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DIREITOS HUMANOS, O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE

HUMANA E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

DIREITOS HUMANOS, O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A


CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

Revista dos Tribunais | vol. 833/2005 | p. 41 - 53 | Mar / 2005


Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 1 | p. 305 - 322 | Ago / 2011
Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade Social | vol. 1 | p. 511 -
528 | Set / 2012
DTR\2005\203

Flavia Piovesan
Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Professora de Direitos Humanos dos programas de
Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Visiting fellow do Human Rights Program da Harvard
Law School (1995, 2000 e 2002). Procuradora do Estado de São Paulo.
 
Área do Direito: Constitucional; Internacional; Fundamentos do Direito

Sumário:  
1. Introdução - 2. Concepção contemporânea de direitos humanos, sistema internacional
de proteção e o valor da dignidade humana - 3. O princípio da dignidade humana e a
constituição brasileira de 1988 - 4. A dignidade humana como o princípio fundamental
maior do direito interno e do direito internacional
 

1. Introdução

O objetivo deste ensaio é propor uma reflexão a respeito dos direitos humanos e do
princípio da dignidade humana, com ênfase em seu impacto no constitucionalismo, em
especial o inaugurado com a Carta de 1988.

Para tanto, preliminarmente, será enfocada a concepção contemporânea de direitos


humanos e o modo pelo qual dialoga com o valor da dignidade humana. Será, assim,
analisado o sistema internacional de proteção dos direitos humanos, avaliando-se o seu
perfil, os seus objetivos, a sua lógica e principiologia e, particularmente, a forma pela
qual introjeta o valor da dignidade humana. O sistema internacional de proteção dos
direitos humanos constitui o legado maior da chamada "Era dos Direitos", que tem
permitido a internacionalização dos direitos humanos e a humanização do Direito
Internacional contemporâneo, como atenta Thomas Buergenthal 1.

Em um segundo momento, será avaliado o princípio da dignidade humana no contexto


do constitucionalismo inaugurado no Brasil, com a Carta de 1988.

Por fim, serão lançadas considerações sobre o princípio da dignidade humana, como
referência ética maior a orientar a ordem jurídica interna e internacional.

2. Concepção contemporânea de direitos humanos, sistema internacional de


proteção e o valor da dignidade humana
     
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DIREITOS HUMANOS, O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE
HUMANA E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído,
uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução 2.
Considerando a historicidade destes direitos, pode-se afirmar que a definição de direitos
humanos aponta a uma pluralidade de significados. Tendo em vista tal pluralidade,
destaca-se neste estudo a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que
veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de 1948 e reiterada pela
Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.

Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que


constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-
guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo.
Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a era Hitler foi
marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, que resultou
no envio de 18 milhões de pessoas a campos de concentração, com a morte de 11
milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais, ciganos, etc. O
legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de
sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça - "a raça pura ariana". No dizer de
Ignacy Sachs, "o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror
absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial" 3.

É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como
paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a 2.ª
Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a
sua reconstrução.

Neste sentido, em 10 de dezembro de 1948, é aprovada a Declaração Universal dos


Direitos Humanos, como marco maior do processo de reconstrução destes direitos.
Introduz ela a concepção contemporânea de direitos humanos, caracterizada pela
universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela
extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o
requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a
garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais,
econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o
são. Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e
inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo
de direitos sociais, econômicos e culturais.

Ao examinar a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, leciona Hector


Gros Espiell: "Só o reconhecimento integral de todos estes direitos pode assegurar a
existência real de cada um deles, já que sem a efetividade de gozo dos direitos
econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras
categorias formais. Inversamente, sem a realidade dos direitos civis e políticos, sem a
efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos,
sociais e culturais carecem, por sua vez, de verdadeira significação. Esta idéia da
necessária integralidade, interdependência e indivisibilidade quanto ao conceito e à
realidade do conteúdo dos direitos humanos, que de certa forma está implícita na Carta
das Nações Unidas, se compila, se amplia e se sistematiza em 1948, na Declaração
Universal de Direitos Humanos, e se reafirma definitivamente nos Pactos Universais de
     
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Direitos Humanos, aprovados pela Assembléia Geral da ONU em 1966, e em vigência


desde 1976, na Proclamação de Teerã de 1968 e na Resolução da Assembléia Geral da
ONU, adotada em 16 de dezembro de 1977, sobre os critérios e meios para melhorar o
gozo efetivo dos direitos e das liberdades fundamentais (Resolução 32/130)". 4

Em face da indivisibilidade dos direitos humanos, há de ser definitivamente afastada a


equivocada noção de que uma classe de direitos (a dos direitos civis e políticos) merece
inteiro reconhecimento e respeito, enquanto outra classe de direitos (a dos direitos
sociais, econômicos e culturais), ao revés, não merece qualquer observância. Sob a ótica
normativa internacional, está definitivamente superada a concepção de que os direitos
sociais, econômicos e culturais não são direitos legais. A idéia da não-acionabilidade dos
direitos sociais é meramente ideológica e não científica 5. São eles autênticos e
verdadeiros direitos fundamentais, acionáveis, exigíveis e que demandam séria e
responsável observância. Por isso, devem ser reivindicados como direitos e não como
caridade ou generosidade.

A Declaração Universal de 1948, na qualidade de marco maior do movimento de


internacionalização dos direitos humanos, fomentou a conversão destes direitos em
tema de legítimo interesse da comunidade internacional. Como observa Kathryn Sikkink:
"O Direito Internacional dos Direitos Humanos pressupõe como legítima e necessária a
preocupação de atores estatais e não estatais a respeito do modo pelo qual os
habitantes de outros Estados são tratados. A rede de proteção dos direitos humanos
internacionais busca redefinir o que é matéria de exclusiva jurisdição doméstica dos
Estados." 6

Fortalece-se, assim, a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir
ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência nacional
exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse
internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta a duas importantes
conseqüências:

1. a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um


processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano
nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, transita-se de uma
concepção "hobbesiana" de soberania centrada no Estado para uma concepção
"kantiana" de soberania centrada na cidadania universal) 7;

2. a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera


internacional, na condição de sujeito de Direito.

Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus
nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua
soberania.

O processo de universalização dos direitos humanos permitiu, por sua vez, a formação
de um sistema normativo internacional de proteção destes direitos. Na lição de André
Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros: "Em termos de Ciência Política, tratou-se
apenas de transpor e adaptar ao Direito Internacional a evolução que no Direito Interno
já se dera, no início do século, do Estado-Polícia para o Estado-Providência. Mas foi o

     
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suficiente para o Direito Internacional abandonar a fase clássica, como o Direito da Paz e
da Guerra, para passar à era nova ou moderna da sua evolução, como Direito
Internacional da Cooperação e da Solidariedade". 8

A partir da aprovação da Declaração Universal de 1948 e a partir da concepção


contemporânea de direitos humanos por ela introduzida, começa a se desenvolver o
Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados
internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais. A Declaração de 1948
confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos Direitos Humanos. Como leciona
Norberto Bobbio, os direitos humanos nascem como direitos naturais universais,
desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora
as Declarações de Direito), para finalmente encontrarem sua plena realização como
direitos positivos universais 9.

O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema


internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado por tratados
internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea
compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional
acerca de temas centrais aos Direitos Humanos. Neste sentido, cabe destacar que, até
junho de 2001, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 147
Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
contava com 145 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 124
Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com
157 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher
contava com 168 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança
apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes 10.

A concepção contemporânea de direitos humanos caracteriza-se pelos processos de


universalização e internacionalização destes direitos, compreendidos sob o prisma de sua
indivisibilidade 11. Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993,
reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu § 5.º, afirma: "Todos os
direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade
internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e equitativa,
em pé de igualdade e com a mesma ênfase."

Logo, a Declaração de Viena de 1993, subscrita por 171 Estados, endossa a


universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos, revigorando o lastro de
legitimidade da chamada concepção contemporânea de direitos humanos, introduzida
pela Declaração de 1948. Note-se que, enquanto consenso do Pós-Guerra, a Declaração
de 1948 foi adotada por 48 Estados, com 8 abstenções. Assim, a Declaração de Viena de
1993 estende, renova e amplia o consenso sobre a universalidade e indivisibilidade dos
direitos humanos.

Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que


buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na
Europa, América e África. Adicionalmente, há um incipiente sistema árabe e a proposta
de criação de um sistema regional asiático. Consolida-se, assim, a convivência do

     
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sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado
pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos.

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados


pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de
proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas
de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. O
propósito da coexistência de distintos instrumentos jurídicos - garantindo os mesmos
direitos - é, pois, no sentido de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos. O
que importa é o grau de eficácia da proteção, e, por isso, deve ser aplicada a norma
que, no caso concreto, melhor proteja a vítima.

Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam,


interagindo com o sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior
efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a
lógica e principiologia próprias do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vale dizer,
a lógica do Direito dos Direitos Humanos é, sobretudo, uma lógica material, inspirada no
valor da dignidade humana. São aqui afastados os critérios da temporalidade (lei
posterior revoga lei anterior com ela incompatível) e da especialidade (lei especial
revoga a lei geral no que ela tem de especial). A lógica é exclusivamente material:
merece prevalência a norma mais benéfica, mais protetiva e mais favorável
(independentemente se anterior ou posterior, se geral ou especial). Nesta perspectiva,
em que a primazia é da pessoa humana, o ser humano é concebido como um fim em si
mesmo e jamais como um meio, como já explicitava Kant. É um ser essencialmente
moral, dotado de unicidade e de integridade, sob o manto da dignidade humana, valor
fonte da experiência jurídica.

Concluí-se que a Declaração Universal de 1948, ao introduzir a concepção


contemporânea de direitos humanos, acolhe a dignidade humana como valor a iluminar
o universo de direitos. A condição humana é requisito único e exclusivo, reitere-se, para
a titularidade de direitos. Isto porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é
inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser
humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema
internacional de proteção. Todos os tratados internacionais, ainda que assumam a
roupagem do positivismo jurídico, incorporam o valor da dignidade humana.

Sob o prisma jurídico, percebe-se que a primazia da pessoa, fundada na dignidade


humana, é resposta à aguda crise sofrida pelo positivismo jurídico. Tal crise é
emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha.
Estes movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro da
legalidade e promoveram a barbárie em nome da lei, como leciona Luis Roberto Barroso
12
. Basta lembrar que os principais acusados em Nuremberg invocaram o cumprimento
da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Neste mesmo
sentido, ressalta-se o julgamento de Eichmann em Jerusalém, em relação ao qual
Hannah Arendt desenvolve a idéia da "banalidade do mal", ao ver em Eichmann um ser
esvaziado de pensamento e incapaz de atribuir juízos éticos às suas ações. Neste
contexto, ao final da 2a Guerra Mundial, emerge a grande crítica e repúdio à idéia de um
ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, captado pela ótica meramente formal.
     
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Ora, como já dito, se a 2a Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-
Guerra deveria significar a sua reconstrução. É justamente sob o prisma da reconstrução
dos direitos humanos que é possível compreender, no Pós Guerra, de um lado, a
emergência do chamado "Direito Internacional dos Direitos Humanos", e, por outro, a
nova feição do Direito Constitucional ocidental, tamanho o impacto gerado pelas
atrocidades então cometidas.

Isto é, no âmbito do Direito Internacional, começa a ser delineado o sistema normativo


internacional de proteção dos direitos humanos. É como se se projetasse a vertente de
um constitucionalismo global, vocacionado a proteger direitos fundamentais e limitar o
poder do Estado, mediante a criação de um aparato internacional de proteção de
direitos. Note-se que estes eram exatamente os lemas do movimento do
constitucionalismo instaurado no final do século XVIII, que fizeram nascer as primeiras
Constituições escritas: limitar o poder do Estado e preservar direitos 13.

Por sua vez, no âmbito do Direito Constitucional ocidental, percebe-se a elaboração de


textos constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com
destaque ao valor da dignidade humana. Esta será a marca das Constituições européias
do Pós-Guerra. Observa-se, desde logo, que, na experiência brasileira e mesmo latino-
americana, a abertura das Constituições a princípios, e a incorporação do valor da
dignidade humana demarcarão a feição das Constituições promulgadas ao longo do
processo de democratização política - até porque tal feição seria incompatível com a
vigência de regimes militares ditatoriais. A respeito, basta acenar à Constituição
Brasileira de 1988, em particular à previsão inédita de princípios fundamentais, dentre
eles o princípio da dignidade da pessoa humana.

Feitas essas breves considerações a respeito da concepção contemporânea de direitos


humanos, do sistema internacional de proteção e do modo pelo qual incorporam o valor
da dignidade humana, transita-se à análise da Constituição Brasileira de 1988 e do
princípio da dignidade humana.

3. O princípio da dignidade humana e a constituição brasileira de 1988

No dizer de Jackman 14, "a Constituição é mais que um documento legal. É um


documento com intenso significado simbólico e ideológico - refletindo tanto o que nós
somos enquanto sociedade, como o que nós queremos ser." É com esta perspectiva que
há de se compreender a Carta de 1988.

A Constituição de 1988 é o marco jurídico da transição democrática e da


institucionalização dos direitos e garantias fundamentais. O texto demarca a ruptura com
o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático "pós
ditadura".

Introduz o texto constitucional avanço extraordinário na consolidação das garantias e


direitos fundamentais, situando-se como o documento mais abrangente e pormenorizado
sobre os Direitos Humanos jamais adotado no Brasil. A Carta de 1988 destaca-se como
uma das Constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito 'a matéria.
Ressalte-se, ainda, a influência no constitucionalismo brasileiro, das Constituições alemã
(Lei Fundamental - GrundGesetz, 23 de maio de 1949), portuguesa (02 de abril de

     
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1976) e espanhola (29 de dezembro de 1978), na qualidade de Constituições que


primam pela linguagem dos Direitos Humanos e da proteção à dignidade humana.

A Constituição de 1988 objetiva ainda fortalecer a tônica democrática, a partir da


Democracia Participativa, mediante a instituição de mecanismos de participação direta
da vontade popular (art.1.º, parágrafo único e art. 14). Delineia ainda, as molduras
jurídica de um Estado Democrático de Direito e estabelece políticas públicas na esfera
social, impondo tarefas aos Poderes Públicos no campo da educação, saúde, previdência
social, cultura, dentre outros.

Desde seu preâmbulo, a Carta de 1988 projeta a construção de um Estado Democrático


de Direito "destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)". Se no
entender de José Joaquim Gomes Canotilho, a juridicidade, a constitucionalidade e os
direitos fundamentais são as três dimensões e pressupostos do princípio do Estado de
Direito 15, percebe-se que o texto consagra amplamente essas dimensões, ao afirmar,
em seus primeiros artigos (arts. 1.º e 3.º da CF/1988 (LGL\1988\3)), princípios 16 que
consagram os fundamentos e os objetivos do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Dentre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito brasileiro


destacam-se a cidadania e dignidade da pessoa humana (art. 1.º, II e III, CF/1988
(LGL\1988\3)). Vê-se aqui o encontro do princípio do Estado Democrático de Direito e
dos direitos fundamentais, fazendo-se claro que os direitos fundamentais são um
elemento básico para a realização do princípio democrático.

Por sua vez, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento
nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e
regionais e promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação, constituem os objetivos fundamentais do
Estado brasileiro, consagrados no art. 3.º da Carta de 1988. No entender de José Afonso
da Silva: "É a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do
Estado brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e entre
eles, uns que valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a
democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da
pessoa humana". 17

Neste sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e
informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a
orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional 18.

Considerando que toda Constituição há de ser compreendida como uma unidade e como
um sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de
1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe doa unidade
de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988,
imprimindo-lhe uma feição particular.

Adotando-se a concepção de Ronald Dworkin 19, acredita-se que o ordenamento jurídico


é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem princípios que incorporam as

     
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exigências de justiça e dos valores éticos. Estes princípios constituem o suporte


axiológico que confere coerência interna e estrutura harmônica a todo sistema jurídico.
Neste sentido, a interpretação constitucional é aquela interpretação norteada por
princípios fundamentais, de modo a salvaguardar, da melhor maneira, os valores
protegidos pela ordem constitucional. Impõe-se a escolha da interpretação mais
adequada à teleologia, à racionalidade, à principiologia e à lógica constitucional. Como
leciona o professor Fábio Konder Comparato, se os princípios gerais do direito, de acordo
com a Lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400), constituiam uma fonte
secundária, subsidiária do direito, aplicável apenas na omissão da lei, hoje os princípios
fundamentais da Constituição Federal (LGL\1988\3) constituem a fonte primária por
excelência para a tarefa interpretatitva.

A luz desta concepção, infere-se que o valor da cidadania e dignidade da pessoa


humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais vêm a constituir os
princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos,
conferindo suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro. A partir dessa nova
racionalidade, passou-se a tomar o Direito Constitucional não só como o tradicional ramo
político do sistema jurídico de cada nação, mas sim, notadamente, como o seu principal
referencial de justiça.

A abertura das Constituições a valores e a princípios - fenômeno que se densifica


especialmente no Pós Guerra - é assim captado por Canotilho: "o direito do Estado de
Direito do século XIX e da primeira metade do século XX é o direito das regras dos
códigos; o direito do Estado Constitucional Democrático e de Direito leva a sério os
princípios, é um direito de princípios." 20

4. A dignidade humana como o princípio fundamental maior do direito interno e


do direito internacional

No universo da principiologia a pautar o Direito Constitucional de 1988, o Direito


Constitucional contemporâneo, bem como o Direito Internacional dos Direitos Humanos,
desponta a dignidade humana como o valor maior, a referência ética de absoluta
primazia a inspirar o Direito erigido a partir da segunda metade do século XX.

É no valor da dignidade humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido,
sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação
normativa. Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a
orientar o Direito Internacional e Interno 21. Para Paulo Bonavides: "nenhum princípio é
mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da
dignidade da pessoa humana." 22

No campo internacional, a dignidade humana é o valor maior que inspirou a Declaração


Universal de Direitos Humanos de 1948, acenando à universalidade e à indivisibilidade
dos Direitos Humanos. Como já apreciado, o valor da dignidade humana, incorporado
pela Declaração Universal de 1948, constitui o norte e o lastro ético dos demais
instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. Todos eles introjetam, no
marco do positivismo internacional dos direitos humanos, a dignidade humana como um
valor fundante.

     
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Constata-se o forte impacto desta perspectiva ética no campo do Direito Constitucional


Ocidental. A positivação da dignidade humana, como esfera de intangibilidade ética,
segundo a quase unanimidade da doutrina, deu-se inauguralmente com a GrundGesetz
de 1949. E, sobre aquele documento normativo histórico, o entendimento que
evidentemente se construiu em favor da incondicionalidade da dignidade humana, de
sua culminância como norma impositiva, deve valer para a Carta Brasileira, moldada
naquele modelo, conforme é já cediço. A respeito, destacam-se as lições de Konrad
Hesse: "O artigo de entrada da Lei Fundamental normaliza o princípio superior,
incondicional e, na maneira da sua realização, indisponível, da ordem constitucional: a
inviolabilidade da dignidade do homem e a obrigação de todo o poder estatal, de
respeitá-la e protegê-la. Muito distante de uma fórmula abstrata ou mera declamação, à
qual falta significado jurídico, cabe a esse princípio o peso completo de uma fundação
normativa dessa coletividade histórico-concreta, cuja legitimidade, após um período de
inumanidade e sob o signo da ameaça atual e latente à "dignidade do homem", está no
respeito e na proteção da humanidade". 23

Assim, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do Direito


Constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e
centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade humana
simboliza, deste modo, um verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a
orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe
especial racionalidade, unidade e sentido 24.

Esta é a vertente contemporânea do Direito do Pós-Guerra, tanto no âmbito


internacional, como no âmbito local. Ao final da Segunda Guerra Mundial, emerge o
repúdio à idéia de um ordenamento jurídico divorciado de valores éticos. Intenta-se a
reaproximação da ética e do Direito e, neste esforço, surge a força normativa dos
princípios, especialmente, do princípio da dignidade humana. Há um reencontro com o
pensamento kantiano, com as idéias de moralidade, dignidade, Direito cosmopolita e paz
perpétua. Para Kant, as pessoas e, em geral qualquer espécie racional, devem existir
como um fim em si mesmo e jamais como um meio, a ser arbitrariamente usado para
este ou aquele propósito. Os objetos têm, por sua vez, um valor condicional, enquanto
irracionais, por isso, são chamados "coisas", substituíveis que são por outras
equivalentes. Os seres racionais, ao revés, são chamados "pessoas", porque constituem
um fim em si mesmo, têm um valor intrínseco absoluto, são insubstituíveis e únicos, não
devendo ser tomados meramente como meios 25. As pessoas são dotadas de dignidade,
na medida em que têm um valor intrínseco. Deste modo, ressalta Kant, deve-se tratar a
humanidade, na pessoa de cada ser, sempre como um fim mesmo, nunca como um
meio. Adiciona Kant que a autonomia 26 é a base da dignidade humana e de qualquer
criatura racional. Lembra que a idéia de liberdade é intimamente conectada com a
concepção de autonomia, por meio de um princípio universal da moralidade, que,
idealmente, é o fundamento de todas as ações de seres racionais 27. Para Kant, o
imperativo categórico universal dispõe: "Aja apenas de forma a que a sua máxima possa
converter-se ao mesmo tempo em uma lei universal" 28.

Se no plano internacional, o impacto desta vertente "kantiana" se concretizou com a


emergência do "Direito Internacional dos Direitos Humanos" (todo ele fundamentado no

     
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valor da dignidade humana, como valor inerente à pessoa), no plano dos


constitucionalismos locais, a vertente "kantiana" se concretizou com a abertura das
Constituições à força normativa dos princípios, com ênfase ao princípio da dignidade
humana. Pontue-se, ainda, a interação entre o Direito Internacional dos Direitos
Humanos e os Direitos locais, na medida em que aquele passa a ser parâmetro e
referência ética a inspirar o constitucionalismo ocidental.

Uma vez mais, destacam-se as lições de Canotilho: "Se ontem a conquista territorial, a
colonização e o interesse nacional surgiam como categorias referenciais, hoje os fins dos
Estados podem e devem ser os da construção de "Estados de Direito Democráticos,
Sociais e Ambientais", no plano interno e Estados abertos e internacionalmente amigos e
cooperantes no plano externo. Estes parâmetros fortalecem as imbricações do direito
constitucional com o direito internacional. (...) Os direitos humanos articulados com o
relevante papel das organizações internacionais fornecem um enquadramento razoável
para o constitucionalismo global. O constitucionalismo global compreende não apenas o
clássico paradigma das relações horizontais entre Estados, mas o novo paradigma
centrado nas relações Estado/povo, na emergência de um Direito Internacional dos
Direitos Humanos e na tendencial elevação da dignidade humana a pressuposto
ineliminável de todos os constitucionalismos. Por isso, o Poder Constituinte dos Estados
e, consequentemente, das respectivas Constituições nacionais, está hoje cada vez mais
vinculado a princípios e regras de direito internacional. É como se o Direito Internacional
fosse transformado em parâmetro de validade das próprias Constituições nacionais
(cujas normas passam a ser consideradas nulas se violadoras das nomas do jus cogens
internacional). O Poder Constituinte soberano criador de Constituições está hoje longe de
ser um sistema autônomo que gravita em torno da soberania do Estado. A abertura ao
Direito Internacional exige a observância de princípios materiais de política e direito
internacionais tendencialmente informadores do Direito interno." 29

Reitere-se: os direitos humanos passam a compor um enquadramento razoável para o


chamado constitucionalismo global. Delineia-se um novo paradigma centrado na
"tendencial elevação da dignidade humana a pressuposto ineliminável de todos os
constitucionalismos". Deste modo, as Constituições contemporâneas estão hoje cada vez
mais vinculadas a princípios e regras de Direito Internacional, que se convertem em
parâmetro de validade das próprias Constituições nacionais.

Neste sentido, as Constituições ocidentais contemporâneas passam a contemplar não


apenas forte densidade principiológica, mas cláusulas abertas, capazes de propiciar o
diálogo e a interação entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional. Tais
cláusulas assumem extraordinária relevância na medida em que se testemunha o
crescente fortalecimento da proteção internacional dos direitos humanos, com destaque
ao processo de sua jurisdicionalização no campo internacional.

Isto é, a maior consolidação e jurisdicionalização do Direito Internacional requer sejam


intensificadas as relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno. Faz-se
essencial o enfoque das ordens local, regional e global, a partir da dinâmica de sua
interação e de seu impacto, guiados pelo valor da dignidade humana, como
superprincípio a inspirar o Direito Interno e o Direito Internacional. O sentido maior
desta dinâmica é garantir a dignidade humana, enquanto aquele "mínimo ético
     
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DIREITOS HUMANOS, O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE
HUMANA E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

irredutível", enquanto parâmetro a conferir validade à toda e qualquer norma. Em outras


palavras, a gramática de direitos deve ser usada como o "teste" de legalidade de
qualquer norma.

Aos operadores do Direito resta, assim, o desafio de recuperar no Direito seu potencial
ético e transformador, doando máxima efetividade aos princípios constitucionais e
internacionais fundamentais, com realce ao princípio da dignidade humana - porque
fonte e sentido de toda experiência jurídica.
   
(1) Thomas Buergenthal, prólogo do livro de Antônio Augusto Cançado Trindade, A
Proteção Internacional dos Direitos Humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos
básicos, São Paulo, Saraiva, 19991, p. XXXI. No mesmo sentido, afirma Louis Henkin: "O
Direito Internacional pode ser classificado como o Direito anterior à Segunda Guerra
Mundial e o Direito posterior a ela. Em 1945, a vitória dos aliados introduziu uma nova
ordem com importantes transformações no Direito Internacional." (Louis Henkin et al,
International Law: Cases and materials, 3 ed. Minnesota, West Publishing, 1993, p. 03).
 
(2) Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro,
1979. A respeito, ver também Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um
diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, Cia das Letras, São Paulo, 1988, p.134.
No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: "Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato
de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às
vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual
as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta
antes de serem reconhecidos como direitos". (Ignacy Sachs, Desenvolvimento, Direitos
Humanos e Cidadania, In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p.156). Para Allan
Rosas: "O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. (...) O debate a respeito
do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa
história, de nosso passado e de nosso presente." (Allan Rosas, So-Called Rights of the
Third Generation, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and
Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p. 243).
Sobre a historicidade dos direitos humanos, cabe ressaltar, a título de exemplo, que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada há mais de cinquenta anos atrás,
em 1948, não contemplou o direito ao meio ambiente e nem tampouco o direito ao
desenvolvimento, pautas emergentes na década de 70. Note-se que, atualmente,
determinados países, como os EUA, têm insistido nos "digital rights", ou seja, no direito
de acesso à tecnologia, direito nem mesmo sonhado há cinquenta anos atrás, o que,
uma vez mais, atesta a historicidade dos direitos humanos.
 
(3) Ignacy Sachs, "O Desenvolvimento enquanto apropriaçao dos direitos humanos", in
Estudos Avançados 12 (33), 1998, p. 149.
 
(4) Hector Gros Espiell, Los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema
interamericano, San José, Libro Libre, 1986, p. 16-17.
 
(5) Como explica Jack Donnelly: «Diversos filósofos e um grande número de

     
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conservadores e liberais contemporâneos têm sustentado que os direitos econômicos e


sociais não são verdadeiros direitos, sugerindo que a tradicional dicotomia reflete não
apenas a gênese das normas contemporâneas de direitos humanos, mas também uma
ordem de prioridade entre estes direitos. Maurice Cranston oferece a mais ampla citada
versão do argumento filosófico contrário aos direitos econômicos e sociais. Ele afirma
que os tradicionais direitos civis e políticos à vida, à liberdade e à propriedade são
«direitos universais, supremos e morais». Os direitos econômicos e sociais, contudo, não
são universais, concretos e nem possuem suprema importância, «pertencendo a uma
diferente categoria lógica»- isto é, não são verdadeiros direitos humanos. (...) Os
impedimentos para a implementação da maior parte dos direitos econômicos e sociais,
entretanto, são mais políticos que físicos. Por exemplo, há mais que suficiente alimento
no mundo capaz de alimentar todas as pessoas; a fome e mal nutrição generalizada
existem não em razão de uma insuficiência física de alimentos, mas em virtude de
decisões políticas sobre sua distribuição.» (Universal human rights in theory and
practice, Ithaca, Cornell University Press, 1989. p. 31-32).
 
(6) Kathryn Sikkink, Human Rights, Principled issue-networks, and Sovereignty in Latin
America, In: International Organizations, Massachusetts, IO Foundation e Massachusetts
Institute of Technology, 1993, p.413. Acrescenta a mesma autora: "Os direitos
individuais básicos não são do domínio exclusivo do Estado, mas constituem uma
legítima preocupação da comunidade internacional." (op. cit. p. 441).
 
(7) Para Celso Lafer, de uma visão ex parte príncipe, fundada nos deveres dos súditos
com relação ao Estado passa-se a uma visão ex parte populi, fundada na promoção da
noção de direitos do cidadão. (Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões
sobre uma experiência diplomática, São Paulo, Paz e Terra, 1999, p. 145).
 
(8) André Gonçalves Pereira e Fausto Quadros, Manual de Direito Internacional Público,
3a edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1993, p.661. Acrescentam os autores: "As novas
matérias que o Direito Internacional tem vindo a absorver, nas condições referidas, são
de índole variada: política, econômica, social, cultural, científica, técnica, etc. Mas dentre
elas o livro mostrou que há que se destacar três: a proteção e a garantia dos Direitos do
Homem, o desenvolvimento e a integração econômica e política". (op. cit. p.661). Na
visão de Hector Fix-Zamudio: "(...) o estabelecimento de organismos internacionais de
tutela dos direitos humanos, que o destacado tratadista italiano Mauro Cappelleti tem
qualificado como jurisdição constitucional transnacional, enquanto controle judicial da
constitucionalidade das disposições legislativas e de atos concretos de autoridade, tem
alcançado o Direito interno, particularmente a esfera dos direitos humanos e tem se
projetado no âmbito internacional e inclusive comunitário." (Proteccion Juridica de los
Derechos Humanos, México, Comision Nacional de Derechos Humanos, 1991, p. 184)
 
(9) Norberto Bobbio, Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro,
Campus, 1988, p. 30.
 
(10) A respeito, consultar Human Development Report 2001, UNDP, New York/Oxford,
Oxford University Press, 2001.

     
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(11) Note-se que a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
Racial, a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e a Convenção
sobre os Direitos da Criança contemplam não apenas direitos civis e políticos, mas
também direitos sociais, econômicos e culturais, o que vem a endossar a idéia da
indivisibilidade dos direitos humanos.
 
(12) BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito
Constitucional Brasileiro. [www.direitopublico.com.br]
 
(13) A respeito, ver o art. 16 da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, semente do movimento do constitucionalismo: "Toda sociedade, em
que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes
determinada, não tem Constituição".
 
(14) Jackman, Constitutional rhetoric and social justice: reflections on the justiciability
debate. In: Joel Bakan & David Schneiderman, eds., Social Justice and the Constitution:
perspectives on a social union for Canada, Canada, Carleton University Press, 1992.
 
(15) Cf. José Joaquim Gomes Canotilho: "Independentemente das densificações e
concretizações que o princípio do Estado de direito encontra implícita ou explicitamente
no texto constitucional, é possível sintetizar os pressupostos materiais subjacentes a
este princípio da seguinte forma: 1) juridicidade; 2) constitucionalidade; 3) direitos
fundamentais". (Direito constitucional, 6a edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1993, p.
357).
 
(16) Observa José Afonso da Silva: "Princípio aí exprime a noção de "mandamento
nuclear de um sistema". (...) Os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os
sistemas de normas, "são - como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira - "núcleos
de condensações" nos quais confluem valores e bens constitucionais." Mas, como
disseram os mesmos autores, "os princípios que começam por ser a base de normas
jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-
princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional". (Curso de
direito constitucional positivo, p. 82).
 
(17) José Afonso da Silva, op. cit., p. 93.
 
(18) A respeito, observa Antonio Enrique Pérez Luño: "A jurisprudência do Tribunal
Constitucional da República Federal da Alemanha tem considerado, em inúmeras
decisões, o sistema de direitos fundamentais consagrados pela Grundgesetz como a
expressão de uma "ordem de valores", que deve guiar a interpretação de todas as
demais normas constitucionais do ordenamento jurídico em seu conjunto, tendo em vista
que estes valores manifestam os "conceitos universais de justiça". Também na Espanha,
o Tribunal Constitucional tem sustentado expressamente que "os direitos fundamentais
refletem um sistema de valores e princípios de alcance universal que hão de informar
todo o ordenamento jurídico". (op. cit., supra, p. 292).

     
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(19) Cf. Ronald Dworkin, Taking rights seriously, Cambridge, Harvard University Press,
1977.
 
(20) A 'principialização' da jurisprudência através da Constituição; Revista de Processo n.
98, p. 84.
 
(21) A respeito, consultar Carmen Lúcia Antunes Rocha, O Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana e a Exclusão Social, texto mimeografado, em palestra proferida na XVII
Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de agosto a
02 de setembro de 1999. Para a autora: "Dignidade é o pressuposto da idéia de justiça
humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e
sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou
social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e,
nessa contingência, é um direito pré-estatal." (p. 04). Ver ainda José Afonso da Silva em
seu Poder Constituinte e Poder Popular, Malheiros, São Paulo, 2000, no capítulo
específico entitulado "A Dignidade da Pessoa Humana como valor supremo da
democracia".
 
(22) Paulo Bonavides, Teoria Constitucional da Democracia Participativa, Malheiros,
2001, p. 233. Ressalte-se ainda que esse autor, ao tratar justamente da força normativa
dos princípios fundamentais da Constituição, acerca do princípio ora em comento,
leciona: "Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima,
e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas,
esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da
personalidade se acham consubstanciados." (op. cit. p. 233).
 
(23) HESSE, Konrad, Elementos..., fls. 109/11. Adiciona o autor: "A imagem do homem,
da qual a Lei Fundamental parte no artigo 1o, não deve, nisso, nem individual nem
coletivamente, ser mal entendida, ou dada outra interpretação. Para a ordem
constitucional da Lei Fundamental, o homem não é nem partícula isolada, indivíduo
despojado de suas limitações históricas, nem sem realidade da "massa" moderna. Ele é
entendido, antes, como "pessoa": de valor próprio indisponível, destinado ao livre
desenvolvimento, mas também simultaneamente membro de comunidades, de
matrimônio e família, igrejas, grupos sociais e políticos, das sociedades políticas, não em
último lugar, também do Estado, com isso, situado nas relações inter-humanas mais
diversas, por essas relações em sua individualidade concreta essencialmente moldado,
mas também chamado a co-configurar responsavelmente convivência humana. Somente
assim, entendido não só como barreira ou obrigação de proteção do poder estatal, o
conteúdo do artigo 1o da Lei fundamental e os direitos do homem, dos quais o povo
alemão por causa deste conteúdo, " como base de cada comunidade humana", declara-
se partidário (artigo 1o, alínea 2, da Lei Fundamental), convertem-se em pressuposto da
livre autodeterminação, sobre a ordem constituída, pela Lei Fundamental, da vida estatal
deve assentar-se." A mesma trilha seguiu a Carta Portuguesa, já se viu aqui, sendo que,
para aquele contexto, veja-se Canotilho (op. cit. p. 221); em referência à Carta de
Espanha e seus dispositivos também nesse estudo já referenciados, consulte-se

     
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Francisco Fernandez Segado, El sistema Constitucional Español, in Los Sistemas


Constitucionales Iberoamericanos, Garcia Belaunde, Férnandez Segado e Hernandez
Valle (organizadores), Editorial Dykinson, Madri, 1992.
 
(24) No dizer de Ana Paula de Barcellos: "as normas-princípios sobre a dignidade da
pessoa humana são, por todas as razões, as de maior grau de fundamentalidade na
ordem jurídica como um todo, a elas devem corresponder as modalidades de eficácia
jurídica mais consistentes." (Ana Paula de Barcellos, A Eficácia Jurídica dos Princípios
Constitucionais - O princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Renovar, Rio de Janeiro,
2002, p. 202/3).
 
(25) A teoria moral kantiana exerceu enorme influência nos fundamentos de diversas
teorias sobre direitos. A respeito, consultar Jeremy Waldron (ed.), Theories of Rights,
Oxford/New York, Oxford University Press, 1984.
 
(26) Significativas teorias sobre direitos humanos tendem a enfatizar a importância e o
valor da autonomia pessoal. Para J. Raz: "Uma pessoa autônoma é aquela que é autora
de sua própria vida. Sua vida é o que ela faz dela. (...) Uma pessoa é autônoma
somente se tem uma variedade de escolhas aceitáveis disponíveis para serem feitas e
sua vida se torna o resultado das escolhas derivadas destas opções. Uma pessoa que
nunca teve uma escolha efetiva, ou, tampouco, teve consciência dela, ou, ainda, nunca
exerceu o direito de escolha de forma verdadeira, mas simplesmente se moveu perante
a vida não é uma pessoa autônoma". (J. Raz, Right-Based Moralities, In: Jeremy
Waldron (ed.), Theories of Rights, Oxford/New York, Oxford University Press, 1984,
p.191.). J. Raz, em crítica ao enfoque moral individualista da autonomia pessoal,
acentua que: "A existência de diversas escolhas consiste, em parte, na existência de
certas condições sociais. (...) O ideal da autonomia pessoal é incompatível com o
individualismo moral." (J. Raz, op. cit. p. 192-193).
 
(27) A respeito, ver Immanuel Kant, Allen W. Wood (ed.), Fundamental Principles of the
Metaphysicas of Morals, In: Basic Writings of Kant, New York, The Modern Library, 2001,
p. 185-186; p. 192-193.
 
(28) A respeito, ver Immanuel Kant, Fundamental Principles of the Metaphysicas of
Morals, In: Basic Writings of Kant, Allen W. Wood ed., New York, The Modern Library,
2001, p. 178.
 
(29) José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição,
Coimbra, Livraria Almedina, 1998, p. 1217. A respeito, ver ainda "A Força Normativa dos
Princípios Constitucionais Fundamentais: A Dignidade da Pessoa Humana", In: Flavia
Piovesan, Temas de Direitos Humanos, 2a edição, São Paulo, ed. Max Limonad, p. 397-
398.

     
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