerra, vários pensadores indígenas propõem um
modelo alternativo de sociedade, baseado na filosofia do Bem Viver; dentre eles, Ailton
Krenak (2015, 2019) e Davi Kopenawa (2015).
Essa filosofia é uma alternativa ao paradigma da vida contemporânea,
fundamentado pelas lógicas da razão instrumental, isto é, a ideia de que o ser humano é
capaz de dominar a natureza para promover o uso abusivo e exaustivo dela (KRENAK,
2019). O Bem Viver, como nos ensina Krenak (2019), não se caracteriza por ser apenas
uma crítica ao sistema capitalista e ao modelo ocidental de existir, que se pretendem
universais, mas é também uma reflexão sobre as possibilidades que diferentes modos de
vida, já existentes porém invisíveis, podem oferecer. Os povos indígenas inspiram o Bem
Viver e nos convidam a pensar em novos modelos de vida e relações mais orientadas para
o respeito, a justiça, a solidariedade e a paz. Para Walsh (2009), a possibilidade do Bem
Viver só pode ser conquistada por meio de um novo modelo de educação, que deve
abandonar sua doutrina tecnocrata para se tornar crítica, reflexiva, intercultural e
libertadora.
No Brasil, a luta dos povos indígenas para poder viver amplamente os princípios
do Bem Viver é imensa. Muitos desses territórios foram invadidos e ocupados por
posseiros durante o período colonial e suas famílias permanecem nessas terras até hoje.
Já que as políticas do Estado a favor dos indígenas não se efetivam, reproduz-se uma luta
incessante entre indígenas e não indígenas. Apesar do empenho e dedicação do
Movimento Social Indígena pela demarcação de seus territórios de direito, invasores de

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toda sorte seguem avançando sobre suas terras. A mídia hegemônica, tantas vezes aliada
do agronegócio, distorce narrativas sobre a luta por terra no Brasil e contribui para a
manutenção e a agudização dos confrontos, o que acaba por deixar as populações
indígenas ainda mais vulneráveis dentro seus próprios territórios (MÜLLER; SIMIONI,
2016).

A luta pelo território no Nordeste do Brasil: o caso Xucuru

Na produção bibliográfica brasileira acerca do Bem Viver, de maneira corrente as


cosmologias Guarani e Yanomami são trazidas ao debate como exemplos desse modo de
vida entre nós. Os povos indígenas do Nordeste, tantas vezes, são marginalizados e
invisibilizados dessa discussão. Neste sentido, Oliveira (1998) problematiza de maneira
contundente a ausência de um olhar etnológico sobre as questões que envolvem os
“índios misturados” do Nordeste. Em Santana (2017), há uma reflexão importante sobre
como a invisibilidade dos povos indígenas do Nordeste é construída não só na narrativa
dominante da história local e nacional, o que é consensual, mas também nas interações
cotidianas nas cidades sertanejas que nasceram após a invasão portuguesa e os primeiros
“aldeamentos”. Oliveira (1998) afirma que, antes mesmo do final do século XIX, já não se
falava mais em povos e culturas indígenas no Nordeste. Destituídos de seus antigos
territórios, não são mais reconhecidos como coletividades, mas referidos individualmente
como “remanescentes” ou “descendentes”. São os “índios misturados” de que falam as
autoridades nos documentos históricos, a população regional e eles próprios, os registros
de suas festas e crenças sendo realizados sob o título de “tradições populares” (OLIVEIRA,
1998).
Se a partir de suas lutas e resistências os povos indígenas conquistaram nas
últimas décadas considerável reconhecimento enquanto atores políticos, exigindo novos
olhares, pesquisas e reflexões, por outro lado, é perceptível o desconhecimento, os
preconceitos e as lógicas racistas que se reproduzem e estruturam nos discursos
hegemônicos do cotidiano (SANTANA, 2017). No Nordeste, durante muito tempo foi
corroborado o imaginário social de que os “índios” eram sertanejos, caboclos, pobres e
sem acesso à terra, bem como desprovidos de forte contrastividade cultural. No contexto
local, parte significativa das terras indígenas foi incorporada por fluxos colonizadores

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anteriores, não diferindo muito as suas posses atuais do padrão camponês e estando
entremeadas com a população regional. Para Oliveira (1998), essa desproporção dá uma
importante dimensão ambiental e geopolítica aos problemas e às mobilizações dos povos
indígenas na Amazônia, enquanto que, no Nordeste, as questões se mantêm
primordialmente nas esferas fundiária e de intervenção assistencial. Se, na Amazônia, a
mais grave ameaça é a invasão dos territórios indígenas e a degradação de seus recursos
ambientais, no caso do Nordeste, o desafio à ação indigenista é restabelecer os territórios
indígenas, promovendo a retirada dos não indígenas das áreas indígenas,
desnaturalizando a “mistura” como única via de sobrevivência e cidadania (OLIVEIRA,
1998).
A questão fundiária, a qual Oliveira (1998) nos lembra estar tão fortemente
associada aos povos indígenas do Nordeste, se relaciona intimamente às políticas
assimilacionistas executadas desde o início dos processos de colonização. A partir da
promulgação da Lei de Terras, em 1850, tem-se início por todo o Império um movimento
de regularização das propriedades rurais. Vilas progressivamente expandem o seu núcleo
urbano e famílias vindas das grandes propriedades do litoral buscam se estabelecer nas
cercanias como produtoras rurais. Sucessivamente, os governos provinciais vão
declarando extintos os antigos aldeamentos indígenas e incorporando os seus terrenos a
comarcas e municípios em formação. Arruti (1996) lembra que foi exatamente isso que
se sucedeu, por exemplo, com os Pankararu do Brejo dos Padres, no município de
Tacaratu-PE, que descrevem a extinção do antigo aldeamento fazendo referência ao
“tempo das linhas”, quando ocorreram os trabalhos de demarcação e distribuição de
lotes.
Neste sentido, é fundamental endossar que as populações indígenas do Nordeste,
a despeito de todas as violências que lhes foram imputadas – envolvendo o extermínio de
seus corpos, de sua cultura e de seus territórios –, não perderam de vista a busca pelo
Bem Viver como elemento fundamental para não vir a sucumbir ao deslocamento
impingido tanto pelo Estado quanto pelas forças colonialistas e capitalistas. Em Santana
(2017), há uma elaboração sobre como as populações indígenas do Nordeste brasileiro,
diante de tantas violências, seguem à sombra nas representações da discussão
epistemológica (e ontológica). Esse lugar de apagamento espelha também seu não lugar
no âmbito político. Desde a obra de Clastres (2014) nos anos 1970, as instituições políticas
ameríndias vêm sendo pensadas em afastamento às tradições ocidentais de poder,

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Direito e soberania. Para este autor, as lógicas de chefia nas comunidades indígenas
garantiam alguma visibilidade no discurso público, mas pouco poder decisório sobre as
implicações do sistema jurídico na vida cotidiana das comunidades. Raoni, Davi Kopenawa
e o próprio Xicão Xucuru são vozes bastante conhecidas na esfera pública, por exemplo,
mas precisaram dar suas vidas4 para garantir direitos básicos e constitucionais aos seus
povos. A antropologia de Clastres, profundamente conectada ao seu trabalho de campo
com os Guarani, parece, no entanto, possibilitar a compreensão também quanto às
demandas da vida de vários povos indígenas do Nordeste. A luta dos povos indígenas do
Nordeste por seus territórios ancestrais os coloca não apenas na linha de frente de um
enfretamento contra o Estado, como diria Clastres, mas também contra o sistema
capitalista. Entretanto, essas sociedades precisam manter-se em contato e articulação
com o Estado. Assim, há a necessidade de um registro duplo: contra a representação
política, uma vez que a política é o exercício de uma multiplicidade justaposta, e, também,
se utilizando dela, por questões estratégicas.
Em termos políticos (aproveitando o duplo uso epistemológico-político da noção
de representação), pensar espaços para além da representação pode também ser pensar
em espaços para além do Estado. Temos visto acontecer a nossa volta aquilo que se
convencionou chamar de crise de representação, expressa a nível mundial pela rejeição
popular às elites político-econômicas. Embora a manifestação dessa crise tome formas
muito aterrorizantes, culminando no que podemos interpretar contemporaneamente
como recrudescimento do fascismo, há também espaços abertos. A experiência política
dos povos indígenas que acompanhamos mostra não só uma pauta de reivindicações ou
um desejo de ação política frente aos governos. Mostra também a realidade da prática
de uma ação política que se dá em confronto e para além da tutela do Estado. São novas
formas de ação política, inseridas no interior de uma cosmopolítica do Bem Viver.
Diante disso, a luta do povo Xucuru de Pernambuco por seu território ancestral e
contra as inúmeras violações de seus direitos decorrentes da ineficiência da atuação
estatal pode ser compreendida como um emblema dessa conjunção estratégica de uma
cosmopolítica do Bem Viver. Após ser analisado pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), o caso Xucuru foi levado a julgamento pela Corte Interamericana de

4“Dar suas vidas” no sentido simbólico, uma vez que essas lideranças dedicaram suas existências à luta por
direitos, mas também literalmente, como no caso de Xicão, que foi assassinado por causa de sua batalha pela
demarcação do território ancestral do povo Xucuru.

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Direitos Humanos (Corte IDH), que, em 05 de fevereiro de 2018, proferiu sentença


condenando o Brasil pela violação dos direitos humanos daquele povo indígena.
Antes de adentrar nas minúcias do caso e seus desdobramentos, é importante
compreender o contexto de luta do povo Xucuru. O povo indígena Xucuru do Ororubá,
com cerca de oito mil membros, ocupa por direito mais de 27 mil hectares de terra do
município de Pesqueira, situado no Agreste do estado de Pernambuco.5 Sua população
está distribuída em 24 comunidades espalhadas dentro do seu território. Somam-se a
esse número de indígenas outros quatro mil, que vivem fora do perímetro de Pesqueira.
Trata-se de um povo que possui organização política e de poder própria, composta por
uma liderança e pela participação dos seus membros por meio da Assembleia.
Segundo a obra Xukuru - Filhos da mãe natureza: uma história de resistência e
luta, organizada por Eliane Almeida (1997) e escrita à várias mãos e mentes por
professoras, professores e lideranças do povo Xucuru, os Xucuru do Ororubá resistem ao
colonialismo português desde o século XVII, o qual ocupou o espaço da Serra do Ororubá.
Esta é um lugar de grandiosa importância para os Xucuru, pois lhes garante sua
cosmologia e uma forte condição de pertencimento. O direito dos povos indígenas aos
seus territórios ancestrais vem sendo reconhecido nos mais diversos diplomas legais,
tanto nacionais quanto internacionais. No Brasil, o referido direito tem status de norma
constitucional, tendo sido uma notável conquista dos povos indígenas, a qual apenas foi
possível graças à ativa participação de representantes indígenas nas discussões que
antecederam a elaboração e a promulgação da Constituição vigente. Neste sentido,
Almeida (1997, p.25) esclarece o seguinte:
Os Xukuru participaram de forma muito ativa, juntamente com outros povos
de Pernambuco e do Brasil, com o apoio do Conselho Indígena Missionário –
CIMI, das mobilizações em Brasília para pressionar os deputados e senadores
nas votações dos direitos indígenas na Constituinte. Motivados com a
conquista dos direitos indígenas aprovados na Constituição Federal de 1988,
os Xucuru sem terra para trabalhar e viver, iniciam um processo de retomada
de suas terras em poder de fazendeiros invasores.

Assim, de maneira inédita, os direitos indígenas receberam um tratamento


especial na Constituição de 1988, a qual dedicou um capítulo exclusivo para tratar dos
mesmos. Apesar de a nossa atual Carta Magna assegurar o direito à terra para os povos
indígenas, “o processo administrativo de demarcação da terra indígena, iniciado em 1989,

5 TERRAS indígenas no Brasil. Terra indígena Xucuru. Disponível em: https://terrasindigenas.org.br/pt-


br/terras-indigenas/3909. Acesso em: 13 jun. 2020.

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somente foi concluído em 2005, com o registro da Terra Indígena Xucuru. Porém, até
2015, não tinha sido completada a desintrusão da área, com a retirada de não indígenas”
(BASSETTO; KONNO, 2019, p. 37). Mesmo assegurado constitucionalmente, o povo
Xucuru continuava sendo violentado, a ponto de, inclusive, o seu cacique, Xicão, ter sido
assassinado no dia 20 de maio de 1998.6
Com isso, o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) / Regional
Nordeste, o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop) e o
Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apresentaram, em 16 de dezembro de 2002, uma
petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) referente à falha política
do direito à terra dos povos Xucuru do Ororubá. Logo, “por meio do Relatório nº 44/1521,
a (CIDH) analisou o Caso 12.728 e emitiu, em 28.07.2015, sua apreciação acerca do mérito
da questão atinente ao Povo Indígena Xucuru, no Brasil” (BASSETTO; KONNO, 2019, p.
36), alertando o país para que lhes garantisse o seu direito.7
O Brasil acabou por negligenciar a determinação da CIDH e o caso se estendeu
para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), que, por sua vez, em 05 de
fevereiro de 2018, expôs internacionalmente a falta de justiça do governo brasileiro
alegando violação dos Direitos Humanos para com o povo Xucuru. A despeito de ter sido
intimado a pagar uma indenização no valor de um milhão de dólares aos Xucuru, somente
o fez em fevereiro de 2020, dois anos após a decisão (ALBUQUERQUE; SILVA, 2020).
Infelizmente, o caso do povo Xucuru está muito longe de ser uma exceção no que diz
respeito à violação dos direitos indígenas; antes, trata-se de uma regra instaurada de
maneira ilegal e ilegítima, a qual contraria toda a sistemática estabelecida no texto
constitucional.

Conversas com Tosowmlaka Fulni-ô

Ao seguir os passos de Latour (2009), Ingold (2012) e Clifford (2008), propomos neste
ensaio um exercício de simetria ou antimodernidade, articulando na escrita os atores em
rede e trazendo como teoria e metateoria seus próprios quadros explicativos, num

6OLIVEIRA, Kelly. Xicão Xucuru, [201-]. Disponível em: https://osbrasisesuasmemorias.com.br/xicao-xukuru/.


Acesso em: 13 jun. 2020.
7 O relatório completo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Xucuru encontra-se

disponível no link a seguir: http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2016/12728FondoPt.pdf.

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esforço de ruptura com a ideia de autoridade etnográfica. Busca-se, assim, escapar das
assimetrias tão fortemente presentes nos pensamentos moderno e pós-moderno. Para
uma aproximação às cosmologias e às cosmopolíticas sobre a terra, é vital que se busque
pelas definições nativas, isto é, as definições sobre o mundo e sobre as relações entre os
seres articuladas por nossos interlocutores. Além disso, é necessário que acreditemos
nessas definições, não como meras representações do real, mais ou menos distorcidas
(LATOUR, 2009), mas em simetria com as definições criadas pela ciência. Por essas e
outras razões, esta seção será composta por uma conversa entre os autores e
Tosowmlaka Fulni-ô, intelectual, cineasta e parceiro de longa data de várias atividades
promovidas pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Macondo: artes, culturas contemporâneas
e outras epistemologias.
Fulni-ô é a autodenominação étnica atual usada por todos os Fulni-ô. No Nordeste
brasileiro, excluindo o Maranhão, os Fulni-ô são o único povo indígena que ainda fala uma
língua nativa. Os Fulni-ô referem-se à sua língua como Yaathe [ya:'th e], “nossa boca,
nossa fala”. Hoje em dia, o Yaathe é classificado como pertencente ao tronco Macro-Jê,
porém sem inseri-lo em nenhuma das famílias do tronco, conforme o modelo proposto
pelo linguísta Aryon Dall‘Igna Rodrigues (1986). A sobrevivência extraordinária do Yaathe
pode ser explicada por sua função decisiva no ritual do Ouricuri e na construção das
fronteiras étnicas. A religião, por exemplo, depende essencialmente do uso da língua
indígena, que também representa um meio de iniciação a ela. Por isso, muito do que se
produz em termos de conhecimento sobre os Fulni-ô gira em torno da importância da
língua ancestral em seu contexto sociocultural. Deste modo, a importância e a luta pela
terra acabam sendo sombreadas pelo relevo da língua Yaathe. Esses temas são relacionais
e têm, conjuntamente, profunda importância. Questões relativas à terra não podem ser
desvinculadas dos modos de ser Fulni-ô. Assim, escolhemos travar essa conversa com
Tosowmlaka Fulni-ô no intuito de trazer a este texto acadêmico um olhar sensível aos
desafios impostos pelas relações com o Estado no que tange ao reconhecimento de seus
territórios milenares. Para começarmos a conversa, pedimos que Tosowmlaka Fulni-ô8
(2020) se apresentasse de maneira livre:
Bom, meu nome é Elvis Ferreira de Sá. Eu sou Tosowmlaka e meu apelido é
Hugo Fulni-ô. Eu sou do povo indígena Fulni-ô. Sou professor indígena da rede
estadual há mais de nove anos e tenho um trabalho voltado à questão

8 Tosowmlaka carrega o nome de batismo Elvis e a alcunha Hugo. Em comum acordo com nosso interlocutor
e parceiro, optamos por endossar e afirmar a importância de seu nome Fulni-ô no transcorrer da conversa e
do texto.

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linguísta aqui do meu povo. Documentação linguísta. Fiz mestrado pela


Universidade Federal de Alagoas, no Programa PPGL-UFAL. Também trabalho
com a questão do audiovisual indígena, eu sou realizador indígena. A gente
criou aqui, nós professores indígenas, o Coletivo Fulni-ô de Cinema e a gente
vem com essa preocupação de registrar nossos aspectos culturais,
justamente por causa das perdas ocasionadas no nosso território. Falo isso
sobre a questão linguística. [...]. Então, isso me motivou para que eu viesse a
ingressar na universidade também. É que eu tenho a formação em ciências
humanas, na licenciatura indígena da UFPE, com mestrado em Linguística
agora. E isso me motivou pra eu vir registrar a cultura do meu povo e a língua
Yaathe. Que está, segundo a Unesco, em iminente risco de extinção. Então, a
minha missão e a minha tarefa também como pesquisador, professor e
realizador indígena é revitalizar a língua do meu povo. Dar uma nova
oportunidade, dar uma nova energia pra que isso seja ensinado
sistematicamente nas escolas indígenas aqui de nosso povo.

Tosowmlaka é um intelectual orgânico que está na linha de frente de vários


desafios enfrentados pelos povos indígenas do Nordeste: o esforço de revitalização da
língua ancestral, o ensino de humanidades a partir de uma perspectiva decolonial na
escola indígena e a produção cinematográfica como exercício de mídia contra-
hegemônica, num esforço conjunto de trazer à baila várias lutas empreendidas pelo povo
Fulni-ô desde a invasão portuguesa. Por tudo isso, para além de nossa parceria na Mostra
de Cinema Indígena da UFRPE-UAST, consideramos Tosowmlaka como um interlocutor
importante das questões elaboradas neste ensaio. Diante disto, perguntamos qual a
importância e o significado da terra para o povo Fulni-ô:
Eu acredito que a terra tem uma grande relevância para os povos indígenas
em geral, diferentemente dos não indígenas que vê ela como mercadoria.
Para nós, povos indígenas, e especificamente para o nosso povo Fulni-ô, ela
está conectada com a gente, ela é uma garantia de extração das riquezas
naturais e de conexão com a nossa cultura. Então, a gente não tem que
separar ela e a gente. Não tem que ver a terra como como fonte de
mercadoria. A terra nos garante a sobrevivência e se relaciona com a própria
cultura do nosso povo. É preciso respeitar os eventos naturais ocorridos nela.
(TOSOWMLAKA FULNI-Ô, 2020).

Muito antes da invasão portuguesa, os povos originários viviam em integração


holística com a natureza, como partes de um mesmo corpo, filhos de uma mesma mãe, a
terra, que, em Yaathe, chama-se fea. Em sua elaboração, Tosowmlaka aponta que as
sociedades com base comunitária, a exemplo da Fulni-ô, têm como princípio a
interdependência entre todos os seres. Neste modo de organização social, os objetivos
do grupo são mais importantes do que os objetivos individuais de seus membros, a
prioridade é o bem estar coletivo e não o individual, justamente o oposto do que se dá

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num sistema tipicamente capitalista. É como se, para sentir-se pleno, o indivíduo
necessitasse que tudo em seu entorno estivesse equilibrado. Contudo, esse exercício de
harmonia, imprescindível para o povo Fulni-ô, foi fortemente impactado após a invasão
portuguesa e a emergência da empresa colonial. Várias terras indígenas foram usurpadas
por fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, bandeirantes e até mesmo pelo Estado. Terras
indígenas passaram a ser positivadas pelo Estado de Direito, o que lançou as populações
indígenas num grande empreendimento para retomar seus territórios sagrados. Neste
sentido, Tosowmlaka reflete sobre como ocorreu esse processo de expropriação do
território Fulni-ô e os acordos que vieram depois:
Relacionado à questão jurídica aqui do povo Fulni-ô: atualmente tem onze
mil quinhentos e quatro hectares de terra. Acredito eu que é insuficiente para
a questão cultural, de manutenção cultural do nosso povo. Esses onze mil e
quinhentos hectares são históricos. Eles vieram da empreitada, segundo
documentos históricos, da Guerra do Paraguai. É remoto isso, falando no
sentido de que nosso povo, nossos ancestrais, tiveram que ir para a guerra e
lutar na guerra do Paraguai pra poder ganhar esses onze mil e quinhentos
hectares. Como o governo imperial dominava e oprimia as populações
minoritárias, os povos indígenas, os negros, então, nossos ancestrais tiveram
que sair daqui e lutar na guerra do Paraguai onde muitos morreram e apenas
três sobreviveram nessa guerra. Na verdade, é de direito essa terra. Nossa
terra é muito extensa do ponto de vista ideológico, dos anciões, do ponto de
vista cultural, do ponto de vista das narrativas onde os nossos antepassados
contam. Ainda existe ancião que diz que a gente, o nosso povo veio da Serra
dos Cavalos. Migravam por esses territórios todinhos. Aí, apareceu em 2003
um GT. Um grupo de trabalho, para fazer esse estudo na nossa comunidade.
Hoje em dia esse documento, esse estudo, está engavetado na Funai, porque
era para pegar desde a Serra dos Cavalos, abranger esse território todinho, a
Serra de Campo Grande, totalizando mais ou menos setenta e cinco mil
hectares de ampliação. Isso foi em 2003. Agora que os direitos tão sendo
negados por esse governo atual a situação fica ainda pior. [...]. Esses setenta
e cinco mil que eu estou falando com certeza dá garantia à reprodução
cultural do nosso povo, porque é muito insuficiente esses onze mil hectares.
Por quê? Porque a gente tem a extração das matérias primas para praticar a
cultura. Eu falo do caruá, das plantas medicinais que estão no nosso território
e que a gente tem que sair do nosso território para tirar nas terras dos
fazendeiros que usurparam nossos ancestrais. A gente necessita dessa
ampliação. [...]. Ainda sobre essa questão jurídica da terra, desses onze mil e
quinhentos hectares quando nosso povo ganhou foi na época do SPI, junto
com o governo de Pernambuco da época. É muito interessante a questão
fundiária do povo Fulni-ô porque eles lotearam esses onze mil e quinhentos
hectares para as famílias existentes na época. Isso foi uma política
integracionista, no meu ponto de vista, para dividir as pessoas em um
quadrado. Ou seja, deixar os Fulni-ô na margem. Dessa ideia de
individualidade que hoje a gente se encontra. Cada família na época ganhou
digamos três hectares de terra. Então, permanece esse sistema aqui de Fulni-
ô que é diferente do vários povos (TOSOWMLAKA FULNI-Ô, 2020).

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Aqui, Tosowmlaka trata de uma série de questões importantes e que precisam


ser reiteradas. A primeira delas diz respeito à violência e ao genocídio perpetrado contra
o povo Fulni-ô no processo de luta pela terra. O caráter das relações entre indígenas e
não indígenas em Águas Belas ficou patente durante a Guerra do Paraguai. Foi preciso
constituir, estrategicamente, uma empreitada de morte na guerra para que a terra fosse
“cedida” pelo Estado como moeda de troca. Segundo relatos de Mello (1929, 1930),
Vasconcelos (1962) e Silva (2005), logo que o Governo Imperial decretou o
“voluntariado”, Águas Belas concorreu com 72 homens, formando uma companhia
composta em sua grande maioria por indígenas recrutados à força em ação enganosa,
como relatam com base na história documental e oral.
Depois, houve um loteamento do território entre as famílias da época, num
esforço de integrá-las à sociedade envolvente; assim, mais uma vez, oferecia-se a terra
em troca do apagamento cultural do povo. Outro aspecto importante diz respeito à
morosidade do Estado em homologar essas terras. Apenas em 2003 houve início o
processo de construção do Grupo de Trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai) para
dar andamento ao processo de regularização das terras. Por fim, Tosowmlaka também
ressalta a importância da extração de recursos naturais, que vai na contramão de uma
visão sobre a natureza como fonte de exploração. Tem-se aqui uma perspectiva de Bem
Viver alinhada com o que Fernando Huanacuni Mamani9, advogado Aimará e pesquisador
da cosmovisão ancestral dos povos originários andinos, chama de direito de todos. Todos
devem ter o direito à moradia, à comida, à água, à roça. Para tal, a ideia de propriedade
existe como um direito de todos, mas estaria ligada ao tamanho das famílias, e vem junto
com a responsabilidade de cuidar daquele espaço:
De acordo com a história, houve uma política de integrar os povos indígenas,
especificamente o povo Fulni-ô à comunidade nacional. Então, essa
estratégia do SPI em lotear o território Fulni-ô para as famílias, cada família
ganhou seu território, mas as famílias cresceram e as gerações futuras não
têm terra. Por conta disso, hoje em dia, muitos Fulni-ô têm aquela ideia de
propriedade privada que já não é de acordo com a ideologia dos povos
indígenas, de que a terra é pra todos. Isso daí já é herança colonial, isso daí
foi instalado na nossa comunidade. (TOSOWMLAKA FULNI-Ô, 2020).

Mamani (2014) lembra, em acordo com o relato de Tosowmlaka, sobre a


pertinência de incentivar que todos os membros do grupo, desde cedo, participem das

9 MAMANI, Fernando Huanacuni. Vivir Bien / Buen Vivir. [2014]. (45min31s). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=FQo-qkjS6Qc. Acesso em: 13 ene. 2020.

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tomadas de decisões públicas, desenvolvendo, assim, o compromisso coletivo e a


preocupação com o bem viver da comunidade. Para garantir esse direito a todos, uma das
prerrogativas do Bem Viver propõe a redistribuição de grandes propriedades para que
todos possam produzir. Dentro da concepção de Bem Viver, as diferenças de poder são
inaceitáveis, a vida está acima de tudo. Outro princípio é o de substituir a monocultura
pela multicultura, valorizar a agricultura familiar, substituir sementes transgênicas por
orgânicas e crioulas, promovendo-se, assim, um modo de vida mais sustentável e
agroecológico. Portanto, a economia dentro do Bem Viver busca melhorar a qualidade de
vida dos cidadãos, estando a serviço das pessoas e não do mercado. A situação em que
os Fulni-ô estão, relegados pela inoperância do Estado brasileiro, é um contrassenso em
relação aos princípios do Bem Viver. Para que pratiquem sua ciência e medicina, como
narra Tosowmlaka, faz-se necessário avançar para outros territórios e negociar a extração
de fibras ou plantas medicinais com fazendeiros do entorno. Para piorar a situação, o
território demarcado no passado é insuficiente para a vida cotidiana das novas famílias
que se formaram após a demarcação:
Existe Fulni-ô espalhado por todo canto aí do Brasil. Em São Paulo, Brasília,
Rio de Janeiro, Recife. O território é insuficiente pra todas as famílias. O Fulni-
ô tem que sair para buscar outras oportunidades. Com a ampliação acredito
que isso não ocorreria. Se tivesse ampliação anteriormente, se as políticas
públicas fossem favoráveis aos povos indígenas…Anteriormente negavam os
seus direito e agora, está descarado mesmo, tá visivelmente. É uma afronta
o governo atual negar esse direito de ampliação dos territórios indígenas. [...].
Os ruralistas eles entram para criar medidas que impedimento dessa
ampliação, dessa demarcação. Então, tá escancarada aí a retirada de direitos
das populações indígenas. (TOSOWMLAKA FULNI-Ô, 2020).

Diante dessa trajetória de flagrante violação dos direitos básicos constitucionais


do povo Fulni-ô, perguntamos a Tosowmlaka se ele já ouvira falar sobre o caso Xucuru na
Corte Interamericana de Direitos Humanos, no qual, em uma decisão inédita, o Brasil foi
condenado por violação de direitos e pagou uma indenização ao povo Xucuru:
Já ouvi falar sobre o caso Xucuru, na Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Eu ouvi o cacique Marquinhos Xucuru, onde ele relata todas
agressões sofridas pelo povo dele e a negação de direitos de seus territórios.
Foi muito importante ter visto essa reportagem porque serve como base para
muitos povos indígenas brigar pelos seus direitos. A gente tem que sair para
outras instâncias internacionais pra que esse direito seja efetivado. [...]. Com
base nos argumentos do povo Xucuru, vai servir também como modelo para
outros povos também brigar pelos seus direitos. Já que aqui não está
funcionando, a Justiça ela tá cega de verdade, então é bom que se faça uma
estratégia para a gente migrar para essas agências internacionais para que

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nosso direito venha a ser efetivado aqui no Brasil (TOSOWMLAKA FULNI-Ô,


2020).

Tosowmlaka elabora uma importante crítica ao Estado Democrático de Direito e


ao aparato jurídico brasileiro. Essa percepção quanto à práxis cotidiana trazida ao debate
é reiterada por Boaventura de Sousa Santos (2009), autor cujo pensamento nos lembra
que, nas últimas décadas, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
outras declarações internacionais, convênios e normativas vêm a proclamar direitos a
serem considerados universalmente humanos. Na mesma esteira, Cademartori e Grubba
(2012) atentam que as Constituições mais recentes, assim como a brasileira,
subscreveram tais normativas internacionais, apregoando em seus textos direitos
fundamentais em variadas dimensões, juntamente com garantias processuais e
institucionais para sua consecução, como no caso do Brasil. Contudo, na forma como
foram predominantemente concebidos, os Direitos Humanos são o que Santos (2009)
chama de localismo globalizado, isto é, passam longe de se transformar na linguagem
cotidiana da dignidade humana nas diferentes regiões culturais do globo. Neste sentido,
compete à hermenêutica diatópica, segundo Santos (2009), transformá-los numa política
cosmopolita que ligue, em rede, línguas diferentes de emancipação pessoal e social e as
torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis. Este seria um projeto de concepção
intercultural dos Direitos Humanos. Neste sentido, para Flores (2009), o grande desafio
não é apenas jurídico, mas também político e social, uma vez que se faz necessário
garantir direitos já assegurados, sem prejuízo à possibilidade do surgimento de novos
direitos. Mais do que isso, é assegurar que esses direitos não continuem a ser violados e
anulados, conforme posto por Tosowmlaka Fulni-ô (2020):
Eu acredito que o Brasil ele tem que ser denunciado por essa práticas
genocidas contra os povos indígenas em geral. O povo Xucuru ganhou, graças
a Deus, esse direito. E vários povos também podem se manifestar e ir
procurar essa ajuda, essa garantia, e que o Brasil seja condenado mesmo
pelos povos indígenas todinho do Brasil, principalmente os povos indígenas
no Nordeste. Digamos assim, vamos começar com os povos indígenas do
Nordeste que é onde foram os primeiros a serem agredidos pela
catequização, os fazendeiros e os usurpadores que ainda têm nas terras
indígenas.

Santos (2009) afirma que um projeto de concepção multicultural dos Direitos


Humanos pode parecer utópico e é tão utópico quanto o respeito universal pela dignidade
humana; todavia, nem por isso este último deixa de ser uma exigência ética séria. Os

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povos indígenas, na sua busca incansável por respeito ao seu modo de vida, garantiram
vitórias importantes no âmbito jurídico que reverberam não só na elaboração de
hermenêuticas decoloniais, como abrem caminho para a construção de outras estratégias
de luta para os movimentos sociais de uma maneira geral.
Fica evidente que apenas a positivação dos direitos indígenas não tem sido
suficiente para que eles sejam observados na prática pelo Estado. A existência da temática
indígena dentro do ordenamento jurídico brasileiro ainda se apresenta como um desafio
para o Direito, já que a sua gênese, a partir deste Estado monista, colonialista e ocidental,
como único reprodutor de juridicidade, acaba sendo um entrave para abarcar todas as
nuances de um país pluriétnico e multicultural, repleto de nações, línguas e saberes
diversos. Neste cenário de inação perversa do Estado brasileiro, vários outros povos
indígenas de Pernambuco seguem lutando por seus territórios. Por isso, este ensaio busca
trazer outras vozes para diálogo, no intuito de ecoar os clamores por demarcação de
território para os povos originários da região, um dos pilares fundamentais para o Bem
Viver, como se depreende das palavras finais de Tosowmlaka Fulni-ô (2020) a seguir:
É notório a gente saber que os direitos dos povos indígenas eram negados na
época do Império. Então, as Constituições anteriores não davam esse direito.
Aí, séculos mudaram e os direitos foram garantidos na Constituição, na
democracia, de acordo com os preceitos democráticos, mas que na verdade
esses direitos eles são agredidos constantemente. Foram agredidos e até a
data atual eles são negados. [...]. Está lá expresso no texto constitucional, mas
é que os deputados da base ruralista e outros deputados criam medidas para
poder negar esses direitos. A gente tem que observar essa questão. Então,
nós povos indígenas, os povos indígenas que estão entrando na política tem
que garantir de fato esses direitos. Só ingressando e procurando meios de
agências internacionais para poder garantir nossos direitos aqui no Brasil.[...]
Então que sirva como base para muitos povos, para a gente poder condenar
de verdade o Brasil. Porque a democracia aqui no Brasil ela de fato não é feita,
a democracia é para os grandes latifundiários de terra. A democracia ela é
para os bem nascidos. Não existe de verdade uma democracia que garanta os
direitos das sociedades ditas minoritárias.

As reflexões de Tosowmlaka atestam que esta história está inacabada, uma vez
que o povo Fulni-ô ainda enfrenta a violação de seus direitos no instante em que estas
linhas são escritas. Além disso, reforça Schröder (2012), a homologação por decreto
presidencial de uma terra indígena não representa a conclusão do processo, pois sempre
haverá interação, dilemas e desafios entre os que habitam a terra e os que vivem fora dos
limites dela:
Contudo, olhando para o lado oposto da narrativa, enfrentaríamos um
desafio ainda maior por tentar definir um ponto de partida, por exemplo, os

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supostos contornos ‘originais ’do território Fulni-ô. Isto seria apenas


interessante para narrar alguma história, porém tal reconstrução seria
empiricamente impossível. Em primeiro lugar, por causa das informações
escassas disponíveis e, em segundo lugar, o que é mais importante, porque
não existe território ‘original ’e imemorial de um grupo ou de uma etnia. Os
antropólogos envolvidos em questões de terras indígenas fazem questão de
frisar que todo e qualquer território étnico é resultado de processos
históricos. Por isso, a legislação indigenista brasileira destaca o princípio da
tradicionalidade, da ideia da duração transgeracional, de territórios indígenas
a identificar. Esta ideia é manifesta na definição de terras tradicionalmente
ocupadas por indígenas no § 1º do ensaio 231 da Constituição Federal por
quatro critérios: são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por
eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (SCHRÖDER, 2012, p. 20-
21).

O território de um povo indígena, por sua vez, é entendido como um espaço


criado e atualizado por práticas culturais no devir da história, tendo estas práticas não
apenas caráter pragmático mas também, e principalmente, simbólico. Tanto atividades
econômicas para diversas finalidades quanto práticas sociais, religiosas e rituais
contribuem para constituir tais espaços (SILVANO, 2001). Apesar disso, na prática, como
é possível ver no desabafo de Tosowmlaka, esse ideal muitas vezes não é alcançado por
diversos motivos, tanto técnicos e metodológicos quanto políticos. Schröder (2012)
aponta que a situação atual da terra indígena Fulni-ô é um exemplo perfeito para ilustrar
a diferença entre terra e território: o território dos Fulni-ô estende-se além dos limites do
quadrado da terra indígena atual. Em sua reflexão generosa, Tosowmlaka desvela um
processo cruel que causou reduções drásticas do território Fulni-ô. Assim, a partir das
forças autoritárias da violência estatal e da sociedade não indígena, foram transformadas
profundamente não só as relações dos Fulni-ô com o mundo dos brancos (Mlati, em
Yaathe), mas também com o próprio território.

Considerações finais

Os povos originários vêm lidando há cinco séculos com a usurpação de seus territórios
nativos, sob o pretexto civilizatório e desenvolvimentista do Estado ocidental, sofrendo
profundas transformações em suas culturas e identidades. Enfrentam batalhas
constantes contra as violências cometidas por uma estrutura social elitista e reprodutora

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de injustiças. Somam-se o preconceito, a discriminação e o racismo de uma sociedade


envolvente que os estigmatiza e ignora como seres humanos e cidadãos. Neste sentido,
a fim de que se possa repensar as estruturas e buscar um Estado efetivamente mais plural,
é basilar escutar os povos originários e tradicionais.
Remontar a trajetória do caso Xucuru na Corte Interamericana de Direitos
Humanos em diálogo com a crítica e a reflexão de Tosowmlaka Fulni-ô abre vereda para
pensarmos sobre como o discurso dos Direitos Humanos, apesar de sua história
intimamente relacionada com as lutas sociais, está fortemente marcado por referenciais
da modernidade. A construção de uma ideia de igualdade, de liberdade e de
universalidade de maneira constante passa ao largo dos desafios enfrentados por grupos
sociais marginalizados. Quando Tosowmlaka afirma que “a democracia aqui no Brasil ela
de fato não é feita, a democracia é para os grandes latifundiários de terra. A democracia
ela é para os bem nascidos. Não existe de verdade uma democracia que garanta os
direitos das sociedades ditas minoritárias” (TOSOWMLAKA FULNI-Ô, 2020), há um
questionamento da pertinência da construção e do alcance dos ideais de igualdade,
liberdade e universalidade. Os casos dos Xucuru e dos Fulni-ô explicitam que esses
referentes não dão conta das diferenças culturais, dos diversos modos de situar-se diante
da vida, dos valores, das várias lógicas de produção de conhecimento, práticas e visões de
mundo.
Dos primeiros contatos com a violência das frentes colonizadoras até o presente,
os Fulni-ô sofreram uma constante redução de seu território a ponto de ficarem
confinados a um quadrado loteado de 11.663,55 hectares, cujo espaço continua ser
reduzido pela expansão da cidade de Águas Belas e pela ocupação da maior parte da terra
indígena por arrendatários não indígenas (SCHRÖDER, 2012). A história dos Fulni-ô desde
a invasão, assim como nos conta Tosowmlaka, configura- se basicamente como uma
história de perdas. Perdas de grandes partes do território tradicional, perdas de acesso a
áreas importantes para a reprodução física, social e cultural do grupo, perdas de vidas,
perdas de autonomia política. Em tal contexto, atenta Schröder (2012), a sobrevivência
dos Fulni-ô como grupo social e culturalmente diferenciado pode parecer, se não
milagrosa, ao menos impressionante.
Neste sentido, o caso Xucuru se torna emblemático para continuar a renovação
das esperanças pela luta por território:
[...] Então, se a gente tivesse a oportunidade de brigar e de argumentar na
Corte Americana sobre nossos direitos isso seria muito relevante para a nossa

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comunidade. Eu acredito que muitos Fulni-ô pensam dessa forma e se a gente


puder conseguir o contato Corte Internacional de Direitos Humanos, é… e a
gente poder dialogar com eles sobre o fato do território Fulni-ô, sobra as
agressões que ocorreu durante a história e o nosso território ser
verdadeiramente ampliado, vai ser muito importante pras famílias pra
garantia da sobrevivência das famílias aqui. Do ponto de vista físico e cultural.
(TOSOWMLAKA FULNI-Ô, 2020).

Apesar de reacender a chama da esperança, a fala de Tosowmlaka Fulni-ô


também desvenda o quão o acesso aos direitos básicos ainda é hermético. Essa
dificuldade de conhecer as veredas para a reivindicação de direitos está profundamente
relacionada com o elitismo colonial do universo jurídico. Por isso, o pensamento
decolonial traria uma alternativa crítica e intercultural de Direitos Humanos, em oposição
ao conhecimento hegemônico e excludente acerca das populações tradicionais, tidas
como subalternas, inferiores e incivilizadas pela lógica da colonialidade de epistemologia
universal da racionalidade moderna.
Assim, é urgente que os Direitos Humanos, numa visão reflexiva, estejam
comprometidos com a práxis histórica local: numa escuta constante, atenta e ativa das
demandas dos povos tradicionais e originários em prol de uma contextualização
emancipadora. Faz-se fundamental colocar o Direito/direito 10 em prática e incorporar
outros vocabulários de contestação. As lutas de resistência e pela libertação do
eurocentrismo opressor são a base desse diálogo intercultural. Para Wolkmer (2015),
somente assim o pensamento decolonial pode devolver uma perspectiva integradora aos
Direitos Humanos, por meio do reconhecimento das diferenças, voltando-se para a
diminuição das desigualdades pela redistribuição de recursos e proibindo processos de
exclusão. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores ou inferiores, mas
de civilizações e culturas equivalentes mas diferentes, como afirma Baniwa (2006). A
práxis antirracista, decolonial e intercultural só pode ser construída com escuta atenta à
descolonização de saberes.
Por isso, o caso Xucuru na Corte Interamericana de Direitos Humanos surge como
algo tão especial e, como não poderia deixar de ser, reverbera fortemente na construção
de um ethos, de um espírito de luta esperançoso entre outros povos indígenas de
Pernambuco. O processo e o resultado do caso Xucuru é parte de um movimento
decolonial, com suas várias vertentes teóricas e de práticas de luta, que promove vozes

10Aqui fazemos uma dupla referência: ao Direito enquanto disciplina, assim como ao direito dos povos
originários violados historicamente.

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silenciadas durante séculos de expansão violenta e genocida de países europeus e dos


Estados Unidos da América pelo mundo. Os povos originários, projetaram suas vozes para
recontar, de acordo com suas perspectivas de clamor por justiça e resistência, a dor a que
são submetidos pela mão pesada do Estado.
Neste sentido, as reflexões trazidas aqui a partir do emblemático caso Xucuru, em
diálogo com Tosowmlaka Fulni-ô, visam lançar luz sobre as alternativas civilizatórias
construídas pelas populações indígenas em prol do Bem Viver, em contraposição ao
modelo ecocida de desenvolvimento econômico perpetrado no Brasil desde sempre. O
caso Xucuru possibilita uma leitura a contrapelo da história “oficial” e das obras canônicas
do Pensamento Social Brasileiro (e no Brasil) e do Direito positivista e eurocêntrico. Este
ensaio procurou, por meio do diálogo intercultural, elaborar questões a partir de uma
perspectiva profundamente invisibilizada na intelectualidade brasileira: a visão dos povos
originários, que traz a memória e a práxis de quem resistiu à violência colonial e ao
genocídio até os dias de hoje.

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Sobre os autores

Paula Manuella Silva de Santana


Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora e
pesquisadora adjunta da Universidade Federal Rural de Pernambuco – Unidade
Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE-UAST). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas
Macondo: artes, culturas contemporâneas e outras epistemologias. Coordenadora da
pesquisa Cartografias da Contradança: contribuições das epistemologias afro-
ameríndias para uma pedagogia decolonial e antirracista. E-mail:
paula.manuella@ufrpe.br

Tiago Queiroz de Magalhães


Licenciando em Letras/Português-Inglês pela Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE). Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Macondo: artes,
culturas contemporâneas e outras epistemologias. Autor da pesquisa de Iniciação
Científica Contribuições da Filosofia do Bem Viver e do Pensamento Indígena a uma
Pedagogia Antirracista, sob orientação da Professora Dra. Paula Manuella Silva de
Santana. E-mail: tiago14magalhaes@gmail.com

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Direitos Indígena na América do Sul: Observância dos


Parâmetros Interamericanos
Indigenous Rights in South America: Observance of the Interamerican Parameters

Gabriela Navarro¹
¹ Universidade Federal de Lavras, Lavras, Minas Gerais, Brasil. E-mail:
gabrielabnavarro@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7411-3479.

Marina Mejía Saldaña2


2
Universidad Católica de Argentina, Buenos Aires, Argentina. E-mail:
marina_mejia345@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0135-0390.

João Augusto Maranhão de Queiroz Figueireido3


3
Universidad Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail:
joaomqfigueiredo@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6947-7841.

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 2/02/2022.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
O artigo analisa a proteção legal dos povos indígenas no âmbito do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, assim como o nível de observância desses
parâmetros dentre os países da América do Sul. Ele analisa o reconhecimento judicial,
constitucional e legal dos países que ratificaram a Convenção Americana, a Convenção
n.169 da OIT e aceitaram a jurisdição da Corte. Objetiva-se detalhar o diálogo entre o
sistema legal desses países e o SIDH, aplicando a teoria da cadeia de eficácia.
Palavras-chave: Povos Indígenas; Observância; Cadeia de Eficácia.

Abstract
The article details the indigenous legal protection within the Inter-American System of
Human Rights, as well as the observance level within the South American countries. It
analyses the judicial, constitutional and legal reality of the countries the that ratified the
American Convention, the International Labour Organisation Convention n. 169 and
accepted the Court’s jurisdiction. It aims to analyse the dialogue between those countries’
domestic law and the System, applying the efficacy chain theory.
Keywords: Indigenous People; Observance; Enforcement Chaim.

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1 introdução

O presente artigo almeja analisar a observância, entre países da América do Sul, aos
parâmetros jurisprudenciais desenvolvidos pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos em matéria de direitos territoriais indígenas, consolidados no caso Xucuru v.
Brasil.
A Corte vem construindo uma jurisprudência progressiva e transformadora de
situações de marginalização e exclusão vivenciada por povos indígenas. O
reconhecimento jurídico de direitos indígenas, contudo, não é novidade na América do
Sul, já que a maior parte dos países reconhece o direito dos povos indígenas ao território,
seja na Constituição ou por tratados internacionais. Ainda que não representem
inovações jurídicas ao sistema doméstico, as decisões do sistema regional de direitos
humanos cumprem o papel de reforçar demandas de movimentos sociais e órgãos de
proteção indígena. Esse reforço jurídico torna-se importante já que se observa um
contexto de acelerada pressão sobre recursos naturais e terras, provocando um
crescimento exponencial nas violações ao direito à propriedade coletiva indígena e
escalada na violência contra os povos indígenas (GLOBAL WITNESS, 2018; TAULI-CORPUZ,
2018).
O artigo adota a teoria da cadeia de eficácia desenvolvida por Calábria (2018). A
eficácia de cortes internacionais seria dividida em cinco níveis: observância, aplicação,
fortalecimento, implementação e adequação. Adota-se a primeira camada de eficácia, a
observância. Trata-se de aderência espontânea por um país aos parâmetros da Corte
regional, antecedendo uma decisão final ou caso contencioso que envolva o país
(CALABRIA, 2018).
Para atingir o objetivo, o desenvolvimento de direitos territoriais na Corte
Interamericana é apresentado (tópico 2), seguido pela apresentação do contexto
internacional de reconhecimento dos direitos (tópico 3) e análise dos direitos
constitucionais reconhecidos na América do Sul e status da ratificação da Convenção da
OIT 169 (tópico 4). Ainda que constitucionalmente garantidos, os direitos territoriais são
paulatinamente violados (tópico 5). O artigo conclui afirmando que a jurisprudência da
Corte Interamericana consolida o reconhecimento doméstico de direitos territoriais
indígenas e o analisa em relação ao seu reconhecimento presente, ou não nas cortes
constitucionais na América Latina, fortalecendo atores sociais e governamentais que

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atuam na disputa pela efetividade do direito à propriedade coletiva (tópico 6).

2 Direitos territoriais reconhecidos pela corte interamericana

A Corte Interamericana consolidou a mais progressista jurisprudência internacional


vinculante em matéria de direitos territoriais indígenas, representando um modelo para
tribunais e tratados ao redor do mundo, elogiada por diversos pesquisadores na área de
direitos humanos (ANTKOWIAK; 2014; PASQUALUCCI, 2009; BURGORGUE-LARSEN,
20013; GILBERT, 2014).
Desde sua criação até o início de abril de 2020 a Corte decidiu catorze casos
contenciosos envolvendo direitos territoriais indígenas, tendo sido reconhecido o direito
à propriedade coletiva sobre territórios ancestrais1. Como a Convenção Americana
somente reconhece o direito à propriedade em uma perspectiva individual e não
menciona nenhum direito indígena, a Corte utilizou métodos interpretativos extensivos
para assegurar a proteção de direitos territoriais, como o princípio pro homine, o uso do
direito consuetudinário indígena e a interpretação sistemática baseada no corpus iuris de
direitos indígenas.
Assim, através da interpretação extensiva do artigo 21, a Corte reconheceu a
proteção do vínculo indissolúvel entre comunidades indígenas e seus territórios
ancestrais, reconhecendo o dever estatal de delimitar, demarcar, titular e sanear
territórios tradicionais e ainda abster-se de qualquer ato prejudicial ao gozo da
propriedade. O direito à propriedade coletiva inclui o direito aos recursos naturais
indispensáveis à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. Para a exploração de
minérios, a Corte estabeleceu três salvaguardas procedimentais: o direito à consulta livre,
prévia e informada, compartilhamento de benefícios obtidos e elaboração de estudo
prévio de impacto socioambiental. O objetivo é garantir a continuidade cultural e física
dos povos.

1 Mayagna (sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua (2001), Moiwana vs. Suriname (2005), Yakye Axa vs. Paraguay
(2005), Sawhoyamaxa vs. Paraguay (2006), Saramaka vs. Suriname (2007), Xámok Kásek vs. Paraguay (2010),
Kichwa de Sarayaku vs. Ecuador (2012), Operation genesis vs. Colombia (2013), Kuna de Madugandí y Emberá
de Bayano vs. Panama (2014), Garífuna Triunfo de la Cruz vs. Honduras (2015), Garífuna de Punta Piedra vs.
Honduras (2015), Kaliña y Lokono vs. Suriname (2015), Xukuru vs. Brazil (2018) e Lhanka Honhat vs. Argentina
(2020).

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A proteção do território é reforçada, ademais, pelo reconhecimento de outros


direitos paralelos. Os povos indígenas devem ter acesso a recursos procedimentais para
proteger sua propriedade, de acordo com os artigos 8 e 25 da Convenção, incluso o direito
à personalidade jurídica coletiva (artigo 3 da Convenção). A Corte ainda reconheceu os
direitos implícitos à identidade cultural e autodeterminação e reconheceu o direito à uma
vida digna e o dever estatal de garanti-la. Nos casos Yakye Axa, Sawhoyamaxa e Xákmok
Kásek, as comunidades estavam deslocadas de seus territórios e vivenciando condições
de miserabilidade.
Observa-se que há uma evolução no reconhecimento de direitos territoriais pela
Corte. Primeiramente, a Corte reconheceu o direito à propriedade coletiva e aos
procedimentos necessários para acesso ao direito (Awas Tingni, 2001). Em seguida,
reconheceu-se que, em casos em que as comunidades indígenas estejam forçadamente
fora de sua propriedade, o Estado tem a obrigação de garantir uma vida digna,
assegurando direitos sociais básicos como saúde, educação e moradia (Yakye Axa, 2005).
O próximo passo foi reconhecer que o direito à propriedade abrange os recursos naturais
indispensáveis à sobrevivência dos povos indígenas, estabelecendo-se salvaguardas para
exploração econômica pelo Estado ou terceiros (Saramaka, 2007). Finalmente,
reconheceu-se o dever estatal de saneamento da propriedade em Garífuna Triunfo de la
Cruz (2015). Os direitos implícitos à autodeterminação e à identidade cultural2 foram
reconhecidos respectivamente em Saramaka (2007) e Kichwa de Sarayaku (2012).
O caso Xucuru v. Brasil (2018) consolida o direito à propriedade coletiva. No
mesmo sentido, Kaliña y Lokono v. Suriname (2018) consolida os parâmetros para
exploração de recursos naturais em terras indígenas.
Finalmente, na mais recente decisão, Lhaka Honhat v. Argentina (2020), o tribunal
entendeu que o artigo 26 da Convenção Americana foi violado, em relação aos direitos a
um ambiente saudável, à alimentação adequada, à água e à identidade cultural. É a
primeira vez que o Tribunal analisa esses direitos autonomamente com base no artigo 26

2 Para alguns autores, o direito à identidade cultural já havia sido reconhecido desde Yakye Axa v. Paraguai
(2005). Contudo, em Yakye Axa a identidade cultural é meramente mencionado como um elemento
integrante do direito à vida digna, e não como um direito singular. Pela primeira vez em Kichwa de Sarayaku
(2012), a Corte realizou uma ampla revisão sobre o direito à identidade cultural e reconhece sua violação.
(CHIRIBOGA, 2006; ODELO, 2012)

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da Convenção Americana3.
Na ordem internacional, o reconhecimento de direitos territoriais e a imposição
de deveres estatais de proteção e não intervenção na propriedade coletiva indígena pela
Corte representou um avanço na luta indígena pelo reconhecimento de seus direitos.

3 Tratados e declarações de direitos indígenas reconhecidos pelo direito internacional

No Direito Internacional, o padrão de Estado-Nação desenvolvido não atribuía aos povos


indígenas a condição de sujeitos de direitos, subjugando sua cultura como um “atraso”
frente o Estado, por não condizerem com a proposta de civilização e progresso
(ZIMMERMANN; DAL RI JR, 2016).
Esse contexto, exemplificado pelo caráter privatista das primeiras codificações
civis da América Latina, alterou-se apenas recentemente. Essa mudança veio com a
redemocratização dos países da América Latina e o desenvolvimento do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, com a Corte Interamericana, gerando mudanças no
Direito Interno e no Internacional.
A primeira mudança é no Direito Internacional, que apenas estudava a relação
estabelecida entre os Estados, nas ideias de civilização e progresso (ZIMMERMANN; DAL
RI JR, 2016). Essa situação transformou-se quando instituições começaram a regular as
relações estatais em prol de salvaguardar direitos dos cidadãos. Assim, criou-se o Direito
Humanitário, o Direito Internacional dos Direitos Humanos e a Organização Internacional
do Trabalho, abrangendo direitos humanos maiores.
Nesse sentido, surgiram declarações e tratados específicos, haja vista a
movimentação pela descolonização dos territórios e a autoafirmação desses povos. A
situação indígena, contudo, foi tardiamente observada dentro dessa dinâmica, tendo em
vista dois elementos: a elaboração da Convenção 107 da OIT, de 1957, e a tutela dos povos
originários pelas instituições estatais.
A Convenção 107 da OIT condicionava os povos indígenas a um direito à igualdade
formal em relação aos outros cidadãos, desconsiderando suas condições de existência

3 O artigo 26 já havia sido utilizado em casos precedentes como reconhecimento da justiciabilidade direta de
outros direitos sociais, como direitos trabalhistas e direito à saúde. O caso precursor fou Lagos del Campo v.
Peru (2017). Para Mais sobre o tema, veja MORALES, 2019 e SÁNCHEZ, 2018.

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diferenciadas, pois conferia ao Estado a tutela de seus direitos, com o objetivo da


integração desses povos à sociedade para que alcançassem a igualdade.
A Convenção 107, apesar de ressaltar o dever de proteção para as comunidades
indígenas, não continha proteções definitivas à autonomia destes e seus territórios, pois
os atrelava à economia nacional e, por conseguinte, a nação única (ZIMMERMANN; DAL
RI JR, 2016), propiciando violações aos direitos dos povos indígenas. Isto se revela com os
relatórios sobre a repressão na América Latina, como a Comissão Nacional da Verdade
Brasileira.4
As mudanças na compreensão dos direitos indígenas geraram a Convenção 169
da OIT, que revisou o conteúdo desta convenção de 19575. Essa nova convenção foi
elaborada em 1989 e ratificada pelos diversos países ao longo dos anos 90 e 2000 e traz
diferenças em relação à primeira. Essa última Convenção é muito importante na garantia
de direitos indígenas, pois aboliu a ideia de integração porque a convenção atual passou
a dar participação e poder à ideia de uma comunidade enquanto sujeito coletivo e
autônomo.6
Nesse sentido, atribuiu-se importância ao desempenho de atividades
econômicas, trabalhistas e de educação aos povos indígenas com, minimamente, uma

4 A título de exemplificação, mostra-se algumas constatações realizadas pela Comissão Nacional da Verdade
Brasileira: “Para tomar posse dessas áreas e tornar real essa extinção de índios no papel, empresas e
particulares moveram tentativas de extinção física de povos indígenas inteiros – o que configura um
genocídio terceirizado – que chegaram a se valer de oferta de alimentos envenenados, contágios
propositais, sequestros de crianças, assim como de massacres com armas de fogo. [..] “A Fundação Nacional
do Índio segue, de certa maneira, a prática do órgão antecessor, o Serviço de Proteção ao Índio. Mas
“moderniza’”esta prática e a justifica em termos de “desenvolvimento nacional”, no intuito de acelerar a
“integração” gradativa: absorve e dinamiza aquelas práticas, imprimindo-lhes – a nível administrativo –
uma gerência empresarial (Renda Indígena, Programa Financeiro do Desenvolvimento de Comunidades,
etc.).(grifos nossos)
5 Para os países que ratificaram a Convenção 169, a Convenção 107 encontra-se revogada. Contudo, a
Convenção 107 continua vigente para aqueles países signatários apenas de seu teor, muito embora esteja
fechada para novas ratificações.
6 Artigo 1o 1. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas
condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que
estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
Artigo 6o 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos
interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições
representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los
diretamente; b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente,
pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões
em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e
programas que lhes sejam concernentes;

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igualdade em relação aos outros segmentos sociais.7 Além disso, deu-lhes o direito à
consulta em processos que tenham algum impacto no universo tradicional indígena,
respeitando a forma de expressão dos povos originários, determinando formas de definir
as instituições que os representaria, posteriormente delimitados por organismos
internacionais (CALDERA, 2013).
Assim, em vez de uma homogeneização, embasa-se na ideia de diversidade.8
Apesar disso, há críticas porque nos estudos acerca da consulta prévia, questionou-se se
a participação e a emissão de uma mera opinião ou de efetivo consentimento às
propostas, condicionando a realização das ações de extração dos recursos das terras
indígenas. Nesse sentido, a OIT, em 2003, não reconheceu o dever do Estado de
considerar o consentimento dos povos indígenas para realizar as ações que, por
consequência, atinja-lhes.
Os direitos indígenas aprofundam-se com a Declaração das Nações Unidas sobre
Direitos dos Povos Indígenas. A questão indígena já era uma preocupação na ONU desde
1971, quando o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) nomeou um
Relator especial para Assuntos Indígenas. Um rascunho de uma declaração começou a ser
elaborado durante os anos oitenta pelo Grupo de Trabalho de Populações Indígenas,
órgão da Comissão da ONU em Direitos Humanos, mas somente foi aprovada pela
Assembleia Geral da ONU em 2007 (TOMASELLI, 2016).
Essa declaração confere fundamentações consistentes para o reconhecimento
das identidades indígenas pela soft law. Nesse sentido, a soft law tem suas vantagens,
com um alto número de países signatários, a maior possibilidade de participação de atores
não estatais em sua elaboração e a entrada em efeito imediata após sua assinatura,
independentemente de ratificação (BARELLI, 2009).

7 Artigo 7o 1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que
diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças,
instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de
controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso,
esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de
desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente. (grifo nosso)
8 Essa é a interpretação defendida por Shiraishi Nt: “Pelo visto, há uma mudança radical de por fim a qualquer
forma que enseje algum tipo de tutela, sempre presente nos dispositivos jurídicos, que notadamente vêem
esses povos e grupos sociais como sujeitos inferiorizados, incapazes de discernirem sobre seus próprios atos.
No caso, o “princípio da igualdade” deve ser o pressuposto e não o objetivo a ser alcançado, pois a
emancipação decorre do reconhecimento da existência da diversidade e das diferenças de cultura, que
envolucram distintos sujeitos que conhecem perfeitamente as suas necessidades mais imediatas e
mediatas.” (grifos nossos) (2004)

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Por isso, a declaração é considerada o instrumento mais amplo e progressista em


termos de reconhecimentos dos direitos dos povos indígenas (TOMASELLI, 2016; BARELLI,
2009). A Declaração reconhece o direito à autodeterminação e ao autogoverno (arts. 3 e
4) dos povos indígenas, assim como direito à demarcação e proteção de terras ancestrais
(arts. 25 a 20), direito ao consentimento livre, prévio e informado (arts. 28 e 29), além de
múltiplos direitos sociais e culturais, como educação, com a proteção das crianças
indígenas e o ensino de suas tradições também para outros segmentos sociais; saúde;
patrimônio cultural; o direito ao consentimento livre prévio e informado, avançando no
direito à consulta.
Apesar disso, nota-se uma dificuldade na observância desses dispositivos. É
importante observar as violações constantes aos povos originários, apesar das
transformações do constitucionalismo latino-americano.

4 Direitos territoriais indígenas na américa do sul

O florescer de direitos indígenas constitucionais no cone sul veio com o período de


redemocratização e pode ser distinguido em dois momentos distintos. Em um primeiro
momento, nas constituições promulgadas entre o fim dos anos oitenta e início dos
noventa, as constituições reconheceram direitos básicos aos povos indígenas, incluindo o
direito a territórios ancestrais e respeito à identidade cultural.
No final dos anos noventa e início do século XXI, há um giro transformador no
reconhecimento de direitos indígenas, expressos nas Constituições da Venezuela, Bolívia
e Equador, inaugurando o chamado “novo constitucionalismo latino-americano”. Essas
três constituições reconhecem o estado plurinacional, valorizando o pluralismo jurídico e
“reinventando o espaço público a partir dos interesses e necessidades das maiorias
alijadas historicamente dos processos decisórios” (WOLKMER, 2011).
Com exceções, é unanimidade o reconhecimento do direito à identidade cultural
bem como à posse ou propriedade dos territórios ancestralmente ocupados. A maior
parte das Constituições também reconhece direito à participação prévia para exploração
de recursos naturais em territórios indígenas, muito embora apenas Equador e Bolívia
mencionem expressamente o direito à consulta livre, prévia e informada. Paraguai e Peru
não reconhecem constitucionalmente o direito à consulta, mas a ausência é parcialmente

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suprida pela ratificação da Convenção 169.


Em relação aos direitos procedimentais, há uma tendência no reconhecimento da
personalidade jurídica coletiva (Brasil, Argentina, Guiana e Peru). Alguns países
estabelecem parâmetros para participação política (Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana,
Paraguai e Venezuela) e a jurisdição indígena é constitucionalmente reconhecida na
Colômbia e no Equador. Por fim, reconhece-se o direito ao autogoverno na Bolívia,
Colômbia, Equador e Paraguai (veja Tabela 1 no anexo).
De forma semelhante, praticamente todos os países sul-americanos ratificaram a
Convenção OIT 169. Todos os países que ratificaram a Convenção asseguram a ela um
status especial dentro do ordenamento jurídico, seja constitucional ou supralegal (veja
tabela 2 em anexo).
No Brasil e no Chile, o status supralegal foi afirmado judicialmente face à ausência
de disposição constitucional específica; nos demais países a própria Constituição assegura
hierarquia privilegiada aos tratados de direitos humanos. Ainda assim, múltiplas cortes
constitucionais latino-americanas reconhecem a hierarquia especial garantida à
Convenção OIT 169 desde o início dos anos 2000. É o caso das cortes constitucionais da
Colômbia, Argentina, Bolívia, Equador, Peru e Venezuela (OIT, 2009).
Em relação aos três países que não reconhecem direitos constitucionais
territoriais, há diferenças em relação ao nível de proteção a povos tradicionais. O Chile,
apesar da lacuna constitucional, ratificou a Convenção 169 (ainda que tardiamente, em
2008), possui legislação interna protegendo direitos indígenas (Lei 19.253/93) e conta
com uma instituição específica para demarcação de terras, a CONADI – Corporação
Nacional de Desenvolvimento Indígena (ANAYA, 2009; ALYWIN, 2004).
Suriname e Uruguai, contudo, não reconhecem constitucionalmente quaisquer
direitos indígenas e não são signatários da Convenção 169. Enquanto no Suriname não há
qualquer norma jurídica ou instituição assegurando direitos indígenas, no Uruguai a
legislação infraconstitucional reconhece alguns direitos9. Ademais, enquanto o Uruguai se
posicionou favoravelmente à Declaração da ONU dos Direitos dos Povos Indígenas, o
Suriname foi um dos pouquíssimos países a votar contra.
De forma geral, na maior parte da América do Sul, o reconhecimento de direitos

9 A lei 18.589 de 2009 estabelece o dia da Nação Charrúa e da Identidade Indígena, reconhecendo e
valorizando a identidade cultural indígena.

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territoriais indígenas precedeu o reconhecimento na Corte Interamericana. Essa


precedência no reconhecimento de direitos é reafirmada pela própria Corte, pois em três
decisões o sistema jurídico doméstico foi mencionado como integrantes do corpus iuris,
reforçando a interpretação extensiva que levou ao reconhecimento do direito coletivo à
propriedade e do direito à consulta10.
Alguns países da América do Sul já foram condenados pela Corte Interamericana
por violação de direitos territoriais indígenas. O Paraguai foi condenado nos casos Yakye
Axa (2005), Sawhoyamaxa (2006) e Xákmok Kásek (2010) por despossessão e violação do
direito a uma vida digna; o Suriname foi condenado nos casos Moiwana (massacre e
deslocamento forçado, em 2005), Saramaka (exploração madeireira, em 2007) e Kalina y
Lokono (exploração de minérios, 2018); o Equador foi condenado em Kichwa de Sarayaku
por exploração de petróleo (2012); a Colômbia foi condenada por deslocamento forçado
em Operação Genesis (2013); e o Brasil foi condenado no caso Xucuru por ausência de
saneamento (2018).
Nos casos contra Equador, Colômbia e Brasil, a Corte reconheceu a proteção
jurídica doméstica de direitos indígenas, mas afirmou que nos casos em específico havia
ocorrido desrespeito à legislação, violando os direitos territoriais. Finalmente, nos casos
contra Suriname, a Corte ordenou a adoção de um arcabouço legislativo que reconheça o
direito indígena ao território, assim como que preveja mecanismos processuais
adequados para seu reclame.

5 Crescentes violações a direitos territoriais

Apesar dos avanços na legislação e jurisprudência, persistem violações dos direitos dessas
comunidades. Não obstante seu reconhecimento, não é observado um exercício efetivo
desses direitos. Segundo a Relatora Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas, essas
populações são historicamente sujeitas a discriminação estrutural e, devido à prevalência
de interesses comerciais, as comunidades indígenas sempre foram vítimas de agressão ao
procurar proteger suas terras (TAULI-CORPUZ, 2018). Isso levou a um aumento dos

10 Kichwa Indigenous People of Sarayaku v. Ecuador; Kuna Indigenous People of Madungandí and the
Emberá Indigenous People of Bayano v. Panama; Garífuna Punta Piedra Community and its members v.
Honduras

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protestos dos povos indígenas e de seus defensores contra esses projetos que ameaçam
a sobrevivência dessas comunidades (CIDH, 2019).
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos indicou que o consentimento
livre, prévio e informado dos povos indígenas não é obtido para conceder concessões a
empresas extrativas, e o Estado não controla esses projetos (CIDH, 2019).
Além disso, a situação dos defensores está mais ameaçada. Tanto o Relator
Especial sobre a situação dos defensores dos direitos humanos como o Relator Especial
sobre a questão das obrigações em matéria de direitos humanos relacionados ao gozo do
meio ambiente falam de uma “crise global” de violência contra os defensores dos direitos
humanos, e particularmente contra defensores dos direitos indígenas (FORST, 2016). O
Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre a questão dos direitos humanos, empresas
transnacionais e outras empresas declarou que recebeu várias denúncias de homicídios,
ataques e ameaças contra defensores de direitos humanos que defendem os direitos
indígenas contra os flagelos cometidos por empresas extrativas (HRC, 2014).
Segundo a Global Witness, 164 defensores ambientais foram mortos em 2018
(GLOBAL WITNESS, 2019). Metade desses assassinatos ocorreu na América Latina, em
parte devido à tradição dessa região do ativismo em direitos humanos. Estima-se que 28
defensores de direitos indígenas foram assassinados em 2019 neste território (CULTURAL
SURVIVAL, 2019), considerando o Brasil como o Estado mais inseguro para esses
defensores. A maioria dos assassinatos está ligada à mineração e petróleo, em segundo
lugar ao agronegócio, em terceiro lugar à caça furtiva e, por último, à extração de madeira.
A Coalizão contra a apropriação de terras relatou 65 casos de prisões arbitrárias e assédio
judicial, 92 assassinatos e 46 casos de ameaças contra defensores ambientais e de direitos
humanos no primeiro trimestre de 2019 (COALITION, 2019).
Igualmente, o trabalho dos defensores dos direitos indígenas é frequentemente
criminalizado, situação cada vez mais frequente na América Latina (CIDH, 2015). Os países
da região usam o direito penal em retaliação contra aqueles que expõem os efeitos
adversos que estes teriam sobre a sobrevivência das comunidades indígenas. Rodolfo
Stavenhagen, ex-Relator Especial das Nações Unidas sobre a situação dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais dos povos indígenas, destacou que a
criminalização de atividades pacíficas de protesto com o objetivo de reivindicar direitos
fundamentais das comunidades indígenas deve ser vista hoje como uma das falhas mais
graves na defesa dos direitos humanos (STAVENHAGEN, 2004).

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O protesto pacífico dos defensores dos direitos humanos é sancionado,


recorrendo a figuras como instigação, desrespeito à autoridade ou terrorismo.
Campanhas de difamação também são realizadas contra eles (STAVENHAGEN, 2004).
Observa-se também que a declaração do estado de emergência que permite a suspensão
das garantias é outra ferramenta utilizada para reprimir reivindicações sociais (ARTICLE
19, 2015). Dessa forma, acaba fragmentando as comunidades indígenas.
O sistema interamericano analisou o uso do crime de terrorismo para impedir as
reivindicações dos povos indígenas. No caso Norín Catrimán et al. vs. Chile, a Corte
indicou o padrão de aplicação do crime de terrorismo contra o povo mapuche. Essa
situação também foi reconhecida pela Relatora Especial sobre a situação dos direitos
humanos e liberdades fundamentais dos povos indígenas das Nações Unidas, que
denunciaram o uso do crime de terrorismo para dissuadir os membros do povo mapuche
de seus protestos, destacando que as demandas sociais das organizações indígenas não
devem ser criminalizadas (STAVENHAGEN, 2003).
Por sua parte, o Relator Especial sobre a situação dos defensores dos direitos
humanos das Nações Unidas informou que as empresas privadas fornecem informações
falaciosas para processar líderes indígenas e defensores dos direitos humanos (FORST,
2016). Segundo a Relatora sobre direitos indígenas, o judiciário costuma ser cúmplice ao
permitir que essas demandas infundadas prosperem (TAULI-CORPUZ, 2018).
Com base no exposto, é evidente que é necessário tomar medidas para reverter
a tendência de agressão contra defensores de direitos humanos indígena, pois, como
Victoria Tauli-Corpuz, Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos dos Povos
Indígenas, diz: "Se vamos salvar o planeta, temos que parar de matar as pessoas que o
protegem".

6 observância na américa do sul: o controle de convencionalidade


6.1 controle de convencionalidade

Uma das formas de observância realizadas pelo Estado é o controle de


convencionalidade, doutrina disseminada pela Corte Interamericana e definida como uma
obrigação de qualquer agente estatal (principalmente cortes e juízes) de aplicar a
Convenção Americana na interpretação doméstica de direitos (MAC-GREGOR, 2015). O

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fundamento legal para a doutrina são os artigos da Convenção 1.1 (dever de respeitar
direitos e liberdades), 2 (dever de adaptar sistema doméstico adequando-o à Convenção)
e 29 (interpretação extensiva ou pro personae). Ainda, a doutrina está relacionada aos
princípios da boa fé, efetividade e pacta sunt servanda, de acordo com os artigos 26 e 27
da Convenção de Viena (MAC-GREGOR, 2015; MAC-GREGOR, 2016).
A adoção da doutrina tem sido distinta de acordo com as cortes domésticas, com alguns
países ignorando-a, outros confrontando-a diretamente e alguns adotando os padrões
convencionais, promovendo uma heterogeneidade normativa na América Latina
(TORELLY, 2017).
Em relação aos direitos territoriais, grande parte dos países sul-americanos já
contava com regulamentação de direitos indígenas em seu ordenamento doméstico,
muitos deles atribuindo ranking constitucional à Convenção OIT 169. Assim, o
desenvolvimento da jurisprudência regional ocorre paralelamente à adoção de
parâmetros normativos pelas cortes constitucionais (GONGORA-MERA, 2017). Alguns
países mencionam expressamente as decisões da Corte (Argentina, Bolívia, Equador,
Colômbia e Peru), enquanto outros adotam parâmetros muito próximos aos regionais,
ainda que sem mencionar expressamente a Corte (Chile, Paraguai e Venezuela)11.
A Corte Suprema de Justiça da Argentina12 decidiu favoravelmente a uma
comunidade indígena no caso “Comunidad Indígena Eben Ezer c/ província de Salta”,
decidido em 30 de setembro de 2008, mencionando amplo trecho do caso Yakye Axa
sobre a relação entre identidade cultural e direito à propriedade coletivaa, além de citar
o caso Awas Tingni. A Convenção OIT 169 também é citada e a decisão foi unânime13.
O Tribunal Constitucional do Peru também dialoga com os parâmetros jurisprudenciais
estabelecidos pela Corte Interamericana. Em casos decididos, o Tribunal peruano

11 Não encontramos decisões de cortes constitucionais reconhecendo direitos indígenas justamente nos
países com menor proteção constitucional a direitos indígenas, Suriname, Guiana e Uruguai. A ausência de
jurisprudência pode estar relacionada justamente à ausência de reconhecimento de direitos.
12 A Corte Suprema Argentina possui um histórico de aceitação do princípio da convencionalidade,
reconhecendo em diversos casos a vinculação das decisões da Corte ao ordenamento argentino, em que pese
um momentânea alteração de posição em 2015, no caso Fontevechia. Para mais sobre a Corte Argentina, veja
GONZALEZ-SALZBERG, 2011
13 Suprema Corte Argentina, Comunidad Indígena Eben Ezer c/ provincia de Salta - Ministerio de Empleo y
la Producción s/ amparo, Sentencia 30 de setembro de 2008, n. InternoC2124XLI. Yakye Axa já havia sido
mencionado na Corte Suprema Argentina, ainda que apenas em um voto dissidente no caso “Comunidad
Aborígene Lhaka Honhat c/ província de Salta”, exalado pelo Min. Carlos Fayat. ______. Asociación de
Comunidades Aborígenes Lhaka Honhat c/ Salta, Provincia de y outro s/ acción declarativa de certeza. 27
de Septiembre de 2005, voto separado do Min. Carlos Fayat

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reconheceu a relação imprescindível entre identidade cultural indígena e recursos


naturais e que a ausência de título formal de propriedade não afasta a proteção jurídica
a povos tradicionais, mencionando casos da Corte Interamericana (Awas Tingni,
Saramaka, Moiwana, Yakye Axa e Sawhoyamaxa14), citando a Declaração das Nações
Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas e a vinculação da Convenção OIT 169 e
afirmando o dever de consulta prévia aos povos indígenas15. Essa reafirmação continuou
a ocorrer em decisão posterior de 2011, reafirmando-as com os precedentes
convencionais (Sawhoyamaxa)16.
O uso do controle de convencionalidade na Bolívia é muito próximo ao caso
peruano. O Tribunal Constitucional Plurinacional boliviano reconhece o caráter vinculante
das decisões regionais e dialoga com seus casos17. Nas palavras do Tribunal, “as sentenças
emitidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos devem ser usadas para revelar a
constitucionalidade de uma determinada norma legal”18.
A sentença mais relevante exarada refere-se ao emblemático caso TIPNIS19. O
Tribunal reafirma a proteção constitucional, reafirmando os direitos da Convenção OIT
169 e na Declaração da ONU de Direito dos Povos Indígenas e reconheceu a
constitucionalidade das leis por unanimidade20. O Tribunal também usou relatórios
diversos da CIDH, informes do relator especial da ONU para Direitos Indígenas, a decisão
da Corte Constitucional Colombiana n. T-129/2011, decisão do Comitê Tripartite do
Conselho Administrativo da OIT e a decisão da Corte Interamericana em Saramaka.
Em matéria do direito à consulta, a jurisprudência mais progressista tem sido

14 Tribunal Constitucional de Peru, Pleno, Lima, Exp. N. 3343-2009-PA/TC, Jaime Hans Bustamante Johnson,
19 de fevereiro de 2009. Em sentido próximo, ver Tribunal Constitucional de Peru, Pleno, Lima, Exp. N. 6316-
2008-PA/TC, Asociación interétnica de desarrollo de la selva peruana (AIDESP), 11 de novembro de 2009, voto
singular do Mag. Landa Arroyo, mencionado parâmetros adotados em Saramaka.
15 Tribunal Constitucional de Peru, Pleno, Lima, Exp. N. 22-2009-PI/TC, Gonzalo Tuanama Tuanama e outros,
09 de junho de 2010.
16 Tribunal Constitucional de Peru, Pleno, Lima, Exp. N. 24-2009-PI, Gonzalo Tuanama Tuanama e outros, 26
de julho de 2011.
17 Tribunal Constitucional Plurinacional, Sala Plena, Sentencia 2056/2012, Mag. Rel. Soraida Rosario Chánez
Chire, exp. N. 00213-2012-01-AIA, 16 de outubro de 2012 (reproduzindo ipsis literis grande trecho de Kichwa
de Sarayaku); ______, Sala Primera Especializada, Sentencia 0572/2014, Mag. Rel. Tata Gualberto Cusi
Mamani, exp. N. 02889-2013-06-AP, 10 de março de 2014 (com ampla e detalhada análise acerca da doutrina
do controle de convencionalidade e vinculação das decisões da Corte regional);
18 Tribunal Constitucional Plurinacional, Sala Plena, Sentencia 0079/2015, Mag. Rel. Macario Lahor Cortez
Chavez, exp. N. 09543-2014-20-AIA, 09 de setembro de 2015. Original em espanhol, tradução nossa.
19 Tribunal Constitucional Plurinacional, Sala Plena, Sentencia 0300/2012, Mag. Rel. Mirtha Camacho
Quiroga, exp. N. 00157-2012-01-AIA e 00188-2012-01-AIA (acumulado), 18 de junho de 2012
20 Para uma análise aprofundada do caso TIPNIS, ver LAING, 2014 e BOHR ILAHOLA, 2015.
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exarada pela Corte Constitucional Colombiana (CCC), a qual possui múltiplas decisões na
área produzidas em aberto diálogo com a Corte Interamericana. A CCC possui consolidada
jurisprudência em matéria de direitos indígenas, tomando por base a Convenção OIT 169
e os parâmetros da Corte Interamericana, mencionando repetidamente os casos Awas
Tingni, Yakye Axa, Sawhoyamaxa e Xákmok Kásek para interpretar o direito à propriedade
e multiculturalidade, assim como a decisão Saramaka, no que tange ao direito à consulta21
e já citou o caso do Povo Xucuru22.
Observa-se a mais paradigmática decisão, a sentença T-129/11. A CCC
reconheceu a proteção cultural e territorial de povos indígenas asseguradas tanto na
Constituição como na Convenção OIT 169. A Convenção foi interpretada valendo-se da
Declaração da ONU sobre Povos Indígenas e da interpretação realizada pela Corte
Interamericana em Saramaka. Em nível de direito internacional, foram mencionados
ainda relatórios emitidos pelo Relator da ONU para Direitos Indígenas, o sr. James Anaya.
Por fim, a CCC reviu sua própria jurisprudência a respeito de direito à consulta,
estabelecendo parâmetros específicos para a consulta. Os parâmetros estabelecidos na
sentença T-129/11 tornam-se referência para múltiplas decisões posteriores.
É importante mencionar que a decisão colombiana oferece padrões mais
protetivos a povos indígenas do que a própria Corte Interamericana. A Corte regional tem
se referido à obrigação de consultar povos indígenas de boa fé, referindo-se a
consentimento exclusivamente em Saramaka e apenas para projetos de grande impacto.
Em contrapartida, a CCC entende como obrigatório o consentimento independentemente
da dimensão do impacto causado pelo projeto. Esse pode ser um motivo pelo qual a CCC
não menciona nenhum caso da Corte Interamericana relativo ao direito a consulta
posterior a Saramaka, já que nenhuma delas refere-se à consentimento.
Um dos países com a mais avançada proteção aos direitos indígenas é o Equador.
A reforma constitucional de 2008 foi revolucionária ao reconhecer o Estado como
plurinacional e ao assegurar constitucionalmente valores indígenas, como sumak kawsay
e a proteção à pacha mama. Ainda, tratados internacionais em direitos humanos são
considerados supraconstitucionais, como é o caso da Convenção OIT 169 (WOLKMER;

21 Apenas a título de exemplo, mencionamos as seguintes decisões: CCC, Sentencia T-307/2018, Tercera Sala
de Revision, Exp. T-3836834, 27 de julho de 2018; CCC, Sentencia T-766/15, Cuarta Sala de Revision, Exp. T-
4327004, 16 de dezembro de 2015;
22 CCC, Sentencia T-153/19 Novena Sala de Revisión, Exp. T-7.056.143, 3 de abril de 2019
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FAGUNDES, 2011). Ainda assim, a Corte Constitucional equatoriana tem referenciado as


decisões do tribunal regional como parâmetro interpretativo para direitos territoriais.
Ressalta-se, todavia, que as menções à Corte Interamericana são posteriores ao caso
Kichwa de Sarayaku (2012), enquadrando-se, dentro da cadeia de eficácia, no nível de
aplicação, e não observância.23
Em relação ao Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF), em geral, tem sido
refratário aos novos entendimentos que cercam a questão indígena. Isso ocorre porque
o STF atribui a tratados internacionais de direitos humanos o status de normas
supralegais, submetendo os parâmetros jurisprudenciais da Corte a uma hierarquia
inferior à Constituição. A primeira vez que o STF citou os casos indígenas da Corte
Interamericana foi na ADI 3239 referente ao reconhecimento dos direitos quilombolas.
Os casos Saramaka e Moiwana foram citados.
Contraditoriamente às situações dos direitos quilombolas, os parâmetros
jurisprudências da Corte não são aplicados aos direitos dos povos indígenas. Ainda mais
grave, há entendimento firmado pelo STF que ainda se utiliza de noções que
correspondem ao pensamento integracionista da Convenção 107. Em 2009, no
julgamento da petição n. 3.888 relativa à constitucionalidade da demarcação da reserva
indígena Raposa Serra do Sol, esse viés pode ser identificado na relatoria do ministro
Carlos Ayres Britto24. O ministro reiterou que a garantia constitucional e o conceito de
tradição, que embasa a posse perpétua desses povos, teria, como limite temporal, a data
de promulgação da Constituição de 1988, sob a justificativa de que poderiam ocorrer
fraudes, ignorando o critério de ancestralidade. A decisão fixou dezenove restrições à
terra indígena que não foram precedidas de qualquer consulta aos povos interessados25.

23 Em um caso decidido em 2014, analisou-se a aplicação de penalidade pela justiça indígena ao


cometimento de um homicídio. A Corte equatoriana valeu-se dos parâmetros regionais de interculturalidade,
valorização da identidade indígena e direito à identidade cultural, mencionando múltiplos casos da corte.
(Corte Constitucional del Ecuador, Sentencia n. 113-14-SEP-CC, Caso n. 0731-10-EP, 30 de julho de 2014). Em
outra decisão do mesmo ano referente a direitos territoriais, a corte equatoriana reconheceu e aplicou as
regras de interpretação da propriedade coletiva indígena estabelecidas em Awas Tingni e Sawhoyamaxa
(Corte Constitucional del Ecuador, Sentencia n. 141-14-SEP-CC, Caso n. 0210-09-EP, 24 de setembro de 2014).
Por fim, em 2017, os casos Saramaka e Kalina y Lokono foram mencionados a respeito do direito ao
reconhecimento da personalidade jurídica das comunidades indígenas (Corte Constitucional del Ecuador,
Sentencia n. 001-17-PJO-CC, Caso n. 0564-109-JP, 08 de novembro de 2017).
24 Em particular, o ministro afirma estar vigente uma “era constitucional que vai além do próprio valor da
inclusão social para alcançar, agora sim, o superior estádio da integração comunitária de todo o povo
brasileiro”. Ainda, o ministro usa a denominação em desuso “aborígene”.
25 A Corte Interamericana é mencionada em voto separado do juiz Menezes de Direito, em que o caso Awas
Tingni é citado como reconhecimento do direito à propriedade dos povos indígenas.

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Em casos indígenas, apenas em duas decisões monocráticas recentes o STF citou


o precedentes interamericanos: na decisão de Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 6.062, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, relativo a
inconstitucionalidade da transferência da competência de demarcação das terras
indígenas e de outros assuntos referentes aos povos indígenas do Ministério da Justiça
para os Ministérios da Agricultura, Pecuária e do Abastecimento e o da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos; e a Medida Cautelar em Ação Rescisória de processo judicial de
demarcação de terras que não contou com participação indígena.26
Em síntese, apesar de algumas menções aos instrumentos jurídicos ratificados
pelo Brasil, como a Convenção 169 da OIT e a Declaração Universal dos Povos Indígenas
e a própria jurisprudência da Corte, ressalte-se que a Suprema Corte Brasileira se utilizou
dos parâmetros convencionais, mas como um argumento persuasivo para sustentar
outros argumentos.

6.2. Observância dos parâmetros convencionais por entes estatais e atores sociais

O controle de convencionalidade é frequentemente associado ao Poder


Judiciário, mas controle também pode ser visto nas atuações de demais órgãos estatais,
os quais podem tanto propor o controle ao Judiciário ou confrontar órgãos e entes do
pacto federativo na defesa de direitos territoriais (MAC-GREGOR, 2017).
Em relação a direitos procedimentais indígenas, aponta-se a celebração de um
acordo internacional entre diversos países denominado “Regras de Brasília sobre acesso
à justiça de pessoas em situação de vulnerabilidade”, que estabelece princípios para
facilitar o acesso à justiça em relação às condições de vulnerabilidade que alguns povos
sofrem. O acordo foi elaborado por um grupo de trabalho composto pelas seguintes
organizações: Conferência Judicial Ibero-americana, Associação Ibero-americana de
Ministérios Públicos (AIAMP), Associação Interamericana de Defensores Públicos (AIDEF),
Federação Ibero-americana de Ombudsman (FIO) e a União Ibero-americana de Colégios
e Agrupamentos de Advogados (UIBA). O acordo adota parâmetros estabelecidos pela
Corte em sua jurisprudência territorial frente ao aparato judicial estatal

26 STF, Pleno, ADI – MC 6062 (1 Agosto 2019); STF, Mon. Luis Roberto Barroso, AR - MC 2761 (5 Novembro
2019).

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(IBEROAMERICANA, 2013; RIBOTTA, 2012). No manual comentado de aplicação das


Regras de Brasília, seu teor é interpretado a partir da jurisprudência da Corte
Interamericana, citando diversos casos territoriais (MARTÍN, 2018).
Em relação a atuação dos órgãos estatais, tem-se como exemplos brasileiros o
Ministério Público Federal, provocando o Poder Judiciário sobre os direitos territoriais
indígenas no caso da Usina Hidrelétrica de Belo Monte em que se almejava a demarcação
de terras indígenas previamente à implementação do projeto27 e a Defensoria Pública da
União, que foi amicus curiae no processo do Xukuru vs Brasil, em favor da comunidade
indígena.
Os exemplos argentinos consistem na participação do “Defensor del Pueblo de
Argentina” e do Ministério Público da Nação Argentina, tanto no caso da Comunidade
Indígena Iwi Imemby expressando que a Corte Interamericana “supõe uma garantia maior
tanto para o reconhecimento quanto para o exercício e a implementação desses
direitos”28, como no “dictámen”: “Comunidad Toba c/ Provincia de Formosa s/ Amparo”
- CSJ 528/2011, citando os casos da “Comunidad Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguay”,
“Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua” e “Comunidad Indígena
Sawhoyamaxa vs. Paraguay”.
Uma iniciativa supranacional foi a organização da publicação “Estandares
regionales de actuación defensorial em processos de consulta previa de Bolivia, Colombia,
Ecuador y Peru”, fortalecendo padrões mínimos do direito à consulta. Ambos os
documentos mencionam a jurisprudência da Corte em matéria de direito à consulta
(ALMENARA; LINARA, 2017).
Esse protagonismo de defensorias públicas se explica pelo acordo com a Corte
Interamericana para representar as vítimas em sede judicial na Corte Interamericana,
atribuindo um maior acesso à justiça a esses grupos vulneráveis29.
A jurisprudência da Corte Interamericana também delineou o conteúdo dos

27 MPF-PA, ACP 0000655-78.2013.4.01.3903, petição inicial, 19 de abril de 2013. Disponível em


http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/atuacao-do-mpf/acoes-coordenadas-11/dia-do-
indio/docs_dia-do-indio/acp-0000655-78-2013-4-01-3903-belo-monte-protecao-territorial/view. Acesso em
10 de abril de 2020.
28 Defensor del Pueblo de la Nación. Afectación a Derechos de una comunidad aborigen. Actuación
nro. 1331/14 7 de Septiembre de 2016, folio nro. 10. Original em espanhol. A tradução pertence a mim.
29 Acordo feito entre a Associação Interamericana de Defensorias e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos para a representação dos grupos vulneráveis. Disponível em: http://www.mpd.gov.ar/users/
uploads/1402684164Acuerdo%20final%20 OEA%20AIDEF.pdf. Acesso em: 10 de Abril de 2020.

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processos de consulta indígena. Em uma solicitação feita à Biblioteca do Congresso


Nacional do Chile sobre a origem da consulta dos povos indígenas a respeito da
modificação do “Ley General de Urbanismo y Construcciones” (Boletín N°11175-01), a
“asesoría técnica parlamentaria” cita o caso “Pueblo indígena Kichwa de Sarayaku vs.
Ecuador” para estabelecer que a consulta às comunidades indígenas em casos como o
presente seja uma obrigação internacional (BCN, 2019).
Além da influência em órgãos estatais, há um impacto da jurisprudência da Corte
no trabalho de Organizações não-Governamentais trabalhando na proteção de direitos
humanos. Há uma vasta bibliografia relacionando essa interação, tanto no sentido de
fortalecimento das demandas sociais (CAVALLARO, 2002; SOLEY, 2019), formação de
redes internacionais de direitos humanos (KECK; SIKKINK, 2018) e ainda influência dos
movimentos sociais no cumprimento de decisões (CAVALLARO; BREWER, 2008), mas
pouco tem sido escrito em relação ao tema de direitos indígenas, com exceção de
trabalho desenvolvido pela Open Society Foundations (2017).
Exemplo dessas atuações é a missão internacional promovida por organizações
chilenas, denunciando abusos contra o povo Mapuche e o uso de leis antiterroristas para
criminalizar suas reivindicações legítimas por suas terras ancestrais, numerosos casos
foram citados da Corte Interamericana a apoiar as alegações contra a repressão às
reivindicações sociais (INFORME FINAL DE LA MISIÓN INTERNACIONAL A CHILE, 2020).
Com isso, mostram-se alguns exemplos de observância da Corte, em um rol que
não é exaustivo, tendo em vista que o objetivo é apenas mostrar boas práticas de
relacionamento entre o Estado e a Corte Interamericana, para além da presença do Poder
Judiciário.

7 Considerações finais

O presente artigo apresentou a influência dos parâmetros jurisprudenciais criados pela


Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de direitos territoriais nos
sistemas legais na América do Sul.
O nível de controle de convencionalidade nos países da América do Sul varia
muito. Enquanto alguns países, como Bolívia, Colômbia e Peru, possuem um longo e
consolidado diálogo com a Corte Interamericana, outros países têm ignorado as

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evoluções jurisprudenciais regionais (como o Paraguai e o Chile). Em uma posição


intermediária, há países que muito embora citem a jurisprudência da Corte regional, esta
parece não ter um impacto substancial no reconhecimento de direitos (como a Argentina
e o Brasil).
A análise proposta trouxe duas observações para a construção teórica da cadeia
de eficácia. A primeira delas é que a separação entre observância e aplicação pode não
ter tantos efeitos práticos, como o caso colombiano demonstra. As referências da CCC à
Corte regional não sofreram alteração alguma após o julgamento do caso Operação
Genesis contra a Colômbia, de forma que a eficácia dos parâmetros regionais
especificamente nesse caso parece estar desconectada da existência de decisão contra o
país em questão.
Uma segunda consequência da análise dos casos territoriais para a cadeia de
eficácia é apresentar cenários de evolução no reconhecimento de direitos simultâneos
em vários países e internacionalmente, afastando uma interpretação de que o impacto
da Corte Interamericana sobre o ordenamento jurídico doméstico seria unilateral.
De qualquer forma, a Corte Interamericana fortaleceu órgãos de proteção
indígena e influenciou Cortes constitucionais para adoção de parâmetros interpretativos.
Em um momento de grande pressão sobre povos tradicionais, a atuação da Corte
Interamericana como aliado na transformação de situações fáticas de exclusão torna-se
indiscutivelmente necessária.

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606

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Sobre os autores

Gabriela Cristina Braga Navarro


Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil;
bacharel em Direito pela Universidade Estadual de São Paulo, Franca, SP, Brasil; doutora
pelo Departamento de Direito da Universidade Johann Wolfgang Goethe, Frankfurt,
Hessen, Alemanha; professora de Direito Administrativo e de Direito Ambiental na
Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil. Autora do livro “Hermeneutica
filosófica e direito ambiental”, publicada pela Editora IDPV. Autora de diversos artigos
publicados nas áreas de direito indígena e direito ambiental. Atualmente trabalhando
no projeto “Indigenous rights in the Inter-American System of Human Rights
jurisprudence”, em que analisa o impacto da jurisprudência territorial da Corte
Interamericana de Direitos Humanos para o ordenamento jurídico de países na América
Latina. E-mail: gabrielabnavarro@gmail.com

Marina Luz Mejía Saldaña


Advogada pela Universidade Católica Argentina, e mestra em Direito Internacional dos
Direitos Humanos pela City, University of London. Sua tese de mestrado estudou os
direitos dos povos indígenas e a apropriação de sua propriedade intelectual. Foi
Visitante Profissional na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Co-autora do livro
"Convención Americana sobre Derechos Humanos - Pacto de San José de Costa Rica -
Comentada y anotada. Con mención de jurisprudencia de la Corte Interamericana de
Derechos Humanos”. E-mail: marina_mejia345@hotmail.com

João Augusto Maranhão de Queiroz Figueiredo


Graduando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; integrante do
Programa de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco “Acesso ao Sistema
Interamericano de Direitos Humanos”; ex-bolsista de Pesquisa pela FACEPE pelo
período de agosto de 2018 a agosto de 2019 e ex-integrante do Laboratório de Pesquisa
do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM – no ano de 2018. E-mail:
joaomqfigueiredo@gmail.com

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 580-606.


Gabriela Navarro, Maria Mejía Saldaña e João Augusto Maranhão de Queiroz Figueiredo.
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Normas cosmopolitas e efetivação dos direitos humanos:


uma análise do caso do Povo Xukuru vs. Brasil perante a
Corte Interamericana de Direitos Humanos
Cosmopolitan norms and the enforcement of human rights: an analysis of the case
of the Xukuru People v. Brazil before the Inter-American Court of Human Rights

Manoel Batista do Prado Junior¹


¹ Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
manoel.pradojunior@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1677-9111.

Guilherme Scotti²
² Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail: gscotti@unb.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-4241-1268

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 2/02/2022.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

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Resumo
O artigo analisa decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito dos
povos indígenas à propriedade coletiva a partir do caso Xukuru vs. Brasil. Para tanto,
identifica a proteção transnacional desses direitos no paradigma democrático e os fluxos
comunicativos entre a Sentença e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Conclui,
assim, que a emergência de normas cosmopolitas de justiça possibilita iterações
democráticas aptas a fornecer maior segurança aos direitos dos povos indígenas.
Palavras-chave: Direitos territoriais dos povos indígenas; Caso Xukuru; Corte
Interamericana de Direitos Humanos.

Abstract
This article analyzes the judicial decision of the Inter-American Court of Human Rights on
the right of indigenous peoples to collective property in the case of Xukuru v Brazil. To do
so, it identifies transnational protection of these rights in the democratic paradigm, and
the communication flows between the Judgment and the jurisprudence of the Brazilian
Supreme Court. Thus, it concludes that the emergence of cosmopolitan norms of justice
enables democratic iterations capable of providing greater security to the rights of
indigenous peoples.
Keywords: Indigenous peoples land rights; Xukuru Case; Inter-American Court of Human
Rights.

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A Constituição de 1988 reafirmou a tradição do constitucionalismo brasileiro de proteção


das terras indígenas, inaugurada pela Constituição de 1934. Inovou, contudo, ao romper
com o paradigma integracionista que orientava a legislação indigenista, assegurando
cidadania para os povos indígenas, a partir do reconhecimento de sua capacidade jurídica,
de sua autonomia, da proteção às terras indígenas pelo conceito de terra
tradicionalmente ocupada estabelecido no art. 231, e do reconhecimento de suas
identidades e do direito à diferença.
Na busca por consolidar um constitucionalismo democrático, a Constituição
atribuiu tratamento a esses direitos enquanto fundamentais, com base em seus princípios
e em normas internacionais aplicáveis ao Brasil, como dispõe o próprio art. 5º, § 2º
(CARVALHO NETO e SCOTTI, 2012). Desse modo, projetou temporalmente a superação
dos deletérios efeitos dos séculos de relação colonial, por meio do reconhecimento da
multiculturalidade e plurietnicidade do Estado brasileiro no contexto de transição
democrática.1
A passagem de um paradigma integracionista para o democrático implicou no
respeito à diferença como percurso para o aprofundamento da igualdade. Essa mudança
é percebida nos planos doméstico e internacional, graças às articulações dos povos
indígenas e suas representações na sociedade civil em diversas partes do mundo e no
Brasil, que pavimentaram o caminho para reconhecimento, promoção e proteção de seus
direitos. No final dos anos 1980, por exemplo, a Convenção nº 107 da OIT, de 1957, foi
substituída pela Convenção nº 169 da OIT. Adotada na 76ª Conferência Internacional do
Trabalho, em 1989, esta foi o primeiro instrumento internacional a determinar o direito
à identidade do povo indígenas a partir do princípio fundamental da autoidentificação
(OIT, 2011, p. 7).2
Dessa forma, igualdade e diferença constituem pilares para a proteção dos
direitos fundamentais dos povos indígenas e comportam a afirmação de suas identidades,
códigos, práticas, línguas, territorialidades e tradições, seus planos de vida e projetos de
futuro enquanto sujeitos e coletividades autônomos. As terras indígenas, que são a base
para o exercício desses direitos, também foram impactadas pelas mudanças de

1Sobre a questão, conferir: YAMADA (2009) e MAGALHÃES (2015).


2Convenção n° 169 sobre povos indígenas e tribais. Organização Internacional do Trabalho. Brasília: OIT, 2011,
p. 7.

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paradigma trazidas pela Constituição de 1988 e por instrumentos internacionais de


direitos humanos dos povos indígenas.
Seu conceito, como estabelecido no art. 231 na figura do advérbio
“tradicionalmente ocupada”, passou a comportar a projeção do presente e futuro e o
reconhecimento de que as territorialidades dos povos indígenas se reorganizaram, em
muitos casos, por movimentos forçados ao longo do processo colonial e pós-colonial.
Trata-se de uma concepção de ocupação não vinculada exclusivamente ao passado, mas,
sobretudo, ao modo como determinado povo exerce sua territorialidade no presente e
os recursos aos quais necessita para sua reprodução física e cultural no futuro. Assim, a
delimitação de uma terra indígena comporta e representa a espacialidade do próprio
povo indígena. Essas inovações impedem a ideia de transitoriedade desses sujeitos e
coletividades, com a qual se pautava o paradigma integracionista, no Brasil encartado na
figura da tutela3.
Esses trânsitos ou ondas nos abrem reflexões sobre os diálogos entre o direito
internacional dos direitos humanos e os direitos indígenas no Brasil, sobretudo no que
concerne aos caminhos ou dispositivos de comunicação que reforçam a proteção jurídica
transnacional dos povos indígenas, tanto pelo arcabouço dos direitos humanos universais
e da emergência de normas cosmopolitas de justiça, quanto pelos direitos dos povos
indígenas no plano interno.
A partir deles, propomos analisar os desdobramentos do caso do Povo Xucuru e
seus membros vs. Brasil, no qual o Estado brasileiro foi condenado em 2018 pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), e suas interações com a jurisprudência
recente sobre as terras indígenas, em especial com relação à tese do marco temporal da
ocupação, segundo a qual são passíveis de reconhecimento pelo Estado apenas as terras
indígenas para as quais se comprova a efetiva ocupação por esses povos em 05 de
outubro de 1988. Introduzida no julgamento do caso da terra indígena Raposa Serra do
sol pelo Supremo Tribunal Federal, em 2009, e posteriormente aprofundada em 2014 no
caso Guyraroka, pela segunda turma da Corte,4 a tese tem sido alvo de controvérsias

3 Sobre a figura da tutela e a discussão sobre capacidade, conferir: SOUZA LIMA (1995 e 2015), LACERDA
(2007) e ELOY AMADO (2020).
4 A PET nº 3388/RR discutiu a demarcação administrativa da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e no RMS

29.087 foi suspensa a Portaria nº 3.219/2009, do Ministério da Justiça, que havia declarado a Terra Indígena
Guyraroka como de ocupação tradicional dos Guarani-Kaiowá.

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jurídicas desde então, em função do seu efeito restritivo sobre o reconhecimento dos
direitos territoriais dos povos indígenas.
Na primeira seção retomaremos de modo breve a dupla proteção jurídica das
terras indígenas e as disputas discursivas atuais sobre o regime jurídico dessas áreas. Na
segunda, a partir do detalhamento do caso Xucuru e sua Sentença, verificaremos a
adequação da atual jurisprudência brasileira sobre a matéria. Na terceira, tendo por base
o cenário exposto, a existência de normas cosmopolitas de justiça e os usos da sentença,
analisamos os potenciais diálogos entre o plano internacional e doméstico, apontando,
na quarta seção, para um balanço dos impactos atuais.

1. Os direitos dos povos indígenas: proteção transnacional e disputas atuais

A Constituição de 1988 é clara ao definir o conceito de terras indígenas como as


tradicionalmente ocupadas por esses povos. Seu texto também consolida uma proteção
exposta a partir da tese do indigenato, para a qual tais direitos configuram-se como
originários5. O parágrafo 4º do art. 231 caracteriza as terras indígenas como inalienáveis
e indisponíveis e o direito dos povos indígenas sobre elas imprescritível. Por outro lado, o
parágrafo 6º também declara serem nulos ou extintos quaisquer atos que tenham por
objetivo a ocupação, o domínio ou a posse dessas terras, o que reforça o núcleo de
proteção essencial destas, imprescindíveis que são aos povos indígenas.
Essas definições embasaram farta jurisprudência sobre as terras indígenas na
ordem constitucional atual (ACO 323, ACO 312, ACO 366). Além disso, o Brasil é signatário
de inúmeros instrumentos internacionais que, com base no direito internacional dos
direitos humanos, disciplinam a atuação estatal com relação aos povos indígenas. A
Convenção nº 169 da OIT, editada em 1989, foi recepcionada em nosso ordenamento pelo
Decreto nº 5051/2004, após aprovação pelo Congresso Nacional em 20026. A despeito da
mora na ratificação, resta claro em seu texto o reforço à proteção dos valores e práticas
culturais e religiosas dos próprios povos indígenas para a resolução de conflitos, tanto
individuais quanto coletivos, e a obrigação estatal de salvaguardar o direito dos povos

5Uma ampla análise da tese, incluindo a reprodução da obra de João Mendes Junior, primeiro jurista a tratar
do indigenato, pode ser encontrada em CUNHA e BARBOSA (orgs.), 2018.
6 Decreto 5.051/2004. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm
Acesso em 20/03/2020.

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indígenas de “utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às
quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de
subsistência”.7
A Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, aprovada por sua
Assembleia Geral em 2007 ao se manifestar “preocupada com o fato de os povos
indígenas terem sofrido injustiças históricas como resultado, entre outras coisas, da
colonização e da subtração de suas terras, territórios e recursos”, dispõe que os Estados
devem proporcionar a reparação, por meio de mecanismos eficazes e estabelecidos
conjuntamente com os povos indígenas, que podem incluir a restituição “em relação aos
bens culturais, intelectuais, religiosos e espirituais de que tenham sido privados sem o seu
consentimento livre, prévio e informado, ou em violação às suas leis, tradições e
costumes”.
O artigo 26 da Declaração protege os modos tradicionais de ocupação desses
povos e define que esses devem ser considerados pelos Estados ao atuarem no
reconhecimento das terras indígenas. Com relação ao direito à justiça, o instrumento
ressalta o direito a uma decisão rápida sobre controvérsias e estabelece que estas devem
tomar em consideração os costumes, as tradições, as normas e os sistemas jurídicos dos
povos indígenas interessados e as normas internacionais de direitos humanos.8
No âmbito do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, ainda,
foi aprovada em 15 de junho de 2016 a Declaração Americana dos Direitos dos Povos
Indígenas que dispõe que estes “têm direito ao reconhecimento legal das modalidades e
formas diversas e particulares de propriedade, posse ou domínio de suas terras,
territórios e recursos, de acordo com o ordenamento jurídico de cada Estado e os
instrumentos internacionais pertinentes”.9
Nota-se, portanto, que é cediço no direito internacional dos direitos humanos o
direito à diferença experimentado por povos indígenas, pela proteção de seus usos,
costumes e tradições, sendo imprescindível que seus modos de ocupar e seu histórico de

7 Idem. Convenção nº 169 da OIT, artigo 14.


8 Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, 2007, artigo 40. In:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_
Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf . Acesso em 20.02.2020. Sobre o pluralismo jurídico e povos indígenas,
FAJARDO (2004).
9 Declaração Americana sobre os direitos dos povos indígenas. In:
https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em 20.02.2020.

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ocupação sejam efetivamente considerados, assim como os direitos de propriedade sobre


seus territórios, mesmo que deles tenham sido despojados a qualquer tempo.
No entanto, incongruências e ameaças de retrocessos do Estado brasileiro com
relação aos direitos humanos dos povos indígenas foram identificadas pelos dois últimos
relatores especiais das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas, James Anaya
(2009) e Victoria Tauli-Corpuz (2016).
Em 2016, o relatório sobre a situação dos direitos humanos dos povos indígenas
no Brasil encaminhado ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas concluiu que
“interpretações altamente controversas e fortemente contestadas da Suprema Corte no
caso Raposa Serra do Sol” impõem restrições ao direito dos povos indígenas de possuírem
e controlarem suas terras e identificou que “Cortes de primeira instancia assim como as
cortes Superior e Suprema estão aplicando a decisão de maneira completamente
contrária com as previsões constitucionais sobre direitos territoriais indígenas”, o que
acarretaria óbices ao gozo, por esses povos, de seus direitos básicos, bem como uma
escalada de violência.10 (A/HRC/33/42/Add.1)
A tese do marco temporal da ocupação, inaugurada no caso Raposa Serra do
Sol, estabeleceu-se pelo “conteúdo positivo do ato de demarcação de terras indígenas”
afirmado pelo STF na teoria do fato indígena, basicamente a partir de dois marcos: o da
tradicionalidade da ocupação, que se refere ao modo como os povos indígenas se
relacionam com suas terras, e o marco temporal da ocupação, que se relaciona à
comprovação de materialidade da ocupação indígena sobre suas terras em 05 de outubro
de 1988 (data da promulgação da Constituição) como condição para caracterização do
conceito de terra tradicionalmente ocupada, ressalvados os casos de renitente esbulho.
Em 2014 a tese foi aplicada pelo Supremo Tribunal Federal ao caso da Terra
Indígena Guyraroka (RMS 29.087), cujo processo de demarcação foi declarado nulo pela
segunda turma da Corte, e no caso da Terra Indígena Limão Verde (ARE 803.462), no qual
a mesma segunda turma definiu as possibilidades de comprovação de renitente esbulho,
enquanto exceção à regra imposta pelo marco temporal da ocupação. Nesse último
acórdão foi definido que renitente esbulho não poderia ser confundido com ocupação
passada ou desocupação forçada, ocorrida no passado e, para que haja configuração de

10TAULI-CORPUZ, Victória. Relatório da missão ao Brasil da Relatora Especial sobre os direitos dos povos
indígenas. Genebra: Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, 8 de agosto de 2016.
A/HRC/33/42/Add.1. Disponível em: http://unsr.vtaulicorpuz.org/site/images/docs/country/2016-brazil-a-
hrc-33-42-add-1-portugues.pdf Acesso em 03/03/2020.

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esbulho, seria necessária comprovação de situação de “efetivo conflito possessório” que,


mesmo ocorrido no passado, persista até a data da promulgação da Constituição, o que
seria passível de comprovação por “circunstancia de fato ou, pelo menos, por uma
controvérsia possessória judicializada”.11
Essas inovações nos colocariam em colisão com normas de direito internacional
dos direitos humanos e dos povos indígenas, como afirmou a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos em relatório recente sobre a situação dos direitos humanos no
Brasil. No entender do colegiado, a tese do marco temporal desconsidera o histórico de
violentas expulsões dos povos indígenas de seus territórios que ocupavam
tradicionalmente antes de 1988.12
Frente ao avanço desse cenário restritivo no plano doméstico e dos inúmeros
desafios postos ao aprofundamento democrático, podemos notar que povos indígenas
têm recorrido a fóruns internacionais como forma de denunciar e buscar reparações pelas
violações de direitos humanos consolidadas na imposição de óbices ao reconhecimento
e garantia de posse plena sobre suas terras de ocupação tradicional, seja em decorrência
de decisões judiciais que anulam processos de demarcação ou da morosidade desses
processos conduzidos pelo Poder Executivo, aliados a um ambiente potencialmente hostil
na esfera política.
A recente condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso do povo indígena Xucuru, em 2018, pela violação do direito à
garantia judicial de prazo razoável, previsto no artigo 8.1 da Convenção Americana dos
Direitos Humanos-CADH, à proteção judicial e à propriedade coletiva, previstos nos
artigos 21 e 25 da Convenção Americana13, é exemplar. Cabe-nos, pois, questionar quais
elementos possibilitam essa estratégia de judicialização e dão base para os pleitos dessas
comunidades e ao resgate da segurança jurídica das terras indígenas.
Convém lembrar que apesar de a Convenção Americana de Direitos Humanos -
CADH ter sido adotada em 1969 – momento marcado por diversos regimes autoritários
na América Latina – somente em 1992 o Brasil a ratificou, pelo Decreto Legislativo nº 27,
e a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH foi reconhecida

11 Supremo Tribunal Federal. Ementa do Acórdão. Relatoria: Ministro Teori Zavascki. DJE 12/02/2015 - ATA
Nº 9/2015. DJE nº 29. Para uma análise da decisão, ver DUPRAT (2018).
12 (OEA/Ser.L/V/II. Doc.9/21)
13 A demanda foi submetida à Corte IDH em 16 de março de 2016. Caso Xucuru versus Estado brasileiro.

Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf Acesso em 15/07/2019.

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somente em 1998. A mora se justificaria em razão do processo de transição brasileiro,


tanto no que concerne ao sistema político – com resquícios legislativos da ditadura –
quanto a uma ausência de cultura em direitos humanos. O reconhecimento da jurisdição
da Corte IDH se deu em meio a uma série de escandalosas violações de direitos humanos,
como os massacres do Carandiru, Eldorado dos Carajás, Corumbiara e a chacina da
Candelária (RAMOS, 2012, p. 259).
O Brasil, pelo Decreto n. 4.463 de 2002, 14 promulgou a declaração de
reconhecimento da competência obrigatória da Corte IDH para fatos posteriores a 10 de
dezembro de 1998, em consonância com o art. 62 da Convenção Americana de Direitos
Humanos. Tal aceitação tem por consequência a vinculação do Estado brasileiro e seus
poderes Legislativo, Executivo e Judiciário ao cumprimento das decisões exaradas pela
Corte.
Segundo o artigo 67 da CADH, as sentenças proferidas pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos são definitivas e inapeláveis. Não obstante, o não
cumprimento de decisões da Corte, nos termos do art. 65 da CADH, implica na inclusão
do caso, acrescido de recomendações, no relatório da Corte IDH encaminhado
anualmente à Assembleia Geral das Nações Unidas, o que objetivamente pode
representar prejuízos em âmbito internacional ao Estado, porquanto a obrigatoriedade
de basear sua política nos direitos humanos e pelas obrigações que assumira por meio de
tratados e convenções internacionais, incluindo-se o cumprimento das decisões de
tribunais internacionais cuja jurisdição tenha sido por ele reconhecida.
Essas questões desvelam uma ordem internacional na qual a igualdade entre os
Estados depende cada vez mais da adesão a valores comuns, como a observância dos
Direitos Humanos, do Estado de Direito e o respeito pela Democracia (BENHABIB, 2006).
Alguns estudos ainda têm destacado a superação do entendimento da Corte Internacional
de Justiça sobre o papel desempenhado pela jurisprudência dos tribunais internacionais
como fontes do direito. Nota-se o crescimento do papel das cortes na produção do direito
enquanto fontes do direito internacional na atual ordem global, promovendo o diálogo
entre sistemas de direito. Esse cenário, marcado por uma ênfase na solução de conflitos
por instituições da ordem global acarretaria um controle judicial e, consequentemente,
tecnocrático de pautas como os direitos humanos. As possibilidades e limitações das

14
Cf: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4463.htm, acesso em 15/07/2019.

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experiências atuais de governança transversal dos direitos humanos na América Latina se


inserem nesse contexto (TORELLY, 2016, p. 41- 52).
Por outro lado, o fenômeno da transnacionalização aponta para a discussão
sobre diversos atores no plano internacional terem se tornado fonte para o direito, seja
no plano econômico, através da regulação de mercados e atividades empresariais, seja
com relação aos direitos humanos. Atores coletivos não estatais tornaram-se
proeminentes em litígios de interesse público. A sociedade civil global desempenha, dessa
forma, papel fundamental ao dar visibilidade a violações de direitos humanos, inclusive a
partir da judicialização dos casos. Com relação aos direitos humanos dos povos indígenas
no Brasil, a litigância tem envolvido um sistema multinível e dialógico, viabilizado a partir
do ativismo transnacional da sociedade civil,15 no contexto de propulsão de uma atuação
fundada no cosmopolitismo, para a qual os direitos humanos podem servir como
processo contra hegemônico de lutas locais com potencial universalista.
Com relação aos direitos territoriais dos povos indígenas, a janela para a
litigância estratégica nas cortes internacionais se materializa a partir da proteção
transnacional desses direitos, tanto encartados como fundamentais na constituição,
como protegidos pelo direito internacional dos direitos humanos. Vejamos, pois, os
detalhes do caso Xucuru e como este dialoga com tais pressupostos.

2. Caso povo Xucuru x Brasil e o direito à propriedade coletiva

A petição referente ao caso do Povo Indígena Xucuru x Brasil foi apresentada em 16 de


outubro de 2002 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos sob a alegação de
violação do direito à propriedade coletiva e às garantias e proteções judiciais asseguradas
nos artigos 21, 8 e 25 da CADH, em virtude da mora no processo demarcação da Terra
Indígena Xucuru, localizada no Município de Pesqueira, estado de Pernambuco, e a
ineficácia judicial para a proteção desses direitos.
A Comissão expediu o relatório de admissibilidade nº 98/2009, concluindo que
o caso potencialmente representaria violação de direitos humanos, com relação aos
artigos 8, 21, 25, 1.1. e 2 da Convenção Americana, mas também aos artigos XVIII e XXIII

15
Por exemplo, conferir: TEUBNER (2013), PIOVESAN, 2017, p. 1379 e SANTOS (1997).

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da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e, em 2015, foi expedido


relatório de mérito no qual constavam recomendações ao Estado brasileiro, dentre as
quais a adoção de medidas necessárias – inclusive legislativas, administrativas ou de outra
natureza – para garantir a posse do território pelo povo Xucuru; a conclusão dos processos
judiciais então em curso que discutiam a demarcação e a posse das terras; reparação em
âmbito individual e coletivo das consequências das violações de direitos e a adoção de
medidas necessárias para evitar a ocorrência de conflitos futuros.
Em 16 de março de 2016 o caso foi submetido à Corte IDH, ante à ausência de
comprovação pelo Estado do cumprimento das cautelares, sob a alegação de violação do
direito à propriedade coletiva e integridade pessoal do Povo Xucuru em consequência da
alegada mora de mais de 16 anos (1989-2005) do processo administrativo de
identificação, delimitação e regularização fundiária de suas terras e, consequentemente,
da impossibilidade de exercício da posse plena pelo povo Xucuru sobre seu território.
Alegava-se, também, a violação dos direitos, garantias e proteção judiciais, frente à mora
na resolução de ações civis requeridas por não indígenas sobre parte das terras em
discussão, além do assassinato de sua principal liderança ao longo do processo de
reconhecimento das terras pelo Estado, o Cacique Chicão. 16
Em sua sentença sobre o caso, a Corte considerou que o art. 21 da Convenção
Americana protege o vínculo indissolúvel que os povos indígenas guardam com suas
terras e os recursos naturais nelas existentes, reafirmando entendimento consolidado em
outros casos17. Para o colegiado, apesar das noções de domínio e da posse dos povos
indígenas sobre seus territórios não corresponderem à concepção clássica de
propriedade, elas merecem a mesma proteção disciplinada no art. 21 da Convenção, já
que desconhecer versões específicas do direito ao uso e gozo dos bens informadas pela
cultura de cada povo equivaleria a afirmar que só existe uma forma de possuir e dispor
dos bens, tornando ilusória a proteção do direito de propriedade aos povos indígenas.18
Dessa forma, o art. 21 da CADH, que trata do direito fundamental à propriedade
privada, deve ser compreendido de modo reflexivo e também contemplar o direito de

16
CIDH, Relatório No. 44/15, Caso 12.728. Mérito. Povo indígena Xucuru. Brasil. 28 de julho de 2015. Para
uma reconstrução histórica da questão, ver FIALHO, NEVES e FIGUEIROA orgs. (2011).
17
Por exemplo: Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua, Corte IDH, 2001; Comunidade
Yakye Axa vs. Paraguay, Corte IDH, 2005, Caso Comunidade Indígena Xákmok Kásek. vs. Paraguay, Corte IDH,
2010 e Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, Corte IDH, 2006.
18
Corte IDH. Caso Povo Xururu e seus membros x Brasil. Sentença de 02 de fevereiro de 2018, pág. 29.

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propriedade coletiva da terra dos povos indígenas e comunidades quilombolas para


proteger o estreito vínculo que esses povos “mantêm com suas terras e seus recursos
naturais e elementos incorporais que neles se originam”19 e que são exercidos de modo
coletivo e relacionados à sua reprodução física e cultural. O vínculo desses povos com
determinada terra não é centrado no indivíduo, mas no grupo e marcado por dada
cosmologia, sistemas de pertencimento, de justiça e de organização social.20
Por outro lado, a Corte também estabeleceu que, em atenção ao princípio da
segurança jurídica aplicado ao direito internacional dos direitos humanos, é necessário
materializar os direitos territoriais dos povos indígenas a partir da adoção de medidas
legislativas ou administrativas que criem um mecanismo efetivo de delimitação e
titulação desses direitos. Ao fazê-lo, deu especial atenção à necessária estabilidade das
situações jurídicas como parte fundamental da confiança do cidadão na institucionalidade
democrática, um dos pilares essenciais “do Estado de Direito, desde que se fundamente
em uma real e efetiva certeza dos direitos e liberdades fundamentais”, conforme expõe.21
Trata-se de um reconhecimento reiterado da Corte, combinando o art. 21 da
CADH com a Convenção n. 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos
dos Povos Indígenas, assim como os direitos reconhecidos pelos Estados em suas leis
internas ou em outros instrumentos e decisões internacionais, que, em suas palavras,
constitui “um corpus juris que define as obrigações dos Estados partes na Convenção
Americana, em relação à proteção dos direitos de propriedade indígenas”.22
A jurisprudência firmada pela Corte IDH, pois, nos traz um olhar atento acerca
dos embates atuais entre distintas concepções do direito de propriedade. Uma
primeira tornada preponderante no direito e permeada por ficções que desconsideram
a própria historicidade do instituto, e outra periférica, insurgente e, pode se dizer,
considerada residual por setores majoritários da sociedade.23 Tratam-se de concepções

19
Idem, p. 29.
20
Uma análise relevante sobre a relação dos povos indígenas com suas terras e diferentes ambientes
encontra-se em KOPENAWA e ALBERT (2015). Destacamos os tópicos “falar aos brancos” e “paixão pela
mercadoria”, pp. 375-421. Outra obra relevante é KRENAK (2019).
21
Idem. p. 31
22
Idem.
23
Apesar da pluralidade histórica das formas de propriedade, observar-se-ia uma tensão no discurso jurídico,
calcada em uma ideia unívoca do instituto, que guarda relações epistêmicas em uma tensão com a ideia de
posse ou apossamento. A modernidade, podemos dizer, cristalizou um modelo jurídico singular
preponderante, com carga não só individual, mas eminente potestativa. Trata-se da operação inaugurada por

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de uso e ocupação historicamente definidas e que desafiam a própria noção de


propriedade universal e centrada no indivíduo constituída no século XIX que orienta as
normas de regularização fundiária24.
O embate entre essas distintas concepções e práticas sobre a propriedade lança,
sem dúvidas, enormes desafios aos legisladores e, sobretudo, aos magistrados. Proteger
formas específicas de se relacionar com a terra representa a proteção do próprio direito
à vida, o que não pode prescindir de efetivos diálogos interculturais.
Além de destacar o caráter específico da propriedade coletiva dos povos
indígenas sobre a terra, a Corte IDH reforça esse entendimento a partir da necessidade
de proteção aos recursos naturais e imateriais que fundamentam o vínculo desses com
seus espaços de pertença. Também reforçou que “os povos indígenas que
involuntariamente tenham perdido a posse de suas terras, e estas tenham sido
trasladadas legitimamente a terceiros de boa-fé́, têm o direito de recuperá-las”, conforme
já havia sido determinado nos casos da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai,
par. 128, da Comunidade Indígena Xákmok Kásek Vs. Paraguai, par. 109 e dos Povos Kaliña
e Lokono Vs. Suriname.25
Particularmente em relação ao caso Sawhoyamaxa vs. Paraguai, reafirmado na
sentença expedida do caso Xucuru, dois aspectos da jurisprudência são relevantes no
contexto de discussões brasileiras: se a posse constitui um requisito para o
reconhecimento pelos Estados das terras indígenas e se esses direitos possuem algum
limite temporal para o seu reconhecimento, à luz do art. 21 da CADH.
Com relação à primeira hipótese, entendeu a Corte IDH que se por um lado a
posse dos indígenas sobre as terras bastaria para o seu reconhecimento pelo Estado como
terras indígenas (Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni), por outro, a ausência
de posse decorrente de saída involuntária não poderia ser considerada como um
obstáculo ao reconhecimento do direito dos povos indígenas (Caso Comunidade
Moiwana).26

Locke ao traduzir o dominium rerum em bases individuais, transplantando a propriedade das coisas para a
lógica da propriedade intra-subjetiva, por si só absoluta, porquanto corresponde a própria vocação do ser
enquanto um direito natural (GROSSI, 2006, p. 11-12).
24
Para uma análise crítica da historiografia sobre o direito de propriedade na América Espanhola e a noção
de propriedade, ver SAAVEDRA (2020). Sobre os desafios à regularização fundiária de territórios indígenas, à
luz do Caso Xukuru, ver NÓBREGA e LIMA (2021).
25
CIDH. Caso Xucuru e seus membros vs. Brasil. Sentença de 05 de Fevereiro de 2018, p. 30.
26
CIDH. Caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai. Sentença de 29 de março de 2006, p. 72.

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Sobre eventual limitação temporal do direito de recuperação dessas terras,


concluiu a Corte IDH que este permanece indefinidamente no tempo. O que deve ser
observado, nesses casos, é a permanência do vínculo espiritual e material dos povos
indígenas com suas terras que, logicamente, não é aferido a partir de pressupostos
temporais vinculados exclusivamente ao passado, mas, sobretudo ao presente e futuro.
O critério a ser adotado é o da identidade, e a comprovação de permanência do vínculo
pode incluir o uso e presença de modo tradicional, laços espirituais e cerimoniais,
assentamentos, cultivos esporádicos, pesca, atos de coleta e usos de recursos naturais
relacionados aos seus costumes ou qualquer outro elemento característico de sua
cultura.27 Todavia, até essas formas de comprovação são relativizadas nos casos em que
os usos pelos povos indígenas dos recursos existentes não sejam possíveis em razão de
óbices impostos por terceiros, situação particularmente recorrente em terras indígenas
em disputa no Brasil.
O caso Xukuru, assim, demonstra as possibilidades de sucesso na litigância
estratégica dos povos indígenas no plano internacional, sobretudo considerando a
reafirmação da jurisprudência da Corte IDH com relação ao entendimento da
aplicabilidade do art. 21 da Convenção para o direito de propriedade coletiva dos povos
indígenas sobre as suas terras e a inexistência de perda de vínculo indissolúvel nos casos
de esbulho sofrido por essas comunidades, a qualquer tempo.
Esse entendimento com base no direito internacional dos direitos humanos e
dos povos indígenas colide com as representações recentes no plano doméstico sobre o
art. 231 da Constituição de 1988. São possibilidades de diálogo e fluxo comunicativo que
se abrem, tendo por base parâmetros cosmopolitas de justiça.

3. O cosmopolitismo e as bases de litigância para a proteção dos direitos humanos dos


povos indígenas.

A expansão dos debates sobre as implicações entre os direitos fundamentais, o direito


internacional dos direitos humanos e a recepção dessas normas como constitucionais em
âmbito doméstico pressupõe a abertura do direito constitucional, que passa de mediador

27
Idem, pág. 73, parágrafo 131. O entendimento já havia sido consolidado no Caso Comunidad Indígena
Yakye Axa.

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entre direito e política interna aos Estados para também mediador dessa no plano
internacional, superando uma lógica dualista. A dupla positividade de direitos
fundamentais, prescritos como direito constitucional nas ordens domésticas e direitos
humanos no direito internacional dos direitos humanos, resulta em processos jurídicos
transnacionais, colocando como atores constitucionais novos agentes que operam de
maneira similar ao atores constitucionais clássicos do constitucionalismo estatal
(TORELLY, 2016).
Organizações públicas e privadas, sejam domésticas ou internacionais, assim,
promovem interações perante o sistema interamericano de proteção dos direitos
humanos. São interações relevantes, considerando o complexo contexto de violações de
direitos humanos na América Latina, marcada por um número considerável de países
ainda em fase de consolidação de suas democracias e, consequentemente, pelo convívio
com uma precária tradição de respeito aos direitos humanos nos âmbitos domésticos. Por
outro lado, esses recursos também demonstram a crescente legitimidade do sistema
interamericano na proteção e promoção dos direitos humanos e os desafios para a
manutenção do padrão internacional de direitos humanos no nível regional (PIOVESAN,
2017).
Na atual fase da governança global, a partir do uso da litigância em tribunais
internacionais, o diálogo entre o direito internacional e doméstico é sensivelmente
ampliado, não somente pelos mecanismos inerentes ao controle de convencionalidade,
mas também pelo fluxo comunicativo estabelecido pelos atores não estatais de proteção
aos direitos humanos, que conformam uma sociedade civil global. A construção de um
modelo judicial de governança no direito internacional produz um rearranjo na maneira
como direitos fundamentais e coletivos são tratados, assim como nas estratégias de
mobilização para mudanças legais e políticas (TORELLY, 2016, p. 52), a partir de uma
litigância, que combina mobilização doméstica e transnacional.28
Esse contexto, favorecido por aberturas constitucionais no plano doméstico a
exemplo da Emenda Constitucional nº 45/2004, torna frutífera e desejável a ascensão de
normas cosmopolitas de justiça na América Latina, tendo em conta o processo
jurisdicional exercido pela Corte IDH. Conforme já decidido pelo STF, tanto os tratados de
direitos humanos anteriores ou posteriores à reforma integram o bloco de

28
Sobre a noção de litígio estratégico, conferir: CARVALHO e BAKER (2014).

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constitucionalidade brasileiro, independente do seu quórum de aprovação, no claro


sentido de atribuir segurança jurídica aos direitos fundamentais no país.29
Tendo por base os fluxos comunicativos de normas cosmopolitas de justiça, a
litigância internacional relativa à proteção dos direitos indígenas se aproxima das
questões suscitadas por Seyla Benhabib (2006) sobre a proeminência de normas
cosmopolitas de justiça na atual fase de governança global. A partir do debate entre
Hannah Arendt e Karl Jaspers sobre o julgamento de Adolf Eichmann e o status legal do
crime de genocídio, a filósofa promove uma reflexão sobre a ascensão das normas
cosmopolitas de justiça particularmente interessante para a compreensão do
estabelecimento do direito internacional dos direitos humanos no contexto pós 1945.
Segundo afirma, desde 1948, com a Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos Humanos, inaugurou-se uma nova fase no percurso da sociedade civil global, que
reflete uma transição no que se refere a normas internacionais de justiça cosmopolita.
Essas normas, quaisquer que sejam as condições de sua origem legal, são atribuídas aos
indivíduos como pessoas morais e legais em uma sociedade civil mundial, dotando os
sujeitos de um estatuto jurídico próprio, diferente das normas de justiça internacional
clássicas, centradas nas relações estabelecidas entre os Estados em tratados.
Mesmo que as normas cosmopolitas surjam por meio de obrigações
semelhantes às clássicas para os Estados, aproximando-as dos tratados, como a Carta das
Nações Unidas pode ser considerada para os Estados signatários, sua peculiaridade é que
elas dotam os indivíduos e não os Estados e seus agentes de certos direitos fundamentais,
inerentes à condição humana. Essa virada, ampliada no final da década de 1980,
possibilitou a construção de fluxos comunicativos que favorecem a proteção de direitos
fundamentais pela gramática dos direitos humanos e um direito público internacional que
vincula e limita a vontade das nações soberanas, não somente com relação a outros
Estados, mas sobretudo com relação à população civil (BENHABIB, 2006, p. 16).
Esse caminho pode suscitar mecanismos de luta e defesa frente a experiências
autoritárias no presente, principalmente no que se refere à aparente tensão entre
maiorias democráticas e os direitos de minorias. Por exemplo, os direitos fundamentais à
igualdade e à diferença, assegurados tanto no direito indígena e no sistema constitucional
brasileiro quanto pelo direito internacional dos direitos humanos, seriam nutridos em sua

29
Julgamento do HC 72.131-RJ pelo STF. PIOVESAN, 2008.

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semântica por princípios éticos fundamentais e dotados de necessária reflexividade, de


modo a ofertar um consenso crescente sobre as limitações da soberania estatal em dispor
de direitos fundamentais e o papel crucial do estabelecimento de diálogos interculturais.
Inspirada pela filosofia da linguagem de Derrida, Benhabib (2006) denomina
esses diálogos de iterações democráticas, enquanto processos de repetição que sempre
trazem algo de novo e enriquecem conceitos, mesmo que de modo sutil. Essas iterações
podem promover a ampliação de sentidos comuns que favoreçam o respeito à igualdade
na diferença e se tornem pressupostos para a leitura de uma série de institutos jurídicos,
como no caso da propriedade coletiva exercida por povos indígenas sobre seus territórios,
que demanda a busca por um efetivo diálogo intercultural para sua compreensão.
Benhabib nos provoca, ainda, a refletir como pode a vontade das maiorias
democráticas se reconciliar com as normas da justiça cosmopolita, de modo que normas
e padrões legais que se originam fora da vontade das legislaturas democráticas tornem-
se para estas vinculantes. Tal reflexão transcende a lógica dual entre hierarquia de normas
do direito internacional dos direitos humanos e as constituições estatais ou entre as duas
jurisdições e nos provoca sobre os pressupostos éticos dos direitos humanos em uma
perspectiva transnacional e, portanto, essencialmente reflexiva e aberta aos fluxos
comunicativos.
Trata-se de questões fundamentais para a compreensão dos limites impostos
às democracias com relação aos direitos humanos de minorias, que são protegidas
juridicamente no plano interno e no plano do direito internacional dos direitos humanos,
especialmente em face da emergência de regimes de caráter nacionalista e autoritário.
No mundo contemporâneo a relação de tensão entre a soberania dos Estados e normas
cosmopolitas tem se tornado mais evidente, fruto do paradoxo da “legitimidade
democrática”, a saber, a necessária e inevitável limitação das formas democráticas de
representação e responsabilização em termos da distinção formal entre membros e não-
membros. A promoção de atos reflexivos de autoconstituição, pelos quais os próprios
limites de povo podem ser reajustados, é relevante e favorece a expansão de normas
universalistas da ética do discurso para além das fronteiras do Estado-nação. (BENHABIB,
2006, p. 36).
Assim, as iterações democráticas podem ofertar soluções normativas para o
paradoxo da legitimidade democrática (BENHABIB, 2006, p. 45). A expectativa da autora
é que, a partir do processo de iterações democráticas, as maiorias dos próprios Estados

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se influenciem, convencidas pela validade independente das normas cosmopolitas, e


incorporem progressivamente o direito cosmopolita às normas positivas dos Estados
democráticos.
A despeito do atual cenário de emergência de governos nacionalistas, em geral
com discursos prejudiciais à ordem global e à efetivação de direitos humanos, entende-
se que essas iterações foram responsáveis por parte significativa do bloco de
constitucionalidade dos países que tiveram suas transições democráticas no final dos
1980 e ao longo da década de 1990, como o Brasil. A consolidação progressiva da
jurisprudência internacional, ao reiteradamente tratar de casos semelhantes no contexto
latino-americano, guardadas as inevitáveis e fundamentais particularidades de cada um,
promove diretrizes de proteção aos direitos humanos e aos povos originários. Desse
modo, atores não estatais, transnacionais e as cortes regionais desempenham um papel
fundamental na proteção desses direitos e no resguardo ao constitucionalismo
democrático por meio da difusão dessas normas cosmopolitas de justiça. Os povos
indígenas, assim, proporcionam novos contextos semânticos, que permitem a ampliação
do significado do direito (BENHABIB, 2006, p. 50).
É interessante ressaltar que, longe de ser puramente uma ética global, o
cosmopolitismo se refere a normas que devem governar as relações entre os indivíduos
em uma sociedade civil global. O direito à autonomia e, portanto, a afirmação da
diferença que pressupõe o princípio da igualdade, poderia ser considerado como um
exemplo. Ao analisar as características do cosmopolitismo, Kwame Anthony Appiah
esclarece a incorreção em se confundir este como o humanismo, já que o cosmopolitismo
não se contempla por uma homogeneidade global, mas a partir da celebração da
existência de diferentes modos locais de ser e existir (APPIAH, 1998, p. 7).
É certo que a construção da cidadania liberal com base no Estado-nação ensejou
um elevado custo social para minorias étnicas, a exemplo dos povos indígenas, para os
quais as identidades distintas das aspirações de autonomia nacional foram suprimidas por
Estados liberais, vistas como não integrantes dos grupos nacionais privilegiados e,
recorrentemente, como ameaças a serem combatidas ou suprimidas (KYMLICKA, 2006, p.
130). Não obstante, como nos sugere Benhabib, os direitos e outros princípios do Estado
liberal-democrático precisam ser periodicamente desafiados e rearticulados na esfera
pública a fim de reter e enriquecer seu significado original.

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Dessa forma, a condenação do Estado brasileiro no caso Xucuru, para além de


um efeito pedagógico ao Estado e de reparação àquele povo, promove a possibilidade de
reafirmação de um fluxo comunicativo a partir de normas cosmopolitas de justiça.
Vejamos quais impactos têm se desvelado, até o momento, na jurisprudência brasileira.

4. Impactos do caso do Povo Xucuru na jurisprudência atual: possibilidades de diálogo

Em sentido amplo, o papel da jurisprudência internacional sobre os direitos fundamentais


tem crescido no ambiente doméstico brasileiro como fonte do direito. O controle de
convencionalidade, por sua vez, oferece possibilidades de articulação da proteção de
direitos transnacionalmente. Apesar dos desafios, é possível notar um processo de
interação e iteração na consolidação de normas cosmopolitas de justiça, seja no discurso
e lutas dos atores não estatais, seja na jurisdição.
Esse crescente papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos na
consolidação de normas cosmopolitas de direitos humanos na América Latina não é
marcado somente por critérios de subordinação hierárquica, mas, sobretudo, pelo fluxo
comunicativo de ideias e interpretações relacionadas aos direitos humanos, considerando
a dupla positividade dos direitos fundamentais (TORELLY, 2016, p. 276). Podemos notar o
crescimento da interação argumentativa entre os sistemas doméstico brasileiro e o
regional para a proteção dos direitos fundamentais dos povos indígenas, ainda que
persistam desafios.
Apesar da consolidação de um entendimento sobre a propriedade coletiva ou
ancestral experimentada pelos povos indígenas que caracteriza a jurisprudência da Corte
Interamericana de Direitos Humanos desde meados dos anos 2000, ainda é possível notar
limitações no cenário brasileiro, como as decorrentes da interpretação restritiva
promovida pela tese do marco temporal em 2009, que implementa uma linha de corte
cronológica à caracterização do conceito de terra tradicionalmente ocupada disposto no
art. 231 da Constituição de 1988.
Em que pese o esforço argumentativo da Corte IDH referir-se ao direito de
propriedade, diferente do protegido pelo ordenamento brasileiro, que definiu a
propriedade das terras indígenas à União ressalvando a posse e o usufruto exclusivo aos
povos originários, em substância, o que se está a tratar é de elementos análogos, com a

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proteção da posse e ocupação. Os próprios tribunais brasileiros assim têm começado a


assim reconhecer.
Ao proteger a propriedade coletiva a Corte IDH deixa claro estar protegendo as
formas de propriedade no sentido de relações e usos específicos da terra, seus recursos
naturais e elementos simbólicos imprescindíveis à reprodução física e cultural de
determinado povo indígena. Dessa forma, a ideia de propriedade coletiva ganha o
contorno de uso e ocupação, nos termos da posse tradicional reconhecida pela
Constituição de 1988, e não de propriedade em termos da tradição civilista.
A Corte IDH, como exposto, também é clara ao definir a inexistência de limitação
temporal para o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas, assim como
que a posse atual não se configura como requisito inafastável (Caso Comunidade Indígena
Sawhoyamaxa) para o reconhecimento de suas terras. Nesse sentido, a jurisprudência da
Corte IDH sobre a propriedade coletiva dos povos indígenas se assemelha à teoria do
indigenato, consagrada na Constituição de 1988, já que o vinculo material ou imaterial
são suficientes para a declaração do direito dos indígenas a determinada terra, excluindo-
se contingências de ordem temporal (CARVALHO RAMOS, 2019, p. 860).
Entretanto, é a primeira vez que esse entendimento é externado em uma
condenação dirigida ao Estado brasileiro. Objetivamente, uma condenação ao Estado
chama atenção de seus agentes sobre as condutas com relação à matéria. Nesse sentido,
abre-se mais um capítulo das iterações promovidas pela interpretação da CIDH sobre o
direito dos indígenas às suas terras.
A partir de um levantamento não exaustivo no sistema de busca processual do
Supremo Tribunal Federal sobre questões envolvendo direitos indígenas e territoriais
coletivos após a expedição da sentença condenatória no caso Xucuru pela Corte IDH foi
possível verificar um uso do precedente pelo tribunal e maior interação com relação à
disciplina do direito à propriedade coletiva. Foram pesquisados os termos “corte”,
“interamericana” e “terras indígenas” e os dados foram cruzados. Vejamos alguns casos.
No julgamento da ADI 3239, realizado três dias após a expedição da sentença
condenatória do Estado brasileiro, o Supremo Tribunal Federal promoveu amplo diálogo
com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre sua
interpretação do art. 21 da CADH. A ação, requerida pelo Partido Democratas – DEM,
tinha por objetivo a declaração de inconstitucionalidade do Decreto 4.887/2003, que
regulamentou o procedimento de identificação, delimitação, demarcação e titulação das

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terras ocupadas por comunidades quilombolas no país. Em síntese, a argumentação do


partido centrava-se sob dois pontos principais: a adoção do critério da autoidentificação
para o reconhecimento desses povos pelo diploma impugnado e a sujeição das terras a
serem identificadas ao perímetro indicado pelos próprios povos interessados.30
Por maioria dos votos os pedidos foram julgados improcedentes. Na ementa do
acórdão, o STF reconheceu que o direito dos povos quilombolas à proteção de seus
territórios, assegurado pelo art. 68 do ADCT, constitui direito fundamental dos grupos
étnico-raciais minoritários e é dotado de plena eficácia e aplicação imediata. Também
recuperou o compromisso constituinte com uma sociedade livre, justa e solidária,
indutora da redução das desigualdades sociais e históricas, que conduz ao
reconhecimento dessas terras no bojo das lutas por reconhecimento de grupos com
identidades específicas. Foi reafirmado, ainda, o caráter vinculante da Convenção nº 169
da OIT, que define o critério da autoidentificação como insubstituível para tratar o
reconhecimento das identidades de povos tradicionais, declarando como
constitucionalmente legítima a adoção do critério da autoatribuição étnica, o que articula
mutuamente as dimensões individuais e coletivas de tais direitos.
É interessante que, ao aventar essas conclusões na ementa do Acórdão, o STF
consignou os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos expostos nos
casos Moiwana v. Suriname (2005) e Saramaka v. Suriname (2007) enquanto fontes do
direito, em conjunto com a interpretação sistêmica da Constituição de 1988.
Especificamente, o tribunal destacou o reconhecimento do direito de propriedade de
comunidades quilombolas e ressaltou, com base no art. 21 da CADH, o compromisso dos
Estados partes de adotar tais medidas. Apesar de não ser mencionado no Acórdão a
Sentença do caso Xucuru, entendemos ser este um percurso das iterações interpretativas
entre ambas as cortes com relação à matéria.
Em seu voto-vista, a Ministra Rosa Weber, ao ressaltar o direito fundamental
dos povos quilombolas às suas terras, destacou o caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni
(2001). Nesse caso, a Corte IDH reconheceu que a Nicarágua havia violado o art. 21 da
CADH no que concerne ao direito à propriedade coletiva do povo indígena porque, não
obstante o reconhecimento desse direito na Constituição daquele país, jamais havia sido
regulado procedimento específico para permitir seu pleno gozo. O Ministro Roberto

30
Supremo Tribunal Federal. Acórdão ADI 3239. Relatora do Acórdão, Ministra Rosa Weber. DJE 01/02/2019
- Ata nº 1/2019.

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Barroso também destacou a CADH, a partir de seu status supralegal, como fundamento
de validade do Decreto 4.887/2003 e utilizou interpretação reflexiva de seu artigo 21
conforme sustentado pela Corte IDH.
A tese do marco temporal também foi discutida em diversos votos, em que pese
uma consideração específica não ter sido caracterizada na parte dispositiva do acórdão,
o que desvela a ainda ausência de consenso na Corte sobre a questão. No acórdão sobre
os embargos de declaração opostos pela Associação dos Quilombos Unidos do Barro
Preto e Indaiá, Associação dos Moradores Quilombolas de Santana, a Coordenação das
comunidades Negras Rurais Quilombolas de Mato Grosso do Sul e outros, a questão foi
retomada.
Os embargos foram apresentados apontando suposta omissão no acórdão com
relação à inaplicabilidade do marco temporal para a titulação das terras quilombolas,
rejeitada na maior parte dos votos, e pugnavam a inserção de tal referência na ementa
do acórdão. Apesar de não terem sido reconhecidos, porquanto postulados por amici
curiae, os ministros Edson Facchin e Luís Roberto Barroso, todavia, promoveram ressalvas
e destacaram em seus votos que no julgado havia sido declarada a constitucionalidade do
Decreto 4.887/2003, que não faz qualquer menção à aplicação da tese do marco
temporal, ou seja, não impõe qualquer limite temporal como condição para o
reconhecimento de direitos, mas, tão somente, o critério da identidade. 31
Mais recentemente, no julgamento da ADI 6062, requerida pelo Partido
Socialista Brasileiro – PSB em face da MP 870/2019 que , reeditada pela MP 8886/2019,
transferia ao Ministério da Agricultura a competência para demarcação de terras
indígenas o relator, Ministro Luís Roberto Barroso, destacou que o reconhecimento e
demarcação das terras indígenas, juntamente com o reconhecimento de suas línguas,
tradições e proteção às suas expressões culturais constituem obrigações inadiáveis do
Estado brasileiro. Estas devem ser cumpridas em conjunto com os povos indígenas, em
processo “como estabelece a Declaração de Direitos dos Povos Indígenas, ‘equitativo,
independente, imparcial, aberto e transparente, em que nele se reconheçam
devidamente as leis, tradições, costumes e sistemas de usufruto da terra dos povos
indígenas’”.32 Para reforçar esse entendimento o ministro citou a condenação do Estado

31
Supremo Tribunal Federal. Acórdão Eds ADI 3239. Relatora do Acórdão, Ministra Rosa Weber. DJE
13/03/2020 - ATA Nº 28/2020.
32
ADI 6062. DJE 29/11/2019, Ata nº 182/2019.

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brasileiro pela Corte IDH no caso do Povo Xucuru, notadamente quanto ao cumprimento,
pelos processos de demarcação, das regras do devido processo legal consagradas nos art.
8 e 25 da Convenção Americana.
Na Ação Rescisória 2761, ajuizada pela comunidade indígena do Povo Kaingang
da Terra Indígena Boa Vista em face de Silvestre Chruscinski, tendo por objeto a
desconstituição do acórdão proferido nos autos do RE nº 984.335, que manteve decisão
do TRF4 que anulou o processo de demarcação da Terra Indígena Boa Vista, no Paraná, o
Ministro Barroso deferiu o pedido cautelar da comunidade indígena em 05/11/2019
valendo-se de farta jurisprudência da Corte IDH com relação à personalidade jurídica
desses povos, que possui uma dupla dimensão, garantindo-lhes tanto o direito à terra
quanto o direito de acesso à justiça, enquanto instrumento de proteção do primeiro.
Na ocasião, o ministro ressaltou o caso da Comunidade Indígena Yakye Axa vs.
Paraguai, com relação à capacidade de reivindicação dos povos indígenas, e do Povo
Saramaka vs. Suriname, no qual a corte entendeu que o reconhecimento da
personalidade jurídica é “um modo, ainda que não seja o único, de assegurar que a
comunidade, em seu conjunto, poderá gozar e exercer plenamente o seu direito à
propriedade, de acordo com seu sistema de propriedade comunal”.33
Somam-se ainda a essas manifestações decisões do Superior Tribunal de Justiça,
a exemplo da proferida em 23/04/2019 na Petição no Recurso Especial nº 1.583.946,
referente à Terra Indígena Toldo Pinhal, em Santa Catarina, na qual o Ministro Herman
Benjamin, ao defender o ingresso da comunidade indígena Kaingang no feito, ressaltou a
recente condenação do Estado brasileiro pela Corte IDH no caso Xucuru. O mesmo se
pode observar em outros processos, seja em tribunais ou juízos de primeira instância.34
Paralelamente, esse processo de iteração, com a interpretação do direito de
propriedade coletiva conforme exposta pela Corte IDH, também pode ser encontrada em
manifestações de outros atores do sistema de justiça. Seja em ações civis públicas
destinadas a compelir a União a cumprir sua obrigação constitucional para demarcação
de terras indígenas, ou em manifestações sobre outras ações e procedimentos em curso,
como se tem observado na atuação do Ministério Publico Federal.

33
Supremo Tribunal Federal Ação Rescisória 2761. DJE nº 243, de 06/11/2019.
34
São exemplos as decisões proferidas na ACP 1004249-82.2018.4.01.3200/AM, na Ação Declaratória 10917-
73.2015.4.01.3400/MG e na Apelação nº 0001220-18.2012.4.03.6000/MS. Agradecemos a Anne Heloise
Barbosa do Nascimento pela colaboração com as informações.

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Por fim destacamos que o pleno do Supremo Tribunal Federal, por


unanimidade, reconheceu repercussão geral no RE nº 1.017.365, referente à Terra
Indígena Ibirama La Klano, em Santa Catarina, com relação à definição do estatuto
jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de ocupação tradicional indígena,
à luz do art. 231 da Constituição. A decisão fundamentou-se em razão de que, a despeito
da assentada tese do marco temporal da ocupação no julgamento do caso Raposa Serra
do Sol, os parâmetros para o reconhecimento dos direitos fundamentais dos povos
indígenas às suas terras não se encontram pacificados, já que devem transcender
questões meramente possessórias ou de domínio. A condenação do Estado brasileiro no
caso Xucuru e os fundamentos da jurisprudência da Corte IDH sobre art. 21 da Convenção
Americana de Direitos Humanos serão subsídios muito relevantes para esse caso de
repercussão geral.

5. Conclusões

Buscamos apresentar como o fluxo comunicativo entre a jurisprudência da Corte


Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito dos povos indígenas e tradicionais à
propriedade coletiva, com base no art. 21 da CADH, e os entendimentos na jurisprudência
brasileira podem promover a almejada segurança jurídica das terras indígenas no Brasil e
se revelarem como processos de iterações democráticas que favoreçam a semântica da
proteção dos direitos desses povos.
A partir de uma análise dos principais instrumentos jurídicos no plano
internacional, combinados com a proteção atribuída pela Constituição de 1988 a essas
terras, pudemos verificar o duplo grau de proteção desses direitos. Fundados no direito à
identidade, o direito dos povos indígenas às suas terras é orientado pelo princípio da
igualdade que, em uma abordagem reflexiva, pressupõe o exercício da diferença e
autonomia. Essa compreensão nos permite vislumbrar como esses direitos são
alimentados por uma tradição cosmopolita de normas de justiça.
A análise do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e seu
papel na atual ordem regional de governança transversal dos direitos humanos nos
aponta para a ampliação do olhar, para além das estruturas hierárquicas relativas ao
controle de convencionalidade, decerto extremamente relevantes, às possibilidades de

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integração jurisprudencial por meio dos fluxos comunicativos e da atuação de atores


estatais e não estatais na proteção dos direitos fundamentais dos povos indígenas.
Entendemos que essas possibilidades se abrem graças à consolidação de
normas cosmopolitas de justiça, que permitem a transcendência das questões referentes
aos direitos fundamentais da esfera exclusiva do Estado-nação. Essas normas, fundadas
um estatuto jurídico global, mas não na ideia de homogeneidade ética, possibilitam a
articulação de discursos e iterações democráticas, nos termos de Seyla Benhabib, que são
fundamentais à consolidação de um regime protetivo dos direitos humanos, em especial
para os povos indígenas, e favorecem diálogos interculturais.
Essas constatações e um levantamento do impacto jurisprudencial da ainda
recente condenação do Estado brasileiro no caso Xucuru nos permitem indicar um cenário
que, se é certo que marcado por disputas, já se mostra aberto ao uso das interpretações
consolidadas na Corte IDH. Potencialmente, a sentença condenatória do caso do povo
Xucuru certamente representa um enorme ganho para os povos indígenas e fundamento
imprescindível ao debate hoje em curso sobre o regime jurídico das terras indígenas e das
garantias democráticas no Brasil.

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Sobre os autores

Manoel Batista do Prado Junior


Doutorando em Direito, Estado e Constituição na Universidade de Brasília (UnB).
Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail:
manoel.pradojunior@gmail.com, ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1677-9111

Guilherme Scotti
Professor de Teoria e Filosofia do Direito da Universidade de Brasília (UnB). Doutor e
Mestre em Direito pela UnB. E-mail: gscotti@unb.br, ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-4241-1268

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Autodeterminação ou Tutela? Uma análise do Caso Xukuru


Self-determination or Trusteeship? An analysis of the Xukuru Case

Sílvia Maria da Silveira Loureiro¹


¹ Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail:
silviamsloureiro@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2006-7910.

Dandara Viégas Dantas²


² Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail:
dandaraviegas@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8872-3315.

Jamilly Izabela de Brito Silva³


³ Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail:
jamilly.izabela@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7776-5357.

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 02/02/2022.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 525-551.


Sílvia Maria da Silveira Loureiro, Dandara Viégas Dantas e Jamilly Izabela de Brito Silva
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Resumo
O estudo busca contribuir com o aprimoramento do processo interamericano nos casos
contenciosos envolvendo povos indígenas, a partir da efetiva aplicação do princípio da
autodeterminação dos povos quanto à realização do direito à titularidade de suas terras
ancestrais. Foram utilizados o método dedutivo e o comparativo, fomentando o diálogo
entre o Direito Constitucional brasileiro e o Direito Internacional dos Povos Indígenas.
Palavras-chave: Autodeterminação; Direitos territoriais; Corte Interamericana de Direitos
Humanos.

Abstract
The study seeks to contribute to the improvement of the inter-American process in
contentious cases involving indigenous peoples, based on the effective application of the
principle of peoples' self-determination regarding the realization of the right to ownership
of their ancestral lands. Deductive and comparative methods were used, fostering the
dialogue between Brazilian Constitutional Law and International Law of Indigenous
Peoples.
Keywords: Self-determination; Territorial Rights; Inter-American Court of Human Rights.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 525-551.


Sílvia Maria da Silveira Loureiro, Dandara Viégas Dantas e Jamilly Izabela de Brito Silva
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Introdução1

Não há dúvida de que as sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos


Humanos (Corte IDH) são obrigatórias para aqueles Estados que declararam,
soberanamente, submeter-se à sua jurisdição, na forma do artigo 62 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (CADH). O artigo 68.1 da CADH, por sua vez, prevê
que “os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em
todo caso em que forem partes”. Trata-se de uma obrigação processual assumida pelos
Estados jurisdicionados, como decorrência lógica do caráter definitivo e inapelável das
sentenças interamericanas, conferido pelo artigo 67 da CADH, e sob esta obrigação
repousa o princípio fundamental pacta sunt servanda, base do Direito Internacional.
Em contrapartida, não se ignora que o cumprimento das sentenças
interamericanas é uma das etapas mais complexas do processo perante o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). De um lado, a natureza descentralizada do
Direito Internacional faz com que não haja uma coerção direta com o uso da força sobre
um Estado recalcitrante em cumprir as ordens emanadas da Corte Interamericana. Resta
ao órgão apenas indicar os casos em que um Estado não tenha dado cumprimento a suas
sentenças em relatório anual submetido à apreciação da Assembleia-Geral da
Organização dos Estados Americanos (OEA) com as recomendações pertinentes, nos
termos do artigo 65 da CADH.
De outro lado, a falta de mecanismos jurídicos e políticos internos na maior
parte dos Estados americanos2, dificulta a internalização e o cumprimento célere e
integral das sentenças interamericanas, sobretudo, no que se refere às reparações não
indenizatórias, como as medidas de reabilitação das vítimas, mudanças legislativas,
medidas contra a impunidade dos agentes públicos e particulares responsáveis diretos
pelas violações reconhecidas em sentença e a implementação de políticas públicas para
não repetição das mesmas violações em casos futuros.

1 O povo Xukuru, ao longo do tempo, já foi identificado por Sukuru, Xucuru, Shucuru, Xacururu e Xacurru.
Neste artigo, empregamos nas grafias do nome deste povo e de uma de suas principais lideranças, as
consoantes “x” e “k” em reverência ao seu modo preferencial de se auto-identificar, respectivamente, como
“Xukuru” e “Xicão”. Somente será utilizada a grafia com “c” quando for feita menção expressa à sentença da
Corte Interamericana de Direitos Humanos.
2 Veja-se nesse sentido, por exemplo, o estudo de Marcos José Miranda burgos, que examina os mecanismos

existentes no Peru, Colômbia, Argentina, México, Guatemala e Equador. Cfr.: BURGOS (2014, p. 142 e ss). A
análise das resoluções de cumprimento de sentenças interamericanas revela que as reparações indenizatórias
e as relativas à publicidade das decisões são as mais celeremente cumpridas pelos Estados.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 525-551.


Sílvia Maria da Silveira Loureiro, Dandara Viégas Dantas e Jamilly Izabela de Brito Silva
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Assim, exatamente para preparar seu relatório anual, a Corte Interamericana


desenvolveu na sua prática forense a etapa de supervisão de cumprimento de suas
próprias sentenças (BURGOS, 2014, p. 137), para zelar, através de um procedimento
dialógico entre as partes do caso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
e amici curiae, pela efetivação de suas determinações, em rodadas periódicas de
prestação de contas dos pontos resolutivos cumpridos ou pendentes de cumprimento
pelo Estado.
Seguindo essa práxis, no caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros vs.
Brasil, julgado pela Corte IDH em 05 de fevereiro de 2018, o Ponto Resolutivo nº 12
consignou que o Estado deveria, no prazo de um ano, contado a partir da notificação da
Sentença, apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para seu
cumprimento, determinando no Ponto Resolutivo nº 13 que este caso estará sujeito à
supervisão de cumprimento da sentença pela Corte IDH até que o Estado dê cabal
cumprimento ao nela disposto.
Em observância ao acima disposto, em Resolução datada de 22 de novembro de
2019, a Corte IDH pronunciou-se da seguinte forma no primeiro ciclo de supervisão de
cumprimento da sentença do Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros vs. Brasil:
1. Declarar, de acordo com o estabelecido nos Considerandos 5 a
7 da presente Resolução, que o Estado deu cumprimento total às medidas de
divulgação e publicação da Sentença e seu resumo oficial (ponto resolutivo
décimo da Sentença).
2. Manter aberto o processo de supervisão de cumprimento das
seguintes medidas de reparação, as quais, conforme o disposto no
Considerando 3 da presente Resolução, serão avaliadas em resolução
posterior:
a) garantir, de maneira imediata e efetiva, o direito de
propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, de modo
que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, por parte de
terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o
uso ou o gozo de seu território (ponto resolutivo oitavo da Sentença);
b) concluir o processo de saneamento do território indígena
Xucuru, com extrema diligência, efetuar os pagamentos das indenizações por
benfeitorias de boa-fé pendentes e remover qualquer tipo de obstáculo ou
interferência sobre o território em questão, de modo a garantir o domínio
pleno e efetivo do povo Xucuru sobre seu território, em prazo não superior a
18 meses (ponto resolutivo nono da Sentença);
c) pagar as quantias fixadas a título de indenização por dano
imaterial (ponto resolutivo décimo primeiro da Sentença); e
d) pagar as quantias fixadas a título de custas (ponto resolutivo
décimo primeiro da Sentença).
3. Dispor que o Estado apresente à Corte Interamericana de
Direitos Humanos, o mais tardar em 21 de fevereiro de 2020, um relatório
sobre todas as medidas pendentes de cumprimento.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 525-551.


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Dispor que os representantes das vítimas e da Comissão apresentem


observações sobre o relatório do Estado mencionado no ponto resolutivo
acima, nos prazos de quatro e seis semanas, respectivamente, contados a
partir do recebimento do relatório.

Como se denota, o Estado brasileiro, sem fugir ao padrão do que geralmente


ocorre nos demais Estados da Região em termos de cumprimento das sentenças
interamericanas (BURGOS, 2014) (ORTIZ, 2018), logrou efetivar celeremente as medidas
de publicidade e divulgação da decisão. Quanto à parte indenizatória, encontrou-se
resistência por parte do próprio povo indígena à constituição de um fundo de
desenvolvimento comunitário a partir do pagamento da quantia de US$1.000.000,00 (um
milhão de dólares), a título de indenização por dano imaterial sofrido pelos membros do
Povo Xukuru, tendo aquiescido a Corte IDH, nos pontos 4 a 7 da supramencionada
resolução, que o Estado procedesse ao pagamento diretamente à associação designada
pelo povo indígena Xukuru. De acordo com a pesquisa de Franco Neto (2020, p.221) no
Portal da Transparência do Governo Federal, foi identificado como tendo sido realizado
um primeiro pagamento em 21 de janeiro de 2020, no valor de R$ 4.117.871,00, e um
segundo pagamento, em 03 de fevereiro de 2020, no valor de R$ 65.498,12 referente a
pagamento complementar da sentença e das custas do caso, no total de US$ 15.405,16.
Nesse contexto, o presente artigo propõe uma análise aprofundada das
possíveis causas jurídicas do descumprimento da sentença interamericana no Caso do
Povo Indígena Xukuru, focando na análise dos obstáculos do direito interno brasileiro em
face do princípio da autodeterminação e do direito de propriedade coletiva dos territórios
indígenas estabelecido pela interpretação do artigo 21 da CADH na jurisprudência da
Corte IDH.
Para tanto, em primeiro lugar, será destacada a necessidade de
aperfeiçoamento do procedimento dos casos contenciosos perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos para garantir um verdadeiro protagonismo aos
povos indígenas sem retrocessos à tutela da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos em situações como a da ausência de apresentação do Escrito de Solicitações,
Argumentos e Provas (ESAP)3. Em seguida, a partir da obrigação contida no art. 2º. da

3 Previsto no art. 36 do Regulamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que dita: notificada a
demanda à suposta vítima, seus familiares ou seus representantes devidamente acreditados, estes disporão
de um prazo improrrogável de 2 meses para apresentar autonomamente à Corte suas petições, argumentos
e provas.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 525-551.


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CADH, será demonstrado que a normativa interna brasileira é insuficiente para assegurar
o gozo e exercício do direito à propriedade coletiva indígena, no marco de um processo
simples, rápido e efetivo, particularmente no que tange à Instrução Normativa da FUNAI
n.º 2/2012. Por fim, será discutida a contradição existente entre o ponto resolutivo 9 da
sentença em análise e a previsão constitucional brasileira de atribuição da titularidade
das terras indígenas como bens da União e não do povo indígena coletivamente.
Para a realização da presente pesquisa, os principais métodos utilizados serão o
dedutivo e o comparativo, fomentando o diálogo entre o Direito Constitucional brasileiro
e o Direito Internacional dos Povos Indígenas. No mais, o procedimento será o
bibliográfico-documental e a estratégia de abordagem será o caso selecionado (Povo
Indígena Xucuru e seus Membros vs. Brasil).
A partir dos estudos propostos, serão oferecidas contribuições para o
aprimoramento do processo interamericano em relação a casos contenciosos envolvendo
povos indígenas e com maior efetividade da aplicação do princípio da autodeterminação
dos povos quanto à realização do direito à titularidade de suas terras ancestrais.

1. Os povos indígenas como protagonistas do processo interamericano:


autodeterminação ou tutela no caso do povo indígena Xukuru?

Ainda que a Convenção 169 da OIT4 não se refira especificamente ao direito à


autodeterminação5 dos povos indígenas e tribais, o referido tratado internacional prevê
expressamente que os povos interessados devem ter “o direito de escolher suas próprias
prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele
afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que
ocupam ou utilizam de alguma forma”, além dos direitos de “controlar, na medida do
possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural” e de “participar da

4 Internalizada ao ordenamento jurídico brasileiro por intermédio do Decreto Legislativo nº. 143, de 20 de
junho de 2002 e do Decreto Presidencial nº. 5.051, de 19 de abril de 2004.
5 A própria Convenção 169 da OIT previu expressamente que “a utilização do termo ‘povos’ na presente

Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que
possam ser conferidos a esse termo no direito internacional”. Conforme Anjos Filho (2013, p. 594), “a forte
resistência histórica dos Estados em geral em reconhecer que os povos indígenas são titulares do direito à
autodeterminação tem origem exatamente no temor de que esse direito represente uma séria ameaça à
integridade territorial estatal, pois frequentemente a forte identidade cultural dos povos indígenas é vista
com desconfiança e como possível indicação do desejo de secessão”.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 525-551.


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formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional


e regional suscetíveis de afetá-los diretamente” (art. 7.1)6.
No mais, também se encontra assegurado no texto da Convenção 169 da OIT o
direito à consulta prévia, livre, informada e de boa-fé aos povos indígenas e tribais sempre
que o Estado preveja medidas que possam afetá-los diretamente. A referida consulta
deve ocorrer “mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas
instituições representativas”, garantindo-se que sejam estabelecidos os meios através
dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma
medida que outros setores da população e em todos os níveis, bem como que sejam
fornecidos mecanismos de “pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos
povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim” (art. 6º.)7.
Nesses termos, a Convenção 169 da OIT, diferentemente de sua antecessora, a
integracionista Convenção 107 da OIT8, encontra-se embasada na concepção de
autonomia dos povos indígenas, a qual é facilmente visualizada a partir de três direitos
assegurados no seu texto, a saber,: o direito a autoidentificação, “no sentido de que são
os próprios indígenas quem devem aferir sua condição de ser indígena, sem que esta seja
feita de maneira heterônoma por outros agentes” (OLIVEIRA e ALEIXO, 2014, p. 4); o
direito de participação dos povos nos órgãos que tratem sobre questões indígenas e; o
direito à consulta prévia, livre, informada e de boa-fé.
Os principais parâmetros da Convenção 169 da OIT, portanto, estão associados
“[a]o respeito aos povos indígenas na qualidade de comunidades de sujeitos políticos, a
promoção de seus direitos em igualdade aos demais membros da população de um

6 Aqui, cabe uma ressalva. Apesar do texto do art. 7º., item 1, da Convenção 169 da OIT conter a expressão
“direito de escolher” na tradução para o português anexa ao Decreto 5.051/2004, os textos do mesmo artigo
nas versões oficiais em inglês (“right to decide”), espanhol (“derecho de decidir”), francês (“droit de décider”)
contém expressões análogas à expressão “direito de decidir”. Tal imprecisão na tradução possui implicações
relevantes para a análise do alcance do direito à autonomia e ao autogoverno assegurados pela Convenção.
7 A previsão contida no art. 6º. deve ser lida em conjunto com as previsões análogas de consulta contidas no

art. 7º, item 1, já citado, e nos arts. 15 (direito à consulta em relação à exploração de recursos naturais), 16
(direito à consulta em relação à remoção/translado de povos indígenas de suas terras) e 17 (direito à consulta
em relação à transmissão de terras)
8 Sobre o caráter integracionista, manifestam-se Oliveira e Aleixo (2014, p. 3-4): “Além da ideia de que os

povos não tinham completado o estágio adequado de desenvolvimento, que repousava sob a noção de
integração, [na Convenção 107 da OIT] há também a questão da ‘proteção’ às populações [...] que [...] deveria
ser promovida pelos Estados nacionais signatários, inclusive sugerindo a criação de um órgão específico para
tratar do assunto. No Brasil, a ‘proteção’, com fundamento na Convenção 107 da OIT aliada ao Código Civil
de 1916, ainda vigente na época, assumiu feições de tutela, o que foi posteriormente criticado por
indigenistas e lideranças indígenas [...]”.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 525-551.


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determinado Estado e [à] garantia da integridade de suas práticas culturais tradicionais”


(DINO, 2014, p. 497-498).
Assim, a partir deste tratado internacional, aplicável ao sistema interamericano
de proteção aos direitos humanos nos termos do art. 29, “b” da CADH9, encontra-se
consolidado, em favor dos povos indígenas e tribais, tanto uma “autodeterminação como
escolha de futuro”, a qual não se confunde com o direito de constituir-se como Estado,
quanto o direito “de serem consultados sempre que qualquer medida, ato ou ação da
sociedade hegemônica possa interferir no ser social ou sua territorialidade” (SOUZA
FILHO, 2019, p. 22).
Mais que isso: com a adoção da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos
dos Povos Indígenas (2007) e da Declaração Americana sobre os direitos dos Povos
Indígenas (2016), o direito à livre determinação passou a ser expressamente assegurado
no art. 3º. dos dois instrumentos e no art. 4º. da Declaração das Nações Unidas, in verbis:
Declaração Americana. Art. III. Os povos indígenas têm direito à livre
determinação. Em virtude desse direito, definem livremente sua condição
política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e
cultural; [...]

Declaração das Nações Unidas. Art. 3º. Os povos indígenas têm direito
à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua
condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico,
social e cultural. [...]
Art. 4 Os povos indígenas, no exercício do seu direito à
autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões
relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos
meios para financiar suas funções autônomas.

Com essas considerações, e após analisar a tramitação do caso do Povo Indígena


Xukuru na Corte Interamericana de Direitos Humanos, são identificadas, pelo menos, três
situações que podem ser configuradas como violações ao direito à autodeterminação,
especialmente porque, no caso em destaque, o Povo Indígena Xukuru – enquanto
coletividade – deve ser apontado como vítima.
Em primeiro lugar, para acessar o sistema interamericano de proteção aos
direitos humanos não são exigidas maiores formalidades, sendo que qualquer pessoa ou
grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou

9Art. 29. Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: [...] b) limitar o gozo e
exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer
dos Estados-Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados;

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mais Estados-membros da OEA pode apresentar à Comissão petições em seu próprio


nome ou em nome de terceiros sobre suposta violação de algum dos direitos humanos
reconhecidos nos tratados internacionais que compõem o referido sistema (art. 23, do
Regulamento da Comissão Interamericana)10. A apresentação de uma petição pode ser
feita, inclusive, via e-mail. Além disso, a Corte IDH já se posicionou no Capítulo VI da
Opinião Consultiva nº. 22 pelo direito de peticionamento dos povos indígenas e tribais,
na condição de sujeitos coletivos, perante o Sistema Interamericano (Corte IDH, 2016, pp.
27-29).
A mesma flexibilidade, contudo, não é aplicada quando, tal qual ocorreu no caso
do Povo Indígena Xukuru, não há a apresentação do escrito de petições, argumentos e
provas (ESAP). É certo que o Regulamento da Corte Interamericana prevê expressamente
que (1) ao submeter o caso à Corte, a Comissão deve indicar “os nomes, endereço,
telefone, correio eletrônico e fac-símile dos representantes das supostas vítimas
devidamente credenciados, se for o caso” (art. 35.1, “b”) e; (2) quando notificados sobre
a submissão do caso, os representantes das supostas vítimas devem confirmar o endereço
no qual se considerarão oficialmente recebidas as comunicações pertinentes (art. 39.5).
Todavia, na hipótese das vítimas ou seus representantes não comparecerem ou
se abstiverem de atuar, a única previsão contida no regulamento determina que “a Corte,
ex officio, dará impulso ao processo até sua finalização” (art. 29.1) e, ainda, que as partes
que se apresentarem tardiamente, “ingressarão no processo na fase em que o mesmo se
encontrar” (29.2)11.
No caso do Povo Indígena Xukuru, a Corte Interamericana, diante da ausência
de apresentação de ESAP por parte dos representantes das vítimas, fato que, por óbvio
traz enormes prejuízos à sua participação, de forma autônoma, durante todo o processo,
conforme assegura seu regulamento (art. 25.1)12, limitou-se a consignar que os

10 Disposição análoga consta no art. 44 da Convenção Americana de Direitos Humanos: “qualquer pessoa ou
grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-Membros
da Organização, pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta
Convenção por um Estado-Parte”.
11 Artigo 29. Procedimento por não comparecimento ou falta de atuação. 1. Quando a Comissão, as vítimas

ou supostas vítimas, ou seus representantes, o Estado demandado ou, se for o caso, o Estado demandante
não comparecerem ou se abstiverem de atuar, a Corte, ex officio, dará impulso ao processo até sua
finalização. 2. Quando as vítimas ou supostas vítimas, ou seus representantes, o Estado demandado ou, se
for o caso, o Estado demandante se apresentarem tardiamente, ingressarão no processo na fase em que o
mesmo se encontrar.
12 Artigo 25. Participação das supostas vítimas ou seus representantes. 1. Depois de notificado o escrito de

submissão do caso, conforme o artigo 39 deste Regulamento, as supostas vítimas ou seus representantes

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representantes não apresentaram seu escrito, apesar de terem informado que a


organização Justiça Global atuaria como copeticionária do caso (vide parágrafo 7 da
sentença).
Assim sendo, em razão de aspectos meramente procedimentais que poderiam
ser facilmente corrigidos, seja a partir da realização de intimação pessoal das vítimas – e
não somente de seus representantes previamente credenciados –, seja com a designação
de defensor público interamericano13, providências que poderiam suprir a
hipossuficiência das vítimas, a Corte Interamericana conduziu todo o procedimento sob
sua jurisdição considerando exclusivamente os argumentos e as recomendações trazidas
pela Comissão Interamericana por ocasião da apresentação de seu Relatório de Mérito.
Em suma, fazendo uma comparação com o direito processual brasileiro, é como
se o processo que tramitou na Corte Interamericana tivesse sido decidido sem a
apresentação de petição inicial por parte das vítimas, não tendo sido adotada nenhuma
providência para garantir que os principais interessados (o povo indígena Xukuru)
estivessem efetivamente participando do processo.
Todavia, no caso do Código de Processo Civil brasileiro (CPC/2015), a decretação
da revelia (situação equivalente à previsão de ingresso tardio com o recebimento do
“processo na fase em que o mesmo se encontrar” presente no art. 29.2 do Regulamento
da Corte) somente ocorre quando o réu, e não o autor, citado pessoalmente, não
apresenta defesa. Ainda assim, os efeitos de tal procedimento que, repise-se, ocorre
somente em relação ao réu, não não se manifestam quando o litígio versa sobre direitos
indisponíveis (arts. 344, 345, II e 346)14.
Logo, o procedimento adotado pela Corte Interamericana ao dar continuidade
à tramitação no caso sem a apresentação do ESAP e sem providenciar a designação de,
pelo menos, uma curadoria às vítimas, papel que poderia ser assumido pela defensoria
pública interamericana, representa um contrassenso diante de sua própria atuação em
diversas oportunidades, quando fez uso do princípio do iura novit curia ou, ainda

poderão apresentar de forma autônoma o seu escrito de petições, argumentos e provas e continuarão
atuando dessa forma durante todo o processo.
13 Artigo 37. Defensor Interamericano. Em casos de supostas vítimas sem representação legal devidamente

credenciada, o Tribunal poderá designar um Defensor Interamericano de ofício que as represente durante a
tramitação do caso.
14 Art. 344. Se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações

de fato formuladas pelo autor. Art. 345. A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se: [...] II - o
litígio versar sobre direitos indisponíveis; {...] Art. 346. Os prazos contra o revel que não tenha patrono nos
autos fluirão da data de publicação do ato decisório no órgão oficial. Parágrafo único. O revel poderá intervir
no processo em qualquer fase, recebendo-o no estado em que se encontrar.

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embasou sua tomada de decisão na busca da verdade real a partir da realização de


diligências efetivas.
De fato, ao se limitar a dar continuidade ao feito sem garantir a participação
direta do Povo Indígena Xukuru, a Corte Interamericana viola, inclusive, o direito à
autodeterminação já reconhecido pelo próprio Sistema Interamericano, deixando de
garantir ao referido povo a autonomia e o autogoverno das questões relacionadas ao seu
diferenciado modo de viver.
Também deve ser registrado que, por não ter apresentado ESAP e por não ter
tido representação processual, seja por representante credenciado, seja por defensor
público interamericano, o Povo Indígena Xukuru que, de acordo com o Regulamento da
Corte, tem o direito de participar ativamente – e de forma autônoma – da tramitação do
caso, acabou sendo meramente tutelado pela CIDH, fato que além de denotar a
dissonância da tramitação do caso com a ratio que guiou as alterações do Regulamento
da Corte para viabilizar a participação direta e autônoma das vítimas, tem particular
impacto no caso das vítimas que são povos indígenas.
Somente na audiência pública, e por ocasião da apresentação de alegações
finais, o Povo Indígena Xukuru pôde trazer à Corte os argumentos e provas relacionados
à necessidade de adequação da legislação brasileira aos ditames da CADH,
especificamente no que se refere ao direito de propriedade assegurado aos povos
indígenas e, ainda, às violações da integridade física e psíquica dos Xukuru em razão do
assassinato do Cacique Xicão e, ainda, das tentativas de assassinato do Cacique
Marquinhos.
Assim, o procedimento adotado pela Corte Interamericana inviabilizou a análise
das violações relacionadas aos arts. 2º. e 5.1, da Convenção Americana de Direitos
Humanos, além de encontrar resistência expressa ao modo de efetivação do pagamento
da indenização outorgada a título de dano imaterial, através de um fundo de
desenvolvimento comunitário que pode ser exitoso em vários países latino-americanos,
mas não encontrou acolhida pelo Povo Xukuru que já dispõe de uma associação
constituída.
Em particular, o presente estudo demonstrará nas próximas seções que, ao não
ouvir a voz do Povo Indígena Xukuru, cerceando-lhes oportunidade de apresentar seu
Escrito de Solicitações Argumentos e Provas, a Corte IDH atraiu para si o enorme risco de
sentenciar sem conhecer as particularidades brasileiras em termos de direitos territoriais

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indígenas. De um lado, a Corte IDH não dispôs de elementos para aprofundar questões
cruciais como os entraves normativos do processo de saneamento (ou desintrusão) das
terras indígenas brasileiras. De outro lado, a Corte IDH limitou-se a aplicar sua
jurisprudência, acerca da interpretação do artigo 21 da CADH, sem enfrentar a antinomia
constitucional brasileira que, apesar de reconhecer direitos originários aos povos
indígenas, não lhes confere a titularidade coletiva das terras que tradicionalmente
ocupam.

2. A Insuficiência da IN FUNAI N.º 02/2012 relativa à desintrusão dos territórios


indígenas

A Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o processo administrativo de


titulação, demarcação e desintrusão15 do território dos Xukuru foi parcialmente ineficaz,
especialmente no que diz respeito à violação do direito à garantia judicial de prazo
razoável, bem como do direito à proteção judicial e do direito à propriedade coletiva
previstos, respectivamente, nos artigos 1.1, 25 e 21 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos16 (CADH).
Muito embora tenha reconhecido a parcial ineficácia do referido processo, a
Corte entendeu que o Brasil não incorreu na violação do art. 2 da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, que prevê o seguinte:

15 No âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a desintrusão é conhecida como


“saneamento”, nomenclatura vista com certa frequência nas sentenças da CtIDH. Por tal motivo, ambas são
utilizadas como sinônimos no presente estudo.
16 Art. 1.1. Obrigação de respeitar os direitos. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a

respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que
esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião,
opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento
ou qualquer outra condição social. Art. 25. Proteção judicial. 1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples
e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra
atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela constituição, pela lei ou pela presente
Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas
funções oficiais. 2. Os Estados Partes comprometem-se: a. a assegurar que a autoridade competente prevista
pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso; b. a
desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e c. a assegurar o cumprimento, pelas autoridades
competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso. 21. Direito à propriedade
privada. 1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao
interesse social. 2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de
indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos
pela lei. 3. Tanto a usura como qualquer outra forma de exploração do homem pelo homem devem ser
reprimidas pela lei.

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Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno


Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda
não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os
Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas
constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas
ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e
liberdades.

Isso porque, como já dito, os representantes dos Xukuru deixaram de


apresentar seu ESAP, ventilando extemporaneamente em sede de alegações finais, que
normas internas padeceriam de vícios, como a falta de prazo para conclusão das etapas
do processo de demarcação, reconhecimento e titulação, exceto no que diz respeito ao
prazo de 30 dias para o registro do título de propriedade no Registro de Imóveis,
provocando a falta de segurança jurídica e o atraso no processo administrativo de
demarcação do território indígena.
A Corte observou que nem a Comissão Interamericana nem os representantes
das vítimas apontou de maneira precisa quais as normas supostamente violadas, ou a
omissão, que seriam incompatíveis com a Convenção Americana, nem foi salientada em
que sentido essa norma deveria ser modificada para cumprir o disposto no art. 2º desse
Diploma.
Esse cenário reforça a ideia da necessidade de aprimoramento do procedimento
de casos contenciosos perante a Corte, a fim de que não haja retrocessos para garantir
um efetivo protagonismo aos povos indígenas, em situações como a da ausência de
apresentação do ESAP.
Exemplo pujante de violação ao art. 2º da CADH, no caso em comento, diz
respeito à insuficiência da normativa brasileira que regulamenta o processo de
desintrusão das terras indígenas, correspondente à etapa que objetiva assegurar
efetivamente a esses povos o gozo e exercício do direito à propriedade coletiva, previsto
no art. 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
É insuficiente a demarcação dos territórios tradicionais sem que esta seja
acompanhada de um efetivo processo de desintrusão, isso porque mesmo que a terra já
esteja demarcada e registrada os indígenas não conseguem obter a posse plena da área.
A desintrusão ou saneamento pode ser conceituado da seguinte forma
(TORUÑO, 2013, p.7):
“O saneamento é a obrigação que tem o Estado e as instituições
competentes de resolver jurídica e/ou administrativamente a situação de
terceiras pessoas, naturais ou jurídicas, distintas das comunidades, que

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alegam direitos de propriedade e que estão assentadas de forma legal ou


ilegal em um território indígena ou afrodescendente” (tradução livre)

O fato de uma terra indígena já se encontrar registrada em nome da União não


dispensa o Estado da sua obrigação de saneá-la, e não priva a comunidade indígena do
seu direito de solicitar ao Estado para que este realize a desintrusão do território
(TORUÑO, 2015, p. 164).
Vale frisar que a ausência de desintrusão cria muitos casos de “terras de papel”,
pois as áreas são reconhecidas pelo Poder Executivo, muito embora permaneçam por
anos ainda nas mãos de terceiros enquanto os indígenas continuam a amargar prejuízos
de toda ordem (CAVALCANTE, 2013, pp. 49-50).
O saneamento deve executar-se em harmonia com a vontade democrática dos
membros das comunidades que integram o território onde será efetivada a desintrusão.
Esse parâmetro está em consonância com o que dispõe a Declaração das Nações Unidas
sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 13 de setembro de 2007, pois prevê que eles
têm direito à livre determinação, autonomia e autogoverno nas questões relacionadas
aos seus assuntos internos e locais, como constam nos já citados arts. 3º e 4º do referido
documento.
Nesse mesmo sentido, consoante já registrado, a Declaração Americana sobre
os Direitos dos Povos Indígenas, de 2016, garante em seu art. 3º, o direito dos povos
indígenas à livre determinação, e que em virtude dele definem livremente sua condição
política e perseguem seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
No Brasil, atualmente encontra-se em vigor a Instrução Normativa FUNAI n.º 02,
de 3 de fevereiro de 2012 (IN FUNAI n.º 02/2012), que regulamenta a desintrusão de
terceiros das terras indígenas, prevendo o pagamento de indenização pelas benfeitorias,
e estipulando também que aprovado o pagamento dos valores, deve ser providenciada a
notificação pessoal de cada ocupante para recebê-los e deixar a área no prazo de 30
(trinta) dias.
No que diz respeito à desintrusão do território indígena Xukuru, o Brasil
informou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA, 2015, p. 5), que o
levantamento das ocupações não indígenas foi concluído em 2007, indicando a existência
de 624 (seiscentos e vinte e quatro) ocupações. O Estado informou ainda, que entre os
anos de 2001 a 2005, a FUNAI havia pago indenizações a 296 (duzentos e noventa e seis)

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ocupantes não indígenas. O Brasil destacou ainda que, em meados de 2010, 90% dos
ocupantes não indígenas já haviam sido indenizados e retirados da área.
No tocante ao quantitativo de áreas ainda ocupadas por não indígenas, consta
que até a sentença da Corte no caso do Povo Xukuru (OEA, 2018, p. 21), datada de 5 de
fevereiro de 2018, 45 (quarenta e cinco) ex-ocupantes não indígenas ainda não haviam
sido indenizados, e que segundo o Estado brasileiro, estariam em contato com as
autoridades para receber o pagamento pelas benfeitorias de boa-fé. Além disso, 6 (seis)
famílias não indígenas permaneciam dentro da terra indígena, totalizando uma área de
160,43 hectares.
Assim, a Corte decidiu que, apesar do limitado número de ocupantes não
indígenas quando da prolação da sentença, o Estado deveria garantir de maneira imediata
e efetiva o direito de propriedade coletiva do povo Xukuru sobre seu território, de modo
que não sofresse nenhuma invasão, interferência ou dano por parte de terceiros ou
agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso e o gozo de seu
território, bem como que fosse realizada a desintrusão da parcela das áreas que
permanecem em posse de terceiros e efetuados os pagamentos pendentes de
indenizações por benfeitorias de boa-fé (OEA, 2018, p. 49).
Consta da Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de
novembro de 2019, referente à fiscalização do cumprimento da sentença, que ainda se
encontra em aberto o processo de supervisão quanto à medida de reparação pertinente
ao saneamento do território Xukuru, pagamento das indenizações e remoção de
eventuais óbices sobre a área em questão, em prazo não superior a 18 meses, findado em
12 de setembro de 2019, o que reforça a extrema relevância da presente análise.
Antes do advento da IN FUNAI n.º 02/2012, a desintrusão era regida pelas
Portarias do mesmo órgão de n.º 69/89 e n.º 165/89, sendo que esta última instituiu a
comissão permanente para análise das benfeitorias, e ambas se encontram atualmente
revogadas pelo novel instrumento normativo. O ponto em comum entre elas é o fato de
que preveem o direito de indenização dos terceiros ocupantes de terras indígenas quanto
às benfeitorias úteis e necessárias implantadas de boa-fé.
O procedimento instituído para tanto está previsto no art. 8º da IN FUNAI n.º
02/2012, e prevê que será realizado na seguinte ordem: (a) vistoria das ocupações e das
benfeitorias, (b) avaliação, (c) análise técnica preliminar, (d) deliberação, (e) recurso, (f)
julgamento e, finalmente, (h) pagamento.

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Na fase de vistoria, tem-se que o titular das benfeitorias passíveis de


indenização deve apresentar os comprovantes relativos à sua implementação, aquisição
ou construção, além da autorização dos órgãos competentes, quando exigíveis por lei,
somado aos comprovantes de quitação dos encargos sociais pertinentes, sempre que a
legislação previdenciária assim o requerer.
Em seguida, para cada laudo de vistoria é realizado um laudo de avaliação, de
responsabilidade da Coordenação Geral de Assuntos Fundiários. Outra novidade trazida
pela atual IN diz respeito ao pagamento das benfeitorias pelo seu valor de mercado. E
quando não for possível realizar o pagamento dessa maneira, será utilizado o método de
reedição da benfeitoria, que é o cálculo do valor pelo material usado para sua construção,
depreciado de acordo com o estado de conservação. Além disso, a FUNAI não pagará
lucros cessantes nem expectativa de valorização (FUNAI, 2012, p.1).
O próximo passo é submeter o procedimento à análise preliminar por técnico
da Diretoria de Proteção Territorial, designado pela Comissão Permanente de Análise de
Benfeitorias, a fim de elaborar relatório instruído com a documentação e informações
fornecidas pelos setores fundiário e antropológico da FUNAI.
O relatório técnico a ser elaborado deve conter o resumo do processo de
identificação e delimitação da TI, o histórico da ocupação não-indígena, o levantamento
fundiário e informações conclusivas sobre o marco temporal, para consideração da boa-
fé, devem ser indicadas também as benfeitorias passíveis de indenização e sugestão de
eventuais providências complementares.
Adiante o processo é encaminhado para deliberação da Comissão Permanente
de Análise de Benfeitorias, cujas decisões são tomadas pelo voto da maioria de seus
membros, que pode solicitar a reavaliação delas, determinar diligências, análise técnica
ou jurídica ou concordar com a avaliação previamente realizada.
Concluída a deliberação, a Diretoria de Proteção Territorial baixará uma
resolução com o extrato da decisão, que deve ser publicada no Diário Oficial da União e
encaminhada às prefeituras municipais da situação do imóvel, com a recomendação de
ampla divulgação.
A IN FUNAI n.º 12/2012 inova ao estabelecer uma fase de recursos, prevendo
um prazo de 30 (trinta) dias para sua apresentação após a deliberação da Comissão
Permanente de Análise de Benfeitorias. O referido prazo não era previsto nas Portarias
anteriores.

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Antes de ser submetido à consideração da Presidência do órgão indigenista, o


procedimento deve ser encaminhado à Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI,
a fim de manifestar-se conclusivamente quanto à regularidade procedimental e eventuais
recursos interpostos. Em seguida, a Presidência decidirá acerca da indenização das
benfeitorias e os recursos que, porventura, tenham sido interpostos, autorizando seu
pagamento ou devolvendo o procedimento à Comissão Permanente de Análise das
Benfeitorias, a fim de que sejam reavaliados os valores ou tomadas outras diligências que
julgue necessárias.
Quando da aprovação do pagamento da indenização pela Presidência, ou
havendo ocupantes sem direito à indenização, a Diretoria de Proteção Territorial deve
providenciar a notificação pessoal de cada ocupante, e deixar a área no prazo de 30
(trinta) dias. Esgotado o prazo sem a retirada desses terceiros, a Diretoria de Proteção
Territorial adotará as providências necessárias visando à desocupação, podendo solicitar
auxílio da Polícia Federal.
Importa destacar que as benfeitorias serão indenizadas somente se ainda
existirem no momento do pagamento e pelo estado de conservação em que se
encontrem. Além disso, a IN FUNAI n.º 02/2012 prevê que deve ser dada prioridade à
indenização das benfeitorias de menor valor e que integrem os bens de subsistência do
seu titular e às benfeitorias que estiverem situadas em áreas de permanente tensão
social, bem como aquelas em que os ocupantes são maiores de 60 anos e aos portadores
de deficiência ou doença grave.
Neste ponto cumpre frisar que no caso do povo Xukuru, o pagamento das
indenizações iniciou-se a partir das benfeitorias de menor valor. Os indígenas solicitaram
que fosse invertida a ordem para que pagassem aquelas de maior valor prioritariamente,
tendo em vista que estes ocupantes eram os que constituíam o principal óbice para que
os Xukuru gozassem da terra.
Tem-se que a IN n.º 02/2012 prevê, explicitamente, a indenização e
desocupação das áreas ocupadas por terceiros como forma de realizar a desintrusão das
terras tradicionalmente ocupadas, sem prejuízo da possibilidade de adoção de outras
medidas que a FUNAI entender cabíveis.
Apesar da previsão desses mecanismos para realizar o saneamento dessas
terras indígenas, a IN FUNAI n.º 02/2012 não fixa prazos para o cumprimento de suas
etapas, com exceção do prazo para a desocupação dos terceiros depois de notificados e

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para a apresentação de recursos após a deliberação da Comissão de Avaliação de


Benfeitorias, o que faz com que a desintrusão seja arrastada por anos a fio, conduzida ao
livre talante da FUNAI, prorrogando a situação dos indígenas de não poder gozar
efetivamente dos direitos originários sobre suas terras.
A partir da análise ora realizada, fica claro que a normativa interna que
regulamenta a desintrusão de terras indígenas está em conflito com o art. 21 da CADH,
eis que é insuficiente para garantir o direito à propriedade coletiva previsto neste último,
tendo o Estado brasileiro incorrido na violação ao art. 2º da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, no que diz respeito à necessidade de adotar medidas legislativas ou de
outra natureza necessárias a efetivar os direitos previstos no Pacto de San José, o que
reforça a necessidade de aperfeiçoamento do procedimento de casos contenciosos
perante a Corte, no intuito de impedir retrocessos e efetivar os direitos dos povos
indígenas.

3. O direito de propriedade coletiva dos povos indígenas e o marco constitucional


brasileiro

O final do Ponto Resolutivo nº 9 da sentença em análise, após estabelecer o dever de


desintrusão do território indígena dos Xukuru pelo Estado brasileiro, acrescenta que este
processo de retirada dos não índios deve ser procedido de modo a garantir o domínio
pleno e efetivo do povo Xukuru sobre seu território, em prazo não superior a 18 meses,
nos termos dos parágrafos 194 a 196 da Sentença.
Para os fins da análise proposta para a presente seção, destaca-se o que a Corte
IDH consignou em seus parágrafos 195 e 196:
195. Com respeito à sentença de reintegração de posse favorável a Milton do
Rego Barros Didier e Maria Edite Barros Didier, caso a negociação em curso
informada pelo Estado, para que recebam uma indenização por benfeitorias
de boa-fé [...] não prospere, conforme a jurisprudência da Corte, o Estado
deverá avaliar a possibilidade de sua compra ou a expropriação dessas terras,
por razões de utilidade pública ou interesse social.
196. Caso, por motivos objetivos e fundamentados, não seja,
definitivamente, material e legalmente possível a reintegração total ou
parcial desse território específico, o Estado deverá, de maneira excepcional,
oferecer ao Povo Indígena Xucuru terras alternativas, da mesma qualidade
física ou melhor, as quais deverão ser contíguas a seu território titulado, livres
de qualquer vício material ou formal e devidamente tituladas em seu favor.
O Estado deverá entregar as terras, escolhidas mediante consenso com o

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Povo Indígena Xucuru, conforme suas próprias formas de consulta e decisão,


valores, usos e costumes. Uma vez acordado o exposto, essa medida deverá
ser efetivamente executada no prazo de um ano, contado a partir da
notificação de vontade do Povo Indígena Xucuru. O Estado se encarregará das
despesas decorrentes do referido processo bem como dos respectivos gastos
por perda ou dano que possam sofrer em consequência da concessão dessas
terras alternativas.

A Corte IDH, no caso de impasse entre o interesse de particulares e o direito


reconhecido sobre os territórios ancestrais do Povo Indígena Xukuru propôs três
alternativas: a) compra, b) desapropriação por razões de utilidade pública ou interesse
social e c) oferta excepcional de terras alternativas da mesma qualidade física ou melhor,
as quais deverão ser contíguas a seu território titulado, livres de qualquer vício material
ou formal e devidamente tituladas em seu favor.
Essas alternativas propostas pela Corte IDH foram construídas ao longo de sua
jurisprudência sobre casos de povos indígenas e tribais em países da América Latina e do
Caribe, com regimes jurídicos diferentes daquele adotado pelo Brasil em relação ao
processo de demarcação e titulação de uma terra como indígena, à outorga de
titularidade à União e ao reconhecimento da importância vital desses territórios para a
sobrevivência física e espiritual para essas sociedades tradicionais.
Quanto ao primeiro aspecto, já amplamente tratado na seção anterior deste
estudo, cabe apenas refletir, neste passo, se a compra ou a desapropriação por razões de
utilidade pública ou interesse social seriam soluções viáveis à luz da realidade brasileira.
Primeiramente, tanto a compra quanto a desapropriação esbarram no mesmo problema
orçamentário do pagamento das benfeitorias recorrente nos processos de demarcação
de terras indígenas. A desapropriação, na modalidade proposta pela Corte IDH, requer,
especificamente, a justa e prévia indenização em dinheiro, nos termos do artigo 5º., XXIV
da Constituição Federal de 1988, a saber:
Art. 5º. (omissis)
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e
prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta
Constituição;

Frise-se que, para a efetivação desta modalidade de desapropriação, cujas


hipóteses estão previstas na lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, a indenização deve
ser paga ao expropriado de forma prévia, justa e em dinheiro, a menos que a hipótese se
enquadre em imóvel que descumpra a política urbana ou a política agrária e fundiária

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constitucionalmente estabelecida, quando a indenização será feita em títulos da dívida


pública ou agrária, respectivamente, na forma dos artigos 182,§4º, III17 e 18418 da
CF/1988.
Nesse sentido, a adoção de uma normativa mais severa para a desintrusão das
terras indígenas, no caso de grandes propriedades improdutivas, incluiria a
desapropriação por interesse público, na qual o terceiro não indígena discutiria o valor de
sua indenização, em títulos da dívida agrária, fora da área desapropriada. Todavia, deve
ser lembrado que a pequena e média propriedade rural são insuscetíveis de
desapropriação para fins de reforma agrária (artigo 185, II da CF/1988). Nestes casos de
pequenos colonos, poderia ser firmado convênio com o Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária - INCRA, a fim de disponibilizar áreas para o reassentamento dessas
famílias.
Mesmo assim, a vantagem do procedimento de desapropriação proposto pela
Corte IDH está na celeridade que seria imprimida ao processo de desintrusão da terra
indígena demarcada, uma vez que a União, enquanto ente público expropriante, poderia
requerer a imediata imissão provisória na posse, e a discussão sobre a justeza do valor
indenizatório previamente depositado em juízo poderia ser feita judicialmente pelo
particular expropriado, a posteriori, assegurada desde já a posse do povo indígena sobre
seu território19 previamente demarcado.
Quanto ao segundo aspecto, ou seja, a titularidade coletiva das terras indígenas,
há uma condição irreconciliável entre a determinação da Corte IDH e a previsão
constitucional do artigo 231 da CF/1988. O artigo 20, XI da Carta Maior estabelece que
“as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” são bens da União. Já o § 2º. do artigo
231 determina que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua

17 Dispõe o artigo 182, § 4º, III; “É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
(...) III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada
pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas,
assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”
18 Dispõe o artigo 184: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o

imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da
dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do
segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. § 1º As benfeitorias úteis e necessárias
serão indenizadas em dinheiro.”
19 Vide artigo 15 do Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941.

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posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes”.
Por essa razão, no caso dos Xukuru, causa perplexidade a parte final do Ponto
Resolutivo nº 9 acima mencionado, pois, a persistir a resistência dos terceiros não índios,
esta seria a hipótese de uma terra indígena transcrita em cartório de imóveis em benefício
do próprio povo e não da União. Esse excerto é a demonstração da profunda contradição
entre a jurisprudência da Corte de San José, alinhada ao que dispõe o artigo 14(1) da
Convenção 169 da OIT20, e o regime constitucional da propriedade dos territórios
indígenas no Brasil. Apesar do caput do artigo 231 da Constituição de 1988 reconhecer
aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, não
confere seu domínio aos povos indígenas.
Segundo Silva, o regime constitucional de outorga das terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios como bens da União justifica-se da seguinte forma:
“A outorga constitucional dessas terras ao domínio da União visa
precisamente preservá-las e manter o vínculo que se acha embutido na
norma, quando fala que são bens da União as terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios, ou seja, cria-se aí uma propriedade vinculada ou
propriedade reservada com o fim de garantir os direitos dos índios sobre ela.
Por isso são terras inalienáveis e indispensáveis e, os direitos sobre ela,
imprescritíveis.” (destaques no original) (SILVA, 1993, P. 46)

Em que pese o intuito protetivo explicitado por Silva, de certa forma, a


colocação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como bens da União (artigo
20, XI da CF/1988) é uma herança herdada da Constituição de 1967 (artigo 4º, IV) e da
Emenda Constitucional nª 01 de 1969 (artigo 4º., IV) que maculou o instituto do
indigenato, igualmente defendido por SILVA (1993, pp. 45-50) como sendo a raiz e
substrato do reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas constantes do
caput do artigo 231, pois, segundo o citado autor:
“Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e
o reconhecimento dos seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram
que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição
jurídica luso-brasileira que deita suas raízes nos primeiros tempos da Colônia,
quando o alvará de 1 de Abril de 1680, confirmado pela lei de 6 de junho de
1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria

20 Dispõe o artigo 14(1):“Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse
sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas
medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente
ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de
subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos
agricultores itinerantes.”

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sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.”21


(destaques no original) (SILVA, 2007, p. 858)

Acerca do terceiro aspecto apontado, como leciona SILVA (1993, p. 47), a base
do conceito de “terras tradicionalmente ocupadas” tem como base quatro condições,
“todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha”, que fundamentam o reconhecimento
da relação intrínseca entre os povos indígenas e seu território, a saber:
“1ª.) serem por eles habitadas em caráter permanente; 2ª) serem por eles
utilizadas para suas atividades produtivas; 3ª.) serem imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; 4ª.) serem
necessárias a sua reprodução física e cultural, tudo segundo seus usos,
costumes e tradições, de sorte que não se vai tentar definir o que é habitação
permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das
condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do
modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso
gosto, mas segundo o modo de ver deles, da cultura deles.” (destaques no
original) (SILVA, 1993, p. 47)

Por essas razões, a oferta de terras alternativas deve ser vista com muita
cautela, pois, por mais que a Corte IDH se cerque de condicionantes como a consulta do
povo indígena afetado, sua implementação significa o rompimento dos laços de tradição
do povo indígena com seu território, o que entra em colisão com a interpretação do artigo
21 da CADH estabelecida pelo Tribunal no caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni (Corte IDH,
2001).

Conclusão

A luta do movimento indígena internacional, iniciada na década de 1970, trouxe como


resultado principal a aprovação da Convenção 169 da OIT, tratado internacional que, ao
se centrar na concepção de autonomia e autogoverno dos povos indígenas e tribais,
assegura a esses povos que, enquanto sujeitos epistêmicos, defendam a proteção jurídica
de suas cosmovisões e reafirmem sua autodeterminação, enxertando o referencial
ocidental do Direito Internacional dos Direitos Humanos com doses de diversidade
advindas do “Outro” até então silenciado.

21 SILVA, José Afonso da. Ob. cit. p. 858.

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O direito à autodeterminação dos povos indígenas, igualmente, já foi devidamente


reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que, ao se utilizar das
disposições da Convenção 169 da OIT, nos termos do art. 29, “b”, da CADH, construiu uma
interpretação inventiva do art. 21 para assegurar o direito à propriedade comunal aos
povos originários de Abya Yala22.
É certo, todavia, que, por questões meramente procedimentais afetas à tramitação
do caso na Corte IDH, esse direito à autodeterminação pode não ser devidamente
assegurado. Como se viu, no caso do Povo Indígena Xukuru, a ausência de apresentação
de ESAP e, principalmente, a ausência de atuação proativa da Corte Interamericana,
fincada na busca da verdade real a partir da realização de diligências efetivas, além de
tornar menos protagonista a participação autônoma das vítimas, acarretou o não
enfrentamento de diversas violações da CADH cruciais para o caso em concreto e para os
milhares de casos que poderiam se servir da força da interpretação que poderia ter sido
feita pela Corte IDH.
Exemplo disso é a normativa brasileira que rege o procedimento de desintrusão das
terras indígenas (IN FUNAI n.º 02/2012), pois não fixa prazos para o cumprimento de suas
etapas, com exceção do lapso de 30 dias para a desocupação dos terceiros depois de
notificados e o período para a apresentação de recursos após a deliberação da Comissão
de Avaliação de Benfeitorias, o que faz com que o saneamento do território tramite por
longos anos, conforme o interesse estatal.
Dito isso, a IN FUNAI n.º 02/2012 é insuficiente para garantir o direito à
propriedade coletiva previsto no art. 21 da CADH, tendo o Estado brasileiro incorrido na
violação ao art. 2º da CADH, no que diz respeito à necessidade de adotar medidas
legislativas ou de outra natureza necessárias a efetivar os direitos previstos no Pacto de
San José.
Entretanto, tal violação deixou de ser reconhecida no caso do povo Xukuru, o
que pode ser atribuído à ausência da apresentação do ESAP ou da própria falta de atuação
diligente da Corte, conforme já destacamos, o que reforça a necessidade de
aperfeiçoamento do procedimento de casos contenciosos perante o mencionado órgão,
no intuito de impedir retrocessos e efetivar os direitos dos povos indígenas.

22A utilização da expressão Abya Yala é feita em oposição ao nome América, e tem como objetivo realçar a
construção de um sentimento de unidade e pertencimento entre os povos originários. Cfr. PORTO-
GONÇALVES, 2009.

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Por fim, com a restrição imposta à ampla discussão do caso do Povo Xukuru
perante a Corte IDH, foram ditadas pelo Tribunal de San José medidas reparatórias de
difícil implementação pelo Estado brasileiro, em razão das diferenças internas entre o
regime jurídico da propriedade das terras indígenas no Direito brasileiro em relação a
vários países da América Latina que admitem a propriedade coletiva dos territórios
indígenas, o que sequer pode ser aprofundado no caso concreto.
É necessário, portanto, dar voz aos povos indígenas e tribais, de forma efetiva,
no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, para que, autonomamente, possam
expressar seus argumentos independentes, produzir suas provas e deduzir suas
pretensões reparatórias, de acordo com suas peculiares formas de ser e de viver.

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Sobre as autoras

Sílvia Maria da Silveira Loureiro


É Doutora em Direito (área de concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional)
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atua como professora do Curso de
Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Escola Superior de
Ciências Sociais da Universidade do Estado do Amazonas (ESO/UEA), nas áreas de Direito
Constitucional e Direito Internacional. Desenvolve atividades de pesquisa e extensão na
Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da ESO/UEA. É graduada em Direito pela
Universidade Federal do Amazonas (UFAM), possui especialização em Direito Processual
pelo Instituto Superior de Administração e Economia da Amazônia/Fundação Getúlio
Vargas e Mestrado em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB). ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2006-7910 Correio eletrônico: silviamsloureiro@gmail.com.

Dandara Viégas Dantas


É Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas, Especialização
em Direito do Saneamento pela Universidade de Lisboa, Especialização em Direito
Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, Graduação em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco e Graduação em Relações Internacionais pela
Faculdade Integrada do Recife. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8872-3315 Correio
eletrônico: dandaraviegas@hotmail.com

Jamilly Izabela de Brito Silva


É Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Atua como
Agente Técnico-Jurídico do Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM), colabora
com os trabalhos da Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da Universidade do
Estado do Amazonas (CDHDA-UEA) e é pesquisadora do Grupo de Pesquisa CNPq "Direitos
Humanos na Amazônia". Possui Especialização em Direitos Humanos pela Faculdade de
Ciências e Tecnologias de Campos Gerais, em pareceria com o Círculo de Estudos pela
Internet (FACICA-CEI), Especialização em Direito Civil e Direito Processual Civil e em Direito
Público, ambas pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA) e
Graduação em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas, com Habilitação em
Direito Internacional. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7776-5357. Correio eletrônico:
jamilly.izabela@gmail.com

As autoras contribuíram igualmente para a redação de artigos.

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A Nulidade do Registro do Imóvel Caípe


The Nullity of the Caípe Property Registry

Ela Wiecko Volkmer de Castilho¹


¹ Universidade de Brasília, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail: wiecko@unb.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-7215-5755.

Manoel Lauro Volkmer de Castilho²


² Ordem dos Advogados do Brasil - OAB-DF, Brasília, Distrito Federal, Brasil. E-mail:
mlvdcastilho@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1172-398X.

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 02/02/2022.

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Resumo
Tendo em vista a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o Caso do
Povo Indígena Xucuru e seus membros vs. Brasil (2018), o artigo demonstra a nulidade do
registro imobiliário do imóvel rural Caípe, encravado na Terra Indígena Xucuru, à luz das
Constituições de 1891 e de 1934, bem como analisa os discursos presentes nos autos, na
ótica da teoria da colonialidade do poder de Aníbal Quijano.
Palavras-chave: Terra Indígena Xucuru; Imóvel particular; Nulidade.

Abstract
In view of the judgment of the Inter-American Court of Human Rights on the Case of the
Xucuru Indigenous People and their members vs. Brazil (2018), the article demonstrates
the nullity of the real estate registration of the Caípe rural property, located in the Xucuru
Indigenous Land, in light of the Constitutions of 1891 and 1934, as well as analyzes the
discourses present in the records, in light of Aníbal Quijano's theory of the coloniality of
power.
Keywords: Xucuru Indigenous Land; Private Property; Nullity.

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Introdução

O “Grupo Tribal Xucuru”, em litisconsórcio com a Funai e a União, foi demandado por
Milton do Rego Barros Didier e Maria Edite Mota Didier, em ação possessória (Ação de
Reintegração de Posse n. 92.0002697-4 9ª VF SJ/PE), dizendo-se donos do imóvel rural
denominado Caípe, com área de 300 ha, encravada num todo maior de ocupação indígena
tradicional, identificado, delimitado, demarcado (1995), homologado como Terra
Indígena Xucuru (Decreto Presidencial de 30/4/2001) e registrado no ofício imobiliário de
Pesqueira, no agreste pernambucano, em 18/11/2005. A sentença da justiça federal em
favor dos Didier, em 24/7/1998, foi confirmada, em maio de 2003, pelo Tribunal Regional
Federal da 5ª Região. Não foram providos, no STJ, o Recurso Especial n. 646.933, em 6/11/
2007, e, em instância final no STF, o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n.
738.012. Em 2014, transitou em julgado a sentença, desde então executável de maneira
definitiva a qualquer momento.
O judiciário brasileiro, em todas as instâncias, considerou que os indígenas
perderam a posse da Fazenda Caípe antes da Constituição de 1934, não havendo
evidência que por fraude ou violência, e vieram a esbulhar posse de não indígenas em
fevereiro de 1992.
Diante disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 5/2/2018,
determinou que:
[...]
195. Com respeito à sentença de reintegração de posse favorável a Milton do
Rego Barros Didier e Maria Edite Barros Didier, caso a negociação em curso
informada pelo Estado, para que recebam uma indenização por benfeitorias
de boa-fé não prospere, conforme a jurisprudência da Corte, o Estado deverá
avaliar a possibilidade de sua compra ou a expropriação dessas terras, por
razões de utilidade pública ou interesse social.
196. Caso, por motivos objetivos e fundamentados, não seja,
definitivamente, material e legalmente possível a reintegração total ou
parcial desse território específico, o Estado deverá, de maneira excepcional,
oferecer ao Povo Indígena Xucuru terras alternativas, da mesma qualidade
física ou melhor, as quais deverão ser contíguas a seu território titulado, livres
de qualquer vício material ou formal e devidamente tituladas em seu favor.
O Estado deverá entregar as terras, escolhidas mediante consenso com o
Povo Indígena Xucuru, conforme suas próprias formas de consulta e decisão,
valores, usos e costumes. Uma vez acordado o exposto, essa medida deverá
ser efetivamente executada no prazo de um ano, contado a partir da
notificação de vontade do Povo Indígena Xucuru. O Estado se encarregará das
despesas decorrentes do referido processo bem como dos respectivos gastos
por perda ou dano que possam sofrer em consequência da concessão dessas
terras alternativas.

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O acórdão do TRF/5ª Região é objeto da Ação Rescisória n. 0801601-


70.2016.4.05.0000. Busca-se rescindir a sentença porque ela reconheceu a posse civil com
base em um registro de propriedade de 1969, cuja cadeia sucessória que remonta a 18851
não foi comprovada legitimamente.
Portanto, atualmente, concorrem sobre o imóvel dois registros imobiliários e
neste artigo iremos, de um lado, demonstrar porque é inválido o registro imobiliário em
nome do casal Didier, à luz da Constituição de 1891 e da legislação vigente em 1934, data
da Constituição Federal que, pela primeira vez, tratou das terras destinadas aos indígenas.
De outro lado, valendo-se da teoria decolonial de Aníbal Quijano, apontaremos a
colonialidade de poder expressa nos discursos dos autores da ação de reintegração de
posse e dos julgadores, bem como nos documentos constantes dos autos. Ela reproduz o
padrão de poder do sistema capitalista mundial eurocentrado, estabelecido a partir do
século XVI.

A invalidade do registro de propriedade n. 4.472 do Ofício de Imóveis de Pesqueira, de


1938

Para julgar procedente a reintegração de posse do imóvel rural Caípe em favor do casal
Didier, foi valorizado o registro imobiliário de uma aquisição por escritura pública lavrada
em 24/1/1969, outorgada por Joaquim Mota Valença e sua mulher, que haviam adquirido
o imóvel de Praxedes Didier, Milton do Rêgo Barros Didier e Walter do Rêgo Barros Didier
e outros, conforme escritura pública de 10/10/1938, transcrita no ofício de imóveis sob
n. 4.472, f. 67v/68, Livro 3-K, em 11/10/1938 (BRASIL,1992, f. 484). Certidão no verso
declara que deixa de enviar a sucessão dominial desde 1891, por não haver
assentamentos dessa época2.
O desembargador relator na apelação cível afirmou ser “inviável comprovar,
seja por testemunhas, seja por perícia antropológica que, em 1934, os indígenas
exerciam, em plenitude a posse sobre a Fazenda Caípe, embora seja induvidoso que os
mesmos habitam a região há bastante tempo”. Optou “partir da presunção, não afastada,
de que os títulos que conferiram a propriedade (ou, pelo menos, a posse) do bem aos

1Na ementa do acórdão consta 1895.


2 A Funai nos autos da
ação rescisória explica, no item 60 da inicial, que no século XX os inventários de imóveis
eram realizados sem os títulos originários, com presunção juris tantum de veracidade.

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suplicantes [casal Didier] e àqueles que os antecederam, são autênticos e merecedores


de fé pública” (BRASIL, 1999, p. 724).
Todavia, os títulos apresentados, examinados à luz da legislação vigente à
época, são fortemente questionáveis e indicam a apropriação mediante fraude de terras
indígenas. Se na data da promulgação da Constituição de 1934 os indígenas não se
encontravam no imóvel, a presunção é de que haviam sido esbulhados e não de que
houvera uma transferência legítima a particulares. Como será relatado a seguir, os
indígenas do aldeamento de Cimbres, que incluía o sítio Caípe, reclamaram reiteradas
vezes contra o arrendamento de suas terras promovidas pelo diretor Coronel Cândido
Pereira de Brito, da Diretoria dos Índios em Pernambuco.
O casal Didier alega que, em 1885, o Coronel André Bezerra do Rego Barros
adquiriu o sítio Caípe dos antigos proprietários das terras, que exerciam posse mansa e
pacífica há mais de 40 anos. O bem foi atribuído, por testamento, datado de 2/4/1906,
para três herdeiros. O testamento foi convertido em inventário, em 30/4/1906, sendo
destinado um quinhão hereditário no Sítio Caípe para Marieta do Rego Barros, que veio a
ser a mãe de Milton do Rego Barros Didier (BRASIL, 1992, f. 463)3.
Entretanto, consta nos autos registro documental de 1880, de que mais de uma
dezena de sítios, entre eles o Sítio Caípe do aldeamento de Cimbres, estava arrendada
(BRASIL, 1992, f. 208-209). A transferência para o domínio particular, em 1885, de terras
que eram de um aldeamento indígena, só poderia ocorrer pelo desmembramento das
terras do patrimônio público – o que não houve.
Vejamos onde ficavam essas terras e o que revelam documentos do Arquivo
Público do estado de Pernambuco. O imóvel, atualmente chamado de Caípe, corresponde
à parte do Sítio Caípe4, no território que, em informações de 1944, abrangia, de modo
geral, no sentido leste-oeste, do Brejo da Madre de Deus à proximidade de Arcoverde; e
no sentido norte-sul, da região limítrofe aos estados da Paraíba e Pernambuco (OLIVEIRA,
1993, p. 66). O mesmo território que se sabia habitado pelos Jacurus Shucuru, Surucucu
ou Xucuru.Encontramos informações mais precisas nas referências sobre a Congregação
do Oratório da Madre de Deus5, que, em terras doadas pelo governo da Capitania de

3 Certidão do Cartório do 2ºOfício de Pesqueira, de 9/2/1996 (BRASIL, 1992, f. 463).


4 Na reportagem do Jornal do Comércio de Recife, de 26/2/1992, o imóvel invadido do fazendeiro Milton
Didier é chamado de Caípe de Baixo, localizado na Serra de Ororubá (BRASIL, 1992, f. 18).
5 A Congregação do Oratório de São Filipe Néri foi uma ordem religiosa fundada em Pernambuco no século

XVII pelo padre João Duarte do Sacramento, que veio de Portugal acompanhado do padre João Victória. Seu

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Pernambuco, era responsável pela Missão Ararobá, de catequese aos índios. Assim,
“documentos oficiais, em meados do século XVIII, apontam a colonização da região
iniciada a partir da vila de Cimbres, local anteriormente denominado de Aldeia Ararobá,
que servira como ponto de catequese de vários grupos indígenas locais por
aproximadamente dois séculos” (OLIVEIRA, 1993, p. 66).
A vila de Cimbres tem origem no aldeamento de Cimbres, criado em 1749 e
extinto em 1879. Antes disso, em 1836, a sede da Vila de Cimbres fora transferida para a
Povoação de Pesqueira. Relatório publicado no Diário de Pernambuco, em 1873, refere-
se a esse aldeamento como “uma das maiores propriedades dos índios” desta província,
situada na serra do Urubá6, comarca do Brejo da Madre de Deus (BRASIL, 1992, p. 324).

Terras dos índios na Serra do Ororubá e as outras terras da Congregação do Oratório,


em 1813. Mapa de José da Costa Pinto (WIKIPÉDIA).

Edson Hely Silva (2011, p. 184) reporta que:


Em registros históricos, consta que, por volta de 1671, o Pe. Sacramento
fundou, no “Ararobá” (Serra do Ararobá), uma aldeia de índios Xukuru

objetivo era estabelecer missões para catequizar índios no interior da capitania. Os padres atuaram no
interior de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, tendo desempenhado um papel religioso, político e
educacional importantíssimo na antiga Capitania. A congregação foi extinta em 1830 (IPHAN, 2007).
6 Nos documentos encontramos as designações Arubá, Orubá, Urubá, Ararobá. Todas se referem à região

geográfica atualmente mais conhecida como Ororubá. Lúcia Gaspar (2020) explica que o nome da serra
Ororubá possui diversas origens e significados: seria uma corruptela de uru-ybá – fruta dos urus,
onomatopaico de várias pequenas perdizes; viria de "orouba", uma palavra oriunda do cariri; seria de origem
tupi, vindo de uru-ubá – fruta do pássaro ou ser corruptela de arara-ubá ou, ainda, poderia dizer respeito à
expressão designativa da primeira tribo tapuia-cariri localizada na serra.

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Ela Wiecko Volkmer de Castilho e Manoel Lauro Volkmer de Castilho
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(Medeiros, 1993, p. 51-53). Em 1762, no local onde existia o antigo


aldeamento do Ararobá, chamado de Nossa Senhora das Montanhas, e
conhecido também como Monte Alegre, foi fundada, como determinava o
Diretório Pombalino, na Serra do Ororubá, a Vila de Cimbres, nome de uma
povoação portuguesa no Distrito de Viseu. A partir desta data e por todo o
século XVIII, na documentação da Câmara de Cimbres, encontram-se
frequentes registros sobre os indígenas do antigo aldeamento do Ararobá.

Esse mesmo autor, na sua tese de doutorado, registra que, em 1777:


a “Lista e translado do caderno das avaliações dos dízimos desta vila de
Cimbres”, além de citar a presença de indígenas em diversas localidades das
terras que compreendem o aldeamento, apresenta um esboço da produção
econômica dos aldeados. São relacionados nomes de índios do sexo
masculino, possivelmente correspondendo a chefes de famílias, que
cultivavam milho, produziam farinha e criavam gado em apenas uma das
localidades relacionadas. (Fiam/CEHM, 1985, p.146-149). No “Sítio Caípe” são
citados 15 indígenas [...] (SILVA, 2008, p. 113).

Comprovado, pois, que o Sítio Caípe fazia parte do aldeamento de Cimbres,


sendo importante para a compreensão do que se expõe a seguir.
Documentação do Arquivo Público do estado de Pernambuco (APE) informa
que, em 1861, foram relacionados no aldeamento de Cimbres 861 índios,
correspondendo a 238 famílias, total que, em 1881, baixou para 276 índios, decréscimo
explicado pela dispersão ocasionada pela rigorosa seca que assolava a região7. Houve
também, em 1865, o alistamento de 82 índios de Cimbres, como voluntários da pátria na
Guerra do Paraguai (BRASIL, 1992, p. 205).
Nessa época os aldeamentos eram geridos por um diretor local conforme previa
a legislação do Diretório dos Índios. Um documento de 1879 referenda uma
representação dos índios de Cimbres, denunciando o procedimento do diretor, que
arrendara terras da aldeia quando eles haviam se retirado em consequência da seca
(BRASIL, f. 205).
A extinção dos aldeamentos e, em especial do de Cimbres, era uma providência
desejada pela Câmara Municipal de Cimbres. Um ano antes da extinção, o Engenheiro
Luis José da Silva enviou ofício ao Desembargador Francisco d’Assis Oliveira Maciel,
presidente da Província, ponderando que:
A extinção do referido aldeiamento é indispensável, porém a distribuição dos
terrenos como desejam os senhores da Câmara Municipal de Cymbres; além
de absurda, é iníqua. Este ato da Câmara Municipal de Cymbres, ainda uma
vez veio justificar que a extinção das aldeias é considerada por muita gente

7 A seca que assolou o Nordeste nos anos 1877-1879 é considerada uma das 10 maiores secas da história daquela região.

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extinção dos índios, e por todos os meios a seu alcance, procuram


amedrontá-los para que eles temendo contínuas perseguições, abandonem
suas terras e sejam elas invadidas pelos usurpadores (BRASIL, 1992, f. 211).

Edson Hely Silva (2011, p. 184-185) refere que, no APE, Cód. Petições, fls.18-
23v., encontrou um abaixo-assinado contendo 192 assinaturas de índios da extinta Aldeia
de Cimbres, em Pesqueira, datado de 25 de fevereiro de 1885, para o presidente da
província. No longo texto que antecede os nomes dos signatários:
eles apelam para o senso de justiça da autoridade provincial, pedindo
providências para “fazer cessar as perseguições de que são vítimas”.
Informavam os índios que as terras públicas, onde eles se encontravam,
estavam sendo invadidas por “verdadeiros intrusos”. Os índios se ocupavam
“exclusivamente do trabalho da agricultura” para se manter e denunciavam
as invasões das terras por fazendeiros. A exemplo de um fazendeiro que,
fugindo da seca na Paraíba, ocupara uma das áreas mais férteis na Serra do
Ororubá, com seu gado destruindo as roças dos indígenas que, por serem
pobres, estavam sendo explorados e não eram ouvidos em suas queixas,
pelas autoridades policiais [...].
Os índios afirmavam que, com a extinção do aldeamento (1879), o Governo
Imperial determinara “a demarcação dos terrenos que lhe eram
pertencentes”. Mas, embora tendo sido publicados os editais, pela Tesouraria
da Fazenda, para propostas de agrimensores executores da medição, até
aquela data ela não fora reconhecida, sendo as terras invadidas por
“intrusos”, fazendeiros criadores de gado, destruidores das lavouras dos
índios, “para que assim os suplicantes perseguidos abandonem as suas
antigas e legítimas posses!!”. No documento, lembravam ainda os índios que
Manoel Felix Santiago, superando “sérias dificuldades”, fora “pessoalmente”
procurar o Imperador, tendo sido orientado para se dirigir ao Ministro da
Fazenda e este recomendara ao Presidente da Província tomar as
providências necessárias para retirar os “intrusos” que invadiram as terras do
antigo aldeamento.

A afirmação da necessidade da delimitação e demarcação das terras do


aldeamento acompanhava cada denúncia contra posseiros e arrendamentos na área,
conforme registros levantados.
Em 1879, foi indeferido um cálculo do agrimensor Carlos Camillo Coutim sobre
as terras de Cimbres. E uma proposta de demarcação, em 1885, não se realizou por não
constar verba específica na lei dos orçamentos (BRASIL,1992, f. 207).
De modo que, constata Silva (2011, p. 185):
A pesquisa documental demonstrou que a extinção oficial, em 1879, do
antigo Aldeamento de Cimbres, consolidou o domínio dos fazendeiros, de
longa data invasores nas terras da Serra do Ororubá. Uma ou outra família
indígena ficou com a propriedade de pequenos pedaços de terras,
insuficientes para a sobrevivência. Vários depoimentos comprovam essa
situação. A exemplo do relatado pela índia Laurinda Barbosa dos Santos,
conhecida por “Dona” Santa, moradora na atual Aldeia Caípe. Seus pais

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nasceram na “Serra”, o pai em Pendurado e a mãe em Caípe, local onde,


depois de casados, moraram e viveram. “Dona” Santa afirmou ainda que
trabalhou na roça desde os 8 anos. Questionada se os moradores e parentes
vizinhos tinham terras para plantar, ela afirmou: “Tinham bem pouquinha!
Porque não podia comprar. Naquele tempo tudo era comprado e ninguém
podia, os pais de nós não podia que era tudo pobrezinhos. Só vivia
trabalhando no alugado que era para dar de comer aos filhos. Era terras dos
fazendeiros”.

A tese de Edson Silva, além da pesquisa documental, valeu-se da memória


oralizada pelos habitantes mais antigos do território Xucuru. Assim, a partir dos vários
depoimentos pôde compreender que,
em face às pressões, ameaças e perseguições, muitas vezes a venda das terras
para o fazendeiro, mesmo que por um valor inferior, representava a única
saída para os índios não deixarem seus antigos locais de moradias, ainda que
passassem a viver em um novo quadro de diferentes relações sociais e de
trabalho (2008, p. 125) 8.

Há descrições de outros meios empregados pelos fazendeiros para se


apossarem das terras indígenas, como o fornecimento de bebida.
Naquele tempo todo mundo tinha suas terras. E o brancos fazia o quê? Os
brancos pegava, dava uma garrafinha de cachaça para os índios, os índios
inocente, não é? Dava uma garrafa de cachaça para os índios, os índios ficava
bêbado, depois jurava de morte, os bichinhos fugia tudo, eles tomava conta
das terras toda. Foi assim que aconteceu. Por isso que está tudo pelo meio
do mundo, uns na cidade, outros longe, outros em São Paulo, meus irmãos
mesmo estão tudo em São Paulo. (Josefa Rodrigues da Silva, Aldeia Gitó)
(SILVA, 2008, p.126).

Nasci aqui. Meu pai nasceu na Aldeia Gitó e minha mãe aqui. Não tinha terra.
Eles tinha somente o chãozinho de casa. Porque tinha terra, o homem branco
arrendava aquelas terras, para botar o gado. Quando eles iam atrás, eles dizia
“Não eu te comprei essa terra”. Aqueles índios mais velhos, às vezes vendiam
a terra por uma garrafa de “cana” e se falasse morria. (Antonio Ferreira, “Seu”
Pirrila, Aldeia Caípe) (SILVA, 2008, p. 128-129).

Ou na quebra de contrato de empréstimo de dinheiro com garantia das terras,


como no caso em que a família foi ao escritório do fazendeiro, de quem tomou dinheiro
emprestado para viagem a São Paulo por causa da seca: “O senhor fica com o terreno,
quando nós voltar a gente paga ao senhor e o senhor entrega os nossos terrenos”.
Quando voltaram, o fazendeiro disse:
“-que terreno, vocês não me venderam os terrenos de vocês. Tão querendo
me roubar é?! Venderam o terreno, gastaram o dinheiro e agora querem
tomar o terreno de volta de novo. 'Vocês fiquem calado com isso” (...). “Cês

8
Para esse quadro, sem dúvida, colaborou a Lei de 3/7/1872, que extinguiu a curatela dos índios.

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pensa que eu sô idiota. Eu comprei o terreno de vocês, paguei, não devo e


agora vocês querem roubar o terreno. Eu boto todos três na cadeia já!”
(Gercino Balbino da Silva, Aldeia Pedra D'Água) (SILVA, 2008, p. 127).

Um certo capitão, utilizou-se de outro tipo de engano, que configura


estelionato. Ele pediu pedir para fazer uma “queimadinha”. Queria plantar cabaço que
serviria para fazer cuias para os escravos negros comerem nelas.
Ele disse, “olha caboclo, aonde eu queimar é meu, não é?”. Aí o caboclo
pensou que era. Chamava caboclo, para diminuir já, não chamava mais índio.
Ele disse “é tá certo, onde queimar”. Danou fogo, sem fazer acerto, sem fazer
nada, o fogo veio sair perto de Cana Brava. Aí ele disse “aqui tudo é meu”.
Sabedoria! Ele ameaçou os índios, aí tomou tudo, tomou. Isso não dá nada,
não dá nada, parece que dá uns cinco mil hectares por aí. Oxente! Dá muito
mais! Dá uns 10 mil hectares (Pedro Rodrigues Bispo, “Seu” Zequinha, Bairro
Portal, Pesqueira) (SILVA, 2008, p. 128).

Era comum as terras serem tomadas após o proprietário arrendá-las, inclusive


com apoio do cartório:
O cabra arrendou para botar uns bichos e foi pro Sul trabalhar e quando
chegou cá tava o papel passado, como ele tinha comprado, mas ele arrendou
não vendeu! Aí ele disse “Eu vim agora tomar lá conta do meu terreno” Aí
disse, “Não! Aqui é meu, eu comprei!”. “Não, eu não lhe vendi, eu lhe
arrendei”. “Não, eu comprei” (SILVA, 2008, p. 128).

O fazendeiro chegava aqui arrendava um pedacinho assim para botar dez ou


doze bichos, ia na casa do tabelião, onde estava os escrivão, passava o
documento fácil. Quando o pobre queria tomar conta não tomava mais. Eles
já tinha, eles cercava um pedacinho assim, quando dava fé ele tinha tomado
meio mundo! Aconteceu muito isso aqui. (Juvêncio Balbino da Silva, Aldeia
Cana Brava) (SILVA, 2008, p. 129).

Eles (os fazendeiros) pediam um roçadinho. Eles (os índios) davam aquele
roçado a primeira vez. Quando chegava agora o tempo da colheita, quando
tirava a colheita eles pediam, “Agora o senhor dá o mesmo roçadinho para
eu trabalhar?”. “Se quiser trabalhar pode pegar terreno na laje e plante!”. Em
riba da laje. Em cima da laje não dá nada! Muita gente foi expulsa. Os
fazendeiros fazia assim, quando fazia queixa, por que tinha cabra também
meio ruim mesmo, porque tem no mundo de tudo tem, fazia queixa ele, é
dizia, “Pra que é cabôco?! Cabôco é para se matar e disertar!”. O que é que
os pobres faziam?! Não tinham nem uma peteca para dar uma balada! E eles
de tudo tinham... Uns que não se mudara brabo, saía s’imbora pelo mundo,
caçar um lugarzinho para morar e outros que se botava eles passavam o dedo,
matava. (Laurinda Barbosa dos Santos, “D. Santa”, Aldeia Caípe) (SILVA, 2008,
p. 129-130).
Sobre os arrendamentos das terras da aldeia de Cimbres, após a extinção do
aldeamento constam listas dos rendeiros e respectivos sítios, durante as diretorias do
Coronel Cândido Pereira de Brito e do Tenente-Coronel Severiano Monteiro Leite (BRASIL,
1992, p. 208-209). Delas consta o Sítio Caípe.

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Portanto, relatos são corroborados por documentos de que, no lugar conhecido


como Caípe, habitavam indígenas Xucuru e que, a partir da extinção do aldeamento, as
terras foram objeto de apossamento por não indígenas mediante fraudes diversas ou
violências. E os indígenas reclamavam, não conseguindo reaver a posse porque não
tinham poder para se contrapor ao governo provincial e à ideologia da colonialidade que
perpassava as relações sociais e econômicas no Brasil desde o século XVI.
Assim, os documentos apresentados de que, em 1885, André do Rego Barros
“adquiriu o imóvel a pequenos proprietários, os quais já detinham os imóveis ao redor de
sessenta (60) anos”, presumem-se nulos porque não apresentado registro paroquial e não
houve a necessária demarcação pelo poder público, após a extinção do aldeamento. E, se
detinham desde 1825 era por arrendamento, como se viu sempre contestado pelos
indígenas.
A Lei n. 601, de 18/9/1850, conhecida como Lei de Terras, recepcionada pela
Constituição de 1891 (art. 83)9, reservou terras dos aldeamentos, – quando ainda se
tolerava a aquisição da posse anterior a ela por simples ocupação, –- mediante a prova da
posse legitimável disciplinada na declaração paroquial (art. 1310 e art. 91 do Decreto n.
1318, de 30/1/185411). Como se vê, depois da Lei n. 601, a transmissão do imóvel só seria
admitida quando concedidas por compra ou com a posse legitimada (cultura efetiva e
moradia habitual), observaria a Lei da Reforma Hipotecária (Lei n. 1.237 de 24/9/1864),
mais tarde o Código Civil de 1916, e na sequência, as leis de registros públicos (Dec. n.
4.827, de 7/2/1924 e Lei n. 6.015, de 31/12/1973 e suas alterações).
No caso de aldeamento de Cimbres, que só foi extinto em 1879, a aquisição
legítima dependia inicialmente do registro paroquial e posteriormente da demarcação
pelo poder público. Como referido acima, o cartório do registro de imóveis certificou não
possuir os assentamentos anteriores a 1938, desde 1891. Consequentemente, também
não possui os anteriores a 1891, a partir de 1879. Ainda que os possua, diante das

9 Art 83 - Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou
implicitamente não forem contrárias ao sistema do Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela
consagrados.
10Art. 13. O mesmo Governo fará organizar por freguezias o registro das terras possuidas, sobre as declaracões

feitas pelos respectivos possuidores, impondo multas e penas áquelles que deixarem de fazer nos prazos
marcados as ditas declarações, ou as fizerem inexactas.
11Art. 91. Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua propriedade, ou possessão, são

obrigados a fazer registrar as terras, que possuirem, dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento,
os quaes se começarão a contar, na Côrte, e Provincia do Rio de Janeiro, da data fixada pelo Ministro e
Secretario d'Estado dos Negocios do Imperio, e nas Provincias, da fixada pelo respectivo Presidente.

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perseguições relatadas em documentos oficiais, não merecem a presunção da


legitimidade.
Se a ocupação do Sítio Caípe pelos particulares foi ilegítima, fato que não é de
todo afastado pelo relator na apelação cível, a conclusão a que chegou de que “o decurso
do tempo, sem a oposição pertinente, a legitimou” (BRASIL, 1999, f. 726) é
inconstitucional. Primeiro, porque direitos originários são anteriores a qualquer das
Constituições. Segundo, porque apenas a partir da Constituição de 1988 é que se pode
falar de “renitente esbulho” e falta de “oposição pertinente” dos indígenas, uma vez que
só então passaram as comunidades indígenas ter legitimidade processual.
O que é relevante no caso, a despeito da regência legal invocada pelas instâncias
judiciais, é a circunstância paradoxal de convergirem sobre o mesmo imóvel duas
disciplinas cada qual constitucionalmente compatível com seus pressupostos, mas
logicamente excludentes dada a raiz axiológica de cada qual. Como se sabe, a proteção
dos indígenas, particularmente, sobre as terras de que são “primários e naturais senhores
delas”, foi formalmente fixada no Alvará de 1º de abril de 1680 (§ 4º) pelo qual o Rei de
Portugal garantia e reservava aos índios direitos correspondentes a sua condição e
características étnicas, donde resultou o reconhecimento imemorial dos direitos que
deveriam prevalecer ante a mesma ordem jurídica reinol referente às terras da Coroa12.
Vale a pena transcrever o citado parágrafo:
E para que os ditos Gentios, que assim descerem, e os mais, que há de
presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de
suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem
sobre ellas se lhe fazer moléstia. E o Governador com parecer dos ditos
religiosos assinará aos que descenderem do Sertão, lugares convenientes
para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos
lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo
algum das ditas terras, que ainda estejão dadas em Sesmarias e pessoas
particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de
terceiro, e muito mais se entende, e quero se entenda ser reservado o
prejuízo, e direito os Índios, primários e naturaes senhores delas (apud
VILLARES, 2009, p. 99).

12 Com relação ao regime de sesmarias e concessão de terras regalengas, observa Edmundo Zenha (1952,
p.433-434): “Durante o período colonial, nos dois primeiros séculos, as medidas legais tomadas
especialmente para o Brasil são poucas. A questão se resolvia pelos velhos textos portugueses que, à viva
força, eram postos a funcionar ante os novos problemas da Colônia. Tais providências, podemos enumerá-las
assim: ordem de 27-12-1695, carta-régia de 7-12-1697, idem de 23-11-1698, idem de 3-3-1704, decreto de
20-10-1753, provisão de 11-3-1754, alvará de 5-10-1795, carta-régia de 13-3-1797. [...] O alvará vinha atalhar
a desordem. Mas tornar-se-ia maior a desordem por êle desencadeada do que a já existente. E àquela
preferiu-se esta. A questão, porém, não podia morrer assim. Problema latente, vivia a chamar a atenção dos
governos. Ao alvará de 1795 seguiram-se: a carta-régia de 13-3-1797; o alvará de 25-1-1807; o decreto de 2-
7-1808; a provisão de 14 de março; o decreto de 21 de maio, que extinguiu o confisco; a resolução de 17 de
julho, que proibiu a concessão de sesmarias, e a provisão de 22 de outubro, todos de 1822.

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Por isso, o Decreto n. 1.318 (arts. 72 a 75)13, mais tarde, reconheceu e reservou
terras para as “hordas” nas terras devolutas antes do desmembramento a particulares.
A Constituição de 1891 não tinha disposição alguma sobre os índios, mas pela
regra do art. 83 continuavam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime
no que explícita ou implicitamente não fossem contrárias ao sistema do governo firmado
pela Constituição e aos princípios nela consagrados. A regra se aplica à Lei n. 601 e ao
próprio Alvará de 1680.
No julgamento da ACO 362-MT, o Ministro Alexandre de Moraes disse
expressamente:
Trata-se, na verdade, de uma leitura imprecisa daquela Constituição de que
as áreas teriam passado imediatamente ao domínio dos Estados. Isso, porém,
não se aplicava às terras ocupadas pelos indígenas, que eram terras
congenitamente possuídas. No mesmo sentido foi bem lembrado aqui, da
tribuna, pela Ministra Grace, que essas áreas de ocupação já originária dos
índios, chamadas à época, pelo mestre João Mendes Júnior, de terras do
indigenato, desde o alvará de 1º de abril de 1680 e, depois, a Lei de 1850 e o
Decreto de 1854, já eram áreas destinadas aos indígenas [...].
Não há como se alegar que a Constituição de 1891, por um dispositivo
absolutamente genérico, teria transformado terras ocupadas
tradicionalmente pelos índios em terras devolutas (BRASIL, 2017, p. 17-18).

É um equívoco, portanto, a afirmação de Salvador Pompeu de Toledo, invocada


na sentença (BRASIL, 1992, f. 545) de que “até a Constituição de 1934, não existia
nenhuma proteção às terras indígenas” e que a Constituição de 1891, transferiu as terras
devolutas aos Estados-membros sem nenhuma ressalva a terras indígenas. Conclui, por
isso que “a propriedade foi transferida aos Estados, e destes aos particulares sem
qualquer restrição”.

13 Art. 72. Serão reservadas terras devolutas para colonisação, e aldeamento de indigenas nos districtos,
onde existirem hordas selvagens.
Art. 73. Os Inspectores, e Agrimensores, tendo noticia da existencia de taes hordas nas terras devolutas, que
tiverem de medir, procurarão instruir-se de seu genio e indole, do numero provavel de almas, que ellas
contêm, e da facilidade, ou difficuldade, que houver para o seu aldeamento; e de tudo informarão o Director
Geral das Terras Publicas, por intermedio dos Delegados, indicando o lugar mais azado para o
estabelecimento do aldeamento, e os meios de o obter; bem como a extensão de terra para isso necessaria.
Art. 74. A' vista de taes informações, o Director Geral proporá ao Governo Imperial a reserva das terras
necessarias para o aldeamento, e todas as providencias para que este se obtenha.
Art. 75. As terras reservadas para colonisação de indigenas, e por elles distribuidas, são destinadas ao seu
usofructo; e não poderão ser alienadas, em quanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder
o pleno gozo dellas, por assim o permittir o seu estado de civilisação.

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Terras ocupadas pelos indígenas, ainda que em aldeamentos formalmente


extintos, não eram terras devolutas. Mesmo em terras não ocupadas o Decreto n. 1.318
reservou terras para eles.
Assim, pode-se afirmar que, de acordo com a Lei n. 601, o Decreto n. 1.318 e o
Alvará de 1680, as alienações de parcelas do Aldeamento de Cimbres, a não-indígenas
feitas por indígenas ou por agentes públicos, a partir da extinção (1879), a princípio, são
ilegais, pois não há qualquer documento conhecido sobre procedimento formal de
conversão da terra pública em terra particular.
A proteção dada à posse das terras habitadas pelos indígenas passou a ser
norma constante e reiterada a partir da Constituição de 1934, que estabeleceu: “Art. 129.
Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente
localizados, sendo-lhes, no entanto vedado aliená-las”.
A propósito, o acórdão na Apelação Cível n. 24.379/AL, julgada pelo TRF da 5ª
Região, invocado como precedente na Apelação Cível n. 178199/PE (BRASIL, 1999, f. 726),
em favor dos Didier, na verdade se aplica em favor dos Xucuru. O acórdão citado afirma
que “somente as terras que eram ocupadas pelos indígenas, quando da promulgação da
Constituição de 1934, são reconhecidas como de posse dos mesmos e de domínio da
União”14. Conforme demonstrado documentalmente, o imóvel Caípe fez parte de uma
gleba maior conhecida como Sítio Caípe, que fazia parte do aldeamento indígena de
Cimbres. Os Xucuru nunca saíram desse território, achavam-se ali permanentemente
localizados, continuavam ocupando-o nas brechas permitidas pelo poder econômico e
político, como empregados, pequenos arrendatários ou mesmo proprietários.
A Constituição de 1937 conservou o mesmo texto com pequena alteração: “Art.
154. Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em
caráter permanente, sendo-lhes vedada a alienação das mesmas”.
A Constituição de 1946 assim dispôs: “Art. 216. Será respeitada aos silvícolas a
posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a
transferirem”.
Finalmente, a Constituição de 1967 assentou: “Art. 186. É assegurada aos
silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao

14 Também é referida decisão no mesmo sentido proferida na Apelação Cível n. 12522/PE, ambas relatadas
pelo Juiz Francisco Falcão daquele tribunal, atualmente ministro do Superior Tribunal de Justiça.

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usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes”, e a


Emenda Constitucional n. 1/69, com redação mais abrangente, estabeleceu:
Art. 198. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que
a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando
reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de
todas as utilidades nelas existentes.
Parágrafo 1º. Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos
de qualquer natureza que tenham por objeto o domínio, a posse ou a
ocupação das terras habitadas pelos silvícolas.
Parágrafo 2º. A nulidade e a extinção de que trata o parágrafo anterior não
dão aos ocupantes direito a qualquer ação ou indenização contra a União e a
Fundação Nacional do Índio.

Ante esse quadro poder-se-ia supor que a defesa dos interesses indígenas, do
ponto de vista constitucional somente se converteria em normativa prevalente assim que
acolhida pela Constituição de 193415 e que a posse das terras pelos indígenas como
garantia de respeito obrigatório estaria relacionada apenas ao fato contemporâneo da
respectiva ocupação. Mas não, nesses textos o direito às terras está assentado na
existência de posse permanente como fenômeno histórico e não puramente jurídico,
donde a possível resultante jurídica, além de não se limitar a um juízo histórico, estático
ou dogmático, não poderá dispensar a dinâmica existencial da população respectiva.
Nessa linha, conclusões do porte daquela editada pelo STF na Pet. n. 3388 (Terra
Indígena Raposa Serra do Sol) firmando condicionantes absolutas e paradigmáticas
rompem ofensivamente a lógica histórica da proteção assegurada aos indígenas, pois
impõem limitações incompatíveis com situações ou condutas que lhes são próprias e
precisamente protegidas pela mesma normativa constitucional.

O obstáculo epistemológico da colonialidade

15No acórdão da ACO n. 278/MT (RTJ 107/461), o voto do Ministro Néri da Silveira faz completa análise da
evolução constitucional, esclarecendo que, de 1934 a 1946, o princípio era o mesmo: “a posse a ser respeitada
condicionava-se ao caráter de permanência na localização imemorial estabelecida pelo índio ou decorrente
de definição do órgão oficial, ...” , pouco importando estivessem em terras do estado ou da União, enquanto
que, a partir de 1967, se instalou a noção de ocupação por serem habitadas (art. 4º. IV, dando como
pertencente à União as terras ocupadas pelos silvícolas). Com isso, passaram as terras ao domínio da União.
Veja-se ainda o art. 12 da Lei n. 601, os arts. 72 a 75 do Decreto n. 1318, os arts. 3º e 10 do Decreto n. 8.072,
de 20/6/1910, o art. 10 e §§ do Decreto n. 5484, de 27/6/1928 e o art. 17 da Lei n. 6.001, de 19/12/1973.
Portanto, é falso concluir que a posse indígena só é protegida desde 1934. Não é por outra razão que o STF,
embora por decisão monocrática (na ACO n. 1.100/ SC, com reflexo no RE n.1.037.565/SC, com repercussão
geral, Tema n. 1031), admitiu relevância e urgência em sustar a aplicação do Parecer n.
001/2017/Gab/Cgu/Agu, abrindo ensejo à releitura do conceito do ‘marco temporal’ da ocupação
permanente.

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Tanto as regras administrativas da Colônia e do Império relativas à condição indígena


quanto as que sobrevieram com a República sempre estiveram indisfarçadamente
relacionadas a antiga questão civilizatória desde quando os conquistadores e a Igreja
polemizaram, marcadamente na América espanhola, sobre a condição humana do gentio
e até sobre a existência de alma, sendo esses fatores decisivos para a justificativa da
guerra justa, ou proteção autoritária com sujeição dos índios autóctones como reduzidos
ou escravizados, que se refletiram e se reproduziram na legislação daí por diante
subsequente até nossos dias.
O substrato cultural eurocêntrico remanescente da dominação ibérica se
infiltrou na legislação americana, particularmente a latino-americana, a ponto de, mesmo
ciente das vetustas regras coloniais de proteção indígena, deliberadamente fazer
prevalecer o interesse e a supremacia da sociedade branca legitimando-os. A legislação
positiva e a jurisprudência normativa hegemônica que assim se desenvolveram, adotando
esse viés em maior ou menor grau se impuseram historicamente e isso se pode facilmente
demonstrar num simples recorrido de julgados de qualquer corte de justiça do país que
tenha apreciado questões indígenas. Esse viés patrimonialista e excludente, fruto dessa
visão, tem caracterizado a concepção proprietária da doutrina e da jurisprudência em face
dos indígenas e seus direitos.
No caso dos Xucuru, o registro imobiliário das terras em favor dos índios e o
reconhecimento da posse permanente delas por eles (logicamente declarada e
homologada pelos respectivos atos formais) e, em contrário, a coisa julgada possessória
favorável aos supostos proprietários (em 2014) operada pelo sistema de jurisdição
ordinária civil contra o fato constitucional da posse indígena, revelam com clareza a
inaptidão da compreensão tradicional e convencional do direito dos brancos em face do
direito constitucional dos indígenas.
Esse direito constitucional se estabeleceu em 1988, quando por força dos
movimentos sociais, entre eles, o movimento indígena, logrou-se estabelecer o art. 231
na Constituição Federal, que adota o paradigma da diversidade cultural, rompendo com
o paradigma assimilacionista que norteou todas as Constituições anteriores e a legislação
indigenista, ainda que no sentido de proteção dos indígenas.
Nos termos dessa Constituição:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que

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tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer


respeitar todos os seus bens.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas
em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua
posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo,
dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais
energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só
podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as
comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados
da lavra, na forma da lei.
§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os
direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad
referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que
ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após
deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o
retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que
tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere
este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o
que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito
a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às
benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

O reconhecimento mais evidente que a Constituição manifesta, e


provavelmente aquele que mais cuidado exige do intérprete, refere-se aos direitos
originários sobre as terras que [os índios] tradicionalmente ocupam. Sendo certo que tal
reconhecimento implica assentar limitações a direitos de terceiros, como dito, inclusive
os da própria União, convém enfatizar que direitos originários são os que dizem respeito
a direitos que derivam da história dos índios e suas comunidades e, mesmo quando para
isso seja (outra vez) necessário colher a lição dos antropólogos ou historiadores, é possível
afirmar que são originários os direitos que têm sido exercidos de modo imemorial pelos
índios conforme a sua organização social, os seus costumes, as suas crenças e tradições,
tal qual definidos pela sua própria prática histórica.
Isso significa dizer que não só os direitos originários visíveis têm de ser
reconhecidos mas também aqueles que a prospecção histórico-antropológica puder
revelar, o que por si só demonstra a incompatibilidade da imposição de um determinado
marco temporal deles ou de seu exercício.

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Visto assim, o art. 231 avança muito além do que a leitura linear de sua letra
deixa entrever e o intérprete deve ter sempre presente o fato de que é complexo o seu
conteúdo e que o perfil dos direitos originários pode variar conforme os grupos indígenas
em razão de sua organização social ou como consequência de seus costumes, tradições e
especialmente suas crenças, de tal modo que esses direitos podem apresentar diferentes
feições e, portanto, decorrências distintas daquelas construídas a partir do ponto de vista
jurídico dos “brancos”, com limitações mais ou menos relevantes para as conclusões por
estes pretendidas.
Por outro lado, como o conceito de direito é uma categoria jurídica não
indígena, poderia parecer que o que a Constituição assegura aos índios é o
reconhecimento de fatos ou consequências jurídicas assemelhadas aos direitos da
organização jurídica não indígena. Todavia, a proposição constitucional do art. 231, ao
contrário, deve ser lida – como, aliás, está no texto (‘sua organização social’) - na
perspectiva da organização social, dos costumes, tradições e crenças dos índios, o que
leva por sua vez à conclusão de que não só os direitos originários mas também os direitos
usuais e atuais dos índios estão e precisam ser reconhecidos, a partir de sua cultura e
valores, e independentemente do regime ou das limitações dos institutos de direito
contemporâneo não indígena, de inspiração ocidental e cristã mesmo consagrados na
Constituição.
Revela-se aí a ilação lógica que convém repetir: a Constituição brasileira, ao
dispor sobre o reconhecimento de direitos indígenas, em verdade assentou uma
verdadeira constituição indígena, por isso mesmo no que lhes diz respeito de igual
hierarquia e com idêntica supremacia em relação às leis ordinárias derivadas da parte não
indígena da Constituição, a merecer - pelo princípio da proporcionalidade – o mesmo
respeito e proteção jurisdicional, cujo exercício e prestação pelos tribunais terão de levar
em consideração essa atitude exegética16.
Assumir essa nova exegese requer, antes de mais nada, compreender a
colonialidade do poder como forma de pensar e de ver o mundo, que se desenvolveu, a
partir do século XVI, na mesma época em que se iniciou a conquista das Américas.

16 A atuação do princípio da proporcionalidade (ou da proteção do núcleo essencial do direito protegido)


pode ser compreendida a partir da ideia de prevalência do Estado Democrático de Direito e da proteção de
direitos e garantias fundamentais, em face do que haverá de existir mecanismos e métodos de interpretação
que os preservem mediante a adequação e compatibilização com outros direitos (BARROS, 1996).

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A colonialidade do poder é observável desde os primeiros contatos dos


portugueses com os indígenas do nordeste e, em especial com a catequese realizada pelos
missionários oratorianos. Vejamos nos autos da reintegração de posse alguns excertos
que revelam essa forma de ver e constituir o mundo.
Na petição inicial da ação de reintegração de posse e em notícia jornalística:
[...] Ação de Reintegração de Posse contra o Grupo Tribal denominado
Xucurus, na pessoa de seu cacique [....]. (grifo nosso)

[...] 16. Salientam e esclarecem, ainda, os Autores que a invasão procedida


pelos pretensos índios foi feita. Com grave ameaça aos empregados dos
Autores que trabalham na área em tela (...) (BRASIl, 1992, p. 8). (grifo nosso)

“Nunca vi índio careca ou de olhos azuis” frisou o vereador [Hamilton Didier,


filho do proprietário do Sítio Caípe de Baixo] se referindo aos índios da serra
que afirma não serem legítimos. Ele reforçou a afirmação de que o líder da
invasão, cacique Francisco de Assis Araújo (Chicão) é proprietário de 30
hectares, que ele arrendou a pequenos lavradores e para alguns fazendeiros
levar o gado (BRASIL, 1992, f. 19). (grifo nosso)

Na documentação histórica trazida pela contestação da Funai:


Segundo declarações de um diretor de Índios de Cimbres, a população do
aldeamento encontrava-se então em alto grau de miscigenação, sendo muito
pouco os assim considerados “raça pura” (APEP, Reg. 351) (BRASIL, 1992, f.
204) (grifo nosso)

A Câmara Municipal de Cymbres, na inclusa petição requer ao Governo


Imperial a extinção do aldeiamento de Urubá, a fim de que os terrenos deste,
sejam ocupados pelos agricultores do lugar e não pelos índios, visto como,
sendo esses terrenos muito produtivos, acham-se entregues a preguiça e a
incúria dos mesmos, conforme o dizer do seu Diretor Geral (ofício de
29/1/1878, BRASIL, 1992, f. 211). (grifo nosso)

Na sentença:
Impõe-se fazer, de logo, um breve histórico acerca da proteção dada pelo
Estado aos territórios ocupados pelos silvícolas (BRASIL, 1992, f. 544). (grifo
nosso)

E no acórdão:
[...] mesmo que se parta da premissa de que os indígenas continuaram na
região, não mais ocupavam de fato, o Sítio Caípe, não se enquadrando, assim,
entre os silvícolas que fazem jus à pretendida proteção possessória. Somente
na década de 90 do século passado, voltaram a ocupar a área, após invadi-la,
juntamente com outros imóveis da região (BRASIL, 1999, f. 725) (grifo nosso).

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O pensamento decolonial ou inflexão decolonial nasceu na década de 1990 a


partir da coletividade de argumentação ou grupo de modernidade/colonialidade17,
constituído por acadêmicos, predominantemente latinoamericanos, que buscam dar
visibilidade aos efeitos estruturantes no presente da colonialidade. De maneira ampla,
a inflexão decolonial é entendida como o conjunto de pensamentos críticos
sobre o lado escuro da modernidade desde os ‘condenados da terra’ (FANON,
1963) que buscam transformar não somente o conteúdo, mas os termos-
condições nos quais se reproduziram o eurocentrismo e a colonialidade no
sistema mundo inferiorizando seres humanos (colonialidade do ser),
marginalizando e invisibilizando sistemas de conhecimento (colonialidade do
saber) e hierarquizando grupos humanos e lugares em um padrão de poder
global para sua exploração pela acumulação ampliada de capital
(colonialidade do poder) (RESTREPO & ROJAS, 2010, p. 37-38).

Um dos autores que melhor debateu a colonialidade foi o sociólogo peruano


Aníbal Quijano. Para ele a colonialidade era tida como uma experiência mais profunda e
duradoura impregnada na intersubjetividade das nações e operando na escala social
cotidiana, sobretudo, mediante o uso das categorias classificatórias de raça/etnia.
Para Quijano (2000, p. 342), o poder capitalista, eurocentrado e global
organizou-se, distintivamente, ao redor de dois eixos: a colonialidade do poder e a
modernidade, a partir da constituição da América Latina, no século XVI, num mesmo
momento e movimento históricos. Seus centros hegemônicos se identificaram como
Europa e os dois eixos desse novo padrão de dominação continuam presentes até hoje.
Explica que a colonialidade tem como pedra angular a imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo, que opera em cada um dos planos,
âmbitos e dimensões, materiais e subjetivas, da existência individual e social. É um padrão
de poder adequado ao desenvolvimento do poder capitalista.
Na sua teorização o poder é uma questão crucial. Ele o conceitua como um
espaço e uma malha de relações sociais articuladas de exploração/dominação/conflito,
em função e em torno da disputa pelo controle dos seguintes âmbitos de existência social:
(1) el trabajo y sus productos; (2) en dependencia del anterior, la “naturaleza”
y sus recursos de producción; (3) el sexo, sus productos y la reproducción de
la especie; (4) la subjetividad y sus productos, materiales e intersubjetivos,
incluído el conocimiento; (5) la autoridad y sus instrumentos, de coerción en
particular, para asegurar la reproducción de ese patrón de relaciones sociales
y regular sus cambios (QUIJANO, 2000, p. 345).

17 Colonialidade e modernidade constituem dois lados de uma mesma moeda. Não há modernidade sem
colonialidade, uma não existe sem a outra. A barra oblíqua indica a relação de constituição mútua dos dois
termos, assim como a hierarquização entre eles. A colonialidade é imanente à modernidade, é articulada
como a exterioridade constitutiva da modernidade (RESTREPO & ROJAS, 2010, p. 17).

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Afirma que, desde o século XVIII, sobretudo com o Iluminismo, o eurocentrismo


foi se afirmando como a ideia mitológica de que a Europa era preexistente a esse padrão
de poder e que elaborou a modernidade e a racionalidade. Nessa qualidade Europa e os
europeus constituíam o momento e o nível mais avançados no caminho linear,
unidirecional e contínuo da espécie humana. Assim, se consolidou com essa ideia a
concepção de humanidade segundo a qual a população do mundo se diferenciava em
inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e
modernos (QUIJANO, 2000, p. 343-344).
Contrapondo-se à teoria das classes sociais, que considera elaborada para o
contexto europeu e por isso eurocêntrica, Quijano avança para uma teoria histórica da
classificação social. Nesta proposta o conceito de classificação social refere-se a processos
de longo prazo, nos quais as pessoas disputam pelo controle dos âmbitos básicos de
existência social e de cujos resultados se configura um padrão de distribuição de poder
centrado em relações de exploração/dominação/conflito entre a população de uma
sociedade e em uma sociedade e em uma história determinadas (QUIJANO, 2000, p.368).
Nessa perspectiva, afirma que, no capitalismo mundial, colonial/moderno, as
pessoas se classificam e são classificadas segundo três linhas diferentes, porém
articuladas em uma estrutura global comum pela colonialidade do poder: trabalho, raça,
gênero. E em torno de dois eixos centrais: o controle da produção de recursos de
sobrevivência social e o controle da reprodução biológica da espécie. O primeiro implica
o controle da força de trabalho, dos recursos e produtos do trabalho, o que inclui os
recursos naturais e se institucionaliza como “propriedade”. O segundo implica o controle
do sexo e de seus produtos (prazer e descendência), em função da propriedade. A raça
foi incorporada no capitalismo eurocentrado em função de ambos os eixos. E o controle
da autoridade se organiza para garantir as relações de poder assim configuradas
(QUIJANO, 2000, p. 368-369).
Na história conhecida antes do capitalismo mundial nas relações de poder, os
atributos do sexo, idade e força de trabalho jogaram um papel principal na classificação
social das pessoas. A partir da conquista da América se acrescentou o fenótipo.
Las diferencias fenotípicas entre vencedores y vencidos han sido usadas como
justificación de la producción de la categorìa “raza,” aunque se trata, ante
todo, de una elaboración de las relaciones de dominación como tales. La
importancia y la significación de la producción de esta categorìa para el
patrón mundial de poder capitalista eurocéntrico y colonial/moderno,
difícilmente podría ser exagerada: la atribución de las nuevas identidades
sociales resultantes y su distribución en las relaciones del poder mundial

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capitalista, se estableció y se reprodujo como la forma básica de la


clasificación societal universal del capitalismo mundial, y como el fundamento
de las nuevas identidades geo-culturales y de sus relaciones de poder en el
mundo. Y, así mismo, llegó a ser el trasfondo de la producción de las nuevas
relaciones intersubjetivas de dominación y de una perspectiva de
conocimiento mundialmente impuesta como la única racionalidad (QUIJANO,
2000, p. 374).

O autor indica algumas das novas identidades sociais configuradas pela


colonialidade: “indios, negros, aceitunados, amarillos, blancos, mestizos […]” (QUIJANO,
2000, p. 342). Essas identidades são frutos do evolucionismo e do dualismo que situaram
o “europeu” como o topo da evolução e a “Europa” como a única autora da modernidade.
Todas as novas identidades que surgem com a colonialidade do poder são subjugadas e
atreladas a locais sociais específicos ao longo do tempo, em função do novo padrão
mundial de poder.
Quijano desenvolve ainda ideias sobre as colonialidades da articulação política
e geoculturalidade da distribuição mundial do trabalho, das relações de gênero e das
relações culturais ou intersubjetivas. Não nos aprofundaremos nelas porque é a
colonialidade da classificação social universal do mundo capitalista que se encontra de
plano evidenciada nos autos judiciais.
Assim, no primeiro excerto, o advogado dos autores, apesar de chamar à lide o
Grupo Tribal Xucuru e a Funai, refere-se a “pretensos índios” numa clara desclassificação
social do coletivo de pessoas que busca o reconhecimento de um direito originário.
Reconhece que é um grupo indígena, pois utiliza a palavra “tribo”, no Brasil sempre
referida a indígenas, e que o grupo é liderado por um “cacique“, palavra também
associada usualmente a indígenas. Reconhece, mas os desclassifica, subalterniza.
No segundo excerto, o entrevistado contesta a autoidentificação indígena com
base em fenótipo que a seu ver só poderia ser de um não indígena e questiona a liderança
do cacique Chicão como indígena, pois além de proprietário de 30 hectares arrenda terras
para fazendeiros. Ou seja, para ser considerado indígena, uma pessoa há de ter um
fenótipo determinado e não pode ter bens.
No terceiro e quarto excertos, as expressões grifadas revelam a racialização das
relações sociais, o controle da força de trabalho, dos recursos e produtos do trabalho, o
que inclui os recursos naturais. Na classificação social do capitalismo eurocentrado os
indígenas como seres inferiores não merecem a propriedade de terrenos produtivos.

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A expressão “silvícolas” constante da sentença e do acórdão intencionalmente


desclassificam os Xucuru, pois antes eles já haviam sido tratados como índios ou
indígenas. Embora seja uma palavra ainda presente no Estatuto do Índio de 1973, a sua
utilização depois da Constituição de 1988, exceto no caso de transcrição de um texto, é
caricatural e ofensiva18. Da mesma forma, a utilização das palavras “invasão” ou
“invadidas”, pois têm uma conotação de ilícito penal. É compreensível que sejam
utilizadas pelos autores da ação de reintegração de posse, mas não pelas autoridades
judiciais, ainda que estas decidam a favor dos autores.
Por fim, o processo judicial examinado bem como os relatos das pessoas
entrevistadas pelo historiador Edson Hely Silva são autodemonstrativos de como as
estruturas jurídicas deram suporte aos detentores de poder político e econômico e
reproduziram a classificação social em que os indígenas são subalternos e excluídos e os
não indígenas brancos os privilegiados de sempre.

Considerações finais: a conciliação constitucional e a jurisdição interamericana

O virtual impasse antes mencionado é resultado da atuação de duas ordens jurídicas


concomitantes. A presença imemorial dos Xucuru na região da área demarcada que
consta ser, ao menos, anterior a 1749, como referido na Informação Geral da Capitania
de Pernambuco, freguesia de Ararobá, ou aldeia Ororubá, depois elevada a vila em 1762,
mais tarde Vila de Cimbres e a coisa julgada na ação possessória formulada à base de uma
cadeia dominial ilegítima, oferece quadro de perplexidade que só se pode resolver pela
aplicação sistemática dos princípios e pela conformidade com a Constituição.
A sentença de primeiro grau, em julho de 1998, adotando razões do autor de
que não há definição legal de terras indígenas e que “basta uma simples portaria [da
Funai] para que a propriedade privada seja perdida sem direito a indenização” – a dizer
que a propriedade e a posse privadas de quem assim se intitula pode prevalecer sobre a

18 Na dissertação de Luiz Henrique Matias da Cunha (2019, p. 90) , que analisa a jurisprudência do STF à luz
da teoria decolonial de Quijano, o autor também critica o uso da expressão “silvícolas” e de expressões
semelhantes que encontrou ao longo da análise, como: “culturas primitivas”, “etnia aborígine”, “nativos”,
“populações aborígines” e “tribo”, todas referindo-se aos povos indígenas como sendo primitivos e tribais. A
partir da perspectiva decolonial afirma que essa associação está ligada diretamente ao âmbito da
intersubjetivade, e é fruto do dualismo. Com o eurocentrismo e a nova intersubjetividade, a Europa se
constitui como berço da modernidade e também se constitui como a única autora da modernidade, a única
responsável pelo processo de desenvolvimento do mundo.

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posse constitucional indígena – sustenta que a posse indígena só se legitimaria a partir de


1934. De sua vez, o TRF/5ª incorre em contradição ao admitir a presença da União na
causa porque é titular das terras indígenas e, em seguida, considera que a demanda da
Funai é improcedente porque os indígenas não tinham ocupação em 1934, uma vez que
as terras pertenceriam ao antecessores dos ‘proprietários’. Tirante os equívocos
hermenêuticos, a posse indígena permanente em nenhum momento esteve sob crítica
fática e a conclusão sumária do julgado da 9ª Vara Federal da Seção Judiciária de
Pernambuco e do acórdão é de que os indígenas estariam protegidos somente após 1934
e os demandantes estariam nas terras antes disso.
Ora, há aí disseminada incompreensão judicial decorrente dos sucessivos
preconceitos hermenêuticos e legislativos de origem histórica quanto à realidade
indígena, de resto semelhante a que se revela em face dos remanescentes de quilombos,
ambas derivadas de evidente leitura constitucional desligada dos pressupostos
fundamentais da República (arts. 1º e 3º; 215, § 1º e 216, 231 da CF e 68 do ADCT) e
indicativas de resíduo cultural aristotélico que considera índios e negros (por isso
tutelados e escravizados) inferiores, submissos e dependentes, o que, de resto, remonta
à Conquista e à Colônia, infiltrando-se na prática judicial, em prejuízo da melhor
compreensão dos direitos e prerrogativas dos índios e suas comunidades. Esse obstáculo
epistemológico resultante de uma interpretação que leva em conta só a letra da lei
constitucional, e não o conjunto de regras e princípios que formam o acima citado bloco
constitucional (v. Adin 595-2, DJ 26/02/2002, Relator Ministro Celso de Mello), provoca
no aplicador o erro indicado.
De outra parte, a correta compreensão do texto constitucional conduz à
conclusão jurídica adotada pela Corte IDH e a certeza lógica de que a jurisdição estatal
brasileira não se desincumbiu devidamente, vulnerando os direitos indígenas
assegurados pela Constituição e as salvaguardas consagradas no Pacto de São José da
Costa Rica. Ou seja, reproduziu-se no âmbito internacional a mesma contradição entre os
pressupostos do veredicto interamericano e os do juízo da Justiça Federal brasileira a
revelar – inobstante a falsa premissa da posse indígena a partir de 1934 – que a jurisdição
nacional não soube compreender a verdade histórica e etnológica da presença indígena,
submetendo-se ao padrão preconceituoso, eurocêntrico e proprietário civilista, quando a
Constituição de 1988 já abandonara tais premissas.

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Sobre os autores:

Ela Wiecko V. de Castilho


Membro do Ministério Público Federal, tendo exercido a função de coordenadora da
6ª Câmara de Coordenação e Revisão - Populações Indígenas e Comunidades
Tradicionais ; professora de Direito da UnB, onde lidera o Grupo de Pesquisa de
Direitos Étnicos Moitará e o Escritório Jurídico para a Diversidade Étnica e Cultural-
JUSDIV. ORCID: orcid.org/0000-0001-7215-5755. E-mail: wiecko@unb.br.

Manoel Lauro V. de Castilho


Advogado, juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ex-Consultor
Geral da União. ORCID: orcid.org/0000-0002-1172-398X. E-mail:
mlvdcastilho@gmail.com.

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Caso Povo Indígena Xukuru vs. Brasil: Uma trajetória


processual perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos
Case of the Xukuru Indigenous People v. Brazil: A procedural trajectory
before the Inter-American Court of Human Rights.

Rodrigo Deodato de Souza Silva¹


¹ Universidade Católica de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail:
rodrigo.deodato@unicap.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4173-7696.

Raphaela de Araújo Lima Lopes²


² Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
raphaela.allopes@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1906-4007.

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 02/02/2022.

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Resumo
O artigo busca explorar o percurso processual do Caso Povo Indígena Xukuru vs. Brasil, no
âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobretudo com a culminância de
sua sentença em 2018 e os desdobramentos de monitoramento do cumprimento desta.
Evocando uma viagem que envolve o passado histórico das violações até adentrar o
campo jurídico de tramitação da denúncia no Sistema Interamericano o artigo se propõe
a dar visibilidade às estratégias e caminhos utilizados pelos peticionários do caso com
vistas ao alcance da decisão favorável à luta do Povo Indígena Xukuru – legítimos
protagonistas do processo de conquista de Direitos.
Palavras-chaves: Povo Indígena Xukuru; Corte Interamericana de Direitos Humanos;
trâmite processual; Sentença.

Abstract:
The article seeks to explore the procedural path of the Case of the Xukuru Indigenous
People v. Brazil, within the scope of the Inter-American Court of Human Rights, especially
with the court's decision in 2018 and the consequences of monitoring its compliance.
Evoking a journey that involves the historical past of the violations up to the processing
of the complaint in the Inter-American System, the article proposal is to give visibility to
the strategies and paths used by the petitioners to obtain a favorable decision to the
struggle of the Xukuru Indigenous People – the legitimate protagonists in the process of
achieving their Rights.
Keywords: Indigenous Xukuru People; Inter-American Court of Human Rights; Procedural
Law; Legal Sentence.

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1. Histórico e características gerais do Povo Indígena Xukuru de Ororubá

O Povo Indígena Xukuru do Ororubá é formado por de 2.354 famílias, residentes em 2.265
casas, com 7.726 indígenas aldeados, distribuídos em 24 aldeias em um território de
27.555 hectares. Dados históricos do Século XVI já registravam a sua presença no
território, segundo Vânia R. Fialho1 e Kelly Oliveira2. Encontra-se encravado na Serra do
Ororubá, Município de Pesqueira, estado de Pernambuco, na região nordeste do Brasil.
Ademais, vivem no perímetro urbano da cidade de Pesqueira, outros 4.228 indígenas
desaldeados, pertencentes ao mesmo povo indígena Xukuru do Ororubá. Desta forma, as
questões que serão analisadas no presente artigo, impactam diretamente uma população
total de 11.954 indígenas e toda uma cultura e imaginário que venceram os séculos com
a resistência que é a característica principal desse povo.
Apresentam um modelo de organização social com características próprias. Se
poderá perceber ainda que tal estrutura foi sendo constituída, no decorrer dos anos,
também pautada no horizonte de enfrentamento das demandas e problemáticas pelos
Xukurus. Assim, uma série de instâncias de decisão compartilhadas e dentro das suas
especificidades, assumem espaço com uma hierarquia tradicional assentada nas figuras
do Cacique e do Pajé, como pontes de todo um povo com o mundo externo, seja na
representação política junto ao Estado, seja perante as divindades do reino dos seres
encantados, de onde a crença na perpetuação da ancestralidade em outros níveis de
realidade encontra guarida no coração da população Xukuru.
Ainda no âmbito histórico, é relevante pontuar a participação de indígenas
Xukurus durante a Guerra do Paraguai(1864 - 1870). Tal fato, segundo relato dos próprios
indígenas se deu até mesmo por meio de alistamento forçado. Há diversos relatos que
apontam para a participação dos Xukuru do Ororubá no conflito, inclusive por meio de
alistamento forçado3. Esse fato é importante para o Povo Xukuru, devido ao chamado
grupo dos “30 de Ororubá” – guerreiros que se alistaram ao exército brasileiro e
retornaram da Guerra com a promessa de terem a propriedade do território tradicional

1 FIALHO, Vânia Rocha. As fronteiras do ser Xukuru. Recife: Massangana, 1998.


2 OLIVEIRA, Kelly. Guerreiros do Ororubá: o processo de organização política e elaboração simbólica do povo
indígena Xukuru. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2014.
3 SILVA, Edson Hely. História, memórias e identidade entre os Xukuru do Ororubá. Disponível em:

<https://www3.ufpe.br/remdipe/images/documentos/fontes_xukuru/silva%20edson%20hely
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repassada para o povo indígena, por ato de vontade do Império brasileiro à época 4 .
Entretanto, em 1879, sob o lastro da Lei de Terras (Lei nº 601, de 1850), que visou regular
a administração das terras devolutas do Império brasileiro, o então “Aldeamento dos
Xukuru” terminou por ser extinto oficialmente 5 . Tal medida por óbvio foi de grande
impacto negativo para o Povo Xukuru e a manutenção de seu território, que foi
completamente devassado por fazendeiros, invasores e membros da elite local6. Assim se
deu um momento dos mais críticos da história do povo indígena da Serra de Ororubá – a
Diáspora Xukuru.7
Apenas 65 anos depois, já no início da segunda metade do século XX o Estado
brasileiro volta a lançar um olhar sobre o Povo Xukuru, com a produção do “(...) primeiro
relatório oficial contemporâneo sobre os Xukuru datado de 1944, e foi feito pelo
sertanista e funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), Cícero Cavalcanti (...)”8. Este
levantamento é emblemático pois relata a forma como historicamente o Povo Xukuru de
Ororubá veio sendo constantemente perseguido no que tange à sua cultura, sua
identidade espiritual e organizacional, em função da disputa pelo território tradicional. O
autor do relatório denuncia que “caboclos mais velhos” se reuniam para realizar atos e
rituais, e que foram denunciados como praticantes de feitiçaria, por fazendeiros brancos,
à polícia. Afirma também que lideranças espirituais do povo indígena foram levadas à
delegacia, e os índios Xukuru foram terminantemente proibidos de praticar seus rituais e
fazer uso de sua medicina tradicional. Mas mesmo diante deste cenário, consta do

4 SILVA, Edson Hely. Índios organizados, mobilizados e atuantes: história indígena em Pernambuco nos
documentos do Arquivo Público. Disponível em:
<http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cogedi/pdf/revista_estudos_pesquisas_v3_n1_2/07indios_or
ganizados_mobilizados_e_atuantes_Edson_Silva.pdf >. Acesso em: 09 jun. 2020.
5 POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. XUKURU. Brasília,DF: 2020. Disponível em:
<https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xukuru>. Acesso em: 09 jun. 2020.
6 SILVA, Edson Hely. História, memórias e identidade entre os Xukuru do Ororubá. Disponível em:

<https://www3.ufpe.br/remdipe/images/documentos/fontes_xukuru/silva%20edson%20hely
2007.pdf >. Acesso em: 09 jun. 2020.
7 SILVA, Edson Hely. Índios organizados, mobilizados e atuantes: história indígena em Pernambuco nos

documentos do Arquivo Público. Disponível em:


<http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cogedi/pdf/revista_estudos_pesquisas_v3_n1_2/07indios_or
ganizados_mobilizados_e_atuantes_Edson_Silva.pdf >. Acesso em: 09 jun. 2020.
8 SILVA, Edson Hely. Índios organizados, mobilizados e atuantes: história indígena em Pernambuco nos

documentos do Arquivo Público. Disponível em:


<http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cogedi/pdf/revista_estudos_pesquisas_v3_n1_2/07indios_or
ganizados_mobilizados_e_atuantes_Edson_Silva.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020.

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relatório sobre o Povo Xukuru de Yorubá que “alguns costumes Xukurus ainda vivem em
seu coração”9.
Com a vigência da Constituição de 1988, os Xukuru iniciam uma mobilização pela
retomada da posse de suas terras, pressionando as autoridades pela garantia de seus
direitos. Com todo processo constituinte que desembocou na Carta Magna de 1988, no
qual os povos indígenas tiveram destacada participação – em especial o Cacique Xicão
Xukuru, os povos indígenas brasileiros conseguiram que constasse do texto final do
documento constitucional o reconhecimento de “sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam” (art. 231, caput); além do direito “à utilização de suas línguas maternas e
processos próprios de aprendizagem” no ensino fundamental regular (art. 210, § 2.º), e o
reconhecimento dos índios como “partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de
seus direitos e interesses” (art. 232). Entretanto, a letra escrita do texto constitucional
não se tornou padrão aplicável automaticamente para os povos indígenas brasileiros. A
luta pelo território tradicional entrava em uma nova fase.

2. O período das retomadas de território e o aprofundamento do conflito

Até a Constituição Federal de 1988, os indígenas, dentro da normativa brasileira, eram


considerados tutelados e não possuíam capacidade postulatória para ingressar em juízo
por seus direitos.
Com um capítulo especial de garantias, foi inaugurado um novo tempo de direitos
para os povos indígenas brasileiros, ao menos formalmente. Além disso, o artigo 67 do
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estabeleceu um prazo de cinco
anos para a demarcação de todas as terras indígenas no país.
Assim é que o Povo Xukuru passou a exigir a demarcação de seu território
tradicional, em 1989, dando-se início ao processo de demarcação da terra Xukuru.
Entretanto, com a demora em alcançar respostas sobre essa nova fase do fluxo
de exigibilidade em torno da terra indígena, e vendo que a mesma estava sobre o pleno

9SILVA, Edson Hely. Índios organizados, mobilizados e atuantes: história indígena em Pernambuco nos
documentos do Arquivo Público. Disponível
em:<http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/cogedi/pdf/revista_estudos_pesquisas_v3_n1_2/07indio
s_organizados_mobilizados_e_atuantes_Edson_Silva.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020.

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controle de posseiros e fazendeiros variados, o Povo Xukuru começa a avançar com a


retomada do domínio do território10.
Dois anos após, mais uma vez paralisado o processo de demarcação, os Xukuru,
retomam a Fazenda Caípe, a qual estava em posse do fazendeiro Milton Rego Didier. Este
fazendeiro, por conseguinte, inicia uma Ação de Reintegração de Posse referente aos 300
hectares da fazenda. Esse processo é emblemático pois alcançou ganho de causa em favor
do fazendeiro em várias instâncias, sendo um fator patente de insegurança jurídica do
direito ao usufruto pleno e exclusivo da terra pelo próprio Povo Xukuru.
Com a Portaria 259 do Ministério da Justiça, ainda em 1992, houve o
reconhecimento da área de 26 mil hectares ao Povo Xukuru. Isso foi o estopim para o
assassinato de José Bispo, filho do pajé. O fato ocorreu dentro da terra indígena e visou
abalar o pilar espiritual dos Xukurus. Em reposta, novas retomadas foram feitas. Já com o
prazo estabelecido no artigo 67, ADCT, para que fossem concluídas as demarcações de
terras no país, o Povo Xukuru continuou com as retomadas. Em janeiro de 1995, são
iniciados os trabalhos para a demarcação física do território Xukuru, totalizando pouco
mais de 27.555 hectares. Assim como no caso do filho do pajé, meses depois da
demarcação física, o advogado Geraldo Rolim, da FUNAI, defensor assíduo do povo
Xukuru foi assassinado.
Em 1997, 90% do território Xukuru ainda estava ocupado por terceiros não-
indígenas. Dentre os posseiros, se encontravam fazendeiros e políticos de influência na
região. Ou seja, o Estado não agiu efetivamente no sentido de retirar esses posseiros ou
garantir a proteção da terra ancestral. Neste ano mais três retomadas são feitas e o
Cacique Xicão Xukuru expande a divulgação das recorrentes ameaças que vinha sofrendo
contra a sua própria vida, encaminhando tais fatos às autoridades, que nada fizeram a
respeito. Em 20 de maio do ano seguinte, o cacique Xicão Xukuru foi assassinado.
Com a morte do líder máximo do povo Xukuru, e figura emblemática na luta pelos
direitos dos povos indígenas no cenário nacional, se estabeleceu toda uma reestruturação
sócio-política da comunidade indígena.
Somente 1 ano e 7 meses depois da perda do Grande Cacique Xicão, é que a
comunidade indígena, sob a orientação dos seres encantados da natureza – seguindo suas

10FERREIRA. Ivson J.; BRASILEIRO, Sheila; FIALHO, Vânia. Dossiê Chicão Xukuru - TERRA INDÍGENA XUKURU/PE
(1988-1998): BREVE HISTÓRICO DE UM CONFLITO PERMANENTE. In: "Plantaram" Xicão: Os Xukuru do
Ororubá e a Criminalização do direito ao território / Vânia Fialho, Rita de Cássia Maria Neves, Mariana
Carneiro Leão Figueiroa (Organizadoras). Manaus: PNCSA- UEA/UEA Edições, 2011

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crenças religiosas particulares – voltou a ter um novo cacique. Em 06 de janeiro de 2000,


o filho de Xicão, Marquinhos Xukuru, já sob diversas ameaças, assume o cacicado. 20 dias
após, novas retomadas de território pelos indígenas foram estabelecidas.
Foi apenas em 30 de abril de 2001, que o território ancestral do Povo Xukuru foi
homologado. Uma nova e grande sequência de retomadas. Como resposta, o indígena
Chico Quelé foi assassinado. Mas as retomadas não pararam e em meio a uma batalha de
recursos administrativos no âmbito do processo de demarcação, a Polícia Federal realiza,
no início de 2002, a exumação do corpo do cacique Xicão. Com requintes de crueldade,
a exumação do corpo – que na cultura Xukuru é plantando, e não sepultado –, na frente
de crianças e demais membros do povo, sem condições técnicas mínimas para realização
da perícia, foi um novo duro golpe no povo Xukuru.
O povo Xukuru, com o cacique Marquinhos Xukuru à frente, realiza até o final do
ano de 2002, mais 21 retomadas de território que estavam nas mãos de posseiros e
fazendeiros.
Como um padrão de atuação que se repetiu ao longo da luta do povo Xukuru por
seu território, a resposta às retomadas foi, em 07 de fevereiro de 2003, um atentado
contra a vida do cacique Marquinhos Xukuru, no qual – apesar do cacique ter escapado
acabou por se resultar na morte de dois jovens indígenas. Ato contínuo, os membros do
povo Xukuru se rebelaram contra tal situação de violação, o que levou ao indiciamento
de aproximadamente 50 indígenas Xukuru, incluindo o próprio cacique, pela Polícia
Federal. Superando todas as adversidades, em prol da garantia plena ao exercício do
usufruto de todo o território tradicional, o povo Xukuru realizou novas retomada nos anos
seguintes, até 2004, mais 7 retomadas.
Paralelamente a esse cenário de ameaças e violências contra a comunidade, o
processo de demarcação oficial seguia estagnado. Como já foi dito, a terra indígena foi
homologada em 30 de abril de 2001. O passo seguinte do processo seria o registro da
terra no Cartório, como propriedade da União, bem como na Secretaria de Patrimônio da
União. No entanto, o Cartório do 1º Ofício ingressou com uma ação de suscitação de
dúvida, que se arrastou por inexplicáveis três anos. Até que, em 18 de novembro 2005,
foi finalmente realizado o registro da Terra Indígena Xukuru, perante o Cartório de
Registro de Imóveis. Ou seja, houve um hiato de quatro anos entre duas fases do processo
demarcatório que deveriam ser seqüenciais.
Em 2006, foram realizadas mais duas retomadas e em 2007, mais uma. Nesta

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época, o levantamento fundiário do território, identificou, ainda, o total de 624 áreas


ocupadas por terceiros não-indígenas, dentro do espaço identificado como território
ancestral.
No ano seguinte, em virtude das ameaças constantes, o cacique Marquinhos
Xukuru foi inserido no Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos, e, em
2009, o povo Xukuru fez sua última retomada.
Como desdobramento do indiciamento ocorrido após o atentado contra o
cacique Marquinhos Xukuru, o Poder Judiciário condenou mais de trinta Xukurus a penas
entre 4 e 12 anos de prisão e a multa de 50 mil reais. Após recurso à instância superior,
as condenações foram reduzidas para uma média de 4 anos e substituídas por medidas
alternativas à prisão. Entretanto, as penas pecuniárias de 50 mil reais cada foram
mantidas.
Em suma, o procedimento demarcatório, que foi iniciado em 1989, apenas obteve
em 1995 a demarcação física do território. Com o procedimento administrativo em vias
de conclusão, restava só a desintrusão do território, mas até os anos 2000 o território
ainda estava 90% ocupado por terceiros. Dessa forma, resta patente a série de violações
sofridas e as ações de resistência que o povo Xukuru se viu obrigado a implementar para
garantir avanços na retomada do seu território ancestral. Sem a força dos guerreiros e
guerreiras Xukuru, sua organização e resistência, a terra ancestral não teria sido
resguardada. Infelizmente, os órgãos do Estado apenas agiram em prol da garantia dos
direitos territoriais do Povo Xukuru após muita pressão e resistência destes, situação que
se repete com os demais povos indígenas do país.

3. Caso no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)

Considerando o cenário de ameaças que pairavam sobre o povo Xukuru, bem como a
demora na finalização do processo de demarcação da terra indígena, o povo indígena
decidiu, em diálogo com sua assessoria, levar o caso para o Sistema Interamericano de
Direitos Humanos.

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A denúncia foi apresentada à Comissão Interamericana em 16 de outubro de


2002, onde tramitou até março de 2016.11A petição inicial foi apresentada pelas seguintes
instituições: Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (GAJOP),
Movimento Nacional de Direitos Humanos/Regional Nordeste (MNDH), e Conselho
Indigenista Missionário (CIMI). Foi apresentado ao conhecimento da Comissão
Interamericana fatos que indicavam, nos dizeres dos peticionários:
suposta violação do direito à propriedade coletiva e às garantias e proteção
judiciais, consagrados, respectivamente, nos artigos 21, 8 e 25 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (“a Convenção Americana" ou “a
Convenção”), em relação com as obrigações gerais de respeitar os direitos e
de adotar disposições de direito interno previstas nos artigos 1.1 e 2 do
mesmo tratado, em detrimento do povo indígena Xucuru e seus membros, na
cidade de Pesqueira, estado de Pernambuco12.

Para fundamentar suas alegações, os peticionários aduziram ao longo tempo para


efetivação do processo de demarcação do território ancestral, além da patente ineficácia
da proteção judicial, somada à falta de recursos judiciais eficazes e acessíveis, voltada à
garantia desse direito. Ademais, quando o caso já se encontrava na etapa de mérito, os
peticionários buscaram adicionar alegações referentes aos artigos 4 e 5 da Convenção
Americana.
O Estado brasileiro, em contrapartida, argumentou continuamente que a petição
referente ao caso deveria ser considerada improcedente, ante o entendimento de que
processo administrativo de demarcação da "Terra Indígena Xukuru”, que teve início nos
idos de 1989, se encontrava concluído, ao menos no aspecto formal, já que reconheceu
que a desintrusão do território indígena, ou seja, a retirada completa dos ocupantes não
indígenas da região, ainda não havia sido finalizada. A dimensão do prazo razoável de
demarcação do território indígena também foi alvo da argumentação do Estado brasileiro,
que alegou que todo o trâmite seguia um andamento razoável ante “a complexidade da

11 CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs.
Brasil. Relatório de Admissibilidade da Comissão Interamericana. Washington, D.C: CIDH, 2009. Disponível
em: <http://cidh.oas.org/annualrep/2009port/Brasil4355.02port.htm>. Acesso em: 09 jun. 2020.
CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs. Brasil.
Relatório de Mérito da Comissão Interamericana. Washington, D.C: CIDH, 2015. Disponível em:
<https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2016/12728FondoPt.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020.
12 CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs.

Brasil. Relatório de Mérito da Comissão Interamericana. Washington, D.C: CIDH, 2015. Disponível em:
<https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2016/12728FondoPt.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020.

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questão e a necessidade de garantir o devido processo legal aos terceiros não indígenas,
assim como o direito destes a uma indenização justa”13.
A Comissão Interamericana, ante às argumentações expostas pelas partes
durante o trâmite, em sede de relatório de mérito concluiu que o Brasil violou o artigo
XXIII da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. Vale ressaltar que tal
responsabilidade internacional pautada na Declaração Americana de Direitos e Deveres
do Homem abarcou o período dos fatos ocorridos até a ratificação da Convenção
Americana pelo Brasil, ou seja, até 25 de setembro de 1992. Ademais, a Comissão
Interamericana, adicionalmente também concluiu que em relação aos fatos ocorridos
após a data de ratificação da Convenção Americana pelo Brasil, o Estado deveria ser
considerado responsável pela violação do direito à integridade pessoal, propriedade
coletiva, às garantias judiciais e à proteção judicial, conforme os artigos 5, 21, 8.1 e 25.1
da Convenção Americana, em relação com as obrigações previstas nos artigos 1.1 e 2 do
mesmo tratado, em prejuízo do povo indígena Xukuru e seus membros14.
Ao término do Relatório de Mérito, datado de 28 de julho de 2015, a Comissão
Interamericana recomendou ao Estado brasileiro, as seguintes ações:
a. Adotar, com a brevidade possível, as medidas necessárias, inclusive as
medidas legislativas, administrativas ou de outra natureza, indispensáveis à
realização do saneamento efetivo do território ancestral do Povo Indígena
Xucuru, de acordo com seu direito consuetudinário, valores, usos e costumes.
Consequentemente, garantir aos membros do povo que possam continuar
vivendo de maneira pacífica seu modo de vida tradicional, conforme sua
identidade cultural, estrutura social, sistema econômico, costumes, crenças e
tradições particulares.
b. Adotar, com a brevidade possível, as medidas necessárias para concluir os
processos judiciais interpostos por pessoas não indígenas sobre parte do
território do Povo Indígena Xucuru. Em cumprimento a essa recomendação,
o Estado deveria zelar para que suas autoridades judiciais resolvessem as
respectivas ações conforme as normas sobre direitos dos povos indígenas
expostos no Relatório de Mérito.
c. Reparar, nos âmbitos individual e coletivo, as consequências da violação
dos direitos enunciados no Relatório de Mérito. Em especial, considerar os
danos provocados aos membros do Povo Indígena Xucuru, pela demora no
reconhecimento, demarcação e delimitação, e pela falta de saneamento
oportuno e efetivo de seu território ancestral.
d. Adotar as medidas necessárias para evitar que no futuro ocorram fatos
similares; em especial, adotar um recurso simples, rápido e efetivo, que tutele

13 CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs.
Brasil. Relatório de Mérito da Comissão Interamericana. Washington, D.C: CIDH, 2015. Disponível em:
<https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2016/12728FondoPt.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020.
14 CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Povo Indígena Xucuru e seus membros Vs.

Brasil. Relatório de Mérito da Comissão Interamericana. Washington, D.C: CIDH, 2015. Disponível em:
<https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2016/12728FondoPt.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020.

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o direito dos povos indígenas do Brasil de reivindicar seus territórios


ancestrais e de exercer pacificamente sua propriedade coletiva

O Relatório de Mérito concedeu um prazo de dois meses para que o Estado


informasse sobre o cumprimento das recomendações emitidas pela Comissão
Interamericana. Findo o prazo e após a concessão de uma prorrogação, a CIDH constatou
que o Estado não havia conseguido avançar em termos substanciais no cumprimento das
recomendações, até mesmo no que se refere a reparação ao Povo Indígena Xukuru pelas
violações sofridas. É digno de nota que apesar de a Comissão Interamericana ter
identificado alguns avanços no tocante à desintrusão formal do território ancestral do
Povo Indígena Xukuru, o exercício pacífico desse direito ao território ainda não era uma
realidade.
Foi então que, em 16 de março de 2016, a Comissão submeteu o caso à Corte
Interamericana, solicitando que fosse declarada a responsabilidade internacional do
Brasil pelas violações já declaradas no Relatório de Mérito, e que fosse ordenado ao
Estado brasileiro que cumprisse as medidas de reparação constantes no relatório. Na
prática, a Comissão Interamericana apresentou todo o conjunto de ações e omissões
promovido pelo Estado brasileiro que efetivamente ocorreram, ou que continuaram a
ocorrer, após a data de 10 de dezembro de 1998, quando houve a aceitação, pelo Brasil,
da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória em relação à competência da Corte
Interamericana.
A Corte Interamericana notificou o Estado, bem como os representantes das
supostas vítimas, em 19 de abril de 2016, sobre o caso. Neste período, a crise de
investimentos que assolou muitas organizações não-governamentais e fragilizou a
atuação das equipes, impossibilitou a apresentação do escrito de pedidos, argumentos e
provas. O que fez com que novas parcerias fossem constituídas, concretizadas no ingresso
da organização Justiça Global no rol de representantes das vítimas, visando a implicação
de um universo mais amplo de atores na sustentação técnica, política e financeira para a
continuidade do caso.
O Estado apresentou o seu escrito de contestação, no qual foram opostas cinco
exceções preliminares, em 14 de setembro de 2016. A Comissão Interamericana deu a
conhecer suas observações sobre as exceções preliminares apresentadas pelo Estado
brasileiro, em 26 de outubro de 2016, ao tempo em que solicitou que fossem todas elas
julgadas improcedentes.

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Um marco importante para o trâmite do Caso Povo Indígena Xukuru e seus


membros vs. Brasil, foi desencadeado com a resolução de 31 de janeiro de 2017, do
Presidente da Corte Interamericana, quando convocou as partes e a Comissão
Interamericana para uma audiência pública, com o intuito de ouvir suas alegações e
observações finais orais tanto sobre as exceções preliminares, quanto sobre as eventuais
questões de mérito, reparações e custas.
No procedimento perante a Corte Interamericana, foram de suma importância as
peritagens apresentadas pelo professor Carlos Frederico Marés e Victoria Tauli-Corpuz,
Relatora Especial das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas. Os peritos
apresentaram relatórios impressionantes sobre o regime jurídico das terras indígenas no
Brasil, bem como sobre padrões internacionais no tocante à garantia do direito de
propriedade indígena, que vinculam os Estados, respectivamente.
A audiência teve lugar na Cidade da Guatemala, em 21 de março de 2017 e contou
com a presença dos representantes das organizações assessoras (CIMI, GAJOP e Justiça
Global), a antropóloga Vânia Fialho e o Cacique Marquinhos Xukuru. 15
A Corte Interamericana recebeu ao menos cinco escritos de amicus curiae 16 ,
apresentados por Clínicas de Direitos Humanos de universidades brasileiras e
estrangeiras, pela Associação Juízes para a Democracia e pela Defensoria Pública da
União. Sobre tais amici curiae, o Estado apresentou objeções afirmando desde que os
mesmos pretendiam ampliar o campo de análise da Corte ao abranger projetos de lei e
outras medidas legislativas fora do caso concreto, passando pela indicação de que alguns
escritos eram abertamente parciais e que neles eram trabalhadas questões alheias ao
objeto do caso. Com relação a um dos escritos, o Estado chegou a alegar que o mesmo
não apresentava um tratamento técnico e imparcial das questões teóricas relevantes para

15CORTE IDH. Audiencia Pública. Caso Pueblo Indígena Xucuru y sus miembros Vs. Brasil. Cidade da
Guatemala:
CORTE IDH, 2017. 1 vídeo (1h26min17). Disponível em: <https://vimeopro.com/corteidh/caso-pueblo-
indigena-xucuru-y-sus-miembros-vs-brasil>. Acesso em: 09 jun. 2020.
161) de forma conjunta, pela Clínica de Direitos Humanos da Universidade de Ottawa, pela Fundação para o

Devido Processo, pelo Núcleo de Estudos em Sistemas Internacionais de Direitos Humanos da Universidade
Federal do Paraná e pela Rede de Cooperação Amazônica; 2) também de forma conjunta, pela Clínica de
Direitos Humanos e Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e pelo Grupo de Pesquisa de
Direitos Humanos do Amazonas; 3) pela Associação de Juízes para a Democracia; 4) pela Clínica de Direitos
Humanos do Amazonas, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Pará; e 5) pela Defensoria Pública da União, do Brasil. Corte IDH. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus
Membros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 05 de fevereiro de
2018, Serie C, No. 346. Disponível em:
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p.477-496.


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o caso, ao ter assumido abertamente as teses sustentadas pelos representantes. Sobre


tais argumentos do Estado, a Corte Interamericana se manifestou afirmando que “as
observações do Estado sobre a admissibilidade dos amici curiae no presente caso não
foram apresentadas no prazo estabelecido para esse efeito, qual seja, em suas alegações
finais escritas”17, tendo sido consideradas intempestivas. Ainda afirmou a Corte IDH que
“as observações sobre o conteúdo e o alcance dos referidos amici curiae não afetam sua
admissibilidade, sem prejuízo de que essas observações possam ser consideradas,
substancialmente, no momento de avaliar a informação que neles figure, caso seja
considerada apropriada.”18
Após o envio das alegações finais escritas e determinados anexos, tanto pelos
representantes das vítimas, quanto pelo Estado, na data de 24 de abril de 2017, e a
Comissão Interamericana ter apresentado suas observações finais escritas, a Secretaria
da Corte encaminhou toda a documentação das alegações finais escritas, solicitando
possíveis apontamentos aos representantes, ao Estado e à Ilustre Comissão. Apenas os
representantes das vítimas e o Estado apresentaram observações.
É importante mencionar que durante a realização da Audiência Pública, a Corte
Interamericana requisitou que fossem apresentados determinados documentos e
informações como provas para melhor resolver. Desse modo, o Estado e os
representantes, respectivamente, em 2 e 3 de março de 2017, apresentaram os dados
solicitados19.
Em 05 de fevereiro de 2018, o caso teve finalmente um desfecho, com a
publicação da sentença.

17 Corte IDH. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito,
Reparações e Custas. Sentença de 05 de fevereiro de 2018, Serie C, No. 346. Disponível em:
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020
18 Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e

Custas. Sentença de 05 de fevereiro de 2018, Serie C, No. 346. Disponível em:


<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020
19 Documentos solicitados ao Estado: 1) Autos completos da Ação Ordinária No. 0002246-51.2002.4.05.8300

(número original 2002.83.00.002246-6), interposta por Paulo Pessoa Cavalcanti de Petribu e outros; 2)
Atualização, desde 1996, da Ação de Reintegração de Posse No. 0002697-28.1992.4.05.8300 (número original
92.0002697-4), interposta por Milton do Rego Barros Didier e outros; e 3) Informação detalhada sobre a
situação jurídica das seis ocupações não indígenas ainda não indenizadas e retiradas da Terra indígena Xucuru.
Documento solicitado aos representantes: informação sobre os membros do Povo Indígena Xukuru, sua
identificação e composição atual. Corte IDH. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros Vs. Brasil.
Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 05 de fevereiro de 2018, Serie C, No. 346.
Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em: 09 jun.
2020

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A Corte Interamericana entendeu que a violação aos direitos territoriais do Povo


Xukuru não cessou com a conclusão da fase formal da demarcação, isto é, com o registro
da terra no Cartório do 1º Ofício de Registro de Imóveis, de Pesqueira, Pernambuco, mas
que a violação era permanente enquanto pessoas não indígenas continuassem ocupando
o território.
Assim, o Brasil foi condenado a finalizar o processo de desintrusão do território,
realizando todos os pagamentos de benfeitorias aos ocupantes de boa-fé, garantindo o
domínio pleno e efetivo do povo Xukuru sobre o seu território. A Corte Interamericana
ordenou ainda que o Estado garantisse a proteção do território contra invasão,
interferência ou dano, por parte de terceiros ou agentes de Estado.
Em outras palavras, o Estado foi obrigado a garantir tanto que os não-indígenas
fossem retirados da terra, quanto impedir que novas ocupações e invasões
acontecessem. O Estado, enfim, foi obrigado a proteger a autonomia dos Xukuru sobre
seu território. A Corte ainda condenou o Brasil ao pagamento de custas e indenizações,
sendo que a última seria feita na forma da constituição de um fundo, que seria
administrado pelo povo Xukuru.
A condenação do Brasil no caso Povo Indígena Xucuru e seus Membros Vs. Brasil
foi um feito histórico, resultado de anos de luta do povo Xukuru por justiça e pela
demarcação de seu território20. Além disso, foi a primeira condenação do país envolvendo
a violação de direitos territoriais indígenas, ou seja, pela primeira vez, o país foi
condenado pela violação ao artigo 21, da Convenção Americana de Direitos Humanos, em
relação a povos indígenas.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem parâmetros muito avançados
no tocante à garantia dos direitos territoriais indígenas e essa jurisprudência foi
reafirmada no caso Povo Indígena Xucuru e seus Membros Vs. Brasil, valendo, portanto,
não apenas para esse caso específico, mas para outros povos indígenas no continente
inteiro que estivessem em uma situação similar de luta pelo seu território.
Os parâmetros para interpretação do direito coletivo à propriedade, de acordo
com a jurisprudência consolidada da Corte Interamericana de Direitos Humanos são os
seguintes: 1) Equivalem-se em efeitos a posse tradicional exercida por povos indígenas

20Corte IDH. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito,
Reparações e Custas. Sentença de 05 de fevereiro de 2018, Serie C, No. 346. Disponível em:
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p.477-496.


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sobre seus territórios e o título de domínio outorgado pelo Estado; 2) A posse tradicional
exercida por indígenas dá-lhes o direito de tê-la reconhecida oficialmente pelo Estado e
o seu registro; 3) A perda ou saída do território por razões alheias à sua vontade não
significa para os membros de povos indígenas a perda do direito de propriedade sobre
elas, apesar da ausência de título legal, salvo nos casos em que as terras tenham sido
legitimamente transferidas a terceiros de boa-fé; 4) No caso da transferência a terceiros
de boa-fé, depois da perda involuntária da posse da terra, a comunidade indígena tem o
direito de recuperar essas terras ou obter outras de igual extensão e qualidade; 5) O
Estado tem a obrigação de delimitar, demarcar e conceder o título coletivo das terras às
comunidades indígenas; 6) O Estado deve garantir a propriedade efetiva dos povos
indígenas sobre suas terras, protegendo tal direito da interferência tanto de agentes do
próprio Estado, quanto de agentes privados; 7) Aos povos indígenas deve ser garantido o
direito de controlar efetivamente o seu território, sem nenhum tipo de interferência
externa; 8) O Estado deve garantir que as comunidades indígenas possam controlar e usar
o seu território e os recursos naturais daí decorrentes21.
Assim, aplicando tais parâmetros de interpretação do artigo 21, a Corte
Interamericana afirmou a obrigação do Estado Brasileiro de concretizar e dar segurança
jurídica à posse tradicional de povos indígenas sobre o seu território. O processo
administrativo de delimitação, demarcação, titulação e desintrusão de territórios
indígenas, existente no ordenamento jurídico brasileiro, é meio idôneo para a garantia
desse direito.
No caso dos Xukuru, havia um conflito entre o direito individual de propriedade
(não-indígenas que possuíam terras no interior da terra indígena) e o direito coletivo
indígena, que tinha a comunidade como titular. Na perspectiva da Corte Interamericana,
ambos os direitos são igualmente resguardados pela Convenção Americana, em que pese
o direito coletivo ser tradicional e ter efeitos equivalentes ao título de domínio conferido
pelo Estado.

21Corte IDH. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito,
Reparações e Custas. Sentença de 05 de fevereiro de 2018, Serie C, No. 346. Disponível em:
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020; Corte IDH.
Caso Povos Kaliña e Lokono Vs. Suriname. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 25 de novembro de 2015,
Serie C, No. 309, par. 131-132. Disponível em:
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_309_esp.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p.477-496.


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Assim, em caso de conflito entre os dois direitos, caberia exclusivamente ao


Estado realizar uma ponderação no caso a caso entre os dois direitos, para tentar
compatibilizá-los com restrições mútuas, sem que, no entanto, a limitação ao direito às
terras tradicionais implicasse na “denegação de sua subsistência como povo”22.
No entanto, no caso brasileiro, a Corte Interamericana afirma que esse
sopesamento já fora realizado pela Constituição da República e sua interpretação feita
pelo Supremo Tribunal Federal:
[...] a qual confere proeminência ao direito à propriedade coletiva sobre o
direito à propriedade privada, quando se estabelece a posse histórica e os
laços tradicionais do povo indígena ou tradicional com o território, ou seja, os
direitos dos povos indígenas ou originários prevalecem frente a terceiros de
boa-fé e ocupantes não-indígenas. Além disso, o Estado afirmou que tem o
dever constitucional de proteger as terras indígenas23.

A Corte constatou ainda que a titulação de um território indígena no Brasil tem


caráter declaratório, e não constitutivo do direito, sendo tão somente um instrumento
para conferir segurança jurídica ao direito constitucionalmente garantido dos povos
indígenas a seu território.
Sem embargo, esse processo, no caso dos Xukuru, falhou em conceder segurança
jurídica ao povo indígena, na medida em que se arrastou por aproximadamente vinte
anos, a contar do ano em que foi iniciado (1998) e a data da sentença da Corte, bem como
porque implicou um agravo direto ao direito de propriedade indígena.
Por outro lado, é importante destacar que alguns pontos considerados muito
importantes pelas vítimas foram deixados de lado pelos juízes da Corte Interamericana.
Por exemplo, o tema da violação à integridade pessoal (artigo 5, da Convenção
Americana): o dano psicológico ao povo indígena, que teve que viver por tantos anos em
uma situação de muitas ameaças, assassinato de lideranças e insegurança jurídica quanto
ao seu território não foi reconhecido pela Corte Interamericana, infelizmente.
Decorridos mais de três anos da sentença da Corte Interamericana, os
representantes das vítimas ainda se encontram envolvidos no processo de
implementação da sentença da Corte Interamericana. O pagamento da indenização de
um milhão de dólares foi concluído em fevereiro de 2020, porém a comunidade segue à

22 Corte IDH. Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito,
Reparações e Custas. Sentença de 05 de fevereiro de 2018, Serie C, No. 346. Disponível em:
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020
23 Ibidem, par. 127.

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espera da conclusão do processo de desintrusão do seu território. Com efeito, seis


famílias não-indígenas seguem ocupando 160 hectares da TI Xukuru, sendo que há uma
sentença de reintegração de posse a ser executada em uma área de 300 hectares24.
A demora no pagamento da indenização, ordenada pela Corte Interamericana
deveu-se a uma controvérsia sobre o modo como tal reparação deveria se dar.
Finalmente, com o aval da Corte Interamericana, o Estado Brasileiro aceitou fazer o
pagamento diretamente à associação Xukuru, com o intuito de constituir um Fundo de
Desenvolvimento Comunitário.
Se por um lado o pagamento realizado pela União diretamente aos membros do
Povo Indígena Xukuru consiste em uma grande conquista, por representar uma medida
de respeito à autonomia e auto-determinação do povo indígena, ao mesmo tempo pode
se tornar um grande revés nesses mesmos aspectos, a depender se os órgãos do Estado
exigirão algum tipo de contrapartida para o gasto dos recursos do fundo, por parte da
comunidade indígena.

Conclusões

Depois de muitos anos de luta e de muitas vidas perdidas, os Xukuru alcançaram uma
vitória importantíssima para a garantia dos seus direitos. Mas mais do que uma vitória do
povo Xukuru, a sentença da Corte Interamericana foi uma conquista dos povos indígenas,
que viram parâmetros muito avançados no tocante à interpretação do artigo 21 da
Convenção Americana de Direitos Humanos serem reafirmados pelo órgão máximo do
Sistema Interamericano.
Especificamente no caso do Brasil, a sentença do caso Xukuru traz elementos
contundentes que podem ser muito estratégicos em um momento de tantos retrocessos
na política indígena do país.
Assim, por exemplo, a afirmação do direito territorial indígena como anterior ao
título que lhe dá validade, o direito à titulação do território, assim como a concepção de
que uma comunidade indígena mantém o direito ao seu território ainda que tenha sido

24CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Povo Xukuru recebe indenização do governo após sentença da
CIDH que condenou o Estado por violações de direitos humanos. Brasília, DF: CIMI, 2020. Disponível em:
<https://cimi.org.br/2020/02/povo-xukuru-recebe-indenizacao-do-governo-federal-como-sentenca-da-cidh-
que-condenou-o-estado-por-violacoes-de-direitos-humanos/>. Acesso em: 05 jun. 2020.

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involuntariamente expulsa do mesmo, podem ser argumentos muito valiosos para


combater ameaças aos direitos territoriais indígenas25. Dentre estas, pode-se mencionar
a tese do marco temporal, que ganhou relevância no julgamento do caso Raposa Serra do
Sol (Petição 3388) 26.
Deste modo, a sentença da Corte Interamericana também convoca tribunais
brasileiros a realizarem o controle de convencionalidade, isto é, a análise de
compatibilidade com tratados e convenções internacionais, sobre atos e normas editadas
pelos diversos órgãos do Estado Brasileiro, em seus três níveis: municipal, estadual e
federal.
Outro ponto que chama a atenção sobre o caso Xukuru no Sistema
Interamericano é que o caso viabilizou o quanto os povos indígenas do Brasil poderiam
fazer um uso mais consistente do Sistema para garantia dos seus direitos, pois apenas em
2016 a Corte Interamericana teve a chance de se pronunciar sobre o caso envolvendo o
Estado Brasileiro, de um lado, e uma comunidade indígena, de outro.
É certo que o Sistema Interamericano tem seus limites, pois uma nova batalha
está sendo travada neste momento pelos representantes das vítimas, para dar
efetividade à sentença. No entanto, trata-se de importante contribuição, que pode
fortalecer a luta dos povos indígenas nacionalmente e contribuir para o alcance de
algumas vitórias.

Referências Bibliográficas

CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Povo Indígena Xucuru e seus
membros Vs. Brasil. Relatório de Admissibilidade da Comissão Interamericana.
Washington, D.C: CIDH, 2009. Disponível em:

25 A título de exemplo, podemos citar a Proposta de Emenda Constitucional no. 215/2000, que passa para o
Congresso Nacional a competência para a aprovação de demarcação de terras indígenas e a ratificação das
demarcações já homologadas (de conteúdo similar, o Projeto de Lei 490/07); e o Parecer no. 01/2017 e
Portaria no. 303/2012, ambos da Advocacia Geral da União (esta última já foi revogada), que estabelecem o
caráter vinculante das dezenove condicionantes afirmadas no caso Raposa Serra do Sol, sendo uma delas
justamente a tese do marco temporal, e que restringem a demarcação de terras no país.
26 Na decisão, o STF afirmou que a Constituição da República estabeleceu a sua data de promulgação da

Constituição, 05 de outubro de 1988, como “insubstituível referencial para o dado da ocupação de um


determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos
índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Algumas demarcações de terras
indígenas têm sido desconstituídas pela aplicação da tese do marco temporal, ainda que o pleno do STF ainda
não tenha afirmado a sua constitucionalidade. Para conferir o acórdão desse julgamento, ver:
<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/pet3388ma.pdf>. Acesso em: 09 jun. 2020.

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<http://cidh.oas.org/annualrep/2009port/Brasil4355.02port.htm>. Acesso em: 09 jun.


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membros Vs. Brasil. Relatório de Mérito da Comissão Interamericana. Washington, D.C:
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<https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2016/12728FondoPt.pdf>. Acesso em:
09 jun. 2020.

CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Povo Xukuru recebe indenização do governo


após sentença da CIDH que condenou o Estado por violações de direitos humanos.
Brasília, DF: CIMI, 2020. Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/02/povo-xukuru-
recebe-indenizacao-do-governo-federal-como-sentenca-da-cidh-que-condenou-o-
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<https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xukuru>. Acesso em: 09 jun. 2020.

Sobre os autores
Rodrigo Deodato de Souza Silva
Doutorando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Mestre e
Bacharel em Direito pela mesma Universidade. Professor de Direito Penal e Processual
Penal da Graduação em Direito da Escola de Ciências Jurídicas da UNICAP. Atuou como
Assessor Jurídico do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares –
GAJOP, no Caso Povo Indígena Xukuru e seus membros vs. Brasil, tanto no âmbito da
Comissão Interamericana, como na Corte Interamericana de Direitos humanos.

Raphaela de Araújo Lima Lopes


Doutoranda em Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em
Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Advogada de direitos
humanos, trabalha atualmente na Advocacia Garcez. Compôs a equipe da Justiça Global
que atuou, juntamente com o CIMI e o GAJOP, na assessoria do Povo Xukuru na Corte
Interamericana de Direitos Humanos.

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo

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O Povo Xukuru frente ao Sistema Interamericano de Direitos


Humanos
Xukuru People in the Inter-American Human Rights System

Jayme Benvenuto Lima Júnior¹


¹ Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: benvenuto-
lima@uol.com.br ORCID https://orcid.org/0000-0001-7521-866X.

Luis Emmanuel Barbosa da Cunha²


² Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail: cu-
nhaluis78@hotmail.com. ORCID http://orcid.org/0000-0002-2099-7528.

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 02/02/2022.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

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Resumo
O objetivo geral é fazer um resgate do trâmite do litígio do Povo Xukuru de Ororubá contra
o Estado brasileiro em sede da Comissão Inter-americana de Direitos Humanos. O objetivo
específico é apontar o núcleo da tese jurídica construída no âmbito da litigância junto à
Comissão Inter-americana de Direitos Humanos e refletir a seu respeito naquilo que está
presente ou ausente na argumentação jurídica quanto à ancestralidade indígena.
Palavras-chave: direito internacional, ancestralidade, direito de propriedade.

Abstract
The general objective is to remember the proceedings of the litigation of the Xukuru Peo-
ple of Ororubá against the Brazilian State at the headquarters of the Inter-American Com-
mission on Human Rights. The specific objective is to point out the nucleus of the legal
thesis constructed at the level of litigation before the Inter-American Commission on Hu-
man Rights and reflect on it in what is present in the argument and in what is absent about
ancestry.
Keywords: international law, ancestry, property rights

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Introdução

A busca incessante do Povo Indígena Xukuru de Ororubá pelo reconhecimento de seu


direito sobre a demarcação de suas terras ancestrais representa um dentre tantos
movimentos 1 que deram vida à expectativa que Ulysses Guimarães lançou sobre a
Constituição Federal de 1988, a Constituição Cidadã, no ato de sua promulgação em 5 de
outubro daquele ano: “A Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar”
(GUIMARÃES, 1988)2.
A presença indígena em torno da Constituinte certamente contribuiu para isso.
Não se tratou de um movimento espontâneo e altruísta dos constituintes em relação aos
indígenas, algo movido por um sentimento de retratação histórica. Manuela Carneiro da
Cunha descreve a atuação necessária e fundamental de entidades e personagens nesse
esforço. Comissão Pró-Índio de São Paulo, Conselho Indigenista Missionário, União das
Nações Indígenas, Instituto Socioambiental, Ailton Krenak, José Affonso da Silva, Dalmo
Dallari e outras.
A Comissão Pro-Índio de São Paulo, na sua fundação em 1978, reuniu vários
voluntários, entre eles um grupo de antropólogos da USP e da Unicamp, como
Lux Vidal, Araci Lopes da Silva, Dominique Gallois, eu mesma, entre outros;
Carlos Alberto (Beto) Ricardo, antropólogo que havia largado a docência na
Unicamp para se dedicar a uma ong, então chamada Centro Ecumênico de
Documentação e Informação (Cedi), e que mais tarde viria a ser o Instituto
Socioambiental (ISA). Havia também um médico da Escola Paulista de
Medicina, Rubens Santilli, e um rapaz que - desconfiado que era e querendo
saber a que vínhamos - demorou muito a se declarar índio, Ailton Krenak, que
teria um papel importantíssimo na Constituinte; além de advogados
defendendo causas indígenas, como Carla Antunha Barbosa e Marco Antônio
Barbosa, que se valiam muito dos conselhos e da assessoria de Dalmo Dallari,
professor titular da Faculdade de Direito da USP. Durante uma época, a
advogada Eunice Paiva também participou. Rosa Penna era a secretária.
Publicávamos um boletim, artigos em jornal, e tínhamos longuíssimas
reuniões discutindo casos. (CUNHA, 2018).

De acordo com Lopes, A primeira presença expressiva indígena na Constituinte


aconteceu em abril de 1987, cheia de simbolismo, durante a apresentação da chamada
“Proposta Unitária”, que tratava a respeito dos direitos indígenas (BASTOS LOPES, 2014).

1 Movimentos sobre direitos das crianças e adolescentes, movimento pela saúde das pessoas com HIV, movi-
mento ambientalista, movimentos feministas, movimento indígenas, movimento negro, movimento quilom-
bola, movimento LGBTQI+, grupos historicamente e socialmente vulnerabilizados, que reivindicam direitos e
participação ativa na sociedade brasileira pós Constituição Federal de 1988.
2 Discurso disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/277285-integra-do-discurso-presi-

dente-da-assembleia-nacional-constituinte-dr-ulysses-guimaraes-10-23/.

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Em torno do Plenário, 40 lideranças, Krahô (GO), Krenak (MG), Kayapó


(PA/MT), Xavante (MT) e outros grupos xinguanos (MT) dirigiram‐ se para
acompanhar a sessão (LACERDA, 2008). Entre os presentes na antessala do
presidente Constituinte, Ulisses Guimarães, aguardaram no local, os caciques
Celestino (Xavante), Aritana (Kamaiurá), além de Ailton Krenak (presidente da
UNI), Marcos e Jorge Terena (ambos funcionários do Ministério da Cultura)
(CIMI‐PORANTIM, 1987). Anterior, porém ao desfecho da audiência, o grupo
liderado pelos Kayapó ocupou a antessala do gabinete; onde os Gorotire e
Txukarramãe iniciaram cantos de saudação e hospitalidade, acompanhados
de alguns passos de dança. De acordo com o jornal Porantim (1987), no
momento em que “Ulysses Guimarães abriu a porta e viu a manifestação,
nada conseguiu falar. Parou boquiaberto e ficou olhando. Um cocar foi
depositado em sua cabeça e o documento da “Proposta Unitária” posto em
suas mãos” (CIMI, 1987, p. 03).

Na ocasião, os índios fizeram discursos em que rememoraram o massacre da sua


população e os assassinatos recentes contra os povos indígenas.
Todo esse esforço político em torno da Constituinte permitiu a existência de uma
normativa jurídica favorável ao reconhecimento das culturas indígenas como legítimas de
serem ostentadas e vividas sem mais o esforço do Estado pela integração forçada3, bem
como o reconhecimento das terras ancestrais como usufruto de cada povo indígena.
Mudanças jurídicas aconteceram, como as resultantes dos artigos 231 e 232 da
Constituição Federal, os quais garantem protagonismo aos indígenas na luta por
garantirem direitos ancestrais 4 . De fato, outras mudanças também aconteceram. Em
Pesqueira, Pernambuco, o Cacique Xicão liderava a retomada de terras indígenas xukurus
de invasores não-índios.
O artigo citado de Manuela Carneiro da Cunha tem um viés muito bem apontado
para um registro de memória. De uma forma muito mais simples, este artigo também
segue essa linha. O objetivo geral é fazer um resgate do trâmite do litígio do Povo Xukuru
de Ororubá contra o Estado brasileiro em sede da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. O objetivo específico é apontar o núcleo da tese jurídica construída no âmbito
da litigância junto à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos e refletir sobre ela,

3 O Relatório Figueiredo mostra a atuação de agentes de Estado, em especial, do Serviço de Proteção ao Índio
(SPI) em práticas atrozes contra indígenas que não aceitavam o processo de integração cultural. Toda atroci-
dade de torturas, crucificação, decaptação, estupro foi registrada nesse documento, que sinaliza uma nova
onda genocida contra indígenas no Brasil em meados do século XX. O relatório está disponível em:
http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/grupos-de-trabalho/violacao-dos-direi-
tos-dos-povos-indigenas-e-registro-militar/relatorio-figueiredo
4 Destacamos aqui o § 4º do art. 231 - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os

direitos sobre elas, imprescritíveis, e o art. 232 - Os índios, suas comunidades e organizações são partes legí-
timas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em
todos os atos do processo.

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naquilo presente ou ausente na argumentação, passados 4 (quatro) anos desde a


apresentação do Relatório de Mérito5.
A metodologia consiste em uma parte descritiva sobre o caso e suas
circunstâncias locais, o trâmite processual e os atos das partes envolvidas no litígio. Uma
segunda parte, analítica, baseia-se na seguinte pergunta: uma outra tese jurídica com
base na ancestralidade seria viável?
Para tanto, o artigo foi dividido em quatro partes: 1. Da Apresentação do Caso ao
Relatório de Admissibilidade; 2. Da Admissibilidade ao Relatório de Mérito; 3. Da
Estratégia Jurídica Adotada; e 4. Conclusões.

1. Da Apresentação do Caso ao Relatório de Admissibilidade

2002, mês de outubro, dia dez 6 . O Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações


Populares (GAJOP), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Movimento Nacional de
Direitos Humanos - regional Nordeste (MNDH-NE), apresentaram uma comunicação à
Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH) em favor do Povo Xukuru e em
favor do Cacique Marquinhos e de Dona Zenilda, mãe do cacique e viúva do Cacique Xicão.
Foi apontada, em princípio, a violação dos artigos 1, 2, 8, 21 e 25 da Convenção
Americana de Direitos7 e feito o pedido de medidas cautelares para preservação da vida
e da integridade física do Cacique Marquinhos e de Dona Zenilda, ambos sob ameaça de
morte no contexto do recrudescimento em relação ao movimento de retomada das terras
indígenas ancestrais pelos fazendeiros não-índios da região.
Além da comunicação à CIDH, no mesmo dia, os peticionários enviaram
comunicação à Representante Especial do Secretário-Geral da ONU sobre Defensores de
Direitos Humanos, Senhora Hina Jilani, e ao Relator Especial sobre a Situação dos Direitos
Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, Senhor Rodolfo Stavenhagen,
em relação às violações de direitos humanos e sobre o processo de criminalização pelo
qual passavam os indígenas do Povo Xukuru, no município de Pesqueira, Pernambuco.

5 Disponível em: https://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2016/12728FondoPt.pdf


6 Tempos de comunicação via correios. A Comissão Interamericana Direitos Humanos recebe a comunicação
de violação e o pedido de medidas cautelares em 16 de outubro de 2002.
7 Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos, Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno, Artigo

8. Garantias judiciais, Artigo 21. Direito à propriedade privada, Artigo 25. Proteção judicial

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Os peticionários trabalharam com uma dupla estratégia de atuação no sistema


internacional. Para o sistema global, uma instância marcadamente de soft power 8 , a
comunicação funcionou, como ainda funciona, como lançador de luzes sobre fatos e
atores antes invisibilizados9. De outro lado, a comunicação também foi apresentada ao
sistema interamericano, uma instância de hard power, cujo ápice se materializa com a
decisão vinculativa e irrecorrível da Corte Inter-americana de Direitos Humanos. As duas
instâncias, assim usadas, podem ser provocadas simultaneamente porque apenas a inter-
americana gera litispendência internacional10.
Este ponto de partida nas instâncias internacionais do sistema global e
interamericano, com efeito, tem antecedentes seculares, que devem ser trazidos como
parte da contextualização de todo o problema jurídico de reconhecimento do direito de
propriedade. Afinal, o Povo Xukuru tem recebido promessas de demarcação de suas
terras ancestrais há mais de 140 anos. Esse é o tempo que o povo Xucuru guarda a
concretização da promessa feita pelo governo brasileiro no reconhecimento ao legítimo
acesso à terra, território físico e metafísico intimamente ligado às suas tradições e
crenças. Por ocasião da Guerra do Paraguai (1864-1870), os Xukurus receberam a
promessa do Império brasileiro de, caso participassem efetivamente do esforço de
guerra, aumentando assim o contingente militar brasileiro, teriam demarcadas suas
terras.11 12
Em 1997, essa informação já era de conhecimento da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos:

8 Por soft power entenda-se aqui a condução de um rito processual sumário, sem a existência de uma fase
instrutória mais complexa, a qual seria capaz de gerar, ao seu final, uma diretriz de conduta tida como plena-
mente cogente. Este modo de realização do direito não guarda em si mesma e nem outra fonte a obrigatori-
edade de cumprimento a ponto de seu cumprimento poder ser exigido. A soft law se cumpre com base no
convencimento resultante dos argumentos utilizados.
9 Invisibilidade social diz respeito a um estado de humilhação e mal-estar a que são submetidas pessoas ou

grupos socais específicos (SOUZA, 2006, p.11).


10 Se o sistema global for provocado a partir dos comitês de tratados em modo decisório de hard power, pode

se gerar litispendência internacional.


11 Em 1850, 14 anos antes da Guerra do Paraguai, a população brasileira era de aproximadamente dez milhões

de pessoas, das quais uma quarta parte era constituída de escravos (GORENDER, 1978:319). Como o efetivo
do Exército brasileiro fosse insuficiente para ganhar a guerra, foram utilizados os contingentes da polícia e da
Guarda Nacional das províncias do império e criaram-se os corpos de Voluntários da Pátria, movidos por um
sentimento nacionalista. Nesse contexto, o império brasileiro introduziu a estratégia de induzir a participação
escrava e indígena na Guerra. A estratégia corrobora a visão tradicional dos poderosos de que eles fazem a
guerra, mas lutar é para os pobres. (TORAL, 1995)
12 Embora as fontes sejam escassas e ate certo ponto precárias, a participação indígena na guerra contra o

Paraguai está documentada, e “não restringiu-se as batalhas, sendo os indígenas utilizados também como
mão de obra para os trabalhos braçais que se faziam necessários – aliás, como sempre foram recrutados.”
(MARQUES, 2006)

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45. O caso típico é o dos Xukurus de Ororuba, no município de Pesqueira,


Estado de Pernambuco, a 220km do Recife. De acordo com a tradição local,
seus membros aceitaram lutar como militares do Exército brasileiro na
Guerra do Paraguai, em troca de terem suas terras reconhecidas, o que não
aconteceu. Isso não aconteceu até 1992 quando o Presidente Itamar Franco
homologando o estudo da FUNAI, que identificou 26.800 hectares como
terras ancestrais dos Xucurús, uma área equivalente a um quinto em relação
à área que eles ocupavam antes da conquista. Mas, de fato, os índios ocupam
apenas 12% dos 26800ha. O restante pertence a 281 fazendeiros e
madeireiros, cuja maioria contra índios como trabalhadores. Há
aproximadamente seis mil Xucurús. Atualmente, a terra está sendo
demarcada pela FUNAI em meio a um clima geral de insegurança e com
orçamento mínimo13.

Apesar da promessa de meados do século XIX feita pelo governo de Dom Pedro
II, foi efetivamente o governo republicano que procedeu ao procedimento demarcatório
das terras, já no final da década de 1980. Nesses quase 40 (quarenta) anos de um anti-
célere procedimento de demarcação, várias perdas irreparáveis foram contabilizadas por
parte do Povo Xukuru.
A demora excessiva do Estado brasileiro em concluir a demarcação das terras
Xukurus ensejou a retomada forçada pelos indígenas, sob a liderança do Cacique Xicão.
Em resposta às ações violentas dos fazendeiros e madeireiros não-índios, o povo Xukuru
não realizou a saída espontânea das terras identificadas como indígenas ancestrais ao
mesmo tempo em que se instalou uma atmosfera de insegurança e vinganças por meio
da prática de assassinatos através de emboscadas contra os indígenas e contra aqueles
que os defendiam. Destacamos aqui quatro assassinatos e várias ameaças de morte, entre
1992 e 2001.
Em 1992 houve o assassinato do indígena José Everaldo Rodrigues Bispo, filho do
Pajé Zequinha, morto em uma emboscada. O Procurador da FUNAI, o advogado Geraldo
Rolim, um conhecido defensor dos direitos dos indígenas, principalmente quanto à
demarcação das terras, foi assassinado em 1995. O Cacique Xicão foi assassinado

13 45. A typical case is that of the Xucurus at Oruguba, in the Pesqueira municipality of the State of Pernam-
buco, 220 km from Recife. According to the local tradition, its members agreed to fight as members of the
Brazilian Army in the Paraguayan War, in exchange for having their lands recognized--which it turned out did
not take place. It wasn't until 1992 that President Itamar Franco signed the resolution acknowledging the
FUNAI study which found the Xucurús entitled to 26,980 hectares as ancestral land--an area equivalent to one
fifth of what they had before the conquest. But in fact, the Indians occupy only 12% of those 26,980 ha. The
rest is owned by 281 ranchers and lumbermen, most of whom in turn hire Indian laborers. There are approxi-
mately six thousand Xucurús. At present, the land is being demarcated by FUNAI in a climate of general inse-
curity and with minimal funding (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1997, parágrafo 45).

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mediante a contratação de um pistoleiro em uma emboscada ocorrida em 1998. O líder


da aldeia Pé-de-Serra do Oiti, Chico Quelé, foi morto em mais uma emboscada em 2001.
Quatro importantes lideranças, incluindo-se o emblemático Cacique Xicão, o
grande iniciador do processo de retomada das terras, atuavam na liderança pela
efetivação dos direitos e interesses indígenas, pelo reconhecimento das terras ancestrais
e contra o estado de exploração econômica e social dos indígenas perpetrado pelos
fazendeiros e madeireiros na área Xukuru. As autoridades de segurança e justiça não
atuaram com o devido compromisso na elucidação dos crimes. No ano de 2005, a Anistia
Internacional identificou que essas autoridades, muitas vezes, fizeram desviar a atenção
dos verdadeiros motivos para sua prática:
O pai de Marcos Luidson de Araújo, Francisco de Assis Araújo, conhecido
como Chicão Xukuru, o cacique carismático que conduziu a reocupação
pacífica de suas terras nos anos 90, foi morto a tiros por um pistoleiro
enquanto visitava sua irmã em Pesqueira, em 1998. Além de atuar em nome
dos Xukurus, ele também era coordenador de um grupo regional de direitos
indígenas, a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e
Espírito Santo. Apesar de sempre ter havido provas substanciais a indicar que
o assassinato do cacique fosse resultado direto de sua luta pelo
reconhecimento dos direitos à terra Xukuru, a apuração que a Polícia
Federal realizou sobre sua morte inicialmente seguiu apenas linhas de
investigação que desacreditavam essa versão dos fatos. Estas incluíam
alegações de que ele havia sido morto em razão de disputas internas de poder
entre os Xukuru ou que fora vítima de crime passional. Foi somente após forte
pressão nacional e internacional sobre as autoridades que seu assassinato
foi investigado no contexto de suas atividades de campanha pela terra14.

Em meio a essa onda de assassinatos de indígenas, em 1998 uma nova frente de


tensão foi inaugurada. Empresários locais, com o respaldo da Prefeitura de Pesqueira e
da Agência de Desenvolvimento Econômico de Pernambuco S/A (AD/DIPER), prepararam,
apresentaram e tentaram pôr em prática um projeto de turismo religioso cristão em
terras identificadas como pertencentes aos Xukuru. A promessa de receita pecuniária
para os indígenas representava, de fato, uma nova tensão para alguns indígenas na região
de Cimbres 15 . Aqueles indígenas que não aceitaram a proposta e a viam como uma
interferência cultural em terras ancestrais foram alvo de novas ameaças.
Nesse contexto, a criminalização dos indígenas não cooptados e resistentes à
alteração no processo de demarcação das terras em favor do Povo Xukuru passou a ser

14 Anistia Internacional. Estrangeiros em Nosso Próprio País: povos indígenas do Brasil. 2005, p.22.
15 A cartografia sócio-cultural dos Xucuru por eles e elas mesmas pode ser acessada em: http://novacartogra-
fiasocial.com.br/download/01-xukuru-do-ororuba-pe/. Nesse mapa, é possível identificar a região de Cimbres
e aldeia Pé-de-Serra do Oiti de Chico Quelé.

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uma prática, ao mesmo tempo que o sistema de segurança e justiça não dava respostas
em relação aos assassinatos das lideranças indígenas. Com isso, os indígenas, já na
condição auto percebida de defensores de direitos humanos, foram ameaçados na sua
organização social, além de ameaçados na vida e integridade física.
O processo de criminalização resultou em várias ações junto às varas federais da
Seção Judiciária de Pernambuco, concentradas na 16ª Vara, em Caruaru. Ademais, deve-
se considerar o desentendimento nas relações entre o Povo Xukuru, a Polícia Federal
(Superintendências Regionais de Pernambuco e da Paraíba) e Ministério Público Federal
(primeira instância) em Pernambuco.
Esse era o clima de tensão que a jurisdição e a Administração pública executiva
federal não conseguiam pacificar. De um lado, Povo Xukuru versus fazendeiros não índios;
de outro lado, Povo Xukuru versus a Polícia Federal, Ministério Público Federal e o Poder
Executivo Federal. O povo indígena tinha dois flancos (a disputa pela terra contra os
fazendeiros não índios e a disputa institucional com a Polícia Federal) abertos nessa luta
pelo reconhecimento de suas terras ancestrais e sofria pressão de toda natureza. Isso foi
informado à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos conforme os passos
processuais eram dados.
Da apresentação desses fatos até à publicação do Relatório de Admissibilidade
por parte da Comissão Inter-americana de Direitos Humanos, em 29 de outubro de 2009.
Com efeito, o pedido de medidas cautelares foi o que concentrou mais esforços por parte
das entidades peticionárias.
As peticionárias requereram medidas cautelares para o Cacique Marquinhos e
para Dona Zenilda em 10 de outubro de 2002. No dia 16 de outubro de 2002, de posse do
material impresso enviado via correios, a CIDH deliberou favoravelmente às cautelares e
solicitou do Estado brasileiro a sua efetivação. A CIDH fez rodadas de acompanhamento
da implementação das medidas em fevereiro de 2003 e em março de 2004. Em agosto de
2004, a CIDH decidiu prorrogar as medidas cautelares. A partir de então, o Estado deixou
de se pronunciar sobre as cautelares, mesmo com o pedido expresso da CIDH, até à
admissibilidade, em outubro de 2009 (CIDH, 2009, parágrafos 7-9).
Os peticionários chamaram a atenção da CIDH sobre o clima de animosidade
existente entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, em detrimento do Povo
Xukuru, principalmente em relação aos dois beneficiários das cautelares, o Cacique
Marquinhos e Dona Zenilda. Isso deveu-se inicialmente à fase de assassinatos das

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lideranças Xucuru, cujo último assassinato registrado foi o de Chico Quelé, em 2001. A
partir daí, seguem as ameaças ao recém escolhido Cacique Marquinhos e sua mãe, Dona
Zenilda, tomada como suspeita do assassinato do Cacique Xicão em uma suposta
motivação passional, nunca minimamente provada. Depois do atentado de 2003, a tensão
tomou a forma da criminalização dos indígenas. Isso impossibilitou efetivamente o
cumprimento das medidas cautelares por parte do governo federal.
Havia, de fato, uma falta de confiança dos beneficiários em relação aos
profissionais que deveriam fazer a sua proteção: policiais federais das superintendências
regionais de Pernambuco e da Paraíba, com supervisão do Ministério Público Federal, ou
seja, os órgãos persecutórios nos processos criminais em trâmite contra os xukurus.
Evidentemente, estava posto o conflito de interesses.
Por conta disso, as medidas cautelares não foram implementadas até o ano de
2007, quando ao sistema de proteção à pessoa foi incorporado o Programa de Proteção
às Defensoras e Defensores de Direitos Humanos.
No caso do Estado de Pernambuco, o sistema de proteção à pessoa já sido iniciado
em 1996 com a criação do Programa de Proteção à Testemunha (PROVITA 16 ), uma
iniciativa da sociedade civil, através do GAJOP (peticionário do caso) juntamente com o
governo estadual, com o objetivo de atuar contra o alto índice de impunidade em relação
aos crimes cometidos pelos chamados esquadrões da morte. Essa experiência favoreceu
o projeto piloto de proteção às Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (PPDDH)17,
também iniciativa da sociedade civil, sendo incorporada a proposta ao planejamento da
Secretaria Especial de Direitos Humanos em Brasília. Com isso, o sistema de proteção à
pessoa conta com os seguintes programas: PROVITA, PPDDH e o Programa e de Proteção
à Criança e Adolescente Ameaçados de Morte (PPCAAM18). Ainda assim, em interlocução
direta com o governador do Estado de Pernambuco, o Cacique Marquinhos e Dona
Zenilda receberam medidas de proteção pessoal através do Programa Estadual de

16 Provita. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/navegue-por-temas/programas-de-protecao/provita-


1/provita
17 Como Defensora de Direitos Humanos, a advogada Elma Novais fez grande esforço ao exigir julgamento

dos policiais militares, processados pelo assassinato de seu filho Josenildo. Isso fez emergir a existência de
práticas investigativas da Polícia Militar sem mandados, sem qualquer controle, um resquício da Ditadura
Militar. A “segunda seção” ou “serviço de inteligência” continuava com essas práticas esdrúxulas ao Estado
de Direito. Por conta disso esforço, Elma Novais e sua família receberam ameaças de morte. Disponível em:
https://www.amnesty.org/download/Documents/104000/amr190012003pt.pdf
18 PPCAAM. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/navegue-por-temas/programas-de-protecao/ppcaam-

1/ppcaam

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Proteção aos Defensores de Direitos Humanos com apoio da Polícia Militar de


Pernambuco. Dessa forma, policiais militares indígenas faziam a proteção pessoal
escoltada do Cacique quando ele saía do raio mais restrito da aldeia em que morava. Não
havia escolta para Dona Zenilda, apesar de ela figurar como pessoa defensora a ser
protegida. Não havia pagamento de diárias aos policiais e nem fornecimento de viaturas
descaracterizadas ou caracterizadas, nem qualquer outra instrumentalidade protetiva.
Do ano de 2002 a 2007, o Cacique Marquinhos e Dona Zenilda permaneceram
com circulação restrita à sua aldeia por conta das ameaças constantes e da omissão do
governo federal em implementar as medidas cautelares determinadas pela CIDH. Em 14
de fevereiro de 2003, sete dias após o atentado, em 10 de março de 2003, em 23 de abril
de 2003, em 21 de julho de 2003, os peticionários pediram à CIDH a adoção de medidas
provisórias à Corte diante do quadro de omissão deliberada. A Corte não fora provocada
sobre isso.

2. Da Admissibilidade ao Relatório de Mérito

Publicada a Admissibilidade, a CIDH convocou as partes a apresentarem observações


sobre o mérito, ao mesmo tempo em que se colocou à disposição para intermediar uma
solução amistosa para o caso (parágrafo 4, Relatório de Mérito). Por certo, diante de toda
a situação vivenciada pelos indígenas a partir da atuação dos órgãos de Estado e por todo
o histórico inerente ao caso, muito dificilmente haveria espaço para o sucesso na solução
amistosa, até porque o Estado brasileiro normalmente não cumpria os acordos firmados
com os indígenas. A implementação das medidas cautelares é um exemplo disso. De fato,
as partes não se pronunciaram a favor de tal iniciativa.
Nesse ponto, abre-se um parêntese. O mecanismo de solução amistosa presente
no Sistema Interamericano de Direitos Humanos é, em tese, uma oportunidade de
autopercepção de um sujeito jurídico e político ativo e dirigente de seu destino (ou como
regularmente adotado pelos órgãos do Sistema: dirigente de seu projeto de vida) e de
fortalecimento de autonomias que merece ser mais incentivada. Temas como Justiça de
Transição na Argentina e a violência contra a mulher no Brasil passaram por experiências
muito bem sucedidas através da solução amistosa.

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No caso da Argentina, o Relatório de Solução Amistosa nº160/10 na Comunicação


nº242/03, A Associação das Avós da Praça de Maio e o Estado argentino chegaram a um
comum acordo sobre os crimes de desaparecimento forçado durante a ditadura militar
argentina. Pelo acordo, o Congresso argentino criou aprovou a criação de três leis sobre
o procedimento de coleta de DNA para fins de julgamento dos sequiestros de crianças
durante a ditadura militar, sobre um novo funcionamento do banco de dados genéticos e
sobre a participação em processos judiciais de supostas vítimas sequestradas e das
associações criadas para defesa de direitos das famílias, cujas crianças foram abduzidas
(COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2013, p.61).
Com isso, evidentemente, pensamos em uma provocação sobre o melhor uso do
instrumento da solução amistosa em sede do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos. Como o instrumento de solução amistosa poderia ser melhor utilizado? Essa é
a pergunta que nos move e que nos dirige a pensar o instrumento de uma forma
operacional mais direcionada à efetividade e à promoção da autonomia das partes
envolvidas no conflito.
Fechado o parêntese, voltamos à fase de mérito do caso do Povo Xukuru.
Provocada uma possível solução amistosa, que não aconteceu, as partes
passaram a trocar observações sobre o mérito.
Os peticionários alegaram, incialmente, a violação aos direitos de propriedade
(artigo 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos), de acesso à Justiça
(combinação dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos) e a
obrigação de adotar instrumentos legais internos para efetivar os direitos consagrados
internacionalmente (combinação dos artigos 1 e 2 da Convenção Americana de Direitos
Humanos). A Comissão relatou todos os atos do processo de demarcação, registrou os
assassinatos das lideranças Xukuru em notas de rodapé (nota 4 a 7, página 3 do Relatório
de Mérito) e registrou a complementação de argumentação com a inclusão de violação
do direito à vida e à integridade física (artigos 4 e 5 da Convenção Americana de Direitos
Humanos). Em relação ao Estado brasileiro, a Comissão registrou o argumento de
conclusão do registro cartorial das terras Xukuru na titularidade da União Federal,
registrou o argumento de complexidade do processo de demarcação, da interferência do
Poder Judiciário no trâmite regular em vista das ações judiciais propostas pelos não índios,
bem como, o fato de o Estado ter se colocado impossibilitado de agir no contraditório e
ampla defesa em relação aos episódios apresentados pelos peticionários sobre a

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criminalização sofrida pelos Xukuru devido ao fato de o Estado considerar observações


generalizadas (Relatório de Mérito, pp.2-6).
Em relação à Comissão, efetivamente reconheceu todos os atos extra-jurídicos
realizados para a elucidação da ancestralidade das terras requisitadas pelo Povo Xukuru,
com ênfase no relatório antropológico e em relatórios anteriores da própria Comissão de
monitoramento de terras indígenas nas Américas, com destaque para o monitoramento
dos Xukuru, com auxílio da Relatoria Especial das Nações Unidas sobre a situação dos
direitos humanos e liberdades fundamentais dos indígenas. A Comissão reconheceu
também a necessidade de regulamentação de parte da legislação brasileira sobre terras
indígenas, fez a aplicação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), analisou todos os atos administrativos e ações judiciais incidentes sobre a
demarcação, analisou os episódios de tensão e se valeu da jurisprudência da Corte Inter-
americana de Direitos Humanos sobre propriedade e direitos indígenas para fazer suas
recomendações (Relatório de Mérito, pp.7-27).
Quanto às recomendações, tivemos a adoção de medidas administrativas e
legislativas para conclusão da desintrusão, de medidas para conclusão das ações judicias
pendentes, de medidas de reparação individual e coletiva pela demora na demarcação e
a desintrusão e a adoção de medidas de não repetição (Relatório de Mérito, pp.27-28).

3. Da Estratégia Jurídica Adotada

A estratégia jurídica adotada no caso Povo Xukuru versus República Federativa do Brasil
foi a mais óbvia possível: fazer a subsunção do caso, tomando-se por horizonte o
precedente e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre direito
de propriedade e povos indígenas.
O direito à propriedade, propriedade lato sensu, ou seja, o direito de usar e
fruir de seus bens. O povo xukuru não busca apenas um registro formal em
cartório de imóveis, ao contrário, busca a posse tranquila das terras, busca a
satisfação de um débito histórico do Estado brasileiro para com eles, busca,
enfim, a perpetuação de suas tradições culturais intrinsecamente vinculadas
à terra;19

19Memorial com razões de mérito, abertura da fundamentação jurídica, exposição do direito subjetivo per-
seguido pela parte requerente, nesse caso, pelo Povo Xukuru. Petição assinada pelo CIMI e pelo GAJOP em
2011.

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Assim, toda a construção de ratio decidendi da Corte desde o caso do Povo


Mayagna Sumo Awas Tingni20 foi tomada como paradigma. Dessa forma, perceba-se a
linha paradigmática seguida: identificar o sujeito de direito violado (Povo Xukuru, como
coletividade), identificar o sujeito violador de direito (República Federativa do Brasil,
desdobrando-se nos vários atos de violação a partir de suas autoridades competentes),
identificar o direito violado (em suma: o direito de propriedade, um direito
iminentemente individualizado, além da proteção e garantias judiciais), recorrer-se a um
sistema jurídico centralizado na figura do Estado (seja o sistema jurídico doméstico ou
internacional) e, finalmente, adequar o fato social em conflito com esse direito perante o
Estado jurisdição.
Independentemente da teoria sobre o direito a seguir, essa estrutura é clássica
consoante um direito hegemônico europeizado. Daí o debate sobre propriedade, posse
tranquila, registro cartorial, homologação de demarcação e contestações administrativas
sobre o processo demarcatório. O que foi chamado de estratégia óbvia mais acima se
mostra praticamente a única, considerando esse paradigma.
Nessa caminhada considerada a mais óbvia, certamente, consideraram-se desde
o início as condições para a vitória de uma tese que comportasse os interesses do povo
indígena Xukuru. Já havia uma demarcação em trâmite há mais de vinte anos ao preço de
muitas mortes e outras tantas ameaças. Seguir por uma trilha conhecida no âmbito do
direito hegemônico aplicado pela instância competente, nesse caso, pela Comissão, foi e
ainda é hoje a mais razoável. De forma alguma, considerou-se uma disputa de teses
jurídicas que comportasse uma pelo pluralismo identitário21. Essa, de fato e de direito,
importaria uma mudança enriquecedora, indo ao encontro da diversidade social e do
conhecimento jurídico.
Assim sendo, comecemos pela caminhada óbvia e, em seguida, pelo pluralismo
identitário.
A caminhada óbvia, como dito, passa pelo exercício da subsunção que todo
advogado e advogada que atuou no caso foi ensinado(a) nas faculdades de Direito a partir,

20 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sentença disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/ca-


sos/articulos/Seriec_79_esp.pdf
21 No livro Choque das Civilizações, Samuel Huntington (1993), de forma resumida, traz uma nova compreen-

são de mundo após o colapso da União Soviética, consequentemente, com o fim da era das ideologias e da
disputa sobre o modelo econômico. Ainda assim, as disputas aconteceriam e o Estado-nação ainda é a figura
de destaque, mas as divisões entre os seres humanos e as largas divergências e diferenças entre identidades
dariam o tom dos conflitos no novo tempo.

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basicamente, daquela estrutura jurídica há pouco posta: sujeito ativo, sujeito passivo, fato
social, direito aplicado, Estado-juiz. Quanto a isso, temos um rito perante a Comissão, que
não é, em sentido estrito, um processo judicial porque não é finalizado com uma decisão
judicial, mas cuida de formalizar o conhecimento sobre um fato específico e se esse fato,
a princípio, pode ser enquadrado como um ilícito internacional por violação de direitos
humanos.
A percepção desse ilícito internacional apontado passa necessariamente pela
autonomia do indígena frente ao direito interno brasileiro e ao mecanismo disponível
para efetivação dos seus direitos. A dificuldade do Estado brasileiro garantir proteção ao
povo Xukuru assim sintetizada por Cecília Santos com base no dualismo na cultura
jurídico-política indigenista
Por um lado, verifica-se uma concepção monocultural e individualista de di-
reitos civis dos indígenas, consagrada em algumas leis e práticas de agentes
do Estado; por outro lado, certas normas e setores do Estado traduzem uma
abordagem multicultural e coletivista de direitos humanos dos indígenas ou
um novo “indigenismo multicultural”,que surge no contexto da expansão do
movimento indígena dos processos de redemocratização, nos anos 1980, e
da crescente absorção, pelo Estado, ainda que seletiva e setorialmente, das
normas internacionais de direitos humanos desde o início dos anos 1990.
(SANTOS, 2009, p. 26)

A busca seria, portanto, por superar a perspectiva da assimilação indígena, tão


presente na prática brasileira:
Até a redemocratização política nos anos 1980 e 1990, a legislação e a política
indigenista do Estado brasileiro consagravam uma concepção monocultural e
individualista dos direitos indígenas, promovendo o que Warren (2001) deno-
mina de “exorcismo indígena” (indian exorcism) – diferentes práticas de ex-
termínio físico e cultural dos indígenas, como massacres militares, escravidão,
missões de catequese e políticas assimilacionistas. (SANTOS, 2009, p. 27)

Quanto ao processo de demarcação de terras indígenas, pontua Santos, citando


Oliveira e Almeida:
O procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas é com-
plexo e moroso, incluindo cinco fases: (1) identificação e delimitação, feitas,
sob a iniciativa e direção da FUNAI, por um Grupo Técnico de antropólogos e
outros profissionais, designados por este ógão; (2) declaração, mediante por-
taria do Ministério da Justiça, dos limites da terra indígena e determinação
de sua demarcação; (3) demarcação física, feita pela FUNAI; (4) homologação,
mediante decreto da presidência da República; (5) registro, providenciado
pela FUNAI, em cartório imobiliário da comarca em que se encontra a terra,
bem como na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda.
(SANTOS, 2009, p. 28)

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Na alçada do Direito, o exercício de aplicação precisou se valer de um precedente


da Corte Interamericana de Direitos Humanos ao afirmar que o direito de propriedade,
um direito civil clássico individual, tem também a sua perspectiva coletivizada, o que
abarcaria a pretensão dos povos indígenas e obrigaria o Estado a promover todas as ações
necessárias a garantir a fruição desse direito. Por desdobramento da propriedade,
aparece a expressão posse tranquila para dar conta da expectativa de uma rotina diária
sem ameaças, sem violação da integridade física e psicológica das pessoas indígenas, sem
violação do direito à vida e sem violação ao exercício de suas tradições culturais com
repercussões econômicas e sociais.
A presença da expressão posse tranquila tem uma grande importância na tese
junto à Comissão porque o Estado brasileiro vinha replicando e defendendo que a
demarcação estaria em fase de conclusão com o registro em cartório da titularidade da
propriedade pela União Federal com usufruto para o Povo indígena Xukuru. Acontece, de
fato, que uma cártula sobre a propriedade e uma placa indicativa de propriedade da União
Federal no marco inicial do território não tiverem, bem como não têm o condão de
impedir o rechaço aos indígenas pelos não índios intrusados.
Além disso, a justificação para entrada no Sistema Interamericano de Direitos
Humanos era a extrapolação do prazo razoável. O acesso à Justiça, uma combinação dos
artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que se dirigem à proteção
e efetivação de direitos, ou seja, não é uma obrigação estatal exclusiva do Estado-juiz. Os
atos e processos administrativos, inclusive dos agentes da Administração pública,
também estão sujeitos ao controle de convencionalidade. No caso do Povo Xukuru, o
processo administrativo de demarcação tomou proporções infindáveis, seja por
extrapolar os atos administrativos com prazo legal definido no Decreto 1775/1996, seja
pelos atos sem prazo legal previamente definido.
Esse conjunto de atos administrativos gira em torno de treze atos, com um prazo
mínimo de 345 dias, a contar dos prazos previstos no Decreto. De fato, o procedimento
leva muito mais tempo porque a homologação pelo Presidente da República e o
reassentamento de não índios, por exemplo, não têm prazo fixado para sua ocorrência,
prevalecendo aí a discricionariedade. Os demais atos, ainda que fixados seus prazos,
podem sofrer dilação de acordo com as circunstâncias da demarcação (CUNHA, AMORIM,
2018, p.145). Em suma, esses foram os elementos trazidos à baila para o debate em torno
do direito junto à Comissão.

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De outro lado, a tese pelo pluralismo identitário. Essa linha poderia ter dado um
salto de qualidade em termos de experimentar o direito, saindo de uma hegemonia
unilateral para uma combinação de conhecimentos jurídicos ao trazer para o debate de
direito o conhecimento indígena como relevante e determinante na construção da
solução para o conflito de interesses em tela.
Nesse sentido, o primeiro passo, em uma linha racional a ser proposta seria partir
do transconstitucionalismo. Para tanto, rever o ponto de partida seria essencial. Não se
partiria da dúvida se o povo indígena tem ou não direito de propriedade, mas de um
problema jurídico constitucional 22 e como a experiência normativa indígena e não
indígena pode colaborar para a fruição do modo de vida particular do Povo Xukuru sobre
o território tradicional.
A partir do transconstitucionalismo, um problema jurídico constitucional faz
extrapolar solução para mais uma ordem jurídica. Em matéria constitucional, isto é,
questões que envolvam a aplicação de direitos fundamentais e direitos humanos, impor-
se ultima ratio a uma única ordem jurídica pode implicar uma solução que viole outra
ordem jurídica que, em determinado momento, pode ser competente também para
decidir sobre esse caso (problema jurídico constitucional). Uma solução
transconstitucional passa pela disposição ao diálogo pelos tribunais (ou órgãos decisórios)
dessas ordens jurídicas a ponto de se formar uma racionalidade transversa (NEVES, 2012,
pp.256-258).
Essa, sobre posição de direitos materiais em sede de questões de direitos
humanos, é o resultado de importância crescente que os direitos humanos tiveram,
principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Essa importância rendeu uma base
jurídico-normativa tanto em legislações domésticas quanto internacionais de forma a se
perceber uma simultaneidade de aplicação. Não se trata de antinomias a primeiro olhar,
ao contrário, trata-se dos efeitos de uma sociedade moderna.
Esse modelo de sociedade moderna caracteriza-se pela presença de vários
códigos que orientam a comunicação nos mais diversos campos sociais. Ter/não ter,
poder/não poder, lícito/ilícito, verdadeiro/falso, cada binário desse, por exemplo,
importa para um campo, promovendo uma forma de comunicação, daí chegando a uma

22Problema jurídico constitucional, nesse caso, segue a definição trazida por Marcelo Neves quando, ao pen-
sar o transconstitucionalismo, ele que os casos levados à solução judicial não mais se resumem a uma única
ordem jurídica, em especial, quando envolvem direitos humanos. (NEVES, 2012, p.256).

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racionalidade que, eventualmente, pode entrar em conflito com outra ou outras


racionalidades forjadas a partir de cada comunicação dessas. A sociedade moderna,
emanadora de várias racionalidades é, portanto, uma sociedade complexa, à qual cabe
perceber-se como único polo observador social ou em integração a outros centros sociais
complexos (NEVES, 2012, pp.22-25).
Com esse foco, o caso Povo Xukuru versus República Federativa do Brasil teria
uma outra abordagem, necessariamente. Primeiro, a matéria de direito analisada não
passaria apenas pelo direito brasileiro e tratados de direitos humanos do Sistema
Interamericano, fortalecido pelo uso da Declaração das Nações Unidas sobre Povos
Indígenas 23 . O próprio direito tradicional e costumeiro indígenas deveria ter sido
conhecido e aplicado pela Comissão. Segundo, conhecer os experts nesse direito indígena
e saber, a partir deles, sobre sua linguagem, organização e capacidade decisória.
O modo de vida indígena deixaria de configurar algo elementar e desvalorizado
para ser fonte de informações relevantes para a decisão. Outras informações ganhariam
nova apreciação. Por exemplo, a criminalização sofrida pelos indígenas no decorrer da
luta pela demarcação. A criminalização é um ato anti-indígena (FIALHO, 2011, p.12).
Tornar criminosa uma luta legítima pelo acesso à terra e à sobrevivência cultural, mais do
que invisibilizar um grupo social, é colocá-lo a pecha de vilão ou de fora da lei sobre aquela
categoria social.
Como se aferir a titularidade de direito de um sujeito que passa por uma situação
concreta com risco de deixar de existir em suas particularidades? Dessa forma, a
personalidade jurídica deve ser alçada a uma condição superior para reconhecer que
coletividades em torno de identidades também são juridicamente relevantes,
diferentemente de associações (pessoas com interesses comuns), empresas (atividades
negociais relativas à empresa) e fundações (bens especialmente destinados a um fim).
A presença marcante dos indígenas, homens e mulheres, no momento histórico
durante a Guerra do Paraguai, presença de fato, mas praticamente apagada da memória
do país em termos de construção de heróis brasileiros, é uma das questões colocadas em
relação ao Povo Xukuru. Afinal, qual cultura sobrevive em relação a outras sem heróis a

23A Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas compõe a legislação do Sistema Global de Direitos
Humanos. Como tal, não tem uma inserção hierárquico-normativa no Sistema Interamericano de Direitos
Humanos, logo não compreende seu universo de direito, mas não de todo descartado seu uso. Ainda que não
seja matéria de direito, instrumentos externos à base normativa do Sistema Interamericano de Direitos Hu-
manos, regularmente, são utilizados como instrumentos hermenêutico-colaborativos. Têm uma importância
em se perceber os limites de aplicação das normas inter-americanas.

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apresentar? A historiografia comum não registra a presença dos Xukurus na Guerra do


Paraguai, mas documentos isolados e a tradição oral presente em alguns Xukuru mais
antigos marcam essa memória. Por outro lado, para além da construção de herois, a
participação dos Xukuru na Guerra do Paraguai ou, na perspectiva do Paraguai, na Guerra
contra o Paraguai, foi mais uma marca da colonialidade do império brasileiro sobre os
indígenas, assim como sobre os negros escravizados. Grupos sociais que nada tinham a
ver com aquela guerra foram instados dela participar a fim de garantirem a afirmação do
estado nacional brasileiro, este sim necessitado de herois.
Tudo isso gira em torno do território indígena. Em meados do século XVIII, a
Diretoria de Índios em Pernambuco, através de ofício ao Presidente da Província,
elaborou uma lista com 82 indígenas recrutados na aldeia de Cimbres (território Xukuru
atualmente reclamado) como voluntários da pátria (SILVA, 2015, pp.1047-1048). Já pela
tradição oral ainda circulante entre os Xukuru, Edson Silva colheu a fala de Pedro
Rodrigues Bispo (72 anos à época) e de João Jorge de Melo (65 anos à época). Segundo
esses dois, aparecem a heroína Maria Coragem e os 30 de Ororubá. Maria Coragem
compôs o front de batalha e ganhou esse apelido por sua determinação e bravura. Já dos
30 de Ororubá, 12 morreram em batalha e 18 voltaram. Participaram da Companhia
chefiada pelo Tenente Coronel Apolônio Peres Cavalcanti Jácome da Gama e tiveram
atuação marcante na batalha de Tuiuti na retomada de território, simbolizada pela
recuperação do pavilhão da Princesa Isabel (SILVA, 2015, pp.1051-1052).
Além dessa participação em momento decisivo da história do Brasil, o território
Xukuru é, em si mesmo, um espaço de memória e tradições. Com a criação do Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), o primeiro relatório sobre os Xukuru data de 1944, quando o
sertanista Cícero Cavalcanti registra a perseguição policial às práticas de curanderia,
consideradas como “catimbós” pelos não índios. Ainda assim, a toré continuava a ser
realizada, embora restrita à festa de Nossa Senhora da Montanha, conhecida pelos
Xukuru como Mãe Tamain (SILVA, 2007, p.4). Um dos torés fala em seguir para a aldeia
encantada. Isso significa que, nesse mesmo território, encontra-se a Aldeia da Pedra
Sagrada, onde os indígenas que fizeram a passagem (isto é, morreram) são plantados (isto
é, os corpos são enterrados) para que nasçam novos guerreiros Xukuru (SILVA, 2005).
Trata-se do território como elo entre o mundo físico e o metafísico, a ideia de cosmovisão.
Na cerimônia de memorização conjunta pelos dez anos da passagem do Cacique
Xicão, a Carta da 8ª assembleia Xukuru, realizada em 2008, expõe dores e expectativas:

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(...) há ainda muitas coisas que atrapalham o nosso projeto de futuro e a paz
do nosso povo: os assassinatos e a criminalização de nossas lideranças
patrocinadas por aqueles que têm o interesse em nosso território e também
por aqueles que têm o dever de nos defender, incentivadas pelos grandes
meios de comunicação de PE. Os nossos parentes Truká, Pankará e do
Maranhão também vêm sofrendo perseguição. Caso gravíssimo é o da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol, cujos povos além de serem chamados de
terroristas, ainda correm o risco de terem anulada a homologação de suas
terras. Entendemos que essa situação ameaça todos os nossos povos. A
política indigenista do nosso país também ameaça o nosso projeto de futuro,
pois nossa Constituição mesmo depois de vinte anos não é de fato cumprida.
Por isso entendemos, que é de fundamental que seja criados e aprovados,
imediatamente o CNPI – Conselho Nacional de Política Indigenista e o
Estatuto dos Povos Indígenas24.

Nesse manifesto, o Povo Xukuru expõe sua exclusão de todo o processo de


demarcação e como são vistos pela sociedade, cujo poder de decisão sobre essa
demarcação não divide com os Xukuru. Quando esse estado de coisas se instala, o diálogo
transconstitucional fica bloqueado, a racionalidade transversal não se configura. Fica
imposto apenas um único centro social. A sociedade complexa reduz complexidade para
que um único modelo social seja o paradigmático, submetendo os demais e até
eliminando sua existência. Não à toa o manifesto indígena se justifica.
A transformação proposta por Marcelo Neves a partir do transconstitucionalismo
(o diálogo entre ordens jurídicas distintas) encontra afinidade com a percepção de mundo
a partir do pensamento decolonial. A necessidade de se avaliar o caso a partir da
decolonilidade se dá pelo exposto acima: a criminalização, a dificuldade de se reconhecer
a personalidade jurídica de um identidade social, o apagamento da memória e o não
cumprimento de obrigações estatais.
Com efeito, a construção de um constitucionalismo com direitos e garantias
fundamentais e a construção dos sistemas internacionais de direitos humanos (europeu,
interamericano e africano) colocaram a pessoa humana em posição de destaque para fins
de promoção e proteção, enquanto o Estado foi lançado ao posto de instrumento dessa
promoção e proteção. Essa tutela jurídica antropocêntrica tomou corpo, principalmente,
diante das atrocidades da Segunda Guerra Mundial, em especial a crueldade das batalhas
travadas e do próprio holocausto. Trata-se de uma ganho civilizatório, necessário, sem
dúvida, porém não esgotável em si mesmo.

24 Carta da 8ª Assembleia do Povo Xukuru. Disponível em: https://cimi.org.br/2008/05/27444/.

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Com essa tutela e sua pretensão de universalidade, abstratamente independente


de recortes de diferenciação, tais como raça, sexo, credo ou condição social, a segunda
metade do século XX experimentou condições de vida de excelente qualidade em serviços
públicos na efetivação de direitos fundamentais, prestados a partir de base democráticas,
sendo a Europa ocidental exemplo desse “oásis”, mas ainda se deparou com eventos
inquietantes, como, por exemplo, os desaparecimentos forçados e a violência policial na
América Latina, os genocídios de Ruanda, Antiga Iugoslávia e Serra Leoa e a repressão
política abusiva durante a Primavera Árabe.
Não à toa, na América Latina e na África, aparecem os exemplos de inquietação
sobre a tutela de Direitos Humanos. É possível, adequado ou justo se perguntar por que
os Direitos Humanos são bem sucedidos na Europa ocidental e repletos de
vulnerabilidades na América Latina e na África? A pergunta é instigante, de certo modo,
legítima, mas, certamente, em instrumento inadequado. Porém, sendo possível
responder de forma a cortar uma superfície sem se lançar ao mais profundo dessa
resposta, haveria de chegar na decolonialidade.
Essa tutela jurídica antropocentrista, calcada na relação sujeito-sujeito, ou
melhor, pessoa humana - pessoa humana, é fortemente marcada por distorções como as
provenientes de questões de raça. Assim, vai além do viés do direito e se alça à questão
de uma perspectiva de vida apenas antropocêntrica atingiu seu limite, na mesma medida
que atingiu um novo horizonte histórico na perspectiva ecosóciocêntrica. As relações
sociais passariam de uma intersubjetividade racial e coisificante para uma
intersubjetividade na reciprocidade e solidariedade (MARAÑÓN-PIMENTAL, 2014, p.21).
Essa tese pela coexistência civilizatória, certamente, retiraria o modo de vida
indígena de uma condição de subalternidade. Seus conhecimentos e saberes
impulsionariam a Comissão Inter-americana de Direitos Humanos a um patamar mais
avançado de promoção e proteção dos Direitos Humanos. Percebam, no entanto, o
tempo desses dois últimos verbos (retiraria e impulsionariam): futuro do pretérito, um
futuro incerto ou condicionado.
Ao tempo de análise do caso xukuru pela Comissão Inter-americana de Direitos
Humanos, nem os comissionados e nem o grupos de juristas envolvidos no caso tinham
acúmulo suficiente para construir uma racionalidade transversa nesse patamar. No outro
lado, no entanto, já havia sujeitos indígenas (experts) prontos para fazerem apresentar
seus conhecimentos e saberes, em especial, a condição de ancestralidade das terras

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indígenas, que, por si só, implicaria uma tese completamente dissociada da tese sobre
propriedade.
Será que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Sistema
Interamericano de Direitos humanos, incluídos seus juristas, estão prontos para isso?
Quer dizer, estão prontos para serem mais transconstitucionais e decoloniais?

4. Conclusões

Este trabalho buscou apresentar os aspectos mais relevantes do caso Povo Xukuru do
Ororubá contra a República Federativa do Brasil, com o objetivo de registrar o seu
significado no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão do
sistema interamericano junto ao qual os autores tivemos a oportunidade de atuar em
defesa dos indígenas. Após a decisão definitiva da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, favorável à pretensão do Povo Indígena Xukuru, fazia-se importante que um
texto acadêmico fosse elaborado pelos autores, no sentido de evidenciar os caminhos
jurídicos adotados e as inquietudes políticas e filosóficas que lhe eram subjacentes. A
metodologia consistiu em uma parte descritiva sobre o caso e suas circunstâncias locais,
o trâmite processual e os atos das partes envolvidas no litígio. Uma segunda parte,
analítica, se baseou na seguinte pergunta: uma outra tese jurídica com base na
ancestralidade seria viável no momento político enfrentado pelo país?
A resposta, acreditamos, está respondida com base nos argumentos e nas
limitações jurídicas, políticas e procedimentais apresentadas ao longo do artigo. Trata-se
de uma resposta aberta e que deixa espaço para o preenchimento, em parte, pelo leitor.

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Sobre os autores

Jayme Benvenuto Lima Júnior


Professor Doutor dos Programas de Pós-Graduação stricto sensu em Direito e em Direi-
tos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ministra a disciplina Di-
reito Internacional Público. É Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernam-
buco e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Realizou estágio Pós-
Doutoral em Direito Internacional dos Direitos Humanos na Universidade de Notre Dame
(EUA). É bolsista do CNPq em pesquisa 2. E-mail: benvenutolima@uol.com.br

Luis Emmanuel Barbosa da Cunha


Doutor em direito pelo PPGD/UFPE. Pesquisador do Moinho Jurídico. Professor univer-
sitário e Advogado. Email: cunhaluis78@hotmail.com

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Conflitos, Violências e o Caso Xukuru na CIDH


Conflicts, Violence and the Xukuru Case at the CIDH

Kelly Oliveira¹
²Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil. E-mail:
mensagenskelly@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9413-7697.

Rita Neves²
²Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil. E-mail:
rita.neves@ufrn.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0507-8336.

Vânia Fialho³
³Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail:
vania.antropologia@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4673-378X.

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 02/02/2022.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 01, 2022, p.424-451.
Kelly Oliveira, Rita Neves e Vânia Fialho
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/65124| ISSN: 2179-8966
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Resumo
O Caso Xukuru na Corte Interamericana é considerado paradigmático e inspirador para o
exercício de garantia dos direitos fundamentais no Brasil. No entanto, a configuração das
formas de violência institucionalizada e a criminalização que este povo vivenciou ao logo
das últimas décadas parecem ter passado ao largo da decisão da Corte, ficando
subsumidas diante das questões técnicas. Diante deste problema, este texto busca
descrever a complexidade da questão, fazendo uso dos argumentos antropológicos
elaborados com base em pesquisa bibliográfica, dada a vasta produção científica na área
de Antropologia e Sociologia existente sobre o povo, e na pesquisa documental para,
assim, acrescentar “carne” e “sangue” à letra fria da lei.
Palavras-chave: Povo Indígena Xukuru; Direitos Humanos; Criminalização.

Abstract
Brazil's Xukuru case before the Inter-American Court is considered paradigmatic and
inspiring for the exercise of ensuring fundamental rights in Brazil. However, the
institutionalised violence and criminalisation experienced by this people over the past
decades seem to have been overlooked in the Court's decision, being subsumed by
technical issues. Faced with this problem, this study aims to describe the complexity of
the subject, making use of anthropological arguments based on bibliographic research,
given the vast scientific production in the area of Anthropology and Sociology about the
people, and on documentary research in order to add "flesh" and "blood" into the cold
letter of the law.
Keyword: Xukuru Indigenous People; Human Rights, Criminalisation

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 01, 2022, p.424-451.
Kelly Oliveira, Rita Neves e Vânia Fialho
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/65124| ISSN: 2179-8966
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O presente trabalho é resultado de um dossiê elaborado com o objetivo de subsidiar a


Associação Brasileira de Antropologia a se pronunciar junto à Corte Interamericana de
Direitos Humanos sobre o caso Xukuru. No formato de um parecer técnico, tratamos de
apresentar informações sobre a relação entre o povo indígena Xukuru e o Estado
Brasileiro, objeto de questão na ação movida contra o Estado Brasileiro. Importante
enfatizar que o parecer foi demandado pela APOINME – Articulação dos Povos Indígenas
do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, que se colocou insatisfeita com a atuação do
antropólogo perito do Estado, que operou na Audiência Pública na cidade da Guatemala
em 21 de abril de 2017.
O prazo para elaboração do parecer foi extremamente curto, daí termos optado
pela pesquisa bibliográfica, dada a vasta produção científica na área de Antropologia e
Sociologia existente sobre o povo, e pela pesquisa documental, a fim de facilitar a
argumentação sobre o caso. A análise documental mereceu uma observação mais detida
sobre o contexto de produção do material, atentando não só para o que estava escrito,
“mas como foi escrito, por que foi escrito e como aquele texto circulou e foi guardado”
(LARA, 2008: 22).
Para além dos documentos, nos deteremos ainda aos relatos orais de indígenas
xukurus, presentes em pesquisas antropológicas, que possam nos esclarecer melhor de
que forma estes indígenas têm estabelecido sua relação com o Estado Brasileiro.
Inserimos também anotações de campo das pesquisadoras que, enfatizando a
importância no material de cunho etnográfico, marca indelével da expertise
antropológica, procuram dar visibilidade aos dramas sociais que marcam a vida de
indivíduos e da coletividade xukuru.
Eis a possibilidade do campo antropológico: ler os documentos, as falas, as
normatividades, situando-os no que o sociólogo e filósofo Jürgen Habermas (2001) define
como o “mundo da vida”, ou seja, um mundo em que o domínio social é marcado pelos
processos comunicativos, cujo meio é a ação comunicativa, o que concede “carne” e
“sangue” ao trabalho científico.

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Segundo um dos fundadores da Antropologia Social, Bronislaw Malinowski


(1984), referência clássica sobre o método etnográfico, não se deve proceder a um
“levantamento de dados” per se, que garanta apenas a apresentação do esqueleto da
constituição tribal, sendo necessário acrescentar “carne” e “sangue” a esses dados. Isto
significa que se deve apreender o fluxo regular da cultura nativa e seus acontecimentos
cotidianos, aquilo que o etnógrafo chama de “imponderáveis da vida real”. Estes
fenômenos são de suma importância e não podem ser apreendidos com instrumentos de
pesquisa tais como questionários ou entrevistas, e sim por meio da observação
participante, o que foi plenamente acionado nas pesquisas que foram a base desse dossiê.
A fim de subsidiar, portanto, uma análise mais qualificada segundo conceitos
antropológicos, delimitamos o universo de nossa análise no processo de regularização
fundiária da Terra Indígena Xukuru, cuja compreensão só é possível se a ele atrelarmos o
conjunto de eventos que aqui definimos como “a criminalização do direito ao território”
(FIALHO; FIGUEIROA; NEVES, 2011).
Antes de entrarmos na seara do campo em si, no entanto, apresentamos ainda a
perspectiva conceitual que nos direciona a pensar a intervenção estatal neste grupo
indígena. Pensar a relação do Estado Brasileiro com o povo Xukuru requer compreendê-
lo a partir da sua formação, como um setor do que o sociólogo Pierre Bourdieu chama de
campo de poder ou metacampo (BOURDIEU, 2014).
Bourdieu ressalta dois aspectos centrais sobre o Estado: a incorporação do poder
simbólico como dimensão essencial do Estado e a necessidade de investigar sua gênese.
O Estado passa a ser examinado como um objeto histórico e a história é incorporada à
análise como um princípio de compreensão. O recurso à história é defendido como um
instrumento fundamental de ruptura epistemológica. Segundo o antropólogo Marcos
Bezerra (2015), o fato de o Estado ter uma participação significativa na estruturação das
representações legítimas do mundo social contribui para que o pesquisador, ao se propor
a pensar o Estado, o faça segundo as categorias e termos do próprio Estado.
Eis aqui um desafio que pretendemos superar neste documento: ao relatar e
interpretar os documentos pesquisados, intencionamos mostrar as contradições do
próprio Estado. Bezerra, ao resenhar a obra de Pierre Bourdieu, afirma que a formação
do Estado como lugar de elaboração do oficial, do bem público e do universal é

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indissociável de dois outros aspectos. Primeiro, os agentes identificados com o bem


público - como funcionários e políticos - encontram-se também submetidos às obrigações
próprias ao campo administrativo. A demonstração de que estão a serviço do universal,
do interesse coletivo e não de um interesse particular, por exemplo, é um meio de
usufruir do reconhecimento social associado a esta condição. Isto é, de se beneficiar dos
lucros simbólicos que se encontram diretamente vinculados às manifestações de devoção
ao universal. Segundo, que as lutas que definem os processos de universalização são
acompanhadas de lutas entre agentes sociais interessados em monopolizar o acesso ao
universal. O poder do Estado seria, assim, objeto de disputa entre agentes concorrentes
interessados em fazer com que seu ponto de vista e seu poder prevaleçam como o
legítimo.
Bourdieu e Bezerra, seguidos pelo antropólogo Antônio Carlos de Souza Lima
(2002 e 1995), auxiliam a nos distanciar de uma postura purista e normativa de que o
Estado brasileiro seria exemplar na garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas.
Nos ajuda a perceber que não basta ter um modelo idealmente construído sobre políticas
públicas e ações do Estado, sem compreender que este modelo está sujeito ao universo
simbólico e de disputas como apresentado acima. Com o material que se segue,
demonstramos como Estado brasileiro, através dos vários corpos que o compõem, violou
de maneira inquestionável, no caso dos Xukuru, os princípios dos direitos humanos como
afirmado na nossa Constituição e nas convenções em que o Brasil é signatário.

O processo de regularização fundiário Xukuru

O povo Xukuru conviveu com um contexto de expropriação de suas terras que vai do
século XVI ao século XX, conforme os documentos apresentados por historiadores, tais
como Edson Silva (1998), que afirma ser este um processo longo e contínuo. Embora
tenham resistido e enfrentado o esbulho de suas terras de inúmeras formas, é na década
de 1980 que estes finalmente encontram, com a possibilidade da promulgação da
Constituição Federal de 1988, a esperança de terem de volta seu território. É importante
ressaltar que a inclusão dos artigos que tratam da questão indígena na Constituição foi

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fruto de pressão por parte dos indígenas na época da Constituinte e que os Xukuru
estavam presentes e ativos em Brasília, através das lideranças e do Cacique Xicão.
A trajetória do processo Xukuru é semelhante a de tantos outros grupos
indígenas, cuja deflagração só se dá mediante o iminente ou já concretizado conflito. O
que torna o processo neste povo paradigmático é a sincronia dos eventos e a evidência
de que a inoperância do Estado provocou um crescente grau de violência e insegurança
no grupo. A seguir, apresentamos um breve histórico da regularização focando, por um
lado, na realidade social do grupo durante o processo demarcatório e, por outro,
percebendo os incidentes burocráticos e estratégias de engessamento da efetivação da
demarcação no território Xukuru.
Apesar da intensa mobilização dos Xukuru, as primeiras providências para a
demarcação das suas terras só ocorreram no final da década de 1980. A realização de
identificação e delimitação do território Xukuru se deu em 1989 em meio a um conjunto
de denúncias de perseguição aos índios. Essa situação ocasionou, ao longo dos anos, que
o território Xukuru se tornasse um mosaico, onde interagem áreas de ocupação de índios
e não índios, caracterizando situação de conflito permanente na disputa pela posse da
terra na região (ATLAS, 1993: 66).
O período de início da mobilização Xukuru foi marcado por muito medo. Se por
um lado havia o desejo de respeito à sua identidade étnica e ao território, por outro era
forte a pressão contra uma mobilização étnica.
Nasci e me criei em Caípe. A gente ouvia falar de indígena, mas não tinha
cacique, nós não conhecia o cacique, não sabia o que era um toré, sabia nada.
Eu fui criado e me entendi de gente trabalhando ao fazendeiro. Aí nós fomos
tocando a vida. Nós tínhamos medo, assim... o pessoal dizia ‘as terras vai sair,
o Governo vai indenizar, os fazendeiros vão embora e vai ser entregue’. E a
gente dizia ‘Eita, a gente vai morrer de fome. Vai morrer de fome porque a
gente vive lutando, trabalhando com o fazendeiro’. Tirava conta, trabalhava
na diária arrancando toco, brocando mato. (João Batista [Jota] – aldeia Jitó –
11.6.2005 in: OLIVEIRA, 2013).

O medo que João Batista sentiu foi uma das mais difíceis barreiras a transpor para
a integração interna do grupo étnico. Submetidos a uma vida inteira trabalhando para
não índios, muitos desconfiaram da proposta de terem o controle do território. Era, de
fato, um conflito interno entre os diversos elos de relação com o ‘patrão’ não índio que,
se por um lado supria as necessidades de trabalho e sustento, por outro também era o

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agente motor da realidade de opressão em que os índios viviam. Foi neste período em
que um novo cacique toma a frente do grupo, Francisco de Assis Araújo, o Xicão Xukuru,
que vem mobilizar o povo em um momento histórico de efervescência de direitos sociais,
com o processo da Constituinte e a entrada de novos aliados, como ONGs e organizações
civis de apoio à questão indígena.
Xicão Xukuru passa a fazer caminhada entre as aldeias, falando de direitos
étnicos. Por outro lado, uma ação de denúncia feita à Procuradoria da República em
Recife, em outubro de 1988, sobre o Projeto Agropecuário Vale do Ipojuca, auxiliou na
instauração do processo demarcatório da terra. A partir da observância de que aquela
situação era causada pela irregularidade na oficialização da área indígena, a Procuradoria
determinou providências. Assim, em 14 de março de 1989 foi emitida a Portaria
Presidencial n.º 218/89 que criou um Grupo de Trabalho. O GT (Grupo de Trabalho) foi
formado por técnicos da Funai, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) e Fundação Nacional de Planejamento Agrícola de Pernambuco (Cepa-PE), para
“identificar e definir os limites da terra indígena Xukuru”.
O trabalho realizado entre maio e junho do mesmo ano, sob a coordenação da
antropóloga Vânia Fialho, cadastrou 281 imóveis rurais dentro da área delimitada. Entre
os posseiros estavam o Prefeito de Pesqueira à época, João de Araújo Leite, secretários
municipais e parentes do então vice-presidente da República, Marco Maciel. O
levantamento identificou a área com 26.980 hectares, realizando com isso a primeira e
segunda etapas no processo de regularização do território, identificando e delimitando o
território, faltando, portanto, a demarcação, a homologação e a desintrusão (FIALHO,
1989).
A presença do GT teve consequências positivas e negativas dentro da área. Por
um lado, o início do processo de posse da terra teve um efeito fortalecedor dentro da
organização política do grupo, legitimando o trabalho que vinha sendo desenvolvido pelo
novo cacique. Por outro lado, a presença de profissionais enviados pela Funai, para
entrevistar não índios donos de terras, foi de fato a prova que faltava de que aquela área
poderia ser mesmo regularizada como de posse dos Xukuru.
Essa realidade aumentou a tensão entre índios e não índios que, em algumas
fazendas, passaram a rejeitar a mão de obra de quem se identificasse como índio. A

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realidade de pobreza que já existia entre o povo foi então agravada com a recusa do
trabalho e deflagrou o conflito explícito. Sem condições de trabalhar como empregados
nas terras, e diante de um quadro que se mostrava demorado na obtenção do território,
os Xukuru partiram para o processo de retomada de terras como forma de pressionar o
início da demarcação efetiva do território.
Esse fervilhar de dificuldades, a pressão pela falta de trabalho e o agravamento
na situação de falta de recursos se arrastou por mais de um ano após a vinda do GT para
confecção do relatório de identificação e delimitação. A saída resultou por meio de uma
ação extrema pela conquista de terras: a realização da primeira retomada, no sítio Pedra
D’água. A prática não era nova. De fato, a retomada de terras surgiu em oposição à
habilidade da Funai de responder às demandas indígenas apenas em situações de
emergência e conflito iminente, o que já vem sendo apontado por anos como problema
entre pesquisadores, indigenistas e entidades civis de apoio a grupos étnicos.
Em texto, os antropólogos Oliveira e Almeida (1998) fazem uma análise do
trabalho da Funai, enfatizando que a atenção dos funcionários do órgão é sempre voltada
para “a crise do momento”. Tentando, portanto, se tornar foco de uma ação do órgão
tutor, os Xukuru organizam a primeira retomada, que resultou também de uma demanda
por espaço para trabalho e prática de rituais.
O espaço territorial de Pedra D’água já havia sido cogitado por diversas vezes
para ser adquirida como área indígena. No ofício 21 de 1955 da IR4 à Diretoria do SPI1 já
havia sido solicitado o território de 800 hectares, que havia sido cedido pela Prefeitura
de Pesqueira à secção de Fomento Agrícola Federal. A solicitação não havia sido atendida
e, em 1989, parte dessas terras estavam arrendadas para cerca de 70 agricultores, por
conta de um convênio firmado entre o Ministério da Agricultura e a Cooperativa
Agropecuária de Pesqueira.
O arrendamento de 110 hectares, que iria durar mais 10 anos, se prestava a um
projeto agrícola de assentamento subsidiado pela Prefeitura de Pesqueira. Sabendo da
determinação legal de que a terra em litígio não poderia ser arrendada nem vendida, e
diante da constatação do desmatamento que estava sendo realizado pelos posseiros, os
Xukuru pediram providências à Funai para conseguir o território.

1 Sedoc/MI, filme 182, fot. 237. Ofício 21/IR 4 para SPI/RJ de 17 de fevereiro de 1955.

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Mesmo já dispondo da posse para utilização da terra, por conta de termo de


comodato feito em 16 de maio de 1989 com o Ministério da Agricultura, a Funai não
tomou nenhuma providência para a retirada dos posseiros, levando os índios a
providenciarem a retomada da terra pelas próprias mãos. Sendo assim, em 05 de
novembro de 1990 um grupo de índios xukurus se instalou no centro da mata de Pedra
D'água, local onde foi formado o primeiro terreiro de Toré, permanecendo por 90 dias.
O território de Pedra D’água se tornou importante como área de grande valor
simbólico e religioso. A pressão em cima da retomada surtiu efeito e um ano mais tarde,
em dezembro de 1991, a Comissão Especial de Análise da Funai aprovou a proposta de
demarcação da área indígena Xukuru, o que fez aumentar a tensão entre fazendeiros e
índios. O conflito acirrado eclodiu no dia 24 de fevereiro de 1992, quando foi realizada a
segunda e maior retomada feita no Cacicado de Xicão: Caípe, de propriedade do então
vereador Milton Didier, uma das figuras mais importantes do grupo econômico e político
dominante da região.
Paralelo ao trabalho de manutenção dessa retomada, um grupo de índios foi até
Brasília solicitar o passo seguinte no processo de regularização do território, que seria a
demarcação física da área. Após 22 dias em Brasília, a comitiva de índios retornou com o
Despacho nº. 3, de 23 de março, em que o Presidente da Funai aprovava as conclusões
sobre os estudos de delimitação da terra indígena Xukuru, encaminhando o processo
para aprovação da demarcação da área.
Em 29 de maio de 1992 foi publicada no Diário Oficial da União a Portaria do
Ministério da Justiça nº. 259, que declarou a posse permanente dos índios Xukuru,
“caracterizada como de ocupação tradicional e permanente indígena” 2 . A portaria
também determinou que a Funai promovesse a demarcação da área, para posterior
homologação pelo Presidente da República.
Vemos que o caso Xukuru de fato causou um conflito interno na própria Funai,
onde encontramos, por um lado, técnicos influenciados por detentores de poder político,
que contribuem para o prolongamento do processo de regulamentação da terra, a fim
de obstruir a demarcação física. Por outro, servidores que, diante de pedidos sem
fundamentação jurídica concreta, baseados no interesse pessoal de políticos da região,

2 Portaria MJ/259 de 28 maio 1992. Diário Oficial da União, p. 27-28

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conseguem levar adiante o processo demarcatório, através de pareceres com


fundamentação teórica e jurídica.
Após mais esse período de embate jurídico, vence o parecer favorável aos Xukuru
e finalmente o Diário Oficial da União publicou em cinco de janeiro de 1995 o convênio
firmado entre a Funai e Iteral – Instituto de Terras de Alagoas, oficializando a realização
da demarcação física da terra. Foram assentadas as placas de identificação da área
indígena e os piquetes demarcatórios, mesmo dentro das fazendas dos ocupantes não
índios. Zé de Santa lembrou que nesta época a organização política já havia colocado em
cada uma das 23 aldeias um representante, que ficou responsável por avisar ao povo que
iriam vir pessoas responsáveis pela demarcação, e que poderiam precisar da cooperação
dos índios. O trabalho demarcatório transcorreu sem grandes problemas. Com a
demarcação física, o território ficou em 27.555 hectares.
Faltavam duas etapas para a conclusão do processo jurídico-fundiário das terras
quando foi sancionado pelo Governo Federal, em janeiro de 1996, o decreto 1775, que
prejudicou o andamento do reconhecimento de terras indígenas. Esse decreto permitiu
que os ocupantes das áreas em litígio contestassem o processo demarcatório e os seus
limites. No caso dos Xukuru, foram 272 recursos, que a princípio foram rejeitados pela
Funai, por conta da falta de provas que pudessem fundamentar os pedidos. Um jogo
burocrático que se arrastou até o ano de 2001.
Diante dessa realidade do decreto 1775, foi realizada a última retomada durante
o Cacicado de Xicão. Duas propriedades vizinhas, totalizando 400 hectares, que estavam
em nome de Leonardo Gomes. Em relatório da Funai sobre a ocupação de Sítio do Meio
e Tionante, o administrador regional, José Osório Galvão de Oliveira, apontou a falta de
terras para a sobrevivência do grupo e a morosidade no processo de regularização de
terras como elementos propulsores da retomada.
Outras retomadas aconteceram além destas primeiras. Focamos nestes casos
para enfatizar que a estratégia de retomadas reflete não só a necessidade essencial da
conquista de terras para o trabalho, como também uma maneira eficaz de mobilização e
pressão sobre a Funai, que se concentra sempre na crise do momento. Assim, através de
ocupações e das consequentes crises, devidamente registradas pelos meios legais e pela
imprensa, observamos o andamento no processo demarcatório, sem esquecermos, no

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entanto, das sucessivas idas e vindas entre pareceres controversos que se acumularam
ao longo dos anos. O que percebemos é que de fato o jogo burocrático é atingido pelas
retomadas, que apresentam uma crise além dos pareceres contraditórios, expondo um
povo que sempre buscou o reconhecimento e o respeito a direitos conquistados na
Constituição.
As primeiras etapas do processo de regularização da TI Xukuru se deram sob a
vigência do Decreto Nº 94945 de 23.09.87 e o levantamento fundiário, apresentado no
relatório do Grupo de Trabalho Nº 218/89, naquela ocasião, identificou 271 imóveis
incidentes na TI Xukuru. A análise dos imóveis revelou o caráter bem mais extensivo de
ocupação por não índios em grandes extensões de terras. As posses com até 20 ha, que
representam mais de 60% dos imóveis incidentes, apropriam-se de apenas 4,5% do
território Xukuru; enquanto pouco mais de 11% de grandes fazendeiros detêm 40% da
área, dentre os quais, percebe-se um número bastante reduzido (apenas 6 imóveis), com
extensões que variam entre 500 e 1.550 ha, ou seja, 2% do total, ocupando o equivalente
a 20% da T. I. Xukuru.

Quadro nº 1: Representação em % dos ocupantes em relação ao total (15.180,45)


Ocupado por não-índios na T.I. Xukuru delimitada
Tamanho dos imóveis (em ha) Nº de imóveis Ha ocupados % do Total

0-20 170 1.229,83 8,1

21-50 45 1.496,60 9.8

51-100 24 1.884,00 12,4

101-500 26 5.019,02 33,0

+500 6 5.551,00 36,56

TOTAL 271 15.180,45 -

Fonte: FUNAI (LevantamentoFundiário-RelatórioGTPPnº218/89)

Observando o quadro nº 1, percebemos melhor como se processa a concentração


de terra por não-índios. Considerando o total ocupado por todos os posseiros, temos
aquelas posses declaradas com mais de 100 ha, que representam 11% dos imóveis

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incidentes, ocupando o equivalente a 70% do total de terras, ou seja, 32 posses, apenas,


apropriam-se de quase 11 mil hectares.
Primeiramente, o que pretendemos indicar ao apresentar esse contexto é que
não há como se pensar a garantia de um território indígena sem que se esteja consciente
da diversidade de problemas que ali já se encontram instaurados, principalmente, em
uma área de antiga colonização, como a região Nordeste.
Outro fator complicador no processo é o tempo que decorre para se passar de
uma etapa para outra do processo administrativo de regularização fundiária. O processo
burocrático, apresentado em documentos e definido “em papel”, apresenta a situação
relatada dentro de um período limitado e que se torna aparentemente estanque, diante
do fluxo contínuo de relações e redefinições apresentadas no cotidiano relatado. O
intervalo entre o início do processo e a homologação da terra Indígena Xukuru consiste
em 12 anos e foi necessário instituir, em abril de 2000, o GT de “atualização” dos valores
das benfeitorias incidentes na TI Xukuru.
O caso Xukuru é, então, mais um desses casos exemplares de processos mal
conduzidos com consequências nefastas, a partir do qual podemos visualizar o ônus de
um processo negligenciado pelo Estado Brasileiro em várias de suas etapas. Com a
formalização do confronto de interesses entre índios e não-índios, através da
identificação e delimitação da área, os conflitos tomaram corpo e pôde-se identificar com
maior clareza os focos de maior tensão.
Embora na tramitação do processo administrativo de regularização fundiária da
Terra Indígena Xukuru a proposta de área para demarcação tenha sido ratificada em todas
as suas fases3, a TI só foi homologada em 2001, tendo enfrentado percalços de todo tipo:
desde manobras administrativas até o assassinato de lideranças xukurus. A inabilidade e
a incapacidade do Estado brasileiro em tratar com mais veemência os passos necessários
para garantir a posse e o usufruto do território Xukuru contribuíram, sem sombra de
dúvidas, para os conflitos e assassinatos que sofreram.

3 O Parecer Nº 67 de 29 de novembro de 1991, da relatora Wilma Marques Leitão, é favorável à


demarcação física da área indígena Xukuru, proposta pela Identificação de 1989 com 26.980 ha., bem como
da sua desintrusão, argumentando que o trabalho de Identificação contém todas as peças exigidas no Decreto
22/91 que estabelecia, na época, os procedimentos administrativos/jurídicos a serem considerados nos
processos de regularização fundiária de Terras Indígenas.

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Entre os atos administrativos, podemos citar o Parecer (20.10.94) elaborado por


Sílvia Regina Brogiolo Tafuri, então chefe da Coordenação de Análise e Delimitação da
FUNAI em Brasília, atendendo pleitos enviados à FUNAI, tanto através de entidades
representativas de classes como sindicatos de produtores rurais de Pesqueira, como
através do deputado federal (PFL/PE) Roberto Magalhães (fax de 24 de agosto de 1994).
Sua argumentação apontava a necessidade da FUNAI reelaborar a proposta de área para
demarcação. Neste Parecer é ressaltada e “elogiada” a ingerência política local Em
especial, à consideração pela escolha do deputado federal Roberto Magalhães (PFL/PE),
como emissário dos mencionados sindicatos. Foi proposta ainda a suspensão das
providências referentes à demarcação e enfatizada a necessidade de redefinição dos
limites apresentados anteriormente. Essas argumentações foram refutadas em pareceres
emitidos tanto pelo setor da FUNAI responsável pela elaboração do Relatório de
Identificação, como por outros técnicos do setor fundiário da própria FUNAI, em Brasília,
tendo em vista o caráter parcial das argumentações apresentadas em favor dos pleitos de
ocupantes não índios da Terra Indígena Xukuru.
Finalmente, em 1995, a demarcação física da Terra Indígena Xukuru foi realizada,
totalizando superfície de 27.555,0583 ha. Na semana posterior à divulgação da notícia
que os trabalhos de demarcação iriam ser iniciados, o procurador da FUNAI, Geraldo
Rolim, que vinha acompanhando os Xukuku, foi assassinado num município vizinho à
Pesqueira.
Representativo dessa burocracia e do fato da atuação da Funai se efetivar
eminentemente em situações de crise, é que os Xukuru realizaram, desde 1990, cerca de
25 grandes retomadas, aliadas a mais 22 pequenas áreas, totalizando 47 áreas/fazendas
retomadas, cabendo à Funai agilizar o pagamento das benfeitorias aos antigos
proprietários. As retomadas, portanto, foram o único meio encontrado para encerrar os
processos na justiça que o Estado, na sua letargia não conseguia resolver.
A cada nova iniciativa de dar prosseguimento à regularização do território, era
colocada a necessidade de se atualizar os valores dos imóveis. Na verdade, tal estratégia
atende a uma outra necessidade, que é a de contextualizar novamente a ocupação da
terra indígena; num intervalo de 26 anos, obviamente, houve uma reorganização espacial
tanto por parte dos índios, que elaboraram táticas para reaver seu território, assim como

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para resguardar a segurança de sua população e também houve uma reorganização


espacial por parte dos ocupantes não-índios que corresponde a uma estratégia de
dificultar a desocupação da área; consequência da lentidão do Estado Brasileiro na
condução do processo. Sobre este último aspecto, podemos citar o fato de que muitos
imóveis ainda foram negociados, mesmo depois de ter sido publicada a Portaria
Declaratória da Terra Indígena Xukuru em maio de 1992 e de sua demarcação em 1995.
Conforme ressalta o Relatório de GT de Atualização do valor das benfeitorias da
TI Xukuru, “(...)muitas destas transações são informais, mas existem casos nos quais os
cartórios continuam formalizando transações imobiliárias, desconhecendo portarias e até
decretos. (...) Como agravante os impostos relativos à propriedade rural continuam a ser
cobrados e algumas prefeituras aceitam o recolhimento dos impostos sobre transferência
de imóveis rurais”. (2000: 23). Percebe-se, assim, que o Estado Brasileiro, em diferentes
instâncias, contribui para o agravamento da situação do povo Xukuru.

Atos administrativos, judiciais e os fluxos sociais

Diante do quadro que observamos, podemos perceber a existência de movimentos e


procedimentos que envolvem o processo de regularização que possuem diferentes
tempos e tentar integrá-los sem se ater para as dificuldades advindas deste problema, é
comungar de uma perspectiva estática da sociedade.
A situação que apresentamos mostra-se clara quando à sua complexidade. São
diversas agências, interesses e valores colocados conjuntamente. Um dos principais
problemas consiste no arcabouço burocrático-administrativo que dá sustentação ao
processo de regularização fundiária. Ao serem instauradas as medidas administrativas
(identificação e delimitação, portaria declaratória...), é estabelecida uma nova ordem de
relações na região. Essa nova configuração de relações não é prevista e ao se dar
continuidade ao processo com o pagamento das indenizações e desintrusão da área,
depara-se com uma realidade totalmente diferente daquela percebida e registrada na
primeira fase dos trabalhos.
No caso de Xukuru, os laudos de “reavaliação dos valores das benfeitorias” (que
começaram a ser realizados em 2000), é que serviram de base para a Comissão que

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avaliou a “boa-fé” dos ocupantes, ou seja, 12 anos depois da identificação e nove anos
depois de publicada a portaria declaratória. Nesta situação, em que o GT realizava o
levantamento da primeira área emergencial, teve início uma discussão a respeito dos
critérios utilizados para a caracterização do que é tomado como de boa-fé ou não.
Todo o processo administrativo de identificação e demarcação da terra indígena
Xukuru ocorreu sem um planejamento, sem a observância de critérios objetivos. O
combustível do andamento do processo foi o conflito, em algumas oportunidades com
trágicos desfechos.
A estratégia do novo levantamento (atualização do valor das benfeitorias) e
simultânea indenização dos ocupantes não-índios configurou-se como uma medida
viável. Ao mesmo tempo em que importantes áreas vão sendo liberadas, a saída de alguns
ocupantes vem a abalar o lobby dos fazendeiros para contestar a regularização da TI.
No entanto, é importante reconhecer que tais medidas condizem com a ineficácia
e a morosidade do processo como um todo e enfatiza o caráter da prática indigenista
oficial o que demonstra um pragmatismo de emergência e de um catastrofismo de
absoluto tempo inadiável de suas ações, “propulsores do administrar por crises”
(OLIVEIRA, 1998: 70- 71) quando, muitas vezes, as sequelas dessa prática são irreparáveis.
Por fim, queremos salientar que apesar de todo “tecnicismo”, burocracia e
formalismo jurídico que circundam os processos de regularização fundiária de uma terra
indígena, eles são fundamentalmente processos políticos em que a injunção das
diferentes esferas de poder tem dado o tom das negociações. Ou seja, apesar das
transformações no quadro de ocupação da TI e das relações existentes serem aspectos
esperados, considerando a intensidade das dinâmicas sociais, quando são associadas à
morosidade do processo de regularização fundiária e à deflagração de conflitos de
diferentes naturezas, vêm, na verdade, enfatizar a indefinição da própria política
indigenista oficial.

Da criminalização e da violência institucional

Conforme apresentado, o processo de regularização fundiária foi movido pela ação do


povo Xukuru, que elaborou estratégias de impulsionar o Estado cuja prática já foi

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caracterizada pelo “administrar por crises”. A tensão que permeou todo o processo pode
ser melhor visualizada se o acompanhamos com os eventos dos assassinatos atrelados à
questão fundiária.
A tensão na região chegou a seu ápice quando em 20 de maio de 1998, Xicão,
eleito cacique Xukuru desde 1988 e um dos principais líderes indígenas do Nordeste, foi
assassinado quando chegava na residência de uma sua irmã, localizada no bairro
“Xukurus”, na cidade de Pesqueira. Ele foi alvejado por seis tiros à queima-roupa por um
indivíduo desconhecido que, segundo informações de moradores das imediações,
rondava o local há algumas horas.
Este foi o terceiro crime praticado no bojo do processo de regularização fundiária
da Terra Indígena Xukuru. No dia 3 de setembro de 1992, foi assassinado com 4 tiros numa
emboscada, o índio José Everaldo Rodrigues Bispo, filho do pajé xukuru Pedro Rodrigues
Bispo. Em 14 de maio de 1995, o procurador da FUNAI, Geraldo Rolim Mota Filho, já citado
anteriormente, foi também assassinado a tiros, na cidade de São Sebastião do Umbuzeiro,
Paraíba.
Representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Pesqueira, onde era
presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) local, Rolim notabilizou-se pela assessoria
prestada em prol da regularização fundiária da Terra Indígena Xukuru. Ambos os
assassinatos, ainda que claramente remetidos à problemática fundiária, foram imputados
a disputas pessoais e averiguados no âmbito da Justiça Comum. No caso do procurador
da FUNAI, o seu assassino foi “absolvido” em julgamentos realizados em 1996 e 1997, na
Comarca de Monteiro/PB, sob alegação de que teria agido “em legítima defesa”.
Em agosto de 2001, dentro do território xukuru foi também assassinado a tiros
Chico Quelé, uma liderança tradicional do grupo que acompanhou todo o processo de
regularização de suas terras. Em 2003, o cacique Marcos Luidson sofreu uma emboscada
e dois jovens indígenas que o acompanhavam são assassinados dentro da Terra Indígena.
Mesmo diante do abalo sofrido principalmente com a morte de Xicão, os Xukuru
optaram por dar continuidade ao processo de ocupação de imóveis que consideravam de
extrema importância para efetivar a retomada de seu território.
Os cinco capítulos do livro Plantaram Xicão: os Xukuru do Ororubá e a
criminalização do direito ao território (FIALHO, NEVES E FIGUEIRÔA, 2011) constituem

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peças técnicas produzidas ao longo dos anos sobre os violentos eventos, não cabendo,
neste espaço, repetir todos os argumentos apresentados, mas sim ressaltar aspectos que
tornam mais evidente a responsabilidade do Estado brasileiro pelo nível de violência
presente no caso.
Utilizaremos duas noções que possibilitam a análise antropológica: criminalização
e violência institucionalizada. Por violência institucionalizada entendemos a violência do
Estado, a partir de Rauter (2001), em sua forma mais concreta - a violência da polícia e
dos diversos sistemas de encarceramento e tutela de que se tornam alvo alguns
segmentos da população.
É a violência exercida sobre o corpo e, portanto, sobre a mente, que é
também corpo. Com Espinosa, não pensamos a partir de uma separação
entre o corpo e a alma, a mente, a psique. Pensamos que tudo aquilo que
afeta o corpo, afeta a mente, e vice-versa. Algumas vezes esta violência é
exercida ao lado de outros objetivos que se consideram principais. Os
discursos oficiais mais recentes preconizam que se poderia e deveria
prescindir dela, que ela não é intencional - é fruto de um excesso, de um erro,
de imperícia, de ignorância. Outras vezes, em determinados momentos
históricos, o Estado assume mais claramente sua intenção de exterminar
parcelas da população - por exemplo, no nazismo ou nas ditaduras latino-
americanas. (RAUTER, 2001:1)

Por criminalização, tal como citado no prefácio do livro Plantaram Xicão,


entendemos de acordo com o que propõe o jurista Zaffaroni (2004) sobre o que denomina
de criminalização secundária, que significa a ação punitiva exercida sobre pessoas
concretas: a ação punitiva deixa sua característica abstrata e impessoal da criminalização
primária e passa a se efetuar na realidade. O autor descreve o “funcionamento” de uma
seleção, que será feita na sociedade para determinar quem serão os criminalizados.
O caso Xukuru articula as duas noções supracitadas, de criminalização e de
violência institucionalizada, como amplamente registrado, seja pela compilação realizada
para instruir os autos dos processos criminais, seja pela extensa bibliografia sobre este
grupo étnico.
No entanto, neste trabalho, nossa concepção de criminalização se reporta
efetivamente a elementos objetivos no registro de movimentação dos processos
criminais. De uma forma geral, é possível afirmar que em todos eles, a hipótese inicial de
investigação sempre era direcionada para a culpabilidade das lideranças indígenas como
a mais plausível. Nenhuma outra linha investigativa era cogitada. Complicador mostrou-

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se a lógica da atuação estatal, especialmente da Policia Federal, que afirmava a


“articulação de supostos indígenas para perturbação da ordem, com as retomadas de
terras, furtos de gado, etc”.
Vamos a dois dos casos mais emblemáticos do processo:

Caso Chicão (processo nº2002.83.00.02442-1)

Neste caso, um fator fundamental no início foi de que os policiais federais se deixaram
contaminar por um discurso preconceituoso de parte dos não-índios em Pesqueira,
especialmente em relação à percepção sobre a organização social xukuru. Se pautaram
ainda por denúncias de uma carta que circulou na cidade, de uma suposta Comissão de
Justiça e Paz da Diocese (que teve sua autoria negada pela própria Diocese) que acusava
os índios de diversos crimes, apesar de nunca ter apresentado nenhuma prova sobre os
mesmos. Importante observar que foram registradas inúmeras petições relatando a
possibilidade do crime estar motivado pela disputa pela posse da terra indígena, que
foram subestimadas, que podem ser vistas no Dossiê Cacique Chicão – violência e
assassinato (CIMI, 1998-1999) e no livro Plantaram Xicão: os Xukuru do Ororubá e a
criminalização do direito ao território (FIALHO, NEVES E FIGUEIRÔA, 2011).
O inquérito se arrastou por um ano sem diligência mais efetivas para apurar os
fatos, alicerçado somente em suspeitas sobre a autoria e motivação do crime voltadas
para um suposto conflito interno, crime passional ou crime político.
Com a ênfase nessas linhas investigativas, os primeiros depoimentos de
fazendeiros só ocorrem um ano depois do crime. No entanto, são feitas novas ameaças
aos indígenas, sem providências efetivas para salvaguarda dos ameaçados ou
identificação dos autores das ameaças e da causa das ameaças ou do assassinato de Xicão.
A investigação sobre a possibilidade de ter havido consórcio entre os fazendeiros para
cometimento do crime, denunciada desde o início do processo, tem demora injustificada:
o sigilo bancário de fazendeiros só é quebrado quase três anos após o crime e a oitiva dos
mesmos, citados mais diretamente como possíveis partes deste consórcio, só começa a
ocorrer quatro anos após o crime.

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A Polícia Federal localizou informações sobre o autor material do crime, José


Libório Galindo, mais de três anos após sua ocorrência, no entanto, o mesmo não foi preso
ou processado, segundo relatório policial por ter sido assassinado, em agosto de 2001,
sob suspeita de “queima de arquivo”.
Em 2002, é realizada exumação “in loco” (na presença de adultos, familiares,
crianças xukurus, sem nenhum equipamento e material próprio) para exumação) dos
restos mortais do cacique Xicão, plantado, segundo a tradição religiosa do grupo, em local
sagrado e incorporado ao panteão dos espíritos encantados do grupo), ato de extrema
violência simbólica contra o povo Xukuru. Ressalta-se que tal diligência feita, segundo
alegações, em busca de balas (que já haviam sido retiradas na autopsia por ocasião do
assassinato), não contribuiu em nada para elucidação dos fatos
As investigações seguem e chegam à prisão do fazendeiro José Cordeiro de
Santana, o “Zé de Riva”, apontado como mandante do crime. Esta prisão ocorre quase
quatro anos após o crime e foi vista com esperança pelos indígenas, por possibilitar a
efetiva Justiça no caso, abrindo a perspectiva de desvendar mais envolvidos no crime, em
cima ainda da possibilidade do consórcio. No entanto, José Cordeiro comete suicídio no
interior da carceragem da superintendência da Polícia Federal em Pernambuco. Deve ser
ressaltado que o suspeito negou os fatos e, após o suicídio, não foi possível apurar a
participação de outros fazendeiros no crime.
Apenas o intermediário da contratação do pistoleiro, Rivaldo Cavalcanti de
Siqueira, foi denunciado e condenado pela Justiça Federal em Pernambuco a 19 anos de
reclusão, em novembro de 2014. Entretanto, o condenado foi posteriormente
assassinado no interior do presídio Professor Aníbal Bruno, em virtude de um suposto
conflito no interior desse estabelecimento prisional.
Importante ressaltar que são ouvidos, ora como informantes, declarantes ou
testemunhas pessoas que tinham interesse na causa, como os fazendeiros (dentre eles Zé
de Riva, Antônio Carlos, Jorge Bigodão, Otávio do Rancho Alegre), que não
necessariamente eram apontados como investigados, e que sempre argumentavam a
favor de uma suposta disputa interna de poder. São ouvidos também outros membros do
grupo indígena, alguns aliados dos fazendeiros, mas movidos por interesses próprios, que
apresentam acusações contra Dona Zenilda, viúva do cacique Xicão e Luiz Carlos, filho

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mais velho de Xicão. No caso da viúva a acusação pairava sobre a ideia de que a motivação
da morte de Xicão estava relacionada ao fato do mesmo manter uma amante na cidade.
As oitivas não consideravam de forma efetiva, portanto, as inúmeras denúncias feitas ao
Ministério Público Federal pelas lideranças xukurus, desde 1989, caracterizando ameaças
de morte por conta da regularização do território. Muitas dessas denúncias, inclusive,
citando o nome de Zé de Riva como uma ameaça iminente aos indígenas.
Posteriormente, as denúncias sobre a arbitrariedade do direcionamento das
investigações foram acatadas pela Comissão Nacional de Direitos da Pessoa Humana e
pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Estas entidades
entenderam a gravidade do caso e indicaram a designação de um delegado especial para
presidir as investigações. Mesmo assim ocorreu a insistência nas linhas de investigação
que comprometiam familiares de Xicão e lideranças dos Xukuru.
A demora em aceitar a hipótese de crime motivado pela disputa por direitos
territoriais indígenas provocou a destruição de provas (assassinato de José Libório
Galindo, vulgo Ricardo), o afirmado suicídio de Zé de Riva na carceragem da Polícia
Federal e a não investigação da hipótese de consórcio entre os fazendeiros para o
pagamento do homicídio de Xicão. O assassinato de Xicão e decorrente atuação do Estado
provocou temor entre os Xukuru e danos à família e ao povo como um todo.
É digno de nota que, com a morte do cacique Xicão, o povo indígena como um
todo teve que apressar o processo de formação de Marcos, filho de Xicão, ainda muito
jovem, para assumir o cacicado, expondo-o a novas ameaças, tendo se tornado cacique
aos 21 anos. Todas as lideranças se sentiram mais vulneráveis a ações violentas, sem
qualquer proteção do Estado. Os Xukuru permaneceram com a sensação de que a morte
do cacique Xicão ficou impune e todos os fatos não foram devidamente investigados.

Caso atentado contra o cacique Marcos e assassinato de dois jovens - Jozenilson José
dos Santos e José Ademílson Brabosa da Silva. (Processos Nº 2003.83.00.011297-6 e
2003.83.00.008677-1)

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Os mesmos procedimentos anteriores por parte do Estado brasileiro (PF E MPF) se


repetem, terminado por ser o cacique Marcos, a vítima do atentado, e outras lideranças
indígenas considerados réus. O processo foi subdividido em dois, um referente ao
atentado e o outro referente às lideranças que, ao verem os índios mortos, tomaram
atitudes contra os que eles consideravam responsáveis. Embora os dois processos tenham
total relação, ao serem desmembrados, perderam o foco.
O nível de tensão e de comoção chega a tal ponto com o evento, que provoca o
reviver do drama do assassinato do cacique Xicão, pois, indignada com as mortes e a
referida tentativa, a população indígena da aldeia de Cimbres se voltou contra um grupo
de famílias xukurus ligadas ao assassino; casas e carros foram destruídos e tais famílias
foram banidas do seu território. O Ministério Público Federal em Pernambuco denunciou
35 (trinta e cinco) pessoas por estarem envolvidas no evento. Em maio de 2009, os
denunciados foram condenados a penas que variam de 13 anos a 10 anos de reclusão,
além de vultosas indenizações em dinheiro. Embora as penas privativas de liberdade
tenham sido diminuídas e substituídas por restrição de direitos (fim de semana, etc.) e
prestação de serviço à sociedade, foi mantida a condenação criminal.
No caso, destacamos:
O desprezo aos elementos de prova em favor dos acusados. Não houve nenhuma
preocupação em perceber que as penas impostas no 1º grau inviabilizariam ou
paralisariam novamente a continuidade da luta pela terra.
Um ofício da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República, com elementos que foram colhidos, indica o modo como ocorreu o atentado
contra o cacique Marcos. No entanto, os depoimentos foram ignorados pela Polícia
Federal e pelo Ministério Público Federal em Pernambuco e não produziram linha de
investigação nesse sentido.
O inquérito é direcionado a apurar danos a imóveis e lesões corporais contra
membros do grupo “Xukuru de Cimbres”, responsáveis pelo atentado e são reforçadas as
acusações contra o cacique Marcos por depredação de um veículo durante o atentado
contra a sua vida. Não se investiga o atentado contra o cacique, mas os danos causados a
diversas pessoas durante os conflitos, assim também como revela empenho nas
acusações contra as lideranças tradicionais. Provas, como as roupas utilizadas pelo

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cacique Marcos no dia do crime e entregues para comprovar as lesões sofridas foram
desprezados na investigação policial, que tomou outros rumos.
Apesar do pedido de indiciamento de José Lourival Frazão, Lídio Vasco, José
Vicente de Carvalho e José Luiz Almeida de Carvalho, suspeitos de participar do duplo
homicídio dos indígenas que acompanhavam o cacique marcos no dia do crime, o
Ministério Público Federal só acata o primeiro como responsável pelos crimes, a despeito
dos depoimentos dos indígenas sobre o envolvimento dessas pessoas com os homicídios.
A Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, a pedido
das lideranças indígenas, designa um observador para acompanhar as investigações. É
nomeado o dr. Luciano Maia, procurador regional da República;
A designação do observador externo para acompanhar as investigações se deveu
a um pedido das lideranças indígenas, entendendo que o inquérito policial estava sendo
conduzido para criminalizar as lideranças indígenas. Porém, este não dispunha de poderes
para requerer diligências ou intervir na condução das investigações policiais e na atuação
dos procuradores da República.
O dr. Luciano Maia compôs, posteriormente, uma comissão especial designada
pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) que produziu relatório
intitulado “Os Xukuru e a violência”, publicado como capítulo do livro “Plantaram Xicão”,
apontando diversas incorreções na condução dos processos criminais em que os Xukuru
figuraram como vítimas ou acusados. O mais surpreendente é que o relatório da Comissão
do CDDPH foi ignorado pelas autoridades policiais e pelos membros do Ministério Público
Federal em Pernambuco.
O mesmo destino teve mais dois relatórios que continham importantes
elementos antropológicos: (a) O relatório realizado pela Comissão Técnica instituído pela
FUNAI para “dimensionar o problema do número de desterrados” decorrentes do evento
de 07 de fevereiro. Esse documento, cuja autoria foi compartilhada por duas das
antropólogas que assinam este texto, esclarecia detalhes dos conflitos e sugeria
encaminhamentos para minimizar as tensões. (b) O relatório sobre o faccionalismo
Xukuru, elaborado em 2002 pela antropóloga Vânia Fialho e publicado como capítulo do
livro “Plantaram Xicão”.

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A observância da movimentação do processo nos permite visualizar que, mesmo


diante da produção de relatórios técnicos indicando a complexidade da questão, a Polícia
Federal e o Ministério Público Federal não contextualizaram as acusações contra o
cacique. Negligenciou-se que a Prefeitura local, do município de Pesqueira, era vinculada
a grupos políticos e econômicos contrários a luta dos Xukuru pela recuperação do seu
território tradicional.

Considerações finais

Com base em tudo que expusemos acima, finalizamos fazendo um resumo e


estabelecendo os indícios da ação omissa do Estado no caso Xukuru. Ao mesmo tempo,
intencionamos chamar atenção do campo jurídico para a importância da perspectiva
antropológica num processo dessa natureza.
Primeiramente, identificamos que o processo de identificação, delimitação e
demarcação da Terra Indígena Xukuru se deu de forma morosa, deixando os Xukuru à
mercê de grandes latifundiários e operadores do Estado, acirrando a violência contra esse
povo e também provocando conflitos internos. Até os dias atuais, embora os Xukuru
detenham controle de seu território, o mesmo ainda não foi totalmente desintrusado.
Há efetivamente uma disjunção entre o que a legislação determina e o que de
fato ocorreu no caso Xukuru. Embora o Brasil seja signatário da convenção 169 da OIT, e
de que a Constituição brasileira apresente o Regime Jurídico de acordo com as
orientações internacionais, o que observamos no caso Xukuru é o total descompasso
entre a lei e as ações práticas efetivas: morosidade no processo demarcatório;
assassinatos movidos pela disputa do território; criminalização das lideranças através de
instituições que a rigor deveriam ser neutras, mas que se mostraram parciais e
desfavoráveis aos indígenas, como atestam os documentos dos processos acima
referidos; e ainda a não resolução a contento dos casos de assassinatos, tais como a
absolvição do assassino do procurador que atuava entre os Xukuru, além de mortes de
testemunhas e de réus confessos, como é o caso do latifundiário Zé de Riva que após ser
preso pelo assassinato de Xicão, apareceu morto na carceragem da Polícia Federal, sem
que apontasse os demais responsáveis, fez com que o longo processo desde a delimitação

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até a desintrusão do território propiciasse um clima de insegurança e medo, que


culminaram com o atentado ao cacique Marcos Xukuru e ao assassinato de dois indígenas
que o acompanhavam.
Outra questão que merece destaque é a grande violação dos direitos dos Xukuru,
provocada pela omissão do Estado brasileiro, na medida em que o judiciário assegurou
apenas aos posseiros, o direito de retenção de terras indígenas, com ocupação, posse e
exploração; mesmo quando estes agiram de má fé, comprando e vendendo terras
posteriormente à declaração de que ali era terra indígena. As teses, dissertações e laudos
antropológicos vêm atestando essa grave violação dos direitos humanos no caso Xukuru
e, mesmo assim, todas as peças e laudos antropológicos, que anunciavam a complexidade
e o problema dos operadores do Estado que atuavam nos casos, foram completamente
desconsideradas nos diversos processos envolvendo os conflitos e assassinatos nos
Xukuru.
Por fim, o processo de demarcação do Território Xukuru configura-se,
substancialmente, por um conjunto de eventos e procedimentos que só podem ser lidos
se colocados em conjunto, como um grande quebra-cabeças. Porém, emaranhadas
nessas peças estão vidas humanas e o destino de um povo que resistiu ao avassalador
processo colonizador que vem apresentando diferentes facetas durante a história, cujo
período mais recente é caracterizado pela judicialização e institucionalização.
A sentença da Corte Interamericana de Diretos Humanos foi, finalmente,
publicada em 05 de fevereiro de 2018. Em decisão histórica, o Estado Brasileiro é
condenado no caso Xukuru e declarado internacionalmente responsável pelas violações
do direito à garantia judicial, pela violação dos direitos de proteção judicial e à
propriedade coletiva previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos. No início
de fevereiro de 2020 foi assinado o Acordo de Cumprimento de Sentença, redigido em
dezembro de 2019 e o governo federal depositou na conta da Associação Xukuru a
indenização de US$ 1 milhão como parte do cumprimento da sentença da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, a título de indenização compensatória coletiva por
danos imateriais sofridos, com o objetivo de que seja constituído um Fundo de
Desenvolvimento Comunitário para os Xukuru.

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Reconhecida vitória do povo Xukuru. Reconhecida a responsabilidade do Estado


Brasileiro. No entanto, os elementos apresentados, como a configuração das formas de
violência institucionalizada e a criminalização parecem ter passado ao largo da decisão da
Corte, ficando subsumidas diante das questões técnicas.
É nesse aspecto que a perspectiva antropológica do processo, expressa em laudos
e perícias, pode contribuir. Trata-se da mediação necessária entre o universo local e as
diferentes esferas envolvidas nas decisões judiciais e, ainda, a possibilidade de aproximar
o problema em questão à dimensão que é vivida, como no caso, por um povo indígena. O
descontentamento da APOINME, indicada no início deste texto, em relação à
participação do antropólogo que atuou como perito do Estado Brasileiro, se deu pela
desconsideração do mesmo sobre os cânones fundamentais da disciplina, ou seja, o
conhecimento baseado na aproximação do cotidiano e dos sujeitos, na observação da
atividade e da interação, tanto formal quanto difusa; na descrição dos modos de controle
e de constrangimento, na compreensão do significado do silêncio como opressão ou
como estratégia de sobrevivência.
O Caso Xukuru na Corte Interamericana é considerado paradigmático e inspirador
para o exercício de garantia dos direitos fundamentais no Brasil. No entanto, para a
compreensão do caso em toda sua complexidade, afirmamos a necessidade de a leitura
da sentença ser complementada pelos argumentos antropológicos que compõem a
considerável produção acadêmica sobre o povo Xukuru e, assim, acrescentar “carne” e
“sangue” à letra fria da lei.

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ZAFFARONI, E. R. PIERANGELI, J. H.: parte geral. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

Sobre as autoras

Kelly de Oliveira
Pesquisadora e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Antropologia
da UFPB – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa. Realiza pesquisa sobre o povo
Xukuru desde a década de 1990.

Rita Neves
Pesquisadora e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Antropologia
da UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. Realiza pesquisa
sobre o povo Xukuru desde a década de 1990.

Vânia Fialho
Pesquisadora e professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Antropologia
da UPE - Universidade de Pernambuco, Recife e UFPE – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife. Realiza pesquisa sobre o povo Xukuru desde a década de 1990.

As autoras contribuíram igualmente para a redação do artigo.

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Povo Indígena Xukuru do Ororubá: uma história de


mobilizações por afirmação de direitos
Indigenous People: Xukuru do Ororubá a history of mobilizations for assuring
rights

Edson Silva¹
¹ Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail:
edson.edsilva14@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6213-9927.

Isabela Paes de Barros²


² Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Pernambuco, Brasil. E-mail:
isabela.paes@ufpe.br ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2262-4108.

Artigo recebido em 31/01/2022 e aceito em 02/02/2022.

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Resumo
A história do povo indígena Xukuru do Ororubá, habitante nos municípios de Pesqueira
e Poção, no Semiárido pernambucano, é marcada por mobilizações pela afirmação,
exigências de reconhecimento e garantias de direitos desde o início da colonização
portuguesa na região. Nas reflexões apresentadas em diferentes situações e contextos
sociohistóricos, após meados do Século XIX quando o antigo Aldeamento de Cimbres foi
oficialmente declarado extinto ocorrendo a legitimação das invasões de fazendeiros e da
agroindústria no Século XX, buscou-se evidenciar as narrativas e registros das continuas
reivindicações dos indígenas, o que possibilita compreender os significados dessas
mobilizações e a importância para a afirmação da identidade indígena e o
reconhecimento do território onde habitam.
Palavras-chave: História Indígena, Identidade Indígena, Xukuru do Ororubá.

Abstract
The history of the Xukuru of Ororubá indigenous people, who inhabit the municipalities
of Pesqueira and Poção, in the semi-arid region of the state of Pernambuco (Brazilian
northeast), is marked by mobilizations for affirmation, demands for recognition and
guarantees of rights since the beginning of the Portuguese colonization in the region.
This article draws a series of reflections considering different situations and socio-
historical contexts, specially after the middle of the 19th century when the former
Cimbres Village was officially declared extinct and the invasions by farmers and agro-
industry in the 20th century were legitimized. We sought to highlight the narratives and
records of the continuous claims made by the indigenous people, which makes it
possible to understand the meanings of these mobilizations and their importance for the
affirmation of indigenous identity and the recognition of the territory where they live.
Keywords: Indigenous History, Indigenous Identify, Xukuru of Ororubá Indigenous
People.

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Indígenas: processos históricos vivenciados no Semiárido

O povo indígena Xukuru do Ororubá habita nos municípios de Pesqueira e Poção no


estado de Pernambuco, onde as pesquisas arqueológicas evidenciaram há milênios a
existência de vários grupos humanos. Tratando-se ainda de uma região de caatingas
com poucas chuvas, longas estiagens e secas periódicas, onde a maior parte dos cursos
d’água são temporários, os solos rasos e pedregosos limitando os recursos naturais
disponíveis. Pesquisas localizaram sítios arqueológicos próximos a fontes de água e os
estudos apontaram vestígios da ocupação humana há milênios na região, ressaltando as
intrínsecas relações com nascentes, lagoas, riachos e rios intermitentes que
possibilitavam a disponibilidade de recursos naturais e assim o pouso para a caça, coleta
(PROENÇA, 2008).
Os lugares mais úmidos há milênios são densamente povoados, por
concentrarem em meio ao clima seco maiores índices anual de chuvas e o acúmulo de
água Essa região historicamente vem sendo cenário de muitos conflitos entre os nativos,
os colonizadores e seus descendentes. Ocorrendo disputas pelos territórios onde estão
as fontes que garantem a vida para os humanos, animais e plantas. A sobrevivência
humana nessa região, portanto, está intimamente relacionada a alguns poucos rios
perenes que nascem nas serras e correm em direção ao litoral, bem como aos chamados
“brejos de altitudes”, espaços de clima ameno nos quais uma elevada densidade
populacional coexiste com as atividades agrícolas e a pecuária. A região montanhosa
favoreceu a formação desses brejos constituídos de espaços subsumidos (manchas ou
bolsões) diante da aridez acentuada do clima predominante.
A colonização/ocupação portuguesa na região do atual Agreste/Semiárido1
pernambucano iniciou após meados do Século XVII, quando ocorreu uma grande
pressão demográfica na região litorânea impulsionando a colonização para o interior. As
terras da região costeira estavam ocupadas com a lavoura da cana-de-açúcar, uma
gramínea bastante suculenta apreciada pelos bovinos. Multiplicaram-se os pedidos à

1O Semiárido brasileiro foi delimitado numa área de 969.589 km desde o Ceará em uma faixa que se
estende em Minas Gerais, seguindo o Rio São Francisco e a região seca média do rio Jequitinhonha (BRASIL,
2005). “O termo semiárido envolve uma referência climática, que marca uma característica do ecossistema
desta região, que é o índice de pluviosidade baixa, isto é, menor de 800mm ao ano. O período de chuva
também se restringe a três ou quatro meses durante o ano. Além disso, existe um índice de insolação
grande, tendo sol quase todos os dias do ano”. O Semiárido corresponde a 88,6% do território de
Pernambuco (TEIXEIRA, 2016, p.769).

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Coroa Portuguesa de terras no “sertão”: senhores de engenho alegavam possuir gados


sem terras onde pudessem criá-los (MEDEIROS, 1993, p.23-26). Foram concedidas
sesmarias, pelo governo português, legitimando-se o expansionismo colonial, com
invasões das terras indígenas.
Para a instalação das fazendas de gado no atual Agreste/Semiárido
pernambucano era necessário amansar os índios “hostis”. Em 1661, o Governador
Francisco de Brito Freire informava sobre o aldeamento de muitos “tapuias”, até aquele
momento considerados “indomáveis”, tendo sido constituídas duas novas povoações,
com igrejas, sob a responsabilidade do Pe. João Duarte do Sacramento, fundador da
Congregação do Oratório no Brasil (MEDEIROS, 1993, p.35). Dez anos mais tarde, por
volta de 1671, o Pe. Sacramento fundava, no “Ararobá” (Serra do Ararobá), uma aldeia
de índios Xukuru (MEDEIROS, 1993, p.51-53).
Os missionários Oratorianos dedicavam-se ao comércio de gado, tornando
produtivas as terras sob o domínio da Congregação, permitindo com isso a compra de
mais terras, até então ocupadas por sesmeiros, nas localidades próximas a missão
(MEDEIROS, 1993, p.63-64). O local era considerado como “a chave de todo aquele
sertão”; esta foi a razão de ter sido mantida, por muito tempo, a Missão do Ararobá,
como ponto de apoio para a expansão das invasões e ocupações portuguesas no atual
Semiárido pernambucano até o cearense.
No Semiárido as áreas com matas serranas, como a Serra do Ororubá, são
localidades dos chamados brejos de altitude, lugares úmidos com cobertura vegetal
volumosa. Nos brejos nascem riachos e rios que mesmo intermitentes irrigam os sopés
das serras e nos períodos de fortes chuvas correm em direção ao Litoral como o Rio
Ipojuca ou o Rio Ipanema que deságua no rio São Francisco. São áreas também
agricultáveis, com as lavouras para o consumo plantada pelos indígenas e os excedentes
de frutas e verduras que abastecem as feiras de cidades como Arcoverde e Pesqueira.
Na atual região de Cimbres, onde foi instalada a Missão do Ararobá, a área
montanhosa favoreceu a formação de brejos que se constituem em espaços subúmidos,
como manchas ou bolsões diante da aridez acentuada do clima predominante. Estudos
apontaram que uma derivação da Serra da Borborema que se estende pela região do
Semiárido, desde o Ceará até Pernambuco, se inicia exatamente no município de
Pesqueira, espalhando-se por regiões vizinhas. Nas cercanias do vale do intermitente
rio Ipojuca que corta o território dos indígenas Xukuru do Ororubá, estão localizados os

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brejos de São José e Ororubá, ambos situados na Serra do Ororubá, entre os municípios
de Pesqueira e Poção (SOBRINHO, 2005, p.163-164).
Figura 1

Localização do Território Xukuru do Ororubá no Semiárido pernambucano


Fonte: jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 07/04/1996, p.11.

O território indígena Xukuru do Ororubá está localizados entre os municípios de


Pesqueira e Poção/PE (Figura 1) com 27.555 hectares demarcados pelo Governo Federal
em 2001, após muitas perseguições, violências e assassinatos de lideranças, a exemplo
do Cacique “Xicão” Xukuru, morto a mando dos fazendeiros invasores nas terras
reivindicada pelos indígenas. A população foi contabilizada em 12.139 indígenas (LEAL e
ANDRADE, 2012, p.8). Sendo ainda estimado que cerca de 200 famílias residem na área
urbana de Pesqueira em diversos bairros, embora a maioria concentrada no Bairro
“Xucurus” (ALMEIDA, 2002, p.52), vizinho ao território demarcado.
Os Xukuru do Ororubá habitam atualmente em 24 aldeias localizadas no
território indígena que dividem em três regiões geográficas (Figura 2): a Serra, o Agreste
e a Ribeira. A Serra é o local mais abundante de água e compreende o brejo de altitude
propriamente dito. O Agreste é a região mais seca em torno da atual Aldeia Vila de
Cimbres. E a Ribeira trata-se da região cortada pelo intermitente Rio Ipojuca, o onde
também situa-se a Barragem Pão-de-Açúcar com águas salobras construída pelo
Governo Estadual entre 1987/1988. As águas dessa Barragem em épocas de longas
estiagens abasteceram Pesqueira e a vizinha cidade de Belo Jardim. Os índios praticam
a agricultura para o consumo plantando em sua maioria milho e feijão. E na região da

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Serra cultivam verduras orgânicas vendidas semanalmente nas feiras nas cidades de
Pesqueira e também Arcoverde.
Figura 2

Regiões em que foi dividido pelos Xukuru do Ororubá o Território indígena


(SILVA, 2008, p. 117)

A fertilidade das terras na Serra do Ororubá foi sempre ressaltada. No


“Diccionario Chorographico, Histórico e Estatístico de Pernambuco”, elaborado na
última década do Século XIX e publicado em 1908, foi destacada a produção agrícola de
Cimbres, com milho, feijão, mandioca, algodão, fumo, cana-de-açúcar e batatas. Além
de frutas, como ananases, laranjas, cajus, goiabas, bananas e pinha. O autor frisou,
porém, que essa produção advinha da Serra, pois: “Geralmente fraca no município, a
agricultura, é futurosa na Serra do Ororubá pela uberdade de que oferece” (GALVÃO,
1908, p. 181).
Em outro trecho, o autor afirmou que, além da abundância da criação de gado,
cavalos, ovelhas e cabras, existiam animais silvestres na região, como veados, caititus,
onças de diversas espécies, raposas, gatos maracajás, tatus, tamanduás, coelhos, mocós,
preás, guarás, furões, maritacas, tejus, juntamente com “aves de diversas espécies e
portes”. Afora o cedro, foram citadas outras árvores nativas e os usos medicinais.

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As referências sobre as plantas medicinais evidenciam a utilização tradicional


pelos indígenas. O autor também destacou a considerável produção agrícola de
Cimbres, onde se colhiam cereais para abastecer as feiras da região. Plantava-se a cana-
de-açúcar e existiam algumas engenhocas para produção de rapadura e também
aguardente. Enfatizando a fertilidade das terras do antigo aldeamento, quando
escreveu: “O terreno é muito produtivo, principalmente na Serra de Ororubá”. Citando
ainda artigos produzidos pelos índios: “A indústria local é a criação, a fabricação de
redes e sacos de algodão, de esteiras, chapéus de palha e vassouras, de cachimbos de
barro, feitos pelos índios habitantes da Serra de Ororubá” (GALVÃO, 1908, p. 182).
No Semiárido pernambucano, os brejos são pequenas faixas isoladas de
transição entre a Zona da Mata úmida canavieira e a região seca. Os brejos com matas
de serras e cursos d’água, favorecem a policultura tradicional, como a lavoura do feijão,
mandioca, café, cana-de-açúcar, a horticultura e a fruticultura, com cultivo de banana,
pinha, goiaba, caju, laranja, dentre outras (MELO, 1980, p.176). Assim, durante muito
tempo, a produção de frutas e hortaliças dos brejos abasteceu não somente as feiras
das cidades próximas, como também as situadas em bairros do Recife.
A índia Xukuru do Ororubá, Maria Alves Feitosa de Araújo, conhecida por Dona
Lica, moradora na Aldeia Cana Brava descreveu a fartura na Serra do Ororubá:
Quando eu tinha oito anos eu ouvia minha mãe falar, que há 50 anos atrás
era um tempo bom. Não era um tempo difícil. Tinha muita mangueira,
muita bananeira, tinha muita caça, tinha muita água, tinha muitas matas.
Não tinha essa história de capim. Não tinha essa história de fazendeiro. Que
os índios no tempo dos meus bisavôs, dos meus avós, não tinha fazendeiro
dentro da área de jeito nenhum. Aqueles índios, a comida era rolinha,
calango, o café era guandu. A comida era fava, xerém 2

No verbete “Cimbres”, encontrado no “Dicionário Topográfico, Estatístico e


Histórico da Província de Pernambuco”, publicado em 1863, além de ter reconhecido a
existência de índios na Serra do Ororubá, o autor ressaltou a riqueza natural do lugar,
quando escreveu:
Esta vila é propriamente uma aldeia, habitada por indígenas, que muito se
gloriam de ser descendentes dos Xucurus e Paratiós, porém muito
preguiçosos. Não obstante a pobreza da aldeia, o termo é um dos mais ricos
e de maior importância no Sertão pela riqueza natural e produtiva, pelos
edifícios que ultimamente se tem edificado e pela instrução a que se tem
chegado. (HONORATO, 1976, p.38)

2MariaAlves Feitosa de Araújo, “Dona Lica”, 52 anos. Aldeia Cana Brava. Terra Indígena Xukuru do Ororubá,
Pesqueira/PE, em 15/12/2005.

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Em outro trecho, depois de enfatizar a importância da agricultura, apesar de


insistir no trabalho agrícola indígena como menor importância, o autor se referiu ao
modo de vida indígena: “Os índios vivem da caça e cultivam muito pouco; as mulheres
fazem lança, fiam algodão, fazem panos para se vestir, e lamentam-se excessivamente
quando os maridos não são bem sucedidos nas caçadas” (HONORATO, 1976, p.38).
Apesar das invasões de fazendeiros, existiam matas na região, possibilitando aos índios
o acesso aos recursos naturais.

O Século XIX e as invasões no Aldeamento de Cimbres

Como determinou a legislação portuguesa, com o Diretório do Marquês de Pombal de


1757, o antigo Aldeamento do Ararobá foi elevado em 1762 à categoria de Vila com o
nome de Cimbres. A transformação das missões/aldeamentos em vilas por
determinação foi justificada como um projeto para a civilização dos índios e a
incorporação à cultura colonial portuguesa por meio, dentre outras medidas, que os
lugares seriam nomeados com denominações de povoações portuguesas. Cimbres é um
povoado no Distrito de Viseu, Norte de Portugal.
As vilas tinham uma administração civil em substituição aos missionários. Sendo
proibidos aos índios falar a língua nativa, a nomeação apenas com nomes e sobrenomes
portugueses. E com o estímulo oficial para os casamentos mistos, o incentivo para
moradia nas novas vilas de colonos vindos de Portugal, favorecendo a mestiçagem e as
invasões das terras indígenas. Nas terras das antigas missões transformadas em vilas de
índios, onde como determinava o Diretório Pombalino se instalara arrendatários,
ocupantes dos territórios tradicionais indígenas. A Carta Régia de 1798 aboliu o
Diretório de Pombal, reconhecendo outra vez os aldeamentos indígenas, mas
possibilitando nas terras o livre estabelecimento de não índios. Aos indígenas restavam
pequenas glebas de terras e o trabalho como mão-de-obra para os fazendeiros.
As vilas de índios passaram a ser oficialmente vilas sem índios, os moradores
considerados pelos não indígenas mestiçados, foram chamados de caboclos. Amparados
pela legislação, por regras que estabeleceram e com a omissão, conivência ou apoio das
autoridades, os fazendeiros invasores se apossaram de grandes extensões de terras

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indígenas. E pouco a pouco por meio da ocupação de cargos públicos, impuseram o


controle político hegemônico em Cimbres e adjacências, situação que se concretizou ao
longo do século XIX.
A Constituição de 1822 não tratou dos índios e até 1845 as províncias legislaram
sobre a temática indígena, favorecendo arrendamentos e esbulhos de terras indígenas.
Em 1845 o Governo Imperial por meio do “Regulamento das missões de catequese e
civilização indígenas”. Estava revogada a legislação pombalinas e reconhecidos as
povoações indígenas existentes. Mas, foi instituída em cada província uma Diretoria
Geral dos Índios, geralmente ocupada por um político fazendeiro, para administração
das aldeias. Em Pernambuco ocuparam o cargo de Diretor Geral dos Índios senhores de
engenho e latifundiários vinculados ao Partido Conservador (SILVA, 1995).
Em 1850 o Governo Imperial promulgou a Lei de Terras determinando o registro
de propriedades em cartório. Após a Lei de Terras os fazendeiros e as autoridades
provinciais solicitaram sistematicamente ao Governo Imperial a extinção do aldeamento
de Cimbres. Os limites das terras do aldeamento foram objeto de uma longa discussão
quando em 1862 a Câmara de Cimbres e a Diretoria Geral dos Índios chegaram a um
acordo. Todavia, o conflito permaneceu, e aumentaram as pressões sobre o aldeamento
de Cimbres. Um “Aviso” de 1863, enviado pelo Ministério da Agricultura, autorizou à
Presidência da Província de Pernambuco o aforamento das terras indígenas.3
A Câmara de Pesqueira em ofícios endereçados as autoridades provinciais,
alegando que não existiam mais índios Xukuru e sim caboclos e da necessidade de
expansão do Município, requeria continuadamente as terras indígenas como
patrimônio. Atendendo as solicitações, em 1879 o Governo Imperial decretou
oficialmente a extinção do Aldeamento de Cimbres. Com a extinção do antigo foram
favorecidos os arrendatários, muitos deles vereadores e fazendeiros invasores das terras
Xukuru, membros da oligarquia, local com consideráveis relações e influências na
política provincial e nacional (SILVA, 2007, p. 90).
Os índios Xukuru do Ororubá nas memória orais relatam que com as invasões
sistemáticas de suas terras e a decretação da extinção do aldeamento de Cimbres, umas
poucas famílias migraram para terras de outros aldeamentos, também posteriormente
declarados oficialmente extintos. Dezenas de famílias indígenas engrossaram o grande

3Aviso
do Ministério da Agricultura, em 05/10/1863, ao Presidente da Província. Arquivo Público Estadual de
Pernambuco/APE, Códice MA-3, folha 120

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contingente de mão-de-obra que se dispersou por regiões vizinhas. Ora trabalhando nas
fazendas em suas próprias terras invadidas, como moradores ou agregados, ora
vagando pelas estradas, sem-terras e sem-teto, ocuparam as periferias dos centros
urbanos próximos, em cidades como Garanhuns, Pesqueira, Lagoa dos Gatos, Correntes.
Como a Serra do Ororubá está localizada na fronteira pernambucana com o
Sertão paraibano, muitos indígenas também migraram para o Sertão daquele estado,
onde foram trabalhar nas lavouras de algodão. Outras famílias indígenas fugindo de
perseguições, da fome e da seca, foram trabalhar na cana-de-açúcar na Zona da Mata
Sul de Pernambuco e Norte de Alagoas, se estabelecendo nas cidades próximas a
lavoura canavieira (SILVA, 2017).
Um estudo baseado em entrevistas (SILVA, 2009) evidenciou as origens
indígenas de vários indivíduos, a maioria moradores no Município de São Benedito do
Sul. Seus antepassados vieram de antigos aldeamentos nas regiões próximas e também
do Agreste/Semiárido pernambucano. Severina Raimundo da Conceição, com 70 anos,
relatou que os pais eram de Pesqueira. Nascida em Agrestina/PE, com oito anos de
idade migrou com os pais para São Benedito do Sul. Trabalhavam durante a colheita da
cana-de-açúcar e na entressafra voltavam para Agrestina ou Pesqueira. A entrevistada
afirmou: “Todo mundo da minha casa trabalhou suado para a Usina Água Branca e a
Usina Frei Caneca. Demos duro até pelo fato de morar ‘debaixo da asa’ do usineiro,
nunca tivemos casa. Aqui fomos escravos e humilhados”. Um filho e sobrinhos
continuavam trabalhando na lavoura canavieira na região. E parentes no mangue em
João Pessoa/PB pegando caranguejo.
Outro momento significativo para a história Xukuru do Ororubá foi a
participação na Guerra do Paraguai (1865-1870). Na documentação da Diretoria dos
Índios em Pernambuco encontramos diversos ofícios que se referem ao processo de
recrutamento de índios para aquele conflito no Cone Sul. Nos registros são evidentes a
truculência empregada pelos diretores das aldeias no alistamento forçados dos índios
como Voluntários da Pátria. As justificativas foram sempre a manutenções da ordem e
da paz nas aldeias.
Um ofício datado de 1865 foi acompanhado por uma relação com os nomes de
82 índios “Voluntários da Pátria” da Aldeia de Cimbres. Informando ainda o documento

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que os alistados estavam deixando os soldos em consignação para as famílias4. Mas, o


recrutamento que aparece como uma ação tranqüila é desmascarado na leitura de um
ofício do ano seguinte, enviado ao Presidente da Província pelo do Diretor Geral dos
Índios, com a queixa de um índio de uma numerosa família, pedindo dispensa de dois
filhos que “forão forçados a se alistar como Voluntários da Pátria”.5 Com o
prolongamento da Guerra do Paraguai e a escassez de tropas, o Governo Imperial foi
progressivamente promulgando leis para o recrutamento compulsório, enviando mais
combatentes para as batalhas.
Os Xukuru do Ororubá nas memórias orais relatam sobre a participação dos
antepassados na Guerra do Paraguai. Citam “Maria Coragem”, uma índia que se
destacou nos campos de batalha, como narrou o Pajé: “[...] foi Coragem, uma mulher
chamada Coragem, porque o nome dela não era coragem, chamaram depois que ela foi
para a Guerra, pela coragem dela”.6 Nas narrativas dos indígenas são também citados
enfaticamente “os 30 do Ororubá”, combatentes que se destacaram em uma das
batalhas:
Eu ouvi falar assim, é uma história nossa que nós temos dizendo que os
Xukuru foram para a Guerra do Paraguai brigarem. Foram 30, morreram 12,
voltaram 18. Então eu ouvi falar, então foi os índios do Brejinho, não lembro
nem aonde mora, nem o nome deles. Eles são da família dos Nascimento, lá
na Aldeia Brejinho. E foi mais uns outros de outras aldeias Xukuru, e foi uma
índia chamada Maria Coragem também.7

Os indígenas relataram também que os antepassados voltaram com


condecorações da Guerra do Paraguai: “[...] o Irmão da Hora trouxe um terno, de reis.
Digo porque o terno eu vi, de coroa, galão e tudo. Porque ganhou esse prêmio Irmão da
Hora, Antonio Molecão e Antonio Tavarinho”.8 Em seus relatos, os Xukuru falam ainda
de quepes, medalhas, espadas, “diplomas da Guerra”, roupas e outros adereços
militares, além dos “títulos de terra”, trazidos por seus antepassados que retornaram da
Guerra.

Autores destacam o “heroísmo” do cabo Zeferino da Rocha, morador do “Sítio


Goiabeira no alto da Serra [do Ororubá]”, veterano da Guerra do Paraguai, membro do

4Quadro com relação dos índios do Urubá/Voluntários da Pátria, em 02/04/1865. APE, Cód. DII-19, fl. 83.
5Ofíciodo Diretor Geral dos Índios, em 21/01/1866. APE, Cód. DII-19, fl. 96.
6Pedro Rodrigues Bispo, 72 anos, conhecido por “Seu Zequinha”, Pajé Xukuru do Ororubá. Pesqueira, em

29/03/2002.
7João Jorge de Melo, 65 anos. Aldeia Sucupira. Terra indígena Xukuru do Ororubá, Pesqueira, em 30/032002
8Malaquias Figueira Ramos, 62 anos. Aldeia Caípe. Terra indígena Xukuru do Ororubá, em 12/11/1996.

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“Trinta de Voluntários”, composto de índios xukurus, “todos condecorados depois com


medalhas de Guerra e Bravura” (BARBALHO, 1977, p. 71; WILSON, 1980, p. 42).
Depois da Guerra o Governo Imperial, como recompensa, além de honrarias
militares, destinou lotes de terras aos ex-combatentes. Os Xukuru do Ororubá enfatizam
as recompensas que os antepassados receberam por participarem na Guerra diante do
cenário no último quartel do século XIX quando enfrentavam conflitos com tradicionais
latifundiários muitos deles fazendeiros vereadores encastelados na Câmaras Municipal,
que solicitavam insistentemente aos governos provinciais e ao Governo Imperial de
Cimbres, e eram invasores nas terras do antigo aldeamento.
Para os indígenas a participação dos antepassados na Guerra do Paraguai foi
decisiva para vitória do Brasil. E por essa razão foram recompensados com o
reconhecimento da propriedade das terras:
Chamavam o número Trinta dos Voluntários. Chama os Trinta dos
Voluntários porque foram pro Paraguai, lutaram na guerra lá, venceram...
mas quando veio de volta, passaram no Rio de Janeiro. O rei e a rainha não
tinham com que agradecer a eles e disse: “Vocês faça sua divisão de terra, é
patrimônio que eu vou assinar pra vocês”.9

E como também relatou de forma mais explícita o Vice Cacique Xukuru do


Ororubá:

Olhe a dádiva que da Guerra foi oferecido, dinheiro e ouro. Só que, para os
índios, dinheiro e ouro não eram interessantes, interessante era a terra. Aí
eles disseram que ao invés de ouro eles queriam uma coisa que nunca se
acabasse, que era a terra que estava na mão de algumas pessoas que não
deixavam eles trabalhar. Então, eles queriam a terra para eles viverem, os
filhos deles viverem e os filhos dos filhos deles. Isso aí foi o pagamento que
eles receberam, que eles pediram.10

Ao ser questionado sobre a importância da participação dos seus antepassados


na Guerra do Paraguai, o Pajé “Seu” Zequinha, uma das figuras centrais no processo de
reconhecimento dos marcos para o trabalho de demarcação do território Xukuru do
Ororubá nos anos 1990, afirmou:
Foi importante porque na época aqui existia uns coronéis, uns capitães, uns
tenentes. Só bastava, era o pessoal que podia comprava aquelas patentes
de tenente, de capitão, e aí massacrando os índios. Depois que eles vieram,
melhorou. Trouxeram os títulos, aí eles não puderam... eles tomavam a
terra, eles tomavam, “aqui é meu, é meu e pronto, acabou-se”.11

9Durval Ferreira Farias, 84 anos. Bairro “Xucurus”, Pesqueira, em 10/05/1997.


10JoséBarbosa dos Santos, 55 anos, conhecido por “Zé de Santa”. Aldeia Santana. Terra Indígena Xukuru do
Ororubá, em 30/03/2002
11Pedro Rodrigues Bispo, entrevista citada

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A partir dos relatos é possível compreender as leituras dos indígenas sobre a


participação dos antepassados na Guerra do Paraguai, ao lhes deixaram as terras como
herança da vitória no conflito. São afirmações diante da guerra continuada com muitas
batalhas por suas terras, pela reivindicação e reconhecimento dos direitos históricos.
Apoiados na memória e na história que compartilham sobre o passado, por meio da
releitura de acontecimentos enfatizados como importantes, afirmam os direitos
enquanto um povo indígena.

Mobilizações Xukuru do Ororubá no Século XX

Após a extinção oficial do aldeamento de Cimbres em fins do século XIX, na Serra do


Ororubá muitos xukurus sem-terras passara a morar “de favor” em terras nas mãos dos
fazendeiros. Pagavam a moradia com o trabalho na lavoura. Muitos trabalharam nas
lavouras que próximo as colheitas, eram invadidas e destruídas pelo gado do fazendeiro.
Outra opção para os índios sem-terras era o chamado trabalho arrendado. Em suas
memórias orais os Xukuru do Ororubá narram que eram grandes as pressões dos
fazendeiros sobre aqueles com pequenos pedaços de terras, para arrendá-las, comprá-
las ou tomá-las à força. O que provocou a dispersão de famílias indígenas.
Um exemplo para compreender a situação dos indígenas nesse contexto, foi a
trajetória de vida de Gercino Balbino da Silva. Nascido em 1924, na Aldeia Cana Brava,
uma das muitas localidades na Serra do Ororubá, conhecido por “Seu” Gercino, faleceu
aos 83 anos em junho de 2007. Na época em que nasceu as terras do antigo aldeamento
estavam invadidas por fazendeiros criadores de gado e senhores de engenhos, que nas
áreas dos brejos plantavam cana para produção de cachaça e rapadura.
Os brejos das serras foram sendo usados como refrigério para o gado dos
fazendeiros, em períodos de longas estiagens:
As serras, muito úmidas no inverno, não se prestam à pecuária e são
aproveitadas por agricultores que cultivam cereais, plantas do ciclo
vegetativo curto. Na estação seca, após a colheita do feijão, do milho e do
algodão, o gado é levado para a serra, para o brejo, onde se mantém com
este alimento suplementar à espera de que, com as primeiras chuvas, a
caatinga reverdeça. São famosas por servirem de refrigério ao gado certas
serras, como as de Jacarará, da Moça e de Ororobá, em Pernambuco.
(ANDRADE, 1998, p. 157).

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Uma grande produção de leite era também contabilizada e exaltada no


município de Pesqueira naquela época. Fartura para uns poucos, miséria para muitas
famílias Xukuru. Um período difícil rememorado12 por “Seu” Gercino. Época de muita
fome, com muitas crianças mortas por desnutrição como evidenciados nos próprios
dados oficiais disponíveis nos arquivos da Prefeitura de Pesqueira. O menino Gercino foi
um dos sobreviventes.
A opção para a família de Gercino assim como para muitas outras famílias
indígenas, era o chamado trabalho alugado. Sem terras para plantar e viver, os pais de
Gercino foram morar em Sítio do Meio, também localizado na Serra do Ororubá, com os
avós do menino que trabalhavam “de alugado” para um fazendeiro local. Desde criança
Gercino enfrentou uma vida árdua. Aos oito anos, como seus país e avós, trabalhava no
“cabo da enxada”, porém só recebia cinco tostões por dia. Era a metade de uma diária
paga a um trabalhador adulto.
Como as demais famílias indígenas na Serra do Ororubá, além do trabalho
alugado os familiares de Gercino eram moradores nas terras em mãos dos fazendeiros.
Moravam “de favor” e plantavam roça: milho e feijão para a subsistência. Com o
compromisso de plantar também o capim para o gado do invasor. Muitas vezes, mal
dava tempo para colheita da lavoura plantada para o consumo. Com o milho ainda
verde o fazendeiro soltava o gado na plantação destruindo a roça. O gado engordava,
enquanto os indígenas viviam a fome.
Acompanhando os parentes índios xukurus o jovem Gercino migrou para “o sul”,
como chamavam a Zona da Mata Sul de Pernambuco. Para trabalharem nos canaviais e
nas usinas de cana-de-açúcar. Na esperança de retornar trazendo um pouco de dinheiro
para os familiares como os mais idosos, mulheres, crianças e todos que não podiam ir
para “o sul”. A falta de terras para trabalhar, provocava a migração em busca de
trabalho em locais distantes de onde habitavam.
Os dados sobre óbitos na década de 1940 encontrados nos arquivos da
Prefeitura Municipal de Pesqueira evidenciam uma elevada taxa de mortalidade infantil.
Foram registradas muitas mortes de crianças com apenas meses, ou ainda nos dois
primeiros anos de vida nos “sítios” Cana Brava, São José, Santana, São Braz, Tionante e
Lagoa, todos localizados na Serra do Ororubá. Estão registradas também as mortes de

12A entrevista com “Seu” Gercino, na época com 80 anos, foi realizada em 11/08/2004, na Aldeia Pedra
d’Água. Terra Indígena Xukuru do Ororubá, Pesqueira/PE (SILVA, 2008).

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pessoas adultas, a maioria com idade avançada, que, assim como as crianças, trazem
sobrenomes de conhecidas famílias indígenas habitantes nessas localidades, a exemplo
de Bispo, Romão e Nascimento, em Cana Brava; Simplício, em São José.
Jornais registraram o aumento de pedintes na cidade de Pesqueira. E
possivelmente muitos eram indígenas. Fome e mendicância para muitos, fartura e
alegria para uns poucos. Situação evidenciada no trecho de uma reportagem: “Os
campos tomateiros da firma Carlos de Brito S.A. cobrem uma área de quase cinco mil
hectares, devendo registrar este ano uma produção ‘record’ de sessenta milhões de
quilos do precioso fruto”.13 O noticiário prosseguiu exaltando as qualidades do
“Comendador” Manoel de Brito, o proprietário da “notável organização Peixe”, que,
com um trabalho intensivo, a cada ano ampliava o parque industrial, expressando o
dinamismo da família Brito e equipe, comprometidos com o progresso e o
engrandecimento daquela “poderosa” empresa.
A inauguração da estação ferroviária de Pesqueira em 1906, além de favorecer o
transporte seguro de passageiros até Recife e cidades no trajeto, possibilitou o
escoamento de produtos daquela região e o trânsito comercial com a Capital. A
indústria de doces iniciada timidamente também no início daquela década, teve um
grande impulso inclusive para compras de máquinas que ampliaram o parque fabril e a
capacidade produtiva. Mas, com um custo socioambiental considerável impactando os
Xukuru do Ororubá e o Ambiente na região.
O desmatamento e o uso indiscriminado dos mananciais de água agravaram a
situação em períodos de seca. Na Serra do Ororubá e áreas vizinhas, o gado dividia o
espaço com lavouras e plantações de tomate. Os roçados de umas poucas famílias
indígenas, os sítios, eram pequenas glebas de terras espremidas entre as áreas de
criação das fazendas. As matas úmidas características da Serra foram derrubadas.
Restavam insignificantes “retalhos de matas testemunhos”, pois a cobertura vegetal de
outrora continuavam a ser substituída por cafezais, goiabeiras, bananeiras e outras
frutas (SETTE, 1956).
As matas eram derrubadas também para abastecer de lenha as locomotivas do
trem que trafegava de Pesqueira ao Recife, e mais “as fornalhas das fábricas de doces,
os fornos de padaria e fogões domésticos” (SETTE, 1956, p.12). Ocorria, portanto, a

13Grande safra de tomate. A voz de Pesqueira. Pesqueira, 26/07/1953, p.1.

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destruição do patrimônio natural para atender às exigências da lógica econômica em


vigor com o crescimento da agroindústria e a criação de gado. A partir dessa lógica, a
Serra estava sendo toda ocupada. Nas localidades mais úmidas predominava a criação
do gado de corte e o destinado à produção de leite. Nos sopés da Serra, mais próximos
da cidade, constatava-se a “plantation” do tomate destinado à indústria, “enxotando
cada vez mais para longe os roçados de subsistência ou mesmo reduzindo as áreas de
criação” (SETTE, 1956, p. 14).
Também a água para as fábricas e para o consumo dos moradores em Pesqueira
provinha da Serra. A fábrica Peixe possuía açudes que abasteciam suas unidades fabris.
Contudo, era vivenciado o “cruciante problema da água”, agravado principalmente na
época das secas, como citou um pesquisador: “A Prefeitura possui dois açudes no alto
da Serra que abastecem mal a cidade sob o regime de racionamento, principalmente
durante os meses de estiagem e pior ainda por ocasião das secas” (SETTE, 1956, p.94).
As colheitas de frutas, tomates eram destinados a agroindústria de doces,
conservas e os plantios capim a alimentar o gado para a produção de laticínios, nas
várias fábricas como a Tigre, Paulo de Brito, Peixinho, Recreio, instaladas na área urbana
de Pesqueira, sendo a Peixe e a Rosa as maiores. Todavia, os custos sociais do exaltado
progresso eram socioambientais questionáveis. Nesse contexto, famílias indígenas na
Serra foram forçadas a migrarem para a área urbana de Pesqueira, enxotados pelos
fazendeiros, tornara a situação social muito grave na cidade. Não existiam emprego para
todos nas fábricas.
Ocorreu o surgimento de aglomerações na periferia, formadas, na maioria, pelas
habitações do operariado. Dentre estes, muitos eram índios da Serra do Ororubá, que se
concentravam no Bairro “Mandioca”, descrito por um pesquisador:
Acomodando-se a um desvão oferecido pela escarpa inferior da Ororubá, o
bairro Mandioca, tendo a sua localização determinada pela proximidade da
água e do centro urbano, atravessa com suas ruas mal cuidadas e suas casas
de gente muito pobre o vale do Baixa Grande, começa a subir, do outro
lado, a contra-encosta e um de seus arruados de casebres, quase trepados
uns sobre outros (SETTE, 1956, p. 76-77).

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Figura 3

Pesqueira em 1955
biblioteca.ibge.gov.br

Na fotografia acima (figura 3), observamos a “Rua da Mandioca” em 1955,


atualmente o Bairro “Xucurus”. Nos relatos orais os Xukuru do Ororubá afirmam que era
o caminho usual dos índios para a cidade. E foi onde concentrou-se os indígenas
migrantes forçados da Serra do Ororubá que vieram morar na área urbana, alguns
trabalhando como operários nas fábricas. A chaminé da fábrica Peixe destaca-se na
parte superior da fotografia.
Para o citado pesquisador, eram moradias comparadas às “favelas” das grandes
cidades, reunindo a maioria das famílias indígenas na área urbana de Pesqueira. Em
conversas informais, moradores locais mais velhos afirmaram que muitas dessas famílias
foram expulsas de seus sítios na Serra, por fazendeiros invasores e os plantios da
agroindústria. E por essa razão muitas crianças Xukuru do Ororubá nasceram no Bairro
“Xucurus”.
Muitos indígenas vindos da Serra do Ororubá eram trabalhadores na fábrica
Peixe. Um entrevistado discorreu sobre as condições no trabalho noturno de carga e

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descarga dos muitos caminhões com tomate, sem vínculo empregatício, alimentados
apenas com café e pão:
Era muita gente que trabalhava na fábrica Peixe, mas era índio, tudo índio
daqui da Serra. Era de vinte, trinta, vinte. Era de vinte, de quinze pra lá que
ia. Toda viagem que ia pra fábrica Peixe toda noite. Mas eles iam fazer sabe
o que? Iam trabalhar a noite. Num era trabalhador fichado não. Iam
carregar coisas nas costas, tomate. Descarregar caminhão todo, que era a
fábrica Peixe lutava com cento e tanto caminhão, viu! Carregando tomate.
Era aquela fila de caminhão como daqui lá na Igreja. Pegava do Prado
(bairro) a fábrica Peixe. Pegava lá debaixo da Igreja prá cima um pouco. Da
Igreja da Catedral. Ali tudo era cheio de carro, caminhão pra descarregar.
Cada um junto assim. Ia trabalhar, chegavam todo melado. Trabalhava a
noite. Só que eles davam café, né, davam pão da noite. Mas toda noite que
viesse, marcavam tudo nisso.14

O indígena e ex-operário conhecido por “Mané Preto”, relatou sobre o


trabalho noturno carregando caixas de tomates durante o período da colheita. Quando
findava a safra, eram dispensados e procuravam trabalho em outros lugares, no “Sul”
(Zona da Mata Sul de Pernambuco). Na fábrica não eram respeitados os direitos
trabalhistas e pagos diariamente pelo serviço executado:
Eu trabalhava na Fábrica Peixe, que trabalhava à noite. Os operários
trabalhavam de dia e nós trabalhava a noite! Aí nós trabalhava à noite.
Quando findava eu ia embora para o Sul trabalhar. Trabalhei muito aqui.
Nós botava caixa, nós colhia tomate, caixa de tomate despejando nas
esteiras. Serviço pesado! Ninguém falava em registro! Todo dia eles
pagavam a gente aquele pouquinho.15

Vários indígenas entrevistados afirmaram que os plantios de tomates, goiabas e


bananas se espalhavam por toda a Serra do Ororubá em terras indígenas e adjacências.
Nas memórias orais os Xukuru do Ororubá relataram experiências de trânsitos, vivências
nas fronteiras entre a vida no campo e a moradia na cidade, sem-terras de agricultores e
operários nas fábricas na área urbana de Pesqueira, explorados como mão de obra pela
agroindústria.

14CíceroPereira de Araújo, “Seu” Ciço Pereira, 81 anos. Bairro “Xucurus”, Pesqueira/PE, em 05/01/2002.
15Manoel Balbino Silva, “Mané Preto”, 73 anos. Aldeia Cana Brava. Terra Indígena Xukuru do Ororubá,
Pesqueira/PE, em 17/11/2005

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“Isso aqui é nosso! Isso é da gente!" Mobilizações Xukuru do Ororubá por direitos

Os povos no Nordeste ao saber da existência de um órgão federal, o Serviço de Proteção


aos Índios/SPI fundado em 1910 para prestar assistência aos índios, iniciaram
mobilizações para serem reconhecidos pelo Estado brasileiro. Nas memórias orais os
Xukuru do Ororubá relatam sobre essa mobilização contemporânea pelo
reconhecimento oficial. Os indígenas narraram, a exemplo do relato abaixo, que após
procurarem ajuda financeira do padre de Bom Conselho, três índios foram a pé ao Rio
de Janeiro para encontrar-se com o Marechal Rondon, fundador do SPI,
Aí eu disse: - vocês vão lá, chegar em Bom Conselho, tem um padre
chamado beneditinos, ele protege o índio de Águas Belas, de Palmeira dos
Índios. Esse padre é muito bom... vocês se entendem com ele que ele dá
mais uma proteção, conhece Cândido Rondon. Aí arranjei uns dinheiro, o
padre vai dá 500 mil réis. Esses homens saíram daqui no 1º de outubro de
1953 e chegaram no Rio de Janeiro no dia 1º de janeiro de 1954. Levaram
três meses. Foram de pés. Passaram 90 dias de viagem. 16

Com a viagem ao Rio de Janeiro além do reconhecimento oficial, os Xukuru do


Ororubá conquistaram o direito à instalação de um Posto do SPI em suas terras. Um
passo político decisivo diante das perseguições dos fazendeiros invasores do território
indígena. O Posto foi instalado em fins de 1954 na Aldeia São José e a s fundação
ocorreu, a partir da mobilização dos índios. Se a instalação do Posto do SPI não lhes
garantiu as terras, ao menos a assistência pelo órgão indigenista estatal, adquiriu um
grande significado político: o reconhecimento oficial dos Xukuru do Ororubá que no
futuro exigiram à demarcação definitiva do território.
A Fábrica Peixe e as demais indústrias instaladas em Pesqueira entraram em
decadência em fins dos anos 1960 e acentuadamente na década seguinte, segundo
estudos em consequência das mudanças econômicas onde os capitais passaram a ser
investidos no Sudeste do país, em fábricas concorrentes. Ocorreu à desagregação do clã
dos Britos, a venda da empresa a um grupo canadense e posteriormente a falência
(CAVALCANTI, 1979).
Nas memórias orais os índios Xukuru do Ororubá citam os plantios existentes na
Serra do Ororubá destinados à indústria de doces conservas, na época em que muitos
indígenas sem terras trabalhavam nas fábricas em Pesqueira. O Pajé Xukuru discorreu

16Durval Ferreira Farias, 84 anos. Bairro “Xucurus”, Pesqueira/PE, maio de 1997

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sobre a grande extensão de terras da Família Brito com plantios de tomate: “Tinham
terra que nem o diabo! Aqui logo, começava logo aqui do [Bar do] ‘Papa’ (ponto
comercial situado na entrada da atual terra indígena demarcada), vai a Lagoa e tudo ali
em Santana. Por ali a fora tudo era deles, né? Sítio do Meio, eles tinham o que? Umas
quinhentas quadras! Dava uns quinhentos quadra (SIC) lá em Sitio do Meio. Esse Sítio do
Meio foi grilado. Foi tomado”.17
Alguns poucos indígenas herdaram dos seus antepassados pequenos pedaços de
terras, insuficientes para o plantio da agricultura de consumo. E as pressões dos
fazendeiros eram grandes, como relatou um entrevistado:
A terra que a gente tinha aqui era dez conta de terra. Era quinze braças por
oitenta de altura. Quer dizer que nos papéis da escritura tinha dez conta de
terra. A gente não tinha espaço pra nada, porque de um lado o fazendeiro,
do outro o fazendeiro. A gente tava como um pão que a gente pega ele e
abre no meio e coloca um pedaço de doce e faz sanduíche, a gente tava ali
naquela tirinha imprensado e ele imprensando mais pra gente correr,
conseguir correr dali e ele tomar conta.18

E muitos indígenas sem- terras trabalhavam para os fazendeiros:


A dificuldade era grande. Desde o meu tempo, eu caí no trabalho da
agricultura com dez anos de idade! Porque o ramo dos meus pais, dos meus
avós, tudo era trabalhar na agricultura. Mas não existia terra para trabalhar!
Não existia terra para trabalho. Nós trabalhava arrendado com fazendeiro.
Você botava meio hectare de terra ou um hectare. Fazia a broca, fazia a
terra, plantava, quando a lavoura, quando nos plantava que nascia o
fazendeiro já danava capim dentro! Nós trabalhava arrendado! Porque ali
não desfrutava nada! Quando tava começando a desfrutar ele já botava o
gado dentro! Pronto acabava com tudo, nós ficava sem nada.19

As memórias sobre as relações de trabalho na condição de moradores nas terras


por anos em mãos dos fazendeiros foram relatadas ainda pelo entrevistado “Seu
Juvêncio”, nascido e morador na Aldeia cana Brava,
Quem não tinha terra, morava de favor, morava com os brancos. Eles
botava lá. Eles botava eles para morar, dava uma moradia a eles. Botava
eles para morar e pra trabalhar eles direto! Trabalhar eles direto! Nunca
teve futuro. Eu mesmo trabalhei muito para outros. Trabalhei muito
alugado. Eu trabalhei de 1952 para cá, eu morei com o fazendeiro aqui
Antônio Zumba, era o homem mais rico dessa região! O nome dele era
Antônio Zumba. Só com ele eu trabalhei 32 anos!

17Pedro Rodrigues Bispo, “Seu Zequinha”, Pajé Xukuru, 74 anos. Bairro Portal, Pesqueira/PE em 29/03/2002
18JoséAntonio Luiz da Paz, “Seu Dedé”, 48 anos. Aldeia Santana. Terra do Xukuru do Ororubá, Pesqueira/PE
em 08/04/2004.
19Juvêncio Balbino da Silva, 76 anos. Aldeia Cana Brava. Terra Indígena Xukuru do Ororubá, Pesqueira/PE em

15/12/2005.

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Foi nesse contexto de exploração e opressão que as Ligas Camponesas em


Pesqueira organizada em Pesqueira teve a adesão e participação dos índios. Em 1959, a
Liga Camponesa, “a 12 Km da cidade” - zona rural de Pesqueira - foi denunciada à
Secretaria de Segurança Pública no Recife. A sede e a diretoria Liga localizava-se naquele
lugar. O local era visitado por Francisco Julião, conhecido incentivador das Ligas
Camponesas. A situação era do conhecimento da Inspetoria do SPI no Recife, que
solicitou ao encarregado do Posto Indígena Xukuru apuração da denúncia de desvio do
leite destinado à merenda escolar para a Liga, como constatara um oficial do serviço
secreto do Exército (SILVA, 2010).
Com adesões em Brejinho, Lage Grande, Cana Brava e Caípe, locais de moradias
de indígenas Xukuru do Ororubá, a Liga contava com mais de 400 integrantes, dirigidos
por Gregório Bezerra, conhecido comunista posteriormente preso pela repressão do
Golpe Militar em 1964. No relatório elaborado pelo investigador enviado sigilosamente
a Pesqueira pela Inspetoria Regional do SPI sediada no Recife, foram citados Zacarias
Pereira, Elói Pereira e Antonio Nascimento, conhecidas lideranças indígenas, como
“ardorosos adeptos das Ligas Camponesas”.
O autor do referido relatório chamou a atenção que os índios envolvidos com a
liderança da Liga eram moradores em Brejinho e Cana Brava. Para as autoridades, pelas
condições de vida dos indígenas, que reconhecidamente não recebiam uma devida
assistência governamental, eram as potenciais “vítimas” de ideologias perigosas à
ordem social estabelecida. Mas, observando os relatos Xukuru do Ororubá sobre o
envolvimento com a essa concepção é questionável. Os indígenas participaram
ativamente na organização e nas mobilizações da Liga Camponesa na Serra do Ororubá
e no centro de Pesqueira, como registrado nos documentos pesquisados e em
entrevistas realizadas (SILVA, 2010).
Em fins de 1963, um enviado do Ministério da Agricultura a Pernambuco
declarava que recebeu todo o apoio do Governador Miguel Arraes o do Delegado da
Superintendência da Reforma Agrária/SUPRA em Pernambuco, para ir “in loco” a
Pesqueira realizar a investigação sobre as invasões de terras da União por trabalhadores
rurais. Em relatório o agrônomo informou sobre a agitação política “das massas rurais” e
suas reivindicações. E a reação dos proprietários contrários aos trabalhadores
sindicalizados acusando-os de subversivos que colocavam em perigo a ordem social. As
insatisfações dos trabalhadores resultavam da falta de trabalho, pela recusa dos

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proprietários de aceitá-los, mesmo como arrendatários, quando sindicalizados. Com a


seca agravando mais ainda a situação.
Os trabalhadores rurais na condição de arrendatários e moradores eram
expulsos, tendo inclusive as suas casas destelhadas. Afirmava ainda o agrônomo que os
trabalhadores tinham invadido terras públicas, demonstrando assim propósitos
pacíficos, nas expressões de respeito às autoridades do Governador do Estado e do
Presidente da República como comprovara, sem razões por esse motivo para o medo
dos proprietários de terras. O relatório embora em nenhum momento tenha citado os
Xukuru do Ororubá é expressamente favorável aos indígenas, ao constatar que a
ocupação ocorrera em terras públicas, seguindo reivindicações antigas e a partir da
organização dos “trabalhadores rurais”. Estes reclamavam da falta de trabalho, pois os
fazendeiros expulsavam os arrendatários e os sindicalizados (SILVA, 2010).
Apoiados pelas Ligas Camponesas, naquele mesmo ano os índios ocuparam a
área da Pedra d’Água. Um indígena entrevistado relatou que esteve em Pedra D’Água,
ocupada pela primeira vez pelos índios. Em uma área coberta de matas, e entre os
ocupantes estavam os comunistas. A alegria diante das condições do acampamento
deixou o entrevistado perplexo,
Foi a 1ª retomada! Agora que na época, tinha lá uma história assim, de dois
martelos: um martelo vermelho e um martelo com... Eles cortavam a
madeira, quando caía era aquela festa deles. Era tiros de bacamarte, de riú e
eles todos fazendo aquela festa. As panelas debaixo dos paus. As caeiras de
carvão. Ficou como um bocado de ciganos! Eu só desassombrado!20

A ocupação em Pedra D’Água foi uma ação da Liga Camponesa com a efetiva
participação indígena em uma área de terras do antigo aldeamento de Cimbres, naquele
momento em domínio da União, como expressou o entrevistado: “Foi essa Liga
Camponesa. Foi começo da invasão, que invadiram lá a Pedra D’Água. Foi com a Liga
Camponesa, isso mesmo. Diziam que 'esse terreno daqui não é de governo mais não.
Isso aqui é nosso! Isso é da gente!'”. O entrevistado citou ainda o motivo da ocupação:
“Eles invadiram para trabalhar lá1” (SILVA, 2016).
Com o Golpe Militar de 1964, a repressão foi grande. Ocorreram prisões e a
expulsão dos ocupantes, como afirmou o mesmo entrevistado: “Saíram correndo. Foi
um pau, que não foi moleza! Dessa vez que eles vieram foi o Exército! Prendeu muita
gente. Sofreu lá comunistas e homem que não era comunista”

20José Alexandre dos Santos, “Zé de Alexandre”, 76 anos. Bairro Serrinha. Pesqueira/PE, em 14/12/2005.

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Participante na retomada de Pedra D’Água, Cícero Pereira, pai do futuro Cacique


“Xicão”, morador em Cana Brava, onde havia ocorrido “uma reunião”, foi acusado de
subversivo e preso com outras pessoas da Serra do Ororubá e de Pesqueira,
Sabe por que eu já fui preso? Só porque eu fazia parte da, desse pessoal,
dessas fera que manda nas usina, que tava a favor das terra. Fizeram
reunião em Cana Brava ainda na casa de um pai, desse povo ai, depois dessa
reunião. Retomada ai de Pedra D’Água, foi dessa retomada, que dessa
época ai que eu fui preso. Eu, Manoel Pereira, Joaquim Neto e Alonso. Teve
uma porção lá de Pesqueira foi tudo preso21

No final dos anos 1980 após a participação na campanha da Assembleia


Nacional Constituinte, com a atuação marcante do Cacique “Xicão”, os Xukuru do
Ororubá retomaram as mobilizações por seus direitos.

Mata na Aldeia Pedra d’Água


(Fotografia: Carol Nascimento, 2007)

Na Mata da Pedra d’Água existe um cemitério, lugar de peregrinação e


devoção dos índios, pois no local estão “plantados” o Cacique “Xicão” e
indígenas, “guerreiros e guerreiras” do Ororubá, mortos e matados que
participaram das mobilizações Xukuru do Ororubá pela conquista dos direitos
e especificamente a demarcação territorial. Como afirmar os indígenas:
“foram plantados prá que deles nasçam novos guerreiros”.

21Cícero Pereira. Entrevista citada.

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Em novembro de 1990, os indígenas reocuparam a área da Pedra d’Água que se


encontrava nas mãos de 15 posseiros não-índios. Afirmavam os índios que a Pedra
d’Água era um local de rituais indígenas sagrados e estava sendo desmatada por
posseiros arrendatários da área, sob domínio da Prefeitura de Pesqueira. A reocupação
de Pedra d’Água, onde o Cacique “Xicão” e outros indígenas passaram a morar, foi um
marco na organização e mobilização contemporânea Xukuru do Ororubá, que
retomaram em seguida outras áreas, em mãos de fazendeiros (SILVA, 2016).
Motivados pelas conquistas na Constituição de 1988 e contando com o apoio de
outros povos indígenas no Nordeste e de setores da sociedade civil, reocuparam áreas
de várias fazendas até então nas mãos de posseiros. O acirramento dos conflitos entre
os “Xucurus” e fazendeiros que eram posseiros nas terras então reivindicadas pelos
indígenas, entre os fins dos anos 1980 e meados dos anos 1990, foi motivo de extensas
reportagens publicadas do Recife e do Sudeste. Enquanto os fazendeiros negavam a
presença de índios “puros” ou a ocorrência dos conflitos, os Xukuru do Ororubá
denunciavam as violências, a miséria e a fome em razão de terem suas terras invadidas
por grandes criadores de gado (SILVA, 2017).
Para impedir as mobilizações indígenas a mando dos fazendeiros o Cacique
“Xicão” foi assassinado por um pistoleiro em 1998, e posteriormente, outras lideranças
do povo Xukuru do Ororubá. Todavia, organizados e com o apoio da sociedade civil, os
indígenas pressionaram as autoridades públicas para a demarcação do território
indígena, ocorrida em maio de 2001.

Considerações finais

Nesse texto foram retomadas reflexões anteriormente publicadas. Apresentamos uma


abordagem ampla da trajetória dos Xukuru do Ororubá, evidenciando os conflitos
provocadas pelas invasões das terras do antigo aldeamento de Cimbres e as
mobilizações indígenas para o reconhecimento e garantia do território habitado. Após a
conquista da terra demarcada, os indígenas iniciaram cultivos agroecológicos com
resultados exitosos, garantido a recuperação do solo, o vicejar de matas com o retorno
da fauna até então desaparecida e a vida indígena com dignidade no Semiárido
pernambucano. Famílias Xukuru do Ororubá, na região da Serra a área com maior

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umidade e fontes de água por mais tempo, mesmo em longos períodos de estiagens,
vêm realizando o plantio orgânico de frutas, legumes e verduras, postos à venda
semanalmente e disputados pelos consumidores não indígenas nas feiras livres das
cidades de Pesqueira e Arcoverde.
Anualmente os Xukuru do Ororubá realizam uma assembleia para discutir temas
relacionados a situação sociopolítica e planejar ações a serem implementadas até o ano
seguinte. Após a assembleia, no dia 20 de maio à tarde, fazem uma caminhada do
território indígena na Serra do Ororubá até o Bairro “Xucurus” na área urbana de
Pesqueira, para um ato público em memória do Cacique “Xicão”. No evento líderes
indígenas também de outros povos, aliados e parceiros das mobilizações dos índios
discursam rememorando a importância da atuação do Cacique “Xicão”, reafirmando a
solidariedade e o apoio irrestrito as reivindicações dos Xukuru do Ororubá.
A 19ª Assembleia Xukuru do Ororubá foi realizada nos dias 17 a 19 de maio de
2019 no Espaço Mandarú (nome do Encantado “Xicão”), na Aldeia Pedra d’Água, na
Serra do Ororubá, reunindo cerca de 2.300 participantes entre indígenas das diversas
aldeias e organizações Xukuru do Ororubá, indígenas habitando a área urbana de
Pesqueira, “parentes” dos povos indígenas em Pernambuco e em outras regiões do país
como os Kapinawá, Kambiwá, Pankararu, Entre-Serras Pankararu, Truká, Fulni-ô, Atikum,
Pankará, Potiguara (PB), Kariri-Xokó (AL), Wassú Cocal (AL), Karapotó-Terra Nova (AL),
Tuxá (BA), Tabajara (PB), Pitaguary (CE), Guajajara (MA), Baré (AM), Xakriabá (MG),
Munduruku (MT), Terena (MS).
Além de pesquisadores, professores e estudantes universitários, representantes
do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pesqueira, de ONGs e diversas organizações
da sociedade civil, de partidos políticos que apoiam os indígenas, membros de vários de
órgãos públicos municipal, estadual e federal que discutiram a Reforma Trabalhista, a
proposta de Reforma da Previdência Social, o desmonte da política indigenista nas áreas
da Saúde, Educação e a demarcação das terras indígenas no Governo Bolsonaro, a
análise de conjuntura das mobilizações dos povos indígenas no enfrentamento a estas
questões e os crimes ambientais nas terras indígenas em todo o país, especificamente
os ocorridos nos municípios de Mariana e Brumadinho, no estado de Minas Gerais.
Na Carta Final da 19ª Assembleia Xukuru do Ororubá, os indígenas concluíram
afirmando que: “Finalizamos mais uma assembleia com a convicção de que a vida é
meio ambiente, é social, é saúde, é educação, é direito, é diversidade. A vida é

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ancestralidade, é cultura, é religiosidade. A vida é povo, é território, são costumes e


sendo assim precisam ser respeitados, vividos, intensos e comemorados. A vida é luta, é
encantamento, é resistência, é resiliência, é CORAGEM! O Povo Xukuru fortalecido, em
defesa da VIDA, renova seu compromisso na construção de uma sociedade justa,
fraterna e plural”.
A história dos Xukuru do Ororubá é, portanto, pautada por mobilizações pela
afirmação, conquista e garantias de direitos no diferentes cenários sociopolíticos, em
diversos contextos sociohistóricos onde assumem o protagonismo enquanto um povo
indígena no Agreste/Semiárido pernambucano. Sendo muito necessário refletir sobre
essa trajetória histórica para compreendermos as reivindicações indígenas na
atualidade.

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Sobre os autores

Edson Silva
É Professor Titular de História da UFPE. Doutor em História Social pela UNICAMP.
Leciona no Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE. Professor no Mestrado
Profissional em Ensino de História-PROFHISTORIA/UFPE e no Programa de Pós-
Graduação em História na UFRPE. E-mail: edson.edsilva14@yahoo.com.br. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-6213-9927.

Isabela Paes
É bacharel em Direito pela UFPE e colaboradora do projeto Acesso ao Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (aSIDH - UFPE). E-mail: isabela.paes@ufpe.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2262-4108.

Os autores contribuíram igualmente para a redação do artigo

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A profecia da violência sem trauma aparente: justiça de


transição, memória e a exceção brasileira
The prophecy of violence without appearing trauma: transitional justice, memory
and the Brazilian exception

André Simões Chacon Bruno1


1
Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil. E-mail:
andrescbruno@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5032-1855.

Artigo recebido em 9/03/2020 e aceito em 30/10/2020.

This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 01-43.


André Simões Chacon Bruno.
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/49027| ISSN: 2179-8966
2

Resumo
Este artigo tem em seu escopo três principais objetivos: apresentar os mecanismos da
justiça de transição, reconstruir a história do regime, da legalidade de exceção e dos
expedientes de violência utilizados ao longo da última ditadura (1964-1985) vivida pelo
país e refletir criticamente o espúrio processo de transição pelo qual o Brasil passou, fato
que acarretou diversas consequências negativas, as quais serão devidamente assinaladas
e criticadas ao longo deste ensaio. Para realizar estes objetivos, o artigo foi dividido em
quatro diferentes partes: primeiro, apresenta as principais características da justiça
transicional; em segundo lugar, promove a reconstrução e exposição de três fases críticas
da justiça transicional, tendo por base a genealogia delineada por Ruti Teitel; em um
terceiro movimento, utilizando-se do fio deixado por Teitel, especialmente no que tange
à difícil relação existente entre verdade, memória e justiça, é feita uma reconstituição do
último período ditatorial vivido no Brasil, no desiderato de demonstrar como houve no
país o perfeito cumprimento da profecia da violência sem trauma aparente, ou seja, a
ocorrência de uma transição negociada, que teve por objetivo promover o esquecimento
dos crimes, violência e opressão do regime ilegal; para, por fim, promover também uma
crítica da legalidade de exceção utilizada pela ditadura civil-militar brasileira para
implementar e justificar sua extrema violência e eliminação da dissidência,
demonstrando, além disso, como a adoção de mecanismos de justiça transicional
poderiam ter colaborado positivamente para o processo de transição brasileiro e na
eliminação dos restos da ditadura, os quais continuam produzindo efeitos altamente
deletérios no tecido social brasileiro.
Palavras-chave: Direito; Justiça de transição; Direito à memória e à verdade; Ditadura
civil-militar; Exceção brasileira.

Abstract
This article has in its scope three main objectives: to present the mechanisms of
transitional justice, to reconstruct the history of the regime, the legality of exception and
the expedients of violence used during the last dictatorship (1964-1985) lived by the
country and to critically reflect the spurious transitional process that Brazil underwent, a
fact that had several negative consequences, which will be duly highlighted and criticized
throughout this essay. To accomplish these goals, the paper was divided into four

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different parts: first, it presents the main characteristics of transitional justice; secondly,
it promotes the reconstruction and exposition of three critical phases of transitional
justice, based on the genealogy outlined by Ruti Teitel; in a third movement, using the
thread left by Teitel, especially regarding the difficult relationship between truth, memory
and justice, a reconstruction of the last dictatorial period lived in Brazil is made, in order
to demonstrate how there was in the country the perfect fulfillment of the prophecy of
violence without apparent trauma, that is, the occurrence of a negotiated transition,
which aimed to promote the forgetting of crimes, violence and oppression of the illegal
regime; lastly, it is also promoted a critique of the legality of exception used by the
Brazilian civil-military dictatorship to implement and justify its extreme violence and
elimination of dissent, further demonstrating how the adoption of transitional justice
mechanisms could have contributed positively to the Brazilian transitional process and on
the elimination of whats remains of the dictatorship, which continues to produce highly
deleterious effects on the Brazilian social fabric.
Keywords: Law; Transitional justice; Right to memory and truth; Civil-military
dictatorship; Brazilian exception.

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A construção histórica é dedicada à memória dos sem nome.


Walter Benjamin

Introdução

Este artigo tem em seu escopo três principais objetivos: apresentar os mecanismos da
justiça de transição, reconstruir a história do regime, da legalidade de exceção e dos
expedientes de violência utilizados ao longo da última ditadura (1964-1985) vivida pelo
país e refletir criticamente o espúrio processo de transição pelo qual passamos, quase que
inteiramente elidido de mecanismos de justiça transicional, fato que acarretou diversas
consequências negativas, as quais serão devidamente assinaladas e criticadas ao longo
deste ensaio.
Para realizar estes objetivos, o artigo foi dividido em quatro diferentes partes:
primeiramente, busca descrever e demonstrar do que se trata, em que consiste e quais
são as principais características, mecanismos e estratégias do que se convencionou
chamar de justiça de transição; em segundo lugar, promove a reconstrução e exposição
de três fases críticas da justiça transicional, tendo por base a genealogia delineada por
Ruti Teitel; em um terceiro movimento, utilizando-se do fio deixado por Teitel,
especialmente no que tange à difícil relação existente entre verdade, memória e justiça,
é feita uma reconstituição do último período ditatorial vivido no Brasil, no desiderato de
demonstrar como houve no país o perfeito cumprimento da profecia da violência sem
trauma aparente, ou seja, a ocorrência de uma transição negociada, que teve por objetivo
promover o esquecimento dos crimes, violência e opressão do regime ilegal; por fim, é
promovida também uma crítica da legalidade de exceção utilizada pela ditadura civil-
militar brasileira para implementar e justificar sua extrema violência e eliminação da
dissidência, demonstrando, além disso, como a adoção de mecanismos de justiça
transicional poderiam ter colaborado positivamente para o processo de transição
brasileiro.
No Brasil, a Lei de Anistia foi o mecanismo utilizado para concretizar e assegurar
a prevalência do esquecimento dos crimes sistematicamente cometidos por um Estado
ilegal contra sua própria população, por meio do qual se impossibilitou continuamente,
inclusive nos dias atuais, o enfrentamento dos restos da ditadura, os quais insistem em

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prosseguir produzindo efeitos altamente deletérios em nosso tecido social, como a


normalização e manutenção, no regime democrático, da violência, da administração do
desaparecimento e do direito de matar, isto é, da continuidade do exercício do governo
lastreado na prerrogativa secular do poder soberano do direito de fazer morrer ou deixar
viver.
Em nossa análise e argumentação, vivemos as consequências de uma anistia
extorquida, de uma transição negociada, de uma falsa, incompleta e outorgada
reconciliação. Isto tudo promovido principalmente para evitar que mecanismos de justiça
transicional pudessem ter sido adotados, os quais poderiam ter colaborado para uma
transição mais adequada e, desta maneira, propiciado a possibilidade de uma verdadeira,
duradoura e mais e justa reconciliação nacional. Pensar o futuro da democracia no país
exige, portanto, rever o passado autoritário e a reabilitação da memória coletiva do país,
objetivos para o quais a justiça de transição pode sobremaneira colaborar.

1. A Justiça transicional: conceito, objetivos e instrumentos

Seguindo a indagação de Glenda Mezarobba (2012, p. 245), “De que se fala, quando se
diz justiça de transição?”, algumas primeiras impressões e possibilidades de resposta
automaticamente irrompem: para a autora, fala-se da África do Sul, Nigéria, Timor Leste,
Afeganistão, de vários países do Leste Europeu, da Argentina, do Brasil, do Chile, Iraque,
Israel e Palestina; fala-se das atrocidades do apartheid, de guerras civis, governos e
ocupações militares, de diversos conflitos internos, da reconfiguração que se seguiu à
queda do Muro de Berlim e a derrocada do comunismo, do fim de governos autoritários
e de golpes de Estado; mas fala-se, sobretudo, de um enorme legado de abusos em massa,
de violações a inúmeros direitos e da necessidade de justiça que emerge em períodos de
passagem de retorno à democracia ou ao término de conflitos.
A chamada justiça de transição, ou justiça transicional, pode ser definida, de
acordo com Ruti Teitel (2011, p. 135), “como a concepção de justiça associada com
períodos de mudança política, caracterizados por respostas no âmbito jurídico, que têm
o objetivo de enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado”.

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Especificamente sobre o campo da justiça de transição, é oportuno ressaltar o que


escreve Paige Arthur (2011, p. 76):
O campo da “justiça de transição” – uma rede internacional de indivíduos de
instituições, cuja coerência interna é mantida por conceitos comuns,
objetivos práticos e distintos pedidos de legitimidades – começou a emergir
como uma resposta a estes novos dilemas práticos e como uma tentativa de
sistematizar os conhecimentos considerados úteis para desenvolvê-los. O
campo da justiça de transição, então definido, surgiu diretamente de um
conjunto de interações de ativistas de direitos humanos, advogados, juristas,
políticos, jornalistas, financiadores e especialistas em política comparada,
preocupados com os direitos humanos e as dinâmicas das “transições para a
democracia” iniciadas no final dos anos 80.

A origem do termo,1 como se pode notar, remete às “transições para a


democracia” ocorridas principalmente na América Latina e na Europa do Leste durante a
década de 80, sendo que foi apenas na década de 90 que o termo “justiça transicional”
foi reconhecido e consagrado na política mundial, incorporando-se plenamente ao campo
prático e teórico dos direitos humanos, do direito humanitário e dos diversos conflitos
armados que marcaram a época (GÓMEZ, 2012, p. 261). Mas a sua criação e aceitação é
também, em si, uma resposta a um conjunto de novos problemas e um meio de legitimar
as práticas, como os processos judiciais, as comissões de inquérito, os expurgos e as
políticas de reparação, que foram utilizadas como forma de resposta a estes problemas
(ARTHUR, 2011, p. 82).
Como ressalta José María Gómez (2012, p. 261), desde então o termo ganhou
grande difusão e aceitação no meio acadêmico e internacional, designando com o seu uso
as diversas respostas políticas e jurídicas (principalmente as de justiça penal, de busca da
verdade, de políticas de reparação e memória e reformas das instituições) dadas por
sociedades que se encontram em uma situação de transição de contextos de guerra para
situações de paz, ou de regimes altamente repressivos para democracias liberais, no
desiderato de enfrentar as consequências e evitar a repetição das atrocidades em massa
de um passado violento, por exemplo, na presença de atos como genocídio, tortura,
execuções sumárias, desaparecimento forçado, estupro, escravidão e outros crimes
internacionais e crimes contra a humanidade.

1Para uma história completa da origem, usos e implicações da justiça de transição, consultar o artigo How
“Transitions” Reshaped Human Rights: A Conceptual History of Transitional Justice, de Paige Arthur (2009),
publicado na Human Rights Quarterly, vol. 31, n. 2.

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O que está em jogo no campo de atividade da justiça transicional é, de acordo


com Louis Bickford (2005, p. 1045), o enfrentamento da questão de como sociedades
podem lidar com legados de abusos massivos de direitos humanos, de atrocidades em
massa, ou de quaisquer outras formas de trauma social, incluindo o genocídio ou a guerra
civil, de modo a procurar construir um futuro mais democrático, justo e pacífico. O
conceito da justiça de transição é entendido comumente como uma estrutura para se
confrontar abusos prévios como um componente no contexto de uma maior
transformação política. Isso envolve, geralmente, a combinação de estratégias
complementares, de mecanismos judiciais e não-judiciais, como: processar os
perpetradores; estabelecer comissões da verdade e outras formas de investigação do
passado; forjar esforços direcionados à reconciliação em sociedades fraturadas;
desenvolver programas de reparação para aqueles que foram mais afetados pela violência
ou abusos; iniciativas de memória e lembrança das vítimas; a promoção de reformas de
amplo espectro das instituições estatais responsáveis pelos abusos, como os serviços de
segurança, a polícia e as forças armadas, na tentativa de se prevenir contra futuras
violações.
Ainda de acordo com Bickford (2005, p. 1045), a justiça transicional se vale de
duas fontes primárias para fazer um argumento normativo a favor do confronto com o
passado, assumindo-se que as condições locais suportem estas iniciativas: em primeiro
lugar, o movimento de direitos humanos, o qual influenciou fortemente no campo da
justiça de transição, tornando-o autoconscientemente centrado nas vítimas, de forma
que os praticantes da justiça transicional tendem a buscar estratégias que se acreditam
ser consistentes com os direitos e preocupações das vítimas, dos sobreviventes e dos
familiares das vítimas; em segundo lugar, uma fonte adicional de legitimidade deriva do
direito internacional dos direitos humanos e do direito humanitário. A justiça transicional
se vale do direito internacional para defender o argumento de que estados que se
encontram em estado de transição devem encarar certas obrigações legais,2 incluindo a
interrupção de abusos de direitos humanos, a investigação de crimes do passado, a

2 Quanto a isto, as observações de Ruti Teitel (2002, p. 20): “In the contemporary moment, international law
is frequently invoked as a way to bridge shifting understandings of legality”; e, também, o seguinte: “Whereas
international law preserves that ordinary understanding of the rule of law as settled law, it also enables
transformation. In so doing, it mediates the transition. International law principles serve to reconcile the
threshold dilemma of law in periods of political transformation” (TEITEL, 2002, p. 21).

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identificação dos responsáveis por violações de direitos humanos, a imposição de sanções


aos responsáveis, a providência de reparações às vítimas, a prevenção de futuros abusos,
a promoção e a preservação da paz e a busca pela reconciliação individual e nacional.
É importante perceber o foco da justiça de transição, o qual se situa
precisamente na “transição”, ou, ainda, mais especificamente, na “transição para a
democracia”, e as consequências que surgem desta característica. Conforme aponta Paige
Arthur (2011, p. 78),
“Transição” – e, mais especificamente, “transição para a democracia” – foram
as lentes normativas dominantes através das quais a mudança política foi
vista naquele momento e, por conseguinte, prestar atenção ao seu conteúdo
característico pode trazer alguma luz a respeito do surgimento deste campo.
De fato, entender o que se compreendeu por “transição” auxilia a esclarecer
o que foi considerado ser uma medida de justiça apropriada. Explica porque
as medidas de processo judicial, busca da verdade, restituição e reforma das
instituições estatais abusivas – e não outras medidas de justiça, como aquelas
associadas a reivindicações por justiça retributiva – foram reconhecidas como
as iniciativas legítimas de justiça durante um período de mudanças políticas.

Pode-se perceber, a partir das considerações até aqui promovidas, que a


estrutura geral da justiça transicional tem como objetivos primordiais, a partir da
mobilização advinda de um sentido de justiça que os abusos promovidos por regimes
ditatoriais violentos e ilegais suscitam, e moldados em grande medida por uma
abordagem internacional altamente normatizada e difundida que aspira a ser holística e
equilibrada (por meio de mecanismos que se complementam e se reforçam
mutuamente), alcançar a pacificação e a reconciliação de povos e comunidades
dilacerados por conflitos violentos e regimes repressivos. E, no sentido de alcançar estes
objetivos, procura-se, dentre outras coisas, criar ou recriar a confiança cívica entre
vítimas, cidadãos e instituições públicas, por meio de um amplo conjunto de ações e
condições (como o Estado de Direito, democracia liberal, ajuda humanitária, cooperação
ao desenvolvimento, missões de paz, intervenções humanitárias, reconstrução do Estado,
etc), as quais são consideradas indispensáveis tanto para a proteção e promoção dos
direitos humanos, quanto para a prevenção da reedição de futuras violações e massacres
em massa (GÓMEZ, 2012, ps. 262-263).3

3 Isso não significa, contudo, que importantes críticas não possam ser feitas sobre a natureza e os limites da
justiça transicional. Não é este o foco desta pesquisa. Porém, para uma análise prenhe e rigorosa sobre estas
questões, verificar Gómez (2012, ps. 277-284).

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Trata-se, portanto, a justiça de transição, de uma busca pela reconciliação. Mas


uma reconciliação verdadeira, a qual não se confunde com a mera impunidade, razão pela
qual ela é indissociável dos mecanismos de justiça, verdade e reparação. Estes, por sua
vez, serão em seguida devidamente explicitados e detalhados, de acordo com os
momentos e contextos de seu desenvolvimento e aparecimento.

2. As três fases da justiça transicional

Em seu artigo “Transitional Justice Genealogy”, publicado na Harvard Human Rights


Journal, em 2003, Ruti Teitel promoveu uma interessante genealogia da justiça
transicional. De acordo com a autora, a sua genealogia estrutura-se a partir de ciclos
críticos que podem ser separados em três fases, cada qual com características próprias,
as quais serão em seguida delineadas. Deve-se se notar, desta forma, que a autora
fornece desde logo qual será seu método de análise, sendo que este consiste no método
genealógico. Sua análise estaria estruturada, então, ao longo dos limites e situada dentro
de uma história intelectual, a qual seria precisamente a da matriz genealógica
foucaultiana.4
A primeira fase seria, para Teitel (2011, ps. 136-137), a fase da justiça
transicional do pós-guerra (2ª GM): de acordo com a autora, as origens da justiça
transicional remontam à Primeira Guerra Mundial. Mas a justiça de transição, porém,
começa a ser entendida como extraordinária e internacional apenas no período pós-
guerra de 1945, data que efetivamente registra o seu início. Ela tem como principal

4 Não será empreendido aqui um julgamento sobre a adequabilidade da apropriação feita pela autora a
respeito da genealogia foucaultiana. Nos interessa, nesse momento, apenas seguir a sua proposição, a qual
Teitel denomina genealógica, pois ajuda sobremaneira no entendimento das principais características e
momentos da justiça transicional. De qualquer forma, a autora faz referência direta, sobre a matriz intelectual
da sua genealogia, ao texto “Nietzsche, a genealogia e a história”, de Foucault, que pode ser encontrado entre
nós na coletânea Microfísica do Poder (2016). Sobre a noção de genealogia em Foucault, para Edgardo Castro
(2009, p.185), “[...] a passagem da arqueologia à genealogia é uma ampliação do campo de investigação para
incluir de maneira mais precisa o estudo das práticas não discursivas e, sobretudo, a relação não
discursividade/discursividade. Em outras palavras, para analisar o saber em termos de estratégia e táticas de
poder. Nesse sentido, trata-se de situar o saber no âmbito das lutas. Uma apreciação correta do trabalho
genealógico de Foucault requer seguir detalhadamente sua concepção das relações de poder. As lutas não
são concebidas, finalmente, como uma oposição termo a termo que as bloqueia, como um antagonismo
essencial, mas como um agonismo, uma relação, ao mesmo tempo, de incitação recíproca e reversível. Nessa
perspectiva, se poderia falar de uma genealogia dos saberes no âmbito do que Foucault chama
governamentalidade”.

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símbolo o Tribunal de Nuremberg,5 e refletiu o triunfo da justiça transicional no plano do


Direito Internacional.6 Esse desenvolvimento, no entanto, não perdurou, devido às
excepcionais condições políticas do período pós-guerra. Como consequência, esta fase,
que estava associada à cooperação entre os Estados, com processos por crimes de guerra
e sanções penais, terminou pouco depois do fim da guerra. Com o início da Guerra Fria,
chegou-se a um impasse no que tange à justiça transicional. Importa ressaltar, contudo,
que esta fase deixou legados que vieram a formar a base do direito moderno dos Direitos
Humanos - cujas principais características, e também otimismo, encontram-se bem
ilustrados em A era dos direitos de Norberto Bobbio (2004) -, especialmente tendo em
vista a atuação dos tribunais pós-guerra que penalizaram os crimes de Estado como parte
de um projeto de direitos universais. Esta fase termina com o fim da Guerra Fria, a qual
acaba com seu o internacionalismo.
Em relação à primeira fase, pode-se dizer que o objetivo central da justiça no
período entre as duas guerras estava focado em delinear a guerra injusta e demarcar os
parâmetros de uma punição justificável imposta pela comunidade internacional,
especialmente em relação à Alemanha; envolviam também as perguntas se e em que
extensão deveria ser a Alemanha punida por sua agressão, e qual forma a justiça deveria
assumir: nacional ou internacional, coletiva ou individual; e, ainda, o alcance pelo qual
esta concepção anterior influenciou a reação crítica da justiça do pós-Segunda Guerra
(TEITEL, 2011, ps. 139-140).

5 É interessante notar, contudo, que esta proposição de Teitel não é unânime. Paige Arthur é uma grande
crítica desta inclusão. Criticando a posição tanto de Teitel quanto a de Jon Elster, escreve Arthur (2011, p. 80):
“Assim, para Ruti Teitel, o Tribunal de Nuremberg é um importante momento para a primeira ‘fase’ da justiça
de transição, mesmo que nenhum dos atores envolvidos o tivesse descrito desta forma. Tampouco teriam
esses atores, necessariamente, atribuído os mesmos significados para o que eles estavam fazendo da maneira
como Teitel e Elster fizeram”. No que tange a Jon Elster (2004), Arthur (2011, p. 81) o acusa de cometer um
forte anacronismo no que tange à sua caracterização da justiça de transição como uma questão perene,
atemporal, em seu livro “Closing the Books: Transitional Justice in Historical Perspective”, no qual o autor
remonta a presença da justiça de transição já na Grécia antiga. Em seguida, adiciona que o método
genealógico de Teitel se sai melhor em termos de anacronismo, porém, comete ainda o erro de imputar ideias
de “justiça de transição” a atores que muito provavelmente não as tiveram, particularmente nas suas
discussões logo após a Segunda Guerra Mundial.
6 O Tribunal de Nuremberg, apesar das suas limitações, seletividades e irregularidades inerentes a uma

espécie de “justiça dos vencedores”, indubitavelmente representou um ponto de inflexão no Direito


Internacional. Ele abriu caminho para a tensão-enfraquecimento do princípio clássico de soberania e ao
surgimento de uma jurisdição de pretensão universal, identificando-se, assim, como um dos vetores e
principais fontes da “revolução dos direitos humanos” que marcou a ordem normativa internacional pós-1945
(GÓMEZ, 2012, p. 265).

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Como consequência, pelo menos duas reações críticas podem ser identificadas
com relação à justiça transicional da Segunda Guerra Mundial: primeiro, a substituição da
justiça nacional em favor da justiça internacional;7 a segunda, refere-se às sanções
impostas à Alemanha a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, que foram reconhecidas
como medidas que fracassaram em evitar novos conflitos – ela causou uma reação no
sentido de passar a se orientar em julgamentos individuais com base em
responsabilidades individuais, o que levou à grande inovação da época, que foi o uso do
Direito Penal Internacional e o alcance de sua aplicação, que para além do Estado, atingiu
também o indivíduo (TEITEL, 2011, ps. 140-141). Afinal, como ressalta Gómez (2012, p.
265), esta foi a primeira vez na história que um tribunal internacional veio a julgar e
condenar as mais altas autoridades políticas e militares de um Estado por crimes contra a
humanidade, estabelecendo desta maneira um conjunto de princípios de justiça
internacional e deixando um registro judicial crível dos massacres e abusos dos direitos
humanos.
O período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, por sua vez, é
considerado o apogeu da justiça internacional. Houve aqui a consideração do importante
abandono das medidas transicionais nacionalistas prévias e a proximidade de uma política
internacionalista como sendo garantias para o Estado de Direito. E o legado desta fase
internacionalista foi misto: por um lado, a força do seu precedente se refletiu
escassamente em outras instâncias da justiça internacional, ainda que isto provavelmente
esteja mudando com a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI); por outro, pode-se
notar uma contínua presença do seu legado no desenvolvimento do Direito Internacional,
em que aspectos do precedente estabelecido para a responsabilização internacional por
abusos de guerra foram incorporados em convenções internacionais, pouco depois da
Segunda Guerra Mundial, a exemplo da Convenção contra o Genocídio, de 1948 (TEITEL,
2011, ps. 141-143).

7 Como bem observou Gómez (2012, ps. 264-265), uma justiça internacionalizada que estava inicialmente, ao
fim da segunda guerra, sob o forte impacto moral na opinião pública das imagens e relatos dos sobreviventes
dos campos de concentração alemães. Nesse contexto, seguiu-se a instalação não apenas do Tribunal Militar
Internacional de Nuremberg, mas também o de Tóquio, que tinham como objetivo julgar os membros do alto
comando político-militar das potências vencidas, pela perpetração de crimes de guerra, crimes contra a paz
e “crimes contra a humanidade”, este último uma figura nova do Direito Internacional, que definia uma forma
específica de criminalidade de Estado, dissociada do contexto estrito de guerra, em relação ao qual os
responsáveis não poderiam alegar o princípio da legalidade prévia, nem o de obediência devida, menos ainda
o de não ingerência nos assuntos internos do Estado.

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A segunda fase da justiça transicional é a justiça transicional do pós-Guerra Fria:


esta fase associa-se às ondas das transições para democracia e modernização iniciadas
em 1989, fase que, para a autora, é caracterizada por uma aceleração na resolução de
conflitos e um persistente discurso por justiça no mundo do direito e da sociedade.8 A
justiça transicional está associada nesta fase com o crescimento da ideia de reconstrução
nacional. Ao invés de entender o Estado de Direito no sentido de fazer valer a
responsabilidade de um reduzido grupo de líderes, este modelo tende a se sustentar em
compreensões diferentes do Estado de Direito, ligadas a comunidades políticas
particulares e suas condições locais (TEITEL, 2011, ps. 137-139).
O começo desta fase liga-se às últimas décadas do século XX, na qual se verificou
uma grande onda de transições políticas, devido ao colapso da União Soviética e as suas
consequências, como o fim do balanço bipolar de poder no mundo e a concomitante
proliferação de processos de democratização política e modernização. Seu precedente,
que dá propriamente origem ao termo de “justiça transicional” (ou de “justiça de
transição”), está ligado aos chamados “processos de transição para a democracia” que
tiveram lugar entre meados dos anos 70 e o início da década de 1990, a partir da Europa
do Sul, tendo continuado na América do Sul, culminando na Europa do Leste e na América
Central, para se estender depois a países da África e da Ásia (GÓMEZ, 2012, p. 266).
Nesse contexto, a dúvida que se colocava nas transições políticas dos anos 80
era se os regimes sucessores deveriam aderir ou não ao modelo de justiça da Fase I, ou
até que ponto deveriam fazê-lo. No caso das novas democracias emergentes na América
do Sul, após o colapso dos regimes militares, não se tinha clareza se o ajuizamento de
ações contra os responsáveis, no estilo de Nuremberg, seria seguido de êxito. Esta
questão se apresentou primeiro na Argentina, depois da Guerra das Malvinas/Falklands
(a qual culminou com a derrota total da junta militar do país e permitiu que a transição
avançasse), onde o regime sucessor fez o possível para fazer distinção entre o contexto
nacional e o de justiça internacional do pós-guerra, e convocou julgamentos no âmbito
nacional. Na segunda fase, ao contrário da internacionalização verificada a fase I, a
modernização e o Estado de Direito foram equiparados a julgamentos por parte do

8 Teitel toma aqui como principal referência a obra do historiador americano Samuel P. Huntington (1991),
com o livro “The Third Wave: Democratization in The Late Twentieth Century”. A ideia da “terceira onda” diz
respeito aos movimentos de democratização nos países do leste europeu, tendo em vista a dissolução da
União Soviética, e da América Latina, após décadas de interrupções constitucionais e golpes militares.

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Estado-nação, como meio de legitimar o novo regime e avançar na reconstrução da nação


(TEITEL, 2011, ps. 143-145). Nesse sentido, durante esta fase
[...] os novos governos que decidiram enfrentar a questão das violações
maciças dos direitos humanos pelos regimes autoritários anteriores não
seguiram o modelo internacionalizado e punitivo de Nuremberg, que o
contexto da Guerra Fria havia tornado inviável. O que eles procuravam, ao
contrário, eram respostas nacionais que alargasse o leque dos mecanismos e
das opções: processos criminais, comissões da verdade, expurgos
administrativos, reparação às vítimas, reformas institucionais, abertura dos
arquivos dos aparelhos repressivos, restituição de propriedades e bens
confiscados, anistia ou anulação de anistia dos antigos regimes etc (GÓMEZ,
2011, p. 266).

Verifica-se, portanto, nesta fase, uma premente virada para os problemas


especificamente locais e dos contextos dos países em fase de transição. Entende-se,
nesse momento, que as deliberações sobre justiça nas transições são mais bem
entendidas quando situadas nas verdadeiras realidades políticas e no contexto político da
transição, o que inclui as características do regime predecessor e as suas contextuais
contingências políticas, jurídicas e sociais.
Desta forma, apareceram vários dilemas quanto à viabilidade de buscar a
aplicação da justiça e sua capacidade de contribuir com o Estado de Direito transicional,
a qual dependeu da escala dos crimes cometidos anteriormente, bem como do grau em
que estes crimes se converteram em sistemáticos ou foram patrocinados pelos aparatos
do Estado. Assim, o intento de fazer valer a responsabilidade dos fatos por meio do direito
penal, com frequência gerou dilemas próprios ao Estado de Direito, incluindo a
retroatividade da lei, a alteração e manipulação de leis existentes, um alto grau de
seletividade na submissão de processos e um poder judicial sem suficiente autonomia.
Então, na medida em que a imposição da justiça penal incorreu em tais irregularidades,
em muitos países optou-se por renunciar aos processos penais em favor de métodos
alternativos para o estabelecimento da verdade e para a responsabilização pelos fatos
(TEITEL, 2011, ps. 146-147).
Esta fase, a partir das contradições e tensões próprias advindas da
administração da justiça transicional, produziu uma reação crítica ao projeto de justiça
pós-guerra da Fase I, procurando ir além da justiça retributiva, sendo que seus dilemas
transicionais estruturaram-se em termos mais abrangentes que a simples prática de
confrontar e demandar responsabilidades ao regime anterior, incluindo questões sobre

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como curar feridas de uma sociedade inteira e incorporar diversos valores em um Estado
de Direito, como a paz e a reconciliação (o que antes era tratado como algo externo ao
projeto de justiça transicional).9 De modo geral, pode-se dizer que enquanto na Fase I a
justiça transicional pareceu assumir inicialmente o potencial ilimitado e universal do
direito, a segunda foi reconhecidamente mais contextual, limitada e provisória. Esse
modelo, porém, não será mais apropriado para responder ao contexto seguinte de
posterior globalização política, no qual os fatores nacionais e internacionais tornaram-se
contribuintes interdependentes da mudança política (TEITEL, 2011, ps. 147-148).
Por fim, a terceira fase, na leitura de Teitel (2011, p. 139), é a fase do estado
estável (steady-state) da justiça transicional: esta fase está associada ao fenômeno da
aceleração da justiça transicional do final do século e às condições contemporâneas de
globalização, de marcada violência e instabilidade política. Neste momento, a justiça de
transição deixa de ser uma exceção à norma e converte-se em um paradigma do Estado
de Direito. Há aqui a normalização do discurso ampliado de justiça humanitária por meio
da jurisprudência transicional, de forma que se constrói para o direito uma organicidade
associada a conflitos universais, contribuindo assim para o estabelecimento das
fundações do emergente direito sobre terrorismo, o que é extremamente problemático,
pois isso deu azo a um discurso de guerra permanente, retórica que continuamente
esvazia a distinção entre guerra e paz, a lei e a sua exceção, levando a uma grande perda
do vocabulário e a uma forte descaracterização da justiça transicional.10
Estabelecidos estes três momentos da justiça transicional, a partir do trabalho
de Ruti Teitel, avança-se em um próximo movimento para a discussão de dois dos maiores
problemas existentes no âmbito da justiça de transição, que é o fato de ter de enfrentar
e conciliar sempre, no interior do seu campo de atuação, duas dicotomias: a dicotomia

9 Um excelente exemplo para ilustrar esta situação são os chamados “Tribunais Gacaca”, voltados muito mais
para um paradigma restaurativo que retributivo, no âmbito do projeto de reconciliação nacional da Ruanda,
após o genocídio ocorrido em 1994. Seu principal objetivo, conforme Kubai (2007, p. 57), “[...] is to promote
reconciliation by providing a platform for victims to express themselves, encouraging acknowledgments and
apologies from the perpetrators, and facilitate the coming together for victims and perpetrators ‘on the
grass’”. Para uma completa revisão da experiência Ruandesa, ver Anne Kubai (2007).
10 Problemático, pois, como escreve Teitel (2011, ps. 167-168): “A expansão da justiça transicional para incluir

o problema do terrorismo, torna-se problemática pelo uso inadequado de analogias entre terrorismo e guerra
ou crises políticas. A justiça transicional tende a olhar o passado para responder ao último conflito e, como
consequência, não se adapta facilmente para ser usada como modelo para garantir segurança no futuro.
Qualquer intenção de generalizar a partir de situações excepcionais pós-conflito, a fim de orientar uma
política, é extremamente problemática”.

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verdade vs. justiça e a dicotomia justiça vs. paz, as quais constituem algumas das mais
difíceis aporias e problemas concernentes à justiça transicional. Isso será analisado, no
entanto, tendo em vista principalmente o processo transicional ocorrido no Brasil, país no
qual prevalece, mesmo sob a democracia, segundo Paulo Arantes (2010, p. 214), “um
sistema de práticas autoritária herdadas, seja por legado histórico de longa duração ou
sobrevivência socialmente implantada no período anterior e não elimináveis por mera
vontade política”.

3. A difícil relação entre memória, verdade e justiça: o caso brasileiro

Segundo a formulação de Teitel (2011, ps. 148-149), no âmbito da segunda fase da justiça
transicional, o modelo de justiça que se destacou, como visto, foi o modelo restaurativo.
Neste, o propósito principal da justiça transicional foi o de construir uma história
alternativa para os abusos do passado. Surgiu, assim, uma dicotomia entre verdade e
justiça. Esse paradigma majoritariamente evitou julgamentos para, em troca, concentrar-
se em um novo mecanismo institucional: as comissões da verdade, que são organismos
oficiais, normalmente criados por governos nacionais para investigar, documentar e
divulgar abusos aos direitos humanos ocorridos em um país durante um período de
tempo específico. Vale observar que este mecanismo institucional foi utilizado pela
primeira vez na Argentina, ao menos no seu sentido moderno (trata-se da investigação
realizada pela Comissão “Nunca Más”, que foi a primeira fase da justiça argentina
posterior ao colapso do regime militar), embora ele esteja atualmente mais associado à
resposta adotada pela África do Sul pós-apartheid nos anos 1990.
De acordo com Teitel (2011, ps. 149-152), este mecanismo é especialmente
preferível onde regimes autoritários fizeram desaparecer pessoas ou ocultaram
informações sobre perseguições, como no caso da América Latina, pois buscam oferecer
uma perspectiva histórica mais ampla, ao invés de meros julgamentos isolados. Isto se dá
pelo fato de que esta fase transcendeu o foco na responsabilização individual em favor de
uma concepção mais comunitária.11 Os propósitos da justiça transicional nesta fase

11Talvez o maior exemplo desta situação seja a África do Sul, onde o foco se deu mais na reconciliação, com
a Comissão de Reconciliação e Verdade. A Comissão optou pelo entrelaçamento entre a busca pela verdade

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mudam do objetivo anterior de estabelecer o Estado de Direito por meio da


responsabilização, para o objetivo de preservar a paz. Desta forma, o dilema central
associado a esta fase foi marcado por questões de direitos humanos, tais como o direito
da vítima a conhecer a verdade e se o Estado tem o dever de investigar para revelar esta
verdade. Dentro deste marco, surge a dinâmica central da “verdade versus justiça”,
sugerindo que necessariamente existem conflitos entre justiça, história e memória.
Eis aí, em verdade, uma das mais controversas e, simultaneamente, mais
importantes questões que envolvem a justiça de transição, especialmente em se tratando
de países nos quais se verificam casos de extrema opressão, violência e sistemáticas
violações de direitos humanos: a necessidade de equilibrar, por um lado, o interesse das
vítimas, no sentido de buscar o direito à verdade, pela exposição e desnudamento do que
factualmente aconteceu e em fornecer as devidas reparações, e de buscar a justiça, a
partir da persecução penal dos violadores de direitos humanos, enquanto se tenta ainda
alcançar, em alguma medida, alguma espécie de reconciliação.
Com efeito, na presença de crimes contra a humanidade, três obrigações se
impõem, em relação a pessoas individuais ou coletivas, que são: 1) o direito da vítima de
ver a justiça ser cumprida; 2) o direito à verdade; 3) o direito à compensação e, também,
à formas não monetárias de restituição; mas, além destas, surge também um direito que
não se direciona apenas às vítimas, mas à toda a sociedade, que é o direito à novas e
reorganizadas instituições, as quais devem possuir accountability, isto é, podem ser
responsabilizadas por suas ações (MENDEZ, 1997, p. 261).
Não há dúvida de que sempre haverá problemas na equalização de todas estas
questões, mas o fato que aqui se salienta é que para uma reconciliação bem-sucedida são
necessárias a promoção das medidas sugeridas pela justiça transicional, que, de acordo
com Juan Mendez (1997, p. 261), são pelo menos quatro:
1. To investigate, prosecute, and punish the perpetrators; 2. to disclose to the
victims, their families, and society all that can be reliably established about
those events; 3. To offer the victims adequate reparations; and 4. to separate

e o perdão pela anistia, com a apuração das violações de direitos humanos do regime racista do apartheid
por meio da narrativa das vítimas e, também, por meio da confissão dos responsáveis pelos crimes, cujas
punições seriam trocadas pela anistia diante da confissão completa e verdadeira. Para Edson Teles, tem-se aí,
paradoxalmente, talvez o maior limite e, ao mesmo tempo, o maior triunfo da experiência sul-africana: “[...]
ao trocar o ilícito, os crimes contra a humanidade, pelo lícito, o amparo da anistia, sob a condição da verdade,
a nova nação sul-africana iniciou a reconciliação, ao mesmo tempo em que deixou de punir os responsáveis
pelos crimes do passado. Foi o momento inaugural das novas relações democráticas pela suspensão dos atos
de justiça” (TELES, 2010, p. 314).

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known perpetrators from law enforcement bodies and other positions of


authority.

Para a justiça transicional, portanto, pode-se perceber como há uma complicada


tensão na justaposição entre “justiça” e “reconciliação”. A nosso ver, porém, a lição mais
importante a se retirar das experiências já ocorridas no âmbito da justiça de transição é
que, a despeito da dicotomia “justiça” vs. “reconciliação”, parece ser mais apropriado
pensar que é precisamente por meio da justiça que se pode alcançar uma verdadeira
reconciliação.12 As medidas transicionais existem justamente para que uma reconciliação
verdadeira possa ter lugar, em detrimento de uma reconciliação falsa, outorgada, a qual
somente pode continuar produzindo no tecido social efeitos altamente deletérios, como
a manutenção e continuidade das diversas formas de desigualdade, opressão e violências
existentes no regime opressor. Isso significa, por um lado, que é realmente necessário
ponderar quais medidas são mais adequadas em cada caso, de acordo com os específicos
contextos regionais; contudo, por outro lado, isso significa também que de nenhuma
maneira as medidas adotadas na busca da reconciliação podem significar apenas
esquecimento, como no caso de autoanistias.13 E, quanto a isto, o caso brasileiro é
extremamente paradigmático.
A este respeito, pode-se lembrar como a Argentina passou por uma extensa
justiça de transição. Da mesma maneira, também o Chile, que condenou carrascos como
Manuel Contreras (chefe da polícia secreta chilena durante a ditadura de Pinochet) à
prisão perpétua, e as Forças Armadas, que se viram obrigadas a fazer um mea-culpa pela
implementação de uma ditadura militar, dentre outros possíveis exemplos (SAFATLE,
2018, p. 64). Nesse sentido, diz Vladimir Safatle (2018, p. 64, grifo nosso) que o “único
país que realizou de maneira bem-sucedida esta profecia foi o Brasil: a profecia da
violência sem trauma aparente”, pois a constituição da “Nova República” foi baseado na

12 Isso fica claro, sobretudo, a partir do relato de Juan Mendez: “Nesse sentido, tudo o que fazemos – justiça,
verdade, medidas de reparação – tem de estar inspirado pela reconciliação, mas a reconciliação verdadeira,
não a falsa reconciliação que na América Latina se pretendeu como desculpa para a impunidade”
(MEZAROBBA, 2007, p. 171).
13 Pois, como será demonstrado ao longo do ensaio, no caso brasileiro a anistia “[...] igualou as violações de

direitos humanos praticadas pelo Estado através de seus agentes aos atos cometidos por cidadãos ou grupos
de cidadãos contra a ditadura militar. Vale dizer, a intenção dos militares era a promoção pelo Estado de uma
autoanistia. Ela autorizaria o esquecimento dos crimes cometidos pelos cidadãos contra o Estado, como
também dos crimes cometidos pelo Estado contra seus cidadãos, não importando se estes violaram os direitos
humanos. Anistia de mão dupla. Anistia que possibilitou ao Estado o autojulgamento, princípio este rejeitado
pelo direito” (CHUEIRI; CÂMARA, 2015, p. 281, grifo nosso).

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tese que o esquecimento dos “excessos” do passado seria o preço doloroso, porém
necessário, a ser pago para garantir a estabilidade democrática, eliminando o trauma da
violência do Estado.
Esquecimento, sim, o qual se deu entre nós por meio da Lei nº 6.683/79, a Lei
de Anistia. Seguindo no caminho da “abertura lenta, gradual e segura” de Geisel, João
Figueiredo tirou da oposição uma de suas principais bandeiras, a luta pela anistia. Assim,
a lei aprovada pelo Congresso continha restrições e fazia importantes concessões à linha
dura do regime militar, abrangendo inclusive os responsáveis pela prática de tortura.
Desta maneira, de um lado, a lei possibilitou o retorno dos exilados políticos e consistiu
em um importante passo para a ampliação das liberdades públicas (FAUSTO, 2018, p.
280). Porém, de outro, segundo Glenda Mezarobba (2003, ps. 142-143),
Embora de grande significado no processo de democratização do país, a lei
6.683 se deu basicamente nos termos que o governo queria, mostrou-se mais
eficaz aos integrantes do aparato de repressão do que aos perseguidos
políticos e não foi capaz de encerrar a escalada de atrocidades iniciada com o
golpe de 1964. Em outras palavras, a Lei da Anistia ficou restrita aos limites
estabelecidos pelo regime militar e às circunstâncias de sua época. [...] Dessa
forma, naquele primeiro momento, em 1979, pode-se dizer que a anistia
significou uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e
opositores do regime que haviam sido cassados, banidos, estavam presos ou
exilados. A legislação continha a ideia de apaziguamento de harmonização de
divergências e, ao permitir a superação de um impasse, acabou por adquirir
um significado de conciliação pragmática, capaz de contribuir com a transição
para o regime democrático.

No caso do Brasil, como se sabe, em 1º de abril de 1964 os militares deram um


golpe de estado, depondo o então presidente João Goulart, pondo fim à experiência
democrática do período de 1945-1964.14 Embora o intervencionismo das Forças Armadas
não fosse novidade na história do país pré-1964, pela primeira vez na história do Brasil os
militares se viram em condições de assumir o poder com a perspectiva de aí permanecer
(FAUSTO, 2018, p. 255), instaurando um regime autoritário que duraria 21 anos. E que,
contrariamente a muitas das vociferações contemporâneas quanto “à descarada alegação

14Um excelente relato sobre a conjuntura político-social da época pode ser encontrado no ensaio “Cultura e
política, 1964-1969”, presente na obra O pai de família e outros estudos, de Roberto Schwarz (2008).
Conforme escreve o autor, “O povo, na ocasião, mobilizado, mas sem armas e organização própria, assistiu
passivamente a troca de governos. Em seguida sofreu as consequências: intervenção e terror nos sindicatos,
terror na zona rural, rebaixamento geral de salários, expurgo especialmente nos escalões baixos das Forças
Armadas, inquérito militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução de organizações estudantis,
censura, suspensão de habeas corpus, etc” (SCHWARZ, 2008, p. 71).

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de brandura”, segundo escreve Paulo Arantes (2010, p. 205), “[...] só nos primeiros meses
de comedimento foram 50 mil presos. Em julho de 1964, ‘os cárceres já gritavam’”.
As condições contextuais que se seguiram, especialmente após a posse do
primeiro presidente militar, o general Humberto de Alencar Castello Branco, mostrou-se
ser o prelúdio de uma mudança completa no sistema político, a qual foi moldada por meio
da colaboração ativa entre militares e setores civis interessados em implantar um projeto
de modernização impulsionado pela industrialização e pelo crescimento econômico,
sendo que tudo isto seria sustentado por um formato abertamente ditatorial. A
interferência foi profunda: exigiu a configuração de um arcabouço jurídico, a implantação
de um modelo de desenvolvimento econômico, a montagem de um aparato de repressão
e informação política, e a utilização da censura como ferramenta de desmobilização e
supressão do dissenso (SCHWARCZ; STARLING, 2015, ps. 448-449).
Como nos lembra Fausto (2018, p. 257), o movimento golpista de 31 de março
de 1964 foi lançado, aparentemente, para livrar o país da corrupção e do comunismo e
para restaurar a democracia. Nesse sentido, é preciso se lembrar do contexto mundial à
época: o cenário mundial vinha sendo alimentado pela radicalização das lutas populares,
com algumas de suas revoluções sendo vitoriosas, da hegemonia mundial da esquerda no
campo cultural das ideias, do constante abalo do sistema de formas tradicionais de vida
pela continuidade das experiências artísticas de vanguarda e das fortes relações de
associação entre intelectuais e classes populares. Assim, além de suas próprias questões
internas, houve no Brasil uma dinâmica que não poderia aceitar de forma alguma estes
abalos, como o ocorrido no Chile, com o governo Salvador Allende e a sua combinação
inovadora de socialismo e democracia (SAFATLE, 2018, ps. 50-51).
Foi neste espírito que uma grande parcela da sociedade civil, pelo lado da
direita,15 se uniu inescrupulosamente aos militares, seguindo seus interesses oligárquicos
para possibilitar o golpe, conforme escreve Safatle (2018, p. 51, grifo nosso):
Foi contra a realização possível desse horizonte de transformação que as
oligarquias se associaram aos militares para impor uma ditadura civil-militar.

15 Nas palavras de José Murilo de Carvalho (2017, p. 155): “Pelo lado da direita, o golpismo não era novidade.
Desde 1945, liberais e conservadores vinham tentando eliminar da política nacional Vargas e sua herança. O
liberalismo brasileiro não conseguiu assimilar a entrada do povo na política. O máximo que podia aceitar era
a competitividade entre setores oligárquicos. O povo, representado na época pela prática populista e
sindicalista, era considerada pura massa de manobra de políticos corruptos e demagogos e de comunistas
liberticidas. O povo perturbava o funcionamento da democracia dos liberais. Para eles, o governo do país não
podia sair do controle de suas elites esclarecidas”.

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Durante vinte anos, o Brasil foi submetido a uma política econômica de alta
concentração de renda, de crescimento da desigualdade, e a um regime
corrupto, no qual a classe empresarial financiava aparelhos de tortura e
terrorismo de Estado e cargos públicos eram distribuídos a banqueiros e
empresários [...]. Ou seja, a ditadura militar brasileira não era exatamente
uma ditadura militar, mas uma associação civil-militar para o retorno do
sistema de coronelato e oligarquias locais.

Tendo assumido de forma inconstitucional o governo, os militares conferiram a


si mesmos poderes de exceção. A área sensível do novo sistema político se localizava no
controle, pelas Forças Armadas, da presidência da república, sendo que passaram e se
alternaram no comando do Executivo cinco generais do Exército: Castello Branco (1964-
67), Costa e Silva (1967-69), Garrastazu Médici (1969-74), Ernesto Geisel (1974-79) e João
Figueiredo (1979-85), além do curto período de mando de uma Junta Militar, composta
pelos ministros das três forças, entre agosto e outubro de 1969 (SCHWARCZ; STARLING,
2015, p. 449).
Como escreve o historiador Boris Fausto (ps. 257-258), rogando para si o
“exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as Revoluções”,16 o novo regime
autoritário começou a mudar as instituições por meio dos chamados atos institucionais
(AI). O primeiro ato institucional (AI-1) foi redigido em segredo e promulgado em 9 de
abril de 1964, oito dias após o golpe. Ele manteve formalmente a Constituição de 1946,
com várias modificações, e também o funcionamento do Congresso. O AI, no entanto,
teve por objetivo reforçar o poder do Executivo e reduzir o campo de ação do Congresso:
suspendeu as imunidades parlamentares, autorizando o Comando Supremo da Revolução
a cassar mandatos e a suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos; suspendeu as
garantias de vitaliciedade e de estabilidade dos demais servidores públicos por seis
meses, para facilitar o expurgo no serviço público; criou as bases para a instalação dos
inquéritos policial-militares (IPMs), a que ficaram sujeitos os responsáveis “pela prática
de crime contra o Estado ou seu patrimônio, contra a ordem pública e social, ou por atos
de guerra revolucionária”.
Todos estes mecanismos, então, desencadearam perseguições aos adversários
do regime, envolvendo expurgos (que atingiram funcionários públicos, o Congresso

16 Este é o motivo pelo qual até hoje as Forças Armadas empregam o termo “revolução” para se referir ao
golpe. Isso decorre do primeiro ato institucional, que na sua “Introdução” dizia: “A revolução vitoriosa [...] é
a forma mais expressiva e radical do Poder Constituinte”. Desta maneira, eles procuraram dar legitimidade
ao sistema e institucionalizar a repressão (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 456).

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Nacional, governadores, juízes e os próprios militares),17 prisões e torturas, que atingiram


de maneira exacerbada principalmente os estudantes (que tinham tido um papel
relevante no período de Goulart e, por isso, foram visados pela repressão) e o campo,
especialmente no Nordeste, sobretudo as pessoas ligadas às Ligas Camponesas. Vale
lembrar, ainda, que foi nesse contexto que o regime militar deu outro passo importante
no seu aparato de censura e repressão, que foi a criação, em junho de 1964, com
idealização e chefia do general Golbery do Couto e Silva, do Serviço Nacional de
Informações (SNI),18 que visava “[...] coletar e analisar informações pertinentes à
Segurança Nacional, à contrainformação e à informação sobre questões de segurança
interna” (FAUSTO, 2018, ps. 258-259).
O AI-1, contudo, tinha prazo de validade, devendo terminar em 31 de janeiro de
1966, data final do mandato de João Goulart, o que no início deu a impressão para muitos
de que o regime militar seria de fato temporário. Porém, em outubro de 1965, Castello
Branco liquidou estas ilusões, prorrogando o próprio mandato por meio do AI-2. O AI-2,
além de determinar medidas que fortaleceriam ainda mais o Executivo, mudou as regras
da representação política: suprimiu as eleições por voto popular direto para presidente
da República e extinguiu todos os partidos políticos então existentes (SCHWARCZ;
STARLING, 2015, p. 457). Além disso, o AI-2 reforçou ainda mais os poderes do presidente
ao estabelecer que ele poderia baixar decretos-leis em matéria de segurança nacional,
permitindo-o, desta maneira, mediante este mecanismo, ampliar até onde quisesse o
conceito de segurança nacional (FAUSTO, 2018, p. 262).
Em seguida, veio o AI-3, assinado por Castello Branco em fevereiro de 1966, que
se encarregaria de acabar com as eleições diretas para governadores. Além disso, foi
acompanhado também de um Ato Complementar, que serviria para alterar a correlação
das forças políticas no Congresso e nas Assembleias Estaduais, ao estabelecer normas

17 Conforme expõem Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015, ps. 456-457), era de repressão que se tratava, e
o AI-1 facilitou as condições para o expurgo no serviço público, o que se deu mormente por meio das
Comissões Especiais de Inquérito, de natureza administrativa, em todos os níveis de governo, e dos Inquéritos
Policiais Militares (IPMs), para investigar as atividades de funcionários na administração pública. De acordo
com as autoras, entre 1964 e 1973 milhares de brasileiros foram atingidos pelos expurgos, sendo que estima-
se que 4841 pessoas perderam direitos políticos ou foram cassadas, aposentadas ou demitidas pela ditadura
(apenas o AI-1 teve como alvo 2990 cidadãos), e nos quartéis os expurgos atingiram as três Forças e
remeteram 1313 militares para a reserva.
18 Sobre o SNI, diz ainda Fausto (2018, p. 259): “Na prática, transformou-se em um centro de poder quase tão

importante quanto o Executivo, agindo por conta própria na ‘luta contra o inimigo interno’. O general Golbery
chegou mesmo a tentar justificar-se, anos mais tarde, dizendo que sem querer tinha criado um monstro”.

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para a criação de apenas dois partidos (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 458). Quanto a
isto, a legislação partidária forçou na prática a organização de apenas dois partidos: o
partido que reuniu os membros ligados ao governo, a Aliança Renovadora Nacional
(ARENA), e o partido que reuniu a oposição (controlada), o Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) (FAUSTO, 2018, ps. 262-263).
Além de todas estas questões, o governo Castello Branco completou sua
mudança institucional fazendo o Congresso aprovar uma nova Constituição em 1967.
Tendo submetido o Congresso a novas cassações, o Congresso foi fechado por cerca de
um mês em outubro de 1966 e reconvocado em uma reunião extraordinária apenas para
aprovar o novo texto Constitucional. Esta Constituição, de 1967, incorporou a legislação
que ampliara os poderes conferidos ao Executivo, especialmente no que tange à
segurança nacional (FAUSTO, 2018, ps. 262-263). Conforme escreve José Afonso da Silva
(2014, p. 88), após novas crises vieram ainda os atos institucionais 3 e 4, este regulando o
procedimento a ser obedecido pelo Congresso Nacional, para votar nova Constituição,
cujo projeto foi apresentado pelo governo. A Constituição foi outorgada, então, em 24 de
janeiro de 1967, de forma que, após sofrer vinte e uma emendas regularmente aprovadas
pelo Congresso Nacional, o impacto de quatro atos institucionais e trinta e sente atos
complementares, era o fim da Constituição de 1946.
No entanto, esta Constituição teria uma vida muito curta. Diferentemente do
que os militares pensaram, as crises não cessaram. Desta forma, em seguida, veio o ato
institucional nº 5 (AI-5), o qual rompeu definitivamente com a ordem constitucional, e em
relação ao qual se seguiram mais uma dezena e muitos outros atos complementares e
decretos-leis. A seguir, porém, após Costa e Silva (que havia sucedido Castello Branco em
1967) ficar gravemente doente e estar impossibilitado de continuar governando, é
declarado pelo AI-12 o exercício do Poder Executivo a uma junta militar formada pelos
Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, os quais
completaram o preparo de um novo texto constitucional, promulgado em 17 de janeiro
de 1969, como Emenda Constitucional n.1 à Constituição de 1967, para entrar em vigor
em 30 de outubro de 1969. Teórica e tecnicamente, contudo, não se tratou de uma
emenda, mas de uma nova constituição. O formalismo da emenda foi apenas um
mecanismo de outorga, visto que se tratou da promulgação de um texto constitucional
integralmente reformulado. Esta, por sua vez, perdurou até a EC-26 (a qual, tecnicamente,

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também não se tratou de emenda constitucional, mas de ato político), responsável por
convocar a Assembleia Nacional Constituinte para elaborar a nova Constituição que
substituiria a anterior (SILVA, 2014, p. 89), já no contexto da redemocratização.
Retornando ao tema dos Atos Institucionais, algo muito emblemático aconteceu
em 14 de dezembro de 1968, quando o Jornal do Brasil, um dos mais importantes jornais
da época, foi às bancas com uma edição planejada cuidadosamente para causar
estranheza. Entre várias bizarrices, o jornal estampou o seguinte aviso: “Ontem foi o Dia
dos Cegos”, juntamente com a previsão meteorológica, na primeira página. Também
anunciou: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país sendo
varrido por fortes ventos”. O dia, no entanto, era de sol forte e um céu escandalosamente
azul. A edição, acontece, estava falando sério. Estava tentando alertar o leitor de censores
na redação, pois, naquela madrugada, entrara em funcionamento uma grande operação
militar de censura em toda a imprensa nacional.19 O jornal avisava ainda que aquilo que
já era ruim havia piorado: na noite anterior, Gama e Silva, ministro da Justiça, havia
apresentado ao país o texto do Ato Institucional nº 5 (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p.
455).
O AI-5, o pior e mais radical de todos os atos institucionais, possuía doze artigos
e vinha acompanhado do Ato Complementar nº 38, que fechava o Congresso Nacional
por tempo indeterminado. Entre as suas medidas, estavam as seguintes: suspendia a
concessão de habeas corpus e as garantias constitucionais de liberdade de expressão e
reunião, permitia demissões sumárias, cassações de mandatos e de direitos de cidadania,
e determinava que o julgamento de crimes políticos fosse realizado por tribunais
militares, sem direito a recurso. Tratava-se, numa conjuntura de inquietação política e
movimentação oposicionista, de uma ferramenta de intimidação pelo medo, a qual não
tinha prazo de vigência e seria empregada pela ditadura contra a oposição e a dissidência
(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 455).
Nesse sentido, de forma a ressaltar a excepcionalidade dos atos institucionais,
em especial o AI-5 e o AI- 14, as palavras de Edson Teles (2010, p. 304):

19Sobre isto, as palavras de Eduardo Bittar (2017, p. 390, grifo nosso): “Se a formação de uma esfera pública
midiática é de fundamental importância para a vida política dos cidadãos, e se a cultura política que possui
passa de modo volumoso pelos instrumentos de comunicação populares à disposição, percebe-se o quanto
era nevrálgico para o regime, em função de sua sustentabilidade, controlar o exercício da cidadania pelo
controle do poder comunicativo dos profissionais letrados e que a exerciam, especialmente, a função de
jornalistas. Assim, a censura fazia parte da arquitetura do regime autoritário”.

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Figura anômala da constitucionalidade do Estado autoritário, seu produto


mais discricionário no Brasil foi o Ato Institucional nº 5, assinado em 13 de
dezembro de 1968. Esse decreto ampliou os poderes de exceção do cargo de
presidente ao estender-lhe o direito de decretar Estado de sítio e fechar o
Congresso Nacional (artigos 1º, 2º e 7º), concedendo o domínio absoluto
sobre os Estados da Federação (artigos 3º e 6º) e extinguindo vários direitos
civis e políticos (artigos 4º, 5º e 8º), especialmente o habeas corpus (artigo
10º). O Ato Institucional nº 14, de 14 de outubro de 1969, instituiu a pena de
morte. De fato, investiu o Estado da prerrogativa de manipulação dos corpos
e, portanto, da vida dos cidadãos.

A partir de então, juntamente com a censura política, jornalística, artística,


cultural e moral, e a instalação da tortura como prática normal de governo, uma
verdadeira máquina letal se instituiu, a qual tinha como principais órgãos: o Sistema
Nacional de Informações (SNI); a Divisão de Segurança e Informações (DSI); o Centro de
Informações do Exterior (CIEX); os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops); o
Centro de Informações do Exército (CIE), da Marinha (Cenimar) e da Aeronáutica (Cisa); a
nível interno, a Operação Bandeirante (Oban), os Centros de Operação e Defesa Interna
(Codi) e os Destacamentos de Operação Interna (DOI); e, a nível internacional, com foco
sobretudo na América, a Operação Condor.20

4. A exceção brasileira e as consequências do perfeito cumprimento da profecia da


violência sem trauma aparente

Como observa Edson Teles (2010, ps. 299-300), os militares instauraram, desde o início,
um regime que optou por reprimir brutalmente os opositores e praticar violações de
direitos humanos. Para tanto, milhares de pessoas tiveram seus direitos políticos e civis
cassados, uma nova Constituição foi outorgada (1967) e a censura foi estabelecida. A
democracia, que havia durado apenas dezenove anos, substituída por um Estado
autoritário fundado sob a Doutrina de Segurança Nacional,21 proclamando um regime de

20 Sobre isto, merece citação a obra Como eles agiam, de Carlos Fico (2001), na qual se pode encontrar,
mediante detalhada documentação, a reconstituição do processo de formação e a explicitação destas
estruturas, burocrático-policiais e totalitárias, em seu modo de funcionamento.
21 Como explica Glenda Mezarobba (2010, p. 7), “Assim como outros países da região, na segunda metade do

século passado o Brasil também foi governado por militares que usurparam o poder e operavam dentro de
uma estrutura ideológica compartilhada, da doutrina de ‘Segurança Nacional’, no cenário internacional da
Guerra Fria. Constituída para eliminar a subversão interna de esquerda, restabelecer a ‘ordem’ em seu

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exceção legitimado em uma situação de emergência e dotado de “força de lei”


revolucionária.
Tratou-se, com efeito, de um corte radical, o qual mudaria de vez a lógica da
exceção. Pois, a partir do golpe, entrou em cena uma nova “fúria”: conforme a formulação
de Pilar Calveiro, entrou em cena o exercício do “poder desaparecedor”, poder este
responsável por mandar prender e mandar desaparecer enquanto política de Estado, o
qual exigia, por sua vez, esquadrões, casas e voos da morte. Esta transformação “furiosa”
do poder e da política, que possui como principal figura o desaparecimento forçado de
pessoas, desde o início desnorteou – e continua desnorteando - os primeiros
observadores. Nesse sentido, ainda no início dos anos 1980, podia-se encontrar um
perplexo Paul Virilio, referindo-se às ditaduras do Cone Sul como o laboratório de um
novo tipo de sociedade, isto é, como “sociedades do desaparecimento”,22 “[...] onde os
corpos agora, além do mais – e sabemos tudo o que este ‘mais’ significa’ -, precisam
desaparecer” (ARANTES, 2010, p. 207).
Portanto, em uma espécie de apropriação inversa da “Vontade Geral”
democrática (pois, para os militares, a “Vontade Geral” foi representada sob o signo da
“Segurança Nacional”), foi impossibilitado o exercício da política, e a tortura e o
aniquilamento físico do adversário tornadas práticas preferenciais. Além disso, do terror,
utilizaram três recursos: a destituição pública de lideranças e grupos políticos próximos à
população, a delação secreta para a intimidação social como um todo e a substituição da
política pela polícia. Deste modo, por meio de uma mescla de terror estatal, fascismo e
monarquia medieval, os militares produziram uma inversão ideológica sobre a
representação, de forma que “não é por ser representante que alguém governa, mas, ao
contrário, é porque governa que é representante” (CHAUI, 2017, p. 132). E, para Marilena
Chaui (2017, p. 132), esta concepção de representação é relevante para se compreender
o porquê de a tortura ter sido institucionalizada, como efetivamente foi, durante o regime
civil-militar:

território, e estruturada de forma a disseminar o medo e desmobilizar a sociedade, a ditadura brasileira


classificava de inimigos do Estado todos aqueles que se opunham às suas ideias”.
22 Nas palavras de Virilio (1984, p. 85, grifo nosso): “Este fenômeno entretanto esclarece práticas terroristas

bem como o terrorismo estatal que se desenvolveu na América do Sul com a técnica dos desaparecimentos.
Não mais a prática dos campos de concentração, cercos de estilo alemão, mas sim o desaparecimento de
pessoas. Prestidigitação. Mágica social. É a sociedade do desaparecimento”.

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Se governar transforma alguém em representante, então é preciso saber o


que esse alguém representa. Representa o Estado e, por meio dele, o
governo, o qual, representando-se a si mesmo, identifica-se com a Vontade
Geral, isto é, com a nação sob o signo da Segurança Nacional. Uma vez que
representam a Segurança Nacional, os membros do governo consideram-se
investidos do direito e do dever de defende-la e, para essa defesa,
institucionalizaram a tortura. Dessa maneira, recuperam do terror, do
fascismo e da monarquia por direito divino o poder de vida e morte sobre
toda sociedade. Consagram, assim, a impossibilidade da política.

Desta forma, com o objetivo declarado de “livrar o país da ameaça comunista e


da corrupção”, a ditadura valeu-se, entre outros expedientes, dos Atos Institucionais (AI)
para exercer o poder. Foram expedientes que ora se deram de forma institucional, ora se
impuseram apenas pela força, pois, conforme dizem Safatle e Teles (2010, p. 11), uma
“das características mais decisivas da ditadura brasileira era sua legalidade aparente23 ou,
para ser mais preciso, a sua capacidade de reduzir a legalidade à dimensão da
aparência”24: manteve em um primeiro momento a Constituição, embora esta estivesse
de fato suspendida, tendo em vista que atos de força ilegais se impunham
rotineiramente;25 mas estava suspendida também formalmente, embora não

23 Uma característica comum e necessária em se tratando de regimes ilegais e de exceção, como escreve
Hannah Arendt (1999, p. 167), sobre a Alemanha Nazista: “Uma ordem diferia da palavra do Führer porque a
validade desta última não era limitada no tempo e no espaço – a característica mais notável da primeira. Essa
é também a verdadeira razão pela qual a ordem do Führer para a Solução Final foi seguida por uma
tempestade de regulamentos e diretivas, todos elaborados por advogados peritos e conselheiros legais, não
por meros administradores; essa ordem, ao contrário de ordens comuns, foi tratada como uma lei. Nem é
preciso acrescentar que a parafernália legal resultante, longe de ser um mero sintoma do pedantismo ou
empenho alemão, serviu muito eficientemente para dar a toda a coisa a sua aparência de legalidade”.
24 Em oposição a outras ditaduras latino-americanas, as quais não tiveram esta preocupação, como na

Argentina, na qual não houve praticamente participação do judiciário no regime opressivo. Na Argentina os
tribunais apareciam apenas para negar habeas corpus e para dar cobertura para o terror estatal, sendo que
o modus operandi das forças de segurança para eliminar a dissidência se deu quase que inteiramente de
forma extrajudicial. Pode-se dizer, nesse sentido, em comparação com o Brasil e o Chile, que a ditadura
Argentina foi a mais radical entre as três ditaduras, a que mais desdenhou das tradicionais restrições jurídicas
ao Poder Executivo (PEREIRA, 2009, ps. 205-206). Isso não significa, no entanto, que o autor esteja fazendo
alguma concessão ao regime, pois, conforme escreveu em outro lugar, “To compare Brazil’s military regime
with the more violent and less judicialized regimes in the southern cone is not to attempt to rehabilitate it.
By no stretch of the imagination was it a genuinely constitutional regime with anything approaching a rule of
law. It was clearly a dictatorship. A high degree of arbitrariness governed the treatment of political prisoners,
and there was little separation of powers, allowing the executive to change the rules of the game at will”
(PEREIRA, 2005, p. 156).
25 Por exemplo, o que relatam Safatle e Teles (2010, p. 11, grifo nosso): “Tínhamos eleições com direito a

partido de oposição, editoras que publicavam livros de Marx, Lenin, Celso Furtado, músicas de protesto,
governo que assinava tratados internacionais contra a tortura, mas, no fundo, sabíamos que era tudo isto que
estava submetido à decisão arbitrária de um poder soberano que se colocava fora do ordenamento jurídico.
Quando era conveniente, as regras eleitorais eram modificadas, os livros apreendidos, as músicas censuradas,
alguém desaparecia. Em suma, a lei era suspensa”.

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completamente, pois os atos institucionais impostos pelos militares encontravam-se,


juridicamente e hierarquicamente, acima dela.26
Governando principalmente por meio dos Atos Institucionais e dos decretos-
leis, no âmbito ideológico da Doutrina de Segurança Nacional, o regime funcionou de
forma anômala e (des)ordenada. Sobre o decreto-lei, pode-se dizer que ele é a norma
mais representativa do estado de exceção. Conforme Giorgio Agamben (2005, ps. 60-61),
no sentido técnico, o sintagma “força de lei” não se refere à lei, mas justamente àqueles
decretos que têm, como se diz, força de lei, decretos que o poder executivo pode, em
algumas hipóteses, particularmente no estado de exceção, promulgar. É por meio dele
que decretos e outras disposições que não são formalmente leis adquirem, no entanto,
sua “força”. Como diz o autor, o estado de exceção “[...] define um ‘estado da lei’ em que,
de um lado, a norma está em vigor, mas não se aplica (não tem ‘força’) e em que, de outro
lado, atos que não tem valor de lei adquirem sua ‘força’”. Entende-se, assim, como atos
de força e violência podem ser cometidos corriqueiramente no estado de exceção, pois
ele é fundamentalmente um espaço anômico, no qual o que está em jogo é uma força de
lei sem lei (e que deveria ser escrita, portanto, força de lei).
O estado de exceção, para Agamben (2004, p. 15), não é um direito especial
(como o direito da guerra), mas sim a suspensão da própria ordem jurídica, o que define
seu próprio patamar ou conceito limite. Para o autor, a história do instituto reside, a partir
da sua criação, na sua progressiva emancipação a respeito de contextos e situações de
guerra, para se converter em um instrumento extraordinário da função de polícia que
exercem os governos, inclusive nas democracias contemporâneas. Nesse sentido, tinha-
se, inicialmente, dois paradigmas, o do estado de sítio (que funcionava inicialmente pela
extensão em âmbito civil dos poderes que são da esfera da autoridade militar em tempos

26Vera Karam de Chueri e Heloísa Fernandes Câmara (2015, p. 265) demonstram bem essa situação de, para
usar a expressão das autoras, “(des)ordem constitucional”. Conforme argumentam, “Essa relação dúbia entre
Constituição e atos institucionais gerou uma curiosa resposta teórica, a de que os atos institucionais eram
considerados leis superiores à própria Constituição, na medida em que poderiam alterá-la. [...] os atos
institucionais tiveram ciclos distintos, o que expressa que a legalidade autoritária seguiu um padrão de
distensão e recrudescimento, assim como o regime, ou seja, a legalidade autoritária foi ad hoc”. Além disso,
dentro da relação, às vezes conflitiva, entre os atos institucionais e Constituição, o STF foi muitas vezes
chamado a decidir, mas em nenhum momento discutiu sobre a validade dos atos institucionais ou de suas
prescrições, atendo-se a decidir com base em critérios interpretativos qual deveria prevalecer, se Constituição
ou AI. Havia, dentro do STF, ideólogos da ditadura, a exemplo do Ministro Carlos Medeiros Silva, o qual
defendia a hierarquia do ato institucional como lei constitucional temporária, o qual, em caso de conflito com
a Constituição de 1946, deveria sobre ela prevalecer.

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de guerra) e o da suspensão da constituição (ou das normas constitucionais que protegem


as liberdades individuais). Todavia, com o tempo, ambos os institutos acabaram
convergindo para um único fenômeno jurídico, este que chamamos de estado de exceção
(AGAMBEN, 2004, p. 16-17).
Assim, não há dúvidas de que o regime civil-militar brasileiro funcionou
eminentemente no âmbito do estado de exceção, mas que, entretanto, peculiarmente,
atuou por meio do entrelaçamento de mecanismos advindos dos dois paradigmas.27 Com
efeito, na história do Brasil, conforme observa Edson Teles (2010, p. 303, grifo nosso), o
“Estado de exceção surgiu como estrutura política fundamental, prevalecendo enquanto
norma quando a ditadura transformou o topos indecidível em localização sombria e
permanente nas salas de tortura”. O “ilocalizável” e indecidível topos da exceção, que
opera simultaneamente dentro e fora do ordenamento jurídico, materializou-se,
portanto, perfeitamente, tanto na sala de tortura, quanto no não-lugar absoluto do
desaparecimento forçado; estes, os dois pilares de uma sociedade do desaparecimento
(ARANTES, 2010, p. 208).
Isto é verdadeiro levando-se em consideração tanto o período no qual estava
formalmente vigente ainda a Constituição de 1945, quanto após a Constituição de 1967,
e, em seguida, após também a sua abolição pela Emenda n. 1. Contudo, essa situação fica
evidente, em absoluto, após
[...] o AI-5, baixado em 13 de dezembro de 1968, o golpe mais certeiro e cruel
do regime militar; a ordem mais violenta produzida e imposta pela ditadura.
O princípio da supremacia da Constituição que já estava bastante fragilizado
e relativizado foi, finalmente, aniquilado. Assim, nem formalmente (já que
atos institucionais poderiam alterar a Constituição, por exemplo), e nem
materialmente (pois na prática não havia nem separação de poderes e nem
proteção aos direitos fundamentais, marcas fundamentais do

27Poder-se-ia objetar a essa leitura, em oposição à ideia do estado de exceção, aproximando mais o regime
brasileiro e os atos institucionais no âmbito das leis de “plenos poderes” (que deriva da noção de plenitudo
potestatis, do direito canônico), mediante as quais se ampliam os poderes governamentais e,
particularmente, ao fato de se atribuir ao executivo o poder de promulgar decretos com força de lei. Para
Agamben (2005, p. 17), isto é um erro, o qual deriva do mitologema, análogo à ideia de estado de natureza,
de que o estado de exceção implicaria um retorno a um estado original “pleromatico” (no qual não há ainda
a distinção entre os diversos poderes, executivo, legislativo, etc). Como demonstra o autor, “o estado de
exceção não se define, segundo o modelo ditatorial, como uma plenitude de poderes, um estado pleromatico
do direito, mas, sim, como um estado kenomatico, um vazio e uma interrupção do direito” (AGAMBEN, 2005,
p. 75). A expressão “plenos poderes” define, portanto, apenas uma das possíveis modalidades de ação do
poder executivo durante o estado de exceção, mas com ele não coincide.

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constitucionalismo moderno) havia prevalência da Constituição (CHUEIRI;


CÂMARA, 2015, p. 273).28

O que se pode chamar de exceção brasileira consistiu, portanto, em uma


ditadura que se serviu da legalidade para transformar seu poder soberano de suspender
a lei, de designar terroristas, de assassinar opositores, em, no mínimo, um arbítrio
absolutamente traumático. Nesse tipo de situação, cumprindo as observações de
Agamben sobre o estado de exceção – quando diz que “a exceção é o dispositivo original
graças ao qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio da própria suspensão”
(AGAMBEN, 2005, p. 12) -, nunca se pode dizer quando se está fora da lei, tendo em vista
que o próprio poder faz questão de mostrar que pode embaralhar, a qualquer tempo,
direito e ausência de direito, dentro e fora da lei. Nesse sentido, é lícito dizer que a
verdadeira função da ditadura brasileira foi a de gerir a generalização de uma situação de
anomia que foi por ela mesma alimentada (SAFATLE, 2010, p. 251).
Desta maneira, além da legalidade de exceção, o regime fez uso também de
diversos outros métodos para punir e perseguir aqueles que eram considerados seus
opositores, por meio de instrumentos excepcionais que reduziram ou suprimiram o
direito de defesa dos acusados de crimes mediante a doutrina de segurança nacional, os
quais tiveram com mais frequência as penas de exílio, a suspensão de direitos políticos, a
perda do mandato político ou de cargo público, a demissão ou perda de mandato sindical,
a perda da vaga em escola pública ou a expulsão em escola particular e a prisão. Mas,
além das detenções arbitrárias, o regime de exceção imposto no país se utilizou também
correntemente de toda uma gama de expedientes altamente violentos e insólitos, como
a tortura, os sequestros, os estupros e os assassinatos. A pena de morte chegou inclusive
a ser formalmente instituída pelo AI-14, embora nunca tenha sido efetivamente utilizada.
Não houve a necessidade, pois, para eliminar seus adversários, o governo optou
claramente, afinal, por execuções sumárias e a tortura, a qual ocorria sempre às escuras
(MEZAROBBA, 2010, ps. 7-8).

28 É oportuno observar, contudo, que as autoras discordam da interpretação de que o regime brasileiro
estivesse sob um estado de exceção ao modo da definição agambeniana. Conforme escrevem: “Vale dizer,
Estado de Direito apenas nominal, sem democracia, não nos exime de situações excepcionais que na sua
radicalidade conduzem a um verdadeiro Estado de Exceção. Não no sentido de que nos fala Agamben, mas
sim um Estado no qual a Constituição não mais se aplica (ou mal se aplica) e os governantes da hora invocam
regras específicas para combater o ‘inimigo’ interno e externo” (CHUEIRI; CÂMARA, 2015, ps. 273-274).

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Vista por estas lentes, e tendo em mente o plano de fundo ideológico da


Doutrina de Segurança Nacional, a ditadura brasileira parece se encaixar perfeitamente
na definição fornecida por Agamben,29 em relação ao que o autor denomina de
totalitarismo moderno:
O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a
instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que
permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de
categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um
estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não
declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos
Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos (AGAMBEN,
2005, p. 13, grifo nosso).

Foi justamente todo este passado inescrupuloso que, mediante uma transição
negociada e extorquida, elidida de mecanismos de justiça transicional, buscou-se apagar
da memória nacional. A Lei de Anistia surgiu, com efeito, precisamente para confirmar e
reafirmar este esquecimento. Como apontou Safatle (2010, ps. 240-241), contra a
vexatória tese de que o esquecimento dos “excessos” do passado seria o preço doloroso,
porém necessário, a ser pago para garantir a estabilidade democrática, tese esta que
consiste apenas no discreto sintoma de uma profunda tendência totalitária da qual nossa
sociedade nunca conseguiu se despir, trata-se de falar, mais apropriadamente, no caso
brasileiro, em “amnésia sistemática em relação a crimes de um Estado ilegal”.
Assim, é importante para nossos fins ressaltar, conforme argumenta Teitel
(2011, ps. 159-160), que, no âmbito da justiça transicional, o interesse na busca da justiça
não declina com o transcurso do tempo. Um dos motivos para isto é que a justiça
transicional se relaciona com condições políticas excepcionais (como no caso brasileiro,
acima exposto), no qual o próprio Estado está envolvido nos crimes, e a busca da justiça

29Ainda que ele aponte nesta passagem também para um outro problema, que é a presença de mecanismos
de exceção mesmo em Estados ditos democráticos. Nesse sentido, escreve Agamben (2005, p. 13) na
continuação desta passagem: “Diante do incessante avanço do que foi definido como uma ‘guerra civil
mundial’, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante
na política contemporânea. Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de
governo ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a
estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção
apresenta-se, nesta perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”. Vale
observar que é desta mesma problemática que trata Ruti Teitel (2010, ps. 166-167), quando escreve sobre a
terceira fase da justiça transicional, chamada de “estado estável da justiça transicional”, na qual se verifica
um esvaziamento da distinção entre guerra e paz, a lei e a sua exceção, por meio da expansão do Direito de
Guerra e do incremento na importância do Direito Humanitário.

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necessariamente aguarda uma mudança de regime (a exemplo do chamado “Efeito


Scilingo”, 30 que faz alusão à reabertura de discussões sobre a justiça a partir da confissão
de perpetradores de crimes durantes os regimes militares).
A justiça transicional implica, portanto, um tratamento não-linear da dimensão
temporal, pois, como se viu, existe uma complicada relação entre justiça transicional,
verdade e história. No discurso transicional, voltar ao passado é entendido como o modo
de avançar para o futuro. Há, normalmente, uma noção implícita de uma história
progressiva, a qual tem sido contestada pela perspectiva da historiografia intelectual e
pela auto-compreensão humana. Contudo, ressalta Teitel, as transições são períodos de
ruptura que oferecem uma escolha entre narrativas contestadas. O objetivo paradoxal da
transição é, precisamente, o de desfazer a história. A finalidade é reconceber o significado
social dos conflitos passados, particularmente o das derrotas, numa tentativa de
reconstruir seus efeitos presentes e futuros, motivo pelo qual se pode dizer que as
transições apresentam uma escolha de limiar. São, portanto, ocasiões de disputas em
torno de narrativas históricas, e, enquanto tal, apresentam o potencial para a criação de
contra-histórias (TEITEL, 2011, ps. 160-161). O esquecimento, logo, vai diretamente
contra todas, das mais modestas até as mais ambiciosas, pretensões da justiça
transicional.
Não é por acaso que, neste ponto, a autora faça referência tanto a Foucault, na
medida em que a genealogia permite uma leitura não linear e não progressiva da história,
quanto também a Walter Benjamin. Em Benjamin, especialmente nas teses Sobre o
conceito de história, encontra-se uma das mais potentes críticas a esta historiografia
positivista, chamada historicista (do pretenso historiador “neutro”, que narra o passado
“tal como ele propriamente foi”), a qual tende a ver a história como um continuum
temporal, vazio e homogêneo.31 Para Benjamin, trata-se realmente de não entender o
passado como algo completo, fechado e inacessível. Assim, a tarefa do historiador é, na

30
Nome que vem de Adolfo Scilingo, ex-capitão da Marinha, condenado a cumprir pena de 640
anos por crimes contra a humanidade durante a ditadura argentina.
31
O qual, ao assim se portar, se identifica sempre com os vencedores do turno, como escreve
Jeanne Marie Gagnebin (2018, p. 66, grifos da autora): “O autor historicista, para Benjamin, se
identifica sempre com o vencedor, na medida em que, ‘pela força das coisas’, é sobre este que
existe o maior número de testemunhos e documentos. Essa marcha de vitória a vitória, de triunfo
a triunfo, é assimilada ao desenvolvimento necessário da história, como se necessidade histórica e
realização efetiva fossem sinônimos”.

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verdade, a de “saber ler e escrever uma outra história, uma espécie de anti-história, uma
história a ‘contrapelo’, como diz, ou ainda a história da barbárie, sobre a qual se impõe a
da cultura triunfante” (GAGNEBIN, 2018, p. 66), ou seja, a sua tarefa é a de redimir o
passado, buscando-o, abrindo-o, salvando-o, em uma descoberta que possibilite a
redenção dos humilhados, dos desaparecidos, dos mortos, dos torturados, dos
esquecidos.
Como escreve Benjamin na Tese VII, o historiador deve “escovar a história a
contrapelo”,32 não aderindo ao triunfalismo do presente, pois, sendo os bens culturais do
presente o resultado de uma opressão e de uma dominação plenamente realizadas no
passado, “Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um
documento da barbárie” (BENJAMIN, 2005, p. 70). Trata-se, portanto, de se voltar à
história em prol da verdade e da memória. Assim, contra a violência e a injustiça do
esquecimento, as palavras de Jeanne Marie Gagnebin (2010, ps. 185-186, grifo nosso):
Esse passado que insiste em perdurar de maneira não reconciliada no
presente, que se mantém como dor e tormento, esse passado não passa. Ele
ressuscita de maneira infame nos inúmeros corpos torturados e mortos,
mortos muitas vezes anônimos, jogados nos terrenos baldios ou nas
caçambas de lixo, como foi o caso dos três jovens do morro da Providência no
Rio, em julho de 2008. O silêncio sobre os mortos e torturados do passado, da
ditadura, acostuma a silenciar sobre os mortos e torturados de hoje. Todos
encarnam, mesmo que sob formas diversas, a figura sinistra “daquele que é
reduzido à vida nua, isto é, de um homem que não é mais homem’ – ou
melhor, que pode ser morto sem que seu assassinato seja castigado”, assim a
definição do Homo sacer por Giorgio Agamben. O não saber sobre os mortos
do passado instaura na memória um lugar de indeterminação cuja
transposição atual se encontra nesses espaços indeterminados de exceção,
situados no próprio seio do corpo social – e cuja existência nem sequer é
percebida. Podemos citar Guantánamo, mas também lugares ditos mais
‘normais’ como os campos de refugiados, as salas de espera para os
clandestinos nos aeroportos e, quem sabe, as assim chamadas periferias das
grandes cidades.

As considerações sobre a história em Foucault e Benjamin, mas também a partir


de uma reflexão sobre a política contemporânea em Giorgio Agamben, parecem, desta
maneira, se coadunar inteiramente com os propósitos da justiça de transição, na medida
em que promovem uma volta redentora ao passado, não de maneira inócua e inerte, mas

32
Pois, como diz Benjamin (2005, p. 70), sobre a continuidade da opressão no presente, “Todo
aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no cortejo de triunfo que conduz os
dominantes de hoje [a marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra”.

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de modo a resgatar a memória do esquecimento e, assim, contribuir para o


enfrentamento das lutas, necessidades e crises do presente.
Mas, no que tange à transição brasileira, como diz Glenda Mezarobba (2010, p.
12), está claro de que ela foi promovida justamente para evitar que o que hoje se
convencionou chamar de mecanismos de justiça de transição pudessem ter tido lugar no
início da gestão civil. Esquecimento este que, como se viu, se deu principalmente por meio
da Lei de Anistia, a qual, produto do estado de exceção então vigente, foi considerada
“recíproca” (referindo-se não somente às vítimas do regime opressor, mas também aos
próprios opressores). Desta forma, apesar da lei não ter anistiado os crimes dos
torturadores e de seus mandantes, na prática acabou impedindo que eles fossem levados
a julgamento, devido a uma redação ambígua e uma conveniente interpretação, mediante
a qual considerou-se a tortura como um crime conexo aos crimes políticos cometidos
pelos dissidentes, de tal forma que lhes foram garantidas a impunidade (TELES, 2011, p.
114).
A Lei da Anistia ficou, portanto, radicalmente distante de se associar aos
objetivos que envolviam o seu movimento reivindicatório e sequer atendeu as principais
reclamações dos perseguidos políticos, frustrando uma verdadeira luta, a qual começou
a ser travada quinze anos antes da promulgação da lei e que paulatinamente passou a
envolver e mobilizar grande parte da sociedade brasileira. Ficaram excluídas do escopo
da legislação determinadas manifestações de oposição ao regime, classificadas como
terrorismo e práticas enquadradas em atos de exceção, como os chamados crimes de
sangue [novamente, que atingiram apenas a oposição, mas não os próprios agentes
criminosos de Estado], e foram contemplados apenas aqueles indivíduos que não haviam
sido condenados previamente pela ditadura, a qual duraria ainda mais seis anos
(MEZAROBBA, 2010, p. 10).
Desta forma, ao invés de uma verdadeira justiça de transição, o que ocorreu no
Brasil foi apenas uma lenta transição democrática negociada, uma espécie de “acordo”
entre elites, que
[...] pode ser resumido como um compromisso dos militares de se retirarem
gradualmente da política, retraindo-se até o ponto de seu papel político do
início da República: a de garantidores, em última instância, de ordem pública,
ou seja, da estabilidade das instituições políticas republicanas. Por sua vez, as
elites civis aceitariam os termos da avaliação feita pelos militares a respeito
do período pós-64: tratou-se de um período excepcional, em que os militares

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intervieram na política para “salvar” as instituições republicanas, no qual


houve ações “excessivas” cometidas de parte a parte (leia-se dos militares e
dos militantes de esquerda). Para o encerramento desse período, deveria
haver o “perdão recíproco”, sem a apuração das violações, nem mesmo com
o objetivo humanitário de fornecer às vítimas e seus familiares relatos para
que pudessem conhecer e elaborar a memória daqueles acontecimentos ou
para recuperar os corpos das pessoas mortas ou desaparecidas. Esse limite
tinha o evidente objetivo de evitar que fossem levantadas informações sobre
os agentes das violações (IBCCRIM; SABADELL; ESPINOZA MAVILLA, apud
MEZAROBBA 2010, p. 11).

Claramente, o acordo nacional em torno de uma pacificação em direção à


democracia não passou de uma imposição do governo militar, no desiderato de deixar
impunes os agentes públicos responsáveis por crimes como tortura, assassinatos,
desaparecimentos forçados, dentre outros. O único pré-compromisso aqui vislumbrado,
pode-se dizer, é aquele que garante aos torturadores a anistia irrestrita, um acordo entre
a “linha dura” dos militares e o governo para impor um silêncio sobre o passado, uma
verdadeira regra-mordaça, a qual continuaria a surtir seus efeitos amnésicos anos a fio33
(CHUERI; CÂMARA, 2015, p. 278).
Isso não significa, no entanto, que não existiram esforços que sucederam em
conseguir, em alguma medida, reparações para as vítimas e seus familiares, ao longo do
fim da ditadura até a contemporaneidade. Importantes iniciativas existiram,
especialmente em tempos mais recentes, e merecem ser aqui citadas: a Lei da Anistia
(que, apesar de todos os seus problemas, permitiu o retorno daqueles que estavam vivos
e, assim, puderam retornar do exílio); a Comissão de Mortos e Desaparecidos (1995); a
edição da Lei n. 10.559/2002, que deu início a várias atividades ligadas à memória e à
verdade; a Comissão de Anistia (2001-2009); e, por fim, os trabalhos da Comissão
Nacional da Verdade (CNV), que, após dois anos e sete meses intensos de trabalho,
entregou seu relatório final. O relatório final tem três volumes, sendo que o primeiro
relaciona-se às atividades da Comissão, versando sobre as graves violações de direitos
humanos e recomendações; o segundo é dedicado aos textos dos grupos de trabalho e

33 Opção, vale lembrar, escolhida e reforçada novamente pelo judiciário brasileiro. O Supremo Tribunal
Federal, convocado a analisar sobre uma possível revisão da Lei da Anistia, por meio da Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental 153, em 2010, acabou optando mais uma vez pela tese do
esquecimento. Mas, por outro lado, como se sabe, “[...] a Corte Interamericana não só não reconheceu os
efeitos jurídicos da lei [de Anistia] como condenou o Estado brasileiro por não ter investigado nem punido os
responsáveis pelos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento forçado durante a repressão a um foco
de guerrilha rural no período 1972-1974” (GÓMEZ, 2012, p. 272).

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comissões internas da CNV (tratam sobre diferentes temas: militares, trabalhadores,


indígenas, mulheres, homossexuais, universidades, igrejas, dentre outros); e o terceiro
volume, por sua vez, concerne às 434 vítimas reconhecidas, de acordo com os estudos
atuais, da repressão do Estado. Sabe-se, no entanto, que este número é muito inferior ao
número real de vítimas, especialmente levando em consideração os desaparecidos no
período da ditadura (BITTAR, 2017, ps. 399-401).
A existência da CNV foi extremamente importante por ter consolidado um
mecanismo de justiça de transição, um efetivo e significativo mecanismo, pois inscreve na
história institucional do país uma parte da memória da repressão ocorrida. O Relatório
Final trouxe também Conclusões e Recomendações, no qual se pode ler que durante o
regime civil-militar brasileiro foram inegavelmente cometidos: a prática sistemática de
detenções ilegais e arbitrárias, a tortura, o cometimento de execuções, desaparecimentos
forçados e a ocultação de cadáveres por agentes do Estado brasileiro; a repressão e
eliminação de opositores políticos, convertidos em política de Estado, concebida e
implementada a partir de decisões emanadas pela presidência da República e dos
ministérios militares, logo, uma ação generalizada e sistemática do Estado brasileiro;
condutas ilícitas que se enquadram como crimes contra a humanidade, os quais se
configuram por serem atos desumanos, cometidos em contexto de ataque contra a
população civil, de forma sistemática ou generalizada e com o conhecimento dessa
abrangência por parte de seus autores, como as detenções ilegais e arbitrárias, a tortura,
as execuções, os desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres, os quais
atingiram homens, mulheres, crianças, adolescentes e idosos, vinculados aos mais
diferentes grupos sociais, como trabalhadores urbanos, camponeses, estudantes,
clérigos, dentre tantos outros; graves violações de direitos humanos, portanto, as quais
persistem sistematicamente até os dias atuais, e que resultam, em grande medida, do
fato de que as imensas violações cometidas no passado não foram verificadas, nem
adequadamente denunciadas, nem seus autores responsabilizados, criando, assim,
condições para sua perpetuação (BRASIL, 2014, ps. 962-964).
Mas - e esta é a petitio principii deste ensaio, a qual espera-se ter sido
confirmada -, apesar de todos os avanços, considera-se que, de modo geral, a justiça

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transicional no país foi altamente insuficiente e deficitária.34 O eco da voz dos mortos e
desaparecidos que nunca serão encontrados, a injustiça da impunidade dos criminosos
do regime ilegal, a indevida reparação das vítimas e seus familiares, em suma, a insidiosa
violência da amnésia coletiva, permite que toda a opressão do passado continue
ressoando no presente. Porém, o problema não é apenas este, pois, segundo Safatle
(2018, ps. 59-60), o Brasil é antes de tudo uma forma de violência, um país fundado por
um tipo de violência que funciona na base da administração do desaparecimento e do
direito de matar. Esta é a sua verdadeira forma de governo, uma atualização do secular
poder soberano e seu direito de vida e morte. Conforme diz o autor, essa lógica encontrou
sua forma mais bem-acabada no governo na ditadura militar, mas não se restringe apenas
a ela:
Pois a ditadura militar brasileira foi a consolidação de um modelo de gestão
sempre presente na história nacional, mas que a partir de então ganharia
estruturas e aparatos institucionais que se mostraram invulneráveis, mesmo
em tempos de “redemocratização”. Este é um dos pontos mais
impressionantes dos últimos trinta anos no Brasil, a saber, a maneira como
suas políticas de desaparecimento permaneceram intocadas, seja nos
governos FHC, seja nos governos Lula e Dilma. Não foi apenas uma lógica de
“segurança nacional” que ficou imune a toda revisão. Foi a natureza do Estado
brasileiro e de seu direito de vida e morte sobre a população que pairou para
além das modificações político-eleitorais. Os governos passaram, mas a
gestão do desaparecimento ficou (SAFATLE, 2018, ps. 60-61).

A nosso ver, uma das principais causas desta continuidade da violência


relaciona-se precisamente com o obsoleto processo transicional pelo qual o país passou,
isto é, pela quase inexistente adoção e aplicação das medidas propostas pela justiça de
transição no país após a redemocratização. O que fica comprovado, por sua vez,
sobretudo pelo fato de que, como aponta Safatle, (2018, p. 65), o Brasil foi o único país
da América Latina no qual os casos de tortura aumentaram em relação à ditadura
militar,35 o que, para ele, serve como “Prova maior da generalização de um modus

34 Nesse sentido, José Maria Goméz (2012, p. 272): “De todo modo, após 26 anos de iniciada a
redemocratização do sistema político, e em razão de um conjunto de características singulares (transição
pactuada sob forte tutela militar, continuísmo e nula vontade política das elites dominantes de revisar o
passado, resistência ostensiva das Forças Armadas, isolamento social e político dos organismos de direitos
humanos, estendida cultura do esquecimento, etc.), o Brasil continua a ser, sobretudo quando comparado a
outros países do Cone sul, o processo mais impune e amnésico da região”.
35 Em relação a isto, é especialmente importante os estudos da cientista política norte-americana Kathryn

Sikkink, da universidade de Minnesota. De acordo com a sua pesquisa, realizada em diversos países, dentre
eles o Brasil, contrariamente ao corrente argumento de que a retomada dos crimes do passado cometidos
por regimes ditatoriais poderiam ser danosos às instituições democráticas, diz a autora que “Our research

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operandi de exceção agora aplicado de maneira ostensiva à gestão social da população”


(SAFATLE, 2018, p. 65).
Pois, se a justiça de transição poderia sobremaneira ter colaborado com nosso
processo transicional, isto se dá porque, como visto, dentre as tarefas da justiça de
transição, a qual se instaura sempre após situações de conflito e de violações em massa
de direitos humanos, encontram-se: a instauração de políticas de verdade, formação e
informação; políticas de julgamento e responsabilização; políticas de reparação e
memória; políticas, em suma, que são fundamentais para a construção de um processo
de “não retorno” e de uma cultura política contrária à possibilidade de lesões irreparáveis
tornarem-se mera expressão do arbítrio do governo, o qual possui a desproporcional
força do aparato do Estado e o monopólio da “violência legítima”. Afinal, mais que um
dever do Estado Democrático, é um direito da sociedade conhecer sua própria história36
e, desta maneira, com o conhecimento dos arquivos, a visibilização dos fatos ocorridos, a
restauração dos resistentes e de seus familiares, a incriminação dos atos e a reparação
dos danos, parcelas significativas do processo de convívio com a verdade podem surgir
efetivamente uma educação para o não retorno (BITTAR, 2017, ps. 397-398).
Talvez não haja, de fato, em termos de necessidade programática, nenhum
imperativo mais necessário que este, o de uma educação para o não retorno, uma
educação eminentemente crítica, avessa à continuidade da violência e da barbárie. Pois,
conforme assinala Eduardo Bittar (2014, ps. 13-14), diante deste complexo caldo
histórico, permeado de autoritarismo, desigualdade e violência, não bastam a pura
postura do cultivo da impessoalidade da legislação e a universalidade dos valores liberais.
Pensar o desafio democrático exige, necessariamente, o cultivo de valores que permitam
a potencialização de novos patamares de socialização, o que implica uma dimensão

shows that holding human rights trials has not undermined democracy or led to an increase in human rights
violations or conflict in Latin America” (SIKKINK; WALLING, 2007, p. 428). E, mais especificamente, de maneira
a corroborar nosso argumento quanto a localização da manutenção e aumento da violência no Brasil tendo
como uma de suas mais eminentes e prováveis causas nosso deficitário e virtualmente inexistente processo
transicional, escreveu a autora o seguinte, em The Justice Cascade: How Human Rights Prosecutions Are
Changing World Politics: “In Brazil, for example, the lack of any punishment for past state officials for
violations during the dictatorship may have contributed to an atmosphere of impunity that feeds continuing
high levels of violations there today. Brazil is one of the few democratic countries in the region that receives
worse human rights scores today than it did during the military government” (SIKKINK, 2011. p. 158).
36 Especialmente tendo em vista que, conforme salienta Cláudia Perrone-Moisés (2012, p. 82), “O

conhecimento de sua história pertence ao patrimônio comum de cada povo e, a memória coletiva, sendo
socialmente construída, deve ser garantida e protegida por essa mesma sociedade. A memória é um bem
comum, um dever jurídico, moral e político”.

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central para esta educação, na medida que, ao afirmar a importância da consciência


crítica e histórica, plena de memória da ausência de cidadania, representa uma reação ao
modelo de sociedade que consente com a cotidianidade da barbárie.37
Assim, e somente assim, poderemos nos encaminhar para uma efetiva e
verdadeira reconciliação, possibilitando que identifiquemos as mais diferentes
manifestações negativas de toda uma detestável herança para, desta forma, frustrar a
profecia da violência sem trauma e conseguir também, quem sabe, definitivamente, nos
livrar do que resta da ditadura.

5. Considerações finais

A justiça transicional refere-se à concepção de justiça associada a períodos de grande


mudança política, mais especificamente à transição de regimes violentos e opressores,
como regimes ditatoriais, nos quais se verificam sistemáticos abusos de direitos humanos,
atrocidades em massa ou outras formas de trauma social, como o genocídio e a guerra
civil, para regimes democráticos, e às respostas que podem e devem ser dadas no âmbito
jurídico para enfrentar os crimes cometidos por estes regimes.
Com essa finalidade, foi desenvolvida pela teoria e prática internacional,
segundo uma divisão genealógica de diferentes ciclos e etapas críticas, uma série de
estratégias que os Estados devem adotar no sentido de promover uma transição bem-
sucedida, isto é, de uma maneira na qual certos requisitos de justiça sejam cumpridos,
para que se alcance uma possível pacificação e reconciliação. Dentre estas estratégias,
encontram-se, entre as principais: a identificação e julgamento dos perpetradores de
abusos de direitos humanos; o estabelecimento de formas de investigação do passado,
como as comissões da verdade; o desenvolvimento de programas de reparação para as
vítimas e os familiares das vítimas de abusos; iniciativas de memória e lembrança das

37 Barbárie que está sempre presente; seja aquela verificada nos lagers nazistas, seja aquela dos porões da
ditadura, mas que, de toda forma, ecoa no relato de Theodor Adorno (1995, p. 119): “A exigência que
Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. [...] Qualquer debate acerca de metas
educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a
barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se
trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem
no que têm de fundamental as condições que geraram esta regressão. É isto que apavora”.

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vítimas; a promoção de reformas e expurgos nas instituições públicas responsáveis pelos


abusos, como a polícia e as forças armadas; dentre outros, sempre com o foco na
reparação das injustiças do passado e na tentativa de prevenção contra futuras violações.
No âmbito da justiça transicional, uma característica fica imediatamente
latente: para uma transição adequada, o que não pode ocorrer de maneira alguma são
processos que impliquem no mero esquecimento. Nesse sentido, o caso brasileiro se
mostra paradigmático, tendo em vista que o Brasil foi o Estado que realizou de maneira
mais profícua a profecia da violência sem trauma aparente: após 21 anos de atuação de
uma ditadura civil-militar instalada após um golpe de Estado, a qual, utilizando-se de uma
legalidade e diversos mecanismos de exceção, promoveu um assalto altamente violento
e sistemático contra a própria população, com o cometimento de diversos crimes, como
a censura, o exílio, o sequestro, a tortura, o estupro, a execução sumária, o
desaparecimento forçado e a ocultação de cadáver, ao invés de se buscar meios de
reparação das vítimas, de persecução dos agentes de estado criminosos e da
reconstituição da verdade e da memória... Silêncio. Apenas uma anistia “ampla, geral e
irrestrita”, para opressores e oprimidos, e uma absoluta amnésia coletiva.
Por meio da tese de que o esquecimento seria o doloroso preço a pagar por uma
reconciliação possível e para o retorno à democracia, uma transição negociada e
extorquida foi promovida, a qual se deu por meio da Lei da Anistia, uma verdadeira
autoanistia promovida pelo regime ilegal antes deste deixar o poder. Desta forma, o
caminho escolhido pelo país contrariou todas as ambições, das mais modestas até as mais
ambiciosas, da justiça de transição. Como resultado, verifica-se um saldo de históricas e
irreparadas injustiças, da impossibilidade de exorcismo de um sempiterno autoritarismo
nas relações sociais no Brasil, da normalização da violência e dos expedientes da ditadura,
a exemplo da tortura, no cotidiano da democracia brasileira.
Importantes avanços foram promovidos nos últimos anos, porém, perpetua-se
ainda um resto altamente insidioso e perigoso da ditadura, o qual necessita ser
inteiramente abolido, para que novos caminhos no sentido da democracia, do respeito da
alteridade e de maiores níveis de justiça social sejam, finalmente, alcançados. Isto,
todavia, somente poderá ser alcançado se a memória dos abusos do passado forem
devidamente reparadas, se as vozes dos humilhados e oprimidos saltarem da escuridão
dos porões da ditadura para a claridade da memória e da verdade, se uma educação para

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o não retorno for efetivamente imposta, a partir da valorização da democracia e do


respeito aos direitos humanos. E, nesse desiderato, conforme o exposto neste ensaio,
parece que a justiça transicional tem muito a oferecer.

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Sobre o autor

André Simões Chacon Bruno


Mestre e Doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP). E-mail: andrescbruno@gmail.com

O autor é o único responsável pela redação do artigo.

Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N. 1, 2022, p. 01-43.


André Simões Chacon Bruno.
DOI: 10.1590/2179-8966/2020/49027| ISSN: 2179-8966
A INCLUSÃO VEIO PARA FICAR: O DIREITO ANTIDISCRIMINATÓRIO PÓS-
ADI 5357 E A EDUCAÇÃO INCLUSIVA COMO DIREITO DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA

R: 13.05.2016; A: 23.06.2016 Bruno Galindo*


RESUMO: O presente trabalho versa sobre o direito antidiscriminatório, expondo sua
definição conceitual e sua importância no contexto da defesa dos direitos da pessoa com
deficiência. Com essa perspectiva, aborda a tormentosa questão do direito à educação da
pessoa com deficiência, com especial destaque para o recente julgamento do Supremo
Tribunal Federal da ADI 5357, ocasião em que a Corte declarou a constitucionalidade dos
dispositivos da Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência) que estendem
às escolas privadas as obrigações referentes à promoção da educação inclusiva.

Palavras-chave: Pessoa com Deficiência. Educação Inclusiva. Direito Antidiscriminatório.


Direito à Educação.

INTRODUÇÃO

O presente ensaio tem por objetivo analisar o conjunto de proposições jurídicas


que em outra oportunidade denominei de direito antidiscriminatório (GALINDO, 2015, p. 43
51.), dentro da perspectiva da afirmação dos direitos de um segmento específico de pessoas
vulneráveis, o das pessoas com deficiência, mais especificamente sobre a recente decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal no dia 9 de junho de 2016 na Ação Direta de
Inconstitucionalidade n° 5357, Ação esta proposta pela CONFENEN (Confederação Nacional
dos Estabelecimentos de Ensino) que objetivava deixar as escolas privadas brasileiras livres
de obrigações como a garantia de matrícula de alunos com deficiência e a ausência de
cobrança de valores pecuniários superiores aos dispendidos pelos responsáveis por alunos sem
deficiência.

1 DIREITO ANTIDISCRIMINATÓRIO: UMA PERCEPÇÃO INICIAL

Um dos permanentes desafios da efetividade dos direitos humanos, não somente


aqui no Brasil, mas em muitos países do mundo, é o seu aspecto cultural. Tanto menos
ocorrem pretensões dessa natureza quanto mais possa ser sólida uma cultura jurídica e

*
Professor Associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco; Doutor em
Direito pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal (PDEE); Conselheiro Estadual e Presidente da Comissão
de Direitos Humanos da OAB/PE. E-mail: brunogalindo@uol.com.br.
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
A inclusão veio para ficar: o direito antidiscriminatório pós-ADI 5357 e a educação inclusiva como direito da
pessoa com deficiência
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constitucional humanista e democrática, na qual a força normativa da constituição seja


correspondente à generalização congruente das expectativas normativas (fazendo aí uma
junção de Konrad Hesse e Marcelo Neves e, por que não dizer, também de Karl
Loewenstein), situação em que diminui a possibilidade de pretensões flagrante e
pejorativamente discriminatórias (HESSE, 1991; LOEWENSTEIN, 1964; NEVES, 2007).
Em tal perspectiva, o princípio da igualdade não pode ser pensado apenas a partir
dos paradigmas da igualdade formal. Nem mesmo a igualdade material é suficiente, sendo
imprescindível compreendê-lo a partir da diferença e das perspectivas teóricas em torno da
não discriminação pejorativa e das possibilidades de discriminação reversa ou positiva.
Pode-se afirmar que se encontra em construção teórica (e por que não dizer,
cultural), com avanços e percalços a depender do país e comunidade dos quais tratemos, uma
espécie de direito antidiscriminatório, que consiste em tentativas pelas vias legislativa,
administrativa e jurisprudencial, bem como com as reflexões doutrinárias, de minimizar
vulnerabilidades de grupos sociais que sofrem discriminações em razão de suas condições
específicas. Como afirmei em outra oportunidade, o direito antidiscriminatório pode ser
conceituado como:
44

[...] um conjunto de medidas jurídicas em âmbito constitucional e infraconstitucional


que almeja reduzir a situação de vulnerabilidade de cidadãos e grupos sociais
específicos através da proibição de condutas discriminatórias pejorativas, a exemplo
da criação e manutenção de privilégios injustificáveis à luz das contemporâneas
teorias da justiça, e, por outro lado, da implementação, quando necessário, de
políticas públicas de discriminação reversa ou positiva, sempre no sentido de
promover tais grupos e cidadãos a uma situação de potencial igualdade
substancial/material, políticas estas normalmente transitórias até que se atinja uma
redução significativa ou mesmo extinção da vulnerabilidade em questão
(GALINDO, 2015, p. 51).

Os avanços desse direito antidiscriminatório têm exigido dos intérpretes


constitucionais uma permanente disposição de se repensar o princípio da igualdade,
fortalecendo seus aspectos materiais justificadores de, por um lado, a coibição de ações de
discriminação negativa ou pejorativa, e, por outro, da promoção de ações de discriminação
positiva, quando estas se fazem necessárias. Como desdobramentos do primeiro tipo, há, p.
ex., as diversas formas de combate ao racismo e à homofobia no plano de se impedir acesso
aos mesmos bens jurídicos por parte de pessoas socialmente discriminadas por essas razões, a
exemplo de importantes decisões como o paradigmático Acórdão do STF na ADI 4277,
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
Bruno Galindo
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quando o Tribunal decidiu pela constitucionalidade das uniões estáveis entre pessoas do
mesmo sexo. Em relação ao segundo tipo, há a necessidade de promoção de políticas públicas
que viabilizem o acesso dessas pessoas a bens jurídicos diversos, corrigindo desigualdades
concretas através de medidas de justiça corretiva, evocando mais uma vez uma importante
decisão da Corte suprema brasileira, quando decidiu pela constitucionalidade das políticas de
ação afirmativa referente às cotas raciais no acesso à universidade pública, em mais um
Acórdão paradigmático, desta vez na ADPF 186.
Não há dúvida de que essa discussão é amplamente influenciada pelo debate
político-jurídico dos EUA a partir dos anos 70 do século passado. Tendo em vista
inicialmente a questão racial e as ações afirmativas pertinentes, jusfilósofos norte-americanos,
a exemplo de John Rawls e Michael Walzer, debatem o princípio da igualdade como definidor
das liberdades individuais fundamentais, calibrado por outro princípio de justiça, o princípio
da diferença, com a ideia básica da equitativa igualdade de oportunidades (RAWLS, 1997, p.
64; WALZER, 2003, p. 17). Essas discussões são ampliadas nas décadas seguintes
envolvendo outros fatores relativos a esse debate igualdade/diferença, tais como gênero,
pobreza/miserabilidade, orientação sexual, cultura, assim como a deficiência.
E esse último ponto é o que almejamos debater do direito antidiscriminatório: o 45
seu alcance no âmbito dos direitos da pessoa com deficiência.

2 O DIREITO ANTIDISCRIMINATÓRIO NO CONTEXTO DOS DIREITOS DA


PESSOA COM DEFICIÊNCIA: EDUCAÇÃO INCLUSIVA COMO DIREITO
FUNDAMENTAL

O tratamento teórico e analítico das questões relativas à pessoa com deficiência


variou ao longo do tempo e o direito antidiscriminatório também reflete essas percepções.
Deixando de lado concepções desumanas de outrora que tratavam a pessoa com
deficiência como socialmente inválida, castigada por Deus, possuída pelo demônio e outras,
pode-se afirmar que a humanização do tratamento da questão inicia com o denominado
modelo médico, sendo posteriormente repensada a partir dos novos paradigmas do modelo
social ou mesmo, para alguns, na existência de um modelo pós-social, que seria o da
diversidade.
O modelo médico tem por característica central a descontextualização da
deficiência, enfocando-a como um incidente específico, relacionando-a como um problema do
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 6, n. 12, p.
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
A inclusão veio para ficar: o direito antidiscriminatório pós-ADI 5357 e a educação inclusiva como direito da
pessoa com deficiência
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indivíduo que a possui. Objetiva a homogeneidade e a deficiência é vista como semelhante a


um problema de saúde que necessita de tratamento almejando a ―normalidade‖ dessa pessoa,
quando possível. É um problema essencialmente do próprio indivíduo ou, no máximo, de sua
família, que devem se adaptar às demandas da sociedade para tais pessoas ou conviver com
isso (Conferir SEGALLA, 2012, p. 131; FERRAZ; LEITE, 2015a, p. 94-95).
Por sua vez, o modelo social, inspirador da Convenção de Nova York, valoriza,
sobretudo, a perspectiva de que o problema da deficiência não é somente do indivíduo ou da
família, mas da sociedade como um todo. Parte da premissa de que os problemas e
dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência são principalmente o resultado do
modo pelo qual a sociedade lida com as limitações de tais indivíduos (SEGALLA, 2012, p.
131; FERRAZ; LEITE, 2015a, p. 94-95). A exclusão da pessoa com deficiência de seus
direitos é fruto em substancial medida dos fatores ambientais e culturais, inadaptados a
garantir tais direitos, já que edificados para o ―homem normal‖, invisibilizando os
―diferentes‖ (CUENCA GÓMEZ, 2012 p. 116).
No plano da deficiência, pensar um direito antidiscriminatório a partir de todas
essas contribuições levou a que, no plano internacional, 101 Estados soberanos aprovassem
em 2007 a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (também conhecida como 46

Convenção de Nova York). O Brasil também é signatário da referida Convenção, concluindo


sua aprovação interna em 2009 com um detalhe de extrema relevância: a referida Convenção
foi o primeiro (e até agora, único) tratado internacional de direitos humanos aprovado e
ratificado pelo critério estabelecido no art. 5º, § 3º, da Constituição da República, dispositivo
que afirma o caráter de Emenda à Constituição de qualquer tratado de direitos humanos que
seja aprovado no âmbito interno pelos mesmos critérios de aprovação das Emendas. Faz parte,
portanto, a Convenção de nosso denominado ―bloco de constitucionalidade‖, uma tendência
que se acentua, corroborada por decisões do STF (RE 482611/SC e ADI 514/PI) (GALINDO,
2012, p. 101).
A Convenção de Nova York, atualmente norma constitucional no Brasil, é
claramente influenciada por esse ambiente político-jurídico antidiscriminatório e incorpora o
que há juridicamente de mais avançado a respeito. Dentre outras coisas, supera o referido
modelo médico, no qual a deficiência é pensada como ―doença‖ a ser curada, e adota o
modelo social, que implica na compreensão de que a deficiência é, antes de tudo, uma
característica da pessoa (o próprio termo ―pessoa com deficiência‖ em vez de ―deficiente‖, é
um símbolo claro dessa evolução) e faz parte da diversidade humana.
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
Bruno Galindo
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Na questão educacional, pode-se afirmar que a compreensão iria até mais além,
dentro da perspectiva daquilo que autores como Rafael de Asís Roig, Agustina Palacios e
Javier Romañach identificam como ―modelo da diversidade‖, uma evolução do modelo social
que acarreta na compreensão da deficiência como fator enriquecedor da própria vida em
sociedade (CUENCA GÓMEZ, 2012, p. 117).
Isso quer dizer, essencialmente, que a convivência em uma escola de qualquer
tipo entre alunos com e sem deficiência não é benéfica somente ao primeiro; traduz-se, sim,
em uma perspectiva educacional de aprendizado recíproco, de educação inclusiva para a vida,
de exercício da cidadania, de compreensão de limites e possibilidades dos indivíduos a partir
de suas singularidades.
O Estatuto da Pessoa com Deficiência, que iniciou sua vigência em janeiro de
2016, é basicamente um desdobramento de todas essas concepções, sendo em alguns pontos
uma consolidação da legislação já existente e em outros uma regulamentação da Convenção.
Esta faz referência, em seu art. 24, no direito à educação da pessoa com deficiência sem
discriminação e com base na igualdade de oportunidades e que, para tal, os Estados devem
assegurar em todos os níveis um sistema educacional inclusivo. Trata do sistema educacional
geral, o que inclui as escolas públicas e privadas, pois, embora a estas últimas seja permitida a 47
exploração do serviço educacional no modelo empresarial da livre iniciativa e a
correspondente contrapartida com a cobrança de mensalidades/anuidades pelo serviço
prestado, não se pode desconsiderar que a educação, além de um direito, é também um
serviço público, embora não exclusivo do Estado. Ao explorá-lo, a liberdade das instituições
privadas não é absoluta: precisa se conformar às diretrizes educacionais adotadas pelo poder
público competente, e isso implica não somente o cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação, mas de toda a legislação educacional pertinente, o que inclui o Estatuto da
Pessoa com Deficiência na parte específica, bem como outras Leis, como a 12764/2012 (Lei
Berenice Piana – sobre pessoas com autismo) e a 7853/1989. Assim também, por óbvio, o
cumprimento da Constituição e, repita-se, a Convenção dos Direitos da Pessoa com
Deficiência é norma constitucional.
Em verdade, desde a Carta de 1988, tem sido progressivamente fortalecida no
Brasil a tendência a reconhecer e contemplar os direitos da pessoa com deficiência, sobretudo
para atender às suas necessidades especiais, diversas das do cidadão ―normal‖, para alcançar a
efetiva igualdade de oportunidades e ter acesso aos mesmos bens jurídico-sociais. São

Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 6, n. 12, p.


Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
A inclusão veio para ficar: o direito antidiscriminatório pós-ADI 5357 e a educação inclusiva como direito da
pessoa com deficiência
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condições necessárias ao exercício da cidadania, e para tal, vem se erigindo um significativo


arcabouço de normas jurídicas antidiscriminatórias.
No caso das deficiências estritamente físicas, é generalizada a previsão normativa
do dever de se construir em empreendimentos imobiliários públicos ou privados, p. ex.,
rampas de acessibilidade motora a cadeirantes e vagas preferenciais nos estacionamentos. No
serviço público, é reservado percentual de vagas para a pessoa com deficiência nos concursos
públicos (CRFB/88, art. 37, VIII), ao passo que também as empresas privadas em geral têm
obrigação de cumprimento de cotas de pessoas com deficiência dentre seus funcionários
(CRFB/88, art. 7º, XXXI). É algo praticamente incontroverso na atualidade e não se vê, p. ex.,
decisões judiciais conferindo aos estabelecimentos empresariais privados o ―direito‖ de não
executarem em suas casas e prédios as obras tecnicamente necessárias à acessibilidade: pelo
contrário, isso pode ocasionar até mesmo a não autorização do empreendimento com as
consequências legais adjacentes. É igualmente impensável cobrar-se do cadeirante ou pessoa
com deficiência usuária da obra de acessibilidade valores a mais em razão de sua utilização.
De modo que, como será visto no tópico a seguir, afigura-se até certo modo
estranho que estabelecimentos privados de ensino resolvam pleitear em juízo um ―direito‖ a
discriminar (e aqui minha referência é essencialmente à discriminação negativa, pejorativa, 48

não às discriminações reversas ou positivas)1, mas foi o que ocorreu junto ao Supremo
Tribunal Federal com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5357, de autoria da
Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (CONFENEN).

3 ADI 5357: ENTRE “DIREITO A DISCRIMINAR” E DIREITO


ANTIDISCRIMINATÓRIO. STF E A AFIRMAÇÃO HISTÓRICA DA INCLUSÃO
COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL.

Em verdade, não é exatamente uma novidade a proibição da discriminação escolar


em relação à pessoa com deficiência. Pelo menos desde 1989, a Lei 7853, em seu art. 8°,
expressamente tipifica como crime a recusa de matrícula ao aluno em razão de sua
1
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490.
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
Bruno Galindo
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deficiência, tendo sido, aliás, aumentada a pena com a nova redação dada pela Lei
13146/2015. A Lei 12764/2012 (Lei do Autismo) também prevê punições de caráter
administrativo e a Lei 13146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência ou Lei Brasileira de
Inclusão), além de corroborar com todo o arcabouço legal anteriormente previsto, estende
algumas obrigações pertinentes ao setor privado de ensino e deixa clara a impossibilidade de
se cobrar adicionais para o cumprimento dessas obrigações, principalmente nos arts. 28 e 30.
Esta última Lei ainda previu período de vacatio legis de 180 dias, no intuito de permitir,
dentre outras coisas, que durante esse tempo as escolas particulares pudessem se adaptar à
nova legislação. Ressalte-se ainda que esses dispositivos legais basicamente conferem
aplicabilidade ao art. 24 da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, estipulando
que a obrigação de receber alunos com deficiência é de todas as escolas participantes do
sistema educacional brasileiro, sejam elas públicas ou privadas.
Contudo, em vez de buscar o diálogo com as famílias, entidades representativas
das pessoas com deficiência, órgãos públicos e demais, lamentavelmente a CONFENEN
(Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino), entidade sindical de âmbito
nacional representativa dos estabelecimentos privados de ensino, optou pelo ingresso de Ação
Direta de Inconstitucionalidade requerendo que o STF declarasse a inconstitucionalidade dos 49
arts. 28, § 1º, e 30, caput, da Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13146/2015). Em síntese, a
CONFENEN almejava que a expressão ―privadas‖ deveria ser tida por inconstitucional, pois
essa obrigação afrontaria o direito de propriedade, a sua função social (sic) e a liberdade de
iniciativa do estabelecimento de ensino, além de ser uma obrigação exclusiva do Estado e da
família prover educação para a pessoa com deficiência, não tendo a instituição privada de
ensino nenhuma obrigação a respeito. Resumindo: com o provimento da ADI, os referidos
estabelecimentos estariam livres para recusar as matrículas de alunos com deficiência por
causa desta, cobrar adicionais nas mensalidades para mantê-los na escola e ainda não se
submeterem às regras gerais de atendimento aos alunos com deficiência, preconizadas na LBI.
A ADI recebeu o número 5357, tendo sido protocolada em 4 de agosto de 2015,
portanto, antes mesmo do prazo final da vacatio legis suprarreferida, com a LBI publicada,
mas ainda sem vigência e exigibilidade. A CONFENEN requereu também medida cautelar,
alegando urgência em sua concessão diante das supostas dificuldades de cumprimento dos
dispositivos legais pelos seus representados.
Foi distribuída para Relatoria ao Ministro Edson Fachin que inicialmente
determinou as intimações de praxe e deferiu vários pedidos de integração ao processo de

Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 6, n. 12, p.


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entidades na condição de amicus curiae. Foram elas: Federação Nacional das APAEs
(FENAPAES), Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD),
Associação Nacional do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com
Deficiência (AMPID), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
Associação Brasileira para a Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (ABRAÇA) e
Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Em 18 de novembro de 2015, o Ministro Relator Edson Fachin indeferiu
monocraticamente a medida cautelar requerida, em decisão de 15 páginas, já adentrando com
certa profundidade os fundamentos meritórios, e não somente cautelares procedimentais, da
lide. Sua decisão foi ementada da seguinte forma:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA


CAUTELAR. LEI 13.146/2015. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA.
ENSINO INCLUSIVO. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS
DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INDEFERIMENTO.
1. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência
concretiza o princípio da igualdade como fundamento de uma sociedade
democrática que respeita a dignidade humana.
2. À luz da Convenção e, por consequência, da própria Constituição da República, o
ensino inclusivo em todos os níveis de educação não é realidade estranha ao 50
ordenamento jurídico pátrio, mas sim imperativo que se põe mediante regra
explícita.
3. A Lei nº 13.146/2015 indica assumir o compromisso ético de acolhimento e
pluralidade democrática adotados pela Constituição ao exigir que não apenas as
escolas públicas, mas também as particulares deverão pautar sua atuação
educacional a partir de todas as facetas e potencialidades que o direito fundamental à
educação possui e que são densificadas em seu Capítulo IV.
4. Medida cautelar indeferida.

A decisão monocrática do Ministro Edson Fachin aborda com percuciência as


questões pertinentes à visão de inclusão preconizada pela Convenção de Nova York. Destaca
que a atuação estatal no Brasil não deve dizer respeito apenas à inclusão das pessoas com
deficiência, mas também, em perspectiva inversa, ―ao direito de todos os demais cidadãos ao
acesso a uma arena democrática plural. A pluralidade - de pessoas, credos, ideologias, etc. - é
elemento essencial da democracia e da vida democrática em comunidade‖.
Com especial importância, destaca o art. 24 da Convenção, que trata
especificamente de educação, destacando em especial as seguintes partes:

Artigo 24
Educação
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
Bruno Galindo
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1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação.


Para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de
oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em
todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os
seguintes objetivos:

2. Para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que:


a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral
sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas
do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de
deficiência;
b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de
qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as
demais pessoas na comunidade em que vivem;
[...] Omissis;
d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema
educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;
e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que
maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de
inclusão plena.
3. Os Estados Partes assegurarão às pessoas com deficiência a possibilidade de
adquirir as competências práticas e sociais necessárias de modo a facilitar às
pessoas com deficiência sua plena e igual participação no sistema de ensino e na
vida em comunidade. Para tanto, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas,
incluindo:

A decisão do Ministro Edson Fachin possui outras passagens que merecem


51
referência, especialmente ao fato de contemplarem amplamente os modelos social e da
diversidade anteriormente referidos, apesar da ausência de sua menção expressa. Destacam-
se:

A Lei nº 13.146/2015 estabelece a obrigatoriedade de as escolas privadas


promoverem a inserção das pessoas com deficiência no ensino regular e prover as
medidas de adaptação necessárias sem que o ônus financeiro seja repassado às
mensalidades, anuidades e matrículas.
Analisada a moldura normativa, ao menos neste momento processual, infere-se que,
por meio da lei impugnada, o Brasil atendeu ao compromisso constitucional e
internacional de proteção e ampliação progressiva dos direitos fundamentais e
humanos das pessoas com deficiência.
Ressalte-se que, não obstante o serviço público de educação ser livre à iniciativa
privada, ou seja, independentemente de concessão ou permissão, isso não significa
que os agentes econômicos que o prestam o possam fazê-lo ilimitadamente ou sem
responsabilidade.
É necessária, a um só tempo, a sua autorização e avaliação de qualidade pelo Poder
Público, bem como o cumprimento das normas gerais de educação nacional - as que
se incluem não somente na Lei nº
9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB), como pretende a
Requerente, mas também aquelas previstas pela própria Constituição em sua
inteireza e aquelas previstas pela lei impugnada em seu Capítulo IV -, ambas
condicionantes previstas no art. 209 da Constituição.
Não se pode, assim, pretender entravar a normatividade constitucional sobre o tema
com base em leitura dos direitos fundamentais que os convolem em sua negação.

Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 6, n. 12, p.


Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
A inclusão veio para ficar: o direito antidiscriminatório pós-ADI 5357 e a educação inclusiva como direito da
pessoa com deficiência
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Nessa linha, não se acolhe o invocar da função social da propriedade para se negar a
cumprir obrigações de funcionalização previstas constitucionalmente, limitando-a à
geração de empregos e ao atendimento à legislação trabalhista e tributária, ou, ainda,
o invocar da dignidade da pessoa humana na perspectiva de eventual sofrimento
psíquico dos educadores e “usuários que não possuem qualquer necessidade
especial”. Em suma: à escola não é dado escolher, segregar, separar, mas é seu
dever ensinar, incluir, conviver.
Ademais, o enclausuramento em face do diferente furta o colorido da vivência
cotidiana, privando-nos da estupefação diante do que se coloca como novo, como
diferente. Esse estranhamento ―não pode nos
imobilizar em face dos problemas que enfrentamos relativamente aos direitos
humanos, isto é, ao direito a ter direitos, ao contrário, o estranhamento deve ser o
fio condutor de uma atitude que a partir da vulnerabilidade assume a única posição
ética possível, a do acolhimento.‖ (CHUEIRI, Vera Karam de; CÂMARA, Heloísa.
Direitos Humanos em movimento: migração, refúgio, saudade e hospitalidade,
Revista Direito, Estado e Sociedade (PUC-RJ), Vol. 45, 2014. p. 174).
A Lei nº 13.146/2015 parece justamente assumir esse compromisso ético de
acolhimento quando exige que não apenas as escolas públicas,
mas também as particulares deverão pautar sua atuação educacional a
partir de todas as facetas e potencialidades que o direito fundamental à
educação possui e que são densificadas em seu Capítulo IV.
Como não é difícil intuir, a capacidade de surpreender-se com, na e pela alteridade,
muito mais do que mera manifestação de empatia, constitui elemento essencial para
um desarmado - e verdadeiro – convívio e também debate democrático. Nesse
sentido e ainda na toada da Professora Vera Karam de Chueiri ao tratar da
hospitalidade, parece evidenciar-se que somente ―no desestabilizar das certezas – de
exclusão – surge a necessidade do encontro, do abraço, de ver os olhos de quem só
se vê através da mediação de números‖ (CHUEIRI, Vera Karam de; CÂMARA,
Heloísa. Direitos Humanos em movimento: migração, refúgio, saudade e
hospitalidade, Revista Direito, Estado e Sociedade (PUC-RJ), Vol. 45, 2014. p. 52
174).
Para além de vivificar importante compromisso da narrativa constitucional pátria -
recorde-se uma vez mais a incorporação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas
com Deficiência pelo procedimento previsto no art. 5º, §3º, CRFB - o ensino
inclusivo milita em favor da dialógica implementação dos objetivos esquadrinhados
pela Constituição da República.
É somente com o convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento que
pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o bem de
todos seja promovido sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação (Art. 3º, I e IV, CRFB).

Embora a análise do Ministro Relator em princípio devesse ser acerca da


existência do fumus boni juris e do periculum in mora da medida cautelar, a sua
fundamentação adentrou profundamente questões meritórias, o que permitiu de certo modo
antever uma clara tendência do referido Ministro em decidir o mérito do mesmo modo, o que
terminou por se verificar.
Após ter entrado e saído pauta várias vezes, finalmente no dia 9 de junho de 2016,
veio a decisão do Plenário do STF.2 Manifestaram-se oralmente a CONFENEN, autora da

2
No momento da redação deste ensaio 12 de junho de 2016, o Acórdão ainda não foi publicado, de modo que as
referências feitas à decisão do Pleno da Corte Suprema estão fundamentadas nas informações constantes do
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
Bruno Galindo
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Ação, a Advocacia-Geral da União, a Procuradoria Geral da República e como amicus curiae


o Conselho Federal da OAB e a FENAPAES.
O Ministro Edson Fachin, na condição de Relator, foi o primeiro a se pronunciar.
Em linhas gerais, reiterou a robusta argumentação desenvolvida em sua anterior decisão
monocrática, especialmente a questão da submissão das escolas privadas à LDB e leis gerais
sobre educação, notadamente constitucionais, não podendo a escola ser um espaço de
segregação, mas de inclusão e convivência com a diferença. Pugnou pela conversão do
julgamento da cautelar já em julgamento de mérito, entendendo que o feito já estava
suficientemente maduro para tal. Nessa questão foi acompanhado pelos demais Ministros
presentes.
Em seguida, votou o Ministro Luís Roberto Barroso, que acompanhou o Relator,
destacando especialmente a transformação acerca da interpretação do princípio da igualdade
como reconhecimento aplicável às minorias e à inclusão social da pessoa com deficiência.
Também seguindo o Relator em seu voto, o Ministro Teori Zavascki destacou
que:

Uma escola que se preocupe além da questão econômica, em preparar os alunos para 53
a vida, deve na verdade encarar a presença de crianças com deficiência como uma
especial oportunidade de apresentar a todas, principalmente as que não têm
deficiências, uma lição fundamental de humanidade, um modo de convivência sem
exclusões, sem discriminações em um ambiente de fraternidade (BRASIL, 2016).

Na mesma toada, a Ministro Rosa Weber ressalvou que muitos dos problemas
sociais atuais, como ódio, intolerância e desrespeito com o outro, talvez decorram justamente
da ausência de oportunidade de convivência com a diferença. Também seguiram o voto do
Ministro Edson Fachin, o Ministro Luiz Fux, que destacou a centralidade do ser humano na
Constituição; a Ministro Carmem Lúcia Rocha, que fez referência ao combate ao preconceito
e a perspectiva da convivência recíproca como um direito das pessoas com e sem deficiência;
o Ministro Gilmar Mendes, embora tenha ressalvado a necessidade de regras de transição para
casos como este, até no sentido da prevenção de maiores controvérsias no âmbito das cortes; o
Ministro Dias Toffoli, que acompanhou o Relator sem descer a pormenores; e ainda o
Presidente do STF, Ministro Ricardo Lewandowski, que destacou a importância histórica e
paradigmática do voto do Ministro Fachin.

próprio site do STF - <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=318569>, acesso:


12/06/2016, bem como no vídeo de transmissão da sessão pela TV Justiça, o qual vi na integralidade.
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 6, n. 12, p.
Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
A inclusão veio para ficar: o direito antidiscriminatório pós-ADI 5357 e a educação inclusiva como direito da
pessoa com deficiência
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O único voto divergente foi o do Ministro Marco Aurélio Mello que entendeu que
a ADI deveria ser parcialmente acolhida, para destacar que seriam inconstitucionais as
previsões dos dispositivos em questão se interpretadas como obrigatórias aos
estabelecimentos privados de ensino, o que, em termos práticos, terminaria por ser uma
acolhida plena face à ausência de dever por parte das referidas instituições em acolher o aluno
com deficiência.
A decisão de mérito proferida, com um único voto divergente, é um marco
histórico extremamente relevante na luta pela afirmação dos direitos da pessoa com
deficiência. É uma firme resposta negativa da mais alta Corte brasileira a qualquer
possibilidade de retrocesso em matéria de inclusão, não sendo admissível a utilização de
paradigmas discriminatórios pejorativos como base para suas atividades, seja no âmbito do
setor público, seja na iniciativa privada. A regra geral é a inclusão, e na educação não é
diferente.

CONCLUSÃO

54
Em verdade, a questão educacional das pessoas com deficiência sempre foi um
espécie de ―calcanhar de Aquiles‖. Não que as demais questões sejam simples, mas adaptar-se
à heterogeneidade e aos desafios educacionais de sair dos padrões pedagógicos homogêneos,
ter flexibilidade e dar conta da diversidade de modos de aprendizados em relação à educação
dessas pessoas, é, indubitavelmente, uma tarefa muito complexa. Um aluno com deficiência,
em boa parte dos casos, necessita de atendimento educacional especializado e de adaptações
curriculares e psicopedagógicas para seu aprendizado (Conferir GONZAGA, 2015, p. 115;
FERRAZ; LEITE, 2015b, p. 157-160). Como o sistema educacional historicamente excluiu
essas pessoas, é evidente que as escolas em geral, públicas e privadas, ainda não estão
completamente preparadas para essa demanda. É necessária parceria entre escola, família,
associações privadas e órgãos públicos, enfim, entre todos os que possam colaborar. É
igualmente necessária a compreensão por parte da família e da sociedade sobre os erros e
percalços que as escolas certamente terão até acertarem no oferecimento de uma verdadeira
educação inclusiva. Diante do fato de ser um desafio para o qual nenhum de nós está
totalmente preparado, é preciso enfrentá-lo com diálogo permanente para a busca das

Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58


Bruno Galindo
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melhores soluções inclusivas, e a escola, pública ou privada, deve ser vista antes de tudo
como uma parceira na edificação de uma educação inclusiva, nunca como uma inimiga.
Mas o caminho para isso seguramente não é o da exclusão do aluno com
deficiência, seja no que diz respeito à recusa de sua matrícula por esses estabelecimentos, seja
na cobrança de valores adicionais à mensalidade para que a escola privada cumpra com seus
deveres referentes à educação inclusiva.
Infelizmente, a CONFENEN escolheu o pior dos caminhos, tanto jurídica como
política e moralmente. Juridicamente, é pretensão que na prática implicaria em um ―direito‖ a
discriminar, o que vai de encontro tanto aos dispositivos constitucionais pertinentes, como à
tendência jurisprudencial do STF (e de outras cortes do país) que tem sido a de avançar,
sempre que possível, na igualdade e não discriminação, e não no seu inverso, como almejava
a Confederação das escolas privadas. Politicamente, parecia desejar uma liberdade absoluta de
empreendimento, algo inconcebível mesmo em empresas que prestam serviços
exclusivamente privados (e não públicos, como educação e saúde), em vez de buscar
sensibilizar governos e parlamentos, no sentido da obtenção de compensações para eventual
aumento de custos em decorrência dos atendimentos educacionais especializados, como, p.
ex., incentivos fiscais na medida em que a escola atingisse determinadas metas inclusivas, 55
sugestões que Comissões de defesa de direitos desses segmentos de vulneráveis, a exemplo da
Comissão dos Direitos da Pessoa com Deficiência e da Comissão de Direitos Humanos da
OAB/PE, já fizeram publicamente. E moralmente por que, em vez de buscar tais caminhos
alternativos, tenta penalizar justamente o lado mais vulnerável: o das famílias dos alunos com
deficiência que, em seus cotidianos, já sofrem demasiadamente para conseguirem a inclusão
escolar.
O que se verifica é que o direito antidiscriminatório tem tido uma clara tendência
de fortalecimento no Brasil. No plano legislativo, governamental (políticas públicas) e
judicial, é direito que avança, apesar dos percalços.
Indubitavelmente, o STF foi muito feliz na decisão da ADI 5357, mantendo a
sensibilidade que tem tido para com as temáticas inclusivas e antidiscriminatórias e
rechaçando uma claramente inconstitucional pretensão da Confederação das escolas privadas
de uma espécie de ―direito a discriminar‖.

Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 6, n. 12, p.


Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58
A inclusão veio para ficar: o direito antidiscriminatório pós-ADI 5357 e a educação inclusiva como direito da
pessoa com deficiência
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ANTI-DISCRIMINATORY LAW POST-ADI 5357 AND INCLUSIVE EDUCATION


AS A RIGHT OF PEOPLE WITH DISABILITIES
ABSTRACT: This essay concerns about anti-discriminatory law, show its concept and
importance in defense of the rights of people with disabilities. In this way, it exposes the
problems about right of education of people with disabilities, with a special attention at
decision of Federal Supreme Court in ADI 5357, when the judges declared the
constitutionality of the rules of Brazilian Law of Inclusion (Statute of People with
Disabilities). These rules extend to private schools the duties to promote inclusive
education.
Keywords: People with disabilities. Inclusive Education. Anti-discriminatory Law.
Right of Education.

56

Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 7, n. 13, p. 43-58


Bruno Galindo
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REFERÊNCIAS

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57
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relação s pessoas com deficiência‖, in: Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiência
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em: 12/06/2016.

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2
INTERNATIONAL JOURNAL OF RULE OF LAW,
TRANSITIONAL JUSTICE AND HUMAN RIGHTS
Year 8, Volume 8

ISSN 2232-7541

3
4
INTERNATIONAL JOURNAL OF RULE OF LAW, TRANSITIONAL JUSTICE AND HUMAN
RIGHTS
Year 8, Volume 8

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Andrés García Gómez Tiergartenstraße 35
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For the Publisher: Website: www.kas.de/rspsoe
Almin Skrijelj
and

Association "PRAVNIK"
Print run: 650 Bajrama Hasanovica 18
Sarajevo, 71000
Sarajevo, December 2017 Bosnia and Herzegovina
e-mail: info@pravnik-online.info
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CIP Cataloguing in Publication Data available from National and University Library of
Bosnia and Herzegovina ISSN 2232-7541

The present publication is distributed free of charge.


The responsibility of the content of this publication lies exclusively with the authors.
5
6
7
CONTENTS

PITFALLS OF THE EUROPEAN UNION APPROACH TOWARDS THE WESTERN BALKANS:


A REGIONAL PERSPECTIVE
BY VELISLAV IVANOV ....................................................................................................... 14
THE IMPORTANCE OF PUBLIC LEGAL EDUCATION FOR STRENGTHENING THE RULE
OF LAW
BY ANDRÉS GARCÍA GÓMEZ .............................................................................................. 26
BOSNIA AND HERZEGOVINA’S APPROACH AND THE ROLE OF TRANSITIONAL
JUSTICE IN THE SPHERE OF ENSURING THE RIGHTS AND FREEDOMS OF
INTERNALLY DISPLACED PERSONS: LESSONS FOR UKRAINE
BY ANASTASIIA TOKUNOVA................................................................................................ 34
THE ALLIES AND OPPONENTS OF THE BULGARIAN PROTESTS AGAINST THE
BORISOV GOVERNMENT, THE “BOSNIAN SPRING” AND THE “CITIZENS FOR
MACEDONIA” MOVEMENTS AND THEIR IMPACT ON THE POLICY PROCESS
BY IVAN STEFANOVSKI ..................................................................................................... 48
THE RIGHT TO TRUTH AND THE FAILURE OF SEEKING IT
BY KRISTIN BIRKENZELLER ............................................................................................... 78
THE PROTECTION OF THE WITNESS AS A RISK FOR THE RIGHTS OF DEFENSE IN
THE CRIMINAL PROCEDURE
BY NATASHA TODOROVSKA ............................................................................................... 88
ACCOMMODATING MINORITIES IN CONFLICT RESOLUTION: THE CASE OF THE
MARONITES OF CYPRUS
BY LORENA DIZ CONDE ................................................................................................. 100
THE UNFINISHED PROMISE OF THE PHILIPPINES PEACE IN MINDANAO
BY RUKMANI D. BHATIA ................................................................................................. 114
THE LINK BETWEEN GLOBALISATION AND GENDER EQUALITY
BY EMA TALAM............................................................................................................. 120
THE RIGHT TO PUBLIC INTEREST INFORMATION UNDER REGIONAL HUMAN RIGHTS
LAW: A COMPARISON OF THE EUROPEAN AND THE INTER-AMERICAN APPROACH
BY MARJOLEIN SCHAAP-RUBIO IMBERS ............................................................................ 130
BOOK REVIEW: ‘GLOBALISING TRANSITIONAL JUSTICE: CONTEMPORARY ESSAYS’
BY RUTI G. TEITEL, OXFORD UNIVERSITY PRESS. 2014
BY HELGA MOLBÆK-STEENSIG ....................................................................................... 148

8
9
FOREWORD

The eighth edition of the International Journal on Rule of Law, Transitional Justice and
Human Rights in front of you is a peer-reviewed International Journal published by the
Association “Pravnik” and the Konrad-Adenauer-Stiftung’s Rule of Law Programme South
East Europe. This International Journal is a direct output of the International Summer
School Sarajevo (ISSS) which our two organisations co-organise since 2006. During its 11
editions the International Summer School Sarajevo has attracted over three hundred
students and young professionals from Europe, Asia and the Americas. After each edition of
the International Summer School Sarajevo, our aim was to engage our alumni to contribute
to academic discussion with their papers on contemporary topics such as Rule of Law,
Transitional Justice or Human Rights. An additional goal is to promote an interdisciplinary
approach and build bridges between academia and practitioners in these relevant areas.

Although there seems to be a universal understanding that peace and stability are crucial
elements of modern societies, still too many violent conflicts are ongoing and will eventually
destroy the fibre of communities affected with conflict. After the collapse of communism,
with the transitions and violent conflicts which followed, it was self-evident that a new
approach would be needed for these countries to recover. Transitional Justice was coined as
a holistic approach offering instruments such as criminal prosecution, truth commissions,
outreach and memorialization which were added to instruments already existing at that
time, such as institution building, development of a sustainable rule of law and human
rights systems, to name but a few.

Today, the concept is no longer new. As Ruti G. Teitel asserts in her book (reviewed in this
Journal), Transitional Justice today is globalized and currently forms part of a high number
of post-conflict missions. However, in most countries, the application of transitional justice
faces intricate challenges and fails to deliver the promise of sustainable peace and
reconciliation. There already is a quite some research available, while in our view it focuses
too much on criminal justice and too little on other transitional justice instruments such as
truth commissions, truth speaking and outreach. Since our International Summer School is
placed in Sarajevo, we recognised the need to focus on the topic of transitional justice as a
new approach in dealing with past atrocities and a strategy for sustainable approach to
justice, rule of law, reconciliation and peace building. The articles in this Journal also
explore the interplay between Transitional Justice and other processes and in particular the
rule of law, human rights and Europeanization, Globalization and others.

With the eighth edition of the Journal in your hands, we hope that you will recognize new
generation of voices from the field, suggesting alternative and critical approaches to
contemporary challenges of transitional justice. The variety of topics chosen by the authors
is indeed inspiring as it ranges from violations of rights of individuals to the group rights.
Just like its first seven editions, the Journal will be open for public as it represents the
юSSS’ contribution to global efforts in analyzing, understanding and teaching about the rule
of law, transitional justice and human rights.

Hartmut Rank Almin Škrijelj


Director President
Rule of Law Programme South East Europe Association “Pravnik”
Konrad-Adenauer-Stiftung

10
11
12
13
Pitfalls of the European Union approach
towards the Western Balkans: A regional
perspective

By Velislav Ivanov*

ABSTRACT

This article assesses the approach of the European Union in its enlargement
policy towards the Western Balkans. A brief comparison with the Eastern
enlargement exposes three main differences: an ambiguous membership
perspective, hard conditionality policies, and an exclusive individual approach for
each country. These are argued to be insufficient engagement on part of the
Union and have unwittingly tolerated the establishment of “stabilitocracies” in
the region. A number of proposals for overcoming the unfavourable situation are
outlined as a conclusion.

* Velislav Ivanov holds an MSc in European politics from the University of Edinburgh and is
currently completing his doctorate at Sofia University "St. Kliment Ohridski", focusing on the
European integration of the Western Balkans. His professional achievements include a difficult
period in the civil service and co-founding the blEUprint think/do tank. His opinion pieces on
public matters have appeared in a number of noteworthy printed and online media. 2017 saw
the publication of his first collection of short stories through Colibri books.

14
Introduction hand, exterior (unrecognition of a certain
After the fall of the Berlin wall and the state by other subjects of international
collapse of the socialist regimes in Eastern relations; contested territories etc.), and
Europe, the European Union (EU) faced on the other, interior (the inability of a
an unfamiliar challenge – to integrate a government to exercise power on its own
number of states within its framework by territory, to collect taxes, to maintain
catalysing their political transition from order etc.) Such a state of affairs requires
totalitarianism to liberal democracy and that the EU not only aid in the forging of
their economic one from planned to modern democratic institutions, but also
market economy. During the accession in upholding statehood4 and constructing
process that ended with the 2004 and states capable of maintaining their basic
2007 enlargements the EU refined the functions. This is the main reason why
instruments of its accession policy: first, the methods of previous enlargements
conditionality and second, the regional have hardly been successful when applied
approach towards candidate countries to entities like Bosnia and Herzegovina or
which arguably fostered positive Kosovo.
competition between states on their road
to European integration. The results of Other distinctive characteristics of the
this policy are the subject of numerous region that were not part of the Eastern
research articles in academic literature, enlargement include extreme nationalism,
inter alia those of Heather Grabbe1, Frank acute ethnic tensions, and unresolved
Schimmelfennig2, and Ulrich Sedelmeier3. war-related issues. From the perspective
They conceptualise the process and reveal of the EU, the main such problem in the
the specific interrelations between the period under scrutiny is possibly the
features of the enlargement policy and its cooperation of the countries in the region
specific results. with the International Criminal Tribunal
for the former Yugoslavia (ICTY) in The
In the Wester Balkan region the EU Hague and the surrender of the indicted
should apply the experience previously persons residing on their territories.
acquired in the Eastern enlargement; Regional cooperation, the return of people
however this is not enough, as the region displaced during the wars and minority
poses challenges the Union has not inclusion are also important issues that
encountered thus far. The wars in the the enlargement policy of the EU faces. In
former Yugoslavia in the nineties have left addition, the inability of the EU to stop
a significant part of the region in a post- the war near its borders in the nineties is
conflict situation with its specific the rationale for the significant
characteristics. peacekeeping engagement in zones with
high risk of violence.
For the purposes of this article,
foremost are the fundamental problems Even though the Western Balkan
related to weak stateness – on the one countries are also undergoing a transition
to democracy, their initial position is less
enviable than that of the Central and
Eastern European (CEE) countries at the
1 Grabbe, Heather. Eu's Transformative Power.
Palgrave Macmillan, 2015. beginning of their European integration
2 Schimmelfennig, Frank and Sedelmeier,
Ulrich. "The Europeanization of Central and
Eastern Europe." Cornell Studies in Political
Economy. Ithaca: Cornell University Press 4 While statehood and stateness are verbally
(2005). and conceptually related, this text retains the
3 Schimmelfennig, Frank, and Sedelmeier, dictionary definition of “statehood” (the
Ulrich. "Governance by conditionality: EU rule condition or status of being a state), and
transfer to the candidate countries of Central employs the broadly accepted meaning of
and Eastern Europe." Journal of European stateness in political science (the basic
public policy 11.4 (2004): 661-679. functions of a state).
15
process5. As their road to membership is countries that lack such a perspective
longer, the framework of the process set unequivocally proves its utmost
by the EU, while based on the Eastern importance7.
enlargement, is significantly different. The EU membership was first cautiously
democratic criteria set by the European offered to the Western Balkan countries at
Council in Copenhagen in жоои (“stability the European Council in Feira in 2000. In
of institutions guaranteeing democracy, the published conclusions, they are
the rule of law, human rights, respect for named as “potential candidates for EU
and protection of minorities”6) are membership” (a wording that bears
extended with additional conditions. Both political rather than legal weight), the EU
the different context and the accession of aspiring to “the fullest possible integration
Bulgaria and Romania set a different tone of the countries of the region into the
to the enlargement process of the region. political and economic mainstream of
Europe”8. The European Council in
The current article begins by juxtaposing Thessaloniki in зееи reaffirms “its
the approach of the EU in the Eastern determination to fully and effectively
enlargement with that towards the support the European perspective of the
Western Balkan countries by using the Western Balkan countries, which will
conclusions of academic literature on the become an integral part of the EU, once
topic as a starting point of the discussion. they meet the established criteria” and
The different results and especially the refers to their “future accession”9;
establishment of “stabilitocracies” are nonetheless lacking specific promises or
then argued to be the result of insufficient dates. It was not until 2008 that the EU
engagement. In its conclusion, the text proposed a less equivocal engagement:
will propose some possible lines of action “…the remaining potential candidates in
to overcome the political gridlock. the Western Balkans should achieve
candidate status, according to their own
EU Membership Perspective
First and foremost, the clear and credible
membership perspective is a necessary
7Schimmelfennig, Frank. "EU political
precondition for any candidate country’s
accession conditionality after the 2004
European integration progress. It is a
enlargement: consistency and effectiveness."
main catalyst for democratic and market Journal of European Public Policy 15.6 (2008):
reforms; and a comparative analysis with 918-937;
Schimmelfennig, Frank, and Scholtz, Hanno.
"EU democracy promotion in the European
neighbourhood: political conditionality,
5 It could be argued that in terms of economy, economic development and transnational
Yugoslavia was better prepared for the exchange." European Union Politics 9.2 (2008):
transition, as it was not a member of the 187-215;
Council for Mutual Economic Assistance Schimmelfennig, Frank and Cirtautas, Arista
(COMECON) and thus has had to acknowledge Maria. "Europeanisation before and after
the realities of international markets even accession: conditionality, legacies and
under centrally planned economy. Politically, compliance." Europe-Asia Studies 62.3 (2010):
Tito’s regime was arguably also not as severe 421-441;
as those of, say, Romania or Bulgaria. Anastasakis, Othon. "The EU’s political
However, after the dissolution of Yugoslavia, conditionality in the Western Balkans: towards
the economic spoils turned out to be a more pragmatic approach." Southeast
geographically uneven with the North being European and Black Sea Studies 8.4 (2008):
significantly better off; while the devastating 365-377.
wars and extreme nationalism eradicated the 8 European Council. Santa Maria da Feira

political and civic culture of Yugoslav times. European Council 19 and 20 june 2000.
6 European Council. Copenhagen European Conclusions of the Presidency.
Council зж and зз яune жоои. “Conclusions of 9 European Council. Thessaloniki European

the Presidency”. Bulletin of the European Council 19 and 20 June 2003. Conclusions of
Communities 6 (1993): 7-23. the Presidency.
16
merits, with EU membership as ultimate important catalyst for the accession
goal.”10 Recent documents on the region process.
published by the European Commission
(EC) reiterate “the clear perspective of EU The juxtaposition between these
membership”. The accession process phrasings leads to several significant
however is linked to “strict but fair conclusions regarding the approach
conditionality, established criteria and the adopted by the EU. First, unlike in CEE
principle of own merit.”11 The EU countries, in the Western Balkans, the EU
membership perspective for the Western does not propose an accession at all cost,
Balkans countries is clear, but not or one that is just a matter of time; i.e. the
unconditional. Whether it is seen as outcome of the process is left open. The
credible on part of the candidate countries EC, on its part, sets certain conditions
is up for debate. and employs mechanisms to monitor their
fulfilment. The adopted approach,
The aforementioned phrasings are however, is “fundamentals first”, in other
significantly more cautious and words, the main conditions set by the EU
“ambiguous”12 compared to the language have to be met before the accession
the EU employed for CEE countries. The process moves forward. The fact that the
European Council in Copenhagen in 1993 relevant documents specify no target
which outlined EU membership criteria dates for accession or for moving further
for the first time stated unequivocally that in the road to membership is a clear
the CEE countries “that so desire shall illustration of this argument. The
become members of the European juxtaposition of the time spent in similar
Union”13; the one in Luxembourg in 1997 phases of the accession process also
concludes that they are “destined [ital. supports this line of reasoning. Bulgaria,
mine] to join the European Union on the for instance, completed the entire
basis of the same criteria”14. According to accession negotiation process for a little
researchers like Schimmelfennig, such more than four years16. Montenegro,
statements led the EU into a “rhetoric currently the forerunner in the accession
trap”15 which was subsequently an process, has closed only three of thirty-
three chapters in the negotiations for
some five years. This exemplifies not only
the more complex issues in the candidate
10 European Council. Brussels European countries, but also the significantly
Council 19 and 20 June 2008. Conclusions of diminished engagement on part of the EU
the Presidency. for the integration of the region.
11 European Commission. Communication
from the Commission to the European The shift from an inclusive regional/group
Parliament, The Council, The European approach to an exclusive individual one
Economic and Social Committee and the towards each country should also be
Committee of the Regions. Enlargement
examined. It could be seen as realistic and
Strategy and Main Challenges 2014-15.
12 Phinnemore, David. The Stabilization and constructive because of the lukewarm
Association Process: A framework for European enthusiasm for further enlargement
Union enlargement?, European Integration and within the EU Member States, on the one
Transformation in the Western Balkans: hand, and due to the significant
Europeanization or business as usual differences between the countries in the
(2013):22-35. region, on the other. Even though they
13 Copenhagen European Council.
14 European Council. Luxembourg European

Council 12 and 13 December 1997.


Conclusions of the Presidency. 16 Perhaps Bulgaria is the most relevant
15 Schimmelfennig, Frank. "The community example, as it was the slowest to complete her
trap: Liberal norms, rhetorical action, and the negotiations. Moreover, it is a Balkan country,
eastern enlargement of the European Union." and was at the time of her accession process
International organization 55.1 (2001): 47-80. considered a “laggard”.
17
may be perceived as culturally close, the achievement and has adopted this
Western Balkan states differ vastly in necessity in its enlargement policy.
terms of their degree of stateness, the
effectiveness of their institutions, and, The size and speed of rewards on the
respectively, in their capability of moving integration path are crucial for reaching
forward in the accession path. The both the major milestones and the minor
inclusive group approach, however, has steps. The distant promises of accession
proven to have an obvious advantage in and cohesion funds are both important;
the Eastern enlargement, as it created however other forms of rewards should
positive competition between candidate also not be underestimated: international
countries; something which is severely recognition, trade agreements, access to
lacking in the Western Balkan region. the Single market, visa liberalization, pre-
accession assistance, or preferential
Conditionality policy loans. As the road to accession for these
In this section, a brief juxtaposition countries is longer than that of CEE ones,
between the conditionality policies of the the membership perspective, which is also
EU towards the CEE countries and those ambiguous and hardly unconditional,
in the Western Balkans supports the could seem unattainable. This is why the
hypothesis that conditionality is less preliminary milestones which the
effective in countries with fundamental countries have to reach should be better
problems of stateness. Drawing from their outlined and accompanied by stimuli, be
empirical research on the Eastern they symbolic (legitimacy in the
enlargement, Schimmelfennig and international community, membership in
Sedelmeier present a rationalist an international organization, visa-free
bargaining model with four variables 17, travel) or material (pre-accession
which this section takes as a starting assistance, preferential loans). The EU
point of the discussion. has further developed the different stages
of the path to membership compared to
The determinacy of conditions is necessary the Eastern enlargement. Grabbe21 has
so as to produce an expected and elaborated the concept of “gate-keeping”
predictable outcome, since the formal which distinguishes the stages a country
membership criteria are vaguely defined 18. must go through from the status of a
When conditionality is misinterpreted by “potential candidate” to full membership.
the candidates (intentionally or not), it In the case of newly emerged states such
cannot yield the desired outcome. This as Kosovo or Montenegro22, this road has
problem is especially common in the early been mapped for them since their very
stages of the Eastern enlargement 19. Little establishment.
steps towards European integration are
just as important as major milestones. The credibility of promises is closely linked
Judging by the numerous EC documents to the political will for enlargement and
on Western Balkan matters and the high the continuous engagement for the
level of precision in them20, one can posit European integration of the region 23. What
that in this aspect the EU builds upon its should also not be underestimated is the

17 Schimmelfennig and Sedelmaier 2004. 21 Ibid.


18 Sasse, Gwendolyn. "The politics of EU 22 This refers to the sovereign state that was
conditionality: the norm of minority protection established in 2006, not to the principality of
during and beyond EU accession." Journal of the XIXth century.
European Public Policy 15.6 (2008): 842-860. 23 Schimmelfennig and Scholtz 2008;
19 Grabbe 2006, chapter 2. Schimmelfennig, Frank, and Hanno Scholtz.
20 The EC issues periodic strategic reports on "Legacies and leverage: EU political
the entire region and country-specific annual conditionality and democracy promotion in
ones with minute assessment of the progress historical perspective." Europe-Asia Studies
in each of the areas under scrutiny. 62.3 (2010): 443-460.
18
credibility of the Western чalkan elites’ “laggards” Bulgaria and Romania that
promises. As democratic reform would joined in 2007. This strategy worked even
inevitably result in a relative loss of power for the “laggards” of CEE, however it was
and influence of these elites24, it is at aided by a stronger, unambiguous
times difficult to believe anything less engagement on part of the EU and a less
than a tangible track record of a problematic transition. In the Western
particular successful reform. This is Balkan case, the results are arguably
relevant to the last variable. reversed – one clear “forerunner” (Croatia),
countries with limited progress
The adoption costs of conditions and (Montenegro, Serbia), and a number of
number of veto players are also essential. “laggards”.
Unsurprisingly, the higher the adoption
costs and the number of veto players, the The interrelations drawn in the research
less effective conditionality policy is. A on the Eastern enlargements are largely
clear instance of this would be the fact valid for the Western Balkan region, yet
that major actors in the power structures they are insufficient to provide an
and networks in Serbia in the beginning of interpretation of the process and account
the century were sought by the ICTY in for the modest results. To further reveal
The Hague. They would not hesitate to the core of the issue, the conditionality
block reforms and reject the conditions of policy itself has to be discussed.
the EU regardless of rational arguments Conditionality can hardly be effective in
or offered rewards. This could be seen as a post-conflict territories – it presupposes
particular instance of the fact that a wide the existence of a united local elite with a
societal and cross-party consensus on common vision for the future of their
European integration is a necessary country and a capacity to reify this
precondition for the process. The closer vision25. In this regard, Elbasani outlines
the country is to full membership, the three main challenges for the EU in the
bigger the concessions it would ac region: to empower reformists; to
overcome historic legacies; to overcome
EU conditionality towards CEE countries problems of weak stateness 26.
does not provide any “sanctions” for non- Empowering reformists entails support for
compliance. If a country does not fulfil the and expansion of the local groups that
conditions, it is just not allowed into the support EU conditions, as well as limiting
next stage of the integration process and, their opponents’ influence. The ultimate
respectively, cannot benefit from the target of these actions being a wide cross-
respective stimuli. The rationale for this party societal consensus on European
approach is that the membership integration, a necessary precondition for
perspective fosters positive competition accession27. There are two main aspects to
between candidate countries, none of overcoming historical legacies –
which would like to be lagging behind. overcoming extreme nationalist sentiment
This line of thought is supported by the and ethnic and religious intolerance, on
division of the countries to the ten
“forerunners” that joined in зеей and the
25 Aybet, Gülnur, and Florian Bieber. "From
Dayton to Brussels: the impact of EU and
NATO conditionality on state building in
24 Schimmelfennig, Frank, and Ulrich Bosnia & Hercegovina." Europe-Asia Studies
Sedelmeier. "Theorizing EU enlargement: 63.10 (2011): 1911-1937.
research focus, hypotheses, and the state of 26 Elbasani, Arolda, ed. European integration

research." Journal of European Public Policy 9.4 and transformation in the Western Balkans:
(2002): 500-528; Europeanization or business as usual?.
Schimmelfennig, Frank, and Hanno Scholtz. Routledge, 2013.
"EU Democracy Promotion in the European 27 Grabbe, Heather. "Central and Eastern

Neighborhood: Conditionality, Economic Europe and the EU." Developments in Central


Development, and Linkage." (2007): 31. and East European Politics 4 (2007): 120.
19
the one hand, and a successful transition imprudent, while problems with stateness
to democratic governance, on the other. It are “the biggest obstacle to European
is a formidable challenge, bearing in mind integration.”32 Even logically,
the hard starting position of these conditionality would seem an
countries and their elites’ ability to imitate inappropriate instrument for state-
reform whilst maintaining previous building – it presupposes that the state
informal networks and ways of accepting the conditions has uncontested
governance, even with the formal adoption sovereignty on its own territory and also
of EU norms28р and also the elites’ that there is a level of stateness which
inclination to exploit extreme nationalist would secure the application of its
rhetoric and ethnic divisions as means of decisions; i.e. the state must be able to
solidifying their power29. implement the external norms. When
these two preconditions are not present,
Most fundamental of all however are conditionality cannot build them on its
problems of weak stateness. They can be own. Hence, in the Western Balkan
broadly defined as obstacles related to the region, strict conditionality is likely to be
contestation of sovereign power and the less effective.
lack capacity on part of the state to
impose its decisions30. As previously Conclusions
noted, the existence of a single To summarise the argument so far,
government with a common vision for the the EU enlargement policy towards the
country is a necessary precondition for CEE countries was characterised by an
any form of conditionality. The EU faces a unequivocal and strongly stated
completely different set of challenges if membership perspective, relatively
certain groups or territories do not moderate conditionality policies, and an
recognise sovereign power and wish to inclusive regional approach. This fostered
secede, or to associate with another state positive competition between candidates
entity. and was crucial for their undertaking
political and economic reform. Both the
These circumstances place EU “forerunners” and the “laggards” were
enlargement policy not only before the allowed to join, albeit that some countries
challenge of helping to build democratic were clearly more prepared than others. In
institutions, but also to secure the contrast, towards the Western Balkans,
building of foundations of statehood, at the EU has offered a distant and
times even of new state entities. Against ambiguous membership perspective and
this backdrop, conditionality policy is both has also employed hard conditionality
ineffective and inappropriate for a number policies and an exclusive individual
of reasons, including an insincere approach for each country. This has
commitment of the elites to European proven to be insufficient engagement, as
integration and open issues regarding the the region arguably faces more severe
status of certain territories31. According to problems than CEE countries in the pre-
Bieber, the EU’s actions related to state- accession period. Furthermore, the very
building have been incoherent and instrument that has proven to be most
effective in CEE is at times irrelevant to
the realities of the Western Balkans.
28 Stefes, Christoph H. Understanding post-
Soviet transitions: corruption, collusion and The emergence of governments
clientelism. Springer, 2006. that thrive on the agonisingly slow
29 Boduszyński, Mieczysław P. Regime change
progress towards accession, so to speak,
in the Yugoslav successor states: divergent
on a perpetualised pre-accession period, is
paths toward a new Europe. Baltimore, MD:
Johns Hopkins University Press, 2010.
hardly a surprise. This phenomenon has
30 Elbasani 2013: 13.
31 Bieber, Florian. EU conditionality in the

Western Balkans. Routledge, 2011. 32 Ibid: 11.


20
most aptly been defined as “stabilitocracy” and substantively (with target dates for
by and Bieber33 and Pavlovic34: regimes accession and roadmaps for the
that gain legitimacy and support from remainder of the pre-accession period).
external actors (namely EU and its
Member States) with the promise of an Second, a shift in the focus from the short
alleged stability inside the country, while or mid-term stability in the region to the
lip-syncing the song of reform and long-term goals of the EU, namely,
initiating democratic backsliding. Such support for reforms that would build
stability can however only be a short- or wholly functional Member States. This
mid-term option, as any government that would bring a different perspective to
acts against democracy effectively conditionality, which should be targeted
obstructs the European integration of its towards the holistic reform of the states’
country, which in the end leads to social, political, and economic systems,
tensions, instability, and chaos. This was rather than towards particular
exemplified most recently in the political problematic instances of dysfunction
crisis in Macedonia, which was plausibly within those systems.
the result of the decade-long (mis)rule of
Nicola Gruevski and his party; one can And finally, a shift towards a more
easily spot other instances of this vicious inclusive approach that fosters positive
circle in other countries in the region. competition in the countries without
disregarding the principle of own merit.
Yet the EU is hardly left without an Thus far, stabilitocracies have drawn
effective move. It still has the influence inspiration and exchanged best (or worst)
and the instruments to aid the countries practices with one another. There is no
in moving further in the accession reason why this downward spiral cannot
process. The societies of those countries be turned on its head with a resurgence in
recognise European integration as the effort, commitment, and engagement in
best option for the development of their the region. The pitfalls are deep, yet with
countries; governments are elected on a some momentum, the EU can jump over
pro-European mandate. In a report for them.
BiEPAG35, Bieber proposes a number of
policy recommendations, most notably the
explicit naming of problems, transparency
in the negotiations, the empowerment of
democratic powers in the region. Bearing
in mind these proposals and the analysis
thus far, the author of this piece would
suggest the following policy proposals.

First, the Union should strongly reaffirm


the membership perspective both verbally
(in political statements stronger than the
careful phrasings in the annual reports)

33 Bieber, Florian. “What is a stabilitocracy”.


Balkans in Europe Policy Blog, 2017.
34 Pavlovic, Srda. “The West’s support of

Dzukanovic is damaging the prospects of


democratic change”. London School of
Economics and Political Science, 2016.
35 Balkans in Europe Policy Advisory Group.

Policy Paper: The Crisis of Democracy in the


Western Balkans. Authoritarianism and EU
Stabilitocracy, 2017.
21
BIBLIOGRAPHY

 Anastasakis, Othon. "The EU’s political conditionality in the Western Balkansп


towards a more pragmatic approach." Southeast European and Black Sea Studies 8.4


(2008): 365-377.
Aybet, Gülnur, and Florian Bieber. "From Dayton to Brussels: the impact of EU and
NATO conditionality on state building in Bosnia & Hercegovina." Europe-Asia Studies


63.10 (2011): 1911-1937.
Balkans in Europe Policy Advisory Group. Policy Paper: The Crisis of Democracy in
the Western Balkans. Authoritarianism and EU Stabilitocracy, 2017, available at
<http://www.biepag.eu/wp-content/uploads/2017/03/BIEPAG-The-Crisis-of-
Democracy-in-the-Western-Balkans.-Authoritarianism-and-EU-Stabilitocracy-


web.pdf>.
Bieber, Florian. “What is a stabilitocracy”. Balkans in Europe Policy Blog, 2017,


available at <http://www.suedosteuropa.uni-graz.at/biepag/node/245>.


Bieber, Florian. EU conditionality in the Western Balkans. Routledge, 2011.
Boduszyński, Mieczysław P. Regime change in the Yugoslav successor states:
divergent paths toward a new Europe. Baltimore, MD: Johns Hopkins University


Press, 2010.
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the Presidency.
European Council. Copenhagen European Council 21 and 22 June 1993.
“Conclusions of the Presidency”. Bulletin of the European Communities 6 (1993): 7-23.
 European Council. Luxembourg European Council 12 and 13 December 1997.


Conclusions of the Presidency.
European Council. Santa Maria da Feira European Council 19 and 20 june 2000.


Conclusions of the Presidency.
European Council. Thessaloniki European Council 19 and 20 June 2003.


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Grabbe, Heather. "Central and Eastern Europe and the EU." Developments in Central


and East European Politics 4 (2007): 120.


Grabbe, Heather. Eu's Transformative Power. Palgrave Macmillan, 2015.
Pavlovic, Srda. “The West’s support of Dzukanovic is damaging the prospects of
democratic change”. London School of Economics and Political Science, 2016,
available at <http://blogs.lse.ac.uk/europpblog/2016/12/23/montenegros-
stabilitocracy-how-the-wests-support-of-dukanovic-is-damaging-the-prospects-of-


democratic-change/>.
Phinnemore, David. The Stabilization and Association Process: A framework for
European Union enlargement?, European Integration and Transformation in the


Western Balkans: Europeanization or business as usual (2013):22-35.
Sasse, Gwendolyn. "The politics of EU conditionality: the norm of minority protection
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842-860.
Schimmelfennig, Frank and Cirtautas, Arista Maria. "Europeanisation before and
after accession: conditionality, legacies and compliance." Europe-Asia Studies 62.3
(2010): 421-441.

22
 Schimmelfennig, Frank and Sedelmeier Ulrich. "The Europeanization of Central and
Eastern Europe." Cornell Studies in Political Economy. Ithaca: Cornell University Press


(2005).
Schimmelfennig, Frank, and Hanno Scholtz. "EU Democracy Promotion in the
European Neighborhood: Conditionality, Economic Development, and Linkage."


(2007): 31.
Schimmelfennig, Frank, and Hanno Scholtz. "Legacies and leverage: EU political
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Schimmelfennig, Frank, and Scholtz, Hanno. "EU democracy promotion in the
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Schimmelfennig, Frank, and Ulrich Sedelmeier. "Theorizing EU enlargement:
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Schimmelfennig, Frank. "EU political accession conditionality after the 2004
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(2008): 918-937.
Schimmelfennig, Frank. "The community trap: Liberal norms, rhetorical action, and
the eastern enlargement of the European Union." International organization 55.1


(2001): 47-80.
Stefes, Christoph H. Understanding post-Soviet transitions: corruption, collusion and
clientelism. Springer, 2006.

23
24
25
The importance of Public Legal Education
for strengthening the Rule of Law

By Andrés García Gómez*

ABSTRACT

The aim of this article is to analyse the importance of public legal


education in the overall task of strengthening the rule of law. Rule of law
is a concept that encompasses four principles: accountability, just laws,
open government and accessible and impartial dispute resolution 36.
Hence, there are many actors participate in the shaping process of the
rule of law, not only governments and public institutions, also citizens
should play a role; because rule of law is a true platform for peace,
civilization and guarantee of individual social and communitarian
freedom within a State. Absolute respect for the rule of law is a
prerequisite to join numerous international organisations, as well as the
European Union which is a priority for Western Balkan countries. The
purpose of this article is also to explore the situation of Justice in this
region and how their inhabitants evaluate and perceive it, evidencing by
the way the possibilities that PLE could bring to Western Balkans
reinforcing the rule of law and raising awareness about social and
community rights.

*Andrés García Gómez (Gijón, 1988) holds a degree in Law from the University of Navarra and
also completed Master’s degree in International Relations at the University of Bologna. He
worked as a junior analyst at Vessel International in Rome specializing in Eastern Europe and
Mediterranean areas. Besides that he has experience within international organisations and
diplomacy, as intern at the Embassy of the Kingdom of Spain in Skopje and the OSCE Mission
to Serbia. Currently he works as freelance analyst focused on socio-political issues, human
rights and justice in South East Europe.

36World Justice Project. What is the Rule of Law? Available at: https://worldjusticeproject.org/about-
us/overview/what-rule-law
26
Introduction: concept of Public Legal the common law is England most precious
Education and enduring gift to her former colonies,
that it also should renew our own faith in
The idea of Public Legal Education (PLE) the stability of our legal institutions”38.
sinks its roots in the Anglo-Saxon legal
tradition. In fact, so-called common law For this reasons the idea could be also
system is that where law exists but the extended to other countries of former
body of the law is developed by judges and British Empire, such as Ireland, Canada,
courts, which makes judicial precedent Australia or New Zeeland that have
very important to decide future similar incorporated common-law systems. In all
cases. Norms do not provide for all legal these countries both citizens and
assumptions, instead judges play a role professionals take part on process in an
similar to a tailor dressing each single open and perhaps more participant way
case as it were a suit; however this does than in civil law countries, where each
not imply arbitrariness of judicial action single aspect of trials is strictly regulated
because there is a background stage in and legal professionals act within a very
which authorities must analyse previous limited parameters. Pursuing the idea of
cases that could be binding or persuasive strengthening links, cooperation and
when deciding similar cases. This is the accountability between citizens and
principle of “stare decisis”. judicial authorities is how the concept of
Public Legal Education was born in the
On the opposite side, civil law system is middle of ме’ in Great Britain, Canada and
based just on codes and law that are Australia mainly. The original ideal of
primarily legal sources; and judges public legal education was born because
according to Montesquieu should be this kind of education and information is
exclusively the mouth of the law. perhaps the oldest and most widely used
Both systems have advantages and form of legal assistance delivered around
disadvantages, but strict compliance with the world, yet paradoxically has only more
the law as well as its flexibility are two recently become a clearly defined field of
essential characteristics of common law practice and one of the most promising
system. In the early days of the Republic, areas of justice innovations. The nature
Alexis de Tocqueville, James Bryce, and and scope of Public Legal Education varies
others detected this respect for the law significantly across jurisdictions. Broad
and saw it as a dominant theme in the terminology associated with PLE includes
then emerging nation. Tocqueville wrote in concepts such as justice education, legal
1830 in Democracy in America that literacy, legal empowerment, and
American people obey the law not only community legal education. The scope of
because is their own work, but because it activities involved in public legal
may be changed if harmful; a law is education is invariably wide,
observed, first, it is a self-imposed evil, encompassing diversity of legal issues in
and secondly, it is an evil of transient contemporary life, and ranging from basic
duration37. From colonial times to the information to enhanced education 39.
modern age the American people have had
an abiding faith in the rule of law, even Based on the report of the Foundation for
when they acted in disregard of this faith; Public Legal Education beneficiaries of the
that is in part due to the above mentioned
intrinsic characteristic of common law. As
Joseph Anthony Lewis, New York Times 38 John E. Cribbet, Legal Education and the

columnist and author who twice won a Rule of Law. American Bar Association Journal
Pulitzer Prize, said in March жоме “faith in Vol. 60, No. 11 (November, 1974)

39 Lisa Wintersteiger, Legal needs, legal


capabilities and the role of Public Legal
37 Alexis de Tocqueville, Democracia en Education. Foundation for Public Legal
América. Trotta Editorial. Madrid, 2010. Education. London, 2015.
27
idea could potentially include any member process of legal reform in an open and
of the wider public, a notable target for equal manner, and at least to create
PLE activities are groups that experience responsible citizens aware of their rights
specific barriers in gaining access to and duties.
justice such as older people, minority
groups, young people, and welfare At the end the scope of PLE should also
recipients. Increasingly, community based reach other spheres of life diverse from
strategies target non-legal workers, just private ones, this means that last
including community leaders, youth objective is public dimension. Once people
workers, students, health workers and have all required tools to identify the legal
social care providers as a means of dimensions of everyday situations they
reaching socially and economically will be able to organise effectively for legal
disadvantaged people with legal problems. and social changes and get involved in
shaping the decisions that affect them
According to The Law Society, an both at a local and national level.
independent professional body for
solicitors in England and Wales, Public By doing so States will also contribute to
legal is aimed at raising awareness of strengthening the rule of law, because
rights and legal issues and of the wider they are raising awareness among
justice system; helping people to identify community about law and legal process,
the legal dimensions of everyday while increasing the ability social ability to
situations and equipping them with the understand and critically assess the
skills and confidence to resolve issues and impact of the law. At the end is a way to
prevent problems; enabling citizens to reinforce social commitment within a
recognise when they need help and find State by encouraging citizens to
the best help; and finally help people to participate actively in life while being
organise effectively for legal and social ready and mature to understand and
changes and get involved in shaping the accept a wide range of legal and
decisions that affect them both at a local administrative issues which at first sight
and national level40. could seem complex, unfair or contrary to
basic emotional reason, however
On the basis of universality of law that necessary to ensure peace, civilization and
affects people of all ages and is changing progress within a State.
all the time, public legal education helps
citizens to better understand everyday life The concept of Rule of Law
issues, making better decisions and
anticipating and avoiding problems. Expression rule of law was consecrated by
Robert von Mohl in 1832 (Rechtsstaat in
There are many reasons why citizens need German language) one of the most
to know about their rights and relevant figures of the liberal legalism or
responsibilities. Education about basic Constitutionalism at the times of limited
law principles is important to give people monarchies in German states in the
the knowledge and skills that they need to Nineteenth century. Idea that has arrived
manage their affairs, to allow them to till now with different influences of French
avoid legal disputes in their transaction legal tradition of supremacy of law
with others, to take part in the general understood as an expression of general
will and English proper concept of rule of
law, this that law should govern the
nation41. Despite the different ideas,
40 The Law Society, Developing a Public Legal
Education Programme. London, 2016.
Available at:
https://www.lawsociety.org.uk/News/Press-
releases/public-legal-education-guidance- 41 Rainer Grote, Rule of Law, Rechtsstaat y État

published/ de Droit. Pensamiento Constitucional Vol. 8,


28
modern concept of rule of law is the including democracy and fundamental
theoretical construction that allows rights rights.
and freedoms; civil and political rights, no In the EU accession process, currently on
rights of socio-economic nature, simply going in different Western Balkan
natural rights of the nineteenth-century countries at diverse stages, respect for the
bourgeoisie. Under the rule of law rule of law is an essential requirement
elements such as: division of powers, according to the Copenhagen Criteria. In
authority of law or supremacy of fact, article 49 of the Treaty on European
Parliament get their natural meaning 42. Union establish that new European
countries that would like to join the Union
Rule of law concept must include the idea must fulfil all values contained in this
of justice, but also limits and controls of treaty, among these respect for the
powers by justice as guarantee of freedom. European Convention on Human Rights
For that reason modern and democratic and the Charter of Fundamental Rights of
states constituted under the rule of law the European Union.
principle understand this on its two
fronts: objective and subjective. The The situation in Western Balkans.
objective idea imposes the strict concept
of rule of law in which law is the channel Balkans countries main target for the
to use the powers and at the same time coming years is to fully join the European
limit against misuses. On the subjective Union. Negotiations are going at different
field rule of law states must include on pace, it depends on the country; but what
their Constitutions provisions related to it is almost clear is that the future of the
rights and freedoms of citizens43. region is inside the European Union, facts
evidence this affirmation, also this is what
To sum up, it is possible to say that rule most people believe that only way to
of law principle is on the basis of achieve stability and socio-economic
democracy, because implies that development, as well as an opportunity to
everybody is subject to the law from solve all frozen conflicts that have
citizens to lawmakers and authorities. impeded Western Balkans to reach its
Hence has become also a core principle of true potential is joining European project.
different organizations integrated by
states that share absolute respect for the Stabilization and Association Agreements
rule of law, like the European Union. The that has been signed with different states
rule of law is one of the founding introduce 35 Chapters covering subjects
principles stemming from the common from EU rights and freedoms to
constitutional traditions of all Member agriculture or transport. It is expected to
States, and is one of the fundamental six Balkan countries to introduce reform
values upon which the European Union is in order to adapt national legislation and
built. Respect for the rule of law is a practices to so-called acquis
prerequisite for the protection of all communautaire. Rule of law plays also a
fundamental values listed in the Treaties, key role in this overall process, not only
because as stated before the European
Union is inspired in this principle, also
because two Chapters, 23 and 24, refer
directly to this concept a wide variety of
Núm. 8. Pontificia Universidad Católica del aspects of justice, internal security,
Perú. Lima, 2002. fundamental rights.
42 Antonio Torres del Moral, Principios de

Derecho Constitucional-Tomo I. Servicio de


The European Union through the
publicaciones de la Universidad Complutense
de Madrid. Madrid, 2004.
Enlargement Negotiations is assisting
43 Luis María Diez-Picazo, Sistema de Derechos these countries to implement the
Fundamentales. Thomson-Civitas. Madrid, Agreements and develop projects aimed at
2005. fulfilling accession requirements as
29
evidenced by the different reports to Montenegro and Kosovo, however other
elaborated by the European reports from the EU or the Council of
Commission44. Notwithstanding, the Europe show that indicators when it
“official side” it could be interesting to look comes to quality of justice, corruption,
into society and explore how people really awareness for fundamental rights or
feel in front such important tasks. minorities remain low.
A look into such indicators suggest that
When it comes to perception about justice working besides national authorities in
in the Western Balkans opinions among building capacities among judiciary, but
citizens are extremely negative in terms of also to work closely and cooperate with
efficiency and quality as evidenced by the society in order to reverse this negative
Judicial Functional Review of the World view. Here is where Public Legal
Bank and the 2015 Progress Report of the Education could demonstrate its benefits.
European Commission. However, the most Society and especially future generations
concerning issue is the position of these will be aware about their rights and
countries in the Rule of Law index responsibilities. Education about basic
elaborated annually by the World Justice law principles is important to give people
Project. the knowledge and skills that they need to
manage their affairs, to allow them to
A careful analysis of the 2016 Rule of Law avoid legal disputes in their transaction
index yields data that shows that with others, to take part in the general
indicators change from one country to process of legal reform in an open and
another however is common factor that all equal manner, and to create responsible
of them occupy the lowest positions citizens aware of their rights and duties.
between the upper middle income
countries in terms of adherence to the This idea of PLE has already been
Rule of Law standards and principles. developed in many different contexts,
Performance is measured using 44 perhaps one of the most successful stories
indicators across eight primary rule of law is the work done by some Italian
factors, each of which is scored and organizations in the anti-mafia fight, such
ranked globally and against regional and as Foundation Giuseppe Fava in Catania
income peers: Constraints on Government or Foundation Falcone in Palermo. In
Powers, Absence of Corruption, Open Southern regions where this phenomenon
Government, Fundamental Rights, Order is still strongly anchored in society these
and Security, Regulatory Enforcement, organizations are working with children
Civil Justice, and Criminal Justice. and young people educating them into
Attending to this report that collect data civic values, showing that freedom is only
from 113 countries Western Balkans possible under the empire of the law and
countries occupy medium-low positions: citizens should be responsible while
Albania 72/113, Bosnia and Herzegovina defending this idea, because is the only
50/113, the Former Yugoslav Republic of guarantee to ensure and protect their
Macedonia 54/113 and Serbia 74/11345; freedoms, rights and duties.
there are no data in the WJP Index related
Situation in the Balkans is different, war
and violence episodes are recent in time
44 European Commission. European and obviously have conditioned society by
Neighbourhood Policy and Enlargement polarizing people, increasing differences
Negotiations. 2016 Strategy and Reports. and reducing issues into an easy bipolar
Available at: reasoning: good or bad46. Furthermore,
https://ec.europa.eu/neighbourhood-
enlargement/countries/package_en
45 World Justice Project, The Rule of Law index

2016. Available at: 46 Catherine Lutard, Serbia. Le contraddizioni

https://worldjusticeproject.org/our-work/wjp- di un’identità ancora incerta. Il Mulino.


rule-law-index/wjp-rule-law-index-2016 Bologna, 1999.
30
historic reasons have fostered a logical international human rights and criminal
reasoning in terms of community that is law standards. It is impossible to rewrite
looking outside from the perspective of history, however is possible to build
belonging to a group or an ethnic47. Thus together the future and overcome
for example a crime committed by Serbs differences. Proactive campaigns to
in Croatian is seen as what is in Croatia, promote health and financial literacy have
however in Belgrade and among Serbian been very popular with the public and
people maybe is not a crime rather a promoted by government. A similar
defense action. In the context of campaign to educate people about their
Transitional Justice as a response to rights is a practical and powerful way to
massive violations of fundamental rights increase public understanding about the
we have witnessed that verdicts of law, raise awareness about own rights and
International Courts have been received in duties and promote social commitment of
very different way depending the country citizens engaged with a wide range of
and the group, in this days we have issues, like justice.
received the sentence of the ICTY to Ratko
Mladic that has provided a measure of
justice for victims and a direct form of
accountability for perpetrators, in this
sense decision has been welcomed in
Sarajevo but this perception changed
radically for some Serbian people48 even
inside Bosnia and Herzegovina49; similar
situation for the judicial acquittal decided
for general Ante Gotovina again cause for
jubilation in Zagreb and for
disappointment in Belgrade50.

Conclusion
In post-conflict settings, legislative
frameworks often show the accumulated
signs of neglect and political distortion,
contain discriminatory elements and
rarely reflect the requirements of

47 Anthony D. Smith, The ethnic origins of


nations. Wiley-Blackwell. New Jersey, 1991.
48 The Economist, A verdict of genocide against

the Bosnian Serb commander. Edition of


22/11/2017, available at:
https://www.economist.com/news/europe/21
731601-international-criminal-tribunal-
former-yugoslavia-winds-up-its-work-verdict
49 The Guardian, Bosnians divided over Ratko

Mladic guilty verdict for war crimes. Edition


22/11/2017, available at:
https://www.theguardian.com/world/2017/n
ov/22/bosnians-divided-over-ratko-mladic-
guilty-verdict-for-war-crimes
50 El País, El TPIY absuelve al exgeneral croata

Ante Gotovina de limpieza étnica contra


serbios. Edition 16/11/2016, available at:
https://elpais.com/internacional/2012/11/16
/actualidad/1353057910_536243.html
31
BIBLIOGRAPHY

- Alexis de Tocqueville, Democracia en América. Trotta Editorial. Madrid, 2010.


- Anthony D. Smith, The ethnic origins of nations. Wiley-Blackwell. New Jersey, 1991.
- Antonio Torres del Moral, Principios de Derecho Constitucional-Tomo I. Servicio de
publicaciones de la Universidad Complutense de Madrid. Madrid, 2004.
- Catherine Lutard, Serbia. Le contraddizioni di un’identità ancora incerta. Il Mulino.
Bologna, 1999.
- John E. Cribbet, Legal Education and the Rule of Law. American Bar Association
Journal Vol. 60, No. 11 (November, 1974)
- Lisa Wintersteiger, Legal needs, legal capabilities and the role of Public Legal
Education. Foundation for Public Legal Education. London, 2015.
- Rainer Grote, Rule of Law, Rechtsstaat y État de Droit. Pensamiento Constitucional
Vol. 8, Núm. 8. Pontificia Universidad Católica del Perú. Lima, 2002.

 Reports and newspaper articles:


- El País, El TPIY absuelve al exgeneral croata Ante Gotovina de limpieza étnica contra
serbios. Edition 16/11/2016, available at:
https://elpais.com/internacional/2012/11/16/actualidad/1353057910_536243.ht
ml
- European Commission. European Neighbourhood Policy and Enlargement
Negotiations. 2016 Strategy and Reports. Available at:
https://ec.europa.eu/neighbourhood-enlargement/countries/package_en
- The Economist, A verdict of genocide against the Bosnian Serb commander. Edition of
22/11/2017, available at: https://www.economist.com/news/europe/21731601-
international-criminal-tribunal-former-yugoslavia-winds-up-its-work-verdict
- The Guardian, Bosnians divided over Ratko Mladic guilty verdict for war crimes.
Edition 22/11/2017, available at:
https://www.theguardian.com/world/2017/nov/22/bosnians-divided-over-ratko-
mladic-guilty-verdict-for-war-crimes
- The Law Society, Developing a Public Legal Education Programme. London, 2016.
Available at: https://www.lawsociety.org.uk/News/Press-releases/public-legal-
education-guidance-published/
- United Nations, The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict
societies. August, 2003. Available at:
http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/2004/616
- World Justice Project, The Rule of Law index 2016. Available at:
https://worldjusticeproject.org/our-work/wjp-rule-law-index/wjp-rule-law-index-
2016
- World Justice Project. What is the Rule of Law? Available at:
https://worldjusticeproject.org/about-us/overview/what-rule-law

32
33
Bosnia and Herzegovina’s approach and
the role of Transitional Justice in the
sphere of ensuring the rights and freedoms
of internally displaced persons: lessons for
Ukraine

By Anastasiia Tokunova*

ABSTRACT

The article is dedicated to the experience of Bosnia and Herzegovina


in the field of Transitional Justice providing for the problems,
connected with internal displacement, dealing. Possibility and
directions of Transitional яustice’s application in Ukraine was
augmented in relation to the challenges caused by internally
displacement of people, who had previously lived in Crimea and
certain territories of Donetsk and Luhansk regions of Ukraine. A list
of ways and prospective results of implementation of Transitional
Justice elements was defined. The main approaches of Bosnia and
Herzegovina strategic planning on the issues of internally displaced
persons and Transitional Justice was studied. As a result some
opportunities of its application in Ukraine were determined. The role
of international community activities in post-conflict period in Bosnia
and Herzegovina was investigated. The certain ways, which could
support rising of positive and minimizing of negative effects of
international actors’ presence in Ukraine, were outlined. Also an
attention was paid to the issues of organizing the work of the
authorities and building of civil society in these conditions.

* Anastasiia Tokunova is working as a Senior Investigator in the Institute of Economic and


Legal Research of the National Academy of Sciences of Ukraine. She holds a PhD degree in
Entrepreneurial Law and Arbitration. Also since 2014 the sphere of her research interests has
been related to the questions of the Rule of Law in Ukraine establishment, Energy Security,
Humanitarian Law, approaches to the state and society response to crisis situations and their
consequences.

34
Introduction state. In particular, after the war, over
Solving of the problems, caused by half of the 4.4 million pre-war population
internal displacement, is one of the key of Bosnia was displaced, with an
issues in the modern world. By the end of estimated 1.1 million displaced internally
2016 there were 40.3 million people and approximately 1.3 million fleeing to
internally displaced by conflict and neighboring countries and Western
violence across the world.51 Europe.54 According to UNHCR Global
Report, 518,300 people were registered as
Unfortunately, Ukraine had to face this IDPs in BiH in 200055 (13.7 per cent of the
problem, due to the conflict in the Eastern country’s population for that year56).
Ukraine and disruption of the territorial Taking to consideration the post-war
integrity of Ukraine (Crimea). All in all, destruction, BiH had to make rather fast
1,653,000 became internally displaced decisions to avoid such situation. The
persons (IDPs) as of 31 December 201652, fact, that for the close of the 2016 the
when the total population of the country number of IDPs in BiH was 98,324
was 42,467,037 (3.9 per cent).53 people57 (2.6 per cent of the current total
country population58), gives the
It should be said that activities targeted to opportunity to recognise that this work
this vulnerable group can’t be called had a positive effect.
successful in Ukraine. The Issues of such
as social and economic rights of IDPs have Thus, studying the experience of BiH is
raised concerns in the international expedient for Ukraine, so this research
community with regards to capabilities of conducting is timely and topical.
Ukraine government to ensure their
protection. The key objective of this paper is
determination of certain successful steps
On the one hand, the work on these of BiH in the field of peacebuilding and
problems resolving is already underway. Transitional Justice providing, which
However, in consideration of the absence
of relevant practices in the country, it
would be useful to apply the experience of
other countries in this area. As to my 54 Tomaž Kravos, ‘Sustainable Returnп A
point of view, the most valuable in this Guarantee for Stability and Integration in
sense is Bosnia and Herzegovina’s (BiH) Bosnia-Herzegovina, Balkan Diskurs, 3
February 2016,
experience.
http://www.balkandiskurs.com/en/2016/02/
03/sustainable-return-a-guarantee-for-
Reasons for choosing the experiences of stability-and-integration-in-bosnia-
BiH are that the military conflict occurred herzegovina/.
there relatively recently, so the relevant 55 UN High Commissioner for Refugees Global

practice is rather contemporary. Secondly, Report 2000: Bosnia and Herzegovina (Geneva:
enough time had passed to enable ATAR Rotopresse, 2001), 388.
launching of the Transitional Justice 56 Agency for Statistics of Bosnia and
mechanisms; therefore the relevant Herzegovina, Demography 2012: Thematic
Bulletin (Sarajevo: Printing House Avery,
measures can be studied. Thirdly, юDPs’
2013), 22.
issue is an important problem for this 57 Concept Note of the Conference on Economic

and social rights for forcibly displaced persons


during the conflicts in former Yugoslavia,
51 Jeremy Lennard (Ed.), Global Report on Parliament of Bosnia and Herzegovina,
Internal Displacement (Geneva: The Internal Sarajevo, 27 – 28 June 2017,
Displacement Monitoring Centre, 2017), 10. https://rm.coe.int/coe-unhcr-conference-on-
52 Ibid., 24. idps-in-former-yugoslavia-concept-
53 State Statistics Service of Ukraine, Available note/1680716122, 2.
Population of Ukraine as of 1 January 2017, 58 World Population Prospects: The 2017

Statistical Collected Book (Kiev: August Trade Revision, Key Findings and Advance Tables,
LTD, 2017), 5. UN Doc. ESA/P/WP/248 (2017), at 17.
35
made possible the achievement of the hybrid); reparations; and institutional
rights and freedoms of IDPs, for further reform, including vetting.60
implementation of the relevant practices
in Ukraine. The conflict in Ukraine is still being in an
active phase. Therefore, it’s necessary to
Opportunities for Transitional Justice determine whether it is possible to apply
in Ukraine the experience of BiH now, or all the
In this case the first question is about recommendations on this issue should be
whether BiH’s approaches are applicable left for the future.
to Ukraine. The enquiry is that
Transitional Justice operates with the From my point of view, the question about
past. According to the UN definition, implementation of the Transitional Justice
Transitional Justice is the full range of elements is timely right now due to the
processes and mechanisms associated following reasons.
with a society’s attempt to come to terms
with a legacy of large-scale past abuses, in Primarily, there are several types of
order to ensure accountability, serve territories in Ukraine, affected by the
justice and achieve reconciliation. 59 conflict. From the one side, there are
certain territories in the east of the
UN work on Transitional Justice is based country, which are outside of control of
on international human rights law, the Government of Ukraine (in multiply
international humanitarian law, publications of international organizations
international criminal law and as UN these territories are called “non-
international refugee law. Particularly, Government controlled areas” (NGCA),
four tenets of international human rights accordingly the term “Government
law have framed Transitional Justice and controlled areas (GCA) is used for
the fight against impunity: (a) the State territories remaining under the control of
obligation to investigate and prosecute the Government61).
alleged perpetrators of gross violations of
human rights and serious violations of From the other side, there are locations,
international humanitarian law, including for which staying outside of the Ukrainian
sexual violence, and to punish those Government control remained in the past,
found guilty; (b) the right to know the the same as direct armed actions (e.g.
truth about past abuses and the fate of Sloviansk, Kramatorsk). Simultaneously,
disappeared persons; (c) the right to there are still a lot of reminders about this
reparations for victims of gross violations conflict: consequences of shelling,
of human rights and serious violations of destroyed or damaged buildings, mine
international humanitarian law; and risk, unexploded ordinances etc.
(d) the State obligation to prevent, through
different measures, the reoccurrence of And, finally, there are a big number of
such atrocities in the future. inhabited localities of Donetsk and
Luhansk regions, which is staying rather
Different mechanisms or measures have remotely from the contact line and hosting
been established to fulfill these of IDPs, who came after the armed actions
obligations: truth-seeking mechanisms
such as truth commissions; judicial
mechanisms (national, international or
60Ibid.
61 UN Office for the Coordination of
Humanitarian Affairs, Humanitarian Response
Plan: Ukraine (January-December 2017),
59 Transitional Justice and Economic, Social https://www.humanitarianresponse.info/ru/o
and Cultural rights, UN Doc. HR/PUB/13/5 perations/ukraine/document/ukraine-2017-
(2014), at 5. humanitarian-response-plan-hrp.
36
had started. People there feel the electoral rights, freedom of movement
consequences of the conflict also. etc.). All these conditions cause a fear
At the present time, for all above among people, living in NGCA, and deepen
mentioned affected territories post-conflict mutual division. Transitional Justice, even
phenomena is in place in higher or lower in its initial stage, could become an
level, such as: example of positive changes, which will
- everyday massive flows of people from help to overcome this fear and play an
the NGCA to GCA and back to solve important role in the reintegration of the
certain problems (for example, related to territories.
specifics of Ukrainian legislation towards
social and pension payments), to receive Speaking about BiH’s experience, one of
some necessary services, etc. Here it the key problems of the Transitional
should be taken into account, that for Justice implementation in this country is
people this action is still connected with limited results of the existing fact-finding
difficulties and risks; and truth-telling initiatives. It is estimated
- psychological trauma, which affected that close to 100,000 people were killed
high percentage of local population on during the war in BiH, around 35,000 of
both GCA and NGCA; them were missing, and 2.2 million people
- existence of different approaches to became refugees or internally displaced.
understanding and attitudes to roots of Although the armed conflict in BiH ended
the conflict, and disquieting expectations nearly two decades ago, a number of the
about how the further scenario for problems associated with these disasters
Donetsk and Luhansk regions as well as have not been resolved to this day.
for whole Ukraine will be developed; Despite the fact that a great deal of work
- big number of cases of human rights’ has been done, some researches point out
violations, which has not been the insufficiency of measures for credible
investigated yet and as a result guilty description of violations of human rights,
persons have not suffered punishment. objective estimation of the human losses,
efficient provision of platforms for the
The situation described above makes public hearing of victims' accounts etc. 62
people inlive in a highly stressful and
unstable environment, which increased Therefore, for at least to ensure above
due to the risk and fear of conflict noted aspect of Transitional Justice, it is
escalation and growth over the territories. advisable to start preliminary preparatory
work now, when the relevant data is still
The launch of measures for elements of available and can be documented.
Transitional Justice implementing would
help not only to overcome (for at least Besides, it is necessary to emphasize the
partially) these challenges, but also to following features of Transitional Justice,
raise chances for reintegration. The fact of which contented in the BiH Transitional
the matter is that now an active Justice Strategy. The matter is that all
propaganda, connected with the ideas of four mechanisms of Transitional Justice
the peril of the Ukraine’s control recovery, (criminal justice, fact-finding and truth-
is taking place in NGCA. In this territories telling, reparations and memorials,
is widely disseminated the statement that
at this case the NGCA residents will be
physically liquidated or extremely limited
in rights, so further existence will become 62Bosnia and Herzegovina Ministry for Human
practically impossible. This idea is Rights and Refugees, Bosnia and Herzegovina
Ministry of Justice, Transitional Justice
supported by the declarations of some
Strategy for Bosnia and Herzegovina 2012-
Ukrainian politicians and the actual 2016, Working document, Sarajevo, 2013,
restrictions of a number of rights of IDPs http://www.nuhanovicfoundation.org/user/fil
from the side of Ukrainian authorities e/2013_transitional_justice_strategy_bih_-
(nonpayment of pensions, infringement of _new.pdf , 31.
37
institutional reforms) are mutually related implementation of Annex VII of the Dayton
and dependent on each other and that a Peace Agreement and certain aspects of
specific activity can be a characteristic of the Transitional Justice Strategy for BiH.
each individual mechanism. For example, However, the second document is based
although the primary goal of criminal largely on the provisions of the first one in
justice is to establish individual criminal IDPs issues, but inscribes relevant
responsibility of the accused persons, a aspects into the overall concept of
judgment establishes, beyond a Transitional Justice in the country.
reasonable doubt, the facts about an More detailed the appropriate questions
event covered by the indictment are covered by the Revised Strategy of BiH
(factfinding and truth-telling mechanism). for the Implementation of Annex VII of the
A verdict also has the effect of delivering a Dayton Peace Agreement.64 It should be
symbolic reparation to the victim in terms said that the initial strategy was widely
of serving justice (reparations programmes discussed, which led to its adjustment
mechanism), while prosecution and trial and revision (a few updated strategies
of the responsible ones, in the end, were published several times).
indicate the will on the part of the state
and institutions to respect the This practice should be assessed as a
Constitution, laws and international positive one. There is a problem in
norms. Bearing responsibility for human Ukraine that decisions and their revisions
rights abuses, as well as the relevant at the cases of IDPs are often made
punishment, leaves the impression that contrary to the opinion of public, local
the system is functioning indeed and civil society organizations (CSOs),
ensures restoration of citizen confidence recommendations of international experts,
in institutions (institutional reform and even laws of Ukraine (in regard to the
mechanism). Finally, it is necessary to last aspect the most visible example is
emphasize that the Transitional Justice procedures of pension and social
mechanisms touch upon some other payments for IDPs65).
important issues relevant for a society
which is addressing the legacy of past The last open for the analysis English
human rights abuses, such as protection version of the Revised Strategy of BiH for
and preservation of memory, the Implementation of Annex VII of the
democratization, reconciliation, etc.63 It is
precisely this approach should become the
key one for Ukraine in identifying the line 64 Dayton Peace Agreement is the General
of application of Transitional Justice in Framework Agreement for Peace in Bosnia and
the country. Herzegovina, also known as the Dayton Peace
Agreement (DPA), Dayton Accords, Paris
Lessons of strategic planning of BiH for Protocol or Dayton-Paris Agreement, is the
Ukraine peace agreement reached at Wright-Patterson
Air Force Base near Dayton, Ohio, United
It is necessary to mark the achievements
States, in November 1995, and formally signed
of BiH in the field of strategic framework in Paris on 14 December 1995. These accords
of legal relations on юDPs’ issues put an end to the и ж⁄з-year-long Bosnian War,
development. one of the armed conflicts in the former
Socialist Federative Republic of Yugoslavia.
The national response to internal The current Constitution of Bosnia and
displacement in BiH is based on two key Herzegovina is the Annex 4 of the DPA
documents, which define the state (definition is made according to the OSCE
planning in IDPs topic. They are the Mission to BiH position).
65 А а К , ‘І в’ К а
Revised Strategy of BiH for the
, і ав
в К єві і В ’, "Д а
", № 1129 (04-10.02.2017),
63Transitional Justice Strategy for Bosnia and https://zn.ua/SOCIUM/nil-voker-territoriya-
Herzegovina 2012-2016, 14. za-kontaktnoy-liniey-eto-ukraina-_.html.
38
Dayton Peace Agreement contains the pre-war homes makes it difficult to assess
next strategic objectives: what progress if any has been made under
- completion of the return process of the previous 2010 strategy, and what
BiH refugees and internally displaced impact the new strategy will have. 67
persons; Ukraine needs to take into account that, it
- implementation of repossession of is necessary to involve the audience
property and reinstatement of widely, when working in a changing
occupancy rights; environment on the revision and
- completion of reconstruction process improvement of documents related to IDPs
of housing units for the return needs; and other groups of population affected by
- ensuring conditions for sustainable conflict.
return and reintegration process in
BiH.66 Features of the international
It is understandable that full apply of this community's participation: the pros
approach is impossible in Ukraine now. In and cons
particular, the question of the return It should be said that BiH strategies and
process of IDPs and refugees cannot be action plans for overcoming of conflicts
solved until the complete ceasefire, and consequences were written with the
ensuring of safe living conditions, broad support of the world community.
demeaning etc. At the same time, other Most of the actions in the areas, related to
issues should be included in Ukraine's IDPs, are also carried out under the
strategic documents related to IDPs. patronage of a large number of
international organizations. For example,
Particularly, this is possible to implement in BiH the work with this vulnerable
through the draft law "On the peculiarities group of population is carried out by
of state policy on securing Ukraine's state ICRC, UN Women, UN Volunteers, OSCE,
sovereignty over temporarily occupied UNICEF, OHCHR, UNDP, UNFPA, UNHCR,
territories in Donetsk and Luhansk USAID and many others.
regions", which is being developing now.
Also, it is necessary to take into account a On the one hand, these activities resulted
fact, that the key factor of any strategy is in significant achievements (such as,
not only plan, but also its implementation, establishment of peace, development of
allocation of necessary resources (human, the above-mentioned strategies, urgent
financial etc.), monitoring of the situation assistance in conflict and post-conflict
and comprehensive awareness raising. situations etc.). On the other hand, close
Insufficient attention to this factor while cooperation with international institutions
preparing could lead to developing of a also has certain negative sides. So, such
declaration, instead of effective approach leads to the formation of
instrument. political elite, which is not actively taking
Thus, in accordance with Human Rights responsibility for what is happening in the
Watch’s World Report зежм, the country. This entails apathy and mistrust
government of BiH published a revised of the population, which affects the
strategy on the return of refugees and nation-wide processes.
internally displaced persons in December
2015. But a lack of reliable public For example, Canadian political scientist
information either from the Bosnia David Chandler persuasively argued that
authorities or UNHCR about returns of the presence of the non-accountable law-
displaced persons and refugees to their making international community in BiH
also takes accountability away from

66 Revised Strategy of Bosnia and Herzegovina


for the Implementation of Annex VII of the 67 Human Rights Watch, World Report 2017:
Dayton Peace Agreement (Sarajevo: Ministry Events of 2016, (New York: Seven Stories
for Human Rights and Refugees, 2010), at 1. Press, 2017), 134.
39
Bosnian politicians, thus stimulating all to be aware that actions on one track can
political actors to simply engage in the sometimes wreck efforts on another. 71
game of “faking democracy” instead of
genuine democratization68. More recently, This issue is highly timely for Ukraine, as
Bosnian political scientist Nermina Sacic, a big number of international
at a conference devoted to the role of organizations have launched their work in
international community in BiH, simply the country during last three years. These
concluded that “the politics of the actors have a significant impact on the
international community has been processes that are taking place. Therefore,
reductionist and non-democratic, i.e. in it is necessary to build relationships in a
defiance of the democratic spirit which manner, which enable to optimize this
governs its mission, since most of the laws interaction and minimize possible negative
and regulations have been created without consequences.
consulting the public. Therefore, it may be
important to see that similar mistakes are A possible option may be to build a
not repeated in other countries of cooperation of authorities with
Southeastern Europe”.69 Faced with the international organizations in such a way,
existence of two powerful internal entities when the key initiatives will come from the
on the one hand, and just as powerful Ukrainian authorities. The main
representatives of the international intervention from the side of international
community as inventors of statehood on actors should comprise knowledge and
the other, Bosnian public intellectuals capacity building activities, which could
often bemoan the weakness of the state in ensure awareness and study about the
BiH. In words of Asim Mujkic, professor of effective methodics of response to
political science at the University of problems, but not the solo development of
Sarajevo, Bosnia has become an solutions for crisis situations.
“ethnopolis” with no hope for the
construction of a civic state any time Building civil society in the post-conflict
soon.70 period
The above-mentioned negative
Moreover, it is noted that external consequences theoretically can be
activities can also produce unintended weakened by a strong civil society, which
side-effects, end up in failure or hamper formation and development is declared in
processes of reconciliation. There is both BiH and Ukraine.
always a danger that external actors do According to the R. Belloni research of
not fully understand what has happened Civil Society and Peacebuilding in BiH,
to the people in a locality where mass citizens’ participation is one of the corner-
crimes have occurred, and might stones of the principles guiding
introduce inappropriate concepts. All too international efforts to build civil society.
often internal and external actors on the In the hopes of the international
various tracks are at cross purposes due community, political and social
to a “clash between paradigms”. Hence it participation should be expressed in the
is crucial to analyze how activities on work of local NGOs. 72 That’s why the main
different tracks relate to each other, and accent in this paper will be made on the

71 Beatrix Austin, Martina Fischer, Hans J.


68 Karol Jakubowicz, Miklos SCikosd (Eds.), Giessmann (Eds.), Advancing Conflict
Finding the Right Place on the Map: Central Transformation, The Berghof Handbook II,
and Eastern European Media Change in a (Opladen/Framington Hills: Barbara Budrich
Global Perspective, (Chicago: Intellect Books, Publishers, 2011), 423.
2008), 148. 72Roberto Belloni, ‘Civil Society and
69 Ibid. Peacebuilding in Bosnia and Herzegovina’,
70 Ibid. Journal of Peace Research 38 (2001), 172.
40
aspect of civil society organizations (CSOs) Associations of Refugees, Displaced
functioning.73 Persons and Returnees; Association of
It must be said that the topic of the role of Refugees and Displaced Croats in BiH. 76
civil society in the Transitional Justice At the same time, a number of
realization has been critically reexamined shortcomings in the activities of this
due to their prominent role in this sector are noted. For instance, to argue
process. One of the last scientific papers, that the development of NGOs in BiH is
which are dealing with Transitional complex and confusing is an
Justice in BiH issues (published on July, understatement, given the presence of
2017), defines the need to improve the role large numbers of INGOs whose emergency
of civil society in Transitional Justice relief operations became a kind of
processes. Its author argues that during substitute civil society and many of which
the past decade, however, civil society are now seeking, in the post-emergency
actors supporting Transitional Justice phase, to secure funding for their own role
practices have grown.74 Also, it is noted, in (local) NGO development. юt’s noted that
that CSOs in BiH play a supporting role in 'civil society', always a slippery term at
the country’s emerging post-conflict and best, becomes even more contested and
post-socialist democracy, and their problematic in BiH. All of the large INGOs
achievements should be neither are present in BiH and, reflecting the fact
overestimated nor underestimated. This that this is a major protracted political
heterogeneous sector includes some emergency in Europe, they have been
23,000 CSOs as of mid-2016, less than joined by a range of Western feminist and
half of which are actually active. Most of peace solidarity organisations, new
them are small associations operating in INGOs, and a range of volunteer projects.
the fields of social services, cultural Together, these organizations construct an
activities and advocacy.75 implicit social policy through their
activities in the spheres of regulation,
Truthfully, the CSOs, including CSOs of redistribution and provision.77
refugees and displaced persons,
participate actively in the Transitional Another recent (2017) study about civil
Justice processes, holding in the state. society in BiH marks, that after the war
BiH was completely destroyed in terms of
For example, the Revised Strategy of BiH both social capital and infrastructure; also
for the implementation of Annex VII of the citizens were imprisoned in newly formed,
Dayton Peace Agreement 2010 among ethnically divided and homogenized
those, who participated in the working communities. International aid was
subgroups activity and thus contributed important for mitigating the humanitarian
to the revision of the Strategy, such local crises, but it also had negative effects on
CSOs are listed: BiH Union of both CSOs and the state. Some
Associations of Refugees, Displaced organizations were genuine grassroots
Persons and Returnees; RS Union of initiatives that pursued goals for social

73 юn this paper terms “CSO” and “NGO” are

regarding as the equal ones.


74Arnaud Kurze, ‘Time for Changeп Aid, NGOs,

and Transitional Justice in Bosnia- 76 Revised Strategy of Bosnia and Herzegovina


Herzegovina’, Transitional яustice Review ж for the Implementation of Annex VII of the
(2017), 41, 46-47. Dayton Peace Agreement (Sarajevo: Ministry
75 Peter Vandor, Nicole Traxler, Reinhard for Human Rights and Refugees, 2010), at 4.
Millner, Michael Meyer (Eds.), Civil Society in 77 Bob Deacon, Paul Stubbs, ‘юnternational
Central and Eastern Europe: Challenges and Actors and Social Policy Development in
Opportunities, (Vienna: Publisher ERSTE Bosnia-Herzegovina: Globalism and the 'New
Foundation, Center Vienna University of Feudalism', Journal of European Social Policy
Economics and Business, 2017), 188, 190. 8 (1998), 111.
41
change, but most used the momentum to participation. The technical delivery of
achieve their own interests.78 services is given priority over the political
articulation of channels of expression for
Critics of post-war “CS building” the disempowered and excluded.
emphasize the weak connection between Frequently, NGOs are contractors,
foreign-supported organizations and local customers are constituencies, while
constituencies. Many CSOs have been members become employees. Hence,
created in response to available donor accountability is redirected toward the
funding but with little local backing. donor and away from the organizations’
Conversely, groups formed by citizens social base, and the idea of participation
uniting for social or political change either and empowerment is squelched by the
receive little assistance, or ‘NGO-ize’ to reality of an externally driven process. 81
become eligible for donor funding at the Some analysts say that international
cost of growing distance from their community continues to maintain the
constituency.79 fiction of the properly functioning
institutional framework and, by so doing,
International environment formed local prevents civil society from assuming
branches in BiH that developed various responsibility and its proper political role
projects and social services that were vis-à-vis local ethnic elites.82
needed, but some authors estimate that it
was, in fact, a “parallel system of social Moreover, CSOs today do not enjoy a lot of
services, which weakened government’s trust in the public eye due to the lack of
ability and will to re-establish effective transparency and democratic procedures
state-run social institutions”. However, in within their organizations, and they do
a devastated and ethnically divided not conduct independent financial audits
country like BiH, certain issues would of their work. Only 18 per cent of these
have probably not been addressed at all if organizations undertake financial audits,
it were not for these organizations and and less than 5 per cent publish their
their projects. The vast majority of CSOs annual accounts.83
were formed in larger urban areas, while The situation in Ukraine is quite similar
rural communities remained neglected. 80 now. After the conflict started in the
Eastern Ukraine, a large number of CSOs
R. Belloni’s investigation has shown that appeared on both local level and in the
the heavy dependence of local NGOs on capital of the state. Mainly these CSOs are
external donors has a strong impact on playing the role of contractors and
their functioning, agendas, and implementing partners of international
effectiveness. Top-down planning, top- actors and national donors. Among others
down funding, and upward accountability the described tendency is a reason for
often negate participation. Pragmatically, declaration of development of civil society
NGOs veer toward a market mechanism in the country. But, as it is visible from
that focuses on the provision of services at the experience of BiH, such a trend could
the expense of genuine political and social be a cause for its stagnation, and not a
factor for its increasing.

78 Peter Vandor et al. (Eds.), Civil Society in Also, the issue of interaction between
Central and Eastern Europe: Challenges and CSOs is rather complicated in Ukraine.
Opportunities, 191.
79 Randall Puljek-Shank, Willemijn Verkoren,

‘Civil society in a divided societyп Linking


legitimacy and ethnicness of civil society 81 Belloni, ‘Civil Society and Peacebuilding in
organizations in Bosnia-Herzegovina’, Bosnia and Herzegovina’, жми-174.
Cooperation and Conflict 52 (2) (2017), 185. 82 Ibid., 172.
80 Peter Vandor et al. (Eds.), Civil Society in 83 Peter Vandor et al. (Eds.), Civil Society in

Central and Eastern Europe: Challenges and Central and Eastern Europe: Challenges and
Opportunities, 191. Opportunities, 191.
42
The situation is widespread, when CSOs Ukraine is faced with a number of
carry out identical activities about the challenges, connected with the need to
same territory, but they concentrate on respond effectively to the problems of a
competition with each other, rather than huge number of IDPs, who previously
on building partnerships. lived in Crimea and certain territories of
Donetsk and Luhansk regions of Ukraine.
Another feature is that often financing for Transitional Justice mechanisms could
one or another project implementation is play a significant role for Ukraine not only
received by CSOs at the central level, as in dealing with the aftereffect of the
they have more opportunities to meet current situation, but also in preventing
formal requirements due to wider possible negative consequences.
experience in such procedures, previous
practice on cooperation with international Despite all elements of Transitional
organizations. At the same time, not all of яustice can’t be used at the present
them have branches or systematically moment, nowadays it is an important time
maintain networks in the regions. In such for the collecting and preserving evidence
cases local CSOs are contracted “ad hoc” of human rights violations, committed
and conduct the necessary scope of work during the conflict, what is the necessary
for lower funds. Thus, there are the precondition for criminal justice,
situations, when central CSOs are partly reparations, institutional reforms etc. The
turning into business projects, whose key objective is to secure as much data as
activities over time tend to focus more on possible, but it should be done
making a profit, rather than contributing systematically and be accompanied by
to real changes in the local level. using unified rules. In that case further
Hereby, in accordance with the above applying of international mechanisms in
mentioned experience of BiH, it is possible the sphere of human rights will go
to formulate the next recommendations effectively.
for Ukrainian CSOs. Firstly, it is
necessary to strengthen the networking Success of the Transitional Justice
component of systematic CSOs providing is often depends on the suitable
development. Secondly, the accent in the strategy, which is a cornerstone of this
work of CSOs should be made on training process. Until Ukraine can’t establish full-
and empowering of their members, fledged program of Transitional Justice
enhancing of the capacity of local aims’ achievement, some of its aspects
partners’ organizations and initiative might be implement through the draft law
groups. For example, it is advisable for "On the peculiarities of state policy on
CSOs of any mandate to be knowledgeable securing Ukraine's state sovereignty over
about engaging the target group of people temporarily occupied territories in
to these bodies’ activities, organizing Donetsk and Luhansk regions ", which is
projects with a "zero budget" (incidentally, being developing now.
the experience of the CSO "Promolod"
from Cherkasy, which has been The next matter is that Ukraine (as well as
successfully implementing such practice BiH during the conflict phase and in the
(e.g. "Cherkasy in the Perspective", "Pure beginning of the post-conflict period) feels
Wave", "Open University", "Free Walking the lack of information about the
Tours" and other projects (more on this specifics, tools and measures of
topic is on the 84) for several years, may Transitional Justice application. This
make interest). could be overcome through the support of
international organizations, the vast
Conclusion majority of which has the experience in
countries with similar contexts, where
certain practices proved their
84 CSO "Promolod" Official Web Site, effectiveness. Simultaneously, such actors
http://promolod.pp.ua/ must be the consultants, but not the
43
decision-makers. The main intervention
from the international partners should
comprise knowledge and capacity building
activities, which could ensure awareness
and study about the effective methodic of
response to problems, but not the solo
development of solutions for crisis
situations.

To the best advantage the interests of the


IDPs can be expressed by CSOs,
consisting of or working with these people.
In addition, it is precisely a strong civil
society that can ensure the
implementation of institutional reforms
and ensure the work of the mechanisms of
Transitional Justice. At the same time it is
necessary to take into account that such
changes could be accomplished based on
consistent and synergetic work only, so
there must be paid a special attention to
the networking component of CSOs
development. Also the local level actors
must be as much as possible involved in
the appropriate activities.

44
BIBLIOGRAPHY

Edited works
 Austin, Beatrix, Fischer, Martina, J. Giessmann, Hans (Eds.), Advancing Conflict
Transformation, The Berghof Handbook II, (Opladen/Framington Hills: Barbara


Budrich Publishers, 2011), 559.
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Central and Eastern European Media Change in a Global Perspective, (Chicago:


Intellect Books, 2008), 301.
Vandor, Peter, Traxler, Nicole, Millner, Reinhard, Meyer, Michael (Eds.), Civil Society
in Central and Eastern Europe: Challenges and Opportunities, (Vienna: Publisher
ERSTE Foundation, Center Vienna University of Economics and Business, 2017),
310.

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 Kurze, Arnaud, ‘Time for Changeп Aid, NGOs, and Transitional яustice in Bosnia-
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News articles
 К , А а, ‘І в’ К а , і
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UN Doc. ESA/P/WP/248 (2017), at 17.

46
47
The Allies and Opponents of the Bulgarian
Protests against the Borisov Government,
the “Bosnian Spring” and the “Citizens for
Macedonia” Movements and their Impact
on the Policy Process
By Ivan Stefanovski*

ABSTRACT

This article analyises the allies and opponents of the three movements
in Bulgaria, Macedonia and Bosnia and Herzegovina taking into
consideration some of the main factors and actors within the POS
approach to social movement studies, primarily the political systems in
the three states as main organizational fields for political parties and
other actors in the political system; the role of the political parties and
allies and opponents to the movements; the key role of the international
community in regards to the interaction with the social movements and
the main political parties; as well as the role of the most significant
media actors and their relationship with the movements.
.

* Ivan Stefanovski holds a LL.B. and LL.M. degree in Constitutional Law, both from the Ss.
Cyril and Methodius University in Skopje, Republic of Macedonia. At the beginning of his
career, he started working as a member of the junior teaching staff at the Justinianus Primus
Faculty of Law, giving classes and tutorials in Constitutional Law, Political Systems and
Political Parties and Interest Groups. Ivan later worked for several domestic and international
NGOs working on issues such as elections and electoral models, media law, human rights,
rule of law, freedom of information etc. He is a member of several international networks and
groups. Ivan started his PhD in Political Science and Sociology at the Scuola Normale
Superiore in 2014, working on influence of social movements over policy outcomes in
Southeast Europe, focusing on the cases of Macedonia, Bulgaria and Bosnia and Herzegovina

48
1. Introduction with the specifics of the three cases under
This work deals with the allies and study. Each country-oriented subsection
opponents of the three movements which elaborates on the relationships between
are under study, taking into consideration the movement actors, the main political
some of the main factors and actors parties, the international community and
within the POS approach to social the media. Furthermore, these
movement studies, primarily the political subsections highlight the most important
systems in the three states as main events which contribute to the respective
organizational fields for political parties outcomes in the three cases under study.
and other actors in the political system; Lastly, the final section of this paper is
the role of the political parties and allies devoted to the conclusions.
and opponents to the movements; the key
role of the international community in 2. The Political Systems as Organizational
regards to the interaction with the social Fields for Political Parties as Key Actors
movements and the main political parties; Macedonia and Bulgaria are defined as
as well as the role of the most significant unitary countries, while B&H is
media actors and their relationship with characterized by a unique constitutional
the movements. design developed by the international
community in the aftermath of the
The following section is focused on the Yugoslav wars. This resulted with a clear
political systems of the three states, government/opposition divide in the two
looking at the main differences regarding unitary countries, and a very complicated
their institutional setting, as well as the government-opposition relationship in
interaction between the key institutional B&H, which varied on state, entity and
actors. The main differences across states cantonal level. Furthermore, the multiple
are the unitary vs. complex/federal veto players in the BH constitutional and
institutional design which resulted with political system require a lot of
specific government-opposition compromise, fluctuating coalitions, but
relationships. also, it very often ends with endlessly long
blockades of the political processes in the
The third section of this work looks at the country
anchoring role of the international
community, especially in the case of During the Citizens for Macedonia (CfM)
Macedonia. Furthermore, this section platform activities and further during the
presents the main notions regarding the extensive political negotiations between
attitude of the international actors during the largest four political parties (VMRO-
the three waves of mobilization: The DPMNE85, SDSM86, DUI87 and DPA88)
strong involvement in the Macedonian there was a very clear pro/contra
case, the lack of interest in the Bulgarian movement divide. From the very
case, as well as the ambivalent and not beginning, the SDSM was a constitutive
very coordinated approach to the situation member of the CfM platform and had a
in B&H. partner relationship with the numerous
SMOs and individuals which were
The next section glances through the main involved89. At the end of the political
information regarding the media setting in negotiations, the SDSM stepped out from
the three countries, including their
considerably low levels of media freedoms
and freedom of speech. It points to the 85 Internal Macedonian Revolutionary
main characteristics of the relationships Organization – Democratic Party for
between the movement actors and main Macedonian National Unity
86 Social Democratic Union of Macedonia
media outlets.
87 Democratic Union for Integration
88 Democratic Party of the Albanians
The fifth section is divided into three 89 See interviews XX MKD – M.Z. and XX MKD
smaller subsections, each of them dealing – B.M.
49
the CfM coalition arguing that the party political party in power during the
should return to parliament and focus on protests, acted as a strong opponent to
implementation of the provisions agreed the movement, although making
upon in the Przhino Agreement 90. On the concessions to the activists, when this
other hand, the largest party in power, the was convenient for its public political
VMRO-DPMNE, was a clear opponent to support. This fluid constellation of
the movement activities, going to the relationships, in comparison to the
extreme of negating its existence and Macedonian case, to a certain extent
labeling it as clearly partisan activity by derives from the fragile position of the
the SDSM and clearly disregarding the Borisov cabinet, due to its nature of a
citizens which were largely involved91. minority government94. What remained an
Furthermore, the largest ethnic Albanian enigma was the very neutral position of
party in the country, the DUI, did not the Movement for Rights and Freedoms
directly confront the governmental (MRF), colloquially referred to as “the
challengers, but tacitly aligned with its Turkish Party”. Although in opposition, no
senior partner in the government, the clear support for the movement actors was
VMRO-DPMNE. This was more evident noticed or pointed out by the
during the political negotiations in interlocutors. The section devoted to the
Przhino. Lastly, the DPA, as a largest interactions between the friends and foes
ethnic Albanian party in opposition, of the Bulgarian protesters will further
remained almost completely silent during reflect on the complex relations between
the movement activities. What was very the key political parties and the
unusual was the covert allegiance to the governmental challengers.
largest party in power, the VMRO-
DPMNE92. The inter-party dynamics and Moving to the third country which is
their attitudes towards the CfM are under study, the very complex political,
thoroughly explained in the section ethnic and party relationships,
dedicated to allies and opponents in unexpectedly, created a very straight-
Macedonia. forward outcome regarding the positioning
of the political parties in regards to the
The first Bulgarian protest wave in 2013 movement actors. The largest political
saw very fluctuating dynamics in the parties in the state, the SDP95 and the
party-movement relationship, especially SDA96 in FB&H, and the SNSD97 in RS,
regarding the role of the largest party in although ethnically and territorially
opposition, the BSP. Many of the divided, aligned together against the
interviewees commented how the central protesters. From the first days of protest
left party played a very dubious role in Tuzla, Sarajevo and Mostar, the biggest
during this first wave of mobilization 93. On political parties began an orchestrated
the other hand, the GERB, as the largest attack over the governmental challengers,
some of the high public officials even
labeling them as thugs, criminals, drug
90 traffickers and scum98. The only
http://arhiva.sdsm.org.mk/default.aspx?mId=
55&agId=5&articleId=12321 (in Macedonian)
and http://fokus.mk/sdsm-se-zablagodari-i- 94 http://www.france24.com/en/20090727-
izleze-od-koalitsijata-graganite-za-makedonija/ borisov-lead-new-minority-government-
(in Macedonian) 95 Social Democratic Party
91 http://prizma.mk/blog-vo-zhivo- 96 Party for Democratic Action

makedonija-silna-miting-na-vmro-dpmne/ (in 97 Union of Independent Social Democrats

Macedonian) 98 https://www.klix.ba/vijesti/bih/uzivo-
92 protesti-u-sarajevu/140207060 and
https://www.youtube.com/watch?v=GLFG6Y8 https://www.klix.ba/vijesti/bih/klix-ba-u-
E9YE zgradi-predsjednistva-bih-demonstranti-su-
93 Interviews XX BUL – B.P.I. and XX BUL – unistavali-i-svecani-salon/140208024 (in
D.D. Bosnian)
50
significant political party which declared foreign powers were one of the crucial
itself as “opposition”, was the SBB99 led by allies of the movement in Macedonia. This
security minister Fahrudin RadončiР. is mainly because both the governmental
Immediately after the protests exploded, challengers and Brussels and Washington
RadončiР aligned with the movement had very similar visions and standpoints
actors and strongly criticized the other regarding the future of the state. A
political parties in power100. In the country which is re-democratized, where
forthcoming period he was sacked from rule of law is reintroduced and whose
the ministerial position by the majority in urgent priorities are the Euro Atlantic
the Federal Parliament101. The section integrations. On the other hand, sporadic
dedicated to the context in which the Russian influence was also noticed during
allies and the opponents of the BH the contentious events. Expectedly,
protests operated, sheds deeper light on Moscow issued press releases backing the
how the party dynamics unraveled and regime of PM Gruevski and arguing
influenced the policy outcomes. redefinition of territories and borders in
the Balkans by their Western
3. The Crucial Role of the International opponents104. It must be noted that this
Community influence was relatively mild in
One of the factors which are largely comparison to the engagement by the
understudied in social movement Western diplomats. The crucial role of the
scholarship is the role of the international international community in regards to the
community in the contentious dynamics policy outcomes arising from the CfM are
between the challengers and the state. analyzed in detail in the section dealing
Traditionally, the foreign powers have with key external actors during the
played a key role in the state building movement in Macedonia.
process of the Balkan countries after the
fall of the Iron Curtain102. Within the three Conversely to the Macedonian case, the
cases under study, this is underpinned role of the international community
more in the cases of B&H and Macedonia. during the first wave of mobilization in the
contentious 2013 in Bulgaria was rather
The role of the international community limited. An apparent lack of interest by
was undoubtedly largest in the the major international players, may be a
Macedonian case, especially through the result of two main factors: the already
pressure exerted over the largest four completed Euro-Atlantic integration of
political parties during the Przhino Bulgaria, unlike the one of Macedonia and
negotiations. Within the plethora of B&H, as well as the fact that the three
international envoys which were engaged distributors of energy which dominated
during the protests in Macedonia, and the Bulgarian market, EVN, CEZ and
later, the political negotiations, the EU Energo Pro, are companies coming from
and the USA were the most visible ones 103. the EU. Ultimately, long-term decrease of
Fostering the political negotiations, the energy distribution prices would have
damaged the financial stability of these
companies which have their seats in EU
99 Union for a Better Future of B&H countries (Austria and Czech Republic)
100 Dnevni Avaz 09.02.2014 (in Bosnian) and employ a lot of citizens in their
101 https://www.klix.ba/vijesti/fahrudin- founding states. The inert position of the
radoncic-smijenjen-s-pozicije-ministra- international community is further
sigurnosti/140313073 (in Bosnian) elaborated in the section dedicated to the
102 Bieber, F. (2011). Building impossible

states? State-building strategies and EU


membership in the Western Balkans. Europe-
Asia Studies, 63(10), 1783-1802. 104
103 http://www.novinite.com/articles/168689/Ru
https://www.gov.uk/government/news/joint- ssia+Claims+Macedonia+Crisis+Managed+from
statement-on-political-crisis-in-macedonia +Abroad
51
Bulgarian movement’s allies and The role of the media in social movements
opponents. is one of the most important factors which
largely affect the creation of the image and
The third case which is under study in the acquisition of potential friends and
this work is the most puzzling regarding allies of particular mobilizations.
the involvement of the international Rohlinger and Vaccaro have particularly
community. Since its post-war underlined the role of mass media in
reformation, B&H was a state where its social movement studies because “they
international partners played a key role in carry movement ideas to a broad audience
the state building, reconciliation process, and give activists leverage in institutional
and the peace building105. The first days of and political processes”111. The
protests saw a disturbing statement by cartelization of mass media, their
the Office of the High Representative alignment with power structures and the
Valentin Inzko. The OHR called for urgent perilous conditions in which independent
stop of violence, alternatively advocating investigative journalists work, made the
for a possible military intervention by the mainstream media more of an opponent to
guarantors of peace in B&H106. the movements in the three cases under
Furthermore, although numerous study. Similar conclusions can be derived
ambassadors and other envoys regarding the print media in the three
continuously visited the state and countries, although, a slightly more
interacted both with the protesters and balanced distribution in regards to
the key political figures107, no further supporters and opponents to the
effort was invested in order to help the movements was noticed.
governmental challengers reach the policy The Macedonian CfM occurred in the
arena on federal and state level. Even midst of a very volatile media scene, when
visits by high level officials such as media freedoms were in vertiginous free-
Catherine Ashton108, Hoyt Bryan Yee 109 fall. The Macedonian public broadcasting
and William Hague110 failed to impose service (PBS), the Macedonian Radio and
sufficient pressure over high BH officials Television (MRT), was transformed into a
in order to help and alleviate the citizens’ governmental mouthpiece112, and at least
grievances. The specific section dealing the three largest privately owned media
with friends and foes in the BH context outlets were in close ties with the
elaborates on the main reasons government, acting as fierce opponents to
contributing to the absence of the the movement actors. A more balanced
mechanism of international support, score was noticed among the printed
which gravely limited the BH media. Among the two daily newspapers
governmental challengers in fulfilling their with the largest circulation, Dnevnik was
goals. dominantly pro-governmental, while
Sloboden Pechat was clearly in support of
4. Mediatizing the Movements: The Role of the movement and the parties in
the Media opposition. Still, apart from the small
amount of allies within the media sphere
in Macedonia, the movement actors
105 Bieber, F. (2011). Europe-Asia managed to build a strong and stable
Studies, 63(10), 1783-1802. SECOND TIME coalition with their allies, trying to
106 https://www.rferl.org/a/bosnia-inzko- neutralize, as much as possible, the
warning-troops/25258191.html
107 Interview XX B&H – S.T.
108 http://europa.eu/rapid/press-release_IP-
14-252_en.htm 111 Rohlinger, D., & Vaccaro, C. (2013). Media
109 and Social Movements, p. 1 SECOND TIME
http://www.predsjednistvobih.ba/saop/defaul 112 http://www.wan-
t.aspx?id=59251&langTag=en-US ifra.org/sites/default/files/field_article_file/Sof
110 http://www.sarajevotimes.com/william- t%20Censorship%20Macedonia%20Dec%2015.
hague-visits-bosnia-herzegovina/ pdf
52
constantly strong attacks coming from the The same protest-hostile atmosphere was
government-affiliated media. The following nurtured by the private media outlets as
section analyzing the Macedonian well. On the other hand, the setting
movement’s friends and foes in context, regarding the printed media was very
further clarifies the relations between the similar to the Macedonian case, with a
CfM movement and the actors from the clear division between the allies and
media scene in Macedonia. opponents to the BH protests. Dnevni
Avaz, a highly circulated daily owned by
During 2013, Bulgaria was rated as the Fahrudin RadončiР, the former federal
worst in the EU regarding media rights Minister of Security, was at times
and freedoms. These media surroundings considered as one of the main allies of the
were anything but a friendly environment protesters113, providing detailed
for the emerging first wave of winter information on the protest activities and
protests. The huge media concentration being highly critical to the power holders.
around couple of oligarchs very close to Still, many interviewees didn’t perceive
the ruling elite, created a hostile RadončiР, his political party SBB and his
atmosphere against the governmental newspaper a sincere friends, but more as
challengers. Similar to the Macedonian a populist-opportunist who wanted to
case, the PBS in Bulgaria strongly misuse the protest activities and swing
defended the government’s positions, public opinion in his direction 114. On the
while the most powerful private media other hand, many other read and
outlets continuously attacked and circulated dailies and weeklies were firmly
stigmatized the protesters. Furthermore, loyal to the authorities and participated in
printed media were also mainly the distortion of the clear picture, creating
adversaries to the protesters, with several false images of the governmental
exceptions which remained fairly neutral. challengers. The last section preceding the
Left without any tangible ally in the media conclusions of this work analyzes in
department, the movement participants further details the relations between the
were forced to exploit only social media movement actors and the most important
and alternative media outlets. Conversely media outlets during the 2014 BH
to the Macedonian case, the Bulgarian protests.
protesters failed to secure stable and
somewhat credible partners in the media 5. Friends and Foes in Context
sphere. This left them with very limited 5.1. The Allies and Opponents of the CfM
visibility and without allies. Furthermore, Movement as a Key Factor for Favorable
this was also one of the main reasons for Policy Outcomes
early demobilization and failure to secure Macedonia as a unitary state with a
favorable policy outcomes. In the section monocameral legislature and clear-cut
devoted to allies and opponents of the horizontal separation of powers, providing
Bulgarian winter protests, this study the setting for a clear
delves deeper into the dynamics between government/opposition divide115. During
the movement and the media. the CfM mobilization both the majority in
parliament, and the directly elected
The last case presenting the media scene president of the state were in the
in B&H shares many similarities to the authoritarian hands of PM Nikola
two previously described cases. The very Gruevski, leader of the ruling VMRO-
ethnically and politically divided media DPMNE. Furthermore, the largest party in
setting is also a fertile soil for fostering the
triad of money, media and politics. The
several PBSs were ethnically and 113 Dnevni Avaz 07.02.2014-30.04.2014
politically loyal to the centers of power, 114 Interview XX B&H – E.E.
providing a lot of airtime and space for 115
high level politicians to throw full scale http://www.wipo.int/edocs/lexdocs/laws/en/
attacks on the governmental challengers. mk/mk014en.pdf
53
power also controlled the vast number of parties. The DUI, which was a junior
municipalities including the City of partner in the governing coalition, had a
Skopje. As expected, the largest ruling very reserved stance towards the CfM and
party was the major opponent to the its activists. Prior to the grand rally on 17
movement which pushed for May, the DUI leader Ali Ahmeti issued a
democratization and detronization of the statement reaffirming the constitutionally
ruling elite. The parties in power which guaranteed freedom of peaceful assembly,
comprised the governing coalition were and urged citizens to protest and to
the biggest opponents of the movement. channel their grievances in a peaceful
This primarily refers to VMRO-DPMNE as manner120. This dubious position of the
the largest and most dominant party in DUI may arise from the prior closeness
government. As it is very common in between the DUI and the SDSM who
social movement studies, the state as governed together in a coalition from 2002
target of the movement had much more to 2006. This coalition was reaffirmed
resources on its disposal, which the power following the early parliamentary elections
holders in Macedonia were using to cling in 2016, when the coalition led by the
to power as longer as possible. The main SDSM coalesced with the DUI and another
strategy of the VMRO-DPMNE was to pre-electoral coalition of Albanian parties
discredit the protesters and present them in order to install the new reformist
solely as party members whose only wish Macedonian government. Another
was to come to power116. Apart from the argument, which to a certain extent
continuous media campaign performed by explains the reserved standpoints of the
its government mouthpieces117, the largest junior partner in government, was the
ruling party organized a counter public opinion which continuously
mobilization on the following day after the highlighted that a vast majority of the
17 May grand rally, and set up a counter ethnic Albanian citizens voiced strong
shantytown encampment opposite from disapproval of former PM Gruevski 121. On
the Macedonian parliament, under the the other hand, during the negotiations in
smokescreen of defending democracy from Przhino among the largest four political
the occupiers, traitors and invaders of parties, the DUI showed closeness to the
Macedonia118. Former PM Gruevski and VMRO-DPMNE. According to several
his party led the media campaign in the interlocutors, the main motivations were
direction of ignoring the numerous the party-centered lucrative and political
movement actors, but frontally attacking interests122.
the leader of the opposition Zoran Zaev as Lastly, circling with the opponents to the
the great “mastermind” of the entire CfM movement coming from the side of
mobilization, scaling down the role and the political parties, the biggest surprise
the impact of the citizens119. came from the largest ethnic Albanian
party from the opposition, the DPA, led by
What was very peculiar was the relatively years long MP Menduh Thaci. Taking into
neutral position of the ethnic Albanian consideration the previously stated

116 http://prizma.mk/blog-vo-zhivo- 120

makedonija-silna-miting-na-vmro-dpmne/ (in http://www.fairpress.eu/blog/2015/05/15/mi


Macedonian) nisters-resign-as-macedonia-enters-into-deep-
117 http://russia- political-crisis-followed-by-everyday-protest-
insider.com/en/politics/leaked-memo-shows- and-increased-bias-in-media-reporting/
soros-ngos-payed-macedonian-students-1500- 121

come-regime-change-ideas/ri7179 http://www.iri.org/sites/default/files/wysiwyg
118 https://www.occrp.org/en/blog/4012- /2015-07-
macedonia-a-tale-of-two-skopjes 13_survey_of_macedonian_public_opinion_june
119 http://prizma.mk/blog-vo-zhivo- _6-15_2015.pdf
makedonija-silna-miting-na-vmro-dpmne/ (in 122 Interviews XX MKD – B.M. and XX MKD –

Macedonian) Dj.H.
54
arguments, primarily the sentiments of witnessed the close cooperation between
the ethnic Albanian citizens, one would the citizens and the SDSM in terms of
expect that the DPA would be one of the human resources, funding, knowledge-
strongest supporters of the CfM, and sharing and values126. Furthermore, the
fiercely oppose the VMRO-DPMNE and crucial role that the political party had in
DUI led government. To the contrary, the enacting the laws deriving from the
DPA remained reserved and silent during Przhino Agreement, and which were to a
the protests, while tacitly supporting the large extent complementary with the
two ruling parties during the Przhino grievances of the citizens, once again
negotiations. One of the indicators which, depicted the close ties between the two
to a certain extent, unraveled the entities. The CfM was the only movement
unconditioned loyalty of DPA and its among the three which are under study,
leader was the released wiretapped which had a strategic partnership and
conversation between Menduh Thaci and cooperation with one of the biggest and
the former chief of the secret service and most influential parties within the three
first cousin of former PM Gruevski, Sasho respective political systems of Macedonia,
Mijalkov. In the phone conversation Bulgaria and B&H. This proved to be one
released by the SDSM, the wider public of the crucial factors which contributed
could hear Thaci saying to Mijalkov that towards the verification of the desired
he would be “loyal until his death”123! policy outputs and their further
Once again, the narrow business and implementation resulting with valuable
political interests prevailed over the policy outcomes.
democratization of Macedonia and the
protection of human rights of its citizens. The frequent press releases coming from
Brussels and Washington, as well as the
On the other hand, the largest party in numerous visits of high European and
opposition, the SDSM, who led the American officials aimed at putting
democratic opposition, was the greatest pressure over the Macedonian authorities
ally of the CfM. In the period preceding in order to release the authoritarian grip
the encampment in front of the imposed over their political opponents and
government, and almost during the entire the civil society. After the huge citizens’
period of protests, the SDSM and the gathering on 17 May and the setting up of
smaller political parties from the coalition the encampment in front of the
in opposition, were also constitutive government, followed by the huge rally
members of the CfM124. It was only when and counter-encampment set up by
the political negotiations were drawn to VMRO-DPMNE supporters, the
closure, that the political parties formally international community felt that political
stepped out of the movement because they negotiations must commence as soon as
were supposed to re-enter parliament and possible, in order to prevent violent
participate in the implementation of the contentious events. One of the key
provisions from the Przhino Agreement 125. informants further explained the caution
Many interlocutors, both coming from the of the international community regarding
side of the SMOs and the political parties, the political stability and security of
Macedonia:
“At the end of the 80s, President George
Bush senior asked his National Security
123
Council ‘Which is the lowest common
https://www.youtube.com/watch?v=GLFG6Y8 denominator for цmerica’s intervention in
E9YE the Yugoslav crisis?’ The analytical
124 http://plusinfo.mk/vest/25867/gragjanite-
services pointed out to him that the lowest
za-makedonija-povikaa-na-miren-protest-na-
17-maj (in Macedonian)
125 http://telma.com.mk/vesti/sdsm-ja-
napushti-koalicijata-gragjani-za-makedonija 126 Interviews XX MKD – B.K. and XX MKD –
(in Macedonian) I.T.
55
common denominator is Macedonia. Why? inability of the political leaders to find a
They evaluated Macedonia as the only common solution to end the political
Yugoslav republic with explosive powers. stalemate, furthermore urged the citizens
All the other had implosive characteristics. to take the streets and put pressure on
What does this mean? You can have a war the government, but also on the
in B&H for 10 years. It can be bloody and opposition, in order to start working for
tragic, but it is likely that it will not spill their wellbeing. During the peak of the
over the border with Croatia, not to speak crisis, when the protesters in front of the
of Vienna. They said that Macedonia had government started to become impatient
that explosive power and that this must not and slightly nervous, while the political
be allowed under any circumstances…”127 negotiations were going towards a dead
end, the US Assistant Secretary for
This is one of the reasons why the European and Eurasian Affairs Victoria
mechanism of international influence Nuland, landed in Skopje in order to
played such an important constitutive facilitate the talks and to help in bridging
part of the puzzle for acquiring policy the gap between the main political actors.
outcomes which would further secure re- After meeting the key stakeholders she
introduction of rule of law and respect of gave a statement underlining the
human rights in Macedonia. The alliance cooperation with the EU aimed towards
between the movement participants and putting Macedonia back on the road to
the Western international community also democratization:
arises from the complementary interests. “Now is the time to bring this crisis to an
Both parties pushed for westernizing of end. We the United States are very pleased
Macedonian society and for limiting the to be working with the European Union… to
authoritarian power of former PM try to bring the parties together around a
Gruevski’s government which throughout package of understanding that will allow
the years had removed the established Macedonia to get back on its chosen
checks and balances in Macedonia’s path”130.
political system.
Deputy Secretary Nuland obviously
From the very beginning of the political synchronized her visit to the country with
negotiations, numerous high officials from that one of the EU high officials, EU
the US Department of State and the EU Commissioner for Neighborhood Policy
Commission flew in Skopje, facilitating the and Enlargement Negotiations, and the
negotiations brokered by the official three MEPs from the European
representatives of the USA and the EU – Parliament, Richard Howitt, Ivo Vajgl and
H.E. Ambassador Jess Baily and special Eduard Kukan. Just one day after
representative Aivo Orav128. In the midst Nuland’s visit, Commissioner Hahn
of the years-long political crisis and just arrived in Skopje, while his three
several weeks before the protests erupted, colleagues from the EP arrived the
US Deputy Assistant Secretary for following day131. After the coordinated
European and Eurasian Affairs Hoyt Brian international pressure and facilitation, on
Yee, visited Macedonia and met the four 15 July 2015 the Przhino Agreement was
political leaders as well as other high
political officials in the country129. The
130

http://www.balkaninsight.com/en/article/nul
and-focuses-on-rule-of-law-in-kosovo-
127 Interview XX MKD – S.O. montenegro
128 131

https://ec.europa.eu/commission/commission https://ec.europa.eu/commission/commission
ers/2014- ers/2014-
2019/hahn/announcements/agreement- 2019/hahn/announcements/commissioner-
skopje-overcome-political-crisis_en hahn-visits-former-yugoslav-republic-
129 http://kurir.mk/en/?p=44396 macedonia-14-july_en
56
signed132 and the laws deriving from it “There is one thing which is very important
were promptly enacted in parliament and it needs to be understood. Russia,
during mid-September. both in Macedonia and throughput the
Balkans, is a tectonic power. Because it is
These events once again point to the tectonic, you do not see it on the surface. It
important role both of the international is not a matter you can spot above surface.
community and the political parties in It is a matter of mentality, a matter of
securing the policy outputs which were history, and a matter of real resources.”135
desired by the movement activists.
Although the role of the citizens was very In the aftermath of the political crisis, a
limited in acquiring the policy outputs, reporting endeavor by Macedonian,
they showed strong commitment to their Serbian and British journalists provided
goals during the implementation of the evidence that the Russian Federation,
outputs which resulted with the favorable accompanied by Serbian aides, tried to
policy outcomes. This strong international meddle in the internal politics of
presence was one of the important factors Macedonia. Based on intelligence and
which lacked in the Bulgarian and the BH counterintelligence reports, the journalists
cases. conclude that Russia’s approach to
Although Macedonia’s Western partners Macedonian politics had been “nakedly
were one of the key allies to the CfM partisan and the Kremlin has been a
movement, the entire international vociferous public supporter of VMRO-
community did not have a uniform and DPMNE”136. Still, summarizing the efforts
coherent standpoint regarding the political by the key international actors, with
crisis in Macedonia. The Russian regards to the policy outcomes following
Federation, which for years had been the CfM movement, one can conclude that
uninterested in the political developments the efforts by the Western partners in
in Macedonia, started issuing statements Macedonia proved sufficient, and
and press releases immediately after the managed to provide the movement
protests commenced, commenting that activists with enough impetus to secure
the anti-governmental protests had been their projected goals. Following the
orchestrated and “brutally managed from enacted documents in parliament deriving
outside”133. The Russian Minister of from the Przhino Agreement, the
Foreign Affairs, Sergei Lavrov, commented international community pressed for
that Russia is gravely alarmed by the minimum credible early elections which
meddling of the Western countries in the would largely depict the political will of the
internal affairs of Macedonia, and blamed citizens. Both the EU and the USA saw
the EU and the USA for trying to bring the legitimate elections as the most
down former PM Gruevski because he convenient tool to “level the field of
failed to support the sanctions against play”137 between the autocratic
Russia134. The traditional influence from government and the opposition.
the East, as a counterbalance to the one
coming from the West, was also stressed Lastly, this study reflects on the role of
by one of the interlocutors: the media during the CfM mobilization.
The movement operated in a very perilous
media environment which resulted with

132 http://europa.eu/rapid/press-
release_STATEMENT-15-5372_en.htm
133 135 Interview XX MKD – S.O.
http://www.novinite.com/articles/168689/Ru 136

ssia+Claims+Macedonia+Crisis+Managed+from https://www.occrp.org/en/spooksandspin/lea
+Abroad ked-documents-show-russian-serbian-
134 https://www.rferl.org/a/lavrov-says- attempts-to-meddle-in-macedonia/
macedonia-protests-orchestrated-from- 137 Interview XX MKD – Department of State

outside/27026904.html employee
57
many more opponents to the movement in elites. On the other hand, the pro-
comparison to the allies138. The opposition Sloboden Pechat reported on
Macedonian PBS, MRT, for years favored daily events connected to the movement
the ruling parties, and during the protests activities, but also published columns and
acted more as a government mouthpiece analyses by opposition-affiliated university
rather than an institution which should professors, artists and writers. This
inform the wider public of the daily resulted with a relative balance in the
events. Even fiercer opponents to the CfM sphere of the print media. Still, taking into
movement were the largest private TV consideration the difference in influence
stations which for years received and outreach between the electronic and
governmental funds in order to promote print media, one can easily conclude that
campaigns introduced by Gruevski’s the CfM movement had more media
government139. Only several smaller opponents in comparison to the number
private televisions with national coverage of allies in the media. Still, the strong and
objectively depicted the events during the stable partnership built with the largest
mobilization. The movement actors were political parties in opposition and the one
dominantly relying on social media and with the international community,
several news portals which were run by managed to neutralize the strong pro-
journalists which had previously been governmental media influence.
victims of the regime140. This media
setting mainly derived from the 5.2 The Friends and Foes of the Bulgarian
clientelistic relationship which the ruling Winter Protests: From Political Parties to
elite enforced in many social spheres 141. Politicized Media
The largest media outlets were more than Similar to the Macedonian constitutional
aware that any type of objective reporting and political setting, Bulgaria is also a
would deprive them from the large unitary state with a monocameral
amounts of money which were pouring legislature and a directly elected President
from the state directly on their of the republic. Although the evident
accounts142. horizontal separation of powers is a solid
prerequisite for a clear
The situation was much more balanced in government/opposition divide143, during
regards to the print media. Looking at the the first winter protests in 2013 Bulgaria
two newspapers with the highest was led by a minority government headed
circulation, Dnevnik and Sloboden Pechat, by PM Boyko Borisov from the GERB.
the pro-governmental Dnevnik was largely Although Borisov’s position was not as
ignoring the protests, reporting strong as the one of former PM Gruevski,
sporadically and without any systematic the presidency of Rosen Plevneliev was
overview of the events. Furthermore, this also backed by the GERB, while the City
newspaper regularly printed columns by of Sofia and a large number of
MPs from the ruling parties and analyses municipalities were also GERB-controlled.
written by university professors and The GERB was undoubtedly the greatest
experts which are very close to the ruling opponent of the Bulgarian protesters
among the political parties144, although,
the vast majority of movement activists
138 https://freedomhouse.org/report/freedom- and key informants didn’t really see any of
press/2015/macedonia the key players in the electoral arena as
139
true and sincere allies145.
http://www.rcmediafreedom.eu/Publications/
Reports/State-Media-Financial-Relations-in-
Macedonia-Media-Freedom-Curbed-with-
Public-Money
140 www.plusinfo.mk www.libertas.mk
www.a1on.mk etc. 143 http://www.parliament.bg/en/const
141 Interview XX MKD – P.B.C. 144 Interview XX BUL – B.S.
142 Interview XX MKD – S.O. 145 Interview XX BUL – V.G.
58
On the other hand, one of the covert representatives of the citizens which took
opponents to the Bulgarian winter the streets. One of the protesters coming
protests, coming from the side of the from the more left-wing – liberal strand of
political parties, was the MRF. This the movement, explained this reasoning of
Movement which is also known as the the political parties in opposition:
“Turkish Party”, didn’t openly criticize the “In my opinion, there was a big struggle
movement actors, but used its media between the political parties regarding who
power concentrated in the hands of the is going to dominate the protest. The entire
outspoken shady oligarch Delyan Peevski, opposition comprised of both bigger and
who is one of the most long-serving MPs of smaller political parties, but especially
the MRF, although still in his late 30s146. BSP, as the largest party in opposition, and
In the following rows of this section, which Ataka, which is a nationalist party, wanted
discuss the relationship between the to be the representatives of the protesters.
media and the protesters, the antagonism They reasoned in the following way ‘OKб
between Peevski’s media and the protest you are protesting against the governing
organizers is picturesquely presented. party, so we are the ones who sent you
there!’ Orб ‘We represent you in the
The most dubious role by the political National цssembly’…”148
parties which wanted to present
themselves as allies was played by the Unlike the Macedonian case, where the
biggest party in opposition, the BSP. One parties in opposition were stable and loyal
of the protest organizers vividly explained allies to the CfM movement, the Bulgarian
this insincere position: winter protest activists were surrounded
“To be honest, the largest party in by two-faced, opportunist political players,
opposition, the BSP, supported the protests. which were not sincerely interested in
Expectedly, they wanted to materialize on alleviating the socio-economic grievances
the moment of citizen dissatisfaction. We of the Bulgarian citizens, but were rather
immediately told them not to misuse the interested in securing a better result in
protest. They supported the mobilization, the forthcoming snap parliamentary
but only to the extent when it was elections. There were numerous actors
politically opportune for them. They worried which wanted to profit politically on the
for their own partisan interests. We told emerging popularity of the movement:
them bluntly that they are a product of the “There was also support from some smaller
Bulgarian Communist Party, and that there political parties that wanted to mobilize the
is no difference between them and the electorate in the wake of the elections, and
GERB, between Boyko Borisov and Sergei this is the only reason they supported us.
Stanishev…чSP is one of those ‘players’ The only motivation was to ‘accumulate
that act as your friends, but they stab you political dividend’г There is a certain Slavei
in the back. To be honest, BSP created the Dinev, a mobster. At that time he was an
energy mafia. Realistically, they control the MEP. He contacted us in order to go to
green energy and all the projects which are Brussels and speak about the protest
closely connected to it. ”147 activities. He suggested this to us. There
was also one Meglena Kuneva from the
Both the BSP and another smaller right- reformist block. Furthermore, there was
wing nationalist party named Ataka, put one businessman which tried to infiltrate
in efforts to monopolize, to a certain us. His name is Mareshki. He is into the
extent, the protests. The two political pharmaceutical business. All of them
parties followed the logic taking into wanted to support us in order to take
consideration the fact that they are in advantage of the energy. Still, I cannot call
opposition; they are automatically them friends.”149

146 Interview XX BUL – B.S. 148 Interview XX BUL – K.D.


147 Interview XX BUL – D.D. 149 Interview XX BUL – D.D.
59
views are presented in the rows which
One of the interlocutors, coming from the follow, the Bulgarian PM and some of his
strand of the movement which is closest collaborators pointed to
ideologically close to the green and anti- international interference in his ruling,
fracking movements, managed to point to accusing Russia for meddling into
one sincere ally coming from the camp of Bulgarian internal politics and trying to
the political parties. Although a very remove him from power. Former interior
small, but emerging party, the Bulgarian minister Tsvetan Tsvetanov, commenting
Greens were constantly on the side of the on the 2013 winter protests, among other
movement activists, supporting them in things, added “We must remember the
their efforts to lower the energy prices and anti-shale protests and the other organized
enhance the lives of the Bulgarian actions against the government of Boyko
citizens: Borisov. This was a well-planned scenario
“I can definitely say that the Green developed by local corporate, oligarch and
Movement, which I am a part of and which economic interests connected with
also, includes the Green Party, acted as an Russia”151. One of the key informants,
ally. The anti-fracking movement, which I who is also a renowned university
also told you about, also was an ally to the professor, commented these statements
movement. They were both part of this with disbelief, highlighting the lack of
fight, but they also supported one previous evidence for Russian interference:
protest which was against the increase of “Borisov said on several occasions that he
the oil prices.”150 was taken down from power by Russia,
and by Russian interests, because of the
The differences between the positions and construction of the Belene nuclear plant.
roles of the political parties in Bulgaria His words were that it was a ‘Russian
and Macedonia, especially those coming intervention’ organizing protests against
from the opposition, are more than himг чut againб I must say that I don’t
evident. While the CfM movement could believe that the protests were organized for
rely on stable partnership in the electoral the sake of his resignation, at least
arena, this could not be inferred in the initiallyб and apart from his wordsб I don’t
Bulgarian case, at least not when one have any information or evidence for
glances at the largest and most notable Russian interference.”152
political parties in Bulgarian political life.
This lack of stable allegiance between the The interlocutor locates the main reasons
winter protesters and the largest parties for the mobilization in the scarce finances
in opposition, especially the BSP, which Bulgarian citizens needed to
prevented the protesters to acquire more manage the difficult winter times.
policy outputs and effectuate the attained Furthermore, if Bulgaria was subjected to
ones into tangible policy outcomes. an international scenario involving
Russia, one would expect a much deeper
Moving to the limited role of the political crisis, and unraveling of events
international community during the first similar to Macedonia, something which
wave of protests in Bulgaria in 2013, this clearly lacked in the Bulgarian case.
study once again points to the divergence
with the Macedonian case. This study Another indicator for passive behavior by
already stated the possible reasons for the international community was the
lack of involvement by the international absence of any reaction coming from the
community. Still, this was not what PM Delegation of the European Commission
Borisov thought. Similar to the wording of in Bulgaria. Their official press center
former Macedonian PM Nikola Gruevski,
and several BH power holders whose
151 https://www.ft.com/content/e011d3f6-
6507-11e4-ab2d-00144feabdc0
150 Interview XX BUL – B.S. 152 Interview XX BUL – B.S.

60
remained silent during the days of because there was no space to continue
contention153. The same can be concluded with the lack of coverage.”155
regarding the US Embassy in Sofia 154.
This once again reaffirms the difference in Another key informant, that is also a
the standpoint of the international university professor that sporadically
community, especially the USA and the deals with social movement studies,
EU as key international factors in the stressed the sensationalist role of the
region, in regards to the mobilizations in majority of media outlets. In the spirit of
Bulgaria and Macedonia. scandals, sensations and the quest for
As it was noted previously, the specific audience, the mainstream media
role that the media played during the transformed into one of the fiercest
protests in the three countries under opponents of the winter protests in
study, dominantly as opponents to the Bulgaria:
mobilizations, was one of the main “The media, back then, would not support
obstacles of the Bulgarian protesters in the movement. In fact, they would search
their quest for acquiring tangible policy for…you know…what usually media
outcomes which would have alleviated the like…violenceб bloodshedб those kinds of
socio-economic grievances of the citizens, things…and they had itг They had it on the
and further democratize Bulgarian night of 19 February when there was some
society. Being the worst in the EU when confrontation with the police between Orlov
media rights and freedoms are at stake, Most and the university building.”156
one could not have expected better from
media outlets being undermined by The protest organizers, as the most
political and business interests. publically visible faces, were continuously
under attack by the dominantly
One of the movement activists, that was government-affiliated media outlets, with
also a leader of one of the many strands of special emphasis on the televisions. The
the Bulgarian winter protests, discussed previous arguments stated by the
this media bias, but also pointed to the university professor were reconfirmed by
incentive which this unbalanced reporting one protest organizer which shared his
encouraged among the movement thoughts regarding the negative campaign
activists. Faced with the distorted that was launched against them, when the
mainstream media presentations, the Bulgarian government felt the threat
governmental challengers were forced to coming from the ordinary citizens:
launch a strong social media campaign in “When you start going against the
order to present the reality which was system…you know…I must say that the
unraveling on the streets: media played a very important role in the
“The reporting of the mainstream media entire process. Media in Bulgaria are
was as usual during these types of extremely dependent on business and
activities. It is always the same. Whoever politics. Commissioned texts, commissioned
governs, the largest media outlets try to be interviews, and commissioned
‘fair’ with themб so they didn’t really show provocations. Various TV stories,
any support. On the contrary, they wanted scandals…They totally distorted our
to hide what was really happening. That is claims. They never reported precisely what
why social media were crucially important we demanded, but were continuously
in order to tackle the efforts of hiding and searching for a scandal, for a feud. They
covering up what was really happening on were, simply, on the side of the
the streets. From that moment on, the problem.”157
largest media started to present the events,

155 Interview XX BUL – B.S.


153 http://ec.europa.eu/bulgaria/news_bg 156 Interview XX BUL – V.G.
154 https://bg.usembassy.gov/news-events/ 157 Interview XX BUL – D.D.
61
Apart from the frontal attacks on the this guy Delyan Peevski. They are Monitor,
organizers, the TV stations allied with the Telegraf and Politika. There was one
power structures, also wanted to channel newspaper, Dnevnik, which at the times of
the public discourse in the direction of protests wasб let’s sayб objectiveг It did not
creating an image that the movement take sides, but it was objective. It remained
activists are only poor thugs, violent and objective and independent, not allowing to
lazy people coming from the outskirts of get caught in the Peevski scheme. There
Bulgarian society which are not worth the were also local newspapers which spread
time and energy from the bystanders, and a lot of defamations for the protest groups.
they should not join them in their struggle They were connected to the oligarchs
for better socio-economic conditions: coming from the energy business. For
“Another thing which happened with the example, Cherno More in Varna is that type
media, and I completely disagree with it, of a newspaper.”159
was the presentation of these people as
poor and stupid. People that do not know Unlike the Macedonian case, where the
any other way but violence in order to governmental challengers managed to
achieve their goals. And it was a build, to a certain extent, a reliable
completely classist argumentб like “OKб partnership with some of the smaller
there are some people in the streets that media outlets critical to the government,
cannot pay 150 LEV for electricity. It is the Bulgarian protesters failed to secure
their problemб they should work more!” stable, and somewhat, credible
This is, of course, something which was partnerships in the media sphere. This
intended to make them look foolish. resulted with limited visibility and no
Somehow, they (the media, I.S.) managed substantial allies backing them in the
to do it. So, the media in general, was not public sphere, which to a certain extent
supporting the movement.”158 triggered early mobilization and blocked
the path to securing tangible policy
In addition to the electronic media, the outcomes.
newspapers were also mainly opponents
to the movement activists. The long- 5.3 The Allies and Opponents in the BH
lasting free-fall of freedom of the press in Protestsп “Opposing for Failure”
the country combined with decline of Contrary to the constitutional and
freedom of speech, and amplified by the political systems of Macedonia and
numerous economic factors which push Bulgaria which define them as unitary
investigative and professional journalists countries, the state of B&H is
to the edge of precariat, resulted with characterized by very complex
blindly obedient newspapers, aligned with institutional setting deriving from the
the power holders. On the forefront of constitution enshrined in the Dayton
these activities were the newspapers Agreement, which throughout the years
belonging to the media group of the created numerous ethnic, confessional
outspoken Delyan Peevski: and political cleavages. This was further
“The newspapers are of very low quality. mirrored in very complex government-
But this is not something new. It has been opposition relationships which varied both
like this for a long time, at least for the last on the horizontal and vertical levels of
five years. We have basically run out of separation of powers. Thus, during the
quality newspapers in this business. There contentious 2014, the collective
were still a few quality newspapers which presidency was comprised of Bakir
were not fully economically based, which юzetbegoviР from the SDA, as the Bosniak
are on the verge of bankruptcy, but still memberр Željko KomšiР from the SDP, as
manage to function somehow. The others the Croatian memberр and Nebojša
are mainly mafia newspapers owned by RadmanoviР from the SNSD-SP, as the

158 Interview XX BUL – K.D. 159 Interview XX BUL – B.S.


62
Serbian member160. At the moment of partocracy aligned against the ordinary
initiation of protests in Tuzla, the rotating citizens which were continuously wrapped
presidency was in the hands of Željko in ethnic and partisan hatred167. This
KomšiР. Furthermore, the two houses of resulted with a fragmented constitutional
the parliament of B&H were deadlocked and political system, united along party
due to the very close electoral results and lines against the governmental challengers
number of mandates following the 2014 which pressed for improvement of their
general elections161. Almost one and a half socio-economic condition, and
years after the general elections, the democratization of BH society.
participating parties in parliament agreed
to elect Vjekoslav Bevanda from the HDZ- The previously described setting, deriving
B&H as chairman of the Council of from the specificities of the institutional
Ministers of B&H162. Regarding the design, created a strong division between
Parliament of FB&H, the power was the protesters on one side, and almost all
concentrated in the coalition led by the the political parties on the other. If at one
SDP and the SDA, with Nermin NikšiР point, the governmental challengers in
from the first party being elected as PM 163. Bulgaria had some of the influential
On the other hand, in the RS entity, all political parties on their side, even though
powers were vested in President Milorad driven by party-centered interests, and
Dodik164, and his political party SNSD 165. the Macedonian movement actors had the
Lastly, the cantons within the FB&H largest political parties in opposition on
entity were mostly shared between the their side as permanent allies, the BH
largest two political parties in the entity, protesters were continuously opposing the
the SDP and the SDA166. Just as an most influential players in the electoral
example, the Tuzla canton was led by SDP arena.
cadre, while the Sarajevo canton had a PM
coming from the SDA. Although the Beginning with the first days of protest,
numerous political and ethnic cleavages the political parties took a very warlike
created a public image of big rivalry attitude towards the governmental
between the major political parties, during challengers. The leader of the SDP, who
the entire post-conflict period in the entire was also a Minister of Foreign Affairs of
state of B&H, including the period of the B&H, accused the protesters for trying to
2014 mobilization, the ethnocracy and the “bring down the institutions”, adding that
“they (SDP, ю.S.) will not allow that to
happen”168. Strong reactions came also
160 from the federal PM coming from the same
http://www.izbori.ba/Finalni2010/Finalni/Pre party, Nermin NikšiР. While discussing the
dsjednistvoBiH/Default.aspx 2014 mobilization, he commented on the
161
happenings occurring during the first
http://www.izbori.ba/Finalni2010/Finalni/Pa days of protests:
rlamentBIH/ZbirniRezultate.aspx
162
“I spoke to a woman from the British
http://www.balkaninsight.com/en/article/vje
embassy, which was very much supportive
koslav-bevanda-to-be-the-new-bosnian-pm and in favor of the protests. I explained to
163 her that the presidency building is on fire,
http://www.izbori.ba/Finalni2010/Finalni/Pa that politicians are being lynched. The
rlamentFBIH/ZbirniRezultate.aspx cantonal governments began to resign,
164
literally ‘to fall like pears’б but not the
http://www.izbori.ba/Finalni2010/Finalni/Pre federal government. Many people say that
dsjednikRS/Nivo.aspx the federal government remained intact
165

http://www.izbori.ba/Finalni2010/Finalni/Na
rodnaSkupstinaRS/ZbirniRezultate.aspx
166 167Interview XX B&H – A.M.
http://www.izbori.ba/Finalni2010/Finalni/Sk 168 http://www.blic.rs/vesti/svet/lagumdzija-
upstineKantone/Default.aspx rusioci-drzave-kidnapovali-proteste/xbtmmnd
63
because I am who I am, a jerk, and I you decreased the salaries, we want your
prevented that from happening. In one resignation!’ I asked them how they
communication with the Reis Ul Ulema, planned this to happen. I can leave, but
when he called meб he asked me ‘Please someone elected in parliament should
don’t make concessions’г I told him ‘It replace me. I am fine with that. Then, I
doesn’t even come to my mind to make asked themб ‘You don’t expect me to leave
concessions, because I think that this will the keys here on the table and leave?’ ‘Yesб
lead us to become stateless. We are going this is exactly what we expect!’ Then I told
to lose the state!’ I still think that you them that they are the once who have a
cannot act like that, as the protesters problem with basic logicг I told them ‘Nowб I
acted…”169 think that it is time for you to leave, and
not me. You were my guests, I
Reflecting on the days of violence in accommodated you, and now it is time to
Sarajevo, former PM NikšiР also reflected leaveг’ They asked me whether I plan to
on the meeting he had with the citizens, address the people in front of the
when he welcomed them in his office. He governmentг I told them that I don’t plan on
underlined the lack of knowledge shown doing that. I told them that they were not
by the governmental challengers, and the the only citizens of this country, and that I
high level of arrogance and stubbornness am going to address all people tonight, I
with which they confronted him: am going to address the state and not just
“I welcomed the protestors in my premises them…”170
and asked them ‘Which are your
demands?’ They said that they wanted my The member of the B&H presidency
resignationг I said ‘OK! This government coming from the second largest political
will leave immediately after someone who party in the country, the SDA, Bakir
is elected by the parliament steps hereг’ юzetbegoviР, who is also the most
Then, they said that they wanted some influential member of the party and the
privileges of the officials to be abolished. I son of the former leader and first
said ‘Perfectб but those are already president of the country Alija юzetbegoviР,
abolished!’ We could not formally abolish also condemned the violence during the
the ‘separated life’ compensationб because first days of protest, but also tried to
we did not have the majority to do that. strengthen his political positions and
With the previous government, this those of the SDA, by generally blaming
‘separated life’ was around кее-600 BAM. SDP for the situation in the country 171.
Initially, we cut it buy half, and later we Still, glancing at the behavior of the SDA,
brought a governmental decision to make it it was also one of the biggest opponents to
symbolic 1 BAM. Why? If we abolish this the movement, especially when the
privilege illegally, the ministers were going cantonal governments ruled by their cadre
to sue us, and in the end, we were going to were at stake.
pay both the compensation and the court
expenses. In this way, we were legally One of the most ambiguous roles during
protectedг Thenб the citizens’ delegation the protest events was played by the SBB,
said ‘Really?’ I answered ‘Yesб really!’ ‘OK the party whose leader Fahrudin RadončiР
then. We want a decrease of the salaries of was the minister of security. He suddenly
the public employees!’ ‘Really? I wanted to fiercely attacked the largest two political
decrease the salaries for же% as well’б I parties, and openly aligned with the
replied. I was not allowed. I only managed citizens, mostly using the power of his
to agree a decrease of 4.5% with the trade daily newspaper Dnevni Avaz, which
unionsг I told them ‘You have a problem covered all the protests throughout the
here. You have to negotiate that with the
trade unionsб not with meг’ ‘OK thenб since
170Ibid
171 http://www.dw.com/bs/bih-%C5%A1ta-
169 Interview XX B&H – N.N. dalje/a-17418674
64
country daily, but also favored the SBB cooperate with political parties…not even
and its leader in the numerous columns with NGOs which were not up to their task.
and political analyses, which were I am not sure whether this was good or
produced172. Still, the governmental not… ”174
challengers did not perceive RadončiР as
an ally. On the contrary, they commented If one compares the role and the attitude
on his political opportune behavior, and of the international community in the BH
his attempts to hijack the movement: case, it lies somewhere in the middle
“The entire political elite were against us, between the Macedonian and the
of course. From the conservatives to the Bulgarian case. If in the first case, the
social democrats. I cannot remember that international community played a strong
someone publically expressed solidarity role pressuring the main political actors to
with the protesters… Radončić acted as a enact decisions in the favor of the citizens,
proper populist. Because it was election while in the latter, the main international
year, Fahro was trying to collect votes. He actors were rather passive and
wanted to leave an impression that Dnevni uninterested; the BH case was
Avaz reports objectively, although, all of us characterized by active international
know that it was not the case.”173 involvement which failed to produce any
tangible results. This epilogue can be the
One of the biggest shortcomings of the BH outcome of several factors, but one of
governmental challengers was the inability them is surely the very ambivalent
to create a strong alliance with some of attitude of the actors in the political
the largest and strongest political actors system. Both the biggest political parties,
in the political system. Apart from as well as the movement activists,
opposing the largest political parties, perceived the international community as
which to a certain extent is justifiable due an opponent. The parties perceived the
to their power-sharing on multiple levels, protests as internationally-driven, while
the protesters also rejected some smaller the governmental challengers didn’t really
and emerging movement-parties, which see any sincere efforts on behalf of the
could have been a reliable partner for international envoys.
building a stronger bottom-up coalition
which could have threatened the power One of the very resourceful key informants
structures. Several activists commented saw the international community as a
on these positions expressed by the partner of the BH movement. Still, their
movement activists: behavior in the past, which resulted with
“It is not completely true that all the B&H being an institutionally deadlocked
political actors were against the movement. state, governed by ethnocracy and
There were really a lot of people which partocracy, was the turning point which
were, and still are, politically active. For led to mistrust on behalf of the
example, the members of Nasha Stranka citizens175. Furthermore, the lack of
(Our Party, I.S.) wanted to join the protests decisiveness and coordination by the
and even offered their help, but they were international community provoked actions
explicitly told that we don’t want them to by certain embassies which did not
be part of our story. They are very active in produce much effect “on the ground”. One
Sarajevo and they work a lot. They are of the key informants comments on the
also politically legitimate. Although they unjustifiable steps by fractions of the
wanted to participate, they were not international community:
allowed. It was a decision brought in the “The ‘foreigners’ reacted in a strange
very beginning. That we do not like to manner. For example, certain embassies
tried to meet them (the protesters, I.S.) half

172 Dnevni Avaz newspaper, 07.02.2014 –


30.04.2014 174 Interview XX B&H – D&B
173 Interview XX B&H – E.E. 175 Interview XX B&H – A.M.
65
way. They immediately asked them of their international community, mainly few
needs and how they could help. For embassies which operated in B&H. They
example, they suggested taking them to highlighted the interest and activities by
Vienna and starting some discussions the embassy personnel, but also the visits
there. Some of the international envoys which were paid by several foreign MPs.
which I was in contact with…I warned Some portion of the governmental
them. I asked them why they were doing challengers also perceived the EU and the
thatг I told them not to do that…actuallyб I USA as allies, although not very sincere
told them not to do anything. I suggested ones:
that by the time they (the protesters, I.S.) “It was very intriguing that many
decided what they wanted, and how they embassies and representatives were
plan to achieve itб that they don’t need any interested in the situation: the American
help. I think that it was the Austrian embassyб the цustrian embassy…their
embassy. It put all of them in a bus, took ambassador participated in some of the
them to Vienna, and all of them together plenums. This was really interesting for
criticized the existing NGOs, as well as the me…The цmerican embassy stood beside
other actors. It turned into a talk show. The us, the EU as well. Maybe, not very
‘foreigners’ immediately reacted saying straightforward, but they were pro. MPs
that they helped. It was a series of idiotic from the Italian parliament visited one of
moves from all parties…”176 the plenums. They were members of a
leftist parliamentary group…You know
On the other hand, the main what is very interesting? With them, you
personification of the international are never clear and straight. For example,
community, the high representative the OHR was definitely an opponent to the
Valentin Inzko, gave a rather dubious movement.”179
statement during the first days of protest. This chapter already mentioned the
In the aftermath of the Tuzla and Sarajevo perception which the political parties had
events, Inzko invoked the possibility for of the international community. The
EU troops to enter B&H if the situation ruling elite at the times of contention
doesn’t calm down177. Inzko’s statement blamed the international community not
was furiously accepted by the only for being an ally of the movement,
governmental challengers. Many of them but also for being one of the initiators and
harshly criticized the behavior of the OHR: organizers of protests. Expectedly, the
“…The OHR behaved very weirdг He even interlocutors were not able to provide any
threatened to send in some strong evidence apart from assumptions.
troops…something…he mentioned Former PM NikšiР openly told the British
NцTO…he was really an assholeг I even embassy representative that he thought
forgot his statement. That he will send her institution was behind the protests,
EUFOR, he threatened in a way. He was but commented that the state of B&H had
completely against us. It was a shock for no resources to prove these findings and
everybody. Not that someone likes him, or to provide evidence180. Furthermore, one
we were expecting something from him, but of the MPs in the state parliament also
it was such a stupid statement, a presented his theory regarding the
catastrophe…”178 initiation of the protests:
“According to me, it was a combination of
On the other hand, a fraction of the the justified dissatisfaction of the citizens,
movement activists appreciated the efforts which at times was motivated by portions
by some representatives of the of the media which wanted to create an
atmosphere of havoc, but the entire story
was inspired and created by a part of the
176 Interview XX B&H – A.H.
177 https://www.rferl.org/a/bosnia-inzko-
warning-troops/25258191.html 179 Ibid
178 Interview XX B&H – S.T. 180 Interview XX B&H – N.N.
66
international community in B&H, as well disinformation, they manipulated with the
as some NGOs which are related to and peopleг They played the worst games…for
financed by the embassies in the country. example, that the state archive was
Still, I would call these protests a great destroyed. A lot of people fell for these
manipulation.”181 manipulations. Especially those who are
not ‘citizenly free’г”182
The presented evidence clearly point to This text already focused on the
the ambiguous role of the international perception of the political parties in power
community in B&H during the which had the impression that a lot of
contentious events of 2014. In comparison media outlets wanted to create a
to the Macedonian and Bulgarian case perception of chaos183. Furthermore,
where clear-cut involvement and lack of former PM NikšiР also stressed that
interest, respectfully, can be noted, as well certain media outlets tried to materialize
as clear supporters and opponents to the on the political situation, blowing out of
international community can be detected, proportion some of the happenings, in
the BH case documents an unusual order for their owners to achieve better
absence of the mechanism of international electoral results in the 2014 general
supports, especially intriguing for a elections184. These comments primarily
country which has been for years referred to one of the most circulated
designed, administered, and financed by dailies, Dnevni Avaz, whose owner
its international partners. One might Fahrudin RadončiР, leader of the SBB and
justifiably argue that a stronger and more former state minister of security,
coordinated action by the international publically aligned with the movement
partners could facilitate the fulfillment of activists and left the coalition government
the governmental challengers’ goals. led by the SDP and the SDA. Still, the vast
majority of the movement activists
Lastly, this text turns towards the attitude perceived RadončiР and the SBB as
of the media in regards to the movement political profiteers, rather than movement
actors and the other stakeholders in the allies185. This left the governmental
political system. One of the major challengers in B&H with no proper allies
peculiarities, very similar to the in the media sphere, very similar to the
perception of the international Bulgarian case. Conversely to the
community, is the perception of the media Macedonian case where the movement
as a general opponent, both to the activists managed to secure the allegiance
movement actors and the political parties. of some of the relevant media and
Furthermore, these political and ethnic facilitated their way to securing favorable
cleavages were mostly determined by the policy outcomes, the BH governmental
infamous triad of money, media and challengers were prevented to reach the
politics. A very protest-hostile atmosphere federal and state policy arenas, primarily
was cherished by the private media due to lack of cooperation with key
outlets. This setting created the stakeholders in the political system, as
perception that the media were one of the well as the undefined position of the
largest opponents to the movement. At international community.
least, this was how the movement activists
perceived the atmosphere: 6. Conclusions
“You know, the mainstream media are Revisiting the main hypotheses which
generally owned by the political parties, refer to the allies and the opponents of
especially those in power. Thus, you social movements in Western countries,
cannot expect anything but allegiance to
the power structures. But, they were
extremely influential. They fabricated lies, 182 Interview XX B&H – S.T.
183 Interview XX B&H – S.M.
184 Interview XX B&H – N.N.
181 Interview XX B&H – S.M. 185 Interview XX B&H – E.E.
67
this study encountered very enlightening policy outputs and effectuate the attained
conclusions. Although della Porta stressed ones into tangible policy outcomes. Lastly,
the importance of the governmental the BH protesters were continuously
strength, building on the Tocqueville-ian opposing the most influential players in
argument that a strong government and a the electoral arena, which proved to be
weak civil society would lead towards one of their biggest shortcomings. Apart
violent protests, the three examples from opposing the largest political parties,
coming from the region showed alternative which to a certain extent is justifiable due
results186. In spite of the fact that the to their power-sharing on multiple levels,
three countries are characterized with the protesters also rejected some smaller
strong governments and weak civil and emerging movement-parties, which
societies, the level of violence considerably could have been a reliable partner for
varied in the three cases under study. building a stronger bottom-up coalition
which could have threatened the power
Furthermore, turning towards the structures.
arguments regarding the importance of
the distribution of institutional power for The second important factor in regards to
the development of social movements, the allies and opponents to the three
many authors claim that “the larger the movements was the role of the
number of actors who share political international community. If we summarize
power, the greater the chance for social the efforts by the key international actors
movements to influence institutions” 187. during the contentious events in
Consequently, one should hypothesize Macedonia, we can conclude that they
that social movements in the region of proved to be sufficient and managed to
study can easier influence political provide the movement activists valuable
institutions in countries where political impetus to secure their projected goals.
power is shared among larger number of On the other hand, in the Bulgarian case,
state actors. This research overthrows this the main international actors were rather
hypothesis. Although the B&H state is the passive and uninterested. Lastly, the BH
most fragmented regarding decision- case was characterized by active
making and power concentration, the international involvement which failed to
governmental challengers secured the produce tangible results. These outcomes
least of gains. On the other hand, the derive mainly from the ambivalent attitude
movement actors in the two other cases of the largest political parties and the
which occurred in two unitary states movement activists. The parties perceived
where power was rather centralized and the protests as internationally-driven,
accumulated, Macedonia and Bulgaria, while the governmental challengers didn’t
the protesters managed to secure tangible really see any sincere efforts on behalf of
policy outputs. the international envoys. Furthermore, the
This research already highlighted the BH case witnessed an unusual absence of
important role of the political parties the mechanism of coordinated and strong
regarding the level of policy gains acquired international support, especially taking
by the movements under study. The CfM into consideration that the country had
movement in Macedonia could rely on been for years designed, administered and
stable partnership with the SDSM, while financed by its international partners.
the protesters in Bulgaria had only limited One might justifiably argue that a
support in short periods of time by the stronger and more coordinated action by
opposition BSP. This limited support the international partners could facilitate
prevented the protesters to acquire more the fulfillment of the governmental
challengers’ goals.

186 Della Porta, D. (2013). (SECOND TIME), p. Lastly, this chapter looked at the relations
956 between the crucial media actors and the
187 Ibid movement activists in the three countries.
68
Unlike the Macedonian case, where the
governmental challengers managed to
build, to a certain extent, a reliable
partnership with some of the smaller
media outlets critical to the government,
the Bulgarian protesters failed to secure
stable, and somewhat, credible
partnerships in the media sphere. This
resulted with limited visibility and no
substantial allies backing them in the
public sphere, which to a certain extent
triggered early mobilization and blocked
the path to securing tangible policy
outcomes. On the other hand, the
governmental challengers in B&H were left
with no proper allies in the media sphere.
Conversely to the Macedonian case where
the movement activists managed to secure
the allegiance of some of the relevant
media and facilitated their way to securing
favorable policy outcomes, the BH
governmental challengers were prevented
to reach the federal and state policy
arenas.

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76
77
The Right to Truth and the Failure of
Seeking it

By Kristin Birkenzeller*

ABSTRACT

The paper is dealing with seeking truth after the Bosnian War. For this
reason, the relevance of truth, manifested in intergovernmental
agreements and legal acts, is presented. To find truth, there exist
different mechanisms, a crucial one is criminal prosecution of grave
breaches of international law through courts. Individual liability is
sought to establish by bringing the main perpetrators before judges.
Judicial procedures may initiate a corporative process of reconditioning,
reconciliation and pacification, nevertheless for such a long-term effort to
be successful, a bottom-up process, taking place simultaneously, is
needed. Establishing a truth commission is what can fulfil this purpose.

In Bosnia and Herzegovina, there was never a comprehensive truth and


reconciliation commission established, two reasons for this failure are
analysed within this article. To enable the state and its society to
reconciliate, the incentives of the leaders of the different factions would
need to change while determined international support is obligatory.

* Kristin Birkenzeller is studying law at the University of Cologne and has a Bachelor in
Political Science and Public Law from Friedrich-Schiller-University of Jena. Spheres of interest
are (domestic and international) transitional justice and politics of the Balkan countries.

78
For societies transitioning from conflict, it and what may be the long-term
is necessary to find truth about the things backlashes?
that happened. Truth is essential for
recovering, rebuilding social trust and A. The right to truth, its codification and
returning to peace, it is the crucial means application
for finding out the causes of inequalities A report of the UN Commission on Human
and discrimination, which underlay the Rights (UNCHR), a subdivision of the
conflict (Ni Aolain/ Haynes/ Cahn, 2011, Economic and Social Council (ECOSOC),
p.176ff). Finding truth includes delivered in 2005 an updated set of
investigations on different levels through principles for the protection and
different methods. While a truth process promotion of human rights through action
sets a symbolic mark of accountability, it to combat impunity
is enabling a state to receive back its (E/CN.4/2005/102/Add.1). Impunity was
legitimacy (Ni Aolain/ Haynes/ Cahn, defined as the (legal and factual)
2011, p.178). impossibility of bringing perpetrators of
violations to account because of a missing
There exist different ways to disclose and inquiry, which may have otherwise
process the past: One method is criminal effected accusations and reparations.
prosecution, another one the
establishment of a truth commission. The The principle 1 states the general
aim of a truth commission is to complete obligation of states, to take effective action
the picture of what has happened in a to combat impunity (…)р to foster the
systematic way, aiming to prevent inalienable right to know the truth about
recurrence in the future. Instead of past violations. Principle 2 outlines the
individual acts, the broader context inalienable right of every person and
should be analysed. Priscilla Hayner listed contributes to seek for truth “about past
five goals of truth commissions (vgl. events concerning the perpetration of
Hayner, Priscilla, 2011, p.20): heinous crimes and about the
- Discovery and acknowledging of circumstances and reasons that led […] to
past abuses […] those crimes”. яust a comprehensive
- Responding to victims’ needs exercise of this right serves to provide a
- Contributing to justice and real safeguard against recurrence, as it is
accountability complemented.
- Showing institutional
responsibility and recommending Already Geneva Convention IV from 12
reform August 1949, stated in Article 26 that
- Promoting reconciliation. each party to an international armed
conflict “shall facilitate enquiries made by
The aim of this work is to analyse the members of families dispersed owing by
process of seeking the truth after war in war”. The Additional Protocol to the
the territory of Bosnia and Herzegovina. Conventions from 1977 relates to the
The paper in organized in two parts. The regulations concerning the missing and
first part concentrates on the right to dead, and wants the parties to the conflict
truth, its codification in international law, to investigate “by the right of families to
its application and the relevance for the know the fate of their relatives”. There are
case at hand. The second part focusses on no direct regulations governing the
transitional justice in Bosnia and situation of non-international conflicts in
Herzegovina, looking at efforts done by the the Conventions or the Additional
International Criminal Tribunal for the Protocols, but other documents were
former Yugoslavia (ICTY). Why was there added during the decades. Relevant are
never a truth and reconciliation for example the so called ‘Guiding
commission established? In how far exist Principles on юnternal Displacement’ from
flaws in the process of seeking the truth 1998 which specify in 16(1) and 17(4) that
“all internal displaced persons have the
79
right to know the fate and whereabouts of were lastly known to be in the custody of
missing persons”. the army. The court found that the
The ‘right to truth’, recognized by several respondent government of Republika
national and international human rights Srbska had neglected its duty to obtain
bodies, has an individual and a collective information on the missing men to the
dimension. As an individual right it serves families. This treatment manifested an
the quest for truth and justice from “inhumane and degrading treatment” of
victims of severe human rights violations the families what states a violation of
like forced disappearances, torture or Art.3 ECHR (Groome, 2011, p.179).
extrajudicial executions, as for grave
breaches of humanitarian law, and their The HRCBiH established clarifications to
relatives. Besides, there is the right and determine who can be a subject to the
duty of the whole society to get sensitized violation of Art.3 ECHR. For this aim, the
for the happenings in there town, region court introduced two sets of factors, one
and country and the experiences of relating to the claimant, the other to the
victims. This collective dimension is respondent, to examine the legal
crucial for a society to recover and to owe situation. What is mattering in the
an awareness about the own history, interest of the claimant are factors like his
which is able to prohibit recurrence. The or her relationship to the missing person,
right to the truth was in some cases own efforts made by the claimant to
included in peace agreements. In the case investigate the fate of the missing ones or
of Bosnia and Herzegovina, the General a witnessed criminal background. The
Framework Agreement for Peace also categories mattering for or against the
contained a regulation which lead the respondent are inter alia engagement in
parliament to the adoption of a law giving investigative activities, the amount of
the families of missing persons the right to information disclosed and involvement in
know about the fates of their missing underlying crimes (Groome, 2011, p.180).
relatives. юt is now settled law that a state’s
continuing failure to investigate and
To apply the right to the truth against a disclose facts surrounding grave violations
state, courts referred to two categories of of human rights constitutes inhumane
protection, deriving from international treatment for the family of the victim and
treaties. On the one hand, there is the a continuing violation of their right to
obligation of a state to disclose the fate of protection from such treatment.
a person in its custody. If a state neglects
this obligation, it constitutes an The second foundation for a legally
inhumane and degrading treatment to the enforceable right to receive information
family members of the person missing about missing relatives, is laid down in
deriving from Art. 3 of the European the obligation of a state to judicial
Convention for the Protection of Human guarantees for victim’s relatives. The
Rights and Fundamental Freedoms failure of a state to adequately investigate
(ECHR). As a state is responsible to the disappearance and fate of victims
protect its citizen against inhuman and constitutes a violation of the right to a fair
degrading treatment, the failure to trial and judicial protection, guaranteed in
disclose manifests a continuous violation Article 13 of the ECHR. The HRCBiH
of protection of its own citizen against this determined the positive obligation of a
treatment. The Human Rights Chamber of state to actively investigate a matter,
Bosnia and Herzegovina (HRCBiH) applied falling under the scope of Art.8 ECHR
Art.3 ECHR following jurisdiction of the which constitutes the “right and respect
European Court of Human Rights for private and family life”. This
(ECtHR). The cases were brought to the argumentation goes also back to the
HRCBiH by families of missing persons jurisdiction of the ECtHR which held, that
from the city of Srebrenica, to seek it constitutes the breach of an active
information about their relatives, who obligation, if a state has information about
80
a missing person and refuses the indictments because of missing proof and
disclosure to family members upon evidence of their individual action
request (Groome, 2011, p.180). (Akman, 2008, p.130f).
Finding the truth by delivering insights in
things that happened and reveal those Additionally, there was the goal of the
responsible for the crimes, is believed to ICTY to bring about truth through fact-
enlarge the understanding of communities finding. For this purpose, different crimes,
and individuals of the causes of conflict. which had taken place on different sites,
Further, truth and awareness about past were investigated, recognized and
experiences are tools to change routines, acknowledged. Nevertheless, as it is the
institutions, behaviours and prevent nature of a tribunal, fact finding was
violations from happening again. Truth is “focussed on the behaviour of individuals”
crucial for the healing process and instead of the collective reappraisal
enables reconciliation by restoring the (Akman, 2008, p.132). This meant in
dignity of victims and reach safeguards concrete, the investigations concentrated
against impunity and public denial on the guilt of single officials rather than
(Gonzales/ Varney (2013), p.4). The next on uncovering the whole picture and
chapter will shed light on the details on systemic nature of deeds.
the work of the ICTY, the failure to The ICTY applied the principles of the
establish a truth commission and Geneva Conventions of 1949 and their
resulting lack of truth and justice. Additional Protocol on an inter-state
conflict and strengthened by this practice
B. Finding truth and justice the coverage of international law. Further,
the Tribunal considered mass rape as a
I. Prosecution war crime, and as an instrument of ethnic
To prosecute persons responsible for cleansing. By its jurisdiction the ICTY
serious breaches of international developed international customary law by
humanitarian law committed in the adding mass rape as a tool of genocide.
territory of the former Yugoslavia since But, more than one decade later, the legal
1991, the ICTY was put in power via framework in Bosnia and Herzegovina for
resolution 827 on 25 May 1993, adopted dealing with war crimes like sexual
by the Security Council (Statute of the violence and other crimes against
International Criminal Tribunal for the humanity is still incomplete (Amnesty
former Yugoslavia, Art. 1). Earlier, there International, 2014, p.6). While rape and
already had been UN resolutions which, sexual violence were used as instruments
unfortunately, had no effect on the war for ethnic cleansing, as the ICTY found,
parties, while the international audience the Dayton Agreement did not address
of this conflict, fed with media reports and gender-based crimes, which may have
pictures of horrible violence, shifted the focus in a higher sense to the
concentration camps and murder, victims (Moratti/Sabic-El-Rayess, 2009,
neglected to “run the risk of a military p.17).
intervention” (Basic, p. 360).
In 2015 the Bosnian War Crime Court
Main aims of the ICTY were overcoming decided for the first time to include
the shift from impunity to accountability financial reparations to a victim of rape in
and strengthening the rule of law. While times of war in the verdict. Afterwards
the ICTY wanted to set an example to the also local courts followed this jurisdiction.
world to achieve individual liability for In the past, victims were forced to file
crimes, the realisation of those aims was claims for reparations in civil proceedings
marked by dragging procedures and for a – on their own costs and under need to
long time, the missing ability to bring high reveal their identity (Binetti, 2015, p.1).
ranking officials to court. Beside the Reparations are a crucial instrument in a
persons in command positions, it was transitional justice process, they are
even harder to bring perpetrators to focused on the victims. Reparations may
81
provide acknowledgement of equal rights, and are essential for “breaking the walls of
a measure to justice and recovery, and denial by establishing the facts” (Morattiд
change existing gender inequalities Sabic-El_Rayess, 2009, p.21). While
(Binetti, 2015, p.2). Those effects may lead statistically the number of Bosnian Serbs
many victims to start procedures and denying the genocide in Srebrenica
change the public awareness for the topic, decreased, the process moves on slowly.
which is crucial for transitional justice. Further it has also destabilizing effects on
domestic institutions because it causes an
Another aim of the ICTY to give victims increase in ethnic tensions through
and their families a voice and bring justice bringing back old questions and iniquities
to individuals, this could be realised just in the minds and results in a glorification
within a small scope. Probably it is not of the accused perpetrators (Moratti/
possible after war, that any tribunal may Sabic-El-Rayess, 2009, p.21).
fulfil this task. In the case of Bosnia and
Herzegovina, there were alongside the While prosecution served the purpose to
ICTY also domestic bodies responsible for adjudicate the individual criminal
prosecution of crimes, in special the War responsibility of perpetrators, a judicial
Crime Chamber and the second instances process requires a careful examination of
courts of Bosnia. The War Crimes credible and reliable evidence (Groome,
Chamber was established in 2002 by the 2011, p. 186). In consequence, the judicial
national parliament and started working truth-seeking process concentrates on
in 2005. Even though this court was well individual indictments; and factors which
equipped, it had problems to cope with its aren’t relating to a specific perpetrator
huge workload. The second instances appearing in court, are disregarded. If
courts in the entities were poorly truth seeking takes place only by criminal
equipped, and not able to bring about this prosecution, the scope of truth is limited
task (Moratti/ Sabic-El-Rayess, 2009, (Groome, 2011, p. 187).
p.20).
1. Failure to establish a truth and
To conclude, the ICTY and domestic reconciliation commission
courts did indispensable work and Since the armed conflict was settled,
attained continued development of considerations of an establishment of a
international law, especially in matters of truth and reconciliation commission took
sexual violence. Victims of sexual violence place. Several commissions with a limited
are finally able to receive reparations from scope started their work on specific cases
their perpetrators through the verdict, with varying results. There was a
which has a strong impact in the process commission established for the
of individual and collective reconditioning. investigation of events in and around
Nevertheless, there are tasks which Srebrenica between 10th and 19th July
cannot be fulfilled within a solely legal 1995, this ad-hoc committee was set up
framework. For this reason, bodies by the government of Republic of Srpska
fostering a societal reconditioning are following strong international pressure.
imperative. Within its scope, investigations took place
on the genocide and the fate of missing
II. Collective Truth persons from the region (Binetti, 2015, p.
The society in the state of Bosnia and 22). The commission published a report
Herzegovina is still divided through a on its findings which lead to public
parallel history-telling, which has a strong apologies from the government of Republic
impact on presence and future. A crucial of Srpska to victims and their families
instrument, to make transitional justice (Binetti, 2015, p. 22).
successful, is to influence and clarify the
awareness on what really happened. Other efforts weren’t likewise successful.
Lawsuits in courts, in special those before While one commission was established in
the ICTY, created a huge public attention 2006 to investigate on the fate of
82
disappeared Colonel Avdo Palic, a former leaders, so they pledged for a system with
commander of the Bosnian Forces in the limited competences of the central
town of Zepa, calls for investigations on government, while “ethnic aspects of
other matters and a huge public debate governmental arrangements” were given
started, resulting in a new commission on high relevance – noticeable in the
the “Suffering of Sarajevo Citizens”, structure of the voting system and
initiated by the Council of Ministers in governmental positions (O’Brien, зеже,
BiH. These comprehensive investigations p.338).
didn’t achieve the needed success what Aiming to implement a form of a
was also due to differing political aims of consociational democracy, local power-
the actors and a lack of funds (Binetti, sharing arrangement should effectuate a
2015, p.22). cooperative and consensual style of
politics among the leaders of the three
The first attempt in 1997 to create a main ethnic groups. Following the ideas of
comprehensive, regional truth and Arend Lijphard of the late 1960s,
reconciliation commission (TRC) was ethnically divided societies can be
impeded mainly by the ICTY. The second stabilised through a joint rule and
attempt in 2001 to start a reconciliation decision-making by leaders of the specific
process and establish a truth commission ethnic groups (Lijphard, 1969, 216).
was supported by the government, the
international community and the ICTY, Problematic was in the case of Bosnia and
nevertheless the process failed in its Herzegovina, that the interests of the
beginning. The third attempt in 2006 was leaders of the different groups weren’t
led by the political parties of Bosnia and taken into account adequately.
Herzegovina, equipped with the task of Consequently, it was missed to set
drafting a law on the establishment, incentives of the ethnic leaders for finding
mandate and composition of a truth consensus and establishing an effective
commission (Ahmetasevic,/ Jelacic,(2006). common state (Tzifakis, 2007, p.86).
The law on the establishment of a truth
commission was part of a larger package The aim of the Dayton constitutional
of constitutional amendments to empower arrangements, to combine a consensual
national institutions. The drafting took democracy-model with features of
place behind closed doors, and lead to partition preserved the former war parties’
outcries in media and society, when these interest “to exploit the aforementioned
efforts became known – because of their power-sharing arrangements” (Tzifakis,
non-transparent and premature character 2007, p.87). This neglected focus on
(Djokic/ Ker-Lindsay, 2011). So far, there creating incentives of the leader to
hasn’t been a TRC in Bosnia and integrate into a consensual democracy
Herzegovina starting its work. model is one big factor which explains
missing incentives in fostering the newly
2. Reasons for the failure established state of BiH by supporting a
For understanding the failure of the truth-seeking process.
creation of a truth commission, one
crucial factor is the floor plan of the Beside that, representatives of the ICTY
political system and the power-sharing opposed the installation of a TRC, mainly
arrangements, manifested through the caused by the fear that it may undermine
Dayton Agreement. As within the Dayton efforts of the tribunal. One reason for the
peace accords the new constitution was fear was the assumption, that Bosnian
negotiated, the ethnic elites were still society and its political leaders would not
controlling resources and military – and favour it, because they were “not ready”,
wanted to keep their power and authority what “might prove counterproductive”
in peacetime (O’Brien, зеже, p.иин). (Basic, P.373) Furthermore,
Preserving autonomous power, was the representatives of the tribunal argued,
aim of the Bosnain-Serb and Croatian that the “possible mandate […] might
83
overlap in the nature of investigation” and
might bring witnesses and victims in a
situation choice and alternativity of
cooperation. Finally there was a concern
on diverging use of standards of evidence
and authority to interpret what has
happened (Basic, P.373).

C. Conclusion
The right to the truth is codified in several
international treaties and legal acts and
was applied in different procedures, that
is a huge accomplishment. International
and domestic courts play a crucial role in
the process of seeking truth about the
things that happened. It is crucial to
impede impunity and reach
accountability, in these affairs the ICTY
and its domestic counterparts played an
indispensable role. Nevertheless, the
scope of judicial prosecution for disclosing
the truth is limited. To acknowledge past
abuses, discover structural and
institutional causes of conflict and
integrate the needs of victims and their
families, another approach would have
been needed, to construct the floor plan of
a stable, prospective political system. This
paper included an analysis of causes for a
failure of a truth and reconciliation
commission, which may have been a tool
to achieve the mentioned aims, which a
tribunal cannot fulfil. The analysis
concentrated on two relevant obstacles to
the establishment of a truth and
reconciliation commission: Firstly, the
constitutional design of a consociational
democracy, which wasn’t able to create
incentives to the leaders of the ethnic
groups, to support the well-being of the
state of Bosnia and Herzegovina instead of
putting solely interests of the own group
in their focus. Secondly, for some time
also representatives of the ICTY were
impeding the establishment, fearing
rivalry, procedural barriers and alternative
interpretations.

84
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E/CN.4/2005/102/Add.1
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the independent expert to update the set of principles to combat impunity.

85
86
87
The protection of the witness as a risk for
the rights of defense in the criminal
procedure

By Natasha Todorovska*

ABSTRACT

The necessity of implementation of witness protection system is


undisputable given the increasing organized crime and other severe
criminal acts being perpetrated in our country as well. This is so owing to
the expansion of new, more sophisticated forms of crime, and increasing
violence and witness intimidation. Therefore, witness protection is one of
the most important instruments for achieving justice in a modern society
where many various forms of organized crime occur. The rights of the
defense in a situation where guilt is proven through a protected witness
are of particular interest in several aspects. First, the source of the threat
should be analyzed, further the connection between the witness and the
defendant, in the end, the possibility that the witness will be key proof,
and the defense does not have the right to object.

Key words: protected witness; national legislation; defense; organized


crime .

* I am a PhD student candidate of criminal law at the Faculty of Law in the State University
Ss. Cyril and Methodius. I graduated Law and I finished my Masters in Law at the Faculty of
law at First Private University FON. I have passed bar exam. Currently I am working as a
teaching assistant, and I am focused on research in my field of study/interest. My research
field includes witness protection in Republic of Macedonia and impact of international
documents on the protection of witnesses. I have been part of training seminars and projects
as a participant and part of organizational committeeг цlso I’m author and coauthor of many
papers and publications.

88
Introduction fight against international organized
Emergence of new forms of crime and its crime; The Council's Framework Decision
organized structures imposed the on the Placement of Victims in the
necessity of intensifying the reform of the Criminal Procedure) and Documents of
penal legislation in the Republic of the Organization of the United Nations
Macedonia. The grounds for reform of the (Convention of the United Nations against
penal legislation is, by all means, transnational organized crime, Additional
observation of the basic freedoms and Protocol to the United Nations Convention
rights of the citizens of the Republic of against Transnational Organized Crime for
Macedonia stipulated in the Constitution the Prevention and Suppression and
and in the international agreements as Punishment of Trafficking in Persons,
well as creation of appropriate Especially Women and Children)
mechanisms for efficient elimination of the
organized crime and improvement of the The significance of "threat" and "risk"
efficiency and effectiveness of the criminal In general, the threat must beagainst the
procedure.The Law on Witness Protection witness’s lifeр it does not extend to his or
addressed the necessity of establishing a her well-being or property.A threat
legal frame which is to provide efficient assessment can be defined as the
protection of a person possessing investigative and operational techniques
information of significance for the criminal usedby law enforcement authorities to
procedure and whose life, health, freedom identify, assess and manage the risk and
or property has been threatened and potentialperpetrators of targeted violence
his/her close persons as well as the against a witness.
victims, if they appear in the capacity of
witnesses, and collaborators of justice. A distinction between “threat” and “risk”
should be made. A threat assessment
The necessity of adopting the Law on looks atwhether the life of the witness is
Witness Protection was overwhelming also in serious danger, and should address
for implementation of the provisions of issues such as:
many interlantional documents: (a) The origin of the threat (group or
Documents of the Council of Europe person);
Recommendation (REC (97) 13 of the (b) The patterns of violence;
Committee of Ministers of the Member (c) The level of organization and culture of
States concerning the intimidation of the threatening group (for example,
witnesses and the rights of the defense; streetgang, Mafia-type group, terrorist
Recommendation REC (2005) 9 of the cell);
Committee of Ministers of the States (d) The group’s capacity, knowledge and
Parties for the Protection of Witnesses and available means to carry out threats.188
Associates of Justice; Convention against
Action on Trafficking in Human Beings; A risk assessment examines the chances
Second Additional Protocol to the of the threat materializing and assesses
European Convention on Mutual how it canbe mitigated. The assessment is
Assistance in Criminal Matters; Penal conducted according to set standards and
Convention on Corruption and using a matrix.189Action is taken to reduce
Jurisprudence of the European Court of the probability of the threat being carried
Human Rights on the Protection of out, for example byusing unmarked cars
Witnesses), Documents of the European
Union (Convention on Mutual Assistance
in Criminal Matters between the Member
188Good practices for the protection of
States of the European Union Council;
Resolution for protection of Witnesses in witnesses in criminal proceedings involving
the Fight Against Organized Crime organized crime, United Nations Office on
Drugs and Crime Vienna, 2008, p.61
Council; Resolution for persons 189Kambovski V, “Organizedcrime”. Skopje: 2-
cooperating in the judicial a process in the August, 2005, p.227
89
to transport witnesses, resettling used as evidence in a court procedure or
witnesses temporarily or providingthem an administrative procedure, which
with new identities. The assessment is implies that the person has certain
conducted by the witness protection unit knowledge on the fact. What is relevant for
andis a key factor in providing tailor-made the offence is that the act of perpetration
protection to suit the needs of the prevents giving a statement in general or
witnesses.Throughout the programme and giving a true statement.194
even after its termination, it may be
necessary to carryout periodic threat Witness protection in the law on
evaluations in order to decide whether to criminal procedure
continue, upgrade, discontinueor reinstate The Law on Criminal
protection measures.190 Procedure195regulates the witness
protection during the criminal procedure
Witness protection in the and taking measures for witness
Macedonianpenal legislation protection during the criminal procedure.
Witness protection is regulated by the Witness protection during the criminal
Criminal Act of the Republic of procedure is carried out during the pre-
Macedonia, the Law on Criminal criminal and the criminal procedure 196.
Procedure; Law on Witness Protection; Uponproposal of the/ public prosecutor
Law on Interior; Law on Prevention of the court decides on the measures to be
Corruption; Law on Sanctions and the sub taken for protection of a threatened
laws regulating the witness protection. witness during the criminal procedure197.

In case the threatened witness refuses to


reveal information on his/her name,
surname, his/her father/s name,
Witness protection in the material occupation, residence, place of birth, age
penal law and relation with the defendant and the
The Criminal Act of the Republic of injured party as their disclosure could
Macedonia191foresees offences which could expose himself/herself or his/her close
be perpetrated in order to harm the person to danger, the investigative judge
witnesses. The basic offence192refers to an or the president of the council shall notify
action of forced or other influence over a the public prosecutor without delay and
person being summoned as a witness, to submit minutes requesting a written
present himself/herself in the court or
not, or to make a certain statement or
not.10Beside the threat, influence over the 194Budzhakoski S., “Criminal Law-
person could be exercised also by offering generalpart”. Skopje: CSI Instituteof
a bribe, obstructing or otherwise. 193 Managementknowledge, 2008, p.184
195Law on Criminal Procedure, Official Gazette
Object of such action is a person, whose
of Republic of Macedonia No. 15/97, Law on
statement about a certain fact may be
Amendments and Modifications to the Law on
Criminal Procedure, Official Gazette of
Republic of Macedonia No.44/02, 74/04 and
190Good practices for the protection of 83/08, and 67/09
witnesses in criminal proceedings involving 196The Novelty of 2004 to the Macedonian Law

organized crime, United Nations Office on on Criminal Procedure introduces special


Drugs and Crime Vienna, 2008, p. 62 chapter with provisions on witness protection,
191Criminal Act, integral text-preface, short collaborators of justice and victims
explanations and glossary, second edition, 197According to article 270 -a of the Law on

Official Gazette of Republic of Macedonia, Criminal Procedure, Official Gazette of


Skopje, 2011 Republic of Macedonia No. 15/97 Law on
192 Article 368 –a of the Criminal Act of the Amendments and Modifications to the Law on
Republic of Macedonia Criminal Procedure, Official Gazette of
193Kambovski V, “ Criminal Law – general part”. Republic of Macedonia No.44/02, 74/04 and
Skopje: 2-August S- Shtip, 2006, p.322 83/08, and 67/09
90
proposal on use of a special manner of of examining and participating in the
hearing and participation in the procedure determined by the provisions of
procedure.198 the Law on Criminal Procedure and by
applying the measures for protection
The special manner of hearing of a outside the procedure regulated by a
threatened witness can be implemented separate law, that is, the Law on Witness
through concealing the identity and Protection.
appearance of the threatened witness. The
persons, who, in any capacity, have come The Criminal Procedure Code of the
to know information about the threatened Republic of Macedonia underwent huge
witness, shall treat them as classified changes with the 2010 amendments. The
information, in compliance with the protection of witnesses is laid down in
law199. Articles 226-232, without specifying a
Beside the provisions organized in a separate chapter as was the case with the
separate chapter referring to the witness previous law.202
protection, collaborators of justice and the The law stipulates that, if it is likely that
victims, the Law on Criminal Procedure by giving statements and answering a
includes other provisions regulating the certain question, the witness, the
witness protection, which are organized in collaborator of justice or the victim, that
other chapters200. is, the injured person would expose
himself or herself close to a serious
By changing the concept of the Criminal danger to life, health or physical integrity,
Procedure Code, Articles 226-233 of the the endangered witness may to forbid the
Criminal Procedure Code of 2010 provide giving of the statement or the presentation
for the protection of witnesses. 201 The of the data (name and surname, father's
protection is envisaged for the endangered name, occupation, place of residence,
witness to be provided with a special way place of birth, place of birth, years of age
and his relationship with the defendant
and the damaged party) safe conditions
for its protection.
198Kambovski V, “ Criminal Act, integral text-
preface, short explanations and glossary”,
The protection of the captured witness
second edition, Official Gazette of Republic of
Macedonia, Skopje, 2011, p.120
shall consist in a special manner of
199In article27—a the Law on Criminal examination and participation in the
Procedure stipulates that the witness procedure regulated by this law and by
protection out of the procedure is carried out applying measures for protection outside
through special inclusion of witnesses into the the procedure regulated by a separate
Witness Protection Program, which is regulated law.203The protection of the endangered
by a separate law, that is, the Law on Witness witness can be in two stages of the
Protection. This article offers the legal basis for procedure, in the framework of the
implementing out-of-procedure measures for
protection stipulated in the Law on Witness
Protection
200Those are: article 142-c organized in the

part referring to special investigative measures 202 Kambovski V. and Tupancheski N,


of Chapter XV-Pre-investigative procedure; “Criminal Law”. Skopjeп Ss. Cyril and
article 146-a, which is also organized in the Methodius, Faculty of Law, Justinian "2011,
part referring to special investigative measures p.223
of Chapter XV- Pre-investigative procedure and 203Buzarovska G,“Procedural measuresto
article 295-a organized in the part referring to protectwitnessesindomesticandcomparativelaw”
assumptions for holding the main trial under . Skopje: Protection
Chapter XXI-Main trial ofwitnessesandcollaborators ofjusticefor
201Kambovski V, "The second phaseof the victimsindomesticandinternational law-the
reformof the criminallaw"Skopje: Macedonian International Organization for Migration-
Reviewof Penal LawandCriminology, Year 11 IOMMissioninSkopje, p.163
No. 3 2004, p.86
91
preliminary procedure and the main Witness protection in the law
hearing. onwitness protection
The Law on Witness Protection 206was
The Law on Criminal Procedure adopted on the session of the Assembly of
introduces the category "especially the Republic of Macedonia held on 19 May
vulnerable victims and witnesses" in the 2005 despite of the presence of opposing
general provisions, which also have positions regarding the necessity of its
specially provided rights. The provisions adoption. Witness protection is
for interrogation of witnesses also define preconditioned by the fact that the
the conditions under which such a person process of proving the offence may face
is examined. Thus, if a damaged person severe difficulties or it may not be carried
and a witness for whom the body out without a statement of a person who
conducting the procedure determines disagrees to give a statement in a criminal
that, given the age, health condition, procedure as he/she could be exposed to
nature or consequences of the crime, or intimidation, threat of revenge or threat to
because of other circumstances of the his/her life, health, freedom, physical
case, they fall into the category of integrity or property.207The measures for
especially vulnerable victims and protection prescribed by this Law are
witnesses, person - victim of trafficking in measures for protection including
human beings, violence or sexual abuse, activities for physical protection, and
and that the examination in the premises operational and technical measures to
of the body conducting the procedure guarantee security of protected persons.
would have harmful consequences for The main goal of the measures for
their mental or physical health, a special protection is to provide maximum
way of investigation .204 protection and security for the protected
person by minimum intrusion into
The law provides for a provision on the his/her private life, that is, to provide
rights of the defense in the examination of natural, normal and usual environment
endangered witnesses at the main for the protected person.
hearing, that is, defense guarantees. One of the basic principles of this Law is
When examining the endangered the principle of secrecy208, which is a
witnesses at the main hearing, special general characteristic of the issue of
attention will be paid to the right of the witness protection. Therefore, information
defendant and his counsel to have an obtained by the persons pursuing official
adequate and sufficient opportunity to duty, related to the measures for
dispute and verify their statements. The protection, are classified information of
verdict can not be based solely on the
statement of the endangered witness
obtained by applying the provisions for
concealing his identity or the appearance
206Law on Witness Protection, Official Register
for his protection and protection of his
of Republic of Macedonia No. 38/05 and Law
close relatives.205 on Amendments and Modifications to the Law
on Witness Protection, Official Register of
Republic of Macedonia No. 58/2005
207 Offences for which the use of measures for

protection may be approved, which are


204 Kalajdziev G, “Witness protection in terms offences against the state, against humanity
of human rights”. Skopjeп Protection of and international law, organized crime offences
witnesses and collaborators of justice for and those which hold minimum of four years
victims in domestic and international law-the imprisonment according to the Macedonian
International Organization for Migration - Criminal Act
IOMisija in Skopje, 189 208Promoted by the recommendation Rec
205KalajdzievG.andBuzarovska G.,”Code of (2005) 9 of the Committee of Ministers of the
CriminalProcedure" Skopje: Academic2011, EU member countries, for protection of
p.180 witnesses and collaborators of justice
92
certain degree of secrecy regulated by measures is to provide appropriate
law.209 protection for the persons included in the
Witness Protection Program. Duration of
For the purpose of protecting witnesses the urgent measures is restricted up to
the Law on Witness Protection prescribes the moment the decision upon including
establishing the following bodies: Witness the person into the Witness Protection
Protection Council is a body to make Program is made by the Council for
decisions on inclusion of persons into the Witness Protection. According to the Law,
witness protection program and its the following measures of protection may
termination, and on use of the measure of be used as urgent: providing secrecy of
identity change. The Department for the identity; providing personal protection
Witness Protection is a part of the Sector and change of place of residence. 212
for Organized Crime within the Central The difference between the regular
Police Office of the Ministry of measures and the urgent measures is the
Interior.210The procedure of inclusion into grounds for their use.
the Witness Protection Program is
composed of two phases: inclusion of a In the part referring to the penal
person into the Witness Protection provisions the Law on Witness Protection
Program and implementing measures of stipulates unauthorized reveal of
protection.211Inclusion of a person into the information and data about a witness,
Witness Protection Program is composed collaborator of justice, victim appearing in
of three sub phases: request for inclusion the capacity of witness or his/her close
into the Witness Protection Program; persons as well as other information,
proposal for inclusion into the Witness which may lead to his/her identification
Protection Program, which is submitted to and threaten his/her life, health, freedom,
the Council for Witness protection by the physical integrity or significant property
Public Prosecutor of RM, and decision amount. The stipulated penalty for this
upon the proposal for inclusion into the form of a crime is a minimum of four
Witness Protection Program submitted to years imprisonment213.
the Council for Witness Protection by the
Public Prosecutor of RM. Two qualified forms of this offence have
been stipulated: if revealing information
Measures of protection stipulated by the and data about the person have led to
Law on Witness Protection are: providing severe physical injuries of the witnesses,
secrecy of the witness’s identityр providing collaborators of justice and the victims
personal protection; change of residence appearing in the capacity of witnesses and
and change of identity. The Law also their close persons the penalty for the
stipulates the possibility of use of urgent perpetrator is minimum eight years
measures. The goal of the urgent imprisonment, and if revealing
information and data about the person
have led to death or suicide of the
209According to the Law on Classified
witnesses, collaborators of justice and the
Information there are four classification levels: victims appearing in the capacity of
state secret, strictly confidential, confidential witnesses and their close persons, the
and internal. penalty for the perpetrator is minimum 15
210 Grozdanovska M. “Witness protectionп years of imprisonment or a life
international aspects and the legislation in the imprisonment.
Republic of Macedonia, Master’s paper, Faculty
of Law “яustinian Primus” (зеже)п зм-46
211 Kalajdziev G, “Witness protection in terms

of human rights”. Skopjeп Protection of 212Ibid, Marija Grozdanovska, p. 47


witnesses and collaborators of justice for 213Article42 of the Law on Witness Protection,
victims in domestic and international law-the Official Gazette of Republic of Macedonia No.
International Organization for Migration - 38/2005
IOMisija in Skopje, 191
93
witnesses. Of course, the most significant
Analysis of Macedonian custody feature is that despite the fact that their
jurisprudence application is in accordance with the
For the purpose of the research, I positive regulations, the court does not
analyzed several verdicts issued by the bind trust to them. However, despite the
Basic Court Skopje I. existence of other evidence in support of
the indictment, in the end, a verdict is
Characteristic for verdict no. IV C. 9/09 is dismissed which refuses the indictment.
the the place, the time and the type of the Given the fact that the circumstances
violation indicate that the persons have from which we can assess the threat of
the status of endangered witnesses these witnesses are missing, there are also
because their life was at stake at the missing data on the body that was
critical moment and they were heard responsible for determining this status at
under a pseudonym that should protect the critical moment.
the endangered life as a protection or an
out-of-process measure. Such a factual According to the elements I took as
situation reveals their working position in criteria in the analysis of the verdict no.
detail, the connection with the deceased XVIII C. 2421/11 circumstances taken
who was their colleague, as full into account when the protection status
information on medical certificates is was approved in this judgment, the
provided, through which the type and circumstances under which the protection
degree of bodily injury is inspected. This was determined were not stated, but the
suggests that a lot of data indicating the level of the threatened witness is not
persons under protection are transparent, unknown. The bases under which these
that is, on several occasions details of the types of witnesses were used is in
identity are revealed, and there is no data accordance with the Law on Criminal
that is the competent authority that has Procedure and the Law on Witness
assessed the disgusting nature of the life Protection, that is, the provisions that
and body of the witnesses, so decided to allow the application of a special way of
give protection out of process way or their drying and from the aspect of the gravity
questioning under a pseudonym. of the crimes committed by the defendant.
Regarding the manner of their
In this judgment no. C.40/10 there are participation in the procedure, the witness
no circumstances on the basis of which is being heard under a pseudonym.
the threat to the life or body of witnesses Characteristic of this verdict is primarily
can be established. The bases under the relationship between the defendant
which these types of witnesses were used and the endangered witness. In the
is in accordance with the Law on Criminal instant case, direct acquaintance is the
Procedure, that is, the provisions that reason for the risk of having a convicted
allow the application of a special manner witness in serving the sentence of the
of suicide, as well as from the aspect of convicted person. Also, the court should
the gravity of the crimes committed, were establish responsibility because of the fact
applied. Regarding the manner of their that during the application of the special
participation in the procedure, they were investigative measures, the measures did
heard under a pseudonym, but as we not take any actions to prevent further
stated, no procedure was filed under assault, but on the contrary, despite the
which their protection was received. determined conversation and the intention
Characteristic of this judgment is above to use the fortunes, it was allowed to take
all the way in which the judgments of the over and the witness then enjoyed
witnesses who are threatened in the case protection. In this judgment, within the
are appreciated. In this judgment, the entire text, a term of a fiery witness is
statements of the endangered witnesses in used. Certainly, the claim of the defense
one part are presented as endangered that the person is a provocative agent
witnesses in a certain section of protected deserves special attention, and in
94
accordance with the decision approving It is necessary to introduce the protection
the status, it clearly indicated that it is of witnesses that the defense will propose.
not a provocative agent.
Conclusion
The analysis of these judgments clearly In the national legislation of the Republic
indicates the terminological inconsistency of Macedonia, the spirit of the provisions
and the problems in practice for several of the international documents related to
reasons. Certainly, as I mentioned the the protection of witnesses has been
lack of a definition of an intimidated, incorporated. It can be concluded that the
threatened and protected witness, it Republic of Macedonia has incorporated
greatly provokes problems in practice. in its national legislation the provisions of
Judges act in different ways and in no international documents in the field of
case there is unification if a statement of witness protection. Such crucial
an endangered or protected witness is provisions have been elevated to the level
used. It is precisely this terminological of international standards and are
incongruity which causes the biggest therefore incorporated in national
problem in the judgment with which two legislation, which is particularly important
people have been convicted of a clause of in the context of international cooperation
Art. 42 of the Witness Protection Law. in the field of witness protection as one of
Further, some of the verdicts determine the conditions for effectively dealing with
the manner in which the person received modern crime.
the status of an endangered or protected
witness, and in some of them, this Successful witness protection in any
information is also missing, which is also country considerably depends on the
an additional problem. Regarding the financial resources allocated for the
basis on which the use of such a purpose. Therefore, the inevitable
statement is permitted, the biggest conclusion regarding the financial
problem is that the Witness Protection resources necessary for implementation of
Law allows the use of witness protection the Law on Witness Protection is that
for crimes listed in the law. By contrast, implementation of this Law is costly for
the existence of a broad determination of the state. On the other hand, the
the threat of a witness as a risk leads to expenses for witness protection are
what crimes can be used by a disturbed relative in comparison with the expenses
witness. It is also controversial that the that may occur if no measures are taken
protected witness should not be used if it for witness protection.
can be proved in another way, and from
the evidence procedure it can be Therefore, it is necessary to instigate
established that there were also material modification of the Law on Witness
evidence that there is in large numbers, Protection in the Republic of Macedonia; it
hence the protected witness did not have should commence by determining the
to to be used to prove it.What is degree of responsibility of persons who
characteristic is that the defense does not will make public any data about a
have access to the witness and does not protected person (a person who comes to
know whether it is a threatened or know the identity of a protected person in
protected witness. The defense always the line of duty should be held responsible
emphasizes that the witness is for higher degree than a person who
contradictory, does not know the reasons comes to know it in a different manner).
for his protection, and does not know the Special consideration should be given also
risks of being bullied. It gets the to upgrading the organizational and
impression that the selected person is institutional setting of the authorized
abused for disabling confrontation, the enforcement organs and their mutual
defendant does not believe in the cooperation and coordination as well as to
credibility of the witness and his identity. the need of permanent education of

95
authorized persons for enforcement of the
Law.

96
BIBLIOGRAPHY
 Buzarovska G,“Procedural measuresto
protectwitnessesindomesticandcomparativelaw”г Skopje: Protection
ofwitnessesandcollaborators ofjusticefor victimsindomesticandinternational law-


the International Organization for Migration-IOMMissioninSkopje.
Budzhakoski S., “Criminal Law- generalpart”. Skopje: CSI Instituteof


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Grozdanovska M.“Witness protectionп international aspects and the legislation in
the Republic of Macedonia”, Master’s paper, Faculty of Law “яustinian Primus”.
 Kambovski V, "The second phaseof the reformof the criminallaw"Skopje:


Macedonian Reviewof Penal LawandCriminology, Year 11 No. 3 2004.
Kambovski V, “Organizedcrime”. Skopje: 2-August, 2005.
 Kambovski V, “ Criminal Law – general part”. Skopjeп з-August S- Shtip, 2006.
 Kambovski V, “Criminal Act, integral text-preface, short explanations and
glossary”, second edition, Official Gazette of Republic of Macedonia, Skopje,


2011.
Kambovski V. and Tupancheski N, “Criminal Law”. Skopjeп Ss. Cyril and


Methodius, Faculty of Law, Justinian "2011.
Kalajdziev G, “Witness protection in terms of human rights”. Skopje: Protection of
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KalajdzievG.andBuzarovska G.,”Code of CriminalProcedure"Skopje:


Academic2011.
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organized crime, United Nations Office on Drugs and Crime Vienna, 2008
Recommendation No. R (2005) 9 concerning protection of witnesses and


colaborators of justice, 20.04.2005.
Reports on witness protection, European Committee on Crime Problems (CDPC),


Strasbourg, 24 March, 1999.


Reports on witness protection, adopted by Committee Pc-Co, February 1000.
Law on Witness Protection, Official Gazette of Republic of Macedonia No.


38/2005&58/2005


Law on Classified Information,Official Gazette of Republic of MacedoniaNo. 09/04
Law on Criminal Procedure, Official Gazette of Republic of Macedonia No. 15/97,
Law on Amendments and Modifications to the Law on Criminal Procedure,
Official Gazette of Republic of Macedonia No.44/02, 74/04 and 83/08, and


67/09
Law on Prevention of Corruption. Official Gazette of Republic of Macedonia No.
83/04

97
98
99
Accommodating minorities in conflict
resolution: the case of the Maronites of
Cyprus
By Lorena Diz Conde*

ABSTRACT

This article provides an overview of the Cyprus conflict as an introduction


to the problem of the refugees that emerged after the division of the island
in 1974. It particularly focuses on the case of the Maronites of Cyprus, an
ethnic group that has been present in Cyprus for over millennia,
geographically enclaved, a situation that eased the preservation of their
unique language, the Cypriot Maronite Arabic. However, the mass
displacement of population that occurred after the geographical division of
Cyprus has had a deep impact in the development of the Maronite identity
and the preservation of their culture and language. Following the
occupation of their traditional settlements by the Turkish military, the
largest part of Maronite community was forced to leave to the Greek-ruled
part of the island. After analyzing the impact of the conflict on this
national minority, the article provides an insight into the demands of the
Maronite community in the negotiations of the settlement of the Cyprus
conflict and the current initiatives that intend to preserve the cultural
heritage of the Maronites of Cyprus.

* Lorena Diz Conde is finishing a Joint Master's Programme in Southeastern European Studies
at Karl-Franzens University of Graz and University of Belgrade. Previously, she graduated
from a BA degree in International Relations at Rey Juan Carlos University of Madrid. Her
study focuses on the Western Balkans region, and she is particularly interested in the fields of
human and minority rights, democratization and rule of law in post-conflict states, European
integration, transitional justice, and migration. Her current research for her MA thesis focuses
on the impact of EU-funded project on minority protection in Serbia in the process of European
integration.
E-mail: lorenadizc@gmail.com

100
I. Introduction: Cyprus conflict and the Constitution provided a 30 per cent quota
Maronite Community for Turkish Cypriots in the National
The current division of Cyprus into two Parliament and public administration,
different entities took place in mid-July along with a permanent veto power.
1974, when the Turkish Army invaded the
northern part of the island, following a The inter-communal violence among
coup d'état ordered by the military junta Greek and Turkish Cypriots that
that had been ruling in Greece since developed during the 1960s resulted in
1967. This coup d'état was intended to many failed peacemaking initiatives and
depose the Cypriot president Makarios III, the intensification of violent clashes
and replace him with a loyalist between both groups. President Makarios
government. However, since the III, as the representative of Greek Cypriots
independence of Cyprus from the United and Mr Rauf R. Denktash, on behalf of the
Kingdom in 1960, tensions between Greek Turkish Cypriots, met on several
and Turkish Cypriots had been escalating, occasions seeking an agreement and
leading to inter-communal violence, the settlement of the disputes that would
collapse of the constitutional order after satisfy both parts' demands. However, the
the withdrawal of Turkish Cypriots from course of events prevented a real
the state institutions in 1963, and the perspective for a long term resolution of
creation of enclaves of Turkish Cypriots. the conflict. The initiatives to end the open
armed violence between Greek and
Two main approaches dominated the Turkish Cypriots that outburst in
political scene in Cyprus, even before the December 1963 and to rebuild the
formal independence of Cyprus from the collapsed constitutional institutions failed,
UK: on the one hand, taksim advocates for and in March 1964 the United Nations
the division of the island between Turkish Peacekeeping Force for Cyprus215 was
Cypriots and Greek Cypriots, and it is established and has continued its mission
mostly followed by the former; on the to this day.216 The inter-communal
other hand, enosis, i.e. the formal union violence aggravated in 1967, following the
of Cyprus with Greece, has been largely coup d'état that took place in Greece and
advocated by Greek Cypriots. These two established a military junta government.
conflicting views have dominated the All the mediation attempts organized
inter-communal conflicts and negotiations under the auspices of the United Nations
since the 1950s. also failed.

The 1960 Constitution, which is part of The turning point in this conflict took
the Zurich Agreement that granted place in 1974, when Turkish armed forces
independence to the Republic of Cyprus, entered in the northern part of the island
established a bi-communal state of Greek as a reaction to the coup d'état instigated
and Turkish Cypriots, whose guarantors by Greece, which sought to achieve
are the United Kingdom, Greece and enosis. This event led to the de facto
Turkey. At that time, the population in division of the island and the suspension
Cyprus was made up by a 77.1 per cent of of the Constitution of the Republic of
Greek Cypriots and a 18.2 per cent of Cyprus in the northern part, controlled by
Turkish Cypriots,214 along with three Turkish forces.
main minority groups: Armenians,
Maronites and Latins, which were
integrated in the Greek institutions. The

215 United Nations Security Council,


“Resolution жнл” (1964).
214 Georgia Verropoulo, “The Demography of 216 Cihat Göktepe, “The Cyprus Crisis of жолм

Cyprus, 1881-жонз” (University of London, and юts Effects on Turkey’s Foreign Relations,”
1997), 153. Middle Eastern Studies 41, no. 3 (2005), 431.

101
The conflict would develop in the following Therefore, this minority group has been
decades leading to the current situation of affected by the outcomes of the conflict in
a divided island with dozens of non-solved a very particular way, mostly due to their
problems, including refugees, land historical presence in a defined area of the
ownership, exclusion from formal island, but also due to the particular
representation in state institutions, socio- ethno-cultural characteristic of this
economic challenges, among many others. minority, as we will explain in the
These are direct consequences of the following chapters.
division of the territory into two different
entities, the Republic of Cyprus, which The Cyprus conflict is a complex topic
has fully international recognition, and that involves many factors and actors,
the Turkish Republic of Northern Cyprus both internally and internationally. This
(TRNC), self-declared in 1983, only essay will introduce the problem of
recognized and supported by Turkey. This refugees in a divided island by analyzing
conflict has continued for more than 40 the specific case of the Maronites of
years without a successful resolution, Cyprus. The aim of this essay is to analyze
even though several initiatives and peace how the Maronite community has been
talks have been held. affected by the conflict and how this
One of the reasons that may explain the community is tackling with their
deadlock in negotiations for more than 4 particular situation. Moreover, we will also
decades is the absence of an open violent address the political role of the
conflict between Greek and Turkish community in the peace talks, their
Cypriots after the division of the island, proposals and demands.
which has led to the definition of the
Cypriot conflict as a comfortable II. The impact of the Cyprus conflict in the
conflict.217 The lack of deadly victims does Maronite community
not encourage the negotiating parts to The Maronites of Cyprus are the biggest
reach an agreement any time soon, minority group in Cyprus. They are an
however, the large number of refugees has ethnic, religious and language minority
been the most visible outcome of the that has been present in the island since
division of the island, having a great the 7th century, originating from the area
impact in the socioeconomic development of today's Lebanon and Syria, where they
of Cyprus. maintain strong ties. The Maronite
identity is particular in the Cypriot
The Maronites of Cyprus are a minority context: they consider themselves
group that has been present in the island Cypriots, constitutionally Greek, and
since the 7th century. As it has already Catholic with the center of their faith in
been pointed out, they constitute one of Lebanon (Maronite Patriarchate of
the three minority groups in Cyprus, Antioch). Moreover, they speak a unique
along with Armenians and Latins. language, known as Cypriot Maronite
Historically, they have been settled in the Arabic (CMA or Sanna, "our language"),
north-west of the island, and by 1960s which is officially considered a severely
they were present in four main villages: endangered language, according to
Ayia Marina, Kormakitis, Asomatos, and UNESCO, since 2002.218
Karpasha. These villages are under TRNC
territory in the current division of Cyprus.
218 Marinela Karyolemou, “The Demographics

of the Cypriot Maronite Community and of


217 Constantinos Adamides and Costas M. Cypriot Arabic Speakers,” in Empowerment
Constantinou, “Comfortable Conflict and through Language Revival: Current Efforts and
(юl)liberal Peace in Cyprus,” in Hybrid Forms of Recommendations for Cypriot Maronite Arabic,
Peace: From Everyday Agency to Post- ed. Brian Bielenberg and Costas M.
Liberalism, ed. Oliver P. Richmond and Audra Constantinou (Oslo: International Peace
Mitchell (Palgrave Macmillan, 2011), 242–59. Research Institute, 2010).

102
Therefore, they have a "dual"
The Maronite community was historically representation, as Cypriot citizens and as
settled in a very specific area in the members of the Maronite community.
northern part of Cyprus, in the Kyrenia
district. In the 1960s only four Maronite One of the distinctive features of the
villages remained: Kormakitis (which is identity of the Maronite community of
considered the centre of the Cypriot Cyprus is their unique language, which is
Maronite culture and used to house half severely endangered. The Cypriot Maronite
of the Maronite population), Karpasha, Arabic is a language with strong Arabic
Asomatos and Ayia Marina. At that time, and Aramaic influences that has been
the Maronite community numbered about spoken by this community since their
4200 people. 219 arrival to Cyprus and has been orally
transmitted to the following generations.
As it has already been pointed out, However, after the division of the island
according to the Constitution, the and the military occupation of two of the
Republic of Cyprus is a bi-communal state Maronite villages, a great part of the
with two recognized communities: Greek community was forced to leave to the
Cypriots and Turkish Cypriots. The southern side of the island, where they
Maronites are recognized in the have settled all over the territory, without
Constitution of the Republic of Cyprus as a particular city or village where they
a religious group, but they had to choose would concentrate. This had a great
which constitutional community they impact on the transmission of the
would join. Their decision in 1960 was to language to the younger generation of
become part of the Greek Cypriot Maronites, who have been raised in Greek
community, due to their belonging to majority municipalities and use Greek
Christianity. The Constitution of the language on a daily basis.
Republic of Cyprus recognizes three
religious groups220 and defines their right Nowadays CMA is commonly spoken by a
to be represented in the Greek Communal small number of Maronites in Cyprus,
Chamber.221 After 1974, the Parliament of where Greek and Turkish are the official
the Republic of Cyprus became unilateral, languages. Most of the speakers are the
and the Maronite community is elderly living in Kormakitis, and some of
represented by their own Parliament the Maronites that gather in the different
Representative, who is not allowed to vote, clubs that were created after the exodus,
but can intervene in matters directly such as the Kormakitis Club in Nicosia.
affecting the Maronites. This may be seen Most of the younger generations cannot
as discriminatory or as a privilege, speak CMA anymore as a consequence of
because Maronites are also entitled to vote the strong ethnic assimilation that is
ordinary members of the parliament. taking place into the Greek Cypriot
society, mostly through education and
mixed marriages.222 It is estimated that
only 900 out of 4200 Maronites223 can
219 Caesar V. Mavratsas, “The Armenians and speak CMA nowadays.
The Maronites of Cyprus: Comparative
Considerations Concerning Ethnic In an attempt to revive the language,
Assimmilation,” in Mediterranée: Ruptures et
many initiatives have emerged, including
Continuités. Acts of the Colloquiumin Nicosia,
20-22 October 2001, University Lumière-Lyon 2, the codification of the language,
University of Cyprus (Lyonп Maison de l’Orient
et de la Méditerranée Jean Pouilloux, 2003),
207. 222 Mavratsas, “The Armenians and The
220 “Constitution of the Republic of Cyprus” Maronites of Cyprus: Comparative
(1960), art. 2. Considerations Concerning Ethnic
221 “Constitution of the Republic of Cyprus” Assimmilation,” зек.
(1960), art. 109. 223 Ibid., 207.

103
associations teaching CMA to young Turkish armed forces prevents the
generations, and the use of CMA in successful protection of the language.
cultural activities organized by the Nevertheless, the community is taking
Maronite community. The main steps forward and it is actively involved in
motivation for the revival of the language the codification and standardization of the
is historical and cultural, not its language, meaning the compilation of the
usefulness. grammar and vocabulary, which is crucial
for producing textbooks and teaching
For a long time, the Cyprus government material.226
was reluctant to recognize and protect the Before the division of the island, the
CMA, as the Maronite community was ethnic distribution of the population was
considered merely a religious minority, mixed, especially in the cities, with some
whereas their language was disregarded. enclaves of Turkish Cypriots that emerged
This fact was largely criticized by as a consequence of the inter-communal
academics and the Committee of Experts violence. Thus, Turkish and Greek
of the European Charter for Regional or Cypriots were present throughout the
Minority Languages, who exposed that the whole island, with areas of higher
lack of protection contributed to the predominance of one or the other group,
disappearance of this endangered but no possibility to divide them
language.224 The government of Cyprus geographically. As a consequence of the de
used to categorize CMA as a dialect of facto division of the island in 1974 and
Arabic, rejecting any need for protection of the establishment of the Turkish Republic
the language. However, Alexander Borg, of Northern Cyprus (TRNC) in 1983, large
the foremost expert in this language, population displacements took place.
argues that it is not a dialect, but a Greek Cypriots were forced to move to the
language itself, that requires official south, whereas Turkish Cypriots
recognition and protection to guarantee its displaced to the self-proclaimed TRNC in
survival.225 the northern third of the island. The
figures about the number of Greek Cypriot
In 2008, the Maronite community created refugees vary between 160,000 and
the "Committee of Experts for the 200,000, meaning that at least a third of
Codification of Cypriot Maronite Arabic" the community became internally
and the "Platform for the Revitalization of displaced persons (IDPs).227 On the other
the Cypriot Maronite Arabic" who try hand, approximately 48,000 Turkish
through different initiatives to revive the Cypriots moved to the north as refugees,
language. Moreover, they managed to put making up around a 40 per cent of the
pressure on the government of the community.228
Republic Cyprus to include the CMA on
the application of Part II of the European After the division of Cyprus, the remaining
Charter for Regional or Minority four Maronite villages (Ayia Marina,
Languages (ECRML) in November 2008, Kormakitis, Asomatos, and Karpasha)
which guarantees official recognition and were geographically integrated in the
protection. However, the resources northern third of the island under Turkish
devoted to this protection and the occupation. This event led to the
achievements have been certainly limited.
The government of the Republic of Cyprus
argues that the occupation of the 226 Committee of Experts of the ECRML,
traditional Maronite villages by the “Application of the Charter in Cyprusп юnitial
Monitoring Cycle” (Strasbourg, 2006), para. 71.
227 Michalis Stavrou Michael, Resolving the
224 Costas M. Constantinou, “Why Does the Cyprus Conflict: Negotiating History (New York:
Government Refuse to Protect Cypriot Maronite Palgrave Macmillan, 2009), 130.
Arabic,” CyprusMail, 2008. 228 Fiona Mullen, “How Many Refuges Are
225 Ibid. There in Cyprus,” InCyprus, 2016.

104
displacement of a large number of community from complete assimilation in
Maronites, who dispersed throughout the the Greek Cypriot society.232
Republic of Cyprus, i.e. the southern part Most of the internally displaced persons
of the island. Two of the traditional "no longer have humanitarian needs and
Maronite villages, Ayia Marina and have largely integrated in the places they
Asomatos, remain Turkish military camps have settled"; however, "they are still
still today. Karpasha is also under unable to take back possession of the
Turkish military control; however, some of property they left behind, or return to
its residents are allowed to live there. their homes".233 This is a visible problem
Finally, Kormakitis, has no such status, in any community in Cyprus, including
and it is far easier for its residents to the Maronites.
resettle there if they wish.229
Nevertheless, it is important to point out
However, some people decided to stay in that the Maronite community of Cyprus
the villages, even if they risked to be has also been granted a "special" status,
deprived from basic civil and political as the authorities of the TRNC recognized
rights as well as support in their daily life their distinctiveness from the Greek
from the government. Although most of Cypriots and have been treated differently
the population of Kormakitis left to the in some matters. For instance, the
south in 1974, around 130 people Maronites were allowed to cross the Green
remained. In 2003, the mean age of the Line even before its opening in 2003, so
population of Kormakitis was seventy- they could visit their relatives in the
three for men and seventy-five for villages.234 Moreover, those living in the
women.230 north have Turkish Cypriot residence
permits and right to property. However,
At the moment, around 200 Maronites, those who left the villages after the
mostly pensioners, live in Kormakitis and division of the island are deprived from
Karpasha, out of which a hundred their right to property, as they are their
resettled there recently following a new Greek counterparts. Thus, "when a person
support scheme announced by the dies, if there are no heirs living in the
Republic of Cyprus to encourage the north the family cannot inherit the
enclaved to return to their villages in the property, which is confiscated by the
north.231 As C.V. Mavratsas points out, for authorities. Similarly, when persons die,
older Cypriot Maronites, preserving a their families cannot return to settle in the
sense of Maronite distinctiveness is seen north".235 However, some advancement
primarily in reference to their return to has taken place in the last decade and
the Maronite villages in the northern part some properties in Kormakitis, Karpasha
of the island. They strongly argue that and Ayia Marina have been given back to
coming back to their traditional villages is their owners.
the only option they have to save their

232 Mavratsas, “The Armenians and The


Maronites of Cyprus: Comparative
Considerations Concerning Ethnic
Assimmilation,” зео.
229 Tahsin Eroglu, “Maronites to Return to 233 Internal Displacement Monitoring Centre,

Villages in the North (Updated),” CyprusMail “Cyprusп Lack of Political Settlement Prevents
Online, 2017. the Displaced from Fully Enjoying Their
230 Mavratsas, “The Armenians and The Property Rights” (Geneva, зеем), м.
Maronites of Cyprus: Comparative 234 Parliamentary Assembly of the Council of

Considerations Concerning Ethnic Europe, “Rights and Fundamental Freedoms of


Assimmilation,” зел. Greek Cypriots and Maronites Living in the
231 Eroglu, “Maronites to Return to Villages in Northern Part of Cyprus,” зееи, para. 8.c.
the North (Updated).” 235 Ibid., para. 19.

105
Moreover, there are two representatives of
the Maronite community in the TRNC To sum up, the Maronites of Cyprus have
administration (one appointed by the been severely affected by the conflict in
Cypriot government and the other by the Cyprus and the division of the island,
Turkish Cypriot administration), who have which is compromising the very existence
civil functions but do not have the powers of their community. Their forced
of mayors".236 Therefore, we can conclude displacement to the southern part of the
that some individual rights (health, island and their geographical dispersion
education, freedom of movement, freedom has led to a great amalgamation with the
of communication and freedom of Greek Cypriot community. Moreover, they
religion237) of the Maronites are more or have been deprived from their properties
less protected, even within the TRNC, but in the villages where they have been
their community rights are systematically historically present. Furthermore, despite
ignored. the important damage that the conflict
has inflicted in the Maronite community,
One of the main concerns for the survival they have systematically been left aside in
of the Maronite community is their the peace talks and the initiatives for
progressive assimilation in the Greek conflict resolution.
Cypriot society. On the one hand, the
Maronite youth is mostly educated in III. Conflict resolution: what can be done?
Greek schools. There is a Maronite school Demands of the Maronite community and
in Nicosia that opened more than 15 years perspectives for a comprehensive
ago; however, less than a hundred resolution protecting minority groups
children attend this school and are The Cyprus Problem, as it is widely known
obliged to follow the Greek curricula. in the island, has been present for longer
Therefore, education on the Maronite than 50 years already without
culture and language must be carried out perspectives for a long term agreement
in extracurricular hours, a fact that deters that would settle down disputes. The new
the young generations to get involved in generations have been raised in a
their community. On the other hand, comfortable conflict that prevents their
there have been an increasing number of willingness to reconcile with a community,
mixed marriages with Greek Cypriots, with which they have never lived together.
leading to the integration to the Greek Therefore, the longer time it takes to
community of the children and the disuse establish common initiatives for conflict
of CMA in the family communication. resolution, the fewer opportunities to
achieve a successful long term agreement
This assimilation is having a strong that would settle down disputes once and
impact in the identity of young Maronites. for all.
As Caesar V. Mavratsas points out, "for
some, the Maronites are a different nation, As it has been already highlighted in the
clearly demarcated from the Greeks; for introductory chapter, many peace
others, the only factor differentiating the initiatives have taken place since the early
Maronites from the Greeks is their 1960s in order to find an agreement that
faith".238 Nevertheless, this community is would settle the inter-communal conflict
strongly attached to Cyprus and consider between Greek and Turkish Cypriots.
themselves Cypriots. Different models have been proposed as
alternatives to the bi-communal state
established in the 1960 Constitution.
236 Ibid., para. 20. Departing from the idea that Enosis is no
237 Ibid., para. 13. longer a viable option for Greek Cypriots,
238 Mavratsas, “The Armenians and The there are three main models in
Maronites of Cyprus: Comparative consideration for the resolution of the
Considerations Concerning Ethnic
Assimmilation,” зел.

106
Cypriot conflict: a consociationalist state, to the already agreed settlement
a federal state, or a two-state solution. parameters" of the High Level
Agreements.242 Currently, the talks cover
Shortly after the division of Cyprus in the following issues: property, governance,
1974, the two sides of the conflict economy, territorial adjustment, security
succeeded to reach the 1977 and 1979 guarantees and the harmonization with
High Level Agreements that would become the European Union. 243 Out of these
the guidelines for the following issues, the most problematic subject in
negotiations. According to these the negotiations has been the property, as
agreements, "the objective of the it is needed to establish comprehensive
negotiations is to form a bi-communal, bi- criteria "to settle relevant property issues
zonal federation that will be based on the through three agreed remedies:
political equality of its two constituting compensation, exchange of relevant
communities".239 Therefore, "such a properties and restitution, taking into
settlement must exclude union in whole account the rights of current users of
or in part with any other country or any properties, as well as the rights of the
form of partition or secession".240 previous property owner".244 This is a very
challenging effort to accomplish after a
The following negotiations have been long time since the outburst of the conflict
conducted under the United Nations and the mass movement of people.
Secretary General's good offices and
mediation roles. The attempt that came However, minorities have become invisible
closer to a solution was engendered under in the conflict due to the Greek Cypriot
Kofi Annan's mandate in 2004. The agreed and Turkish Cypriot inter-communal
solution was voted in referenda by each issues, and have been left aside in the
community. It was accepted by a 64.9 per peace talks and the initiatives for conflict
cent of Turkish Cypriots, but rejected by a resolution. The Maronite community is
75.8 per cent of Greek Cypriots.241 Shorty actively involved in cross-cultural
after, the Republic of Cyprus became part activities which intend to bring new
of the European Union, a fact that may impetus to the process of reconciliation
explain the overwhelming rejection to the and peace-building. An interesting
Annan Plan by Greek Cypriots that initiative where the Maronite community
perceived an increase in their bargaining is involved is "The Religious Track of the
power in future agreements. Cyprus Peace Process", a peace-building
initiative under the Auspices of the
The negotiations that have taken place Embassy of Sweden which includes the
after the rejection of the Annan Plan have religious leaders all the communities of
not achieved any prospect agreement. Cyprus, including the three minorities,
However, some hope emerged after the who are committed to work together for
Joint Declaration issued in February human rights, peace and reconciliation. 245
2014, which intends to "inject new
impetus to the process and add substance As we have already pointed out, the
Maronites have their own representative
in the Parliament of the Republic of
Cyprus. The role of this representative is
239 M. Ergün Olgun, “Cyprusп Towards a
Settlement,” Foreign Policy юnstitute, зежл,
http://foreignpolicy.org.tr/cyprus-towards-a-
settlement/. 242 Olgun, “Cyprusп Towards a Settlement.”
240 United Nations Security Council, 243 Patrick Wintour, “Cyprus Peace Talksп All
“Resolution оио” (жоой), para. з. You Need to Know,” The Guardian, 2017.
241 Theodore Chadjipadelis and Ioannis 244 Olgun, “Cyprusп Towards a Settlement.”

Andreadis, “Analysis of the Cyprus 245 “The Religious Track of the Cyprus Peace

Referendum on the Annan Plan” (Aristotle Process,” n.d.,


University of Thessaloniki, 2007), 5. http://www.religioustrack.com/about.html.

107
to be the connection between the Maronite decision making process on local
community and the Cyprus government. matters and anything important for
The representative is elected on a five-year the development of the community. 250
term and has the right to express the will This is important and necessary for
and views of the community on any the economic development of their
matter which concerns it, but he doesn't lands. Moreover, they request a
have the right of speech and vote in the "special status arrangement" in order
House of Parliament.246 to guarantee the protection of their


The former Maronite Parliament particular identity at the local level.251
Representative, Antonis Haji Roussos Thirdly, they claim for "the
actively sought for the inclusion of the consideration of individual political
Maronite community in the peace talks rights of Maronites in conjunction to
taking place and issued a declaration, their property and territorial
which included five claims to be claims".252 They argue that the
considered in the possible political political, property and territorial rights

 Firstly, they demand "the explicit


settlement of the Cyprus conflict: of the Maronites should be addressed
while negotiating the political
constitutional recognition of the settlement of the Cyprus conflict in
Maronites of Cyprus as a national order to protect the rights of the
community of Cyprus with territorial communities outside an eventual bi-


rights over their villages", as a communal constitution.
measure to counteract the Fourthly, they also request "the
assimilation that the community has resettlement of the Maronites in their
experienced after their inclusion in the villages", which includes the
Greek Cypriot community in the 1960 guaranteed access to those villages
Constitution, which does not consider under military occupation.
the Maronites a national group, but a Furthermore, they express their wish
religious association. 247 They argue for the incorporation of their villages to
that the restoration of the status of an eventual Greek Cypriot Federal


Maronites as national community will State.253
guarantee the survival of the Maronite Finally, they demand their access to

 Secondly,
community of Cyprus.248 "political representation in both the
they request "the regional and the federal structure of
reinstatement and the clustering of governance, and the right to
the Maronite villages and the return of participation, vote and veto on matters
all Maronite properties to their legal that directly affect Maronite
owners".249 Thus, the Maronite community"254, which should be
community wants to reach a single guaranteed by the Constitution
local authority in their four traditional adopted after the eventual resolution
villages as a way to include all of the conflict.
members of the community in the
The model eventually chosen for the
conflict settlement is not particularly
relevant, as far as it integrates and
246 “The Role of the Representative of the
Maronite Community,” n.d., protects the minority groups living in
http://www.maronitesofcyprus.com/index.php Cyprus. Nevertheless, the Maronite
?option=com_k2&view=item&layout=item&id=1
52&Itemid=830&lang=en.
247 Antonis Haji Roussos, “The Claims of the

Maronites of Cyprus in a Forthcoming Political 250 Ibid., para. 5.


Settlement of the Cyprus Problem” (зежк), 251 Ibid., paras. 6–8.
paras. 1–2. 252 Ibid., para. 4.
248 Ibid. 253 Ibid., para. 9.
249 Ibid., para. 4. 254 Ibid., para. 10.

108
community would accept any solution to culture and language. However, the
the Cyprus conflict, even if their claims community would need financial
are not considered. However, it is a resources to rebuild the destroyed homes
responsibility of both parts of the and infrastructure necessary for the daily
negotiations to reach a solution that life in the villages, which should be
would include the minority groups and provided by the governmental
would not compromise further their structures.257 Nevertheless, after more
existence. than 40 years, the voluntary resettlement
of a large number of Maronites is not very
Therefore, if a solution is not reached soon probable. Many of them will try to recover
and the current situation does not their properties, but due to the lack of
improve any time soon, the Maronite infrastructure and opportunities, they will
community is condemned to disappear. As most likely stay in the Republic of Cyprus.
C. M. Constantinou points out, "the non-
recognition of the ethnic character of IV. Conclusion.
certain Cypriot minorities creates serious The conflict that has been present in
difficulties for the protection of their Cyprus since its independence from the
cultural difference and thus also for the United Kingdom in 1960 has largely
survival of these communities as distinct affected the social relations and the
groups".255 economic development of the island. The
division of the island between Greek and
However, there is some cause for hope in Turkish Cypriots was the outcome of more
the near future. The initiatives taken by than a decade of inter-communal violence
the community in the last years have and the collapse of the constitutional
succeeded in bringing back some families, system. One of the most visible
and the current population in the villages consequences of such territorial division
is 320 people. Moreover, the Maronite was the mass displacement of people from
authorities are trying to encourage one side of the border to the other, leaving
entrepreneurship and tourism in order to behind properties that were taken by
attract young Maronite families to the authorities without any kind of
villages. compensation. The problem of refugees
has affected all the communities living in
Furthermore, recently the Turkish Cypriot Cyprus, but we argue that the
authorities have announced that 4,000 consequences on the Maronite community
Maronite refugees will be allowed to return have been devastating.
to their villages, although they did not
specify when this measure will be The division of Cyprus in 1974 and the
effectively implemented.256 This military occupation of three out of four of
announcement certainly brings hope to the traditional Maronite villages forced the
the Maronite community, which will be displacement of most Maronites to the
able to return to their villages and rebuild southern side of the border, where they
the community and daily activities, which have dispersed all over the territory
are crucial for the preservation of their controlled by the Republic of Cyprus. Very
few, mostly old people, stayed in the
occupied territory. This fact has led to the
progressive assimilation of the Maronite
255 Costas M. Constantinou, “Cyprus, Minority
Politics and Surplus Ethnicity,” in The community in the Greek Cypriot society,
Minorities of Cyprus: Development Patterns and as they have adopted Greek as the
the Identity of the Internal-Exclusion, ed.
Andrekos Varnava, Nicholas Coureas, and
Marina Elia (Cambridge Scholars Publishing,
2009), 6. 257Evie Andreou, “Government Scathing over
256 Eroglu, “Maronites to Return to Villages in Move to Open up Maronite Villages,”
the North (Updated).” CyprusMail Online, 2017.

109
language they use in their daily life, and existence of this community in the near
inter-ethnic relationships are common future.
practice. Therefore, it can be argued that
securing the return to the villages is the
only option to save both the Maronite
identity and their unique language, which
should be considered cultural heritage of
Cyprus.

On the other hand, the presence of the


Maronite community and their role in the
conflict can be seen as an opportunity for
reconciliation between the two sides of the
conflict. As Neophytos Loizides points out,
"the Maronites themselves have played an
increasing role in the rapprochement of
the two communities. More importantly,
the return of Kormakitians to their
ancestral lands in the North could
potentially inspire the beginning of the
process of reversing forced displacement
and its bitter legacy in the island."258 On
the other hand, Mary Southcott proposes
that the future reunited Cypriot state
should not be based on the current
identities present in the island; on the
contrary, they should " focus on building
a solution that would protect them if they
happened not to be from a dominant
group", and therefore, "any constitutional
system put in place would be based on
trying to protect minorities in society,
whoever they might be".259
All in all, the need for finding a solution
for the Cyprus issue and the possibility to
return to their villages is highlighted as
crucial for the survival of the community.
The current situation can be perceived by
the Maronite community with hope but
without much optimism. Thus, the
dispersion of the Maronites and
assimilation with the Greeks, if not
addressed soon, will jeopardize the

258 Neophytos Loizides, “Challenging Partition


in Five Success Stories,” in Resolving Cyprus:
New Approaches to Conflict Resolution, ed.
James Ker-Lindsay (London: IB Tauris, 2005),
180.
259 Mary Southcott, “Updating Our Thinking on

Cyprus,” in Resolving Cyprus: New Approaches


to Conflict Resolution, ed. James Ker-Lindsay
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112
113
The Unfinished Promise of the
Philippines Peace in Mindanao

by Rukmani D. Bhatia*

ABSTRACT

This paper seeks to examine the security issues created in the


Philippines following the unfulfilled peace agreement between the
Philippines government and the Moro Islamic Liberation Front
(MILF). It discusses how the issues facing the southern
Philippines today and the increased rate of radicalization is linked
to the failure to implement the Comprehensive Agreement on
Bangasamoro (CAB). Many factors driving radicalization would be
addressed by the CAB and many fighters become radicalized are
disillusioned MILF fighters

* Rukmani D. Bhatia is the Research Coordinator for Freedom of the Press and
Freedom in the World at Freedom House, managing the portfolios for the Americas,
Asia, MENA, and sub-Saharan Africa regions. She previously served as the Special
Assistant to the USAID Assistant Administrator for Europe and Europe during the
Obama Administration. Prior to her political appointment, Rukmani served as the
inaugural Hillary R. Clinton Research Fellow for Ambassador Melanne Verveer at the
Georgetown Institute for Women, Peace & Security. She has published extensively on
democracy and human rights issues as well as women’s political participation in post-
conflict nations. She has conducted fieldwork in the Balkans, the Philippines, Kenya,
and Guatemala. She holds a master’s degree from Georgetown’s School of Foreign
Service and a bachelor’s degree from Wellesley Collegeг The views expressed in this
article are her personal views.

114
Brief Background on the Conflict in Resentment between the Moro and
Mindanao Christian communities, and division
The conflict in the southern Philippines between the Moro communities in
region of Mindanao was one of main Mindanao and the central government of
conflicts in the Philippines followings its Manila built following a series of events. In
independence in 1946. The Moro conflict жолн, the “яabidah massacre” occured
is recognized as a push by the where Moro commandos were slaughtered
communities of the Muslim majority by the Armed Forces of the Philippines
regions of the the southern Philippines for (AFP).263 The massacre was seen by the
self-determination; a conflict driven by Moro community to be evidence that the
differences in culture, ethnicity and Christian government was failing to
religion.260 The seeds of discord that protect Muslims while also actively
sprouted into conflict extend far back to seeking to oppress the Moro minority
the Spanish colonial era of the 16th communities in the Philippines.264 The
century, where intermittent warfare incident was a watershed moment in the
created divisions between Catholic and Moro community, where decades old
Muslim communities.261 In the early 20th ambitions of independence were
century the U.S., then a colonial power in unearthed and desire for an independent
the Philippines, incorporated Mindanao Minadanao emerged.265 The following year
into the Philippine state, and passed emerged the the Bangsa Moro Liberation
legislation that dispossessed Muslim- Organization (BMLO), reviving the
owned land.262 This is the narrative secessionist movement. In 1971, the
employed by separatist rebel groups to BMLO morphed into the Moro National
use an ethno-national struggle to justify Liberation Front (MNLF); the MNLF
their insurgencies. However, this became the main Moro separatist group
perspective provides only a partial picture representing communities in Mindanao in
of the dynamics of conflict; it overlooks the 1970s. In response to the insurgency,
the issues of class division and economic martial law was declared by the Marcos
exclusion. regime; dissidents saw severe crack downs
and between 1972 and 1976, ferocious
war broke out in the southern Philippines.

In 1977, the MNLF, following a division


260 Peter Chalk, "Separatism and Southeast between Chairman Mur Misuari and Vice-
Asia: The Islamic Factor in Southern Thailand,
Chairman Hashim Salamat, fractured. In
Mindanao, and Aceh," Studies in Conflict &
Terrorism 24, no. 4 (2001); K. Che Man, Muslim 1984, Salamat established the Moro
separatism : the Moros of southern Philippines Islamic Liberation Front (MILF) with a
and the Malays of southern Thailand, South- stronger Islamic orientation than the
East Asian social science monographs MNLF. The MILF was centered in central
(Singapore ; New York: Oxford University Mindanao, well-organized and garnered
Press, 1990); Lambang Trijono and Frans de material and intelligence support from
Djalong, The making of ethnic and religious
conflicts in Southeast Asia : cases and
resolutions (Yogyakarta, Indonesia: CSPS
Books, 2004).
261 The struggle for self-determination by the 263 Nathan Quimpo, "Options in the Pursuit of
Moro population began in 1565 under Spanish a Just, Comprehensive, and Stable Peace in
colonial rule. Today, these areas consist of the Southern Philippines," Asian Survey 41,
Western Mindanao, Central Mindanao, and the no. 2 (2001).
Autonomous Region in Muslim Mindanao 264Carmen Abubakar, "Review of the
(AARM), and the four provinces of Southern Mindanao Peace Process," Inter-Asia Cultural
Mindanao, Davao del Sur, Sarangani, South Studies 5, no. 3 (2004).
Cotabato, and Sulta Kudarat). 265 Hamid Aminoddin Barra, The Code of
262 Thomas M. McKenna, "Governing Muslims Muslim Personal Laws: A Study of Islamic Law
in the Philippines," Harvard Asia Pacific Review in the Philippines, English ed. (Marawi City,
9, no. 1 (2007). Philippines: Mindanao State University, 1988).
115
rural villages.266 The MILF grew steadily Supreme Court, which prevented the
until it was roughly 40,000 combatants in accord from being implemented in 2009,
the late 1990s.267 The MILF was initially resulting in the government backing out of
founded on the demand of an independent the agreement.272 The peace process once
Islamic state for Muslims; by 2010 the again stalled and violence resumed. 273
demand changed to autonomy for the
Mindanao region from the central Under President Benigno Aquino ююю’s rule,
government in Manilla. the peace process began again. The
government sought peace, as the intense
Traction in the Peace Process fighting between the MILF and
In 1996, the Philippine government began government forces had displaced
discussions with MILF leadership to work thousands of civilians in the southern
towards peace talks; a ceasefire agreement Philippines. The MILF were not granted an
was signed in 1997 but the agreement independent region but they were granted
was short-lived.268 The MюLF’s demand for more autonomy and the ability to create
autonomy for the entire Mindanao region the Bangsamoro region, outside the
was non-negotiable for the government at political control of Manilla. In October
the time.269 The talks formally ceased in 2012, the MILF and the goverment of the
1999, conflict restarted and the MILF saw Philippines signed the Framework
increased support in the region from Moro Agreement on the Bangsamoro. On March
communities.270 Negotiations restarted 27, 2014, the two parties signed the
under Arroyo, with small progress in the Comprehensive Agreement on the
discussions beginning in 2005. in 2008, Bangasamoro. The agreement laid out a
Arroyo made an agreement with the MILF, framework of power-sharing and the
granting Muslims a right to reclaim process to create an autonomous region to
ancestral land taken from them and given allow for harmony between the Philippine
to Christians in the mid-20th century. 271 and Bangasamoro governments.
This progress was shortly undone by the
However, the peace agreement has failed
to be fully implemented. On January 25,
2015, skirmishes between MILF militants
266 In what Weinstein refers to as stationary
and the police in Maguindano province left
rebels. See Jeremy M. Weinstein, Inside
Rebellion : the Politics of Insurgent Violence,
44 police and seven civilians dead. The
Cambridge studies in comparative politics incident has derailed the peace process,
(Cambridge; New York: Cambridge University with parliamentary hearings on the
Press, 2007). passage of the agreement into legislation
267 Rizal Buendia, "The GRP-MILF Peace Talks: were repeatedly delayed and the proposed
Quo Vadis?," Southeast Asia Affairs (2004). legislation to codify the agreement into law
268 Quimpo, "Options in the Pursuit of a Just,
failed to pass. The draft law to create the
Comprehensive, and Stable Peace in the autonomous region of Mindanao failed to
Southern Philippines."; Schiavo-Campo and
pass in the Congress and Senate. The
Judd, "The Mindanao Conflict in the
Philippines: Roots, Costs, and Potential Peace
agreement sits, stalled, unimplemented.
Dividend."
269 Salvatore Schiavo-Campo and Mary Judd, Consequences of the Stalled
"The Mindanao Conflict in the Philippines: Implementation of the Agreement
Roots, Costs, and Potential Peace Dividend."
270 Graham Brown, "The Long and Winding

Road: The Peace Process in Mindanao,


Philippines," in IBIS Discussion Paper (Institute 272 Brown, "The Long and Winding Road: The
for British-Irish Studies: University College Peace Process in Mindanao, Philippines."
Dublin, 2011). 273 Ploughshares, "Philippines - Mindanao
271 "Memorandum of Agreement on Ancestral (1971 - first combat deaths),"
Domain," (2008); "The Long and Winding http://www.justice.gov/sites/default/files/eoir
Road: The Peace Process in Mindanao, /legacy/2014/02/25/Philippinesmm_Mindana
Philippines." o.pdf.
116
In 2017, the Philippines saw Marawi City,
in the southern Philippines, become The government of the Philippines should
subject to a takeover by extremist press Congress to debate legislation that
members of the Maute, a breakway faction will advance the long-stalled peace
of the MюLF and юSюS’s branch in the process is detrimental to the stability of
Philippines. The nation, despite a history the country. It not only holds the volatile
of separatist violence, had never southern region in a state of limbo but it
experienced a situation quite like what allows for further radicalization to foment,
occurred in the summer of 2017. The pushing potentially even more conflicts
Maute had established a coalition of and divisions in a region that has seen
rebels and foreign fights; they had pushed half a century of conflict. By delaying on
out residents in the thousands; hundreds granting autonomy for the Bangsamoro
were killed.274 President Duterte declared region, the Philippines is destined to see
martial law across Minandao in an effort higher levels of radicalization and
to control the situation. A siege ensued insecurity.
between the Maute and the Philippine
military; it ended after 5 months.

The seizure of Marawi is an anomaly in


Philippines history; separatist groups have
never successfully seized on a region as
swiftly as the Maute did. However, the fact
that the Maute grew in numbers over a
short period of time is not surprising.
Their rise is rooted in the failure of the
Philippines government to follow through
on the agreement with the MILF; the
failure of the Congress to pass legislation
codifying the agreement and allowing its
implementation to begin has created an
environment of economic inequality,
despair and disillusionment - an
environment rife for radicalization.

The MILF have notably distanced


themselves from the Maute, even setting
up coalitions to eradicate the Maute from
their territory.275 However, former MILF
members joined the breakaway Maute
because of frustration with the delay in
the peace process, particularly among the
younger generation who see limited
economic opportunities in the region
without the implementation of the peace
accord. The failure to advance the process
to grant autonomy to Mindanao fuels
insurgency in the region.

274 Joseph Hincks, What the siege of a


Philippine city reveals about юSюS’ deadly new
front in Asia,” Time, May 25, 2017.
275 Carmela Fonbuena, “MюLF, Maute Group

Battle for Legitimacy,” Rappler, 2017.


117
Bibliography

 Graham Brown, "The Long and Winding Road: The Peace Process in Mindanao,
Philippines," in IBIS Discussion Paper (Institute for British-Irish Studies: University
College Dublin, 2011).
 Peter Chalk, "Separatism and Southeast Asia: The Islamic Factor in Southern
Thailand, Mindanao, and Aceh," Studies in Conflict & Terrorism 24, no. 4 (2001).
 Carmela Fonbuena, “MюLF, Maute Group Battle for Legitimacy,” Rappler, 2017.
 Joseph Hincks, What the siege of a Philippine city reveals about юSюS’ deadly new
front in Asia,” Time, May 25, 2017.
 K. Che Man, Muslim separatism : the Moros of southern Philippines and the Malays of
southern Thailand, South-East Asian social science monographs (Singapore ; New
York: Oxford University Press, 1990)
 Thomas M. McKenna, "Governing Muslims in the Philippines," Harvard Asia Pacific
Review 9, no. 1 (2007).
 Ploughshares, "Philippines - Mindanao (1971 - first combat deaths),"
http://www.justice.gov/sites/default/files/eoir/legacy/2014/02/25/Philippinesmm


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Nathan Quimpo, "Options in the Pursuit of a Just, Comprehensive, and Stable Peace
in the Southern Philippines," Asian Survey 41, no. 2 (2001).
 Salvatore Schiavo-Campo and Mary Judd, "The Mindanao Conflict in the Philippines:
Roots, Costs, and Potential Peace Dividend.”
 Lambang Trijono and Frans de Djalong, The making of ethnic and religious conflicts in
Southeast Asia : cases and resolutions (Yogyakarta, Indonesia: CSPS Books, 2004).

118
119
The link between globalisation and
gender equality

By Ema Talam*

ABSTRACT

Globalisation is a phenomenon that is believed to exist for centuries and


even millennia. However, over the past few decades, this phenomenon
was more widespread than ever and its impacts were widely discussed
and analysed. This paper will focus on examining the link between
globalisation and gender equality. The paper is divided into three parts.
First part of this paper will look into different definitions of globalisation
– some of them being far broader and more comprehensive than the
others. Second part of the paper will examine the link between
globalisation and gender equality. This is done using KOF Globalisation
Index, measuring the extent of globalisation of a country, and Gender
Inequality Index, measuring the extent of gender inequalities present.
Data implies that the link exists between gender equality and
globalisation, as more globalised countries also appear to be more equal
in terms of gender equality. Third part of the papers discusses the
existing research evidences that explored the link between globalisation
and gender equality in details. It links gender with employment
opportunities, discrimination on the labour market, foreign direct
investments, education, etc. Finally, conclusions of the paper are
presented.

* Ema Talam holds Master’s degree in Economics from Faculty of Economics of University of
Ljubljana and чachelor’s degree in the field of management from School of Economics and
Business of University of Sarajevoг Ema’s Master’s thesis explored the link between ethnic
tensions, unemployment and income and was titled: The link between ethnic tensions and
unemployment in multiethnic countries: The case of Bosnia and Herzegovina. Ema has
received several awards for her accomplishments during the studies: Award for academic
achievements of Faculty of Economics of University of Ljubljana and Golden Badge of
University of Sarajevo. Ema attended large number of extra-curricular activities and
educational seminars during her studies, such as International Summer School 2014 of
University of Oslo attending the course Human rights, Graz International Summer School
Seggau 2013 and Ljubljana Summer School 2012.

120
Introduction explain different segments of globalisation.
Globalisation is a phenomenon that exists Part two looks at the KOF Globalisation
for centuries and even millennia. However, Index and Gender Inequality Index and
in certain segments, it has gained a examines whether the countries that are
significant momentum during the past few more globalised also appear to be more
decades. At the same time, gender equal in terms of gender equality.
inequalities exist and persist. Although it Acknowledging that this comparison is not
can be widely discussed that reasons for sufficient to claim with certainty that the
the existence of inequalities (i.e. difference link exists and to what extent, part three
in skills, or education) do not hold true gives a detailed overview of the existing
any more, we are still witnessing their research evidences that linked gender
existence. The negative impacts of gender equality, discrimination and globalisation,
inequalities on the society and its by introducing both theoretical
development are understood to the great phenomenon, their descriptions and
extent and often discussed. Lot of effort explanations and a spectre of empirical
has been done to ensure equality in all evidences.
aspects of life. Treaties were adopted and
ratified by many countries in the world to Globalisation
combat discrimination against women, There are many different definitions of the
among which the most important one is term “globalisation”. Some of them are
CEDAW – Convention on the Elimination broad and encompass many different
of All Forms of Discrimination against aspects of globalisation, whereas others
Women. Many international trade focus on just one. One of the most
agreements include different clauses in comprehensive definitions of globalisation
order to ensure equality and combat is the one provided by Urzua (2000):
discrimination. “Globalisation is a multi-dimensional

 The acceptance of a set of


process characterised by:
It is believed by many that globalisation
has produced a positive impact on gender economic rules for the entire world
equality. The proponents of this thinking designed to maximise profits and
believe that globalisation has led to productivity by universalising
increased employment opportunities markets and production, and to
which have, as a consequence, led to obtain the support of the state
improvement of position of women in their with a view to making the national
households or societies and to overall economy more productive and
women’s empowerment. However, not all
 technological
competitive;
believe that globalisation necessarily led to innovation and
only positive results. The concerns often organisational change centred on
mentioned are related to the types of the
 the expansion of a specific form of
flexibilisation and adaptability;
jobs offered as a result of an increased
globalisation, wages paid to the workers social organisation based on
(especially female workers) and finally, information as the main source of
stability of the employment in a globalised
 the reduction of the welfare state,
productivity and power;
world.
privatisation of social services,
This paper will explore the link between flexibilisation of labour relations
globalisation and gender equality in order
 de facto transfer to trans-national
and weaker trade unions;
to try to determine which of the
widespread views presented above is the organisations of the control of
correct one, if any, understanding the national economic policy
complexity of both phenomena. The paper instruments, such as monetary
is organised as follows. Part one describes policy, interest rates and fiscal
globalisation by presenting several policy;
definitions that differ in scope and that
121
 the dissemination of common though as a new phenomenon–it is
cultural values, but also the re- present for centuries and even milliennia.
emergence of nationalism, cultural O’Rourke and Williamson refute the fact
conflict and social movements.”276 that globalisation, according to their
definition, occurred gradually, but rather
On the other hand, Keohane and Nye that, from 1400 onwards, we can
(2000, pp. 105) define globalisation as: distinguish between three different eras of
“Globalism is a state of the world involving commodity exchange and specialisation.
networks of interdependence at First era, which took place before 18th
multicontinental distances. The linkages century, was marked by the trade of the
occur through flows and influences of non-competing goods and specialisation.
capital and goods, information and ideas, 19th century was marked by a fall in
and people and forces, as well as transportation costs and it was period
environmentally and biologically relevant during which commodity price
substances (such as acid rain or convergence occurred. Second era of
pathogens). Globalisation and globalisation started in the 19th century
deglobalisation refer to the increase or and it was marked by trade in some of the
decline of globalism.”277 Furthermore, they competing goods.280 Examining the world
emphasise that globalisation means the trade in the period 1870-1939,
reduction in distance. Furthermore, Estevadeordal, Frantz and Taylor (2002)
Keohane and Nye recognise different discuss the impacts on the world trade
forms of globalism such as: economic and list the following impacts as the
globalism, military globalism, relevant ones: (1) increases in the total
environmental globalism, and social and output levels, (2) payment frictions (gold
cultural globalism.278 standard), (3) transport frictions (shipping
costs) and (4) removal of protectionist
Some definitions take into account only measures.281
one aspect of globalisation. One of the Third era of globalisation is the era we are
most commonly examined aspects of still in. The current era of globalisation is
globalisation is globalisation in economic marked with the following set of
terms. O’Rourke and Williamson (зеее) characteristics: (1) liberalisation in terms
who define globalisation asп “the of international trade and finance, (2)
integration of international commodity increases in the volume of trade, foreign
markets.”279 Globalisation can be hardly direct investments (FDI) and other
financial flows, and (3) novel methods of
organisation of production and trade. 282

276Raul Urzua, ‘Globalisation’, UNESCO, Globalisation and gender equality


http://www.unesco.org/new/en/social-and- This section marks the beginning of the
human-sciences/themes/international- discussion of the link between
migration/glossary/globalisation/
277 Robert O. Keohane and Joseph S. Nye Jr.,
globalisation and gender equality and it
‘Globalizationп What’s New? What’s Not? (And
will comparatively present scores on KOF
so What?)’, Foreign Policy 118 (2000), 104-119,
http://www.asu.edu/courses/pos445/Keohan
e%20and%20Nye-- 280 Ibid.
Globalization%20What%27s%20New%3F%20% 281 Although they believe that the impact of the
20What%27s%20Not%3F.pdf removal of protectionist measures is lower than
278 Robert O. Keohane and Joseph S. Nye Jr., usually discussed.
‘Globalizationп What’s New? What’s Not? (And 282 Amelita King Dejardin, ‘Gender (in)equality,

so What?)’, жей-119. globalization and governance’, юnternational


279 Kevin H. O’Rourke and яeffrey G. Labour Office, Working Paper No. 92,
Williamson, ‘When did globalization begin’, http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/--
National Bureau of Economic Research, -dgreports/---
Working Paper 7632, integration/documents/publication/wcms_108
http://www.nber.org/papers/w7632.pdf 648.pdf
122
Globalization Index and Gender Inequality Finland 10 0.056
Index, in order to examine whether there
appears to be the link between the two. Slovenia 30 0.053
KOF Globalisation Index represents a
comprehensive measure of globalisation Croatia 32 0.141
and it examines the extent to which
countries are globalised. The Index takes Montenegro 48 0.156
into accountп “actual economic flows, Bosnia and
50 0.158
economic restriction, data on information Herzegovina
flows, data on personal contact and data Serbia 56 0.185
on cultural proximity”283.
Macedonia 74 0.160
Gender Inequality Index primarily
measures the costs of gender inequality to Tonga 181 0.659
human development and it takes into
Sudan 182 0.575
account the extent of inequality between
genders in three segments that have an Afganistan 184 0.667
impact on human development: (1)
reproductive health, (2) empowerment, Bhutan 185 0.477
and (3) economic status. Higher values of
Gender Inequality Index284 indicate Lao PDR 188 0.468
greater inequalities between genders. This, Source: KOF Globalisation Index, Gender
at the same time, means that there are Inequality Index286
larger costs to human development. 285 In Table 1, countries that are ranked as
the most globalised in the world as ranked
Table 1: KOF Globalisation Index ranks by KOF Globalisation Index for 2015, such
and Gender Inequality Index values for as: Ireland or the Netherlands, are listed.
selected countries in 2015 It also presents the countries that are
KOF Gender ranked as the least globalised as
Country Globalisation Inequality measured by KOF Globalisation Index
Index rank Index such as: Bhutan or Lao PDR. 287 If we
Ireland 1 0.127 compare Gender Inequality Index scores of
the countries at the top of the list (such
Netherlands 2 0.044 as: Ireland or the Netherlands) and the
bottom of the list (for countries such as:
Belgium 3 0.073 Bhutan or Lao PDR), we can observe large
discrepancies in Gender Inequality Index
Austria 4 0.078
values. Ireland and the Netherlands have
Singapore 5 0.068 Gender Inequality Index values of 0.127
and 0.044, respectively, which can be
Sweden 6 0.048 regarded as fairly low, while Bhutan and
Lao PDR have scores of 0.477 and 0468,
Denmark 7 0.041 respectively. From this, it appears that
Portugal 8 0.091 more globalised countries are more equal
countries in terms of gender equality.
Switzerland 9 0.040

286 http://globalization.kof.ethz.ch,
283 http://globalization.kof.ethz.ch http://hdr.undp.org/en/composite/GII
284 Gender Inequality Index values range 287 Coutries ranked as the least globalised as

between 0 and 1. measured by KOF Globalisation Index, but for


285 http://hdr.undp.org/en/content/gender- which Gender Inequality Index is not
inequality-index-gii measured, are not included in the Table 1.
123
Countries that were part of former greater availability of goods and services
Yugoslavia are also included for and many efficient, cost-saving solutions
comparison in the Table 1. Most implemented in the production process,
globalised country out of former Yugoslav globalisation can lead to lower prices of
countries is Slovenia which is also the goods and services being consumed. 289
most equal country in terms of gender
equality. On the other hand, the least Akhter and Ward (2015) empirically have
globalised country is Macedonia, but it shown that countries that have larger
does not have the largest gender foreign direct investments also do have a
inequality. Former Yugoslav countries higher share of education of women within
belong to the first half of the KOF the country. Another conclusion of their
Globalisation Index rank list. They appear study is that long-term foreign direct
to have slightly higher gender inequality investments can have a positive impact on
than countries ranked at the top of the education of women. Furthermore, their
list, but significantly lower gender research suggests that, compared to men,
inequalities than countries at the bottom larger foreign direct investments have a
of the list. positive impact on access of women to
service sector, the impact on access of
By examining the presented data, we can women to the agricultural sector is
observe that there might exist the actual negative. Another conclusion is that larger
link between gender equality/inequality foreign direct investments are related to
and globalisation, as more globalised lower number of women being part of
countries also appear to be more equal in informal economy. According to the same
terms of gender equality. Next section will study, higher commodity concentration 290,
explore existing research evidences of the often suggested as a very good measure
link between gender equality and for developing countries, is related to
globalisation. lower share of education for women,
labour force and empowerment. One of
Globalisation and gender equality: consequences of large commodity
Evidences concentration is a lack of employment
One of the often mentioned impacts of opportunities within the formal economic
globalisation is its influence on economic sectors and therefore, women are often
growth, that is primarily believed to be forced to find the employment within
caused by increases in efficiency and job informal sectors. Results also suggest
expansion. Although researchers have strong and positive impact of economic
found varying evidences of globalisation development on empowerment of women,
on growth, some studies do show that the in terms of access to secondary education,
overall impact of globalisation on growth access to resources or power to make
is positive. As measured, certain decisions.291
dimensions of globalisation in particular
have a positive impact on growth and
those are: (1) actual economic flows, (2)
restrictions imposed on trade and capital 289 Stephanie Seguino, ‘Gender, distribution
in developed countries, and (3) flows of and growth in developing countries’, The World
information.288 Furthermore, due to the Bank (2011), 22,
http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNA
L/TOPICS/EXTGENDER/0,,contentMDK:2305
5474~pagePK:210058~piPK:210062~theSitePK
288 Alex Dreher, ‘Does globalization affect :336868,00.html
growth? Evidence from a new index of 290 Small commodity concentration means that

globalization’, Thurgauer Wirtschaftsinstitut the number of products aimed at exporting is


an der Universitaet Konstanz: Research Paper low.
Series (2005), 11-12, http://www.twi- 291 Rifat Akhter and Kathryn B. Ward,
kreuzlingen.ch/uploads/tx_cal/media/TWI- ‘Globalization and gender equalityп A critical
RPS-006-Dreher-2005-04.pdf analysis of women’s empowerment in the
124
industries that experienced a trade shock
It was believed that discriminatory in comparison to competitive industries
practices will not persist in a globalised that experienced a trade shock.
world and that hence, that gender-based Furthermore, relative employment of
discrimination would be completely women increased more than in
alleviated. This would make the skills the competitive industries and the percentage
most important criteria for employment, of female managers increased as well in
increased importance of education and concentrated industries.
changes in the social norms. 292
Economists recognise two types of Using the data for Latin America and the
discrimination on the labour market: taste Caribbean, Seguino (2006) conducted a
and statistical discrimination. Refusing to detailed analysis of determinants of
hire an employee due to their affiliation to gender equity in well-being. The author
certain group(s) results with taste found out that the following factors have a
discrimination, while statistical positive effect: (1) the share of
discrimination is based on the prevailing manufacturing and services value-added
beliefs about the productivity of certain in GDP, (2) growth in government
demographic group(s). Becker (1957) consumption, and (3) share of women in
believed that competition on the product labour force.294
market would lead to alleviation of
discrimination. Discriminatory practices Many companies have made efforts of
are causing additional costs for the different kind to combat discrimination
employer them and due to the competitive within the companies. Green, Alhadeff,
pressures, employer will be forced to Akhmetova and Tracey (2017) have
discontinue the practice. Also, conducted a research among 20
international pressures further increase companies in Australia. The research
the costs of discrimination for indicates that, although there is a clear
discriminatory employer. Following the growth in commitment to gender diversity,
rationale of the theory, if everything else is there is a still long way to go to achieve
equal, smaller gender wage gap in the gender diversity goals. Data shows
competitive markets should be observed that, for example, in 2016, gender gap in
compared to concentrated markets. 293 Australia’s largest зее public companies
Black and Brainerd (2002) tested the was largely present and only 5 % of CEOs
impact of globalisation on gender equality in these companies were women. 295 It was
using the data on manufacturing argued that women are better off when
industries in the United States of America. employed within multinational rather than
The growth or increase in international domestic company.296 Proni and Proni
trade was taken as a sign of increased
competition. As hypothesised, the results
suggest that the gender wage gap was
294 Stephanie Seguino, ‘The great equalizer?
lowered more rapidly in concentrated
Globalization effects on gender equality in
Latin America and the Caribbean’, (зеел),
https://www.uvm.edu/~sseguino/pdf/equaliz
global economy’, Perceiving gender locally, er.pdf
globally, and intersectionally (2015), 141-173. 295 Anna Green, Michaela Alhadeff, Zhanar
292 Marcelo Giugale, ‘Globalizationп Has it Akhmetova and Claire Tracey, ‘What's working
helped or hurt women?’, Huffington Post, 15 to drive gender diversity in leadership’, The
February 2012, Boston Consulting Group (2017),
https://www.huffingtonpost.com/marcelo- http://image-src.bcg.com/Images/BCG-
giugale/globalization-women_b_1149516.html Whats-Working_tcm9-155374.pdf
293 Sandra Black and Elizabeth Brainerd, 296 Amelita King Dejardin, ‘Gender (in)equality,

‘Importing equality? The impact of globalization globalization and governance’, юnternational


on gender discrimination’, NBER Working Labour Office, Working Paper No. 92 (2009),
Paper Series (2002), 3-6, http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/--
http://www.nber.org/papers/w9110 -dgreports/---
125
showed, on the example of the three allocation of time and resources among
multinational companies operating in household members. It usually leads to
Brazil: Volkswagen, Unilever and Nestle, greater consumption of all household
that there is a commitment among members due to larger available resources
employers towards achieving gender and to greater education expenditures.
equality, however, that it still largely Furthermore, research evidences suggest
remains work in progress.297 By looking at that trade liberalisation may actually
the data between 1996 and 2010 that increase differences between genders in
covers companies that are part of economies that are mainly agricultural,
manufacturing sectors in Norway, Boler however, lowers gender differences in
(2015) show that gender wage gap exist in economies that are manufacturing. Once
the companies operating in this sector. again, it was noted that gender
However, the difference in exporters is inequalities are detrimental for the
lower than the overall difference when societies, as through their impact on
comparing all firms, 19 % compared to 24 human capital and investment in human
% respectively. However, if the set of capital, they can negatively impact
unobservable characteristics that do have economic growth in the long term. 300
an impact on whether a person is
employed within exporting company are Some evidences suggest that, besides
taken into account, then it appears that trade liberalisation, spread of information
higher wage gap298 is present within and communication technology has lead
exporting firms, than overall among all to increase in wages, increase in job
manufacturing companies. Perceived opportunities301 and better ties to the
commitment to work also affects gender market (i.e. enabling better access to
wage gap.299 information and reducing transaction
costs related to time and mobility). It has
Dejardin (2009) noted that increase in also caused political and social
paid employment of women in developing empowerment of women. Also, increased
countries can explain increase in demand access to information can have a great
for female workers being part of the influence in changing the attitudes and
exporting sector. Increased employment of behaviours. As a result of increased
women leads to the increase in bargaining demand for workers in export oriented
power of women within their households, and ICT sectors, women have progressed
impacts the distribution of resources, and from agricultural sector to manufacturing
ability to firmly defend their personal or service sectors and this progression
interests and those of their households occurred faster in developing compared to
and society. Another evidence suggests developed countries. Increases in
that trade liberalisation and greater employment of women in exports occurred
availability of jobs leading to larger through the increases of employment of
employment of women leads to different women in non-traditional and high-value
added exports. Some evidences suggest
that even access to mobile phones lead to
integration/documents/publication/wcms_108 the greater access of women to income
648.pdf
297 Thafssa Tamarindo da Rocha Weishaupt

Proni and Marcelo Weishaupt Proni, ‘Gender


discrimination in multinational corporations 300 Maurizio Bussolo, ‘Globalization (Trade) and
and the labour law in Brazil’, X Global Labour the wellbeing of (poor) women and children’,
University Conference The World Bank,
298 Only for college graduates. http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNA
299 Esther Boler, ‘How does globalisation affect L/TOPICS/EXTGENDER/0,,contentMDK:2305
the gender wage gap’, World Economic Forum, 5474~pagePK:210058~piPK:210062~theSitePK
https://www.weforum.org/agenda/2015/05/h :336868,00.html
ow-does-globalisation-affect-the-gender-wage- 301 However, advancements in technology also

gap/ led to job losses for women in manufacturing.


126
and to economic opportunities, and the countries that are ranked at the bottom of
evidence was even more significant for the list appear to be largely unequal.
female entrepreneurs.
Evidences suggest that globalisation in
Besides the perceived positive impacts of general had a positive impact on gender
globalisation on gender equality, some equality. Increased trade and economic
believe that impacts are not necessarily liberalisation have led to the new
only positive. Some of considered negative employment opportunities. Access to
effects that globalisation has caused are: income in general had a positive impact
(1) job security is questionable, (2) despite on women’s empowerment. However,
larger number of jobs available, women wage gaps still exist and persist,
are often employed at the bottom of global regardless of the fact that the gap in
supply chain302, and (3) women are often education and skills level between men
being employed within sectors that and women significantly diminished. Even
regarded as “female”.303 though exporting companies are often
believed to better in terms of gender
Conclusion equality and diversity of their workforce,
Globalisation is a complex phenomenon. It evidences suggest that after controlling for
assumes the existence of complex unobservable characteristics, gender wage
networks of interdependence within gap is actually larger.
numerous activities that take place in
everyday life. Globalisation, mostly It was believed that discrimination in
described through its economic aspect, labour market will fully disappear as
has gone through two eras before reaching discrimination in competitive market is
the era we are in now. First era was costly. However, we can also testify that
characterised by trade of non-competing gender based discrimination in the labour
goods and specialisation, whereas second market still represents a huge problem.
era was characterised by the beginning of Furthermore, larger foreign direct
trade in competing goods. Current era, investments are related to higher
third era, is characterised by liberalisation education levels and increased access of
of international trade and finance and women to service sector. Higher
larger volumes of international trade, commodity concentration is related to
finance and other financial flows. lower education of women, labour force
and lack of employment within formal
Globalisation has brought significant sectors.
changes in many areas of life. Evidences
suggest that globalisation has positive However, set of negative effects is also
impact on economic growth. It has lead to present. Although it is not arguable that
faster exchange of information. Many globalisation has led to the increase in
believe that it also has a positive impact employment opportunities, the problems
on gender equality. It appears to be true, of low wages (i.e. women being regarded
if we simply compare the rankings of KOF as a cheap labour force), job security and
Globalisation Index and Gender Inequality women often being employed at the
Index values. Countries ranked as the bottom of supply chain or so-called
most globalised appear to be more equal “female” sectors does remain. The paper
in terms of gender equality, while presents only a set of evidences on the
link between gender equality and
globalisation. Due to the complexity of
both phenomena, there are many ways in
302 Wages are assumed to be lower, jobs less
which this link can be examined.
secutre and working conditions poor within the
bottom of supply chain.
However, what is certain is that
303 Amelita King Dejardin, ‘Gender (in)equality, globalisation has, to some extent,
globalization and governance’ positively impacted gender equality.

127
BIBLIOGRAPHY

Data
1. KOF Globalisation Index http://globalization.kof.ethz.ch
2. Gender Inequality Index http://hdr.undp.org/en/composite/GII

Reserach papers and publications


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128
129
The right to public interest information
under regional human rights law: a
comparison of the European and the Inter-
American approach
By Marjolein Schaap-Rubio Imbers*

ABSTRACT

This article discusses the development of the right to public interest


information by the European Court of Human Rights and Inter-American
Court of Human Rights in two steps. Firstly, the article discusses the content
and scope of the right to public interest information and compares the
approach taken by the two Courts in recognizing this right to information.
Secondly, the research maps the extent to which the Courts in their
judgments reference to other (international) case lawб refer to each other’s
case law and maps the ways in which both Courts interacts with other
organs in their regional organization.

Marjolein Schaap-Rubio Imbers is a Ph.D. Candidate in international law, Erasmus School of


Law, Erasmus University Rotterdam. She holds a LL.M. in international and European Law
(2009) and a LL.B. in Dutch Law (2008). Marjolein worked as a Lecturer in international law
at the Erasmus School of Law (2009-2013). She was a visiting scholar at the Max Planck
institute for Comparative Public Law and International Law (2013, 2014). Her research and
teaching interests are general international law, human rights law, law of international
organizations, global administrative law and international humanitarian law.

130
Introduction rights instruments and the extent to
which the two Courts offer further or less
A society that is not well informed is not a protection. Additionally, this research
society that is truly free304 maps the extent to which there is
normative interaction between the ECtHR
Former International Court of Justice and the IACtHR in the development of the
judge Weeramantry wrote in 1995 a novel right to public interest information. The
article in which he reasoned that the right research will do so in two interrelated
to public interest information 305 is a new steps. Firstly, in Section one this research
human right.306 He saw sufficient evidence discusses the content and scope of the
to conclude that the right to information right to public interest information and
was not solely a privilege but it is a right how the right is interpreted and (further)
however that: developed by the IACtHR and the ECtHR.
…its concept and procedures have yet to Sections two and three explore the
be developed considerably but the first characteristics of the normative
broad brush strokes delineating the right interaction identified, who interacts with
have appeared on the canvas of human whom and to what extent?
rights.307
Right to public interest information
Although there is no explicit provision The right to public interest information is
recognizing a right to public interest discussed in light of its legal basis, the
information, the right by now has a firm holder of the right, the scope of the right
basis in international (human rights) law. and concomitant duties for authorities,
The Inter-American Court of Human the procedure to request information, and
Rights was one of the first to recognize a lastly, the limitations to the right. The
strong right to public interest different elements of the right to public
information.308 The European Court of interest information were identified on the
Human Rights has only recently basis of an extensive legal survey
recognized a general right to public conducted of the relevant human rights
interest information, albeit of more limited instruments. Accordingly, the following
nature. This research compares the paragraphs set out what the general
approaches of the two regional human standard is across the human rights
rights courts and identifies the general instruments and reference is made to the
standard across the international human case law of the ECtHR and the IACtHR to
illustrate their respective position.

Legal basis
304 IACHR, advisory opinion, OC-5/85, §70. Even though, there is no explicit legal
305 Note that Weeramantry referred to the term
provision stipulating a right to public
governmental information. In this research the interest information in international
term a right to public interest information will human rights treaties, the right is
be used instead of the more commonly used recognized by various treaty monitoring
state-held information or government-held bodies. The legal basis for the right lies in
information. The latter terms seem to indicate - the provision of freedom of expression,
falsely - that other informational rights do not which can be traced back to Article 19 of
deal with information held by authorities. the 1948 Universal Declaration of Human
306 G. Weeramanty (жоой) ‘Access to Rights.309 Both the American Convention
information: A New Human Right. The Right to on Human Rights (ACHR) and the
information’ Asian Yearbook of International European Convention on Human Rights
Law 99-125.
307 Idem 111.

308 IACtHR, Claude‐Reyes et al. v. Chile, 309 UN General Assembly, Universal Declaration
Judgment, of Human Rights, 10 December 1948, 217 A
Series C No. 151(September 19, 2006), §77. (III).
131
(ECHR) recognize a right to public interest the right to public interest information
information, although the scope of the into the freedom to seek information. As
right differs. The Inter-American Court of the following paragraphs will show, this
Human Rights has read a right to access difference in reasoning has implications
to public interest information into Article for the content and scope of the right to
13 ACHR (the right to seek, receive and public interest information.
impart information).310 Other organs of
the Organization of American States (OAS) Defining public interest information
have similarly recognized a right to public The right to public interest information
interest information for individuals. 311 The contains two components, (1) the
ECtHR has recognized a right to public information is in the possession of public
interest information312 in light of Article authorities and (2) the information is of
10 ECHR (the right to receive and impart public interest.
information), albeit only under particular
conditions.313 The Court reasons that the 1. Public authorities
right to public interest information forms Both the ECHR and the ACHR recognize a
part of the right to receive information.314 right to information held by public
Interestingly, the Inter-American Court of authorities. The concept of public
Human Rights, the Human Rights authorities is defined broadly. All
Committee and the African Commission branches of state (governmental,
on Human and Peoples’ Rights have read legislative and judicial bodies) constitute
public authorities. Thus, all authorities
exercising administrating powers similarly
constitute public authorities However,
310 IACtHR, Claude Reyes v Chile, Ser. C. No. several treaty regimes exclude legislative
151 (Sept 19, 2006), §77. and judicial authorities as duty bearers of
311 See e.g. Inter-American Juridical the right to access information. 315
Committee, Principles on the right to access to 2. Information of public interest
information, CJI/RES. 147 (LXXIII-O/08); The second component is that the
Inter-American Commission on Human Rights, information held by public authorities is
Annual Report of the Special Rapporteur for of public interest. The question is therefore
Freedom of Expression (2003) Inter-Am. CHR which information falls within the ambit of
OAS Doc. OEA/SER.G, CP/Doc. 3790/03, at the right to public interest information?
8. Both within the OAS316 and the COE 317 a
312 ECtHR, Magyar Helsinki Bizottság v
Hungary §156.
313 Article 10 (European) Convention for the
315 See e.g. with regard to the Council of
Protection of Human Rights and Fundamental
Europe, Committee of Ministers
Freedoms, ETS no 5, 213 UNTS 222, 4 Nov.
recommendation No. r (81) 19 On the Access to
1950 [ECHR].
314 For instance, in the explanatory note to the Information Held by Public Authorities, (25
November 1981), 340th Meeting of Ministers’
CoM Recommendation Rec (2002) the
Deputies, Appendix 1, principle 1; Committee
Committee also notes:
of Ministers Recommendation Rec (2002) 2 on
… that Article жо of the Universal
Access to Official Documents, at 2 (1).
Declaration on Human Rights and Article
316 Inter-American Commission on Human
19 of the International Covenant on Civil
Rights, Annual Report of the Special
and Political Rights appear to grant a wider
Rapporteur for Freedom of Expression, (Aug
right of access to official information than
29, 2003) at 8.
the European Convention on Human
317 In the Council of Europe the focus is on
Rights as these provisions also contain a
access to documents instead of access to
right seek information.
information: Committee of Ministers
Recommendation Rec (2002) 2 of the
Committee of Ministers (21 February 2002) at Recommendation Rec (2002) 2 on access to
10. official documents, definitions, provision 1.
132
broad definition is adopted which type of [T]he public interest relates to matters
information is included.318 For example, which affect the public to such an extent
the OAS Model Law on Access to that it may legitimately take an interest in
Information states that public interest them, which attract its attention or which
information includes ‘all information in concern it to a significant degree, (…)
possession of public authorities, including matters which are capable of giving rise to
all information which is held or recorded considerable controversy, which concern
in any format or medium’.319 an important social issue, or which
involve a problem that the public would
However what constitutes public interest have an interest in being informed
information is decided on a case-by-case about.322
basis. For instance, the IACtHR in the
Claude Reyes v Chile case concluded that The ECtHR determined, for instance, that
the information to which access was documents at the Ministry of the Interior
requested was of public interest as: regarding the functioning of the State
…it related to the foreign investment Security Services in Hungary in the 1960s
contract signed originally between the were considered to be of public interest. 323
State and two foreign companies and a Hence, it is difficult to deduce
Chilean company (which would receive the generalizable criteria for each situation to
investment), in order to develop a forestry determine the public interest nature of the
exploitation project that caused information, instead a contextual analysis
considerable public debate owing to its is required on a case-by-case basis.
potential environmental impact.320
Thus, the parties involved with the Who has a right to request for
contract and the subject of the contract information?
were considered relevant factors to This research identified two different
determine whether the information was of approaches as to who has a right to the
public interest. Furthermore, the reasons information. Firstly, the general standard
provided for asking the information, to identified across the human rights treaties
hold the authorities to account for a is that it is a right for everyone (i.e. no
proper exercise of power, was considered interest to be stated). Secondly, the
of relevance.321 The ECtHR held in Magyar deviating (or less progressive) standard is
Helsinki Bizottság v Hungary that what that the right to public interest
constitutes public interest information is information exist only for those involved
depended on the circumstances of the with the legitimate information gathering,
case, but that as a general guidance: such as social watchdogs. This is also

Article 1(2)(b)of the COE CETS 205 Convention 322 ECtHR, Magyar Helsinki Bizottság v
on access to official documents (2009, not yet Hungary, §162.
entered into force). 323 ECtHR, Kenedi v. Hungary, App No
318 See also Bishop, Access to information, at 31475/05 (May 26, 2009), §43; However in the
75. case of Sdruženi Jihočeské Matky vг Czech
319 General Assembly of the OAS, Model Inter- Republic (no. 19101/03, 2006, admissibility
American Law on Access to Public Information decision) the Court stated that there is a limit
AG/RES. 2607 (XL-O/10) (October 8, 2010); to public interest information and that article
Inter-American Commission on Human Rights, 10t:
Annual Report of the Special Rapporteur for … should not be interpreted as
Freedom of Expression, (Aug 29, 2003) at 8;
guaranteeing the absolute right to have
Inter-American Juridical Committee,
Principles on the right to access to information, access to all the technical details relating
CJI/RES. 147 (LXXIII-O/08), principle 1 & 3. to the construction of a power station as,
320 IACtHR, Claude Reyes v Chile, §73. … such data should not be of general
321 Ibid., §73. public interest.
133
where the approach of the ECtHR and the
IACtHR differs the most, the ECtHR Contrary to the IACtHR, in the case law of
adopts the latter approach and the the ECtHR, the reason for which
IACtHR the former. information is requested does matters.329
The European Court of Human Rights
The Inter-American Court of Human recognizes a right to public interest
Rights held in Claude Reyes v Chile that information under limited circumstances
authorities should provide access to only. In Magyar Helsinki Bizottság v
public interest information requested and Hungary, the Court confirmed its previous
that authorities may not make the access case law and held that it does matter who
conditional upon proof of interest or requests public interest information and
personal involvement.324 The rationale is for which purpose.330 The Court draws an
that information held by public analogy with the ECtHR’s long-established
authorities is information gathered or practice of according special protection to
produced for the people, and that, the press in a democratic society by
therefore, the information belongs to the restating that the gathering of information
people.325 The Court’s approach has been was an essential preparatory step in
reaffirmed widely by other OAS organs. 326 journalism and an inherent, protected
A similar approach is adopted by the part of press freedom. Accordingly, the
Human Rights Committee327 and the Court recognizes an implied right of
African Commission on Human and access to public interest information for
Peoples’ Rights.328 the media. It is in this light that the Court
examines whether the person seeking
access to the information in question does
324 IACtHR, Claude Reyes v Chile, §77; IACtHR, so with the intent to inform the public in
Case of Gomes Lund et al. v. Brazil (Guerrilha the capacity of a public “watchdog.” 331
do Araguaia), judgment (November 24, 2010) However, the question is who receives
Series C No. 219, §197. such special protection. Previously, the
325 IACtHR, Claude Reyes v Chile, §77.

326 E.g. principle 1 of the Inter-American

яuridical Committee’s Resolution CяюдRES.жйм Information in Africa (2007). Articles 2(a), 12(1)
(LXXIII-Oден) on “Principles on the Right of of the Model Law on Access to Information for
Africa (2011),
Access to юnformation”р зееж Annual Report of
http://www.achpr.org/instruments/access-
the Special Rapporteur for Freedom of information/.
Expression, §182003 report of the OAS Special 329 Note that even though the Court held in
Rapporteur on the Situation of Freedom of Claude Reyes v Chile that no interest needed to
Expression in Haiti, §28; Annual report of the be stated, the Court emphasized that the
Inter-American Commission on Human Rights, information was of public interest and that the
2003 report of the Inter-American Special information was needed to examine whether a
Rapporteur, (August, 29, 2003), at 7-8; 2003 state body acted appropriately. IACtHR, Claude
Report of OAS Special Rapporteur on the Reyes v Chile (2006), §73.
Situation of Freedom of Expression in Panama, 330 ECtHR, Magyar Helsinki Bizottság v
§128. Hungary, §156.
327 HRCee, Toktakunov v Kyrgyzstan, §6.3; 331 Idem, §168; ECtHR, Youth Initiative for
note that this phrase is exactly the same as the Human Rights v. Serbia - 48135/06 (25 June
phrase used in the Claude Reyes v Chile case 2013), §20; See for further case law confirming
of the IACtHR (compare §77) which preceded this line of reasoning of the ECHR, ECtHR [GC]
this case by several years. Animal Defenders International v. the United
328 African Commission on Human and Kingdom, (April 22, 2013), 48876/08, §103;
Peoples' Rights Declaration of Principles on ECtHR, (TSAZ) v. Hungary 37374/05 (merits)
Freedom of Expression in Africa, (2002),
(April 14, 2009) §36; ECtHR, Jersild v.
principle IV. The African Commission on
Human and Peoples’ Rights, Resolution no 167 Denmark, (September 23, 1994) Series A no.
Securing the Effective Realization of Access to 298.
134
Court had established that NGOs as social maximum disclosure.338 The Inter-
watchdogs should be offered such American Court of Human Rights held in
protection.332 Similarly, the Court Claude Reyes v Chile that the right of the
recognized the crucial role of academic individual to seek public interest
researchers and authors of literature and information entails that the state has a
accorded them special protection.333 The positive obligation to provide the
ECtHR does not rule out future categories; requested information unless legitimately
for instance, ‘bloggers and popular users restricted.339
of the social media’ might warrant similar
protection under Article 10 in the The approach by the European Court of
future.334 Human Rights is less straightforward. The
Court held there is a corollary positive
Interestingly, other organs of the Council obligation for authorities to disclose public
of Europe do embrace a wider substantive interest information requested, albeit only
right and recognize a right for everyone to under limited circumstances.340 In
request public interest information. 335 A ECtHR’s case law, it always has been a
1981 recommendation of the Committee of central question whether Article 10 can be
Ministers provided already that ‘[e]veryone interpreted as including a positive
within the jurisdiction of a member state obligation for authorities to disclose
shall have the right to obtain, on request, information upon request by individuals.
information held by the public Already in 1987, the Court established in
authorities.'336 The COE Convention on Leander v Sweden that ‘the right to
Access to Official Documents also freedom to receive information prohibits a
recognizes the right to seek public interest Government from restricting a person
information for everyone, with no interest
to be stated.337
338 OAS Declaration of Principles on Freedom
The obligation for authorities to of Expression (2000), principle 4; 2004 Joint
disclose information Declaration by the UN Special Rapporteur on
This research stipulates that there is a Freedom of opinion and Expression, OSCE
general standard to disclose public
Representative on Freedom of the Media and
interest information requested unless one
OAS Special Rapporteur on Freedom of
of the limitation grounds apply. In other
Expression, (December 6, 2004); Inter-
words, there is a presumption of
American Commission on Human Rights,
disclosure. Various OAS bodies have
Annual Report of the Special Rapporteur for
declared that the right to public interest
information is guided by the principle of Freedom of Expression, (Aug 29, 2003), at 8;
IACHR, Office of the Special Rapporteur for
Freedom of Expression, A Hemispheric Agenda
for the Defense of Freedom of Expression,
332 E.g. ECtHR, OVESSG v Austria,39534/07 OEA/Ser.L/v/II/CIDH/RELE/INF.4/09
(November 28, 2013). (February 25, 2009) §15.
333 ECtHR, Kenedi v. Hungary, 31475/05 (May 339 IACtHR, Claude Reyes v Chile, §77.

340 Note that this research does not address


26, 2009), §43.
334 ECtHR, Magyar Helsinki Bizottság v the approach of the European Court of Human
Hungary. Rights in the context of other informational
335 See e.g. COE Committee of Ministers rights. For example, the Court held that there
Recommendation R (81) 19 (1981). is a right to be informed for those affected by
336 Ibid.; Committee of Ministers, R(2002)2 on
decisions on environmental matters or by
Access to Official Document §III. environmental threats in the context of in the
337 Article 2(1) & 4 of the Council of Europe
context of Article 8 (right to family life) and
Convention on Access to Official Documents,
Article 2 (right to life). See, e.g. ECtHR, Di
CETS No.205 (not yet entered into force);
Explanatory report to the COE Convention on Sarno and others v Italy, 30765/08 (January
access to official documents, §17-19. 10, 2012).
135
from receiving information that others criterion implies that authorities cannot
wish or may be willing to impart to be expected to have to actively collect the
him.’341 Thus – in principle – Article 10 information requested. Thus, the positive
cannot be interpreted as imposing positive obligation for authorities only embraces a
obligations on authorities to disclose duty to disclose public interest
information upon request.342 Even though information sought by social watchdogs
the Court still adheres to these ‘classic and alike for the purpose to contribute to
principles,’343 it has advanced by the public debate which is ready and
identifying two situations in which there is available. Note though that other COE
a right of access to information coupled organs have embraced a wider positive
with a positive obligation to disclose the obligation for authorities, including a
information. First, authorities are required presumption of disclosure.347
to disclose information when imposed to
do so by a judicial order which has gained Procedure to request information
legal force.344 Second, authorities have a Each of the treaty regimes prescribe that
duty to disclose where the access to authorities should have procedures in
information is instrumental for the place for the individuals to seek
individual’s exercise of his or her right to information, but leave it up to the member
freedom of expression, in particular, the states to arrange it. The requirements for
right to receive and impart information. 345 a procedure to request information seem
The Court established four threshold to be rather similar across the various
criteria to determine when this is the case: treaty regimes; they ought to be low-cost,
(i) the information is of public interest, (ii) simple, fast procedures.348 What
the information is requested with the idea constitutes low-cost, simple and or fast
to contribute to public debate, (iii) the procedures seems to be decided on a case-
applicant should be a social watchdog or by-case basis per treaty regime.349
alike, and lastly, (iv) the information needs
to be ready and available to public
authorities.346 The first three criteria have 347 Council of Europe, Committee of Ministers
already been discussed; the latter
recommendation No. R (81) 19 (1981),
Appendix 1; COE Convention on Access to
Official Documents, preamble (not yet entered
341 ECtHR, Leander v Sweden, §74. In Magyar into force, 2009).
Helsinki Bizottság v Hungary the Court 348 2006 Joint Declaration by the UN Special

recently confirmed that this view is still Rapporteur on Freedom of opinion and
authoritative for the Court in interpreting the Expression, OSCE Representative on Freedom
right to public interest information as of the Media and OAS Special Rapporteur on
established under article 10 ECHR, §156. Freedom of Expression; Report of the OAS
342 ECtHR, Leander v Sweden §74; Guerra and
Special Rapporteur for Freedom of Expression,
others v Italy, §53. Inter-American Commission on Human Rights
343 ECtHR, Magyar Helsinki Bizottság v 2009, chapter IV, The Right of Access to
Hungary, §156. Information, §26-28; Inter-American Juridical
344 See Youth initiative for Human Rights v
Committee, Principles on the right to access to
Serbia where the ECtHR concluded that the information; article 5 COE Convention on
Serbian intelligence agency’s ‘obstinate Access to Official Documents.
reluctance’ to comply with the order of the 349 See e.g. principle 5, Principles on the Right

Serbian Information Commissioner to disclose to Access to Information, Inter-American


the information’ constituted a violation of Juridical Committee; HRCee, GC 34, §19 & 34;
article 10 ECHR; see also TSAZ v Hungary (§ COE Committee of Ministers, Recommendation
35). Rec (2002) 2, principle VIII; Inter-American
Juridical Committee, Principles on the right to
345 ECtHR, Magyar Helsinki Bizottság v
access to information, principle 5; COE,
Hungary §156. Committee of Ministers Recommendation R
346 Idem, §156.
(81) 19, Appendix 1, principle VI; article 5(4)
136
be of a certain quality.355 One of the
Limitations to the right quality criteria is that law should define
The principle of maximum disclosure the conditions under which information
applies to the right to public interest may be withheld and as such define the
information, which implies that access to discretion of authorities.356 For instance,
the information is presumed, and that any unfettered discretion for authorities to
limitation to this right – whether refusing determine what to do with public interest
access in full or partly – needs to be information and the requests to access
justified in accordance with the this information results often into a
Convention rights. In general, limitations violation of the principle of legality. The
are to be interpreted restrictively350 and a criterion of legality is mainly intended to
limitation imposed may not render a right prevent an arbitrary withholding of
illusory.351 Despite the small differences in information.357
phrasing, both the ACHR and the ECHR
require that a three-part test should be Secondly, the restriction should pursue a
fulfilled to restrict the right to public legitimate aim or purpose. When
interest information legitimately.352 The comparing the legitimate aims recognized,
three-part, generally speaking, is defined both the ACHR and the ECHR list as
as the tests of legality, legitimacy, and grounds for limitations the protection of
necessity.353 the rights or reputation of others, national
security or public order and public health
The first criterion that any restriction or morals.358 The ECHR also list other
needs to be in accordance with the law grounds for limiting access to the
has been interpreted relatively similarly by information.359 Thirdly, the restriction
both treaty regimes.354 In general, the should be necessary (in a democratic
legality criterion demands more than society). The treaty monitoring bodies do
merely a legal basis for the limitation in a not always distinguish clearly between the
domestic law and instead the law should requirement of the necessity of the
restriction imposed and the question
whether the chosen restriction is
proportional in achieving the legitimate
aim. First, the necessity principle will be

COE Convention on Access to Official


Documents (2009).
350 See e.g. IACtHR, Claude Reyes v Chile, §85- 355 See e.g. in regard to the positon of the
87. ECtHR, Sunday Times v UK (1979-1980) 2
351 See e.g. HRCee GC 34, §21. African EHRR 245, §49 and ECtHR, Hasan v Bulgaria
Commission for Human Rights, Media Rights (2000) 24 EHRR 55.
356 In this context, the ECtHR for instance
Agenda and others v Nigeria (2000) AHRLR 200
(Oct 1998), §70. stipulates a requirement of foreseeability. See
352 See e.g. HRCee GC 34, §22; ECtHR, Kenedi e.g. ECtHR, Kenedi v Hungary, 44.
357 The ECtHR in Kenedi v Hungary, came to
v Hungary, §43.
353 Article 10 (2) ECHR; Article 13 (2) IACHR; the conclusion that the government’s refusal to
article 19(3) ICCPR; article 9 ACHR, African comply with a domestic court ruling to disclose
Commission, Resolution on the Adoption of the information resulted into a defiance of
Declaration of Principles on Freedom of domestic law and arbitrary exercise of power,
Expression in Africa, ACHPR/Res. 62 (XXXII) (§ 44-45). See also IACtHR, Claude‐Reyes v
(Oct. 2002), principle II. Chile, §89.
354 ECtHR, Delfi AS v. Estonia [GC], no. 358 Article 13 ACHR; Article 10 ECHR.
359 ECHR 10(2) includes further territorial
64569/09, ECHR 2015; IACtHR, The Word
integrity, prevention of disclosure of
“Laws” in цrticle ие of the цmerican Convention
information received in confidentiality,
on Human Rights. Advisory Opinion, OC-6/86 maintaining the authority and impartiality of
of May 9, 1986. Series A No. 6, §26-29. the judiciary.
137
discussed, thereafter, the principle of information.363 For example, the Inter-
proportionality. Despite the different American Court of Human Rights
terminology used by the two Courts, the considered it to be even more pertinent to
meaning of the requirement of necessity is properly define the discretionary power of
fairly similar. For instance, the ECtHR authorities to classify information when
requires a ‘pressing social need,'360 and information is withheld for national
the Inter-American Court of Human security reasons in order to prevent an
Rights a ‘compelling public interest 361 to arbitrary refusal of access to
justify a refusal to disclose the information.364 Similarly, the Inter-
information. In the case law, it often ends American Juridical Committee imposes a
up in a balancing act of competing high standard for limiting the right to
interests, where the public interest in access public interest information, to only
disclosing information are balanced those situations of ‘real and imminent
against the state interest protected by the danger that threatens national security in
restriction.362 The parameters for such democratic society.’365
balancing act are decided in a case-by- The proportionality principle implies that
case analysis by the Courts. As such, authorities should choose the least
there is certain discretion or room for restrictive means to achieve the legitimate
maneuver for the administrative aim. Note, that there is not one uniform
authorities to determine what constitute a methodology used across the treaty
proper balancing of the interests. This regimes to assess the proportionality of a
research identified that in the context of given interference.366 The need to choose
limitations for national security reasons, the least restrictive means implies in this
treaty monitoring bodies have been more context that when the legitimate aim can
explicit in defining the extent to which be achieved by partial disclosure,
authorities have administrative discretion. authorities are obliged to do so. 367 When
These limitations seem to be subject to a limiting access to information, files may
more strict scrutiny by the treaty only be classified for a particular period of
monitoring bodies than other limitations time, the law describing the limitations
to the right to public interest should address who has the power to
classify information and for which period
the documents will be withheld from the
public.368
360 ECtHR Delfi AS v. Estonia [GC], no.
64569/09, ECHR 2015 §131. The ECtHR’s
approach to the principle of proportionality is 363 Claude Reyes v Chile, §58; see also IACHR,
closely connected to the margin of appreciation
Annual Report of the Office of the Special
doctrine. See for a critical discussion of this
Rapporteur for Freedom of Expression.
approach e.g. M. Ambrus, ‘Comparative Law
Chapter III (The Right to Access to Public
Method in the Jurisprudence of the European
Information in the Americas). OEA/Ser.L/V/II.
Court of Human Rights in the Light of the Rule
Doc. 69 (Dec. 30, 2011), §343.
Of Law’ (зеео) з(и) Erasmus Law Review 353- 364 Claude Reyes v Chile, §98.
имжр E. Benvenisti ‘Margin of Appreciation, 365 Inter-American Juridical Committee,
consensus and universal standards (1999) 31
Principles on the Right to Access to
International law and politics 843.
Information, principle 4; Claude Reyes v Chile,
361 Inter-American Commission on Human
§98.
Rights, Report of the Special Rapporteur 366 See in general e.g. я Rivers ‘Proportionality
Marino ‘The юnter-American Legal Framework and variable intensity of review (2006) 65
regarding the Right to Access to Information, Cambridge Law Journal 174 at 195-206.
OEA/Ser.L/V/II. CIDH/RELE/INF. 9/12 (Mar 367 Idem, §45-47; see also article 5(6) COE

ch 7, 2011) §53. Convention on Access to Official Documents.


362 See e.g. IACtHR, Claude Reyes v. Chile, 88- 368 Joint Declaration (2004) by the UN Special

90; HRCee, Rafael Rodriquez Castañeda v. Rapporteur on Freedom of opinion and


Mexico §7.5-7.7. Expression, OSCE Representative on Freedom
138
The pivotal case of the Inter-American
As a separate requirement, any refusal to Court of Human Rights was the 2006
disclose information, whether it concerns Claude Reyes v Chile case in which the
a denial to a partial or to a full disclosure, Court for the first time recognized a right
needs to be provided in writing. to public interest information. The Court,
Authorities ought to provide the reasons firstly, interpreted article 13 ACHR to
underlying the refusal.369 Furthermore, contain a right to public interest
whenever the information is refused or information, and thereafter, it discussed
partly refused, applicants should have a the extent to which there is the regional
possibility to appeal the decision and be and international consensus that there
informed about this option.370 should be such a right.371 The IACtHR
referred to the consensus within the OAS,
Conclusions which is evidenced by the OAS General
The right to public interest information Assembly resolutions on the subject
has a firm basis both within the American matter, article 4 of the Inter-American
human rights regime and within the Democratic Charter, and the Nueva Leon
European human rights regime. This Declaration. Thereafter, the Court listed
section highlighted the content and scope the relevant international provisions on
of the right to public interest information access to information as stipulated in the
and the approach adopted by the UN Convention against Corruption, the
European Court of Human Rights and the RIO Declaration on Environment and
Inter-American Court of Human Rights. Development, the Aarhus Convention on
The following section address the possible Access to Information, Participation in the
normative interactions between the Decision-Making and Access to Justice
Courts. and the relevant work within the context
of the Council of Europe. 372 The Court
Treaty interpretation and references to seemed to refer to these international
foreign case law cases and instruments to further support
This section discusses the extent to which its interpretation of article 13 ACHR. Note,
the ECtHR and the IACtHR refer to, that the European Court of Human Rights
and/or rely on, international instruments - at the time of the judgment - held a(n
and case law of other treaty monitoring even) more limited position, the IACtHR
bodies in their interpretation of the right did not refer to the (deviating) case law of
to freedom of expression. the ECtHR.

The European Court of Human Rights in


the Magyar Helsinki Bizottság v. Hungary
extensively discussed its current position
of the Media and OAS Special Rapporteur on on a right to public interest information
Freedom of Expression. for individuals under article 10 ECHR.
369 See e.g. COE, Committee of Ministers
The Court referred to international case
recommendation No. r (81) 19, Appendix 1, law at two instances: at the listing of all
principle VII; 2009 Report of the OAS Special relevant international instruments and
Rapporteur for Freedom of Expression, §26; practices and in the merits phase. The list
Inter-American Juridical Committee, Principles of relevant materials included: the case
on the right to access to information, principle law of the Human Rights Committee, the
5; IACtHR, Claude Reyes v Chile, §55.
370 See e.g. COE Committee of Ministers

recommendation No. r (81) 19, Appendix 1, 371IACtHR, Claude Reyes v Chile, §77.
principle VIII; Inter-American Juridical 372 COE Parliamentary Assembly,
Committee, Principles on the right to access to Recommendation No. 582 (January 23, 1970);
information, principle 8; 2009 Report of the Committee of Ministers, Declaration on the
OAS Special Rapporteur for Freedom of Freedom of Expression and Information (April
Expression, §26. 29, 1982); Recommendation No. R (2002)2.
139
Claude Reyes v Chile case by the IACtHR, Concluding, the approach of the ECtHR
and the various non-binding documents and the IACtHR towards foreign case law
produced within the context of other is quite comparable in these two cases.
Council of Europe organs. Thereafter, the However, in general, the Inter-American
Court discussed the relevance of these Court of Human Rights appears to refer
instruments and case law within the more often to other instruments and case
merits phase, something that is rare in law in its judgements than the European
the context of the ECtHR. The Court Court of Human Rights.
explained the methodology used to Normative interaction within a human
interpret article 10 ECHR, it relied on rights organization
articles 31-33 of the Vienna Convention Normative interaction cannot only be
on the Law of Treaties (VCLT). 373 The detected by searching for explicit
Court extensively discussed its own case references to foreign cases or instruments
law on the matter, but also relevant in judgments. This research identified
developments within and outside the another form of normative interactions or
Council of Europe, including the travaux influence. Through the years and across
preparatoires of the ECHR, case law of the various documents from various
other human rights bodies; and organs of the Organization of American
conducted a comparative analysis of States and of the Council of Europe,
relevant domestic legislation. The Court, similar language can be found. For
relying on article 31(3)(c) of the VLCT, instance, even though the first case
examined whether there was an emerging (Claude Reyes v Chile) recognizing a right
consensus at the international level and at to public interest information was only in
the national level which should be taken 2006, in the various non-binding
into account when clarifying the scope of instruments of organs of the OAS, the
a Convention provision.374 In this context, right to public interest was already
the ECtHR referred to the Claude Reyes v acknowledged, stipulating a general right
Chile case of the IACtHR and the case law belonging to everyone guided by the
of the UN Human Rights Committee to principle of maximum disclosure. Further,
emphasize that they both recognized a on various occasions the OAS Special
right to public interest information. Rapporteur on the right to information
However, the HRCee case law was has adopted joint declarations with
considered to be particularly relevant as: Special Rapporteurs of other human
For the UN bodies, the right of public rights organizations, affirming the joint
watchdogs to have access to State-held position.377 Whereas the other organs of
information in order to discharge their the OAS further support and strengthen
obligations as public watchdogs, that is, the position of the IACtHR., with the
to impart information and ideas was a European Court of Human Rights it is a
corollary of the public’s right to receive bit more complicated. For instance, the
information on issues of public concern.375 Committee of Ministers of the Council of
This reasoning is similar to the ECtHR’s Europe adopted already in 1981 a
reasoning for according a right to limited recommendation stipulating a right to
public interest information. The Court access public interest information for
concluded that it was not ‘prevented’ from everyone.378
reading a right to access public interest
information into article 10 ECHR.376
377 2006 Joint Declaration by the UN Special
Rapporteur on Freedom of opinion and
Expression, OSCE Representative on Freedom
of the Media and OAS Special Rapporteur on
373 Magyar Helsinki Bizottság v. Hungary, §118. Freedom of Expression.
374 Magyar Helsinki Bizottság v. Hungary,§ 124. 378 Council of Europe, Committee of Ministers
375 §143. recommendation No. r (81) 19 On the Access to
376 Ibid, at 148. Information Held by Public Authorities,
140
popularis. As a result, NGOs and members
Consecutive recommendations affirmed of the general public are not in position to
this position and further defined the scope enforce those human rights obligations
and content of the right to public interest that are owed to the public. This does not
information.379 In these documents, per se imply that members of the general
references are made to other public do not have such right, rather that
developments, including the юACtHR’s it is difficult to enforce the right at the
case law on the matter. Similarly, the international level.
2009 COE Convention on Access to
Information (not yet in force)380 does Overall conclusions
acknowledge the right of everyone to This research has set out the content and
access public interest information and scope of the right to public interest
embraces the principle of maximum information as recognized by the Inter-
disclosure. In the explanatory report to American Court of Human Rights and the
the convention, explicit reference is made European Court of Human Rights.
to the Claude Reyes v Chile case as a Remarkably, although there are some
proof of a broader consensus that a right essential differences between the two
to public interest information exists.381 approaches, there is a large degree of
normative agreement of the elements of a
The discrepancy between other organs right to public interest information. When
and the ECtHR’s approach could be comparing the various judgments and
explained on the basis of the different non-binding documents from other organs
mandate and role that both organs have of the OAS and COE, the similarities in
within the organization. While a court is language and overlap between the norms
limited to deal with the cases brought to identified is striking. This demonstrates
them, within their competence and that the norms do not operate in a
jurisdiction, and other organs function at vacuum and that accordingly the context
more diplomatic level and are therefore is relevant for both the practitioner and
more able to make rather general the academic. First, the context matters to
statements beyond jurisdictional and determine the precise content and scope
substantive interpretation questions. of the right to information. For example,
Therefore, whenever one wants to map the what constitutes public interest
normative influence of certain regimes or information is determined on a case-by-
its case law, it is important to take the case basis. Similarly, the legality,
broader context into account. Strict necessity and legitimacy of limitations to
admissibility criteria might result into a the right to public interest information is
body of case law which gives a bit determined on a case-by-case basis, the
distorted picture. The ECtHR has, for legal norms only set the outer parameters.
example, a strict victim requirement, Second, whenever one studies normative
which includes a prohibition of actio interactions between courts or other
(quasi)judicial bodies a contextual
analysis is required to understand the
(November 25, 1981), 340th Meeting of position of a Court within its organization,
Ministers’ Deputies, Appendix ж. its interpretation methodology, and its
379 Committee of Ministers Recommendation approach towards external sources. For
Rec (2002) 2 on Access to Official Documents. example, one should keep in mind that a
380 Note that the COE Convention would be the lack of explicit references does not entail
first binding instrument in which the general per se that there was no form of
right to public interest information is interaction. Courts might have a different
stipulated, in comparison to the IACtHR style of drafting their judgments. Courts
interpretation of reading it into article 13 might have different motives for referring
ACHR. to case law of other courts depending on
381 Explanatory Report to the COE Convention the context of the case. They may rely on
on Access to Information, II. other case law to (further) legitimize their
141
interpretation, while in other situations,
preference could be given to maintaining a
clear line of jurisprudence within a Court
and therefore paying less (explicit)
attention to external sources. Without a
contextual analysis, or contextual
sensitivity, wrong conclusions can easily
be drawn in these cases.

142
BIBLIOGRAPHY

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 ECtHR, Delfi AS v. Estonia [GC], no. 64569/09, ECHR 2015


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Treaty interpreting documents from other treaty monitoring bodies

 Human Rights Committee, General comment no. 34: Article 19, Freedoms of opinion

 HRCee, Rafael Rodriquez Castañeda v. Mexico Communication No. 2202/2012,


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(2000) AHRLR 200 (1998)

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 The African Commission on Human and Peoples’ Rights, Resolution n o 167 Securing
(2004)

 2004 Joint Declaration by the UN Special Rapporteur on Freedom of opinion and


the Effective Realization of Access to Information in Africa (2007)

Expression, OSCE Representative on Freedom of the Media and OAS Special


Rapporteur on Freedom of Expression, (December 6, 2004)

144
 2006 Joint Declaration by the UN Special Rapporteur on Freedom of opinion and
Expression, OSCE Representative on Freedom of the Media and OAS Special
Rapporteur on Freedom of Expression

145
146
147
Book Review: ‘Globalising Transitional
Justice: Contemporary Essays’ by Ruti G.
Teitel, Oxford University Press. 2014.

By Helga Molbæk-Steensig*

ABSTRACT

Ruti G. Teitel is an established authority within the field of transitional


justice. She coined the term in the late 1980s and in the year 2000 she
published her monograph ‘Transitional Justice’б which is still for many
scholars the entry point into the field, but also a starting point for
expanding the field beyond the strict adherence to the legal aspects of
ensuring the right to justice.

In зеж4б Teitel published her new bookб ‘Globalising Transitional


Justice’г In which she takes stake of the development of the field she
founded several decades earlierб and its expansionsг ‘Globalising
Transitional Justice’ is not a monograph but a collection of Teitel’s
essays published elsewhere between 2000 and 2014 along with an
introduction and an epilogue detailing the development of the field,
both academically, legally, and normatively. It is well worth a read,
but the reader should not expect a monograph in the style of her 2000
book, nor a textbook-type final coining of terminology and practical
uses of transitional justice. ‘Globalising Transitional Justice’ is a
portrait of a field in motion from a scholar that moves with it.

*Helga Molbæk-Steensig holds a BA in Balkan studies and an MA i International studies. Her


research focuses on transitional justice and constitutional law as well as human rights
protection in European states and on the regional level. On a daily basis she teaches human
rights law, constitutional law, legal philosophy and legal sociology at Copenhagen University
and is Balkan editor for the Magasine rØST, a danish-language publication on Eastern
European culture and society. She also works with the Democracy in Europe Organisation,
which provides youth- and adult education on EU-democracy."

148
Introduction reviewing the change the field has gone
Since Teitel published ‘Transitional through since the late 1980s and
яustice’ in зеее, the field – then described especially since the year 2000. It starts
as a legal field ripe for interactions and out with the essay with the same
interdisciplinary cooperation with other namesake as the book itself ‘Transitional
fields – has moved in an even more яustice Globalised’ from зеен, which
interdisciplinary direction, encompassing presents broad tendencies in the fields
aesthetic, economic, social and response to political events in the post
humanistic fields as well as the field of Cold-war period. Following this
law, and utilising ground-up theorising introductory essay, the book has four
and constructivist approaches along the parts, Overview, Roots, Narratives, and
way. This development appears to be the Conflict, Transition, and the Rule of Law.
starting point for Teitel’s new зежй
’Globalising Transitional яustice’. The new Overview
volume takes stake of the current “One cannot help but be struck by the
academic, political and practical field of humanist breadth of the field, ranging from
Transitional Justice, and sets out to re- concerns in the fields of law and
coin the terminology once again: jurisprudence, to those in ethics and
economics, psychology, criminology, and
“Ifб beforeб the centrality of the transitional theologyг” 384
problem was the predecessor regime and
its excesses, and the related aim— The first part of the book has just one
constitution-style delimitation of state essay ‘Transitional яustice Globalized’. юn
power—now, the challenge of this essay, originally published in 2008,
contemporary transformation is that it Teitel reviews the political focus on the
engages directly nonstate actors at all academic field, and how it has changed
levels … In an increasing number of weak the questions the field asks, and the
and failed statesб … the overriding goal is results it hopes to achieve. It is a
the assuring of a modicum of security and historical account of the conflicts and
the rule of law that, even without other thus post-conflict efforts that took place
political consensus, one might say, has from the end of the Cold war until the late
become a route to contemporary 2000s.
legitimacyг”382
She notes that transitional justice was
In a rather refreshing manner, Teitel originally conceived to attempt to
asserts no negative judgement on the understand the post-communist
sprawling field that has moved far from transitions in the former Soviet Union in
her initial delimitation, but rather aims to the early 1990s, and that the theory
recalibrate, re-assess, and reset the gold further developed in the meeting with
standard for the academic introduction to other kinds of transition. The end of the
the field of transitional justice. illiberal South American transitioning
regimes, of the South African apartheid
The new book is, however, not a regime, and the reckonings after the
monograph, nor the textbook style crimes against humanity in Rwanda and
introduction to Transitional justice that Sierra Leone, each represented different
transitional justice teachers and challenges. Finally, the development in
instructors have been yearning for.383 It is local transitional justice efforts and hybrid
rather a compilation of Teitel’s previously courts in the post Yugoslavian states is
published essays on Transitional justice – noted as contributing a significant
political focus on transitional justice and

382 Teitel 2014: xiv


383 Simic 2016: xiv 384 Teitel 2014: 3

149
meriting a change in the approach of the understandings academic and political, 388
academic field.385 and can as such be viewed as a
conceptual history analysis in category
The first essay repeats several of the with Koselleck, Schulz-Forberg, Kølvraa
points furthered in the introduction, and and others.
specifically notes how the initial debate of
impunity versus justice led to a demand Debating the use of criminal proceedings
for judicialisation in a positivist tradition. in transitional justice
This is countered by transitional justice юn ‘The Universal and the Particular in
institutions, such as the ICTY having to юnternational Criminal яustice’ from жооо,
some extent replaced strict positivism Teitel debates the apparent dichotomy
with a more teleological approach to between the individualisation of guilt and
transitional justice in which criminal the crimes against a collective – a group-
justice is not merely an end in itself, but identity of one sort or the other.
should also serve a broader goal of Individualisation of guilt is both the form
contributing to peace and prosperity in of international criminal justice and to a
the region.386 degree, the point of it. Teitel cites the
prosecutor for the ICTY on this
In short, the first part of the book “[a]bsolving nations of collective guilt
presents the strong connection there is in through the attribution of individual
transitional justice between political goals, responsibility is an essential means of
institutional solutions, and academic countering the misinformation and
thought and theorising. The initial essay indoctrination which breeds ethnic and
sets the tone for a book that updates the religious hatredг”389 The argument
definition of transitional justice, from a expressed initially at Nuremberg and
legal discipline to a cross-disciplinary perfected at the ICTY is that
endeavour and normative goal undertaken individualisation of guilt contributes to
by states, international institutions, peace by ending the need for group
courts and civil society as well as vengeance.
academia.387
In this article, Teitel challenges this
Roots notion, because she notes that it is
The second part of the book, Roots, has difficult to decipher individual motive as is
two articlesп ‘The Universal and the traditional in criminal proceedings in
Particular in International Criminal cases where there are crimes against
яustice’ published in жооо, and humanity. Because often, there is none.
’Transitional Justice: Post-War Legacies’ The acts are political and collective, not
published in 2006. individual.

This part of the book explores the “ […] the insistence on proof of individual
connection between international criminal motive can be misleading, as it obscures
law and transitional justice. ’Transitional the extent to which persecutory policy is a
Justice: Post-War Legacies’ returns to the social and above all political construct”г 390
famous Nuremberg trials and reviews how
the trials can be a starting point for With this rationale, the foundation for the
transitional justice studies. It has a focus problem and the cause of the crime, the
on how the trials have influenced current political narratives and collective
characterisations are not addressed. In

385 Ibid.: 4-5 388 Ibid.: xx


386 Ibid.: 5-6 389 Ibid.: 19
387 Ibid.: 7-8 390 Ibid.: 21

150
her 1999 article, it is yet unclear how this ‘narratives’ deal with the narratives on
insight can contribute to transitional transitional justice rather than the
justice efforts and the goal of peace or narratological efforts that are part of
justice. modern and contemporary transitional
justice storytelling and truth-telling.
юn the зеел, ’Transitional яusticeп Post-
War Legacies’, Teitel continues this Genealogy – the narrative of progression
discussion with a specific focus on the in transitional justice
Nuremberg trials. She touches upon the The 2003 article on the genealogy of
question of how to establish guilt for transitional justice policies suggests three
crimes committed by a modern main phases in the development of the
bureaucracy,391 and arrives at a hybrid field. The first phase developed in the
solution utilised by post war Germany and post-war periods after the First World War
evident in contemporary and the Second World War. This phase
recommendations on transitional justice: had a strong emphasis on individual
Individual criminal responsibility to avoid responsibility while the post-crime justice
group vengeance, conceived under the moved from the national to the
shadow of the Versaille failure after the international sphere.
First World War, and collective
responsibility of institutions. The second phase is described as
following the Cold War moment and it
The collective responsibility was delivered a broader view of transitional
established in post-war Germany as a de- justice, which included truth and
nazification of the bureaucracy that reconciliation as key terminology and
carried out the crimes of holocaust. This normative notions of forgiveness and
is mirrored in contemporary transitional storytelling as central goals. In a
justice as vetting and lustration genealogical sense, the second period
mechanisms as well as institutional suggested progression.
reform. Which in turn deals with the
dilemma between the need to remove "There is a complicated relationship among
elements from the civil service the cannot transitional justice, truth, and history. In
claim individual integrity, and the need for the discourse of transitional justice,
experience and continuity in the civil revisiting the past is understood as the
service. This is especially difficult when way to move forward. There is an implied
dealing with the end of an illiberal regime. notion of progressive history."392

Narratives The third phase described in this article is


The next part of the book consists of three the contemporary use of transitional
articles. The 'Human rights in Transition: justice to address conflicts that have not
Transitional Justice Genealogy' from yet had their end, nor, to some extend can
2003, the 'Bringing the Messiah through have an end. The use of humanitarian
law', originally a chapter in the 1999 book arguments for military interventions in
'From Gettysberg to Bosnia', and finally conflict zones or in the war of terror
the 'Transitional Justice as a Liberal suggests a break with the notion of
narrative, originally published in 2002. progressive history, and makes the
transitional goal of questioning state
In each their way the three articles deal action, a difficult one.393
with the concepts of time and
collective/individual in the field of
transitional justice. The chapter-header

392 Ibid. 61
391 Ibid.: 35 393 Ibid.: 64

151
“As a genealogical perspective illustrates, perhaps because of its timing in the midst
interest in the pursuit of justice does not of the conflict rather than afterwards –
necessarily wane with the passage of time. sitting on a large amount of
This may be because transitional justice documentation on the crimes committed
relates to exceptional political conditions, during the wars in the Balkans in the
where the state itself is implicated in 1990s, and as such could act as a catalyst
wrongdoing and the pursuit of justice for truth-telling and establishment of new
necessarily awaits a change in regime" 394 narratives. She also notes, however, that
the collective nature of the narrative and
In the midst of war – a narrative of timing the individual nature of criminal justice
in transitional justice created tension and kept the ICTY from
The second article, the 1999 'Bringing the fulfilling this role wholeheartedly. 396
Messiah through law' also deals with the
timing of transitional justice. Specifically Positioning – a narrative of transitional
in questions why the ICTY was created in justice as political endeavours
1993, in the midst of the war, rather than The third article in the ‘Narratives’ part of
at the end of the war. On the one hand, the book, the ‘Transitional яustice as a
the timing of the court suggests the new Liberal narrative’ from зеез explores the
normative goal of transitional justice symbolic significance of post-conflict trials
efforts – to further peace. On the other and asks whether transitional justice is
hand, the creation of the court can be always about furthering a new liberal
viewed as a small effort by an order.
international community that failed to
further peace politically or militarily. In an “The point of departure in the transitional-
almost pre Second World War legal justice debate is the presumption that the
philosophy, the ICTY can be viewed as an move toward a more liberal, democratic
effort to create peace through law. political system implies a universal norm.
Instead, my remarks here propose an
“If the ICTY’s lack of political authority alternative way of thinking about the law
undermines its efforts to achieve and political transformation. In exploring
pacification through deterrence and to an array of experiences, I will describe a
accomplish reconciliation through the distinctive conception of justice in the
creation of historical narratives, perhaps context of political transformationг”397
the relationship of the ICTY to peace might
be conceptualized along different lines. Teitel notes that the act of individualising
Those who created the ICTY spoke guilt, as is a precursor for transitional
feelingly of the expectation that justice criminal trials, is an expression of
international criminal justice would a liberal understanding of society. The
establish a form of individual responsibility of the individual for crimes
accountability that would break “old cycles of the regime furthers an almost
of ethnic retribution” and thus advance existentialist understanding of personal
ethnic “reconciliationг” They propounded a responsibility despite collective pressures.
traditional account of liberal legalism, in Meanwhile, the extensive use of amnesty
which the punishment of the law would and forfeiture of punishment, suggest that
hold individuals responsible, so as to limit the criminal proceedings have a symbolic
and displace private vengeanceг”395 nature rather than a punitive nature.

In this essay, Teitel also touches upon the In periods of political upheaval, legal
development, that the ICTY ended up – rituals offer the leading alternative to the

394 ibid. 60 396 Ibid.: 85-86


395 Ibid.: 86 397 Ibid.: 96

152
violent responses of retribution and general note, they all concern the
vengeance. The transitional legal response conceptualisation of ‘transition’, ‘justice’
is deliberate, measured, restrained, and and ‘transitional justice’. Thus, the first
restraining, enabling gradual, controlled article deals with the use of transitional
change. As the questions of transitional justice in ongoing conflicts and the risk of
justice are worked through, the society endangering peacebuilding by engaging in
begins to perform the signs and rites of a adjudication in the midst of conflict. It
functioning liberal order.398 notes how humanitarian intervention and
transitional justice have common goals
In an almost Durkheimian way, Teitel and philosophical basis, but how they
argues that the criminal proceedings may also conflict in terms of timing.
against the individual has the purpose of
freeing the successor regime from the “цs the trend toward juridicization
criminal legacies of the earlier state. 399 continues apace, contemporary
While that is certainly not a liberal adjudications of international
method of transition, the end result can humanitarian rights violations serve as
be liberal change when the individual both a basis of, and a constraint upon,
trials are used to further collective humanitarian interventionг”401
narratives of change and reconciliation
across old divides. The second article conceptualises
transitional justice in relation to jus post
The main contribution of transitional justice bellum and notes that there is a need for
is to advance the construction of a both, because transitional justice has a
collective liberalizing narrative. Its uses are broader perspective than the restorative
to advance the transformative purpose of nature of jus post bellum. Specifically,
moving the international community, as contemporary conflicts take place in a
well as individual states, toward space where humanitarian intervention is
liberalizing political change. 400 an option, and this expands the need and
use for international justice, to before,
Conflict, Transition, and the Rule of law during and after conflict, and with a
The third and final part of the book is also broader pragmatic view towards peace
the lengthiest. It is comprised of five and human security.
articles. The first from 2еек, ‘The Law and
Politics of Contemporary Transitional “There is a new relationship between the
яustice’. Hereafter, ‘Rethinking яus Post three strands of the law of war. The
Bellum in an Age of Global Transitional justification for war, especially where
яustice’ from зежи. Third, ‘Transitional humanitarian justice considerations are
Rule of Law, chapter in Rethinking the prominent, sets the stage for higher
Rule of Law after Communism’ from зеек. expectations of humanitarianism, both in
Fourth, ‘The Alien Tort and the Global relation to how war is waged and in the
Rule of Law’ from зеек, and finally responsibilities of the victors post-
‘Transitional яustice and the conflict."402
Transformation of Constitutionalism’ from
2011. The third article continues the
conceptualising debate, by constructing
As is suggested by the title of the third transitional justice within the framework
part of the book, the themes of the articles of the rule of law. Essentially asking
span a broad range of topics, but on a whether transitional justice represents a
kind of extraordinary jurisprudence as

398 Ibid.: 104


399 Ibid.: 102 401 Ibid.: 134
400 Ibid.: 105 402 Ibid.: 146

153
opposed to the rule of law or whether it on the state. If the classic understanding of
has the potential of closing a temporal the role of the state is to protect its citizens,
legality gap in much the same way via its central control of use of force, then
international law and humanitarian law these contemporary instances point to
attempts to close a legality gap in relation instances where there has been a loss of
to space and conflict. It also repeats large such control.405
parts of 2002-article on liberal narratives
of transitional justice, specifically the Epilogue – a conclusion
point about the constructing and The book ends with a short epilogue,
symbolic-ritualistic role of law in concluding on the previous essays, which
transition.403 for the most part ask more questions than
The fourth article compares the they answer. Therefore, the conclusion
constructs of transitional justice and also reflects what kind of supra-questions
international universality with the the decade and a half worth of essays
American statute that allows aliens to asked:
bring tort claims to U.S. courts. The
limitations of this statute to cases with a “The questions that lie at the heart of the
significant connection to the U.S. is also global paradigm, such as of what the
debated in relation to the transitional relationship ought to be of the local to the
justice nature of the statute.404 international, as the experiences of the last
decade reflect, cannot be answered in a
The final article, originally published as a categorical way. We currently lack and
chapter in the seminal work on urgently need to have a meaningful
comparative constitutional law by understanding of “complementarityб””406
Ginsburg and Dixon, deals with the
construction of transitional justice in The book ends on a note about the future.
relation to constitutionalisation. Considering how the development of the
Specifically, the essay continues the judicial as a potent international tool for
temporal discussion on the dichotomy democratisation and the introduction of
between the inherent impermanence of the rule of law, among other things
transitional justice measures, and the through the mechanisms of transitional
institutionalisation of the field, effectively justice, has politicised the judicial, which
making the measures permanent, on will create new challenges in the future.
occasion directly in the new post-conflict
constitutions or in the “The turn to international law and
constitutionalisation of international law. judicialization is often seen as anti-
The article also debates the unit of political, when in fact the international
analysis. What happens when transitional criminal tribunal’s statutes are themselves
mechanisms are made part of identity often justified in broader terms of political
construction, for example in the accession goals such as peace and security,
process for the Balkan states to the EU, especially so of tribunals convened during
which include transitional justice goals conflict with particular aims in mind. As
and measures? The article questions how such, the legitimacy of the international
transitional justice can be used in an judiciary will be implicitly relativizedг” 407
environment where the state is not the
centre of analysis. Since this book review has the benefit of
being three years into the future from
The very problem of justice is being when Teitel published the book in 2014,
reconceptualized, and it no longer centers

405 Ibid.: 202


403 Ibid.: 156-158 and 103-105 406 Ibid.: 210
404 Ibid.: 177 407 Ibid.: 210

154
we can conclude that she was certainly
right about the attempts to relativise the
judicial, both internationally, within
transitional justice and in established rule
of law states. One has to look no further
than Great Britain’s threats to leave the
European Convention on Human Rights,
Milorad Dodik’s proposed referenda on the
legitimacy of the Bosnia and
Herzegovinian Constitutional Court, or the
American President Donald Trumps
repeated fights with the judicial branch of
his government, to see the relativizing of
international, transitional and established
national judicial in action.

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Assunto Especial
Dossiê Especial Covid-19 – Volume II

O (Re)Desenho Institucional do Pacto Federativo Diante da Covid-19:


Arranjos Institucionais no Contexto da MP 926/2020
The Institutional (Re)Design of the Federative Pact in Front of Covid-19:
Institutional Arrangements in the Context of MP 926/2020

LAURA GABRIELLA MUNIZ DA SILVA1


Universidade Federal de Pernambuco – Faculdade de Direito do Recife, Brasil.

FLAVIANNE FERNANDA BITENCOURT NÓBREGA2


Universidade Federal de Pernambuco – Faculdade de Direito do Recife, Brasil.

ANA LAURA MACHADO RODRIGUES3


Universidade Federal de Pernambuco – Faculdade de Direito do Recife, Brasil.

BRUNO CÉSAR MACHADO TORRES GALINDO4


Universidade Federal de Pernambuco – Faculdade de Direito do Recife, Brasil.

RESUMO: A pandemia da Covid-19 desencadeou as mais diversas mudanças ao redor do mundo.


No Brasil, as disputas ocasionadas pela MP 926/2020 instaura um cenário propício para a alteração
do desenho institucional do federalismo, historicamente centralizado na União. Nesse sentido, este
artigo propõe pesquisar a mudança institucional real do federalismo brasileiro antes e durante a
pandemia. Para tanto, o referencial teórico do neoinstitucionalismo de North, Brinks e Levistky, que
concebem instituições como “regras do jogo”, foi utilizado, de modo original, a fim de se investigar
os arranjos institucionais formais e informais no (re)desenho do pacto federativo, com identificação
de seus jogadores e mecanismos de incentivo. O artigo contextualiza, ainda, a peculiaridade do de‑
safio institucional da Federação no Brasil, comparada à experiência estadunidense, para evidenciar
a singularidade do novo desenho institucional descentralizado na pandemia. Ao final, identifica o
aprendizado para os Estados-membros e lança questionamentos sobre a sobrevivência dessa regra
do jogo no pós-pandemia.

1 Orcid: <http://orcid.org/0000-0003-2954-9067>.
2 Orcid: <http://orcid.org/0000-0002-2349-0167>.
3 Orcid: <http://orcid.org/0000-0002-1143-4213>.
4 Orcid: <http://orcid.org/0000-0002-8787-4119>.

RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020


66 R�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL
PALAVRAS-CHAVE: Neoinstitucionalismo; pandemia; federalismo; arranjos institucionais.

ABSTRACT: The Covid-19 pandemic triggered the most diverse changes around the world. In Brazil, the
disputes caused by MP 926/2020 establish a favorable scenario for the alteration of the institutional
design of federalism, historically centralized in the Union. In this sense, this article proposes to research
the real institutional change of brazilian federalism before and during the pandemic. Therefore, the
theoretical framework of neoinstitutionalism of North, Brinks and Levitsky, that conceive institutions
as “rules of the game”, was used in an original way, in order to investigate the formal institutional
arrangements and informal (re)design of the federative pact, with identification of its players and
incentive mechanisms. The article also contextualizes the peculiarity of the institutional challenge of
the federation in Brazil, compared to the american experience, to highlight the uniqueness of the new
decentralized institutional design in the pandemic. In the end, it identifies the learning for member
states and raises questions about the survival of this post-pandemic game rule.

KEYWORDS: Neoinstitucionalism; pandemic; federalism; institucional arrangements.

SUMÁRIO: Introdução; 1 Olhar neoinstitucional sobre o transplante jurídico do federalismo norte‑


-americano – Peculiaridade do desafio institucional brasileiro na pandemia; 2 Desenho institucional
real do federalismo no Brasil antes da pandemia – Descentralização formal fraca e centralização
fática forte; 3 A demanda por um (re)desenho do federalismo brasileiro com a MP 926: identificando
as novas regras do jogo na pandemia; 4 As regras do jogo no atual contexto de instabilidade: análise
dos jogadores na formação do real desenho institucional; Conclusão; Referências.

INTRODUÇÃO
O contexto atual de pandemia reiterou desastres e mudanças. Pos-
suindo uma saliente taxa de transmissibilidade, o novo coronavírus é hoje
considerado uma ameaça mundial. Os países ao redor do globo enfrentam
crises de saúde pública; o Brasil, no entanto, apresenta turbulências também
em outros sistemas, entre eles o sistema político. Ainda que os conflitos po-
líticos sejam inúmeros, é possível ressaltar as agitações em torno do pacto
federativo brasileiro.
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
– OECD (2020, p. 9-10) afirma que a situação de emergência levou go-
vernos subnacionais5 do mundo todo a realizarem medidas de contenção,
muitas vezes além das suas responsabilidades. Diante da pandemia e da
inércia problemática da União, os Estados-membros da Federação brasileira
passaram a demandar por uma legítima concretização da autonomia fede-

5 Aqui no Brasil o termo “subnational governments” se refere aos governos estaduais, municipais e do Distrito
Federal que integram o pacto federativo.

RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020


RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL.................................................................................................................................. 67
rativa, clamando pela efetiva concretização dos seus respectivos poderes
constitucionais.
Esse cenário destoa completamente do histórico político brasileiro:
desde sua criação, a República Federativa do Brasil, quando analisada de
modo pragmático, exibe um ímpeto de centralização política. O contexto
de pandemia torna-se, assim, pano de fundo para uma mudança no funcio-
namento das instituições políticas brasileiras, sobretudo com o advento da
Medida Provisória nº 926/2020.
Neste contexto, o referencial teórico do neoinstitucionalismo é uti-
lizado, de modo original, para a compreensão da mudança institucional
do federalismo no Brasil. Com base nesse paradigma neoinstitucional de
North e Weingast (2006, p. 21), instituições são usadas como sinônimo de
“regras do jogo”, resultantes da interação entre as regras formais e informais.
Já os indivíduos (atores políticos, jurídicos, sociais e econômicos indivi-
dualmente considerados) e as organizações (conjunto desses indivíduos,
que possuem uma mistura de objetivos comuns e individuais e tomam deci-
sões) são os jogadores dessa “regra do jogo”.
Tais disposições surgem com o neoinstitucionalismo econômico, a
partir dos anos 80. Caracterizada pela sua interdisciplinaridade, a análi-
se neoinstitucional inova na compreensão do desenho institucional real,
incorporando a informalidade à concepção de instituição. É uma análise
reflexiva, em que os jogadores (indivíduos e organizações) influenciam e
modificam as “regras do jogo” e também têm suas preferências por elas mo-
dificadas (Immergut, 1998). Essa abordagem foi reforçada nos anos 90, com
prêmio Nobel atribuído a Ronald Coase, em 1991, e, depois, em 1993, com
a abordagem histórica e cultural do economista Douglass North, que de-
senvolveu estudos na área. Este artigo incorpora também o referencial con-
temporâneo da abordagem neoinstitucional de G. Helmke, Daniel Brinks e
Steven Levitsky. Desse modo, será possível investigar o desenho institucio-
nal real do federalismo brasileiro, e não o meramente aparente, avançando
para além dos aspectos formais.
Embora alguns artigos jurídicos sob o olhar da dinâmica federativa na
pandemia já estejam contribuindo para o avanço dessa discussão, esses, em
sua maioria, focam nas instituições formais (regras formais) que atuam nesse
processo. O cerne de publicações científicas, como a de Benvindo (2020)
e a de Archegas e Kreuz (2020), é o Poder Executivo, mais precisamente o
atual Presidente da República, desconsiderando as redes de incentivos e os
RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020
68 R�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL
constrangimentos que o envolvem. Há, ainda, estudos que situam o deba-
te a nível estadual, como o artigo desenvolvido por Shvetsova, VanDusky-
-Allen e Zhirnov (2020), no qual reforçam a importância das iniciativas dos
Estados-membros como responsáveis de o Brasil não ter se saído ainda pior
no combate à pandemia.
O presente artigo, de modo diverso, avança no estado da arte sobre o
tema e investiga a mudança institucional do federalismo brasileiro, a partir
da MP 926/2020, editada pelo Presidente. Desenvolve análise da dinâmica
de interação das regras do jogo (formal e informal) e de seus jogadores (Pre-
sidente da República, empresários, STF, partidos políticos, OMS, Comuni-
dade Internacional, governadores, entre outros) no contexto da pandemia.
Identifica e contextualiza, também, a peculiaridade do desafio institucional
da Federação no Brasil, comparada à experiência estadunidense. Em se-
guida, analisa o arranjo institucional antes e durante a pandemia. Ao final,
lança questionamentos sobre o futuro do novo desenho institucional do fe-
deralismo descentralizado.

1 OLHAR NEOINSTITUCIONAL SOBRE O TRANSPLANTE JURÍDICO DO FEDERALISMO NORTE-


-AMERICANO – PECULIARIDADE DO DESAFIO INSTITUCIONAL BRASILEIRO NA PANDEMIA
A proclamação da independência dos Estados Unidos da América,
em 1776, inaugurou uma disposição vanguardista a respeito do modelo
organizacional do Estado – a Federação (Jay; Hamilton; Madison, 1788).
O federalismo norte-americano, assim, se desenvolveu, na origem, como
primeiro modelo estatal, em que se institucionalizou a “regra do jogo” da
descentralização do poder decisório. À época, era evidente que essa orga-
nização estatal “cuidava-se de algo substancialmente diferente do que exis-
tia até então” (Sarlet; Marinoni; Mitidiero, 2018, p. 930, grifo dos autores).
Atualmente, quase vinte países exibem, pelo menos formalmente, a forma
federativa de organização do Estado nas suas constituições. A inovação nor-
te-americana se disseminou e cada nova nação cuidou de acrescentar suas
peculiaridades às suas respectivas federações. Desse modo, é consensual a
ideia de que não existe mais um único modelo de Estado Federal (Mendes;
Coelho; Branco, 2009, p. 848).
Afirmar a pluralidade de realidades no âmbito do federalismo não sig-
nifica, todavia, negar a ausência de um núcleo caracterizador. Apesar de o
conceito de Estado Federal abraçar diversas realidades distintas, a doutrina
jurídica costuma identificar traços comuns. Nesse sentido, Sarlet, Marinoni e
RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020
RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL.................................................................................................................................. 69
Mitidiero (2018, p. 932) afirmam a existência de “elementos nucleares qua-
lificadores do Estado Federal”, em que se destacam: a presença de ordens
parciais, a autonomia política e administrativa das Unidades da Federação e
a proibição de dissolução da Federação. Dessa forma, o federalismo norte-
-americano possui como principal característica a descentralização política.
Essa experiência descentralizada do federalismo norte-americano, no
entanto, enfrenta fortes instabilidades no atual contexto de pandemia. Se-
gundo os estudos de Kettl (2020), como o governo federal dos EUA omitiu-se
das decisões nacionais em relação à contenção do vírus, os Estados foram,
de acordo com suas necessidades, assumindo o protagonismo, algo já con-
sagrado no seu federalismo descentralizado. Criou-se, assim, um fenômeno
de “The States as Laboratories”, ou seja, cada Estado, de acordo com suas
necessidades, editou as medidas e, consequentemente, teria os resultados
mais diversos. Essa situação, porém, não foi de todo positiva, haja vista que,
com as particularidades inerentes aos diferentes Estados, a discrepância no
enfrentamento da Covid-19 foi nítida. Governos estaduais optaram por no-
tificar de maneiras diversas o contágio do vírus, o que dificultou a compa-
ração de medidas adotadas. Além disso, estadunidenses em alguns Estados
estavam expostos a riscos bem mais graves, devido às decisões que os seus
governadores tomaram.
De acordo com Peltz-Steele (2020), tornou-se comum, no cenário de
pandemia, que governadores e prefeitos de todo o país culpem a falta de
liderança federal norte-americana pelo agravamento das disputas interesta-
duais. Ainda segundo Steele, é preciso a configuração de uma “Liderança
do Topo” na formulação da resposta nacional à pandemia, protegendo, as-
sim, tanto a saúde pública quanto a economia. Esse desejo de uma liderança
do governo federal revela uma crença compartilhada de atores políticos
para uma mudança institucional de um federalismo com atuação mais forte
do poder central. Na pandemia de Covid-19, ocorre a demanda norte-ame-
ricana pela centralização política, em contrapartida com a descentralização
formal instituída.
O Poder Judiciário norte-americano também foi demandado para se
posicionar sobre essa realidade. Em maio desse ano, alegando violação ao
direito de culto e manifestação religiosa, a igreja South Bay United Penten-
costal Church, localizada em Chulaa Vista, Califórnia, demandou à Supre-
ma Corte norte-americana a abertura dos estabelecimentos religiosos em
contraposição às restrições do Governador Gavin Newsom (Washington,
2020). A Suprema Corte, por decisão majoritária, negou a demanda da igre-
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ja, mantendo, assim, a decisão de contenção estabelecida pelo governador,
reforçando a “regra do jogo” de descentralização federativa.
A configuração do federalismo na experiência brasileira, todavia, se
desenvolveu de modo diferente. O Brasil, chamado à época de “Estados
Unidos do Brazil”, formalizou a importação da experiência norte-america-
na do federalismo, com a primeira Constituição Republicana do Brasil em
1891. Na abordagem neoinstitucional (North, 2005, p. 36), além das normas
escritas, importam o contexto histórico-cultural, as convenções sociais, as
normas informais de comportamento e as crenças compartilhadas pelos ato-
res sociais, jurídicos e políticos. Assim, o mero transplante jurídico formal
do modelo de organização federal dos Estados Unidos, marcado pela forte
descentralização política, não representou a mesma mudança institucional
para o Estado brasileiro. O Brasil possui uma experiência muito peculiar,
diversa da realidade experimentada pela americana, que lhe deu forma e
essa diferença pragmática também reverbera no cenário atual de pandemia.
No Brasil, o Judiciário e os governadores dos Estados aparecem tam-
bém como jogadores importantes, modificando o real desenho institucional
a respeito do pacto federativo. A mudança, no entanto, ocorre no sentido
oposto ao estadunidense para um modelo mais descentralizado na prática.
Como será visto nas próximas seções, tais questões materializam desafios
diversos em oposição aos enfrentados pela experiência norte-americana.
Essa pesquisa propõe, assim, analisar, sob olhar crítico do neoinstituciona-
lismo, os atores e as organizações que sustentam o real desenho institucio-
nal da Federação no Brasil, para se compreender as regras do jogo antes
e durante a pandemia, a fim de tornar claros seus efeitos para o futuro no
pós-pandemia.

2 DESENHO INSTITUCIONAL REAL DO FEDERALISMO NO BRASIL ANTES DA PANDEMIA –


DESCENTRALIZAÇÃO FORMAL FRACA E CENTRALIZAÇÃO FÁTICA FORTE
Na Constituição brasileira, tem-se a institucionalização do pacto fe-
derativo, em que cada Estado-membro possui autonomia administrativa,
política e legislativa para exercer “as competências que não lhes sejam ve-
dadas”. Na letra da “Lei Maior” estão presentes as “regras formais” dessa
descentralização. Isso significa que, nos veículos oficiais do Estado, as re-
gras do jogo, isto é, as instituições orientam o comportamento em prol do
pacto federativo. Esse desenho formal, no entanto, não possui força institu-
cional suficiente. No “real desenho institucional” (Nóbrega, 2013, p. 23),
RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020
RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL.................................................................................................................................. 71
o contexto brasileiro, historicamente, pende para a centralização política.
Como esclarece Arretche:
Com exceção de um breve período histórico – a República Velha –, o Brasil
foi administrado de forma fortemente centralizada, desde o período colonial.
A herança de um Estado centralizado no passado colonial e na monarquia
foi abalada com a instauração da República, mas durante a maior parte da
história brasileira a criação de recursos administrativos necessários para o
desempenho de capacidades estatais esteve concentrada no nível central de
governo. (1996, p. 7)

O atual contexto de pandemia da Covid-19, no entanto, desencadeou


uma interessante ruptura no peculiar federalismo brasileiro, fortemente cen-
tralizado. Todavia, os desafios são diversos àquele experimentado no mo-
delo norte-americano, com histórico de federalismo descentralizado, como
“regra do jogo”.
No real desenho institucional, jogadores (indivíduos ou organizações)
moldam e são moldados pelas “regras do jogo”. Segundo North (2006), de-
ve-se diferenciar as regras do jogo (instituições) de seus jogadores coleti-
vos (organizações). As organizações são formadas por indivíduos que se
associam coletivamente para alcançar um propósito comum ou individual,
como corpos políticos (p. ex., partidos políticos), corpos econômicos (p. ex.,
empresas, cooperativas, grupos de camponeses familiares), corpos jurídicos
(p. ex., Supremo Tribunal Federal), corpos sociais (p. ex., igrejas, clubes,
associações atléticas), corpos educacionais (p. ex., escolas, universidades),
entre outros.
Utilizando a metodologia de Daniel Brinks (2006, p. 206), o ponto de
partida para se investigar a existência de arranjos institucionais informais na
formação das “regras do jogo” do federalismo brasileiro foi: observar a re-
gularidade informal de uma experiência federativa centralizadora, que não
é explicada exclusivamente tendo por referência a norma formal da Consti-
tuição (regras do jogo formais). Uma vez constatada essa dissociação entre
a regra formal e a realidade prática brasileira, é preciso identificar como a
regra do jogo, dada por hipótese, é reforçada na prática por mecanismos de
premiação e punição por parte dos atores envolvidos. Assim, o modo como
as regras formais interagem com as regras informais permite conhecer o
desenho institucional real.
Deve-se pontuar, então, que uma análise voltada unicamente para
a rede de constrangimentos e incentivos formais é considerada limitada.
RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020
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Analisando unicamente a formalidade, a centralização “real” brasileira não
pode ser entendida, e o estudo fica restrito à descentralização formal, que,
sozinha, não reflete a realidade política do país.
As instituições formais são regras impostas por meio de um veículo,
entendido, socialmente, como oficial (Helmke; Levitsky, 2006, p. 5). Quan-
do falamos de instituições informais, portanto, nos referimos às regras que
não são vinculadas a um órgão amplamente reconhecido como tal. Isso não
significa, porém, que as instituições informais não influenciam o compor-
tamento dos indivíduos em prol de um objetivo. A eficiência de uma insti-
tuição independe do nível de formalidade, mas da sua “força institucional”.
Para saber se uma instituição é “forte” ou “fraca”, é preciso perceber
se as práticas exigidas ou proibidas por essa instituição estão ocorrendo
(Brinks; Levitsky; Victoria, 2019, p. 9). No caso aqui estudado, nota-se que
a “regra do jogo” formal, propagada por meio das diretrizes constitucionais,
objetiva a efetivação do pacto federativo. Essa regra do jogo – instituição
–, no entanto, não consegue se manifestar de modo preponderante no real
desenho institucional, devido à ausência de força institucional. A descentra-
lização formal, assim, não é forte o suficiente para competir com as regras
do jogo informais em prol da centralização. É por meio do estudo da intera-
ção entre as regras formais e informais que a compreensão do real desenho
institucional se torna possível.
As instituições formais e informais podem dialogar de diferentes for-
mas. Atentos à relevância do estudo da interação formalidade/informalidade
para a compreensão da realidade, Helmke e Levitsky (2006) elaboraram
uma série de classificações condizentes ao estudo da dinâmica entre as ins-
tituições na América Latina. Segundo eles, quando as instituições formais
diferem, quanto ao objetivo, das instituições informais, existe uma relação
de divergência; quando há compatibilidade, uma relação de convergên-
cia. A relação de divergência ainda pode ocorrer por acomodação ou por
competição. Quando as instituições informais contornam a finalidade das
instituições formais, sem, no entanto, violar a regras propriamente, mas dan-
do-lhe aparência de legalidade, considera-se acomodação. A competição,
entretanto, existe quando uma instituição informal forte “compete” com as
regras do jogo formal, enfraquecendo-as.
No contexto do federalismo brasileiro, depreende-se que as institui-
ções formais (regra formal prescrita na Constituição Federal) objetivam o de-
senvolvimento da descentralização do poder decisório, tentando assegurar,
RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020
RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL.................................................................................................................................. 73
como foi visto, uma dupla esfera entre a União e os Estados-membros. Em
seu art. 23, a Constituição Federal trata da temática da competência comum
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, firmando com-
petência corrente nos temas relacionados à saúde pública. Dessa maneira,
percebe-se, na esfera formal, uma descentralização do poder decisório na
questão sanitária. Todavia, o real desenho institucional, em tais questões,
sempre foi o da centralização, como no caso do protagonismo do Minis-
tério da Saúde, que, historicamente, ditava e coordenava as diretrizes para
execução de políticas nos Estados-membros e Municípios (Ferreira, 2020).
As instituições informais, todavia, não atuam de forma condizente à
descentralização, haja vista a centralização fática que impera no real de-
senho institucional. Há, dessa forma, uma relação de competição entre as
instituições formais descentralizadoras e as instituições informais centraliza-
doras. Nesse entendimento, ao longo da história brasileira, essa competição
enfraquece a descentralização prevista no pacto federativo, consolidando a
centralização fática.
A sistemática centralização fática, assim, levanta questionamentos.
Por que, apesar da descentralização formal, o Brasil possui um longo histó-
rico de concentração de poder? Quais são as redes de incentivo informais
que conseguem se sobrepor às regras do jogo formais, oriundas do pacto
federativo? Segundo a cientista política Marta Arretche, essa centralização
ocorre, principalmente, por dois motivos: a progressiva concentração dos
principais tributos e recursos fiscais nas competências do governo federal e
a presença, também no nível federal, de uma estratégia de fortalecimento
institucional bem-sucedida (Arretche, 1996, p. 8).
Esses dois fatores refletem a rede institucional de incentivos em prol
da centralização. Segundo Afonso (2020), especialista em finanças públi-
cas, no Primeiro Webnário COMSEFAZ e IDP (2020), a máxima porcenta-
gem direcionada aos governos subnacionais, de 1960 a 2019, foi de 30%.
Há uma histórica concentração fiscal na esfera federal de poder. Tal fator,
assim, reflete um dos mecanismos utilizados para moldar as instituições em
prol da centralização política. Dessa maneira, consequentemente, a União
consegue manter-se predominantemente atuante no campo decisório. No
real desenho institucional, a histórica concentração fiscal atua como rede
de incentivo à histórica concentração fática do poder.
Possuindo estratégias de crescimento institucional mais bem elabora-
das, a União assumiu o protagonismo ao criar órgãos administrativos alta-
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mente capazes de responder às demandas de desenvolvimento e industria-
lização em curso na história brasileira (Arretche, 1996, p. 8). Consolidou-se
um contexto de dependência dos órgãos federais para se desenvolver polí-
ticas públicas estaduais e locais. Muitas das empresas e órgãos estaduais e
municipais foram desenhados supondo, de um lado, uma agência financia-
dora e planejadora (federal), e, do outro lado, empresas estaduais encarre-
gadas exclusivamente da execução das políticas (sob controle dos governos
federais). Ainda segundo Arretche (1996, p. 7), este contexto desencadeou
um “paradoxo” na Federação brasileira, pois o sucesso da descentralização
brasileira esteve condicionado desde a origem ao fortalecimento das facul-
dades administrativas a nível federal, o que, na prática, favoreceu uma forte
concentração fática.

Trazer as disposições do pacto federativo para a realidade requer a


elaboração de instituições eficazes condizentes com tais objetivos. Mantido
o status quo das relações institucionais historicamente em vigor no território
brasileiro, tais objetivos não serão alcançados. Sem modificações nas regras
do jogo, o real desenho institucional continuará sendo representado pela
centralização fática, dada a descentralização formal fraca.

O contexto atual de pandemia, todavia, tem proporcionado o surgi-


mento de novas regras institucionais, com objetivos “transformadores” ou,
melhor dizendo, revolucionários, no sentido de que objetivam modificar o
cenário do status quo (Brinks; Levitsky; Victoria, p. 9). O estudo desenvol-
vido por Grin (2020, p. 32) reforça essa transformação. Segundo o teórico,
existem duas concepções conflitantes do federalismo em vista do novo co-
ronavírus: a instituída 30 anos atrás com a Constituição de 1988 e o modelo
de “Mais Brasil e menos Brasília”, do Presidente Jair Bolsonaro. A estável re-
lação de descentralização formal fraca e de centralização fática forte, desse
modo, encontra-se instável. O conflito entre a União e os Estados federados,
no contexto da pandemia, abriu espaço para um redesenho das relações
entre os governos do País (Oliveira; Rodrigues, 2020).

Nessa instabilidade, ergue-se uma demanda institucional em prol de


uma verdadeira “República Federativa”. Novas instituições (regras do jogo)
surgem e a concretização do pacto federativo passa a receber novos incen-
tivos. A situação de descentralização real e de centralização fática encontra-
-se, assim, ameaçada. Há uma demanda por um (re)desenho.
RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020
RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL.................................................................................................................................. 75
3 A DEMANDA POR UM (RE)DESENHO DO FEDERALISMO BRASILEIRO COM A MP 926:
IDENTIFICANDO AS NOVAS REGRAS DO JOGO NA PANDEMIA
O atual contexto de pandemia tem desencadeado drásticas mudanças
nas cidades no País. Tributos foram relocados, as eleições de 2020 foram
adiadas, diversas empresas adotaram home office; outras, no entanto, fecha-
ram as portas. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
atualmente existe uma emergência global sem precedentes (CIDH, Resolu-
ção nº 1/2020, p. 5).
As mudanças também alcançaram a esfera política. Estados e Muni-
cípios realizaram medidas administrativas, decretando o rodízio de veícu-
los e impedindo a circulação de pessoas em locais públicos6. Os decretos
estaduais se tornaram cada vez mais comuns. A autonomia legislativa e
administrativa atribuída, formalmente, aos Estados-membros pareceu dar os
primeiros passos em direção à concretização.
Essas reverberações políticas, no entanto, não passaram desperce-
bidas no cenário nacional. Algumas organizações econômicas, entre elas
a classe empresarial, manifestaram forte repulsa aos decretos estaduais de
contenção. Os argumentos utilizados7 são diversos: muitos creem que os
danos à economia são mais severos do que os danos ocasionados pelo novo
coronavírus, outros defendem que os governadores estão agindo de modo
autoritário.
Há, no entanto, organizações internacionais que respaldam a atitude
dos governadores frente à pandemia. A Comissão Interamericana de Di-
reitos Humanos, por meio da Resolução nº 1/2020 (Pandemia y Derechos
Humanos em las Américas), esclarece bem esse respaldo:
[...] Reconhecendo que, em certas circunstâncias, a fim de gerar uma distân-
cia social adequada, há restrição do pleno gozo de direitos, como assembleia
e liberdade de movimento, em espaços tangíveis, públicos ou comuns, que
não são indispensáveis para a fornecimento de suprimentos essenciais ou
assistência médica propriamente dita.8 (CIDH, Resolução nº 1/2020, p. 6,
tradução nossa)

6 “PE restringe circulação de pessoas e implanta rodízio de veículos no Recife e mais quatro cidades.” (G1,
2020)
7 Em reportagem do portal de notícias UOL (2020), empresários afirmam que “o trabalhador deveria ter mais
medo de perder o emprego do que de ficar doente”. Nas redes sociais, o Presidente Bolsonaro afirma que as
medidas de restrição são “protótipos de ditador” (UOL, 2020).
8 “Reconociendo que, en determinadas circunstancias, con el objeto de generar adecuada distancia social,
puede resultar de hecho imperativa la restricción del pleno goce de derechos como el de reunión y la

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76 R�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL
O uso da atividade legislativa, todavia, não ficou restrito aos Estados-
-membros da Federação. Ainda no primeiro bimestre de 2020, a Medida
Provisória nº 926/2020 foi publicada no Diário Oficial da União. Sendo
de autoria do Presidente da República Jair Bolsonaro, a MP 926 prevê uma
alteração na “Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para dispor sobre
procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao
enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacio-
nal decorrente do coronavírus”. Entre suas disposições, a Medida ainda adi-
ciona:
§ 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços
públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º.
[...]
§ 11. É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o
funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidas nos
termos do disposto no § 9º, e cargas de qualquer espécie que possam acar-
retar desabastecimento de gêneros necessários à população. (Diário Oficial
da União)

Ao afirmar que as atividades essenciais não estão sujeitas à restrição


de circulação, e, paralelamente, ao atribuir à União competência de dispor
sobre quais atividades são consideradas essenciais, a Medida Provisória re-
colhe as disposições de quarentena às mãos da Presidência da República.
Ainda que indiretamente, nota-se que o dispositivo legal, quando analisado
estritamente, esvazia os poderes de autogoverno dos Estados-membros no
enfrentamento do novo coronavírus. No caótico cenário atual, a MP 926
surge como um instrumento formal que não condiz com os preceitos cons-
titucionais do federalismo brasileiro.
O arranjo informal divergente à efetivação do federalismo ganhou,
assim, um reforço. A União, elaborando a MP 926, agravou ainda mais
a dinâmica entre a descentralização formal e a centralização fática. Essa
dicotomia, de súbito, ganhou um estímulo em prol da centralização. Por
esvaziar, na esfera formal, as competências dos Estados e Municípios, a
Medida Provisória nº 926 torna ainda mais difícil a concretização da auto-
nomia federativa.

libertad de circulación en espacios tangibles, públicos o comunes que no sean indispensables para el
abastecimiento de insumos esenciales o para la propia atención médica.” (CIDH, 2020, p. 6)

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RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL.................................................................................................................................. 77
A recepção a determinadas questões foi turbulenta. Apenas sete dias
após sua publicação no Diário Oficial, a MP 926 já tinha recebido mais de
cem emendas oriundas de deputados e senadores (Agência Senado, 2020)
– a repercussão, no entanto, estava longe do fim. Alegando inconstitucio-
nalidade, por esvaziar “a competência e a responsabilidade constitucional
de Estados e Municípios para executar medidas sanitárias, epidemiológicas
e administrativas relacionadas ao combate ao novo coronavírus”, o PDT,
Partido Democrático Trabalhista, ajuizou uma ação direta de inconstitucio-
nalidade (ADI).
O PDT, entre outras disposições, argumenta que há uma “incompa-
tibilidade formal” da Medida Provisória nº 926 com o texto da Lei Maior.
Segundo o partido, a Constituição é clara ao atribuir competência comum à
União e aos Estados-membros para lidar com questões de saúde pública. A
MP, assim, simbolizaria um “abuso de poder, na modalidade excesso”, in-
validando, inclusive, “por arrastamento”, a Lei nº 13.979/2020, que define
as atividades consideradas essenciais.
A ação foi considerada prudente e necessária por parte dos governa-
dores estaduais. O Senador da oposição, Humberto Costa (PT-PE), inclusi-
ve, aproveitou o contexto para ressaltar as atitudes negligentes que o então
presidente vem realizando: “Bolsonaro, que limpa o nariz e cumprimenta
as pessoas nas ruas, sai derrotado” (Agência Senado, 2020). Consequente-
mente, apesar de o PDT ser considerado o autor oficial da ADI 6341, a ação
carrega as indagações de um público muito maior, abrangendo a mobiliza-
ção de governadores, deputados, prefeitos e senadores de diversos partidos
e regiões do País.
Percebe-se, à vista de tais informações, uma reverberação importante.
O cenário de pandemia serviu como palco para uma mudança institucional:
insatisfeitos com a inércia da União, os Estados-membros passaram a de-
mandar um (re)desenho na centralização fática. As trágicas consequências
desencadeadas pelo novo coronavírus atuaram, dessa forma, como estímulo
à alteração das regras do jogo em ação.
O termo “(re)desenho”, nessa realidade, se consolida como dúbio.
A sua adequação irá depender do parâmetro de análise. Caso o parâmetro
escolhido seja referente ao contexto da formalidade, não é prudente afirmar
que a demanda urge por alterações. O Texto Constitucional já configura
competências administrativas e legislativas aos Estados e Municípios. No
entanto, do ponto de vista concreto, analisando o real desenho institucio-
nal supracitado fica evidente que tais competências não possuem grande
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expressão; outras regras do jogo, informais, atuam com maior força institu-
cional. Neste último panorama, a colocação “demanda por um redesenho”
é perfeitamente adequada.
O Supremo Tribunal Federal julgou a ADI 6341 e deferiu, em parte, a
medida acauteladora usando-a como oportunidade em prol da reafirmação
do pacto federativo9. Ao afirmar que não houve transgressão constitucio-
nal no texto da MP 926, o Relator, o Ministro Marco Aurélio, imputou, “à
exaustão”, que a Medida Provisória não deve afastar a competência concor-
rente dos Estados e Municípios em lidar no combate ao novo coronavírus:
“As providências não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito
Federal e Município, considerada a competência concorrente na forma do
art. 23, inciso II, da Lei Maior” (2020, p. 5). O controle judicial exercido
pela Suprema Corte, na classificação de North (2006), seria identificado
como mecanismo de reforço da regra do jogo formal da descentralização
federativa, por emanar de um órgão oficial do Estado. Na classificação do
neoinstitucionalismo para a América Latina (Helmke; Levitsky, 2006), as
regras do jogo do federalismo brasileiro se manifestam, na pandemia, como
descentralização formal forte em contraposição a uma centralização infor-
mal fraca.
Percebe-se, assim, que, apesar de a Medida continuar em vigor, sua
atuação não interfere na competência dos Estados-membros. Ao assegurar a
autonomia federativa dos Estados e Municípios no enfrentamento do novo
coronavírus, o Supremo Tribunal Federal agiu de modo histórico, pavimen-
tando o caminho para novas regras do jogo, que reforçam a descentraliza-
ção política. As leis constitucionais condizentes ao pacto federativo foram
reforçadas10. A autonomia dos Estados-membros, há muito ofuscada pelo
histórico desenho institucional de um federalismo centralizado, ganha rele-
vante impulso em prol da concretização.
Essa realidade, como foi observado, difere da realidade norte-ameri-
cana anteriormente analisada. Enquanto a Suprema Corte norte-americana,
ao decidir de modo favorável à descentralização política, manteve o status

9 O Ministro Ricardo Lewandowski (STF) deixa evidente a relevância desse julgado para a concretização do
pacto federativo, afirmando que a Corte “revalorizou o federalismo brasileiro ao decidir que a União, Estados
e Municípios têm competência comum” (STF, 2020).
10 Juízes e Desembargadores, agindo de modo compatível à interpretação do Supremo, também contribuíram
para esse reforço. É o caso do portal de notícias UOL: “Baseada em decisão do STF, Justiça proíbe aula
presencial em escola militar”. Segundo o Desembargador Rogério Favretto, o “STF determinou ao governo
federal que respeite as determinações emanadas dos demais entes federativos” (UOL, 2020)

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quo do real desenho institucional estadunidense, o Supremo Tribunal Fede-
ral contribuiu para a alteração do desenho brasileiro. No Brasil, a autono-
mia dos Estados-membros, há muito ofuscada por uma centralização fática,
ganha relevante impulso em prol da concretização.

4 AS REGRAS DO JOGO NO ATUAL CONTEXTO DE INSTABILIDADE: ANÁLISE DOS JOGADORES NA


FORMAÇÃO DO REAL DESENHO INSTITUCIONAL
Haja vista a explanação anteriormente realizada, objetivando melhor
sistematizar a compreensão do novo desenho institucional do federalismo
brasileiro na pandemia, foi elaborado o seguinte quadro-resumo a seguir:

QUADRO 1: REGRAS DO JOGO DO FEDERALISMO BRASILEIRO NO CONTEXTO DA PANDEMIA


FEDERALISMO Pós-
Antes da pandemia Durante a pandemia
NO BRASIL -pandemia

Regra do jogo Descentralização formal fra- Descentralização formal Nova mudança


ca e centralização fática (in- forte11 e centralização fáti- institucional?
formal) forte ca (informal) fraca
Mecanismo Concentração histórica dos Controle judicial do Supre- Mudança dos
de punição e recursos fiscais na União. mo Tribunal Federal, repu- incentivos?
incentivos Dependência dos órgãos fe- tação internacional, graves
derais para desenvolver po- riscos à saúde coletiva,
líticas públicas estaduais e ruptura com o protagonis-
locais mo do Ministério da Saúde
nas políticas sanitárias es-
taduais e municipais
Jogadores União, Estados-membros, STF, governadores, par- Novos atores?
Municípios e outros atores tidos políticos, OMS, co-
políticos, jurídicos e sociais munidade internacional,
empresários, Presidente da
República

Fonte: Os autores.

Em seguida, é desenvolvido o estudo analítico desses arranjos ins-


titucionais em disputa, com destaque para os jogadores e mecanismo de
punição, que reforçam um e outro desenho institucional. Essa análise é re-

11 O STF, ao afirmar que a interpretação da MP 926 deve ser realizada à luz da Constituição, reforçou as regras
do jogo formal das competências estaduais e municipais no enfrentamento ao Novo Coronavírus. Desse
modo, a antiga centralização fática forte (informal) foi fragilizada, tornando-se fraca. Identificou-se, assim,
uma mudança institucional real para uma descentralização formal forte na pandemia, com o reforço da regra
constitucional do pacto federativo.

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levante para se vislumbrar os efeitos futuro dessa mudança institucional do
federalismo brasileiro, que poderá ou não persistir no pós-pandemia.

4.1 Jogadores que reforçam o arranjo institucional da centralização estatal


4.1.1 Classe empresarial alinhada ao público eleitor do Presidente da República
Antes de sua eleição em 2018, o atual Presidente Jair Bolsonaro já
contava com o apoio político de grandes empresários brasileiros (Exame,
2020). Porém, foi ao alcançar o público em massa que o então Deputado
Federal do PSL conseguiu se eleger à Presidência da República. No atual
cenário de pandemia, a combinação estratégica de interesses12, da classe
empresarial e do público eleitor potencializou o questionamento das medi-
das de isolamento adotadas pelos Estados-membros. Houve, desse modo, a
instauração de uma rede de incentivos que orienta o Presidente a privilegiar
a economia frente à saúde pública. No caso brasileiro, a resposta a tais
mecanismos de incentivos se consolidou na edição da Medida Provisória
nº 926/2020.
Como foi pontuado, a MP 926/2020 simbolizou uma tentativa ofi-
cial de manter o desenho institucional histórico, reforçando a tensão por
arranjos formais e informais em prol da centralização política, contrariando
o slogan de campanha do Presidente pela descentralização “Mais Brasil e
menos Brasília”. No dizer de Brinks, Levitsky e Victoria (2019, p. 9), a fina-
lidade, inerente à regra do jogo formalizada por essa MP, representaria um
típico objetivo institucional conservador, em oposição ao que eles identifi-
cam como objetivo transformador do status quo.
Assim, as organizações empresariais, o Presidente da República e a
sua base eleitoral aparecem como jogadores relevantes, com interesses con-
vergentes em prol do arranjo institucional conservador do status quo de
um federalismo centralizado, materializado na MP 926/2020. Observa-se,
ainda, que os meios informais de sanção política (perda de apoio da base
eleitoral, diminuição da aprovação ao governo, risco de não ser reeleito)
mobilizam a atuação de atores políticos na prática. Nesse sentido, aponta
Desposato:

12 Os interesses da classe empresarial, comercial e do público eleitor gravitam em torno da abertura do comércio
e possuem fundamentação nos danos econômicos sofridos com o fechamento. Segundo CNN (2020), durante
a pandemia “mais de 600 mil pequenas empresas fecharam as portas”.

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Em ambientes programáticos, os eleitores se comprometem primeiro com os
candidatos e não têm mecanismo de execução para garantir que os candida-
tos cumpram as políticas prometidas. Entendimentos típicos de representa-
ção dependem da imposição através de eleições repetidas e frequentes – os
políticos que não entregarem, em breve perderão as propostas de reeleição.
(2006, p. 60, tradução nossa)13

Conforme dados do instituto Datafolha14 (Avaliação, 2020), o índi-


ce de aprovação do governo Bolsonaro se manteve estável desde abril até
junho de 2020. Assim, mesmo depois do julgamento da ADI 6341, em 24
de março de 2020, que, na prática, deu protagonismo aos governos subna-
cionais (Estados-membros e Municípios) no combate à pandemia, o apoio
do eleitorado do Presidente não se diluiu. Ademais, várias manifestações
pedindo a reabertura do comércio foram protagonizadas pela base eleitoral
do Presidente (Moreira, 2020).
Para além da classe comercial e empresarial alinhada ao eleitora-
do do Presidente, há um segmento que engloba notáveis empresários, os
quais ganharam foco específico, diante de suas declarações públicas nes-
te contexto da Covid-19. Após o julgamento da ADI 6.341 pelo STF, à
MP 926/2020 foi imputada uma interpretação à luz do texto constitucional.
A competência presidencial foi assegurada, sem, no entanto, afastar a au-
tonomia dos Estados-membros. Os serviços essenciais foram determinados
pelo Decreto federal nº 10.282, de 20 de março de 2020, mas os decretos
estaduais também continuaram efetivos em seus respectivos territórios. A
rede de incentivos e constrangimentos do arranjo informal, impulsionado
pela classe comercial e empresarial pela centralização, não teve força insti-
tucional suficiente para superar a atuação do Supremo no controle de cons-
titucionalidade no caso.
Assim, esse arranjo institucional pela centralização fática perdeu for-
ça, com a entrada de novos jogadores, que divergiram e influenciaram uma
mudança institucional transformadora para a descentralização federativa.
A decisão formal do Supremo Tribunal Federal não teria força institucio-

13 “In programmatic environments, voters commit to candidates first and have no enforcement mechanism
to guarantee that candidates will deliver their promised policies. Typical understandings of representation
rely on enforcement through repeated and frequent elections – politicians who do not deliver will soon lose
reelection bids.” (Desposato, 2006, p. 60)
14 A reprovação aumentou de 38% para 43%, mas a aprovação à gestão do atual Presidente, na comparação
com o levantamento telefônico do final de abril, ficou estável em 33%. Dados da avaliação do governo de Jair
Bolsonaro em 25 e 26/05 de 2020 (Avaliação, Datafolha, 2020).

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nal sozinha se não tivesse a convergência de regras informais, reforçadas
por outros jogadores – comunidade internacional, Organização Mundial de
Saúde, governadores, partidos políticos da oposição, como será retomado
no tópico 4.2.
Conforme Helmke e Levitsky (2006), a interação por divergência en-
tre regras formais e informais, na América Latina, poderia ocorrer de duas
formas:
1. Por competição: quando há uma divergência expressa entre re-
gra formal fraca e regra informal forte. É o caso da experiência
do federalismo brasileiro, antes da pandemia, com descentrali-
zação fracamente implementada e forte centralização informal.
2. Por acomodação, quando há interação por divergência entre
regras formais fortes e regras informais, que se subsumem na
legalidade, favorecendo grupos de interesse. Nessa modalidade
de interação, os arranjos informais contrariam o espírito (a fina-
lidade) das regras do jogo formal, sem, todavia, violar a letra da
lei (regras do jogo formal).

Neste contexto, destaca-se a atitude do dono das empresas Havan.


O empresário Luciano Hang, tentando contornar os decretos estaduais de
contenção, passou “a vender arroz e feijão para tentar reabrir o comércio
como serviço essencial” (Folha de São Paulo, 2020). Essa ação por par-
te do empresário reflete um caso exemplar de interação por acomodação
(Helmke; Levitsky, 2006) entre a regra do jogo informal (violação sutil por
parte da classe empresarial dos decretos estaduais) e a regra do jogo formal
(decreto estadual que versa sobre os produtos essenciais). Embora não haja
uma afronta explícita à instituição formal, existiu uma clara manipulação
dessa regra do jogo formal, a fim de favorecer os interesses individuais do
proprietário das empresas Havan.

Essa atitude, porém, não é isolada. Segundo o Jornal do Comércio


(2020), tal comportamento ocorreu após um pronunciamento do Presidente
Jair Bolsonaro. Conforme divulgou Krüger e Mazui (2020), o atual Presi-
dente, em pronunciamento, no dia 14 de maio, estava se referindo mais
estritamente ao governador de São Paulo, João Doria, o qual vinha tomando
medidas coerentes com o isolamento e com a contenção do vírus, o que
diverge do posicionamento já amplamente divulgado de Jair Bolsonaro. Du-
rante uma conferência realizada com industriais e empresários, na mesma
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data da matéria, ele sustenta a afirmação de que empresários devem “jogar
pesado” com os governadores, com relação às medidas adotadas na sea-
ra estadual e municipal. Embora a intenção inicial tenha sido o ataque ao
governador de São Paulo, a mensagem foi compreendida como análoga a
qualquer representante do Executivo que se posicionasse a favor do isola-
mento, sendo, assim, contra o Presidente.

Dessa maneira, os embates em torno da MP 926/2020 abriram espaço


para respostas institucionais de outros “jogadores” na interação institucio-
nal, como o STF, a Comunidade Internacional, OMS, governadores e parti-
dos políticos, como será recuperado no tópico seguinte.

4.2 Jogadores que reforçam o arranjo institucional de um federalismo descentralizado


formal forte e de centralização fática fraca

4.2.1 Comunidade Internacional e Organização Mundial de Saúde


O trágico avanço da Covid-19 ao redor do globo tem sido expo-
nencial, e o Brasil permanece entre os países mais acometidos pelo vírus.
Conforme os dados da Universidade John Hopkins (2020), EUA e Brasil
se mantiveram como os dois países no topo do ranking de contaminação
e, também, no de casos confirmados da doença. Esses dados, associados
ao posicionamento de Jair Bolsonaro, têm ameaçado a política brasilei-
ra, desencadeando consequência que ultrapassam as barreiras nacionais
(Benvindo, 2020, p. 2).

Estados soberanos não estão imunes à dinâmica de incentivos e cons-


trangimentos da comunidade internacional. Assim, regras informais podem
se institucionalizar com os mecanismos de punição presente nas relações
internacionais: reputação, retaliação e reciprocidade (Guzman, 2008,
p. 33), a fim de fomentar a eficácia de tratados, relações comerciais e coa-
lizões.

Na medida em que o governo federal brasileiro flexibiliza, de maneira


inadvertida, as medidas de isolamento e, de forma deliberada, emite medi-
das provisórias, como a MP 926/2020, passa a sinalizar para a comunidade
internacional uma posição de descuido no combate à pandemia. Além da
perda de reputação internacional, pode perder financeiramente, retaliação
econômica e política. Destaca-se, neste contexto, as recentes reverberações
envolvendo Bolsonaro e o Tribunal Penal Internacional d’A Haia: denuncia-
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do pela sociedade civil por atos que possivelmente implicariam em geno-
cídio e crimes contra humanidade, o atual Presidente comprometeu, ainda
mais, a imagem do País internacionalmente (Bolsonaro, BBC, 2020).

Consequentemente, a “pressão” internacional, ao atuar de modo di-


vergente com os posicionamentos da União, consolida uma dinâmica de
convergência para com os governos subnacionais. Essa atuação, desse modo,
fomenta as medidas de contenção realizadas pelos Estados-membros, que
utilizam as orientações internacionais como parâmetro (The World Bank
Group, p. 95) para a edição de decretos. Há, assim, arranjos institucionais
que atuam em prol do (re)desenho da descentralização federativa.

Esses mecanismos de punição internacional, no entanto, não ficam


restrito aos países ou blocos econômicos isoladamente, como também pode
ser exercido por organizações internacionais amplamente reconhecidas. É
o caso da Organização Mundial de Saúde (OMS), que, sobretudo no con-
texto de pandemia, ganhou destaque na comunidade internacional. Embora
seja um órgão reconhecido, respeitado e de notável importância na área
de saúde coletiva, não foi poupado das críticas do Presidente Jair Bolsona-
ro, o qual questionou a capacidade do atual Diretor-Geral da organização,
Tedros Ghebreyesus (Bolsonaro, UOL Notícias, 2020). A declaração do Pre-
sidente consolidou-se como tentativa de desautorizar as falas e orientações
da Organização no Brasil.

A Medida Provisória interagiu, assim, em divergência, também, com


as recomendações desse órgão de saúde. O Presidente do Brasil defende,
a partir dessa instituição formal (MP 926/2020), e por meio de discursos, a
retórica da flexibilização das condutas de isolamento. Em paralelo, a OMS
divulga um posicionamento diametralmente oposto. Os especialistas em di-
reitos humanos da ONU pontuaram com indignação que a política brasilei-
ra estaria “priorizando a economia sobre a vida das pessoas” (Brasil, Onu
News, 2020) e que essa conduta seria inadmissível.

4.2.2 O Supremo Tribunal Federal, os governadores e partidos de oposição


Retomando a análise feita no item 3, identificam-se os seguintes jo-
gadores nesse (re)desenho promovido inicialmente pela Medida Provisória
nº 926 na pandemia: Supremo Tribunal Federal e governadores. Além deles,
há a atuação dos partidos de oposição, representados no caso pelo PDT,
o qual entrou com a ADI no STF. Cada um desses jogadores, ainda que
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com funções distintas, foram relevantes para a mudança institucional na
pandemia, pela descentralização típica do modelo federativa, formalmente
prevista na Constituição brasileira, mas fracamente realizada.

Como foi visto, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) entrou com


uma ADI (6341) no STF alegando inconstitucionalidade da MP 926 emitida
pelo Presidente Jair Bolsonaro em relação ao art. 23, inciso II, da Constitui-
ção Federal.

Nesse ditame, o STF também foi um ator importante para a ruptura


institucional em prol de um federalismo descentralizado. Por meio do jul-
gamento da ADI 6341, como foi dito, houve a reafirmação das competên-
cias federativas dos Estados-membros, embora a MP 926/2020 não tenha
sido expressamente contrariada. Com isso, é possível perceber uma relação
de acomodação institucional entre a decisão deferida pelo Supremo (ADI
6341) e o texto da Medida Provisória nº 926, posto que divergiu da finali-
dade da MP, sem, todavia, considerá-la inconstitucional. Entre a decisão do
STF e a Constituição Federal, por sua vez, a interação institucional foi de
convergência, reafirmando o pacto federativo. Assim, o efeito da decisão do
STF, na prática, foi reforçar a relevância do art. 23, inciso II, da Constituição,
resgatando o poder decisório dos governadores.

Desse modo, o STF atuou de maneira pragmática, considerando as re-


gras formais e descredibilizando os ataques que recebe constantemente na
informalidade das instituições (regras do jogo) fomentadas pelo atual Presi-
dente da República, as quais já foram citadas. Sendo assim, o julgamento da
ADI 6.341 representou uma evidente oposição do STF a esse ator político.

Ao final, essa mudança institucional também foi reforçada pela au-


sência de diretrizes nacionais do Ministério da Saúde15, o que desencadeou
uma fraca centralização nas políticas de saúde na pandemia. Representou,
assim, um protagonismo inédito dos governadores e das Secretarias de Saú-
de estaduais, que deixaram de lado seu papel tradicional de mero executo-

15 Saad-Diniz e Urban (2020) constataram a existência de um contraste entre as medidas determinadas pelo
ex-Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e as subsequentes atitudes do Presidente da República.
Bolsonaro ignorava as descobertas científicas que eram contra suas crenças, priorizando, assim, a economia
em detrimento da contenção do vírus. Essa disputa presente na esfera federal culminou com a demissão
do Ministro Mandetta e a posterior nomeação do Nelson Teich, retirado pouco tempo depois, por razões
semelhantes. Atualmente, a direção do Ministério da Saúde é exercida interinamente por um militar.
Dadas tais turbulências na esfera federal, a tomada decisões relativas ao isolamento social, assim, partem
majoritariamente das Secretarias de Saúde, ou seja, na esfera descentralizada.

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res de políticas nacionais para serem agentes públicos ativos na elaboração
de ações locais de combate pandemia.

CONCLUSÃO
Da análise desenvolvida, foi possível identificar a mudança institucio-
nal em curso no federalismo brasileiro, com a transição da regra do jogo de
uma descentralização formal fraca e centralização fática forte no período
pré-pandemia para uma descentralização formal forte e centralização fática
fraca durante o contexto da pandemia da Covid-19, o qual teve início em
2020. Toda investigação neoinstitucional é situada de forma contextual, no
tempo e no espaço, enriquecida com os dados disponíveis sobre os incen-
tivos institucionais e o papel dos atores e das organizações envolvidos, que
poderão ser atualizados em pesquisas, que se sucedam.

Urge questionar se esse novo desenho institucional de forte descen-


tralização formal vai se consolidar no período pós-pandemia. Como visto,
uma alteração no real desenho é consequência de complexas interações
entre as instituições e os jogadores, levando em conta, dessa forma, tanto as
redes de incentivo e constrangimento quanto a atuação dos atores institu-
cionais. Não há como presumir uma mudança permanente na atuação dos
governadores frente à utilização das competências oriundas do pacto fede-
rativo. Para delinear, assim, se os arranjos institucionais em ação durante a
pandemia repercutirão posteriormente, é preciso dispor de dados ainda não
consolidados. Nada impede, no entanto, que tal estudo venha a se concreti-
zar em futuras pesquisas, com uma amostragem analítica atualizada.

O artigo, dessa maneira, fornece um olhar promissor por meio de


ferramentas que possibilitam a compreensão de reverberações futuras. O
aprendizado com a experiência institucional de um federalismo descentrali-
zado, no contexto de pandemia, deixará marcas importantes na atuação dos
Estados-membros no futuro.

O Brasil enfrenta, atualmente, mudanças substantivas nos arranjos


institucionais antes consolidados na trajetória da Federação brasileira. Nes-
sa metamorfose, o arranjo informal em prol da centralização perde espaço
para a descentralização política. As discussões em torno da MP 926/2020
refletem muito mais do que a instauração, ou não, de medidas de isolamen-
to social. Com a interpretação do Supremo Tribunal Federal, houve uma
virada pragmática no real desenho institucional do federalismo até então. Só
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o tempo, por sua vez, poderá responder se a mudança institucional em prol
da descentralização terá a mesma força institucional, como regra do jogo,
no período após a pandemia.
Cabe ressaltar, também, que a possível concretização do pacto fe-
derativo fortemente descentralizado não significa, necessariamente, a me-
lhoria da democracia brasileira. Descentralizar significa dividir as esferas
de poder entre as organizações políticas. Por mais que seja lógico afirmar
que a descentralização proporciona cenário propício para a instauração de
instituições democráticas (Arretche, 1996, p. 4-5), não é razoável acreditar
que a descentralização, sozinha, seja responsável pelo desempenho demo-
crático de um país.

A força democrática de um país está relacionada a fatores diversos.


Instituições não estão isoladas, elas interagem com os jogadores. Com suas
expectativas, culturas e, sobretudo, com seu comportamento, os indivíduos
e as organizações influenciam a composição das regras do jogo. Foi a partir
dessa interação dialética (instituição-jogadores) que surge o real desenho
institucional. Acreditar, assim, que apenas a descentralização é suficiente
para instaurar uma democracia forte é correr o risco de transferir o autorita-
rismo central para o autoritarismo regional (Arretche, 1996, p. 5).

Como se pode perceber, o olhar neoinstitucional empresta à análise


um arcabouço teórico que permite uma melhor observação das mudanças
institucionais. Compreender melhor os arranjos institucionais que existem
na realidade fática promove uma solução mais efetiva dos problemas que a
envolvem. Não é suficiente, porém, como foi supracitado, entender apenas
as instituições formais, mas, também, as instituições informais e de seus des-
dobramentos. A respeito disso, Lilia Schwarcz (2019, p. 235) defende que
uma democracia funciona melhor quando sua constituição é reforçada por
normas escritas e não escritas, partilhadas.

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RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020


92 R�����������������������������������������������������������������������������������������������������������������������������RDP Nº 96 – Nov-Dez/2020 – ASSUNTO ESPECIAL

Sobre as autoras e o autor:


Laura Gabriella Muniz da Silva | E-mail: lauragmuniz@hotmail.com
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, campus Recife. Membro
do Programa de Extensão “Acesso ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (aSIDH)”,
UFPE. Pesquisadora bolsista do Programa Institucional de Iniciação Científica (Pibic) com o
projeto “Autonomia federativa, simbolismo constitucional e o embate à Covid-19”, orientado
pela Professora Flavianne Nóbrega.

Flavianne Fernanda Bitencourt Nóbrega | E-mail: flavianne@gmail.com


Professora de Teoria Política e do Estado da Faculdade de Direito do Recife – Universidade
Federal de Pernambuco. Coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Desenhos Institucionais
credenciado no CNPq. Coordenadora do Programa de Extensão “Acesso ao Sistema Interame-
ricano de Direitos Humanos (aSIDH)”. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação
em Direito da UFPE. Pós-Doutorado no Max Planck Institute for Comparative and International
Private Law – Hamburg. Doutora em Direito pela UFPE, com período sanduíche na Bucerius
Law School – Hamburg – Alemanha. Mestre em Ciência Política e Mestre em Direito pela UFPE.

Ana Laura Machado Rodrigues | E-mail: analauramr01a@gmail.com


Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, campus Recife. Monitora
bolsista da disciplina de Teoria Política e do Estado – UFPE. Membro do Grupo de Extensão
“Acesso ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos (aSIDH)” e pesquisadora de inicia-
ção científica do Laboratório de Pesquisa em Desenhos Institucionais, credenciado ao CNPq,
ambos coordenados pela Professora Flavianne Nobrega na UFPE.

Bruno César Machado Torres Galindo | E-mail: brunogalindoufpe@gmail.com


Professor Associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Doutor em Direito pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal (PDEE).

Data de submissão: 31 de julho de 2020.


Data de aceite: 29 de setembro de 2020.

RDP, Brasília, Volume 17, n. 96, 65-92, nov./dez. 2020


Derecho y Cambio Social

POR UMA CRÍTICA DESCOLONIAL DA IDEOLOGIA


HUMANISTA DOS DIREITOS HUMANOS
Daniel Carneiro Leão Romaguera1
João Paulo Allain Teixeira2
Fernanda Frizzo Bragato3

Fecha de publicación: 01/10/2014

DECOLONIAL CRITIQUE REGARDING HUMANIST


IDEOLOGY OF HUMAN RIGHTS

SUMÁRIO: Introdução 1. Da Narrativa Eurocêntrica e a crítica


aos Fundamentos Humanistas 2. Colonialismo: Economia da
Violência, Mito da Independência e Direitos Humanos 3. Da
Perspectiva Descolonial dos Direitos Humanos 3.1
(Des)colonialismo e Produção do Saber 3.2 Dimensão do
Humano e Colonialidade dos Direitos Humanos.

RESUMO: A perspectiva descolonial busca o pluralismo na


produção do saber, o que implica a ruptura com a construção

1
Mestrando em Direitos Humanos da UNICAP em programa de Mestrado-Sanduíche na
UNISINOS, sob a orientação do Prof. João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira e da
Profª. Fernanda Frizzo Bragato. Email: danielromaguera@hotmail.com
2
Professor Adjunto do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco
(CCJ/UFPE), Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de
Pernambuco (PPGD/UFPE), Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP),
Professor do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP),
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP. Doutor e Mestre em
Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
3 Mestre e Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, com período de
estágio doutoral na University of London (Birkbeck College) (2009) e pós-doutorado na
University of London (School of Law - Birkbeck College) (2012). Atualmente é professora do
Programa de pós-graduação e graduação em Direito da Unisinos e Coordenadora do Núcleo de
Direitos Humanos da Unisinos.

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eurocêntrica do conhecimento. Nesse sentido, posiciona-se
criticamente em relação à narrativa tradicional do historicismo,
da qual resultou o ideal civilizatório professado na leitura mais
ortodoxa dos Direitos Humanos. Sob esta perspectiva, este
ensaio propõe-se a, de um lado, relacionar a ideologia humanista
subjacente ao discurso dos Direitos Humanos com o
eurocentrismo. De outro, adotar o fio condutor do
descolonialismo e, na linha de uma historiografia crítica, expor
possibilidades que foram ou têm sido dissimuladas, ocultadas e
destruídas pela racionalidade tradicional na construção do
discurso dos Direitos Humanos pautado pela lógica historicista
do progresso. Isso implica retomar e problematizar a resistência
colonial e verificar em que medida fora ocultada, reprimida e
dissimulada neste discurso.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Descolonialismo.
Eurocentrismo. Colonialidade.

ABSTRACT:
The decolonial perspective search for pluralism in the
production of knowledge which implies a break from
Eurocentric construction of knowledge. Therefore positions
itself critically in relation to the traditional narrative of
historicism that resulted in the civilizing ideal professed in a
more orthodox reading of Human Rights. From this perspective
the article proposes on one hand relate the underlying humanist
ideology on the discourse of Human Rights with Eurocentrism.
On the other hand take the thread of decolonialism in a critical
historiography line exposing possibilities that were or have been
concealed hidden and destroyed by traditional rationality in
construction of the discourse of human rights ruled by historicist
logic of progress. This implies to retake and problematize
colonial resistance and examine how far out hidden, repressed
and disguised in this discourse.
KEY-WORDS: Human Rights. Descolonialism. Eurocentrism.
Coloniality.

INTRODUÇÃO
Este artigo pretende abordar criticamente a ideologia humanista dos
direitos humanos, em relação à expansão colonialista, o eurocentrismo e o
domínio do terceiro mundo pelo continente europeu.

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Nesse sentido, propugna-se, por considerar a presença da
colonialidade desde o surgimento da modernidade. A relacionar que, o
projeto do racionalismo moderno persiste, visto que a ideologia humanista
dos Direitos Humanos cumpre um papel determinante no discurso
eurocêntrico, pois figura ser ápice do ideal civilizatório do historicismo
ocidental.
Para tanto, adota-se a matriz teórica do descolonialismo, que busca
apontar a relação entre colonialismo e o ideal civilizatório do Ocidente,
bem como, romper com a produção do saber atrelado ao epicentro europeu.
A perspectiva epistemológica dos estudos descoloniais implica na
inversão do papel desses direitos, para isso, modifica-se sua teoria e
pratica. De modo que, cumpra-se com o ofício de genealogia na produção
de uma contramemória, ao serem apontados os processos coloniais como
eventos fundantes à concepção de modernidade. Aqui, propõe-se romper
com a narrativa linear pautada no êxito das metrópoles. Em oposição,
retoma-se a resistência das colônias.
Nesse sentido, em oposição à ideologia humanista subjacente ao
discurso de direitos humanos, na linha de uma historiografia crítica,
procura-se retomar esses direitos e expor possibilidades que foram ou têm
sido dissimuladas, ocultadas e destruídas pela racionalidade tradicional e
ideologia humanista. Na hipótese apresentada, esta foi categórica à
construção do discurso prevalente dos Direitos Humanos pautado pela
lógica historicista do progresso.
Para tanto, faz-se o paralelo da ideologia humanista com as práticas
manifestadas ao longo da tradição colonialista do “velho continente”4, no
intuito de demonstrar como o eurocentrismo foi determinante para a
construção do discurso de Direitos Humanos na contemporaneidade. Dessa
reflexão, atenta-se, às origens coloniais dos Direitos Humanos.
No primeiro capítulo será analisada a narrativa eurocêntrica e a
crítica aos fundamentos humanistas resilientes no discurso de direitos
humanos na contemporaneidade, isto porque, a lógica na produção do saber
que presidiu as violações e práticas de dominação e exploração iniciadas no
processo colonial não foi deixada de lado.

4
Expressões como essas nos permite constatar que a história é construída pelo vencedor. Fator
indicativo do eurocentrismo, em que a produção do saber está atrelada a civilização europeia.
Atenta-se a crítica feita ao historicismo por Foucault, pois “(...) não há sujeito neutro. Somos
forçosamente adversários de alguém”. (FOUCAULT, 2000, p. 59)

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Nesse intuito, que se verifica o colonialismo e a expansão do
discurso europeu, abordagem realizada no segundo capítulo.
Em seguida, acerca da hipótese proposta, faz-se relação do
eurocentrismo e a produção ocidental do discurso humanista de direitos
humanos. Por último, enfrenta-se a problemática concernente à definição
do humano pela ideologia humanista, em que se faz presente a
colonialidade dos Direitos Humanos.
Conforme os marcos teóricos adotados, vislumbra-se, que, a
ideologia humanista dos Direitos Humanos tem relação com os processos
colonialistas, tanto por perceber as origens coloniais da ideologia
humanista como na colonialidade de mundo que persiste. Destarte, o
intento epistemológico é por ultrapassar os padrões dominantes e a
produção do saber eurocêntrico.
1. DA NARRATIVA EUROCÊNTRICA E A CRÍTICA AOS
FUNDAMENTOS HUMANISTAS
A motivação acadêmica à temática pretendida, parte da relevância de
inquirição do discurso homogeneizante de Direitos Humanos em meio à
colonização do mundo pelo Ocidente.5 Em razão disso, identificam-se as
aporias na lógica de campo e os intentos por trás desses direitos.
De pronto, há que se fazer menção à necessidade de romper com a
tradição de ortodoxia da história do ocidente. Vê-se, que, o discurso se
manifesta nas estruturas de poder inserto à realidade política e social que o
circunscreve.
Desse modo, a ideologia dos Direitos Humanos padece de
compreensão da dimensão social em que se encontra, trata-se do
perspectivismo histórico, consigna Heiner Bielefeldt:
(...) interpretá-los retroativamente como direitos humanos
implícitos ou potenciais significaria adotar a ingenuidade do
pensamento histórico teleológico que, conforme Kaviraj,
deságua numa cobrança essencialista-cultural da idéia dos
direitos humanos, ou em algo como um Espírito do Ocidente.
(BIELEFELDT, 2000, p. 149)
A tendência universalizante dos Direitos Humanos se faz presente
na obra de Costa Douzinas, em que subjaz a leitura em perspectiva da sua
produção. Adotada esta postura crítica, os Direitos Humanos revelam

5
Neste ensaio a expressão “colonização de mundo” é utilizada para representar a lógica de
operacionalidade da dominação suportada pelo eurocentrismo, atualmente, relacionada aos
direitos humanos, que implica em reconhecer sua estrutura ontológica de definição de mundo.

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contrassensos visto que não conduzem aos ideais humanitários professados,
pois, selecionam os afortunados e definem sua humanidade. Logo, a
concepção do humano é construída.
É, para além do conteúdo transcendental tido por inerente à
significação desses direitos, que se percebe a dissimulação das relações de
poder que os permeia:
A irrealidade ontológica do homem abstrato dos direitos conduz
inexoravelmente à sua utilidade limitada. Direitos abstratos são,
assim retirados de seu lugar de aplicação e das circunstâncias
concretas das pessoas que sofrem e se ressentem de que eles não
conseguem corresponder a suas reais necessidades.
(DOUZINAS, 2007, p. 166).
No mundo atual, a Humanidade nada tem de inerente ao Ser
Humano, pois os Direitos Liberais que ao seu nascedouro foram opostos à
opressão e dominação na Revolução Francesa vem a fazer parte do discurso
triunfal da atualidade com o prenúncio dos Direitos Humanos. O
referenciado autor indica o momento a ser observado diante da lógica de
institucionalização desses direitos, em revisão feita pela Universidade de
Melbourne:
A história dos direitos humanos fez da resistência à dominação e
opressão seu fim principal. No entanto, a partir de modernidade
precoce em diante, os direitos naturais sustentaram a soberania
do Estado moderno. Esta tendência foi reforçada na pós-
modernidade e os direitos humanos tornaram-se a ordem moral
de um novo império em construção. (MELBOURNE
UNIVERSITY LAW REVIEW, 2002, p. 445, tradução nossa)6
É nessa acepção que os Direitos Humanos constituem o centro
dominante da ideologia hodierna em meio à formação da doxa. Segundo
Bourdieu, a doxa consiste na produção de um senso prático
homogeneizante e insdiscriminadamente seguido, que se dá com o alcance
da submissão de forma universal do ponto de vista particular. 7

6
The history of human rights has made resistance to domination and oppression their main end.
However from early modernity onwards, natural rights underpinned the sovereignty of the
modern state. This trend has been strengthened in post modernity and human rights have
become the moral order of a new empire under construction. (MELBOURNE UNIVERSITY
LAW REVIEW, 2002, p. 445)
7
“A doxa é um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta e se
impõe como ponto de vista universal; o ponto de vista daqueles que dominam dominando o
Estado e que constituíram seu ponto de vista em ponto de vista universal ao criarem o Estado.”
(BOURDIEU, 1996. p. 120)

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A lógica dos Direitos Humanos por ser uma ideologia, não está à
margem de críticas, nas palavras de Douzinas da “crítica da ideologia”.
(DOUZINAS, 2007, p. 21). Muito embora, seja: “(...) a experiência dóxica
pela qual atribuímos ao mundo uma crença jamais profunda do que todas as
crenças (no sentido comum) já que ela não se pensa como uma crença.”
(BOURDIEU, 1996, p. 144).
Logo, busca-se demonstrar a expansão do discurso humanista, o que
se deu com a dominação do terceiro mundo pelo continente europeu.
No cenário recente, como decorrência: a) o catálogo de direitos
humanos para exportação; b) imposição dos ideais democráticos; c)
legitimação do soberano nos estados-nação; d) noção de guerra justa; e)
combate ao terrorismo; f) modelo de economia capitalista; g) demonização
do comunismo; h) guerras neocoloniais no oriente médio; i) os embates
étnicos na África; j) a guerra de Kosovo; k) guerra do Vietnã; l)
financiamento das milícias africanas; m) desenvolvimentismo nuclear e
exploração do petróleo; n) dumping social; o) o controle das fronteiras e
imigração; p) ajuda humanitária; q) mercado financeiro; r) produção das
multinacionais e exportação; dentre outros eventos de nossa época
suportados pela ideologia humanista que se concebe fazer relação com a
mácula colonialista.
É preciso identificar que a modernidade não se limitou ao locus
temporal do continente europeu, observa-se, o que Immanuel Wallerstein
denominou de “universalismo europeu”:
O que estamos usando como critério não é o universalismo
global, mas o universalismo europeu, conjunto de doutrinas e
pontos de vista éticos que derivam do contexto europeu e
ambicionam ser valores universais globais – aquilo que muitos
de seus defensores chama de lei natural – ou como tal
apresentados. (WALLERSTEIN, 2007, p. 60)
É por isso que a crítica deve exceder as reminiscências da
modernidade, em oposição ao âmbito eurocêntrico da pós-modernidade.
(BARRETO, 2013)
As expressões “europeu” e “eurocentrismo” não estão atreladas ao
aspecto geográfico, mas, possuem acepção política, o que nos remete a
forma de dominação imperialista pautada nos ideais modernos. Assim
como, o “ocidente”, pois, nem todos os países deste espaço geográfico
representam a metódica colonialista, em absoluto. Por exemplo, nesses
termos, são países aderentes dessa concepção de mundo, a Nova Zelândia e
Austrália, bem como ausentes dela, Cuba e Jamaica.

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O esforço do “progresso evolucionista” em atrelar a Lei Natural,
Direito Natural e Direitos Naturais aos Direitos Humanos, de certa forma, o
foi para garantir o ideal universalista e a noção ápice do historicismo
civilizatório. Pois, tais direitos se estabelecem como resultado da tradição
jurídico-ético-política em conformidade com as teorias de justiça.
Nesse pesar, Douzinas afirma acerca dos Direitos Humanos, que, o
discurso profano fixa serem estes direitos atribuídos às pessoas em razão da
sua condição de Ser Humano, independentemente de qualquer outro
aspecto. Com isto, o direito à tutela de bens jurídicos seriam conferidos às
pessoas não por causa de sua filiação ao estado, nação ou comunidade,
mas, por sua Humanidade.
Acontece que, o que vemos é um discurso não humanitário, mas
humanizador. Isto porque, as ações desses direitos selecionam os
afortunados, consequentemente, define a humanidade do homem. Logo, os
Direitos Humanos são definidores da humanidade, e nada tem de inerente
ao Ser Humano. Afinal, o discurso dos Direitos Humanos não reconhece o
sujeito concreto que esta ideologia produz. Explico. Para tal discurso, uma
mulher negra do “terceiro mundo” tem a Humanidade de um homem
branco, heterossexual, proprietário e europeu. Destaca José-Manuel Barreto
o problema do (não) sujeito, pois: “(...) o sujeito livre moderno é o
resultado do comércio de escravos e das práticas colonialistas.” 8
(BARRETO, 2013, p. 27, tradução nossa)
Nesse sentido, a concepção prevalente funciona como uma ordem
de corpos que permite as desigualdades, o poder disciplina os corpos, mas,
também, os faz surgir. Nas palavras de Michel Foucault, vê-se o problema
da biopolítica: “(...) no corpo como máquina: no seu adestramento, na
ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento
paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de
controle eficazes e econômicos.” (FOUCAULT, 1988, p. 151).
2. COLONIALISMO: ECONOMIA DA VIOLÊNCIA, MITO DA
INDEPENDÊNCIA E DIREITOS HUMANOS
Em consideração das bases epistêmicas do descolonialismo, neste tópico
faz-se relato crítico acerca dos processos de colonização, independência e
autonomia do estatalismo nacional dos países de terceiro mundo, para que
se possa perceber a manutenção do ideal humanista prevalente no saber
ocidental e sua relação com o expansionismo capitalista.

8
(...) the modern free subject is the result of slave trading and colonialist practices.
(BARRETO, 2013, p. 27)

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Diante do relato feito, é necessário opor-se ao que foi construído, ao
homem europeu dos direitos humanos que há em cada um dos colonizados,
resultante do processo de colonização:
Assim a Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou
classes e por vezes racismos, tentou por todos os meios provocar
e incrementar a estratificação das sociedades colonizadas. Fanon
não dissimula nada: para lutar contra nós, a antiga colônia deve
lutar contra ela mesma. (SARTRE, 1968, p. 06)
Frantz Fanon fez minuciosa leitura do processo de colonização dos
países africanos, em especial da Argélia, ao iniciar sua obra aponta os
dualismos criados pela colonização: civilizado/primitivo; erudito/bárbaro;
branco/negro:
O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos.
Sem dúvida é supérfluo, no plano da descrição, lembrar a
existência de cidades indígenas e cidades européias, de escolas
para indígenas e escolas para europeus, como é supérfluo
lembrar o apartheid na África do Sul. (FANON, 1968, p. 27)
Em consequência dessa discrepância vê-se o europeu de cada
colonizado, são os frankensteins criados pelo colonialismo, com a
repercussão da imagem do ser no outro, o colonizado se vê no espelho:
O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um
olhar de luxúria, um olhar de inveja. Sonhos de posse. Tôdas as
modalidades de posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se no
leito do colono, com a mulher dêste, se possível. O colonizado é
um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar,
constata amargamente mas sempre alerta: "Êles querem tomar o
nosso lugar.": É verdade, não há um colonizado que não sonhe
pelo menos uma vez por dia em se instalar no lugar do colono.
(FANON, 1968, p. 29)
A divisão sequer é mascarada no colonialismo, Fanon constata que
a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura, isto porque:
“A causa é conseqüência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco
porque é rico. (...) A espécie dirigente é antes de tudo a que vem de fora, a
que: não se parece com os autóctones, "os outros".”(FANON, 1968. p. 30)
Para que se permita romper com esse plexo é imprescindível
contestar a história hegemônica, aquela que foi produzida pelo vencedor, o
europeu:
O colono faz a história. Sua vida é uma epopéia, uma odisséia.
Êle é o comêço absoluto: "Esta terra, fomos nós que a fizemos":
É a causa contínua: “Se partirmos, tudo estará perdido, esta terra

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regredirá à Idade Média". (...) O colono faz a história e sabe que
a faz. (FANON, 1968, p. 38)
Atenta-se, que há de se questionar o colonialismo para além do limite
territorial, isto porque, a divisão de fronteiras, ante a consequente
independência da colônia, não afasta a colonialidade e herança dos
processos formais de colonização.
A gênese dos processos históricos de colonização nos revela que a
exploração inicial de matéria prima, a humilhação e continua submissão do
colonizado durante a ocupação territorial não se mantém, visto que as
práticas violentas conduzem as deturpações do sistema inicialmente
infirmado. (cf. FANON, 1968, p. 50)
Tais práticas implicam em uma insatisfação generalizada, capaz de
deflagrar movimentos de oposição ao regime colonial. Em resposta, o País
colono sagra pela contenção violenta, até certo ponto.
Em seguida, quando o regime colonial não mais se sustenta, o
colono vê uma alternativa viável, o aspecto econômico revela o interesse
do europeu na transição colonial, que resultou na autonomia territorial da
colônia:
O capitalismo, em seu período de desenvolvimento, via nas
colônias uma fonte de matérias-primas que, manufaturadas,
podiam espalhar-se no mercado europeu. Depois de uma fase de
acumulação do capital, impõe-se hoje modificar a concepção da
rentabilidade de um negócio. (FANON, 1968, p. 38)
Em detrimento dos auspícios econômicos e êxito do projeto de
dominação, tem-se o término do massacre:
Pobre colono: eis sua contradição posta a nu. Deveria, dizem,
como faz o gênio, matar as vítimas de suas pilhagens. Mas isso
não é possível. Não é preciso também que as explore? Não
podendo levar o massacre até ao genocídio e a servidão até ao
embrutecimento, perde a cabeça, a operação de desarranjo e uma
lógica implacável há de conduzi-la até à descolonização.
(SARTRE, 1968, p. 06)
Até porque, em dado momento, é insustentável a fruição lucrativa
do colono durante a ocupação, em meio a inúmeras atrocidades e
submissão do colonizado, tal processo de dominação que impele a força
física foi deixado de lado:
Por esse motivo os colonos veem-se obrigados a parar a
domesticação no meio do caminho: o resultado, nem homem
nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente,
amedrontado, mas só até certo ponto, tem êle, seja amarelo,

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negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um
preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a
força. (SARTRE, 1968, p. 06)
A denotar que, em regra, apesar dos esforços conduzidos pelo povo
dominado, não consegue alcançar a ruptura com o sistema de exploração,
mas obtém tão somente contemporizações pontuais. Pois, a domesticação e
submissão do outro persiste.
Em consequência, na independência está presente o resultado da
própria construção do colonizado como espelho distorcido do europeu, com
o contínuo desejo de assumir sua posição:
Prevalece a crença de que os povos europeus atingiram um alto
grau de desenvolvimento em conseqüência de seus esforços.
Provemos então ao mundo e a nós mesmos que somos capazes
de iguais realizações. Êsse modo de colocar o problema da
evolução dos países subdesenvolvidos não nos parece justo nem
razoável. (FANON,1968, p. 76)
E, o que parecia para os colonizados um processo de independência
capaz de romper os laços com o colono, se sujeita, em razão do domínio
econômico que conduz a impossibilidade de disputa com o antigo mundo,
logo, “(...) a apoteose da independência transforma-se em maldição da
independência.”. (FANON, 1968, p. 77)
Da sua consequência, há que se fazer a ressalva de questionar o
colonialismo para além da ocupação territorial, visto que a divisão de
fronteiras, com a independência da colônia, não afasta sua herança maldita.
Mantém-se, o prenúncio progressista do êxito consequente aos
processos de colonização:
Quando um país colonialista, coagido pelas reivindicações de
independência de uma colônia, proclama diante dos dirigentes
nacionalistas: "Se querem a independência, ei-la, voltem à Idade
Média", o povo recém-emancipado tende a aquiescer e aceitar o
repto. (FANON, 1968, p. 77)
Após a “libertação” dessas coloniais, os então Países têm suas
praticas econômicas restritas a disputa de restos, explico. Estão aptos a
explorar seus produtos locais resultado dos métodos de produção
ultrapassados com relação ao país colono, que, permite-se lucrar com o fato
de que: “(...) a economia nacional do período da independência não é
reorientada.” (FANON, 1968, p. 127)
Sempre passos atrás, essa atividade econômica desenvolve-se para a
migração forçada e a urbanização, tendo por base, praticas indesejáveis

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pelas potências imperialistas que sejam realizadas em seus territórios, o que
conduz a uma massa de explorados sem qualificação técnica e condições de
vida precárias ante a exploração dos detentores de capital.
Chega-se, a conclusão, que as praticas dominantes do imperialismo
também estão presentes no âmbito do estado-nação fruto do processo de
colonização. A destacar, o papel da burguesia colonizada em resultado de
transferência de ordem neocolonialista:
Como vemos, não se trata de uma vocação de transformar a
nação, mas prosaicamente de servir de correia de transmissão a
um capitalismo encurralado na dissimulação e que ostenta hoje a
máscara neocolonialista. A burguesia nacional vai deleitar-se,
sem complexos e com tôda dignidade, no papel de procuradora
da burguesia ocidental. (FANON, 1968. p. 127)
Não é de se espantar, a diversão “censurada” nos países
colonizados9:
Se se deseja uma prova dessa eventual transformação dos
elementos da burguesia ex-colonizada em organizadores de
parties para a burguesia ocidental. vale a pena evocar o que se
passou na América Latina. Os cassinos de Havana, do México,
as praias do Rio, as meninas brasileiras, as meninas mexicanas,
as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana, são ,estigmas
dessa depravação da burguesia nacional. (FANON, 1968, p.
128)
Em específico, a fruição do empresariado dos Estados Unidos na
América latina:
Atenda uma vez convém ter diante dos olhos o espetáculo
lamentável de certas repúblicas da América Latina, Com um
simples bater de asas, os homens de negócios dos Estados
Unidos, os grandes banqueiros, os tecnocratas desembarcam
"nos trópicos" e durante oito a dez dias afundam-se na doce
depravação que lhes oferecem suas "reservas". (FANON, 1968.
p. 128)
Feitas essas incursões, é preciso ter em mente como se deu o
progresso europeu e, de como essa penúria persiste no mundo globalizado,
nas palavras de Frantz Fanon: “O bem-estar e o progresso da Europa foram
construidos com o suor e o cadáver dos negros, árabes, índios e amarelos.
Convém que não nos esqueçamos disto.” (FANON, 1968, p. 77)

9
Praticas vedadas nas potências civilizadas, são escancaradas nas áreas oriundas do processo de
colonização (prostituição, exploração sexual, uso de drogas, festas...), é o paraíso do pecado
para os moradores do céu.

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No prefácio da obra “Os condenados da terra” de Frantz Fanon,
Jean-Paul Sartre realizou diagnóstico do humanismo europeu:
Encaremos primeiramente êste inesperado: o strip-tease de
nosso humanismo. Ei-lo inteiramente nu e não é nada belo: não
era senão uma ideologia mentirosa, a requintada justificação da
pilhagem; sua ternura e seu preciosismo caucionavam nossas
agressões. (SARTRE, 1968, p. 16)
Que, fez-se, através do poder de divisão de mundo do racionalismo
moderno, em que a matriz colonial é a sujeição do outro aos padrões
prevalentes, para tanto é invisibilizado e legitimada sua exclusão. Afinal, o
negro, o índio, o nativo, o escravo, o pobre, o estrangeiro, o homossexual, a
mulher, não são pensados como o sujeito de direitos, qual seja, o homem
europeu. Este, como discorrido acerca do eurocentrismo, constrói o
conhecimento legítimo e a ideologia humanista.
É por isso tudo, que, na tentativa de descolonização não se pode
desconsiderar a espúria condição dos países em razão da colonização,
adverte Fanon quanto à cautela a ser tomada para evitar a ilusão de que tais
práticas foram ultrapassadas:
A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico, isto é,
não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade,
não se torna transparente para si mesma senão na exata medida
em que se faz discernível o movimento historicizante que lhe dá
forma e conteúdo. (FANON, 1968. p. 179)
A referida obra analisada do autor trata de manifesto capaz de
revelar os perigos dos diversos mecanismos e operacionalizações hábeis a
sustentar o sistema imperialista, que se expandiu, conforme nossa tese, ao
discurso hegemônico de direitos humanos. É, a partir, da crítica à
concepção universalista da modernidade e ao colonialismo que se permite
analisar as violações e exclusão promovida pela ideologia humanista dos
Direitos Humanos.
Nas palavras de José-Manuel Barreto: “Na medida em que essa
conexão é feita, é evidente que a teoria hegemônica dos direitos humanos é
o fruto de uma perspectiva particular fundamentada em um contexto
histórico e geográfico.” (BARRETO, 2013, p. 05, tradução nossa)10
3. DA PERSPECTIVA DESCOLONIAL DOS DIREITOS
HUMANOS

10
“(…) as such a connection is made, it is evident that the hegemonic theory of human rights is
the offspring of a particular perspective grounded on a historical and geographical context.”
(BARRETO, 2013, p. 05)

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O descolonialismo consiste em movimento crítico no âmbito da América
Latina que busca o pluralismo na produção do saber, o que implica na
ruptura com a construção eurocêntrica do conhecimento, bem como,
identificar às contradições entre a modernidade e as práticas espúrias do
colonialismo. Retoma-se a história, a partir das zonas marginalizadas pela
tradição.11
Seguindo esse prelo, à ideologia dominante de direitos humanos
resulta ser ápice no curso da histórica ocidental, já que tais direitos
cumprem papel central diante da noção de progresso social e da
racionalidade moderna do homem.
Nesse inter, o ideal do projeto racional moderno pautado nos valores
europeus foi determinante à difusão prevalente da ideologia humanista, o
que se percebe das diversas manifestações de violência ao longo dos
processos de colonização, independência e seu consequente.
3.1. (DES)COLONIALISMO E PRODUÇÃO DO
SABER
A crítica emerge da perspectiva descolonial ao ser exposta a
problemática existente na produção do saber ético-jurídico-político, pela
demonstração dos influxos das relações de poder e violência manifestada
nos direitos humanos, tendo em vista a herança decorrente das teorias
modernas e processos coloniais.
Destarte, o pensamento descolonial compreende a modernidade em
relação com o colonialismo, isto porque o projeto de construção do sujeito
racional e implementação da ideologia humanista se deu pela exploração
das colônias com a exclusão, submissão e sujeição do colonizado. Este,
despido da humanidade do homem europeu, pelo contrário, é o seu
inimigo, o desumano.
Acerca desse viés crítico, destaca-se o cenário abrangente dos
estudos descoloniais, que resulta da análise entre colonialidade e
modernidade a partir da conquista da América, na síntese feita:
(...) o pensamento descolonial nasce nos primórdios da
Modernidade, ainda que sempre em condição periférica.

11
A destacar obras que revelam a tradição narrativa dos direitos humanos atreladas ao
Eurocêntrico: A era dos direitos (BOBBIO, 2004); The philosophy of right (HEGEL, 1967);
Filosofia dos direitos humanos. (BIELEFELDT, 2000); A afirmação histórica dos direitos
humanos (COMPARATO, 2007).

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Começa com Poma de Ayala, manifesta-se nas lutas de
contestação colonial e na independência do Haiti. Porém,
somente nas duas últimas décadas adquire visibilidade,
especialmente por meio de um grupo de pensadores latino-
americanos organizados em torno do Projeto
Modernidade/Colonialidade, quais sejam: Enrique Dussel,
Aníbal Quijano, Walter Mignolo, Edgardo Lander, Arthuro
Escobar, Fernando Coronil, Javier Sanjinés, Catherine Walsh,
Nelson Maldonado-Torres, Lewis Gordon, Ramon Grosfoguel,
Eduardo Mendieta, Santiago Castro-Gomez, entre outros.
(BRAGATO, 2014, p. 210)
A Professora Fernanda Bragato 12 , em seu artigo “Para além do
discurso eurocêntrico dos direitos humanos: contribuições da
descolonialidade”, afirma que é preciso problematizar as concepções
histórico-geográficas e antropológico-filosóficas sobre as quais se assenta o
discurso dominante dos direitos humanos, pois tem relação com o projeto
moral da modernidade ocidental.
A leitura da concepção atual dos direitos humanos demanda
reconhecer o epicêntro do continente europeu e o projeto resiliente da
modernidade, nesse pesar, Micheline R. Ishay, afirma que o universalismo
moral dos direitos humanos nasceu na Europa e tem plena consonância
com a tradição liberal, em sua obra intitulada, “The history of human
rights: from ancient times to the globalization era”. (ISHAY, 2008)
Logo, o europeu se mostrou hábil a contar a história, da geopolítica
dominante anuncia o conhecimento legítimo 13 , e silencia o que deseja,
atenta-se para a obra de Michel-Rolph Trouillot, “Silencing the past: Power
and the Production of History”. Sob o prenúncio da falsa universalidade do

12
De autoria da Professora Bragato, veja artigos em que trata de concepções contra-
hegemônicas acerca dos direitos humanos, ao fazer resgate de pensadores desconsiderados pelo
epicentro europeu: Contribuições teóricas latino-americanas para a universalização dos
direitos humanos. Revista Jurídica (Brasília), v.13, p.11 - 31, 2011; Raízes históricas dos
direitos humanos na conquista da América: o protagonismo de Bartolomé de Las Casas e da
Escola de Salamanca. Cadernos Camilliani, v.12, p.29 - 42, 2011; A contribuição do
pensamento de Felipe Guaman Poma de Ayala para repensar o discurso hegemônico dos
direitos humanos In: A Realização e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos
Fundamentais - Desafios do Século XXI. ed.Joaçaba : Ed. UNOESC, 2011, p. 581-596.
13
No caso do direito, destaca Bauman a racionalidade legitimadora do campo jurídico,
privilegia-se o porta-voz que é europeu: (...) deu aos encarregados dos papéis intelectuais o
direito (e o dever) de dirigir-se à nação em nome da razão, situando-se acima das divisões
partidárias e dos interesses materiais sectários. E também vinculou ao seu pronunciamento a
veracidade e a autoridade moral exclusivas que só uma posição de porta-voz pode conferir.
(BAUMAN, 2010. p. 40)

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homem Faustiano, constrói-se a história e excluem-se as possibilidades do
saber periférico. (TROUILLOT, 1995)
Em sua oposição, os estudos descoloniais consistem na
desobediência epistêmica dos padrões prevalentes estabelecidos pelo
eurocêntrico, que tem consistência no saber científico e escolástico através
da racionalidade, capaz de funcionar como critério hierarquizador do
humano. Desse modo, há que se perceber a relação de dependência
resultante da dominação de mundo e do conhecimento, para que se
pretenda descolonizar o saber.
Quanto ao escopo precípuo da perspectiva descolonial, Fernanda
Bragato aponta que se almeja “(...) demonstrar que, por trás de uma
aparente neutralidade, subjaz um projeto de invisibilidade e opressão
humana, reforçado pela ideia de raça e pelo exercício de um poder de
matriz colonial.” (BRAGATO, 2014, p. 206)
A relacionar, com o processo de dominação, que conduziu a
formação de grupos minoritários e vulneráveis, pois o colonizado –
produto/subalterno/invisível – não é o sujeito racional, livre e autônomo
professado pela modernidade.
3.2. DIMENSÃO DO HUMANO E COLONIALIDADE DOS
DIREITOS HUMANOS
Diante desse cenário, tem-se por imprescindível atentar ao curso
dos processos de colonização promovidos pelos países europeus. No intuito
de demonstrar a relação das praticas espúrias da colonização com a
construção do humano e a ideologia eurocêntrica.
Inicialmente, cumpre observar a dimensão de Humanidade nesse
processo dito por civilizatório, revela-se a colonialidade de mundo com a
divisão entre colonos e colonizados:
A discussão do mundo colonial pelo colonizado não é um
confronto racional de pontos de vista. Não é um discurso sobre o
universal, mas a afirmação desenfreada de uma singularidade
admitida como absoluta. O mundo colonial é um mundo
maniqueísta. (FANON, 1968, p. 30)
Nesses termos, produz-se o subhumano, inumano e até antihumano:
Não basta ao colono afirmar que os valôres desertaram, ou
melhor jamais habitaram, o mundo colonizado. O indígena é
declarado impermeável à ética, ausência de valores, como
também negação dos valôres. É, ousemos confessá-lo, o inimigo
dos valôres. Neste sentido, é o mal absoluto. (FANON, 1968, p.
31)

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De tal modo, a hipótese vislumbrada é de que a concepção
humanista e os Direitos Humanos tem seu discurso pautado nos ideais
universais mas que está atrelado às praticas colonizadoras. Que, se faz com
a conquista de mundo, através da produção da identidade, a destacar, a
afirmação de Alberto Quijano de que o fenótipo da “raça” nada tem de
natural. Essa metódica de poder persiste, o que o autor denomina de
“Colonialidade do Poder”. (QUIJANO, 2008)
Percebe-se, que, a lógica das violações e praticas extirpadoras
iniciadas no processo colonial não foram deixadas de lado, manteve-se a
proposta imperialista durante todo o processo da civilização moderna. Em
resgate remissivo, busca-se fazer o link da passagem ao pós-colonialismo e
a formação do senso comum dos Direitos Humanos:
A segunda metade do século XX foi um período de
descolonização em massa pelo mundo afora. A causa e a
consequência imediatas dessa descolonização foram uma
mudança importante na dinâmica do poder no sistema
interestados, como resultado do alto grau de organização dos
movimentos de libertação nacional. (...) A linguagem retória
então a um conceito que veio a ter novo significado e força na
época pós-colonial: os direitos humanos. (WALLERSTEIN,
2007, p. 42/43)
O curso da humanização não se opôs a dominação e concentração
de poder, que se deu na ocupação da colônia, sua libertação e consequente
inclusão no âmbito internacional como estado-nação. Da fala de Robert
Cooper, consultor do governo britânico, resta patente o viés do
imperialismo pós-moderno:
O que é necessário, então, é um novo tipo de imperialismo, um
aceitável para o mundo de direitos humanos e valores
cosmopolitas. Já podemos discernir o seu contorno: um
imperialismo em que, como tudo o imperialismo, tem por
objetivo trazer ordem e organização, mas que repousa hoje sobre
o princípio do voluntariado. (COOPER, 2002, tradução)14
Esse pretenso voluntarismo é elemento simbólico permissivo ao
controle e vigilância, pois sob o prenúncio da liberdade e autonomia se
oculta o arbitrário e a violência, assim, dá-se a representação de mundo na

14
What is needed then is a new kind of imperialism, one acceptable to a world of human rights
and cosmopolitan values. We can alerady discern its outline: an imperilism which, like all
imperialism, aims to bring order and organisation but which rests today on the voluntary
principle. (COOPER, 2002)

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atualidade, a ignorância dos abusos é característica da experiência dóxica. 15
Em sua oposição, vê-se o dever de genealogia, contrariamente a
história produzida pelo homem europeu, pugna-se por retirar o polo
discursivo do centro europeu, e atentar aos aspectos marginalizados pela
história incorporada em busca de um resgate crítico das praticas
anticolonialistas desses direitos. O que determina a visão de mundo e
definição do sujeito, é por isso que não se pode almejar o idealismo de um
retorno às origens, mas, a resistência à violência e institucionalização.
Nesse diapasão, é preciso relocar o papel do colonialismo na
construção da modernidade, ao percebermos a correspondência do projeto
imperialista dos países europeus e o ideal civilizatório da modernidade,
pois: “A história do sistema-mundo moderno tem sido, em grande parte, a
história da expansão dos povos e dos estados europeus pelo resto do
mundo.” (WALLERSTEIN, 2007, p. 29)
Faz-se relação da praxis imperialista, com a crítica ao aparato
normativo da modernidade. Acerca da sujeição à Lei Moderna, cito trecho
da obra de Peter Fitzpatrick a denotar o falso transcendental e universal do
humano:
(...) A realidade e suas divisões não mais obtinham sua
identidade do seu lugar dentro de uma ordem mítica abrangente
- elas eram manifestações de um processo de descoberta e
realização. Quando esse processo atinge os limites de sua
apropriação do mundo, o Iluminismo cria os verdadeiros
monstros ao quais ele se contrapõe tão assiduamente. Esses
monstros da raça e da natureza indicam os limites exteriores, o
"outro" intratável contra o qual o Iluminismo volta a vacuidade
do universal e, nessa oposição, confere ao seu próprio projeto
um conteúdo palpável. Uma existência esclarecida é aquilo que
o outro não é. A lei moderna foi criada nessa
disjunção. (FITZPATRICK, 2007, p. 74)
A produção é conduzida nesse arbítrio demonstrado pelo autor, com
a abertura suportada pela mítica valorativa dos ideais humanistas, tem-se a
predisposição dominante. O que permaneceu no mundo hodierno com as
práticas neocolonialistas, em específico, faz-se menção a abordagem de

15
O poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo poder quase mágico que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou economica), graças ao
efeito específico de mobilização, só se exercer se for reconhecido, quer dizer, ignorado como
arbitrário. (BOURDIEU, 2006, p.14)

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René Girard do “Bode Expiatório”, destaca-se, a posição do inimigo
declarado no combate ao terrorismo. (GIRARD, 2004)
Logo, é imperiosa a análise dos institutos atrelados à visão moderna
de mundo, traz-se a título de exemplo, soberania, lei, território, estado...
Não porque esses institutos denotam explicitamente a concepção de
modernidade, mas, sim, como âmago capaz de iludir e dissimular as
praticas espúrias da colonização.
Nessa concepção, o contrassenso legal desponta ser fator
determinante à construção política da sociedade democrática e suas
discrepâncias.
Como visto, o paradoxo da universalidade diz respeito à dimensão
imanente do ideal de humanidade, questiona-se tal fonte moral de essência,
capaz de justificar a produção dos Direitos Humanos. Isto porque, a
humanidade não contém significado estático e inquestionável.
Dito isto, identifica-se a propensão do conceito de humanidade nos
processos coloniais, como suporte transcendental à construção do humano.
Por mais que se afirmem inerentes esses direitos, as vicissitudes são
inegáveis, o que poderia parecer “contraditório” 16 , pois aquele que o
promove é o seu maior violador:
De um testemunho judicial às vicissitudes da saga direitos
humanos, percebe-se que estes não são simplesmente "um
conceito ocidental". Como mostra as evidências históricas, o
Ocidente tem sido também um inimigo -o mais mortal?- À sua
existência. Tanto quanto o Ocidente produziu tratados,
manifestos e documentos legais que consagram esses direitos,
como também foi o deflagrador em grande escala de crimes
inomináveis como o colonialismo –longo período de "violação
dos direitos humanos"- bem como as atrocidades nazistas.
(BARRETO, 2013, p. 18, tradução nossa)17

16
Para Derrida, o État Voyou, Rogue State, ou Estado Vadio é: “(...) o Estado que não respeita
os seus deveres de Estado diante da lei da comunidade mundial e as obrigações do direito
internacional, o Estado que ultraja o direito – e que troca do Estado de direito.” (DERRIDA,
2005, p. 33) E, o que poderia ser uma surpresa, mas não é, que segundo Derrida os Estados
Unidos da América é o maior Rogue State, afinal exerce a razão do mais forte em oposição ao
discurso prevalente, quando não contempla seus interesses.
17
For a judicious witness to the vicissitudes of the human rights saga they are not simply “a
Western concept”. As historical evidence shows, the Occident has been also an enemy―the
deadliest?―to their existence. As much as the West has produced treatises, manifestos and
legal documents that enshrine rights, the Occident has also been the perpetrator of large scale
and unspeakable crimes such as that of colonialism―an age long “violation of human
rights”―as well as the Nazi atrocities. (BARRETO, 2013. p. 18)

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Diante disso, permite-se conceber que o poder e a moralidade
humanitária não estão distantes um do outro. Em absoluto. O conhecimento
moral produzido revela-se adstrito às praticas dominantes, pois o campo de
produção pressupõe e constitui ao mesmo tempo relações de poder: “Não
há relação de poder sem a correlativa constituição de um campo de
conhecimento, nem qualquer conhecimento que não pressuponha e
constitua ao mesmo tempo relações de poder.” (FOUCAULT, 1979, p. 27,
tradução nossa)18
A construção colonial na modernidade definiu universalmente o
sujeito de direitos, a bem da verdade, o humano, atrelado aos padrões do
eurocentrismo.
Nesse sentido, aponta-se aspecto do processo colonial espanhol na
América latina, em específico, o debate Las Casas e Sepulveda, que nos
permite compreender os métodos de operacionalização da ideologia
dominante. Atenta-se, ao aspecto excludente do universalismo, pois é
capital para o direito tornar algo absoluto e depois estabelecer seus
limites.19
Sepúlveda concebeu que o colonizado deve ser dizimado e
sacrificado por seus próprios males, por ser inumano e representar o mal,
tem de ser extirpado. Em oposição, Las Casas professou crítica ao método
de Encomienda (submissão dos indígenas a ordem religiosa através da
escravidão para salvação de suas almas), pois reconheceu a importância da
catequização, de submissão aos ideais europeus e cristãos sem a violência
que segundo ele iria extirpar a possibilidade de humano dos indígenas.
Destarte, as tribos indígenas não deixaram de ser selvagens
inferiorizados, consequentemente, sujeitos a inclusão no discurso
humanista para adoção da imagem do europeu.
Conclui-se, que, cada qual, mostrou-se servível a agregar o ideal
humanista europeu. Muito embora, caiba destacar o combate à violência
física sem limites feita por Las Casas. (LAS CASAS, 1986)
Nesse sentido, faz-se ligação histórica dos eventos coloniais à
hegemonia dos direitos humanos, pois o exercício de violência e

18
There is no power relation without the correlative constitution of a field of knowledge, nor
any knowledge that does not presuppose and constitute at the same time power relations.
(FOUCAULT, 1979, p. 27)
19
Referência ao texto de Enrique Dussel, intitulado “Las casas, Vitoria and Suárez, 1514-1317”
que integra a obra: “Human Rights from a Third World Perspective: Critique, History and
International Law”, organizada por José-Manuel Barreto.

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operacionalidade das instituições preserva ambos os métodos de tratativa
para com o subalterno. Às vezes com uma violência corporal, ou, através
da submissão institucional e simbólica, ambos se conjugam nas práticas
legítimas em nome dos direitos humanos.
Logo, conclui-se que, cada qual, mostrou-se servível a agregar o
ideal humanista europeu. Nesse sentido, faz-se ligação histórica dos
eventos coloniais à hegemonia do discurso ocidental de Direitos Humanos.
Sem esquecer-se do dever de genealogia, em contraposição a
história produzida pelo homem europeu, pugna-se por retirar o polo
discursivo da razão eurocêntrica, e atentar aos aspectos marginalizados pela
história incorporada em busca de um resgate crítico das praticas
anticolonialistas desses direitos.
Assim, em contraposição a história produzida pelo homem europeu,
pugna-se por retirar o polo discursivo da razão eurocêntrica, e atentar aos
aspectos marginalizados pela história incorporada em busca de um resgate
crítico das praticas anticolonialistas desses direitos.
Destaca-se, o contexto revolucionário em San Domingo no Haiti na
obra “Os jacobinos negros: Toussaint L'Ouverture e a revolução de São
Domingos”, escrita por C. L. R. James. (C.L.R., 2000)
Há que se pontuar, que a secção temporal colonialista abrange uma
tradição de cinco séculos:
(…) desde o início da modernidade, em momentos e lugares
diferentes, as ideias de direitos naturais e direitos humanos têm
sido aproveitadas pelos povos colonizados a se opor ao
imperialismo e aos abusivos regimes nacionais, empreendimento
cultural e político que já constitui longa tradição de cinco
séculos. (BARRETO, 2013, p. 19, tradução nossa)20
À mencionar, a conquista da América como marco divisor da
modernidade, em contrariedade a cronologia acadêmica tradicional (que
enaltece o contexto intraeuropeu, renascimento, as revoluções liberais…):
“Um dos princípios fundamentais da historiografia dos direitos neste
horizonte de compreensão é a idéia segundo a qual a história dos direitos
humanos na modernidade começa com a conquista da América.

20
(...) since the very beginning of modernity, at different times and in different places, the ideas
of natural rights and human rights have been seized upon by colonized peoples to oppose
imperialism and abusive national regimes, a cultural and political endeavor that already
constitutes a five centuries long tradition. (BARRETO, 2013, p. 19)

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(BARRETO, 2013, p. 20, tradução nossa)21
Com essas constatações, em relação ao exercício de resistência das
epistemologias, cumpre destacar as acepções de transmodernidade de
Enrique Dussel e geopolítica do conhecimento de Walter Mignolo.
Da transmodernidade, vê-se uma releitura crítica do conceito de
modernidade, ao expor a falibilidade de seu discurso de feição universal
sob o pressagio de emancipação racional, pois tem localização específica,
visto que a Europa se tornou o centro da produção do saber e da história.
Capaz, de atribuir a visão de mundo legítima, mas, não como um processo
reservado aos europeu, pelo contrário, demanda a inferioridade do colono,
logo, a colonialidade é determinante ao moderno. Comenta José-Manuel
Barreto sobre a necessidade de ultrapassar a crítica das teorias pós-
modernas:
(...) é evidente na noção de 'transmodernidade', uma ideia
formulada por Enrique Dussel a fim de ir além da teoria “pós-
moderna”- que consiste em uma perspectiva crítica que visa
transcender a modernidade a partir dela e dessa crítica pós-
moderna, que, ao fazê-lo, continua a ser uma crítica eurocêntrica
da modernidade. (BARRETO, 2013, p. 34, tradução nossa) 22
Ademais, os próprios colonizados reproduzem a lógica prevalente,
veremos no tópico seguinte relato crítico de Frantz Fanon acerca do sujeito
produzido da colonização no continente africano, o que não foi diferente
em terra brasilis. É preciso confrontar o próprio colonizado que existe
dentro de cada um de nós. Pois bem.
Da colonização e sua macula, na obra de Chandra Muzaffar faz-se
noticiamento à dimensão alcançada pelos processos coloniais:
Enquanto os direitos humanos expandiam-se entre o povo
branco, os impérios europeus infligiam terríveis erros humanos
sobre os habitantes de cor do planeta. A eliminação das
populações nativas das Américas e da Australásia e a escravidão
de milhões de africanos durante o tráfico de escravos europeu
foram duas das maiores tragédias dos direitos humanos da época

21
One of the key tenets of the historiography of rights in this horizon of understanding is the
idea according to which the history of human rights in modernity starts with the Conquest of
America. (BARRETO, 2013, p. 20)
22
This is evident in the notion of ‘transmodernity’, an idea formulated by Enrique Dussel in
order to go beyond ‘postmodern’ theory—a critical perspective that aims at transcending
modernity from within and that, in doing so, remains a Eurocentric critique of modernity.
(BARRETO, 2013. p. 34)

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colonial. Claro, a supressão de milhões de asiáticos em quase
toda parte do continente durante os longos séculos de dominação
colonial também foi outra calamidade colossal dos direitos
humanos. Colonialismo ocidental na Ásia, Austrália, África e
América Latina representou a mais maciça e sistemática
violação dos direitos humanos já conhecida na história. (sem
grifo no original) (MUZZAFAR, 1999, p. 26)
Cumpre destacar, o papel da racionalidade como critério imanente da
concepção de humanidade, capaz de definir o sujeito moderno, para isso
estabelece flagrantes divisões entre o europeu e o bárbaro (outro), muito
embora professe a universalidade, destaco menção da Professora Fernanda
Bragato à Santiago Castro-Gomez, sobre a modernidade que:
(...) é uma máquina geradora de alteridades que, em nome da
razão e do humanismo, exclui de seu imaginário a hibridez, a
multiplicidade, a ambigüidade e a contingência das formas de
vida concretas. (BRAGATO, 2014, p. 222)
A tornar frutífero esse esforço crítico, demanda-se a análise da
geopolítica do conhecimento, para consequente estorno do ponto vista
dominante, em busca da produção de uma(s) contramemória(s) à história
incorporada, e, assim, repensar a teoria dos direitos humanos. Para além do
eurocentrismo, atenta-se às margens (contraponto histórico dos oprimidos).
Walter Mignolo, ao conceber o conceito de geopolítica do
conhecimento impele seja deixado de lado o foco na origem da verdade,
pois se dá nas relações de poder e conhecimento, mister à percepção dos
rastros históricos das construções de verdades, nas palavras de José-Manuel
Barreto:
A geopolítica do conhecimento é uma epistemologia
contextualista na medida em que encontra na política e na
história os fundamentos para o conhecimento. No entanto, a
geopolítica do conhecimento não busca localizar a fonte de
"verdade" em um quadro sócio-econômico com as implícitas
fronteiras nacionais, mas no meio da história do mundo
moderno considerada como um todo -se afasta da história do
capitalismo mundial, ou, o que é o mesmo, imperialismo
moderno, ou seja, a história das relações entre impérios e
colônias desde o final do século XV. (BARRETO, 2013, p. 03,
tradução nossa)23

23
The geopolitics of knowledge is a contextualist epistemology in as much as it finds in politics
and history the grounds of knowledge. However, the geopolitics of knowledge does not locate
the source of “truth” in a socioeconomic framework with implicit national borders, but in the
milieu of the history of the modern world considered as a whole—it departs from the history of

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O pensador Boaventura de Sousa Santos, em seu artigo enunciado
“Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de
saberes”, demonstra a polaridade da produção do saber, em que desde a
modernidade ocidental está presente o pensamento abissal predatório, de
qualquer conhecimento que não se limite ao cientificismo da epistemologia
do norte, o que persiste nos dias de hoje, cito:
(...) argumenta-se que as linhas cartográficas “abissais” que
demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial subsistem
estruturalmente no pensamento moderno ocidental e
permanecem constitutivas das relações políticas e culturais
excludentes mantidas no sistema mundial contemporâneo.
(SOUSA SANTOS, 2007, p. 01)
É por isso que se tem por necessário opor-se ao que foi construído,
ao homem europeu dos direitos humanos que há em cada um dos
colonizados, resultante do processo de colonização:
Assim a Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou
classes e por vezes racismos, tentou por todos os meios provocar
e incrementar a estratificação das sociedades colonizadas. Fanon
não dissimula nada: para lutar contra nós, a antiga colônia deve
lutar contra ela mesma. (SARTRE, 1968, p. 06)
Para sintetizar, busca-se, pela exposição da produção do saber
eurocêntrico apontar-se a relação entre modernidade e colonialidade, bem
como a construção do sujeito concreto nas praticas de dominação colonial
suportada pela ideologia humanista, na qual, o locus legítimo de
enunciação é o ocidente moderno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No presente artigo, destacou-se, o posicionamento crítico acerca dos
Direitos Humanos com ênfase no descolonialismo, em face das praticas
suplantadas pela concepção humanista no curso dos processos coloniais e
seu consequente.
Fez-se, a construção do presente artigo com vistas a estabelecer
correlação entre os processos coloniais e a concepção hegemônica dos
direitos humanos na contemporaneidade, a perceber como a sujeição do
outro permanece na dita pós-modernidade.
Em contrariedade à tradição eurocêntrica, apontou-se o
perspectivismo histórico e a análise de geopolítico do conhecimento, a
considerar o poder infirmado na produção e expansão desses direitos, em

world capitalism or, what is the same, modern imperialism, ie the history of the relations
between empires and colonies since the late Fifteenth century. (BARRETO, 2013, p. 03)

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que permanece a validação do legítimo pelo epicentro europeu e a
colonialidade.
Assim sendo, em oposição à ideologia prevalente, deve-se considerar
a produção do conhecimento no terceiro mundo, a permitir a manifestação
cultural exógena ao epicentro do saber. Que, independa de sua validação
humanitária, isto, para cumprir com a cautela necessária capaz de fugir a
lógica do eurocêntrico.
E, a partir disso, propõe-se um resgate da memória extirpada com
relação a fatos históricos, correntes desde o processo de colonização, que
foram determinantes à formação hegemônica de tais direitos.
Pois, muito embora, os Direitos Humanos possuam origem
particular no âmbito Europeu, almejam submissão de forma universal, é o
que professa seu discurso hegemônico.
Segundo Costa Douzinas, os Direitos Humanos sofreram uma
mutação de uma possível defesa contra o poder para a modalidade de suas
operações, que não se reconhece como tal, pois, sucedem ao fim da
história, e, apesar de não possuírem um significado comum, unificam as
mais díspares pessoas e instituições no cosmopolitanismo global.
Percebe o autor, um cinismo pós-moderno visto que esses valores
estão em contínua discrepância com as praticas que legitima, é patente, à
disparidade entre o discurso simbólico e a realidade vivenciada.
Fez-se investigação histórica para demonstrar a experiência
infirmada nesses direitos que se estendeu aos países colonizados com a
dominação europeia do terceiro mundo. Nesse sentido, foi analisado o
relato historigráfico de Frantz Fanon das diversas etapas do processo de
colonização e seu posteriori, resultante do projeto imperialista de
dominação conduzida pelos Países Ocidentais.
A despeito disso, tem-se crítica comprometida em questionar as
praticas ditas civilizatórias, residentes na cruzada cultura inserta ao ideal
racional do homem moderno.
Assim sendo, torna-se imperioso demover o ideal humanista em
remissivo da sua construção expansivista e colonial.
Conclui-se, que, a ideologia hodierna dos Direitos Humanos tem
relação imperiosa com os processos colonialistas. Para além do
eurocentrismo, atenta-se às margens:
Este distinto pano de fundo histórico e geopolítico pode
modificar os termos, conceitos e agenda da teoria e da prática
dos direitos humanos. O intérprete é consciente também do fato

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de que sua perspective -a do terceiro-mundo- posiciona-se em
desacordo com outra perspective- a da Europa. A crítica ocorre
nesta mudança de pontos de vista, que ao mesmo tempo cria as
condições para tentar uma abordagem nova e independente da
tradição dos direitos naturais e humanos, para assim possibilitar
um diálogo entre estes dois pontos de vista. (BARRETO, 2013,
p. 07, tradução nossa)24
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para repensar o discurso hegemônico dos direitos humanos”In: A
Realização e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos

24
This distinct historical and geopolitical background can modify the terms, concepts and
agenda of the theory and practice of human rights. The interpreter is also conscious of the fact
that her perspective—that of the Third World—stands at variance with another perspective—
that of Europe. The critique occurs in this shifting of viewpoints, which at the same time creates
the conditions for attempting a novel and independent approach to the tradition of natural and
human rights, as well as for making possible a dialogue between these two points of view.
(BARRETO, 2013, p. 07)

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