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ADVOCACIA DE ESTADO E DIFICULDADE

CONTRAMAJORITÁRIA: repensando a independência funcional dos


advogados públicos1

1. INTRODUÇÃO
O artigo 1º, parágrafo único, da Constituição da República, expressando a
soberania popular e o princípio democrático, é inequívoco ao dispor que o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. A Carta de Outubro,
portanto, estabeleceu como regime de governo a democracia (governo da maioria), de modo
que a maior fatia do poder político deve ser exercida por maiorias eventuais alternantes
através do sistema representativo, permitindo aos cidadãos elegerem periodicamente os
integrantes do Poder Legislativo e o Chefe do Poder Executivo.
Uma menor parcela do poder político, entretanto, é conferida a agentes
recrutados por critérios técnicos – concurso público – e não pelo batismo do voto popular:
membros do Poder Judiciário e das chamadas Funções Essenciais à Justiça (Ministério
Público, Advocacia de Estado e Defensoria Pública). O ideal de governo da maioria, dessarte,
realiza-se na atuação dos primeiros citados, Executivo e Legislativo, a quem compete elaborar
as leis e prestar os serviços públicos, suprindo as carências sociais (saúde, educação,
segurança, lazer, etc.).
Em tal cenário de relações entre agentes públicos eletivos e não eletivos, há um
elemento constantemente presente. É a chamada dificuldade contramajoritária (the
countermajoritarian difficulty)2, invocada comumente para questionar o controle judicial de
políticas públicas (traçadas que são pelos Poderes Executivo e Legislativo), tendo em vista se
tratar de um empecilho – em muitos casos contornável – à sindicabilidade, pelos juízes, dos
atos de representantes escolhidos pela vontade popular.
No presente estudo, todavia, o que se vai analisar é a incidência desse
obstáculo na atuação dos advogados públicos (Procuradores de Estado, de Município,
Advogados da União e Procuradores da Fazenda Nacional e Federais), agentes institucionais
que no seu dia-a-dia se veem às voltas com o desafio entre legitimar uma política
governamental ou negá-la porque atentatória à ordem jurídica (controle de juridicidade).
Embora esse controle de juridicidade dos atos dos agentes públicos ocorra, na
generalidade das hipóteses, no exercício da atividade de consultoria (administração

1
Autor: GUILHERME VALLE BRUM, Procurador do Estado do Rio Grande do Sul
2
Termo cunhado pelo professor da Yale Law School Alexander Bickel em seu livro The Least Dangerous Branch (1962).
2

consultiva), pode muito bem se manifestar quando o advogado de Estado atua em juízo. E é
exatamente aí que o eventual caráter contramajoritário do exercício da advocacia pública
torna-se polêmico. Pode um Procurador do Estado, por exemplo, reconhecer o direito de um
cidadão que venha a deduzir pretensão em face do ente estatal, considerando legítimo seu
pleito, ainda que contrário à política governamental? Isso atentaria contra o princípio
democrático? E contra a supremacia e indisponibilidade do interesse público? Mais ainda:
poderia esse mesmo Procurador, depois de ajuizada uma ação, vir a dela desistir, uma vez
que, pelos elementos supervenientes coligidos aos autos, convencera-se da improcedência do
seu pedido? Por fim: quais os limites dessa – diga-se assim – discricionariedade do advogado
público? Ou seja, até onde ele pode ir?
De certa forma, a Advocacia de Estado ocupa local privilegiado para
efetivação do controle jurídico sobre políticas públicas. É que, em que pese autônoma, porque
Função Essencial à Justiça, encontra-se ligada intimamente ao Poder Executivo, porquanto
responsável pelo exame interno de juridicidade e “presentante” do Estado-Administração em
juízo. Paradoxalmente, pois, o que pode ser um facilitador para a realização desse controle,
pelo contato direto com os responsáveis por elaborar e realizar determinada política pública,
também pode representar uma dificuldade a mais na fixação dos limites desse atuar contrário
a uma ação governamental, considerando as pressões de toda ordem a que os agentes dessa
instituição se acham submetidos.
Impende seja esclarecido que não se está aqui a pregar um poder ilimitado de
controle aos advogados públicos. Como se verá ao longo deste trabalho, há fortes
condicionamentos e limitações para que o Procurador de Estado ou o Advogado da União
atue contramajoritariamente. Óbices esses que, se não maiores, são os mesmos impostos ao
exercício do controle de constitucionalidade de leis e políticas públicas pelo Poder Judiciário,
tanto pelo seu órgão de cúpula, Supremo Tribunal Federal, quanto difusamente, por seus
diversos entes espalhados ao longo do território nacional.
A independência do advogado público, assim, é mitigada pela controlabilidade
social de seu agir, o qual, por isso mesmo, deve ser muito bem fundamentado, mormente
quando entender pela inconstitucionalidade de uma política pública. Também o juiz da causa
poderá, como será adiante detalhado, discordar da atuação do “presentante” estatal no caso
concreto, exercendo um controle pela via institucional.
Certamente o que se proporá neste ensaio é uma releitura, um novo olhar sobre
os dispositivos constitucionais que conformam a instituição Advocacia de Estado, de maneira
a enxergá-la mais republicana e comprometida com as promessas da modernidade,
3

consubstanciadas no belíssimo artigo 3º da Constituição da República, na forma de objetivos


fundamentais do Estado Democrático de Direito: construir uma sociedade livre, justa e
solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos. Trata-se, sem
dúvida, de uma interpretação ousada e emancipatória. Parece bem, entretanto, que seja assim.
Afinal de contas, a interpretação constitucional deve ser progressista, servindo de passaporte
ao futuro, e não reacionária, aprisionadora ao passado.

2. A ADVOCACIA DE ESTADO: breve histórico e papel constitucional


Em parecer destinado a fixar uma data adequada para comemoração do dia do
Procurador do Estado no Rio Grande do Sul, o eminente Procurador Mário Bernardo Sesta,
em profunda análise histórica da função de Advocacia Pública, remarcou as origens comuns
entre essa instituição e o que hoje conhecemos por Ministério Público3.
O erudito parecerista, em 1995, reafirmou o marco histórico
predominantemente aceito pelos historiadores luso-brasileiros de nascimento das duas
instituições4: final do século XIII. Nessa época, a Monarquia portuguesa instituiu a figura do
“Procurador del Rey”, que detinha as seguintes atribuições: defesa dos interesses do rei
quando demandado (Advocacia Pública) e, num segundo momento, perseguição criminal em
caso de crime que comportasse pena pecuniária em favor do erário (Ministério Público).
O seguinte excerto do parecer de Sesta fundamenta a escolha da data
comemorativa em 14 de janeiro de 1.2895:
No famoso relatório, intitulado “O Ministério Público e a Procuradoria-Geral da Coroa e
Fazenda”, publicado no nº 175, do “Diário do Governo” de Portugal, em 7 de agosto de 1871, reeditado
um século mais tarde no “Boletim do Ministério da Justiça” de Portugal (nº 233:5/34, 1974), JOÃO
BATISTA FERRÃO DE CARVALHO MARTENS, primeiro Procurador-Geral da Coroa e Fazenda
(unificadas), nos fornece, com precisão, a data de 14 de janeiro de 1289, para o diploma exarado pelo
monarca D. AFFONSO III, mencionando o “Procurador do Rei” “como cargo permanente juncto do
monarcha, tendo o privilégio de chamar à casa do rei (tribunal de relação) as pessoas que com ele haviam
pleitos”.
Essa é a data documentada referente à origem comum da Advocacia de Estado e do
Ministério Público no direito luso-brasileiro, ficando mais do que claro, pela leitura daquele “Relatório”,
o mesmo que se lê noutros textos históricos pertinentes à matéria, que a atividade relativa à Advocacia de
Estado era a competência mais relevante daqueles agentes reais.

3
SESTA, Mário Bernardo. Consulta: Dia do Procurador do Estado. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul.
Edição Especial: Cadernos de Direito Público. v. 2, 2005, p. 223-238.
4
Há que referir, por oportuno, que o marco histórico aludido é o que leva em consideração um formato muito próximo à atual configuração
dessas instituições. Existem, todavia, outras formas de manifestação de Advocacia Pública em momentos da História bem anteriores: o
causídico que exercia a defesa das cidades na civilização helênica, o “defensor da lei” de Atenas e, na Roma antiga, o Procurador Caesaris,
advogado do Imperador encarregado da área fiscal. Para uma descrição dessas figuras, remete-se ao estudo de Carlos Figueiredo Mourão,
baseado em artigo de autoria de Dárcio Augusto Chaves de Faria: MOURÃO, Carlos Figueiredo. A Advocacia Pública como instituição de
controle interno da Administração. Revista Interesse Público. n. 52, 2008, p. 43-51.
5
Op. cit., p. 226.
4

No Direito brasileiro, a Advocacia de Estado nasceu identicamente ao Direito


português, ou seja, amalgamada ao Ministério Público. Em nível federal, da Constituição do
Império à Constituição de 1969, esse modelo prevaleceu, vindo a ser reformado apenas com a
atual Carta, que seccionou as duas instituições.
Conforme leciona José Afonso da Silva6, há uma nota interessante na evolução
da Advocacia Pública no Brasil. No Império, a instituição exercia preponderantemente as
funções de Ministério Público – persecutio criminis e custos legis –, que prevaleciam de
maneira marcante sobre a função de defesa judicial dos interesses da Fazenda. Na República
Federativa, todavia, essa realidade muda radicalmente. A atuação na área penal e a curadoria
dos interesses privados indisponíveis passou para as Justiças Estaduais e, por via de
consequência, para o Parquet dos Estados. Houve, portanto, uma descentralização das
funções do Ministério Público, de maneira que o Ministério Público Federal tornou-se
fundamentalmente um órgão de defesa dos interesses da União em juízo. As funções típicas
de Ministério Público foram se tornando marginais, notadamente quando a Constituição de
1937 extinguiu a Justiça Federal. Veja-se que os membros da instituição chamaram-se7
Procuradores da República, eloquente consectário da atribuição principal que
desempenhavam.
Prossegue-se o relato com as exatas palavras do professor José Afonso8:
Com a criação de Justiças Federais Especiais, Eleitoral, do Trabalho, pela Constituição de
1946, surgiram ramos do Ministério Público da União junto dessas Justiças, mas o ramo chamado
Ministério Público Federal continuou sendo tipicamente Advocacia Pública da União, embora
acumulasse também atividades típicas de Ministério Público, especialmente depois da recriação da
Justiça Federal de primeira instância.
Isso significa, como, aliás, já observara Tomás Pará Filho, no I Congresso Nacional de
Procuradores de Estado, que, diante da tradição firmada em nosso sistema administrativo, que a
Advocacia Pública tem posição equivalente à do Ministério Público, tanto que ambas as funções foram
sempre desempenhadas, na União, por uma única instituição, e, não só, mas até pelos mesmos membros.
Portanto, nada há a estranhar quando a Constituição vigente distinguiu as atribuições de defesa da
sociedade e do Estado, em instituições distintas: Ministério Público e Advocacia Pública (da União e dos
Estados), tinha, como conseqüência, de manter o princípio da eqüipolência entre os seus executores.

Como visto, hoje, há uma divisão constitucionalmente bem marcada entre


Advocacia Pública e Ministério Público. Estão em seções diversas do capítulo intitulado de
Funções Essenciais à Justiça. A Seção I destina-se a traçar o perfil do Ministério Público
(artigos 127 a 130-A) e a Seção II, da Advocacia Pública (artigos 131 e 132), em igual
dignidade constitucional.

6
SILVA, José Afonso da. A Advocacia Pública e o Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Administrativo, São Paulo, n. 230,
out/dez 2002, p. 282.
7
E se chamam até hoje. Nesse sentido, confira-se a interessante redação do artigo 29, §2º, do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias (Título X da Constituição de 1988): Aos atuais Procuradores da República, nos termos da lei complementar, será facultada a
opção, de forma irretratável, entre as carreiras do Ministério Público Federal e da Advocacia-Geral da União.
8
Idem, p. 282-283.
5

Não satisfeita com essa divisão, todavia, a Carta de Outubro de 1988 foi ainda
mais minudente. Trouxe uma terceira curadora de interesses públicos, a Defensoria Pública,
que exerce advocacia de defesa dos necessitados e compõe parte da Seção III do mesmo
capítulo (artigo 134).
Na ordem constitucional atual, portanto, os tradicionais interesses públicos
dignos de proteção por instituições permanentes estão separados e postos sob a guarda de
órgãos distintos. Porém, deve-se deixar bem clara a inexistência de uma relação de hierarquia
ou preferência a priori entre esses interesses, que podem naturalmente estar em conflito. O
caso concreto submetido ao exame do Poder Judiciário é que determinará o interesse que
deverá prevalecer para a específica situação analisada.
O Procurador do Estado do Rio de Janeiro Diogo de Figueiredo Moreira Neto9,
um dos maiores estudiosos do perfil constitucional das Funções Essenciais à Justiça,
denomina as três instituições ora de Provedorias de Justiça, ora de Procuraturas
Constitucionais e ora simplesmente de advocacias. Com essas nomenclaturas, o jurista deixa
bem delineados os contornos desses órgãos, que os destacam das demais classes de servidores
públicos, seja pelo seu papel fundamental de sustentáculo do Estado Democrático de Direito,
seja pelos seus estatutos jurídicos diferenciados. Vale fazer referência expressa ao magistério
do ilustre Procurador10:
Em suma: a distinção, historicamente desenvolvida, entre os três ramos públicos e
atualmente em vigor – a advocacia da sociedade no sentido estrito, cometida aos Ministérios Públicos da
União, dos Estados e do Distrito Federal; a advocacia de Estado, desses dois níveis políticos; e a
advocacia dos necessitados, também nos dois níveis políticos superiores – apenas representa uma
evolução, no sentido da melhor divisão de trabalho e nunca, como equivocadamente se tem pretendido,
o reflexo de uma “hierarquização” de interesses.
Com a preocupação de desfazer equívocos, em trabalho anterior, preferi usar uma nova
expressão – “procuraturas constitucionais” – para denominar essas carreiras, visando a distingui-las das
demais procuradorias, de Municípios, de autarquias e de fundações, que não têm radical constitucional.
A opção de separar as três carreiras completou um ciclo de aperfeiçoamento que só veio a
amadurecer plenamente na Constituição de 1988, pois, até então, a Procuradoria-Geral da República
cumulava duas procuraturas federais.
Também nos Estados prevaleceu a acumulação da Defensoria Pública, ora com o Ministério
Público, ora com a Procuradoria-Geral do Estado; ainda hoje persistente, não obstante o claríssimo
comando diferenciador do art. 134, da Constituição, que lhe dá status institucional no mesmo nível que
as suas congêneres, essenciais à justiça. (grifos do autor)

Com uma linha de raciocínio impecável, Diogo Neto, no mesmo trabalho11,


analisa as três instituições sob a ótica do interesse da sociedade. A elas, aliás, agrega a
advocacia privada. Eis a frase lapidar do douto jurista: Todos os interesses protegidos pela
ordem jurídica são, evidentemente, interesses da sociedade. Conforme, porém, sua natureza
9
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. As Provedorias de Justiça no Estado Contemporâneo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado
do Rio Grande do Sul, n. 49, 1993.
10
Idem, p. 27.
11
Idem, p. 25-26. Vale também conferir outro estudo de fôlego seu: NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. O Procurador do Estado na
Constituição de 1988. Cadernos de Advocacia de Estado, Belém, n. 0, p. 08-14, nov 1991.
6

ou quais sejam seus eventuais titulares, variarão as espécies de advocacia competentes para
atuar (grifei).
Assim, os interesses da sociedade individualmente considerados, podem ser
tutelados por advogados privados. Os interesses da sociedade considerada como um todo
(difusamente) ou de certos segmentos seus devem ser providos pelo Ministério Público. Os
interesses da sociedade entregues legal e constitucionalmente à Administração das
entidades federadas devem ser defendidos pela Advocacia Pública. Os interesses da
sociedade vinculados às pessoas carentes devem ser protegidos pela Defensoria Pública.
Como se vê, tratam-se de separações funcionais de um mesmo Poder, que, não
obstante não seja qualificado como tal pela Constituição da República, está implicitamente
presente no ordenamento jurídico. Dessarte, a expressão Função Essencial à Justiça não
significa que seja algo vinculado ao Poder Judiciário. Quando a Constituição reservou um
capítulo específico para algo essencial à Justiça, tratou da Justiça como valor, na sua
materialidade. Quer-se dizer, como um bem a ser perseguido pelo Estado Democrático de
Direito.
A própria localização topográfica das Funções Essenciais à Justiça está a
indicar seu destacamento dos demais Poderes do Estado, pois faz parte do Capítulo IV do
Título IV, título esse que trata exatamente da Organização dos Poderes. Localiza-se, pois, no
último capítulo do título, apartado dos demais Poderes da República, que compõem os três
primeiros capítulos.
Mais uma vez, ouça-se a voz de Diogo de Figueiredo Moreira Neto,
corroborando o que se afirma12:
Ultrapassada a prevalência do conceito orgânico de poder, que aceitava a divisão do Poder
Estatal entre entidades e órgãos diversos, fixa-se, hoje, a doutrina, no conceito funcional, que entende
uno, o Poder, em sua essência, com resultado de uma concentração sócio-política, mas divisível em seu
exercício, como produto de uma descentralização juspolítica.
Observe-se, nessa linha, que a Constituição brasileira de 1988, ao organizar o Poder Estatal,
não se limitou, como o fizeram as anteriores, às descentralizações tradicionais entre os complexos
orgânicos denominados de Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, instituindo um quarto
complexo orgânico que, embora não conformando um quarto Poder, recebeu a seu cargo a função
essencial de provedoria da justiça perante todos os demais Poderes do Estado.
Repise-se que o legislador constitucional não as instituiu como funções “auxiliares”,
dispensáveis ou substituíveis, mas como funções “essenciais”, no sentido de serem tão imprescindíveis à
existência do Estado Democrático de Direito quanto qualquer das demais do mesmo Título IV, o que as
submete ao mesmo princípio da harmonia e independência entre as manifestações de Poder do Estado,
consubstanciado no art. 2.º, da Constituição, e alçado a cláusula pétrea, no art. 60, § 4.º, III.
A essencialidade à Justiça, insista-se pois, não se deve entender que se refira apenas à ação
que desempenham perante o Poder Judiciário, ou seja, perante a “Justiça” no sentido orgânico, mas,
verdadeiramente, referida a todos os Poderes do Estado, enquanto diga respeito à realização do valor
justiça por qualquer deles.
Justiça está entendida, assim, no seu sentido mais amplo, condizente com todos os valores
que deve realizar o Estado Democrático de Direito, como finalidade última do poder na vida social, sem

12
Op. cit., p. 28-29.
7

nenhum qualificativo parcializante que possa permitir que se restrinja, de alguma forma, tanto o âmbito
de atuação quanto a destinação das advocacias dos interesses constitucionalmente garantidos.
[...]
Em suma, no cerne dessas funções essenciais à justiça está a provedoria desse valor síntese,
na promoção e defesa dos múltiplos interesses que o homem desenvolve em sua convivência, dentro ou
fora do Estado, praticados nos variados tipos de ministérios de uma unímoda advocacia de interesses,
aqui tomada em seu sentido lato, desdobrada no Capítulo IV, Título IV, na geral, na da sociedade, na do
Estado e na dos necessitados.

Dessa preciosa lição extrai-se a melhor interpretação do texto constitucional.


Especificamente no que concerne à Advocacia de Estado, objeto deste trabalho, interpretá-la
como uma instituição promovedora do valor justiça é certamente a forma que melhor a
enquadra no espírito redemocratizante e emancipatório da Lei Fundamental.
Como se verá no desenvolvimento do presente ensaio, esse perfil de Advocacia
Pública é o único consentâneo com o artigo 3º da Constituição da República, que
consubstancia os objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito.
Antes, no entanto, de enunciar o reexame proposto da atividade dos advogados
de Estado, é imprescindível que se relacione o desenvolvimento desse mister essencial à
justiça com a chamada dificuldade contramajoritária, conceito a ser explicitado no próximo
capítulo.

3. A DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: reflexões sobre o conceito


Tecidas as pertinentes considerações acerca da instituição Advocacia de
Estado, é imprescindível que se lance um olhar, ainda que breve, sobre o conceito de
dificuldade contramajoritária para que, fixados alguns acordos semânticos, possa-se
demonstrar a influência desta na atividade dos advogados públicos, seja como fator de
limitação do seu poder, seja como meio de justificar uma emancipação do governante de
plantão.
A expressão dificuldade contramajoritária não é de uso muito comum na
doutrina constitucional brasileira. Há situações, entretanto, em que a ideia subjaz às teorias
desenvolvidas aqui em terrae brasilis, principalmente quando se aborda a questão da
legitimidade do controle de constitucionalidade exercido pela Suprema Corte.
Luís Roberto Barroso13, uma das mais autorizadas vozes do Direito
Constitucional pátrio, registra que o termo countermajoritarian difficulty foi utilizado
ineditamente por Alexander Bickel, na obra The least dangerous branch, cuja primeira edição

13
BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil).
Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, n. 60, jul/dez. 2004, p. 61.
8

remonta a 1962. Vale dizer, entretanto, que o contramajoritarismo tornou-se pauta de debates
entre constitucionalistas estrangeiros, embora não sob essa designação, em momentos
históricos bem anteriores. O próprio caso Marbury v. Madison, famoso precedente de 1803
que inaugurou o controle de constitucionalidade no moderno constitucionalismo, versou,
mesmo que não de maneira expressa, exatamente a questão da regra contramajoritária.
Um conceito para o objeto do que ora se está a estudar é de relativamente fácil
construção. Trata-se, basicamente, de uma suposta impossibilidade de que órgãos formados
por agentes públicos não eletivos (como os juízes, no Brasil) invalidem decisões de órgãos
legitimados pela escolha popular. Tratar-se-ia de um empecilho ao controle de
constitucionalidade do agir de agentes estatais que assumem sua função pela benção do voto
popular. Dito de outro modo, a dificuldade contramajoritária seria um meio de se questionar a
própria legitimidade do controle de constitucionalidade exercido pelos tribunais.
Desde já se adianta que o contramajoritarismo, em que pese deva ser levado a
sério, não afeta a legitimidade da jurisdição constitucional, desde que esta respeite as balizas
fixadas pela necessidade de fundamentação racional das decisões e seja exercida para
preservar a força normativa dos direitos fundamentais, os quais integram o próprio valor
democracia. Isso quer dizer que a possibilidade de os juízes deixarem de aplicar uma lei
inconstitucional tem de ser encarada com parcimônia e autocontenção. Inegavelmente
exercentes que são de poder político – não obstante não sejam eleitos democraticamente – os
integrantes do Poder Judiciário devem ter a consciência do potencial que detêm de invalidar
os atos de um Presidente da República sufragado por aproximadamente sessenta milhões de
pessoas, como no caso brasileiro.
Exatamente por isso, é imperioso que se encontrem as justificativas para o
exercício desse poder contramajoritário em essência. Há, nesse sentido, duas ordens de
justificativas que legitimam o exercício do controle de constitucionalidade ou da jurisdição
constitucional14. Uma de natureza jurídica e outra de viés filosófico15.
Juridicamente, o fundamento de legitimidade da jurisdição constitucional é o
fato de que a própria Constituição atribui o seu exercício ao Poder Judiciário. A maior parte
dos Estados democráticos reserva uma parcela de poder político para ser exercida por
agentes públicos que não são recrutados pela via eleitoral, e cuja atuação é de natureza

14
Veja-se que para os fins aqui propostos as expressões controle de constitucionalidade e jurisdição constitucional serão utilizadas no
mesmo sentido – porquanto o contramajoritarismo incide sobre ambas –, muito embora sejam conceitos diversos: o primeiro é espécie da
segunda, que, além de englobar o controle de constitucionalidade das leis, diz com a aplicação direta da Constituição por juízes e tribunais.
15
Conforme a lição de Luís Roberto Barroso, em artigo disponível no site da OAB (www.oab.org.br), intitulado Judicialização,
Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 10. Acesso em 18 de abril de 2009.
9

eminentemente técnica e imparcial16. Com efeito, ao fazerem valer a “vontade


constitucional”, os magistrados estão atuando contra maiorias parlamentares eventuais, mas
em respeito aos desígnios soberanos do povo, reunido em Assembleia Nacional Constituinte.
Esse fundamento de legitimidade, no entanto, não é suficiente. De há muito a
doutrina constitucional pátria e estrangeira considera o juiz como um participante na
construção do sentido da norma, que é o resultado da interpretação de um texto. Ou seja, o
intérprete dá sentido a um texto, participa com sua vontade do resultado do que está
interpretando. Não há uma vontade constitucional unívoca. Dentro da “moldura” de
possibilidades interpretativas de um dispositivo, a pessoa que o está interpretando, em um ato
de vontade, escolherá seu melhor sentido. Sob determinado ângulo, trata-se de uma atuação
relativamente discricionária do intérprete, sobretudo quando em questão o texto
constitucional, recheado de expressões de conteúdo aberto e conceitos indeterminados.
Dessarte, à justificativa jurídica do exercício do controle de
constitucionalidade deve-se agregar a razão filosófica que legitima essa atividade. Vale a
pena, ainda uma vez, invocarem-se os ensinamentos de Barroso, resumindo com objetividade
e percuciência o fundamento filosófico que serve de anteparo ao exercício da jurisdição
constitucional. Ao Mestre17:

A justificação filosófica para a jurisdição constitucional e para a atuação do Judiciário na


vida institucional é um pouco mais sofisticada, mas ainda assim fácil de compreender. O Estado
constitucional democrático, como o nome sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se
confundem. Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O Estado
de direito como expressão da razão. Já democracia significa soberania popular, governo do povo. O
poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e constitucionalismo, entre vontade e razão,
entre direitos fundamentais e governo da maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos
aparentes.
Por essa razão, a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é o de
estabelecer as regras do jogo democrático, assegurando a participação política ampla, o governo da
maioria e a alternância no poder. Mas a democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver
oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo
pela janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de uma
Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de
quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é
velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um forum de
princípios – não de política – e de razão pública – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias
políticas ou concepções religiosas.

Assim, ao assegurar que as regras do jogo democrático sejam observadas e


garantir o respeito aos direitos fundamentais, a jurisdição constitucional, atuando
contramajoritariamente, funciona, na verdade, como garantidora da própria democracia. Ao
contrário, pois, do que uma análise apressada pudesse concluir, o contramajoritarismo deve

16
Idem, p. 11.
17
Idem, p. 11-12.
10

ser visto não como uma forma de impedir a filtragem constitucional das leis e atos de agentes
políticos, mas como um meio de fortalecer o princípio da supremacia da Constituição. Por
paradoxal que pareça, é justamente no caráter contramajoritário muitas vezes assumido pelo
controle de constitucionalidade que se reafirma o valor democracia. Democracia essa,
entretanto, de índole constitucional, prevalecente sobre maiorias eventuais que visem a
suprimir bens permanentemente incrustados no seio da Constituição e que, por isso, são a
síntese do Estado Democrático de Direito no qual vivemos.
Não se pode conceber a democracia, hoje, como meramente representativa. Há
que se lhe agregar um caráter substantivo, material, no sentido de, por seu intermédio,
realizarem-se os direitos fundamentais, cujo respeito é condição de possibilidade do próprio
princípio majoritário. Ou seja, reconhecem-se e respeitam-se os direitos fundamentais
exatamente para que o governo da maioria se legitime e possa ser escolhido com observância
às regras do jogo eletivo. A garantia dos direitos fundamentais e a democracia, portanto, são
valores absolutamente amalgamados, um funcionando como condição para a ótima realização
do outro. Governa-se para promover/garantir os direitos fundamentais. Garantem-se os
direitos fundamentais para que a democracia possa funcionar sem sobressaltos, tendo a sua
boa ordem garantida.
Demonstrada essa dependência recíproca entre democracia e direitos
fundamentais, que redunda na afirmação da legitimidade da jurisdição constitucional, há que
examinar a forma pela qual a sociedade exerce o controle dessa última. Quanto aos membros
do Poder Legislativo e a chefia do Poder Executivo, o controle popular, como já ressaltado,
efetiva-se pelas eleições e a legitimidade que detêm é prévia a seus atos, uma vez que
recebem seus poderes diretamente do povo. Mas e a legitimidade das autoridades que, apesar
de não eleitas, podem negar, por afrontosa a direito fundamental, determinada política de um
governo democraticamente eleito?
Por não terem recebido o poder das urnas, o atuar desses agentes públicos se
legitima pela fundamentação de suas decisões. O controle social, nesse caso, será
concomitante ao ato que exercem, quando não posterior. Exatamente por isso, o dever que
possuem de fundamentar racionalmente suas decisões não é direcionado apenas para as partes
do processo, mas também para que a sociedade os supervisione. Isso significa que as decisões
judiciais não se podem fundar em doutrinas abrangentes ou em pontos de vista sectários –
religiosos, filosóficos, morais, econômicos ou de qualquer outro tipo –, ainda quando
espelhem concepções majoritárias na sociedade. Pelo contrário, as cortes devem buscar
argumentos que possam ser reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais
11

dispostos a um debate franco e aberto, ainda que venham a discordar dos resultados obtidos
em concreto18.
Inocêncio Mártires Coelho, no tocante ao dever de fundamentar as decisões
judiciais como forma de legitimá-las socialmente, traz valiosa contribuição19:
Afinal – observa o arguto Juan Salaverria –, direito poder e interpretação constituem uma
unidade que, por exemplo, não se encontra na interpretação de um poema; por isso, o controle dos
resultados da aplicação da lei é essencial no campo do direito. Visualizada em perspectiva mais ampla –
não apenas lógica, mas também deontológica – dir-se-ia que essa transparência do raciocínio atende,
igualmente, ao imperativo ético e político de que, num autêntico Estado de Direito, as decisões dos
agentes públicos, para se reputarem legítimas, devem convencer aqueles a quem tenha a pretensão de
obrigar. É que, diversamente do legislador – que apenas pretende ordenar –, o juiz deseja também
convencer, o que, de resto, além de emprestar consistência aos comandos jurisdicionais, densifica o
direito à tutela judicial efetiva.
Por que a Constituição exige, sob pena de nulidade, que todos os julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário sejam públicos, e fundamentadas todas as decisões? Por que as leis processuais impõem
ao juiz o dever de fundamentar a sentença, ainda que sucintamente? Pela simples razão de que, à míngua
de justificação, todo ato decisório tem-se por ilegítimo, objetivamente inválido e incompatível com a
idéia do direito enquanto instrumento de ordenação justa e racional da convivência humana.
[...]
Daí a importância de que se revestem, nos países de tradição democrática, o princípio do
devido processo legal e as chamadas garantias judiciais, como instrumentos de
racionalização/otimização do debate processual e, conseqüentemente, de controle e legitimação de seus
resultados.
Em conclusão, neste ponto, a exigência de motivação, que se impõe ao intérprete-aplicador
do direito, é condição de legitimidade e de eficácia de seu labor hermenêutico, cujo resultado só se
tornará coletivamente vinculante se obtiver o consenso social, que, no caso, funcionará, senão como
prova, pelo menos como sintoma de racionalidade.

Dizendo-o de outro modo, a razoabilidade e a lógica do raciocínio do agente


público não eleito, quando atua contramajoritariamente, devem ser precisamente explicitadas,
tornando-se capazes de convencer a sociedade de que determinada política de governo é
constitucionalmente inadequada à luz do próprio princípio democrático e dos direitos
fundamentais.
É boa hora de encerrar esse breve apanhado do conceito de dificuldade
contramajoritária, pois, apesar da concisão do relato20, já se tem arsenal suficiente para que se
direcione a argumentação para a incidência desse instituto no atuar dos advogados de Estado.

4. A ADVOCACIA DE ESTADO E A DIFICULDADE


CONTRAMAJORITÁRIA: a compreensão tradicional da independência
funcional dos advogados públicos e uma proposta de reinterpretação
emancipatória

Como referido no item segundo deste estudo, a atividade de Advocacia de


Estado, Função Essencial à Justiça, é curadora de considerável e importante parte dos

18
BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 61.
19
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 34-38.
20
Concisão de resto imperiosa em face dos limites do presente trabalho.
12

interesses da sociedade, aquela entregue aos cuidados das pessoas jurídicas de Direito
Público.
Não obstante, a compreensão tradicional ou, melhor dizendo, conservadora dos
advogados públicos caracteriza-os, na realidade, como advogados do Governador de plantão,
o que, sobre ser desmoralizante para essa importantíssima categoria funcional, é assaz
pernicioso ao desenvolvimento do Estado Democrático de Direito.
Em decorrência dessa visão retrógrada, oriunda de setores políticos não
comprometidos com a defesa intransigente dos interesses públicos, as próprias instituições
que compõe a Advocacia de Estado (Procuradorias Gerais dos Estados, Advocacia-Geral da
União e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional) autogestaram-se de forma a não exercer a
plenitude de sua missão constitucional.
Criou-se, nesse sentido, um verdadeiro mito em torno do princípio da
indisponibilidade do interesse público. Tem-se esse princípio como absoluto, um obstáculo
intransponível ao exercício amplo da independência funcional dos advogados públicos. Essa
interpretação – diga-se assim – extensiva da indisponibilidade do interesse da sociedade
oculta, na verdade, uma vontade deliberada de limitar a atuação de uma instituição que possui
dentre suas funções o controle de juridicidade dos atos de governo.
Com todo o respeito, tal linha de raciocínio não se sustenta. Se a existência do
princípio implícito da indisponibilidade do interesse público não pode ser negada porque,
além de imprescindível para a democracia, é uma decorrência lógica do próprio princípio
republicano21, não é menos verdade que o interesse público não é único e que, não raras
vezes, para proteger determinada emanação sua, acaba-se sufocando seu melhor e mais nobre
sentido. Um exemplo disso é o fato de o advogado público ser obrigado, por força desse
postulado, a recorrer sempre, até quando a Administração Pública defende em juízo uma
posição que não é a mais consentânea com o respeito aos direitos fundamentais do cidadão
que ocupa o polo oposto da relação processual.
Sobre os diversos interesses públicos que, inclusive, podem estar em
contradição, precisa a lição de Marçal Justen Filho22:
Ou seja, as situações concretas demonstram a existência de diversos interesses públicos,
inclusive em conflito entre si. Logo, a decisão a ser adotada não poderá ser fundada na pura e simples
invocação do “interesse público”. Estarão em conflito diversos interesses públicos, todos em tese
merecedores da qualificação de supremos e indisponíveis.

21
Com efeito, o administrador não é “proprietário” dos bens e interesses públicos. Cabe-lhe apenas zelar por sua observância e respeito, em
prol da sociedade, esta, sim, a sua legítima titular. Consoante a clássica lição de Ruy Cirne Lima (Princípios de Direito Administrativo.
2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987), a administração é a atividade do que não é proprietário – do que não tem a disposição da coisa
ou do negócio administrado. Opõe-se a noção de administração à de propriedade nisto que, sob administração, o bem se não entende
vinculado à vontade ou personalidade do administrador, porém, à finalidade impessoal a que essa vontade deve servir.
22
FILHO, Marçal Justen. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 42-43.
13

Qualquer que seja a teoria adotada acerca de interesse público, é impossível afirmar a
configuração de situações simples e homogêneas. Uma das características do Estado contemporâneo é a
fragmentação dos interesses, a afirmação conjunta de posições subjetivas contrapostas e a variação dos
arranjos entre os diferentes grupos. Nesse contexto, a utilização do conceito de interesse público tem de
fazer-se com cautela, diante da pluralidade e contraditoriedade entre os interesses dos diferentes
integrantes da sociedade.
Justamente por isso, nem sequer há um modo prático de descobrir “o” interesse da maioria
do povo. É que não existem maiorias permanentes, que tenham interesses comuns. Não existe um
conjunto homogêneo de interesses privados ao qual se possa atribuir a condição de interesse da maioria.
Na sociedade moderna, há uma pluralidade de sujeitos, com interesses contrapostos e distintos.
Isso conduziu à consagração de um entendimento traduzido nas palavras de CASSESSE, no
sentido de que “não existe o interesse público, mas os interesses públicos, no plural”.

Exatamente por essa circunstância, pela característica dúctil, fluida, enfim,


indeterminada do conceito de interesse público, que redunda justamente no reconhecimento
de espécies variadas de interesses públicos23, o princípio em comento não pode servir de
limitador absoluto da independência dos Procuradores de Estado ou Advogados da União.
Esses agentes institucionais submeteram-se a dificílimos concursos, que visam a selecionar,
segundo critérios eminentemente objetivos, os mais bem preparados a integrar as
correspondentes carreiras. O nível de exigência técnica para que esses profissionais alcancem
os respectivos cargos é considerado o mesmo a que estão sujeitos os que optam pela carreira
da magistratura, Ministério Público ou Defensoria. Portanto, além de ocuparem cargos de
idêntica dignidade constitucional, estão todos igualmente aptos a fazer uma ponderação entre
os diversos interesses da sociedade em choque nos casos práticos em que atuam.
De qualquer forma, o que propõe o presente trabalho é o fornecimento de um
norte tão objetivo quanto possível para iluminar a atuação dos advogados públicos quando,
em determinadas hipóteses, entendem devam contrariar em juízo uma política de governo.
Esse norte poderia ser o propalado interesse público, que, a despeito de ser indisponível, não é
uno, como referido. Assim, valendo-se das técnicas de ponderação de valores e bens
constitucionais, poderia o advogado de Estado escolher qual o interesse da sociedade deveria
prevalecer no caso concreto: o interesse da sociedade representado na política governamental
do momento, privilegiando o valor democracia, ou um interesse da sociedade
momentaneamente contrário à ação do Governador eleito, fulcrado obviamente em outro
valor ou direito constitucional.
Veja-se que, a amparar a presente (e ousada) proposta, há um elucidativo
julgado do Supremo Tribunal Federal, no recurso extraordinário n.º 253.885, cujo objeto foi
uma transação havida entre ente político municipal e seus servidores, aceitando o caráter
multifário do princípio da indisponibilidade do interesse público. Eis o teor do precedente:

23
Aliás, como visto, a própria existência das Procuraturas Constitucionais (Advocacia de Estado, Ministério Público e Defensoria Pública),
cada qual defendendo um interesse diverso da sociedade, é um sintoma eloquente da existência dessa diversidade de interesses públicos
(interesses da sociedade).
14

EMENTA: Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são
indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa
pública, não tem disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há
casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente
quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à
ultimação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo
celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado
nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido. (RE 253885, Relator(a):
Min. ELLEN GRACIE, Primeira Turma, julgado em 04/06/2002, DJ 21-06-2002 PP-00118 EMENT
VOL-02074-04 PP-00796) (grifei)

Indo mais além, todavia, o que se quer aqui é mudar o enfoque da discussão.
Da indisponibilidade do interesse público para a dificuldade contramajoritária. A razão dessa
mudança paradigmática está na tentativa de objetivar da melhor maneira o modo de ver o
freio à independência funcional da Advocacia de Estado. Acredita-se que, quanto mais clara a
objeção ao atuar independente dos advogados públicos, maior a possibilidade de emancipá-los
das amarras que muitas vezes lhes são ilegitimamente postas por políticas inconstitucionais de
detentores da chefia do Poder Executivo.
Como registrado na segunda parte deste ensaio, o contramajoritarismo seria
um suposto obstáculo ao controle de constitucionalidade da ação de exercentes de mandatos
outorgados pela sociedade (parlamentares, Governadores, Presidente da República). Um
possível impedimento, pois, a que agentes públicos não eletivos contrariem escolhas de
legitimados pelo voto popular. Na realidade, utiliza-se esse instituto como argumento para se
questionar o exercício da jurisdição constitucional. A base do raciocínio estaria em que, ao se
revisar políticas de governo, aviltar-se-ia o valor democracia. Não é bem assim, conforme
visto.
Transportando-se a análise das justificativas que confirmam a legitimidade da
jurisdição constitucional para a atividade de advocacia estatal, evidencia-se serem também
aplicáveis para autorizar o atuar contramajoritário dos advogados públicos. Pense-se num
caso em que um Procurador de Estado entendesse que determinada política do Governador
eleito contrariou direitos fundamentais do cidadão com quem o ente político estadual estaria a
litigar. E o Procurador, então, fundamentando sua decisão com razoabilidade, optasse por não
contestar o pedido. Será que essa conduta se desgarraria dos limites de sua independência
funcional? Acredita-se que não.
Assim como o Ministério Público, nesse exemplo, poderia exarar parecer
contrário à política governamental e o magistrado julgar favoravelmente ao cidadão, o
advogado público também poderia adotar esse agir contramajoritário. O argumento de que
esse último estaria numa posição de parte no processo não é suficiente para deslegitimar sua
15

atuação. Quem melhor do que o Procurador do Estado, pela proximidade que possui com a
construção da política submetida a exame judicial e pelo contato direto com os diversos
setores do Governo, para aferir a constitucionalidade do ato do Chefe do Executivo estadual?
O só fato de a “presentação” da pessoa jurídica de Direito Público estar constitucionalmente
atribuída ao advogado de Estado não pode servir de óbice absoluto a que este discorde em
juízo de uma política governamental. Relembre-se que o controle de juridicidade também é
atribuição constitucional da Advocacia de Estado.
No entanto, da mesma forma como ocorre com as demais Procuraturas
Constitucionais e com o Poder Judiciário, as rigorosas condições a serem satisfeitas pelos
advogados públicos para que ajam contramajoritariamente devem estar amplamente
divulgadas e fundamentadas nos autos do processo, possibilitando-se, assim, o imprescindível
controle social.
É de se registrar um dado que reforça a tese ora exposta. O Ministério Público
é curador de um relevantíssimo interesse público: o direito indisponível de acusação nos
crimes de ação penal pública (artigo 129, I, da Constituição). E nem por isso está
impossibilitado de postular o arquivamento de um inquérito policial ou pedir a absolvição do
réu depois de instaurada a persecutio criminis. Em qualquer desses casos, não se pode dizer
que a sociedade está à mercê dos promotores ou que estes não têm a atribuição de ponderar
qual o interesse público deve prevalecer no caso concreto: o jus puniendi estatal ou a
liberdade do réu, ambos absolutamente indisponíveis e albergados pelo texto constitucional.
O mesmo se pode dizer dos advogados de Estado. Ninguém melhor do que
estes para estabelecer um juízo de ponderação entre os diversos interesses indisponíveis em
jogo. Deve-se repetir, no entanto, que os casos em que optarem por agir contra a política
governamental submetida ao crivo judicial deverão ser os mais exaustivamente
fundamentados, em respeito aos princípios republicano e democrático, subjacentes ao instituto
da countermajoritarian difficulty.
Não há dúvidas de que a – necessária – independência funcional dos
advogados públicos abrange, sem riscos para a democracia, o sopesar entre os direitos do
cidadão e os direitos da pessoa jurídica que “presentam”. Sobre os limites e possibilidades
dessa independência funcional da Advocacia de Estado, a lição de Diogo de Figueiredo
Moreira Neto é irrepreensível24:

24
Op. cit., p. 31-32.
16

A independência funcional diz respeito à insujeição das procuraturas constitucionais a


qualquer outro Poder do Estado em tudo o que tange ao exercício de suas funções essenciais à justiça.
Mesmo o seu interrelacionamento segue a própria fórmula de independência constitucional. Não obstante
poderem atuar, em tese, face a qualquer dos Poderes do Estado, não podem a eles se sujeitar nem deles
receber influência quanto ao desempenho de suas funções. No que respeita ao Ministério Público, este
princípio está explícito no artigo 127, § 1º, mas resulta claro da própria sistemática constitucional, que
está implícito para as demais procuraturas. Quaisquer vinculações existentes com o Poder Executivo, no
âmbito administrativo em que se inserem sem, contudo, o integrarem, não poderão interferir no exercício
das atividades de seus órgãos, tão-somente segundo sua consciência e sua orientação científica.

Observe-se a sutileza da lógica do douto jurista. As Procuraturas


Constitucionais possuem inegáveis vinculações ao Poder Executivo, mas não o integram,
conclusão essa que, como visto, decorre da própria disposição topográfica das Funções
Essenciais à Justiça na estrutura da Lei Fundamental, apartadas que estão dos chamados três
clássicos Poderes da República. A independência funcional dos advogados de Estado está,
portanto, implicitamente presente na Constituição de 1988, decorrente que é deu seu espírito
redemocratizante. Assim, sob pena de sufocarem-se suas atribuições, dentre as quais a de
discordar de uma política inconstitucional do Governador ou do Presidente da República, há
que aceitar a independência funcional desses agentes de forma ampla, libertadora, de maneira
que seu agir seja inviolável a ingerências indevidas dos Poderes. É dizer: atuar
contramajoritariamente é uma prerrogativa constitucional dos advogados públicos,
ínsita a sua independência funcional.
Nesse sentido, as palavras do Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Humberto Gomes de Barros, em palestra proferida quando da instalação da Associação dos
Procuradores de Estado do Amapá, em Macapá, na data de 26 de setembro de 200825:

O atual estatuto constitucional outorgou sublime missão à Advocacia de Estado. Em


contrapartida, imputou-lhe supina responsabilidade. Com efeito, em sendo independente, autônomo e
estável, ao advogado não se permite fraqueza.
Não é lícito ao procurador invocar, como excludente de responsabilidade a afirmativa de que
agiu sob pressão.
Se assim ocorre em relação à denominada consultoria, algo semelhante acontece com a
atividade contenciosa. À procuradoria reserva-se, o monopólio do controle preventivo e da atuação
judicial do Estado, na relação processual. Só esse órgão detém competência para orientar tecnicamente a
atuação estatal e conduzir, tática e estrategicamente a defesa processual.
A assertiva de que se absteve na proposição de alguma ação, deixou de recorrer ou
recorreu indevidamente, “por ordem do Governador”, não dirime, nem atenua a culpa.
[...]
Por isso, o advogado de Estado, no exercício de consultoria, jamais se deve preocupar em
agradar o administrador, fazendo-lhe as vontades. Sua função, neste mister, é:
1. orientar, não facilitar;
2. mostrar as dificuldades, sem camuflá-las;
3. denunciar a impossibilidade jurídica da pretensão;
4. alertar para as conseqüências da ilegalidade.
Não foi à toa que a Constituição Federal reservou o exercício da advocacia de Estado a
procuradores organizados em carreira, investidos mediante concurso público, beneficiários de
estabilidade após três anos de exercício funcional .

25
Disponível no site da Associação Nacional dos Procuradores de Estado (ANAPE), www.anape.org.br. Acesso em 03 de maio de
2009.
17

A escolha mediante concurso tem o escopo de garantir independência, à prova de


gratidões espúrias. Já a estabilidade imuniza contra o medo de retaliações.
Tantas garantias não foram outorgadas gratuitamente.
Em troca delas, o Procurador expõe-se à solidariedade com o Administrador ímprobo.
Por isso, exige-se do advogado público, coragem para olhar nos olhos do governante e
dizer: “NÃO!”
Para dizer não, é preciso coragem; é difícil, mas necessário. (grifei)

Insista-se que a legitimação para o exercício pleno da independência funcional


do advogado de Estado vem da fundamentação constitucionalmente aceitável de suas
decisões, tal como ocorre com a magistratura, de forma a permitir o controle da sociedade.
Não obstante, e até por um princípio de simetria entre carreiras de igual dignidade
constitucional, propõe-se aqui uma aplicação analógica do artigo 28 do Código de Processo
Penal à atividade de advocacia pública, sempre que atuar contramajoritariamente.
Eis o teor da disposição legal sob enfoque:
Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do
inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as
razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá
a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de
arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.

No caso da Advocacia de Estado, a situação, embora no âmbito cível, é muito


semelhante. O Promotor, quando entende por privilegiar o direito de liberdade do indiciado
em detrimento do jus puniendi estatal, faz um raciocínio ponderativo análogo a quando um
Procurador de Estado resolve não contestar um pedido feito por um cidadão no sentido de ver
liberada determinada mercadoria apreendida por autoridade administrativa amparada por um
decreto governamental reputado inconstitucional pelo Procurador.
Daí a aludida aplicação analógica do artigo 28 do Código de Processo Penal.
Na situação ventilada, o magistrado, ao deparar-se com a manifestação fundamentada do
Procurador do Estado, poderia dela discordar e então submetê-la à apreciação do Procurador-
Geral do Estado, o qual, por sua vez, teria o leque de três opções conferidas ao Procurador-
Geral de Justiça na seara penal. Ou seja, poderia ele mesmo oferecer a contestação,
determinar que outro Procurador o fizesse ou concordar com a ausência de resistência à
pretensão. Nesse último caso, o julgador ficaria vinculado à decisão soberana do chefe da
instituição curadora do interesse público de defesa dos entes políticos.
O uso da analogia na hipótese proposta está autorizada pelo artigo 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil26. Parece efetivamente se tratar de um caso de omissão do Código
de Processo Civil, até pelo fato de ter sido este pensado para regulamentar as relações
jurídico-processuais entre particulares. A integração analógica, no dizer de Carlos

26
Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
18

Maximiliano27, consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a
um caso semelhante. Quanto à teleologia do instituto, o saudoso jurista traz valorosa lição28:

Os fatos de igual natureza devem ser regulados de modo idêntico. Ubi eadem legis ratio, ibi
eadem legis dispositio; “onde se depare razão igual à da lei, ali prevalece a disposição correspondente, da
norma referida”: era o conceito básico da analogia em Roma. O uso da mesma justifica-se, ainda hoje,
porque atribui à hipótese nova os mesmos motivos e o mesmo fim do caso contemplado pela norma
existente.
Descoberta a razão íntima, fundamental, decisiva de um dispositivo, o processo analógico
transporta-lhe o efeito e a sanção a hipóteses não previstas, se nas mesmas se encontram elementos
idênticos aos que condicionam a regra positiva. Há, portanto, semelhança de casos concretos e identidade
de substância jurídica.
Funda-se a analogia, não como se pensou outrora, na vontade presumida do legislador,
e, sim, no princípio de verdadeira justiça, de igualdade jurídica, o qual exige que as espécies
semelhantes sejam reguladas por normas semelhantes; neste sentido aquele processo tradicional
constitui genuíno elemento sociológico da Aplicação do Direito. (grifei)

Sendo, portanto, um imperativo de justiça material, a aplicação analógica do


dispositivo processual penal em análise se impõe. Note-se que não haverá qualquer ferimento
ao princípio dispositivo ou da inércia da jurisdição na atitude do Juiz de discordar da não-
resistência à pretensão anunciada pelo advogado público. O interesse do Estado-
Administração no processo civil é tão indisponível quanto o do Estado-Acusação no processo
penal. E, na hipótese de indisponibilidade do interesse, o magistrado não se vincula ao
chamado reconhecimento do pedido pelo réu. Ficará vinculado tão-somente no caso de o
chefe da instituição confirmar a ausência de resistência.
Assim, essa aplicação do artigo 28 do Estatuto Processual Penal quando
presente a Fazenda Pública como parte no juízo civil seria só mais um dentre tantos outros
legítimos diferenciadores ou prerrogativas que desigualam o tratamento processual dos entes
de Direito Público. Trata-se apenas de aplicar a concepção aristotélica de isonomia, que
consiste em tratar desigualmente os desiguais na exata medida em que se desigualam. Aliás,
tal diferenciação de tratamento é tão amplamente aceita que hoje já se fala de um novo ramo
jurídico, o Direito Processual Público29, conforme leciona Carlos Ari Sundfeld:
Um processo judicial não é o mesmo independentemente da qualidade dos sujeitos que dele
fazem parte – e isso porque nele sempre se insere um direito material próprio, diferente. Nos processos
em que está a Administração Pública, discute-se um direito material bem distinto daquele que nos
acostumamos a chamar de Direito Civil (ou Privado). Se o processo civil foi construído em torno do
Direito Privado, quer dizer, das lides de Direito Privado, deve-se questionar se ele serve também, da
mesma maneira e generalizadamente, para as lide de Direito Público.
[...]
Ademais, não ignoramos nem rechaçamos, antes bem ao contrário, a doutrina que se tem
ocupado de acentuar que todo o Direito Processual, tanto Civil como Penal ou Trabalhista, integra o
Direito Público, pois regula justamente a atuação do Estado (aqui como Estado-Juiz); sabemos, claro,
que, em tal perspectiva, falar em “Direito Público Processual” seria redundante e desnecessário, como
seriam as expressões Direito Público Administrativo ou Tributário.

27
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 208.
28
Idem, p. 209-210.
29
SUNDFELD, Carlos Ari; BUENO, Cássio Scarpinella (org). Direito Processual Público. A Fazenda Pública em Juízo. 1.ed. São Paulo:
Malheiros, 2003, p. 16-17.
19

Estamos, na verdade, operando com uma parte do Direito Processual, aquela em que o
Direito Público é o direito material envolvido, donde a redução do campo temático pela aposição do
termo “Público”, de modo a estabelecer uma distinção em relação ao Direito Processual propriamente
Civil. Daí a inversão dos termos, produzindo a expressão que é a síntese do nosso tema: Direito
Processual Público.

Dessarte, tendo em conta essa ordem de ideias, conclui-se que a independência


funcional dos advogados de Estado assegura-lhes a possibilidade de contrariarem em juízo
uma política de governo sem malferir o princípio da indisponibilidade do interesse público de
que são curadores. Essa atuação contramajoritária, porém, pressupõe exaustiva
fundamentação, que deverá necessariamente ponderar o valor democracia com outros valores
ou bens fundamentais. O controle desse agir é efetuado pela sociedade e pelo juiz da causa, ou
seja, há um duplo controle – social e institucional – sobre a conduta dos advogados públicos.
Além disso, pode haver outros fatores de legitimação do agir contramajoritário
desses agentes estatais, tais como: orientações emitidas pelos setores próprios da estrutura
administrativa da instituição, pareceres que hajam recebido caráter normativo e dispensas
coletivas de contestação em casos específicos, exaradas pela chefia do órgão. Essas hipóteses
coletivamente vinculantes para os membros das Advocacias Públicas Federais, Estaduais e
Municipais decorrerão das respectivas estruturações físicas e normativas, bem como das
políticas institucionais, mas também não poderão desgarrar-se dos demais fatores de
legitimação, notadamente do dever de fundamentação e da necessária ponderação – ainda que
não explícita – entre princípio democrático e direitos fundamentais.
O que deve servir de horizonte, nesse cenário, é a busca por uma Advocacia de
Estado cada vez mais independente e republicana, para que assim possa exercer a plenitude de
sua missão constitucional, potencialmente transformadora da realidade e promotora do Estado
Democrático de Direito.

5. CONCLUSÕES (PROPOSIÇÕES OBJETIVAS)

1) Em tempos em que a sociedade já não mais tolera a corrupção e a má gestão da coisa


pública, é impensável uma Advocacia de Estado apática e mantenedora do status quo, agindo
como mera espectadora do devir do Estado Social e Democrático de Direito. Não se pode
conceber que uma instituição alçada à condição de essencial ao valor justiça não explore todas
as suas potencialidades. Portanto, a Advocacia Pública deve ser uma advocacia da e para a
sociedade. Isso, aliás, é uma justa decorrência da característica mais marcante do Estado
Democrático de Direito: a abolição da separação entre Estado e sociedade, por meio da
garantia de participação efetiva do cidadão na Administração Pública.
20

2) A independência funcional dos advogados estatais é um poderoso baluarte contra maiorias


eventuais que insistem em desrespeitar as regras do jogo democrático e aviltar os direitos
fundamentais. Analisá-la, pois, sob a ótica da dificuldade contramajoritária, na forma como
exposta neste trabalho, é uma forma de legitimá-la e permitir que se lhe fixem balizas
objetivas, aptas a delimitar até onde o advogado público pode ir sem atentar contra a própria
democracia, valor cuja proteção também é dever desses agentes.

3) Uma Advocacia de Estado republicana, que tenha poder para ponderar os interesses
públicos em conflito nos casos judiciais em que atue, decidindo independentemente a posição
que adotará no processo e estando, desse modo, desobrigada a sempre oferecer resistência e
recorrer, é um meio de auxiliar a promoção dos direitos fundamentais de efetividade da tutela
jurisdicional e de duração razoável do processo. Além disso, tal perfil de Advocacia Pública,
reforçando a independência do advogado que atua no contencioso, permitirá uma política
institucional que direcione suas baterias para os casos de grande repercussão social, como o
combate aos mais vorazes sonegadores fiscais e à escandalosa corrupção e a defesa contra
pretensões ilegítimas que visem tão-somente a vilipendiar o erário, o que – frise-se ainda uma
vez – irá ao encontro do almejado alcance das promessas do artigo 3º da Constituição da
República.

4) Nesse aspecto, todavia, nunca é demais lembrar que quanto maior a dose de independência,
maiores as possibilidades de controle. A Advocacia de Estado relegitimada da forma proposta
deverá se submeter ao controle do julgador da lide, que poderá, como aqui defendido, remeter
a análise da situação à chefia da instituição, a quem caberá a última palavra sobre a posição
processual a ser seguida (artigo 28 do Código de Processo Penal), e da sociedade,
fiscalizadora dos atos de todos os agentes públicos, eletivos ou não.

5) A despeito disso, o que os advogados públicos não podem é renunciar ao seu compromisso
constitucional. A Lei Fundamental outorgou-lhes a tarefa essencial de partícipes na promoção
da justiça social, que deve ser buscada incessantemente no Estado Democrático de Direito. A
Advocacia Pública não pode ser mera coadjuvante nessa jornada. Deve assumir papel ativo,
de conformação da realidade em busca de uma sociedade menos desigual.

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