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Flavia Piovesan
Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Professora de Direitos Humanos dos programas de
Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Visiting fellow do Human Rights Program da Harvard
Law School (1995, 2000 e 2002). Procuradora do Estado de São Paulo.
Área do Direito: Constitucional; Internacional; Fundamentos do Direito
Sumário:
1. Introdução - 2. Concepção contemporânea de direitos humanos, sistema internacional
de proteção e o valor da dignidade humana - 3. O princípio da dignidade humana e a
constituição brasileira de 1988 - 4. A dignidade humana como o princípio fundamental
maior do direito interno e do direito internacional
1. Introdução
O objetivo deste ensaio é propor uma reflexão a respeito dos direitos humanos e do
princípio da dignidade humana, com ênfase em seu impacto no constitucionalismo, em
especial o inaugurado com a Carta de 1988.
Por fim, serão lançadas considerações sobre o princípio da dignidade humana, como
referência ética maior a orientar a ordem jurídica interna e internacional.
No dizer de Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído,
uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução 2.
Considerando a historicidade destes direitos, pode-se afirmar que a definição de direitos
humanos aponta a uma pluralidade de significados. Tendo em vista tal pluralidade,
destaca-se neste estudo a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que
veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de 1948 e reiterada pela
Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.
É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como
paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Se a 2.ª
Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a
sua reconstrução.
Fortalece-se, assim, a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir
ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência nacional
exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse
internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta a duas importantes
conseqüências:
Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus
nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua
soberania.
O processo de universalização dos direitos humanos permitiu, por sua vez, a formação
de um sistema normativo internacional de proteção destes direitos. Na lição de André
Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros: "Em termos de Ciência Política, tratou-se
apenas de transpor e adaptar ao Direito Internacional a evolução que no Direito Interno
já se dera, no início do século, do Estado-Polícia para o Estado-Providência. Mas foi o
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suficiente para o Direito Internacional abandonar a fase clássica, como o Direito da Paz e
da Guerra, para passar à era nova ou moderna da sua evolução, como Direito
Internacional da Cooperação e da Solidariedade". 8
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sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado
pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos.
Ora, como já dito, se a 2a Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-
Guerra deveria significar a sua reconstrução. É justamente sob o prisma da reconstrução
dos direitos humanos que é possível compreender, no Pós Guerra, de um lado, a
emergência do chamado "Direito Internacional dos Direitos Humanos", e, por outro, a
nova feição do Direito Constitucional ocidental, tamanho o impacto gerado pelas
atrocidades então cometidas.
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Por sua vez, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento
nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e
regionais e promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação, constituem os objetivos fundamentais do
Estado brasileiro, consagrados no art. 3.º da Carta de 1988. No entender de José Afonso
da Silva: "É a primeira vez que uma Constituição assinala, especificamente, objetivos do
Estado brasileiro, não todos, que seria despropositado, mas os fundamentais, e entre
eles, uns que valem como base das prestações positivas que venham a concretizar a
democracia econômica, social e cultural, a fim de efetivar na prática a dignidade da
pessoa humana". 17
Neste sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e
informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a
orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional 18.
Considerando que toda Constituição há de ser compreendida como uma unidade e como
um sistema que privilegia determinados valores sociais, pode-se afirmar que a Carta de
1988 elege o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe doa unidade
de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988,
imprimindo-lhe uma feição particular.
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É no valor da dignidade humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido,
sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação
normativa. Consagra-se, assim, a dignidade humana como verdadeiro superprincípio a
orientar o Direito Internacional e Interno 21. Para Paulo Bonavides: "nenhum princípio é
mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da
dignidade da pessoa humana." 22
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Uma vez mais, destacam-se as lições de Canotilho: "Se ontem a conquista territorial, a
colonização e o interesse nacional surgiam como categorias referenciais, hoje os fins dos
Estados podem e devem ser os da construção de "Estados de Direito Democráticos,
Sociais e Ambientais", no plano interno e Estados abertos e internacionalmente amigos e
cooperantes no plano externo. Estes parâmetros fortalecem as imbricações do direito
constitucional com o direito internacional. (...) Os direitos humanos articulados com o
relevante papel das organizações internacionais fornecem um enquadramento razoável
para o constitucionalismo global. O constitucionalismo global compreende não apenas o
clássico paradigma das relações horizontais entre Estados, mas o novo paradigma
centrado nas relações Estado/povo, na emergência de um Direito Internacional dos
Direitos Humanos e na tendencial elevação da dignidade humana a pressuposto
ineliminável de todos os constitucionalismos. Por isso, o Poder Constituinte dos Estados
e, consequentemente, das respectivas Constituições nacionais, está hoje cada vez mais
vinculado a princípios e regras de direito internacional. É como se o Direito Internacional
fosse transformado em parâmetro de validade das próprias Constituições nacionais
(cujas normas passam a ser consideradas nulas se violadoras das nomas do jus cogens
internacional). O Poder Constituinte soberano criador de Constituições está hoje longe de
ser um sistema autônomo que gravita em torno da soberania do Estado. A abertura ao
Direito Internacional exige a observância de princípios materiais de política e direito
internacionais tendencialmente informadores do Direito interno." 29
Aos operadores do Direito resta, assim, o desafio de recuperar no Direito seu potencial
ético e transformador, doando máxima efetividade aos princípios constitucionais e
internacionais fundamentais, com realce ao princípio da dignidade humana - porque
fonte e sentido de toda experiência jurídica.
(1) Thomas Buergenthal, prólogo do livro de Antônio Augusto Cançado Trindade, A
Proteção Internacional dos Direitos Humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos
básicos, São Paulo, Saraiva, 19991, p. XXXI. No mesmo sentido, afirma Louis Henkin: "O
Direito Internacional pode ser classificado como o Direito anterior à Segunda Guerra
Mundial e o Direito posterior a ela. Em 1945, a vitória dos aliados introduziu uma nova
ordem com importantes transformações no Direito Internacional." (Louis Henkin et al,
International Law: Cases and materials, 3 ed. Minnesota, West Publishing, 1993, p. 03).
(2) Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro,
1979. A respeito, ver também Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um
diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, Cia das Letras, São Paulo, 1988, p.134.
No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: "Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato
de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às
vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual
as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta
antes de serem reconhecidos como direitos". (Ignacy Sachs, Desenvolvimento, Direitos
Humanos e Cidadania, In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p.156). Para Allan
Rosas: "O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. (...) O debate a respeito
do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa
história, de nosso passado e de nosso presente." (Allan Rosas, So-Called Rights of the
Third Generation, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and
Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p. 243).
Sobre a historicidade dos direitos humanos, cabe ressaltar, a título de exemplo, que a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada há mais de cinquenta anos atrás,
em 1948, não contemplou o direito ao meio ambiente e nem tampouco o direito ao
desenvolvimento, pautas emergentes na década de 70. Note-se que, atualmente,
determinados países, como os EUA, têm insistido nos "digital rights", ou seja, no direito
de acesso à tecnologia, direito nem mesmo sonhado há cinquenta anos atrás, o que,
uma vez mais, atesta a historicidade dos direitos humanos.
(3) Ignacy Sachs, "O Desenvolvimento enquanto apropriaçao dos direitos humanos", in
Estudos Avançados 12 (33), 1998, p. 149.
(4) Hector Gros Espiell, Los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema
interamericano, San José, Libro Libre, 1986, p. 16-17.
(5) Como explica Jack Donnelly: «Diversos filósofos e um grande número de
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(11) Note-se que a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação
Racial, a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e a Convenção
sobre os Direitos da Criança contemplam não apenas direitos civis e políticos, mas
também direitos sociais, econômicos e culturais, o que vem a endossar a idéia da
indivisibilidade dos direitos humanos.
(12) BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo Direito
Constitucional Brasileiro. [www.direitopublico.com.br]
(13) A respeito, ver o art. 16 da Declaração francesa dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789, semente do movimento do constitucionalismo: "Toda sociedade, em
que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes
determinada, não tem Constituição".
(14) Jackman, Constitutional rhetoric and social justice: reflections on the justiciability
debate. In: Joel Bakan & David Schneiderman, eds., Social Justice and the Constitution:
perspectives on a social union for Canada, Canada, Carleton University Press, 1992.
(15) Cf. José Joaquim Gomes Canotilho: "Independentemente das densificações e
concretizações que o princípio do Estado de direito encontra implícita ou explicitamente
no texto constitucional, é possível sintetizar os pressupostos materiais subjacentes a
este princípio da seguinte forma: 1) juridicidade; 2) constitucionalidade; 3) direitos
fundamentais". (Direito constitucional, 6a edição, Coimbra, Livraria Almedina, 1993, p.
357).
(16) Observa José Afonso da Silva: "Princípio aí exprime a noção de "mandamento
nuclear de um sistema". (...) Os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os
sistemas de normas, "são - como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira - "núcleos
de condensações" nos quais confluem valores e bens constitucionais." Mas, como
disseram os mesmos autores, "os princípios que começam por ser a base de normas
jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas-
princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional". (Curso de
direito constitucional positivo, p. 82).
(17) José Afonso da Silva, op. cit., p. 93.
(18) A respeito, observa Antonio Enrique Pérez Luño: "A jurisprudência do Tribunal
Constitucional da República Federal da Alemanha tem considerado, em inúmeras
decisões, o sistema de direitos fundamentais consagrados pela Grundgesetz como a
expressão de uma "ordem de valores", que deve guiar a interpretação de todas as
demais normas constitucionais do ordenamento jurídico em seu conjunto, tendo em vista
que estes valores manifestam os "conceitos universais de justiça". Também na Espanha,
o Tribunal Constitucional tem sustentado expressamente que "os direitos fundamentais
refletem um sistema de valores e princípios de alcance universal que hão de informar
todo o ordenamento jurídico". (op. cit., supra, p. 292).
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(19) Cf. Ronald Dworkin, Taking rights seriously, Cambridge, Harvard University Press,
1977.
(20) A 'principialização' da jurisprudência através da Constituição; Revista de Processo n.
98, p. 84.
(21) A respeito, consultar Carmen Lúcia Antunes Rocha, O Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana e a Exclusão Social, texto mimeografado, em palestra proferida na XVII
Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de agosto a
02 de setembro de 1999. Para a autora: "Dignidade é o pressuposto da idéia de justiça
humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e
sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou
social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e,
nessa contingência, é um direito pré-estatal." (p. 04). Ver ainda José Afonso da Silva em
seu Poder Constituinte e Poder Popular, Malheiros, São Paulo, 2000, no capítulo
específico entitulado "A Dignidade da Pessoa Humana como valor supremo da
democracia".
(22) Paulo Bonavides, Teoria Constitucional da Democracia Participativa, Malheiros,
2001, p. 233. Ressalte-se ainda que esse autor, ao tratar justamente da força normativa
dos princípios fundamentais da Constituição, acerca do princípio ora em comento,
leciona: "Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima,
e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas,
esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da
personalidade se acham consubstanciados." (op. cit. p. 233).
(23) HESSE, Konrad, Elementos..., fls. 109/11. Adiciona o autor: "A imagem do homem,
da qual a Lei Fundamental parte no artigo 1o, não deve, nisso, nem individual nem
coletivamente, ser mal entendida, ou dada outra interpretação. Para a ordem
constitucional da Lei Fundamental, o homem não é nem partícula isolada, indivíduo
despojado de suas limitações históricas, nem sem realidade da "massa" moderna. Ele é
entendido, antes, como "pessoa": de valor próprio indisponível, destinado ao livre
desenvolvimento, mas também simultaneamente membro de comunidades, de
matrimônio e família, igrejas, grupos sociais e políticos, das sociedades políticas, não em
último lugar, também do Estado, com isso, situado nas relações inter-humanas mais
diversas, por essas relações em sua individualidade concreta essencialmente moldado,
mas também chamado a co-configurar responsavelmente convivência humana. Somente
assim, entendido não só como barreira ou obrigação de proteção do poder estatal, o
conteúdo do artigo 1o da Lei fundamental e os direitos do homem, dos quais o povo
alemão por causa deste conteúdo, " como base de cada comunidade humana", declara-
se partidário (artigo 1o, alínea 2, da Lei Fundamental), convertem-se em pressuposto da
livre autodeterminação, sobre a ordem constituída, pela Lei Fundamental, da vida estatal
deve assentar-se." A mesma trilha seguiu a Carta Portuguesa, já se viu aqui, sendo que,
para aquele contexto, veja-se Canotilho (op. cit. p. 221); em referência à Carta de
Espanha e seus dispositivos também nesse estudo já referenciados, consulte-se
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