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1. INTRODUÇÃO
O artigo 1º, parágrafo único, da Constituição da República, expressando a
soberania popular e o princípio democrático, é inequívoco ao dispor que o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. A Carta de Outubro,
portanto, estabeleceu como regime de governo a democracia (governo da maioria), de modo
que a maior fatia do poder político deve ser exercida por maiorias eventuais alternantes
através do sistema representativo, permitindo aos cidadãos elegerem periodicamente os
integrantes do Poder Legislativo e o Chefe do Poder Executivo.
Uma menor parcela do poder político, entretanto, é conferida a agentes
recrutados por critérios técnicos – concurso público – e não pelo batismo do voto popular:
membros do Poder Judiciário e das chamadas Funções Essenciais à Justiça (Ministério
Público, Advocacia de Estado e Defensoria Pública). O ideal de governo da maioria, dessarte,
realiza-se na atuação dos primeiros citados, Executivo e Legislativo, a quem compete elaborar
as leis e prestar os serviços públicos, suprindo as carências sociais (saúde, educação,
segurança, lazer, etc.).
Em tal cenário de relações entre agentes públicos eletivos e não eletivos, há um
elemento constantemente presente. É a chamada dificuldade contramajoritária (the
countermajoritarian difficulty)2, invocada comumente para questionar o controle judicial de
políticas públicas (traçadas que são pelos Poderes Executivo e Legislativo), tendo em vista se
tratar de um empecilho – em muitos casos contornável – à sindicabilidade, pelos juízes, dos
atos de representantes escolhidos pela vontade popular.
No presente estudo, todavia, o que se vai analisar é a incidência desse
obstáculo na atuação dos advogados públicos (Procuradores de Estado, de Município,
Advogados da União e Procuradores da Fazenda Nacional e Federais), agentes institucionais
que no seu dia-a-dia se veem às voltas com o desafio entre legitimar uma política
governamental ou negá-la porque atentatória à ordem jurídica (controle de juridicidade).
Embora esse controle de juridicidade dos atos dos agentes públicos ocorra, na
generalidade das hipóteses, no exercício da atividade de consultoria (administração
1
Autor: GUILHERME VALLE BRUM, Procurador do Estado do Rio Grande do Sul
2
Termo cunhado pelo professor da Yale Law School Alexander Bickel em seu livro The Least Dangerous Branch (1962).
2
consultiva), pode muito bem se manifestar quando o advogado de Estado atua em juízo. E é
exatamente aí que o eventual caráter contramajoritário do exercício da advocacia pública
torna-se polêmico. Pode um Procurador do Estado, por exemplo, reconhecer o direito de um
cidadão que venha a deduzir pretensão em face do ente estatal, considerando legítimo seu
pleito, ainda que contrário à política governamental? Isso atentaria contra o princípio
democrático? E contra a supremacia e indisponibilidade do interesse público? Mais ainda:
poderia esse mesmo Procurador, depois de ajuizada uma ação, vir a dela desistir, uma vez
que, pelos elementos supervenientes coligidos aos autos, convencera-se da improcedência do
seu pedido? Por fim: quais os limites dessa – diga-se assim – discricionariedade do advogado
público? Ou seja, até onde ele pode ir?
De certa forma, a Advocacia de Estado ocupa local privilegiado para
efetivação do controle jurídico sobre políticas públicas. É que, em que pese autônoma, porque
Função Essencial à Justiça, encontra-se ligada intimamente ao Poder Executivo, porquanto
responsável pelo exame interno de juridicidade e “presentante” do Estado-Administração em
juízo. Paradoxalmente, pois, o que pode ser um facilitador para a realização desse controle,
pelo contato direto com os responsáveis por elaborar e realizar determinada política pública,
também pode representar uma dificuldade a mais na fixação dos limites desse atuar contrário
a uma ação governamental, considerando as pressões de toda ordem a que os agentes dessa
instituição se acham submetidos.
Impende seja esclarecido que não se está aqui a pregar um poder ilimitado de
controle aos advogados públicos. Como se verá ao longo deste trabalho, há fortes
condicionamentos e limitações para que o Procurador de Estado ou o Advogado da União
atue contramajoritariamente. Óbices esses que, se não maiores, são os mesmos impostos ao
exercício do controle de constitucionalidade de leis e políticas públicas pelo Poder Judiciário,
tanto pelo seu órgão de cúpula, Supremo Tribunal Federal, quanto difusamente, por seus
diversos entes espalhados ao longo do território nacional.
A independência do advogado público, assim, é mitigada pela controlabilidade
social de seu agir, o qual, por isso mesmo, deve ser muito bem fundamentado, mormente
quando entender pela inconstitucionalidade de uma política pública. Também o juiz da causa
poderá, como será adiante detalhado, discordar da atuação do “presentante” estatal no caso
concreto, exercendo um controle pela via institucional.
Certamente o que se proporá neste ensaio é uma releitura, um novo olhar sobre
os dispositivos constitucionais que conformam a instituição Advocacia de Estado, de maneira
a enxergá-la mais republicana e comprometida com as promessas da modernidade,
3
3
SESTA, Mário Bernardo. Consulta: Dia do Procurador do Estado. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul.
Edição Especial: Cadernos de Direito Público. v. 2, 2005, p. 223-238.
4
Há que referir, por oportuno, que o marco histórico aludido é o que leva em consideração um formato muito próximo à atual configuração
dessas instituições. Existem, todavia, outras formas de manifestação de Advocacia Pública em momentos da História bem anteriores: o
causídico que exercia a defesa das cidades na civilização helênica, o “defensor da lei” de Atenas e, na Roma antiga, o Procurador Caesaris,
advogado do Imperador encarregado da área fiscal. Para uma descrição dessas figuras, remete-se ao estudo de Carlos Figueiredo Mourão,
baseado em artigo de autoria de Dárcio Augusto Chaves de Faria: MOURÃO, Carlos Figueiredo. A Advocacia Pública como instituição de
controle interno da Administração. Revista Interesse Público. n. 52, 2008, p. 43-51.
5
Op. cit., p. 226.
4
6
SILVA, José Afonso da. A Advocacia Pública e o Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Administrativo, São Paulo, n. 230,
out/dez 2002, p. 282.
7
E se chamam até hoje. Nesse sentido, confira-se a interessante redação do artigo 29, §2º, do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (Título X da Constituição de 1988): Aos atuais Procuradores da República, nos termos da lei complementar, será facultada a
opção, de forma irretratável, entre as carreiras do Ministério Público Federal e da Advocacia-Geral da União.
8
Idem, p. 282-283.
5
Não satisfeita com essa divisão, todavia, a Carta de Outubro de 1988 foi ainda
mais minudente. Trouxe uma terceira curadora de interesses públicos, a Defensoria Pública,
que exerce advocacia de defesa dos necessitados e compõe parte da Seção III do mesmo
capítulo (artigo 134).
Na ordem constitucional atual, portanto, os tradicionais interesses públicos
dignos de proteção por instituições permanentes estão separados e postos sob a guarda de
órgãos distintos. Porém, deve-se deixar bem clara a inexistência de uma relação de hierarquia
ou preferência a priori entre esses interesses, que podem naturalmente estar em conflito. O
caso concreto submetido ao exame do Poder Judiciário é que determinará o interesse que
deverá prevalecer para a específica situação analisada.
O Procurador do Estado do Rio de Janeiro Diogo de Figueiredo Moreira Neto9,
um dos maiores estudiosos do perfil constitucional das Funções Essenciais à Justiça,
denomina as três instituições ora de Provedorias de Justiça, ora de Procuraturas
Constitucionais e ora simplesmente de advocacias. Com essas nomenclaturas, o jurista deixa
bem delineados os contornos desses órgãos, que os destacam das demais classes de servidores
públicos, seja pelo seu papel fundamental de sustentáculo do Estado Democrático de Direito,
seja pelos seus estatutos jurídicos diferenciados. Vale fazer referência expressa ao magistério
do ilustre Procurador10:
Em suma: a distinção, historicamente desenvolvida, entre os três ramos públicos e
atualmente em vigor – a advocacia da sociedade no sentido estrito, cometida aos Ministérios Públicos da
União, dos Estados e do Distrito Federal; a advocacia de Estado, desses dois níveis políticos; e a
advocacia dos necessitados, também nos dois níveis políticos superiores – apenas representa uma
evolução, no sentido da melhor divisão de trabalho e nunca, como equivocadamente se tem pretendido,
o reflexo de uma “hierarquização” de interesses.
Com a preocupação de desfazer equívocos, em trabalho anterior, preferi usar uma nova
expressão – “procuraturas constitucionais” – para denominar essas carreiras, visando a distingui-las das
demais procuradorias, de Municípios, de autarquias e de fundações, que não têm radical constitucional.
A opção de separar as três carreiras completou um ciclo de aperfeiçoamento que só veio a
amadurecer plenamente na Constituição de 1988, pois, até então, a Procuradoria-Geral da República
cumulava duas procuraturas federais.
Também nos Estados prevaleceu a acumulação da Defensoria Pública, ora com o Ministério
Público, ora com a Procuradoria-Geral do Estado; ainda hoje persistente, não obstante o claríssimo
comando diferenciador do art. 134, da Constituição, que lhe dá status institucional no mesmo nível que
as suas congêneres, essenciais à justiça. (grifos do autor)
ou quais sejam seus eventuais titulares, variarão as espécies de advocacia competentes para
atuar (grifei).
Assim, os interesses da sociedade individualmente considerados, podem ser
tutelados por advogados privados. Os interesses da sociedade considerada como um todo
(difusamente) ou de certos segmentos seus devem ser providos pelo Ministério Público. Os
interesses da sociedade entregues legal e constitucionalmente à Administração das
entidades federadas devem ser defendidos pela Advocacia Pública. Os interesses da
sociedade vinculados às pessoas carentes devem ser protegidos pela Defensoria Pública.
Como se vê, tratam-se de separações funcionais de um mesmo Poder, que, não
obstante não seja qualificado como tal pela Constituição da República, está implicitamente
presente no ordenamento jurídico. Dessarte, a expressão Função Essencial à Justiça não
significa que seja algo vinculado ao Poder Judiciário. Quando a Constituição reservou um
capítulo específico para algo essencial à Justiça, tratou da Justiça como valor, na sua
materialidade. Quer-se dizer, como um bem a ser perseguido pelo Estado Democrático de
Direito.
A própria localização topográfica das Funções Essenciais à Justiça está a
indicar seu destacamento dos demais Poderes do Estado, pois faz parte do Capítulo IV do
Título IV, título esse que trata exatamente da Organização dos Poderes. Localiza-se, pois, no
último capítulo do título, apartado dos demais Poderes da República, que compõem os três
primeiros capítulos.
Mais uma vez, ouça-se a voz de Diogo de Figueiredo Moreira Neto,
corroborando o que se afirma12:
Ultrapassada a prevalência do conceito orgânico de poder, que aceitava a divisão do Poder
Estatal entre entidades e órgãos diversos, fixa-se, hoje, a doutrina, no conceito funcional, que entende
uno, o Poder, em sua essência, com resultado de uma concentração sócio-política, mas divisível em seu
exercício, como produto de uma descentralização juspolítica.
Observe-se, nessa linha, que a Constituição brasileira de 1988, ao organizar o Poder Estatal,
não se limitou, como o fizeram as anteriores, às descentralizações tradicionais entre os complexos
orgânicos denominados de Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, instituindo um quarto
complexo orgânico que, embora não conformando um quarto Poder, recebeu a seu cargo a função
essencial de provedoria da justiça perante todos os demais Poderes do Estado.
Repise-se que o legislador constitucional não as instituiu como funções “auxiliares”,
dispensáveis ou substituíveis, mas como funções “essenciais”, no sentido de serem tão imprescindíveis à
existência do Estado Democrático de Direito quanto qualquer das demais do mesmo Título IV, o que as
submete ao mesmo princípio da harmonia e independência entre as manifestações de Poder do Estado,
consubstanciado no art. 2.º, da Constituição, e alçado a cláusula pétrea, no art. 60, § 4.º, III.
A essencialidade à Justiça, insista-se pois, não se deve entender que se refira apenas à ação
que desempenham perante o Poder Judiciário, ou seja, perante a “Justiça” no sentido orgânico, mas,
verdadeiramente, referida a todos os Poderes do Estado, enquanto diga respeito à realização do valor
justiça por qualquer deles.
Justiça está entendida, assim, no seu sentido mais amplo, condizente com todos os valores
que deve realizar o Estado Democrático de Direito, como finalidade última do poder na vida social, sem
12
Op. cit., p. 28-29.
7
nenhum qualificativo parcializante que possa permitir que se restrinja, de alguma forma, tanto o âmbito
de atuação quanto a destinação das advocacias dos interesses constitucionalmente garantidos.
[...]
Em suma, no cerne dessas funções essenciais à justiça está a provedoria desse valor síntese,
na promoção e defesa dos múltiplos interesses que o homem desenvolve em sua convivência, dentro ou
fora do Estado, praticados nos variados tipos de ministérios de uma unímoda advocacia de interesses,
aqui tomada em seu sentido lato, desdobrada no Capítulo IV, Título IV, na geral, na da sociedade, na do
Estado e na dos necessitados.
13
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil).
Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, n. 60, jul/dez. 2004, p. 61.
8
remonta a 1962. Vale dizer, entretanto, que o contramajoritarismo tornou-se pauta de debates
entre constitucionalistas estrangeiros, embora não sob essa designação, em momentos
históricos bem anteriores. O próprio caso Marbury v. Madison, famoso precedente de 1803
que inaugurou o controle de constitucionalidade no moderno constitucionalismo, versou,
mesmo que não de maneira expressa, exatamente a questão da regra contramajoritária.
Um conceito para o objeto do que ora se está a estudar é de relativamente fácil
construção. Trata-se, basicamente, de uma suposta impossibilidade de que órgãos formados
por agentes públicos não eletivos (como os juízes, no Brasil) invalidem decisões de órgãos
legitimados pela escolha popular. Tratar-se-ia de um empecilho ao controle de
constitucionalidade do agir de agentes estatais que assumem sua função pela benção do voto
popular. Dito de outro modo, a dificuldade contramajoritária seria um meio de se questionar a
própria legitimidade do controle de constitucionalidade exercido pelos tribunais.
Desde já se adianta que o contramajoritarismo, em que pese deva ser levado a
sério, não afeta a legitimidade da jurisdição constitucional, desde que esta respeite as balizas
fixadas pela necessidade de fundamentação racional das decisões e seja exercida para
preservar a força normativa dos direitos fundamentais, os quais integram o próprio valor
democracia. Isso quer dizer que a possibilidade de os juízes deixarem de aplicar uma lei
inconstitucional tem de ser encarada com parcimônia e autocontenção. Inegavelmente
exercentes que são de poder político – não obstante não sejam eleitos democraticamente – os
integrantes do Poder Judiciário devem ter a consciência do potencial que detêm de invalidar
os atos de um Presidente da República sufragado por aproximadamente sessenta milhões de
pessoas, como no caso brasileiro.
Exatamente por isso, é imperioso que se encontrem as justificativas para o
exercício desse poder contramajoritário em essência. Há, nesse sentido, duas ordens de
justificativas que legitimam o exercício do controle de constitucionalidade ou da jurisdição
constitucional14. Uma de natureza jurídica e outra de viés filosófico15.
Juridicamente, o fundamento de legitimidade da jurisdição constitucional é o
fato de que a própria Constituição atribui o seu exercício ao Poder Judiciário. A maior parte
dos Estados democráticos reserva uma parcela de poder político para ser exercida por
agentes públicos que não são recrutados pela via eleitoral, e cuja atuação é de natureza
14
Veja-se que para os fins aqui propostos as expressões controle de constitucionalidade e jurisdição constitucional serão utilizadas no
mesmo sentido – porquanto o contramajoritarismo incide sobre ambas –, muito embora sejam conceitos diversos: o primeiro é espécie da
segunda, que, além de englobar o controle de constitucionalidade das leis, diz com a aplicação direta da Constituição por juízes e tribunais.
15
Conforme a lição de Luís Roberto Barroso, em artigo disponível no site da OAB (www.oab.org.br), intitulado Judicialização,
Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 10. Acesso em 18 de abril de 2009.
9
16
Idem, p. 11.
17
Idem, p. 11-12.
10
ser visto não como uma forma de impedir a filtragem constitucional das leis e atos de agentes
políticos, mas como um meio de fortalecer o princípio da supremacia da Constituição. Por
paradoxal que pareça, é justamente no caráter contramajoritário muitas vezes assumido pelo
controle de constitucionalidade que se reafirma o valor democracia. Democracia essa,
entretanto, de índole constitucional, prevalecente sobre maiorias eventuais que visem a
suprimir bens permanentemente incrustados no seio da Constituição e que, por isso, são a
síntese do Estado Democrático de Direito no qual vivemos.
Não se pode conceber a democracia, hoje, como meramente representativa. Há
que se lhe agregar um caráter substantivo, material, no sentido de, por seu intermédio,
realizarem-se os direitos fundamentais, cujo respeito é condição de possibilidade do próprio
princípio majoritário. Ou seja, reconhecem-se e respeitam-se os direitos fundamentais
exatamente para que o governo da maioria se legitime e possa ser escolhido com observância
às regras do jogo eletivo. A garantia dos direitos fundamentais e a democracia, portanto, são
valores absolutamente amalgamados, um funcionando como condição para a ótima realização
do outro. Governa-se para promover/garantir os direitos fundamentais. Garantem-se os
direitos fundamentais para que a democracia possa funcionar sem sobressaltos, tendo a sua
boa ordem garantida.
Demonstrada essa dependência recíproca entre democracia e direitos
fundamentais, que redunda na afirmação da legitimidade da jurisdição constitucional, há que
examinar a forma pela qual a sociedade exerce o controle dessa última. Quanto aos membros
do Poder Legislativo e a chefia do Poder Executivo, o controle popular, como já ressaltado,
efetiva-se pelas eleições e a legitimidade que detêm é prévia a seus atos, uma vez que
recebem seus poderes diretamente do povo. Mas e a legitimidade das autoridades que, apesar
de não eleitas, podem negar, por afrontosa a direito fundamental, determinada política de um
governo democraticamente eleito?
Por não terem recebido o poder das urnas, o atuar desses agentes públicos se
legitima pela fundamentação de suas decisões. O controle social, nesse caso, será
concomitante ao ato que exercem, quando não posterior. Exatamente por isso, o dever que
possuem de fundamentar racionalmente suas decisões não é direcionado apenas para as partes
do processo, mas também para que a sociedade os supervisione. Isso significa que as decisões
judiciais não se podem fundar em doutrinas abrangentes ou em pontos de vista sectários –
religiosos, filosóficos, morais, econômicos ou de qualquer outro tipo –, ainda quando
espelhem concepções majoritárias na sociedade. Pelo contrário, as cortes devem buscar
argumentos que possam ser reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais
11
dispostos a um debate franco e aberto, ainda que venham a discordar dos resultados obtidos
em concreto18.
Inocêncio Mártires Coelho, no tocante ao dever de fundamentar as decisões
judiciais como forma de legitimá-las socialmente, traz valiosa contribuição19:
Afinal – observa o arguto Juan Salaverria –, direito poder e interpretação constituem uma
unidade que, por exemplo, não se encontra na interpretação de um poema; por isso, o controle dos
resultados da aplicação da lei é essencial no campo do direito. Visualizada em perspectiva mais ampla –
não apenas lógica, mas também deontológica – dir-se-ia que essa transparência do raciocínio atende,
igualmente, ao imperativo ético e político de que, num autêntico Estado de Direito, as decisões dos
agentes públicos, para se reputarem legítimas, devem convencer aqueles a quem tenha a pretensão de
obrigar. É que, diversamente do legislador – que apenas pretende ordenar –, o juiz deseja também
convencer, o que, de resto, além de emprestar consistência aos comandos jurisdicionais, densifica o
direito à tutela judicial efetiva.
Por que a Constituição exige, sob pena de nulidade, que todos os julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário sejam públicos, e fundamentadas todas as decisões? Por que as leis processuais impõem
ao juiz o dever de fundamentar a sentença, ainda que sucintamente? Pela simples razão de que, à míngua
de justificação, todo ato decisório tem-se por ilegítimo, objetivamente inválido e incompatível com a
idéia do direito enquanto instrumento de ordenação justa e racional da convivência humana.
[...]
Daí a importância de que se revestem, nos países de tradição democrática, o princípio do
devido processo legal e as chamadas garantias judiciais, como instrumentos de
racionalização/otimização do debate processual e, conseqüentemente, de controle e legitimação de seus
resultados.
Em conclusão, neste ponto, a exigência de motivação, que se impõe ao intérprete-aplicador
do direito, é condição de legitimidade e de eficácia de seu labor hermenêutico, cujo resultado só se
tornará coletivamente vinculante se obtiver o consenso social, que, no caso, funcionará, senão como
prova, pelo menos como sintoma de racionalidade.
18
BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 61.
19
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 34-38.
20
Concisão de resto imperiosa em face dos limites do presente trabalho.
12
interesses da sociedade, aquela entregue aos cuidados das pessoas jurídicas de Direito
Público.
Não obstante, a compreensão tradicional ou, melhor dizendo, conservadora dos
advogados públicos caracteriza-os, na realidade, como advogados do Governador de plantão,
o que, sobre ser desmoralizante para essa importantíssima categoria funcional, é assaz
pernicioso ao desenvolvimento do Estado Democrático de Direito.
Em decorrência dessa visão retrógrada, oriunda de setores políticos não
comprometidos com a defesa intransigente dos interesses públicos, as próprias instituições
que compõe a Advocacia de Estado (Procuradorias Gerais dos Estados, Advocacia-Geral da
União e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) autogestaram-se de forma a não exercer a
plenitude de sua missão constitucional.
Criou-se, nesse sentido, um verdadeiro mito em torno do princípio da
indisponibilidade do interesse público. Tem-se esse princípio como absoluto, um obstáculo
intransponível ao exercício amplo da independência funcional dos advogados públicos. Essa
interpretação – diga-se assim – extensiva da indisponibilidade do interesse da sociedade
oculta, na verdade, uma vontade deliberada de limitar a atuação de uma instituição que possui
dentre suas funções o controle de juridicidade dos atos de governo.
Com todo o respeito, tal linha de raciocínio não se sustenta. Se a existência do
princípio implícito da indisponibilidade do interesse público não pode ser negada porque,
além de imprescindível para a democracia, é uma decorrência lógica do próprio princípio
republicano21, não é menos verdade que o interesse público não é único e que, não raras
vezes, para proteger determinada emanação sua, acaba-se sufocando seu melhor e mais nobre
sentido. Um exemplo disso é o fato de o advogado público ser obrigado, por força desse
postulado, a recorrer sempre, até quando a Administração Pública defende em juízo uma
posição que não é a mais consentânea com o respeito aos direitos fundamentais do cidadão
que ocupa o polo oposto da relação processual.
Sobre os diversos interesses públicos que, inclusive, podem estar em
contradição, precisa a lição de Marçal Justen Filho22:
Ou seja, as situações concretas demonstram a existência de diversos interesses públicos,
inclusive em conflito entre si. Logo, a decisão a ser adotada não poderá ser fundada na pura e simples
invocação do “interesse público”. Estarão em conflito diversos interesses públicos, todos em tese
merecedores da qualificação de supremos e indisponíveis.
21
Com efeito, o administrador não é “proprietário” dos bens e interesses públicos. Cabe-lhe apenas zelar por sua observância e respeito, em
prol da sociedade, esta, sim, a sua legítima titular. Consoante a clássica lição de Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo.
2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987), a administração é a atividade do que não é proprietário – do que não tem a disposição da coisa
ou do negócio administrado. Opõe-se a noção de administração à de propriedade nisto que, sob administração, o bem se não entende
vinculado à vontade ou personalidade do administrador, porém, à finalidade impessoal a que essa vontade deve servir.
22
FILHO, Marçal Justen. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 42-43.
13
Qualquer que seja a teoria adotada acerca de interesse público, é impossível afirmar a
configuração de situações simples e homogêneas. Uma das características do Estado contemporâneo é a
fragmentação dos interesses, a afirmação conjunta de posições subjetivas contrapostas e a variação dos
arranjos entre os diferentes grupos. Nesse contexto, a utilização do conceito de interesse público tem de
fazer-se com cautela, diante da pluralidade e contraditoriedade entre os interesses dos diferentes
integrantes da sociedade.
Justamente por isso, nem sequer há um modo prático de descobrir “o” interesse da maioria
do povo. É que não existem maiorias permanentes, que tenham interesses comuns. Não existe um
conjunto homogêneo de interesses privados ao qual se possa atribuir a condição de interesse da maioria.
Na sociedade moderna, há uma pluralidade de sujeitos, com interesses contrapostos e distintos.
Isso conduziu à consagração de um entendimento traduzido nas palavras de CASSESSE, no
sentido de que “não existe o interesse público, mas os interesses públicos, no plural”.
23
Aliás, como visto, a própria existência das Procuraturas Constitucionais (Advocacia de Estado, Ministério Público e Defensoria Pública),
cada qual defendendo um interesse diverso da sociedade, é um sintoma eloquente da existência dessa diversidade de interesses públicos
(interesses da sociedade).
14
EMENTA: Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são
indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa
pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há
casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente
quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à
ultimação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo
celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado
nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido. (RE 253885, Relator(a):
Min. ELLEN GRACIE, Primeira Turma, julgado em 04/06/2002, DJ 21-06-2002 PP-00118 EMENT
VOL-02074-04 PP-00796) (grifei)
Indo mais além, todavia, o que se quer aqui é mudar o enfoque da discussão.
Da indisponibilidade do interesse público para a dificuldade contramajoritária. A razão dessa
mudança paradigmática está na tentativa de objetivar da melhor maneira o modo de ver o
freio à independência funcional da Advocacia de Estado. Acredita-se que, quanto mais clara a
objeção ao atuar independente dos advogados públicos, maior a possibilidade de emancipá-los
das amarras que muitas vezes lhes são ilegitimamente postas por políticas inconstitucionais de
detentores da chefia do Poder Executivo.
Como registrado na segunda parte deste ensaio, o contramajoritarismo seria
um suposto obstáculo ao controle de constitucionalidade da ação de exercentes de mandatos
outorgados pela sociedade (parlamentares, Governadores, Presidente da República). Um
possível impedimento, pois, a que agentes públicos não eletivos contrariem escolhas de
legitimados pelo voto popular. Na realidade, utiliza-se esse instituto como argumento para se
questionar o exercício da jurisdição constitucional. A base do raciocínio estaria em que, ao se
revisar políticas de governo, aviltar-se-ia o valor democracia. Não é bem assim, conforme
visto.
Transportando-se a análise das justificativas que confirmam a legitimidade da
jurisdição constitucional para a atividade de advocacia estatal, evidencia-se serem também
aplicáveis para autorizar o atuar contramajoritário dos advogados públicos. Pense-se num
caso em que um Procurador de Estado entendesse que determinada política do Governador
eleito contrariou direitos fundamentais do cidadão com quem o ente político estadual estaria a
litigar. E o Procurador, então, fundamentando sua decisão com razoabilidade, optasse por não
contestar o pedido. Será que essa conduta se desgarraria dos limites de sua independência
funcional? Acredita-se que não.
Assim como o Ministério Público, nesse exemplo, poderia exarar parecer
contrário à política governamental e o magistrado julgar favoravelmente ao cidadão, o
advogado público também poderia adotar esse agir contramajoritário. O argumento de que
esse último estaria numa posição de parte no processo não é suficiente para deslegitimar sua
15
atuação. Quem melhor do que o Procurador do Estado, pela proximidade que possui com a
construção da política submetida a exame judicial e pelo contato direto com os diversos
setores do Governo, para aferir a constitucionalidade do ato do Chefe do Executivo estadual?
O só fato de a “presentação” da pessoa jurídica de Direito Público estar constitucionalmente
atribuída ao advogado de Estado não pode servir de óbice absoluto a que este discorde em
juízo de uma política governamental. Relembre-se que o controle de juridicidade também é
atribuição constitucional da Advocacia de Estado.
No entanto, da mesma forma como ocorre com as demais Procuraturas
Constitucionais e com o Poder Judiciário, as rigorosas condições a serem satisfeitas pelos
advogados públicos para que ajam contramajoritariamente devem estar amplamente
divulgadas e fundamentadas nos autos do processo, possibilitando-se, assim, o imprescindível
controle social.
É de se registrar um dado que reforça a tese ora exposta. O Ministério Público
é curador de um relevantíssimo interesse público: o direito indisponível de acusação nos
crimes de ação penal pública (artigo 129, I, da Constituição). E nem por isso está
impossibilitado de postular o arquivamento de um inquérito policial ou pedir a absolvição do
réu depois de instaurada a persecutio criminis. Em qualquer desses casos, não se pode dizer
que a sociedade está à mercê dos promotores ou que estes não têm a atribuição de ponderar
qual o interesse público deve prevalecer no caso concreto: o jus puniendi estatal ou a
liberdade do réu, ambos absolutamente indisponíveis e albergados pelo texto constitucional.
O mesmo se pode dizer dos advogados de Estado. Ninguém melhor do que
estes para estabelecer um juízo de ponderação entre os diversos interesses indisponíveis em
jogo. Deve-se repetir, no entanto, que os casos em que optarem por agir contra a política
governamental submetida ao crivo judicial deverão ser os mais exaustivamente
fundamentados, em respeito aos princípios republicano e democrático, subjacentes ao instituto
da countermajoritarian difficulty.
Não há dúvidas de que a – necessária – independência funcional dos
advogados públicos abrange, sem riscos para a democracia, o sopesar entre os direitos do
cidadão e os direitos da pessoa jurídica que “presentam”. Sobre os limites e possibilidades
dessa independência funcional da Advocacia de Estado, a lição de Diogo de Figueiredo
Moreira Neto é irrepreensível24:
24
Op. cit., p. 31-32.
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25
Disponível no site da Associação Nacional dos Procuradores de Estado (ANAPE), www.anape.org.br. Acesso em 03 de maio de
2009.
17
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Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
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Maximiliano27, consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a
um caso semelhante. Quanto à teleologia do instituto, o saudoso jurista traz valorosa lição28:
Os fatos de igual natureza devem ser regulados de modo idêntico. Ubi eadem legis ratio, ibi
eadem legis dispositio; “onde se depare razão igual à da lei, ali prevalece a disposição correspondente, da
norma referida”: era o conceito básico da analogia em Roma. O uso da mesma justifica-se, ainda hoje,
porque atribui à hipótese nova os mesmos motivos e o mesmo fim do caso contemplado pela norma
existente.
Descoberta a razão íntima, fundamental, decisiva de um dispositivo, o processo analógico
transporta-lhe o efeito e a sanção a hipóteses não previstas, se nas mesmas se encontram elementos
idênticos aos que condicionam a regra positiva. Há, portanto, semelhança de casos concretos e identidade
de substância jurídica.
Funda-se a analogia, não como se pensou outrora, na vontade presumida do legislador,
e, sim, no princípio de verdadeira justiça, de igualdade jurídica, o qual exige que as espécies
semelhantes sejam reguladas por normas semelhantes; neste sentido aquele processo tradicional
constitui genuíno elemento sociológico da Aplicação do Direito. (grifei)
27
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 208.
28
Idem, p. 209-210.
29
SUNDFELD, Carlos Ari; BUENO, Cássio Scarpinella (org). Direito Processual Público. A Fazenda Pública em Juízo. 1.ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 16-17.
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Estamos, na verdade, operando com uma parte do Direito Processual, aquela em que o
Direito Público é o direito material envolvido, donde a redução do campo temático pela aposição do
termo “Público”, de modo a estabelecer uma distinção em relação ao Direito Processual propriamente
Civil. Daí a inversão dos termos, produzindo a expressão que é a síntese do nosso tema: Direito
Processual Público.
3) Uma Advocacia de Estado republicana, que tenha poder para ponderar os interesses
públicos em conflito nos casos judiciais em que atue, decidindo independentemente a posição
que adotará no processo e estando, desse modo, desobrigada a sempre oferecer resistência e
recorrer, é um meio de auxiliar a promoção dos direitos fundamentais de efetividade da tutela
jurisdicional e de duração razoável do processo. Além disso, tal perfil de Advocacia Pública,
reforçando a independência do advogado que atua no contencioso, permitirá uma política
institucional que direcione suas baterias para os casos de grande repercussão social, como o
combate aos mais vorazes sonegadores fiscais e à escandalosa corrupção e a defesa contra
pretensões ilegítimas que visem tão-somente a vilipendiar o erário, o que – frise-se ainda uma
vez – irá ao encontro do almejado alcance das promessas do artigo 3º da Constituição da
República.
4) Nesse aspecto, todavia, nunca é demais lembrar que quanto maior a dose de independência,
maiores as possibilidades de controle. A Advocacia de Estado relegitimada da forma proposta
deverá se submeter ao controle do julgador da lide, que poderá, como aqui defendido, remeter
a análise da situação à chefia da instituição, a quem caberá a última palavra sobre a posição
processual a ser seguida (artigo 28 do Código de Processo Penal), e da sociedade,
fiscalizadora dos atos de todos os agentes públicos, eletivos ou não.
5) A despeito disso, o que os advogados públicos não podem é renunciar ao seu compromisso
constitucional. A Lei Fundamental outorgou-lhes a tarefa essencial de partícipes na promoção
da justiça social, que deve ser buscada incessantemente no Estado Democrático de Direito. A
Advocacia Pública não pode ser mera coadjuvante nessa jornada. Deve assumir papel ativo,
de conformação da realidade em busca de uma sociedade menos desigual.