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REVISITANDO OS FUNDAMENTOS DO PODER DE POLÍCIA

Sumário: I. O “estado da arte”: a intervenção pública na esfera privada em modelos


explicativos insatisfatórios. I.1. O modelo hobbesiano: ordem pública e prevenção ao
dano social. I.2. a justificação metodológica: o problema da colisão in concreto de
direitos. II. Algumas ideias para uma nova teoria para o poder de polícia. III. Síntese
conclusiva. IV. Referências bibliográficas

Resumo: o artigo busca identificar as duas justificações teóricas para o exercício do


poder de polícia estatal com base em autores clássicos do direito administrativo,
abordando-as criticamente. Em seguida, apresenta alguns elementos que devem ser
considerados para a construção de uma nova teoria do poder de polícia.

Palavras-chave: poder de polícia; democracia; direitos fundamentais.

I. O “ESTADO DA ARTE”: A INTERVENÇÃO PÚBLICA NA ESFERA PRIVADA EM MODELOS


EXPLICATIVOS INSATISFATÓRIOS

O que temas tão distintos como o abate de animais em razão da


doença da “vaca louca”, a demolição de prédios construídos irregularmente em áreas de
proteção ambiental e a badalada operação “lei seca” podem ter em comum? Além de
terem feito parte, em algum momento, dos noticiários nacionais, todos eles se inserem
em um mesmo capítulo da disciplina do direito administrativo, denominada,
sugestivamente, de poder de polícia1. Dos exemplos apresentados é possível inferir a
importância do tema para a sociedade e o Direito, já que em todos os casos está em jogo
a limitação e, por vezes, o próprio sacrifício de direitos fundamentais em favor de
interesses da coletividade. Afinal, de acordo com definição clássica, referido poder
consiste na competência atribuída ao Estado para condicionar ou restringir o exercício
de direitos privados, especialmente os de propriedade e liberdade, permitindo-se, assim,
a convivência pacífica e harmônica em sociedade2.

1
Vale mencionar que a expressão “poder de polícia” tem sido criticada por sua conexão a um
modelo de Estado vetusto, sugestivamente denominado de “Estado de polícia”. Embora
estejamos de acordo com a tese revisionista, o uso do termo neste projeto assim é feito por
deferência à tradição brasileira. Sobre tais críticas, confira-se: GORDILLO, Agustín. Tratado de
derecho administrativo. 9ª. Ed. Buenos Aires: FDA, 2009, e SUNDFELD, Carlos Ari Sundfeld.
Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 1993.
2
A propósito, v. a definição clássica de MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo
brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 134: “Poder de polícia é a faculdade de que
1
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Os campos da polícia administrativa são vastos. Seja por razões


de moralidade, salubridade, tranqüilidade ou paz, afirma-se que a polícia administrativa
existe para que seja viabilizada a própria existência social. Sem a mediação pública,
estaríamos todos fadados a um bellum ominum contra omnes (ou seja, guerra de todos
contra todos), já que os direitos seriam exercidos sem quaisquer limites e, por
conseqüência, de maneira danosa3. E como quem quer os fins deve dar os meios4,
atribui-se ao Estado prerrogativas que exorbitam dos poderes tipicamente privados,
permitindo-lhe que discipline e, inclusive, utilize a força física para compelir os
particulares a não transpassar os limites que impõe ao exercício dos direitos5.

Ora, o abuso no exercício de direitos privados é um fato tão


comum na vida social que todos, invariavelmente, já o experimentaram. Não é preciso ir
longe para provar o ponto. Basta rememorar o caos que ocorre quando os semáforos de
trânsito simplesmente deixam de funcionar, abandonando os cidadãos à mercê de sua
própria sorte no exercício da liberdade de ir e vir. Talvez por esta razão a necessidade
de atuação do Estado seja ponto consensual, um verdadeiro truísmo ou axioma do
direito administrativo (o qual, aliás, precede o próprio nascimento do direito
administrativo). A demanda por legitimação e justificação fez a doutrina reconhecer a
supremacia geral do Estado em desfavor da sociedade, derivando dela as prerrogativas

dispõe a Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e
direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado”.
3
Veja-se a seguinte passagem de CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito
administrativo. Coimbra: Almedina, 1977, p. 268: “Numa sociedade onde cada um possa fazer
tudo quanto lhe apeteça sem pensar nos interesses, nas necessidades, nos direitos dos outros
não há liberdade. Porque os mais fortes, os menos escrupulosos, os mais poderosos
oprimirão os que não lhes possam resistir”. (negrito acrescentado)
4
Basicamente, é assim que se justifica a natureza autárquica da Ordem dos Advogados do
Brasil, cf. DALLARI, Adilson Abreu. “Ordem dos Advogados do Brasil – Natureza jurídica –
Regime de seu pessoal”, Revista de Informação Legislativa nº. 116, p. 260: “É certo, portanto,
quem a OAB exerce função pública, pois o controle do exercício profissional do advogado
transcende os interesses da corporação e configura interesse da coletividade, constituindo-se
em indubitável interesse público (...) Exatamente por essa razão, por exercer função pública, é
que a OAB é dotada de prerrogativas públicas”.
5
MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros,
2010, p. 141: “A coercibilidade, isto é, a imposição coativa das medidas adotadas pela
Administração, constitui também atributo do poder de polícia”. Os limites e condições ao uso da
coerção é um ponto que comporta discussão doutrinária, mas não assim quanto ao uso da
força física, que é pacificamente admitido.
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públicas necessárias à manutenção da ordem6. Especificamente quanto ao poder de


polícia, o discurso de legitimação vem a reboque das práticas do Estado. E se a
legitimação é o problema a ser perquirido, é oportuno fazer uma breve digressão a
respeito do tema.

De acordo com os manuais, o poder de polícia existe desde antes


da criação do Estado moderno, como atribuição das autoridades responsáveis pela
condução dos negócios públicos7. A própria expressão polícia advém do termo grego
politeia e do latim politia, os quais remetem à ordem na cidade. A cidade antiga é o
local onde a convivência harmoniosa é possível porque nela há ordem, provida pelo
titular do poder público. Nesta fase inicial, o poder de polícia compreende todas as
atividades públicas, inclusive a própria administração da Justiça, o que anula a
possibilidade de controle social e mesmo jurídico sobre tais tarefas públicas.

Durante a época medieval a noção de polícia passou a exprimir a


“boa ordem da sociedade civil presidida pela autoridade estatal, deixando-se a boa
ordem moral e religiosa a cargo da autoridade eclesiástica”8. Neste momento, o poder
de polícia “consiste na faculdade estatal de regrar tudo que se encontra nos limites do
Estado, sem exceção alguma; é o poder juridicamente ilimitado de coagir e ditar ordens
para realizar o que seja conveniente”9. Entre os séculos XIV e XVI o denominado ius
politiae (expressão em latim que designava o poder de polícia) espraia-se nos países da
Europa continental, sedimentando-se como o direito do Estado de cuidar do bem-estar
comum valendo-se da coerção, se necessária for. Como se pode perceber, o ius politiae
é a roupagem jurídica de uma prerrogativa que era tipicamente fática, de imposição de
vontade por meio da força, a pretexto de salvaguardar o interesse da coletividade.

6
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 24ª. Ed. São Paulo:
Malheiros 2007, pp. 800-805. O autor atribui a consolidação da noção de supremacia geral à
obra do alemão Otto Mayer, de onde se expandiu para a Itália e Espanha.
7
BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora
Argentina, 1954, pp. 14-17.
8
BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora
Argentina, 1954, p. 14.
9
GORDILLO, Agustin. Tratado de derecho administrativo. 9ª. Ed. Buenos Aires: FDA, 2009, p.
V-6.
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Assim, a marca do poder de polícia pré-constitucional é o seu


caráter ilimitado: voluntas principis suprema lex est. No direito monárquico, o príncipe
estava autorizado a tomar todas as medidas necessárias para a manutenção da paz
pública e da boa gestão dos negócios públicos, sem que os particulares pudessem lhe
opor direitos individuais, já que sequer eram considerados titulares de direitos
subjetivos públicos. Nesse contexto, o poder de polícia servia de pretexto para a
construção de um Estado que tudo pode. Aliás, a identidade de conceitos é tamanha que
o próprio modelo estatal então vigente entraria para a história com este nome: “o Estado
de polícia”10.

No curso do século XVIII o ius politiae perdeu, finalmente, a sua


onipotência. O pensamento liberal clássico e a sua doutrina dos direitos individuais
minaram as bases do pensamento publicístico de então, reconhecendo em favor dos
indivíduos prerrogativas em face do Estado. Consagrou-se, naquela quadra histórica, a
necessidade de limitação do poder público, o que de fato ocorreu, ao menos em sentido
formal, com as publicações das declarações de direito e o advento do constitucionalismo
nos Estados Unidos e na França pós-revolução. Mais que isso, a noção de Estado de
Direito demandou a submissão do príncipe ao próprio direito que edita. Aos poucos,
com a afirmação da lei como fruto da vontade geral, a fonte do poder de polícia deixou
de ser a vontade do soberano e passou à vontade legislativa. Desta transição emergiu a
principal característica do poder de polícia no Estado moderno: a necessidade de
habilitação legal para a ação administrativa imperativa.

A partir do século XVIII o poder de polícia adquiriu o perfil que


tem nos dias atuais: submetido ao princípio da legalidade, limitado pelos direitos
fundamentais constitucionalmente assegurados e exercido em favor da harmonia social.
Contudo, o advento do Estado limitado de cunho liberal não modificou o panorama do
exercício do poder de polícia; ao menos não em toda a extensão devida. Isto porque a
imposição do princípio da legalidade como fundamento do agir estatal não
correspondeu à ablação completa da liberdade da Administração Pública nesta matéria,

10
BEZNOS, Clóvis. Poder de polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 14:
“Preleciona Marienhoff que a expressão ‘Estado Polícia’ originou-se do sistema que imperou na
Alemanha. Nessa época, os assuntos de polícia eram resolvidos pelo Príncipe, em relação às
suas decisões, não havia apelação para nenhuma instância jurisdicional”.
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não se podendo falar que esta se encontra estritamente vinculada à vontade legislativa11.
Ora, valendo-se ainda de expressões genéricas como ordem pública, salubridade,
moralidade e paz pública (ou seja: conceitos jurídicos indeterminados12), a
Administração Pública continuou a agir discricionariamente, avocando para si a
atribuição de conformar e limitar direitos privados, mesmo erigidos à categoria de
direitos fundamentais, a pretexto de realizar tais misteres.

Aliás, sobre a natureza (ainda) discricionária do poder de polícia,


vale transcrever passagem clássica de Hely Lopes Meirelles, verbis:

“Para efetivar essas restrições individuais em favor da


coletividade o Estado utiliza-se desse poder discricionário, que é
o poder de polícia administrativa. Tratando-se de um poder
discricionário, a norma legal que o confere não minudeia o modo
e as condições da prática do ato de polícia. Esses aspectos são
confiados ao prudente critério do administrador público”13.

Observe-se que a fundamentação do poder de polícia


normalmente apresentada em manuais e estudos específicos sobre o tema é
rigorosamente idêntica à utilizada no Estado pré-constitucional, ressalvados acréscimos
concernentes à legalidade, pouco tendo avançado em termos de justificação democrática
para o seu exercício. Insista-se que a mera referência à legalidade é insuficiente para se
afirmar que há verdadeira limitação do poder, ponto que será objeto de maior atenção
adiante. Por ora, compilando os diversos estudos sobre a matéria, é possível identificar,

11
A propósito, veja-se a passagem de ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8ª.
Ed. Trad. Nelson Baptista Machado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.p. 207: ‘’O princípio da
legalidade da actividade jurisdicional e administrativa, em si, permanece intocado. (...) As leis,
porém, são hoje, em todos os domínios jurídicos, elaboradas por tal forma que os juízes e os
funcionários da administração não descobrem e fundamentam as suas decisões tão-somente
através da subsunção a conceitos jurídicos fixos, a conceitos cujo conteúdo seja explicitado
com segurança através da interpretação, mas antes são chamados a valorar
autonomamente e, por vezes, a decidir e a agir de um modo semelhante ao do legislador.
E assim continuará a ser no futuro”. (negrito acrescentado) O ponto será retomado adiante.
12
Os conceitos jurídicos indeterminados consistem em uma técnica utilizada pelo legislador
para deferir ao administrador maior espaço decisório, sem que, contudo, defira-lhe ampla
discricionariedade. O legislador utiliza expressões não tão objetivas, permitindo que o
administrador exerça algum espaço valorativo, mas que é passível de controle por cotejo com o
caso concreto, por tal razão não se confundindo com a idéia de discricionariedade. A propósito
do tema, v. BINEMBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 211-224.
13
Direito administrativo brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 139.
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em esforço de sistematização, dois modelos de fundamentação para o exercício do


poder de polícia14, são eles o hobbesiano, e o metodológico, com diferentes impactos
sobre a teoria e sujeitos a diferentes críticas. É sobre estes modelos que se discorre a
seguir.

I.1. O modelo hobbesiano: ordem pública e prevenção ao dano social

As definições clássicas e mais antigas do poder de policia


possuem uma justificativa que será denominada de hobbesiana precisamente porque
encontra seu fundamento último nas concepções de homem, sociedade e Estado de
Thomas Hobbes, expressada em Leviatã15. Segundo elas, o poder de polícia é exercido
para evitar a guerra de todos contra todos; ele é essencial à manutenção da ordem
pública e da paz social. O Estado age para evitar que a sociedade degenere em conflitos,
já que homo homini lupus, isto é, o homem é o lobo do homem16. Para evitar tal
situação, que é indesejável e contraproducente, os homens fazem um pacto por meio do
qual criam o Estado-Leviatã, delegando-lhe a tarefa – e os poderes necessários – de agir
em defesa do tecido social. O primeiro modelo assenta-se em um premissa
antropológica negativa.

Esta visão, calcada, sobretudo, na vaga noção de ordem pública, é


adotada por diversos estudiosos franceses do direito administrativo, dos quais são

14
Neste ponto, cabe dizer que foi de grande valia a compilação de teorias feita por Benjamim
Villegas Basavilbaso, na obra Derecho administrativo, editada em 1954.
15
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.
João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva, Coleção Os Pensadores. São. Paulo: Nova
Cultural. 1999.
16
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.
João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva, Coleção Os Pensadores. São. Paulo: Nova
Cultural. 1999, p. 49: “Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo
homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os
homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força
e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é
incerto; conseqüentemente não há cultiva da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias
que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para
mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da
Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que
tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre,
sórdida, embrutecida e curta”.
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exemplos Berthélemy17, Hauriou18, Rolland19 e Vedel20. No direito italiano, igualmente


Zanobini, Manzini e Santi Romano21 pensam assim. No direito administrativo
português, vale citar a definição de poder de polícia apresentada por Marcello Caetano,
centrada na missão estatal de evitar o dano social, verbis: “É o modo de atuar da
autoridade administrativa que consiste em intervir no exercício de direitos individuais
suscetíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objeto evitar que se produzam,
ampliem ou generalizem os danos sociais que a lei procura prevenir”22.

Como se percebe, trata-se de conceito centrado na idéia de ordem


pública, já que toda atividade que produz danos sociais é forçosamente contrária à
ordem. Este pensamento acabou por permear a fundamentação do poder de polícia no
direito brasileiro. Vejam-se, respectivamente, as definições formuladas por Hely Lopes
Meirelles e Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

“Em linguagem menos técnica, podemos dizer que o poder de


polícia é o mecanismo de frenagem de que dispõe a
Administração Pública para conter os abusos do direito
individual. Por esse mecanismo, que faz parte de toda
Administração, o Estado detém a atividade dos particulares que se
revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao
desenvolvimento e à segurança nacional”23.

17
Veja-se o que o autor diz a respeito do tema: “A expressão polícia designa o conjunto dos
serviços organizados ou as medidas prescritivas com o objetivo de assegurar a manutenção da
ordem e da salubridade no interior do país”. BARTHÉLEMY. Traité Elementaire de Droit
Administratif apud BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos
Aires: Editora Argentina, 1954, p. 18.
18
Para este autor, “O Estado (...) tem por objetivo fazer reinar a ordem e a paz pela aplicação
preventiva do direito; em um sentido elevado, esse objetivo pode ser chamado de polícia”. Cf.
BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora
Argentina, 1954, p. 18.
19
BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora
Argentina, 1954, p. 19: “Estima esse jurista [Rolland] que o objeto da polícia está limitado aos
seguintes fins: assegurar, manter e restabelecer a ordem”.
20
VEDEL, Georges. Droit Administratif, t. 2. Paris: PUF, 1959, p. 544: “A polícia administrativa,
ao contrário, não se refere à noção de infração, mas à de ordem pública; ela objetiva manter a
ordem pública, independentemente da repressão a infrações”.
21
V. BASAVILBASO, Benjamim Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora
Argentina, 1954, pp. 25-28.
22
CAETANO, Marcelo. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Almedina,
1977, p. 269.
23
MEIRELLES, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro, 36ª. Ed., São Paulo: Malheiros,
2010, p. 134. De todas as definições analisadas, a apresentada por Hely Lopes Meirelles é a
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“Chegou-se, assim, ao atual conceito de função administrativa de


polícia, por meio da qual o Estado aplica restrições e
condicionamentos legalmente impostos ao exercício das
liberdades e direitos fundamentais, tendo em vista a assegurar
uma convivência social harmônica e pacífica”24.

O modelo hobbesiano dispensa completamente o discurso dos


direitos, já que, segundo o filósofo, o soberano não é parte do pacto, logo não está a ele
submetido. Ele passa a existir por força do acordo de vontades entre os indivíduos, logo
não pode aceder a ele. Esses, sim, que renunciam, em caráter irretratável, ao livre
exercício das prerrogativas individuais presentes no estado de natureza. As noções de
império estatal, supremacia geral e especial da Administração, e o princípio da
supremacia do interesse público podem-se dizer derivadas desta percepção do problema
social que consiste no choque de interesses individuais em atividades cotidianas, e da
necessidade de um ente forte capaz de preveni-los, corrigi-los e, eventualmente,
reprimi-los. Veja-se, a propósito, o discurso do filósofo inglês:

“Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos, e


visto que quem tem direito a um fim tem direito aos meios,
constitui direito de qualquer homem ou assembléia que detenha a
soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a defesa
quanto de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas. E
o de fazer tudo o que considere necessário ser feito, tanto
antecipadamente, para a preservação da paz e da segurança,
mediante a prevenção da discórdia no interior e da
hostilidade vinda do exterior, quanto também, depois de
perdidas a paz e a segurança, para a recuperação de
ambas”25. (negrito acrescentado)

Como se verifica da leitura até aqui empreendida, a noção vigente


de poder de polícia está umbilicalmente centrada na ideia empírica hobbesiana de total
impossibilidade de convivência social harmônica. A premissa antropológica é de um

que dá maior margem ao exercício do poder de polícia, fazendo-o assentar na conveniência do


próprio Estado e também em preceitos de segurança nacional.
24
NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de direito administrativo. 14ª. Ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2006, p. 395.
25
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad.
João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Silva, Coleção Os Pensadores. São. Paulo: Nova
Cultural. 1999, p. 63.
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homem mau, egoísta, incapaz de cooperar. Em decorrência, tem-se a construção do


conceito jurídico de ordem pública e do ente capaz de assegurá-la (o Estado-Leviatã),
tudo fruto do pacto de sujeição. Em pleno século XXI, é possível afirmar que (i) não há
provas empíricas de que a “guerra de todos contra todos” – a premissa antropológica do
Leviatã – no estado de natureza seja efetivamente verdadeira; e (ii) a noção de ordem
pública deve ceder vez a uma concepção de polícia que seja centrada nos direitos
fundamentais. Cabe aprofundar, ainda que brevemente, estas duas ideias.

O modelo hobbesiano de limitação administrativa aos direitos


fundamentais tem por pressuposto sociológico a incapacidade crônica de coordenação
da própria sociedade. No “estado de natureza” os indivíduos estariam sujeitos ao eterno
conflito. Em outras palavras, há uma crença imanente a tal concepção, a qual de forma
alguma pode ser erigida à condição de verdade absoluta, no sentido de que as pessoas
são incapazes de acomodar seus espaços de maneira coordenada, em suma, de que o
exercício de direitos é sempre uma atividade conflituosa. No entanto, embora seja
inegável que os conflitos existam, a premissa exagera em sua generalização. Se o
conflito fosse a regra, e não a exceção, seria impossível a vida em sociedade. No âmbito
jurídico, a autorregulação26 é exemplo e prova de que a sociedade civil pode ser capaz
de definir limites e condições para o exercício de direitos privados sem entrar em
conflito. Os autores que seguem a linha hobbesiana acabam desconsiderando tais
hipóteses, que são cada vez mais comuns no âmbito das sociedades contemporâneas.

Ademais, para esta concepção, somente o Estado deve ter o poder


de intervir para manter e restabelecer a paz social e a segurança, pois permitir que um
particular assuma esta posição (de supremacia) é obrar contrariamente ao princípio da
igualdade política entre os indivíduos, que deu origem ao próprio pacto. Em outras
palavras, o fundamento hobbesiano impede que se faça uma distinção que não é
desconhecida pelo direito atual, sugerindo um vínculo incindível entre o público e o

26
A referência sobre o tema é a obra de MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e
administração pública. Coimbra: Almedina, 1997.
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estatal. É este o fundamento que vai justificar a própria indelegabilidade do poder de


polícia27.

Ora, sabe-se que às vezes os particulares exercem função pública


(e.g., quando exercem serviços públicos por meio de delegação), ao passo que o Estado
também pode ser incumbido de funções tipicamente privadas (e.g., quando intervém na
economia por interesse público relevante, na forma do art. 173 da Constituição Federal).
No poder de polícia, a visão hobbesiana repercute por meio das ideais de absoluta
indelegabilidade, admitida somente em hipóteses excepcionalíssimas, e impossibilidade
de exercício por pessoas privadas e por agentes que não sejam públicos, submetidos ao
regime estatutário28. Há quem chegue ao exagero de afirmar que as prerrogativas
públicas e o Estado são figuras que se confundem, não sendo possível existir um sem o
outro29.

O Supremo Tribunal Federal acabou por acatar a ideia de que


somente o Estado pode exercer o ius imperii, sendo vedada qualquer delegação de tal
poder a particulares, com exceção daquelas relacionadas à prática de atos materiais de
polícia. A tese assentou-se no julgamento da ADI nº. 1.717, em que foram impugnados

27
MELO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 2007, p. 815: “A restrição
à atribuição de atos de polícia a particulares funda-se no corretíssimo entendimento de que não
se lhes pode, ao menos em princípio, cometer o encargo de praticar atos que envolvem o
exercício de misteres tipicamente públicos quando em causa liberdade e propriedade, porque
ofenderiam o equilíbrio entre os particulares em geral, ensejando que uns oficialmente
exercessem supremacia sobre outros”.
28
A justificativa oficial é que somente estes gozam das prerrogativas necessárias à prática de
atos administrativos, o que não ocorreria com aqueles que estão sob o regime celetista
comum. Ora, a grande diferença em sustentação da tese era que o servidor público não
poderia perder o cargo sem justa causa, como acontece com o empregado. Contudo, após a
Emenda Constitucional nº. 19/98, o servidor público pode perder o cargo sem ter dado causa,
na chamada “exoneração por excesso de quadro”, prevista no art. 169, §§3º e 4º, da
Constituição Federal de 1988. Além disso, o servidor não tem direito à imutabilidade do seu
regime jurídico, segundo linha jurisprudencial pacífica do Supremo Tribunal Federal. Por fim, e
em reforço ao exposto, a afirmação de que as garantias próprias do regime estatutário são
essenciais ao exercício do poder de polícia significa que os servidores em estágio probatório e
experimental (este último onde existente) não poderiam praticar qualquer ato administrativo até
o término da fase, o que não ocorre na prática.
29
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São
Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 240: “O poder das limitações administrativas à liberdade e à
propriedade, o poder da supremacia geral, não é mero atributo do Estado a despeito do qual
fosse possível perquirir a possibilidade de cedê-lo ou renunciá-lo em alguma circunstância;
este poder não faz parte do Estado, mas é o próprio Estado, integra-o como um elemento sem
o qual deixaria de existir.”
10
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dispositivos da Lei Federal nº. 9.649/98, dentre os quais aqueles que transformavam as
autarquias de fiscalização profissional em entidades privadas30. A ementa do acórdão
cristaliza a posição da Corte Constitucional brasileira:

“DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO


DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E
SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE
27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE
FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS.
(...) Com efeito, não parece possível, a um primeiro exame, em
face do ordenamento constitucional, mediante a interpretação
conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70,
parágrafo único, 149 e 175 da C.F., a delegação, a uma
entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange
até poder de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao
exercício de atividades profissionais. 5. Precedente: M.S. nº
22.643. 6. Também está presente o requisito do "periculum in
mora", pois a ruptura do sistema atual e a implantação do novo,
trazido pela Lei impugnada, pode acarretar graves transtornos à
Administração Pública e ao próprio exercício das profissões
regulamentadas, em face do ordenamento constitucional em
vigor. 7. Ação prejudicada, quanto ao parágrafo 3o do art. 58 da
Lei nº 9.649, de 27.05.1998. 8. Medida Cautelar deferida, por
maioria de votos, para suspensão da eficácia do "caput" e demais
parágrafos do mesmo artigo, até o julgamento final da Ação”31.
(negrito acrescentado)

Os artigos citados na ementa, se analisados um a um, não dizem


que o poder de polícia não pode ser delegado, como bem pontuado pelo Min. Maurício
Corrêa em seu voto divergente. Os dispositivos do art. 22, XVI32, e art. 21, XXIV33,
ambos da Constituição Federal, e únicos verdadeiramente pertinentes para a discussão,
de maneira alguma vedam a delegação do poder de polícia, mas apenas afirmam que
certas competências serão exercidas pela União Federal. O Ministro indica que a

30
Lei nº. 9.649/98: “Art. 58. Os serviços de fiscalização de profissões regulamentadas serão
exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização
legislativa. (...) § 2º. Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, dotados de
personalidade jurídica de direito privado, não manterão com os órgãos da Administração
Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico”.
31
STF, ADI 1717-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ 25.02.2000.
32
CF88: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XVI - organização do
sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões;”.
33
CF88: “Art. 21. Compete à União: (...) XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do
trabalho;”.
11
Versão preliminar – não citar e não circular

Constituição admitiu expressamente a delegação para o caso dos serviços notariais e de


registro, conforme se pode extrair do art. 236 do texto constitucional.

Cabe acrescentar, por fim, que o Mandado de Segurança nº.


22.643, precedente mencionado, não afirmou a exclusividade do manejo do poder de
polícia por pessoas jurídicas de direito público, mas apenas firmou a tese que os
conselhos de classe estão sujeitos à fiscalização dos tribunais de contas, já que as verbas
que arrecadam, pela via tributária, constituem dinheiro público. Não se deve confundir a
fiscalização de Tribunais de Contas, cujo pressuposto é unicamente a utilização da
verba pública, com o caráter público ou privado do ente fiscalizado. Com efeito, e a
título de exemplo, as associações civis que recebem verbas públicas, em razão de sua
qualificação como organizações sociais ou organizações da sociedade civil de interesse
público, estão sujeitas à fiscalização das Cortes de Contas, mas nem por isso são
pessoas jurídicas de direito público. A decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal,
a bem da verdade, esconde um nítido viés ideológico, bem expresso no voto do Min.
Sepúlveda Pertence:

“Sr. Presidente, tenho acentuado já em outros casos, como os


relativos à polícia de trânsito, que a onda neoliberal, ou qual
nome tenha, ainda não chegou ao ponto de privatizar o poder de
polícia. E o que se discute aqui é uma das modalidades do poder
de política mais sérios, porque envolve uma das liberdades
fundamentais do cidadão, a do exercício profissional, acrescido,
ademais, com poder tributário; e como se não bastasse, com
imunidade tributária”.

O argumento ideológico não pode ser respondido no interior do


discurso jurídico, já que a este não pertence. Porém, resta clara a visão salvacionista e
maniqueísta que marca a discussão sobre a delegação do poder de polícia: de um lado
situa-se o Estado bom, capaz de salvar a sociedade de seus próprios males; e de outro, a
sociedade e seus agentes viciados, os quais, se deixados sozinhos, estarão fadados à
autodestruição. Em suma, erigiu-se uma rígida dicotomia entre Estado cum imperio e
sociedade sine imperio34, que não é de índole constitucional, mas tão-somente, repita-se,

34
GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005,
p. 35: “As várias experiências históricas que ilustram o exercício de poderes públicos por
entidades privadas baseiam-se pois numa dicotomia, entre, por um lado, a esfera do governo,
12
Versão preliminar – não citar e não circular

ideológica. O manejo privado do poder de polícia não precisa ser colocado sempre
nestes termos, o que pode ser provado por singela remissão a alguns exemplos práticos.

Em primeiro lugar, sabe-se que os instrumentos de delegação de


serviços públicos foram pensados para viabilizar a prestação deles quando o Estado não
tem meios de responder adequadamente às demandas sociais. Assim, convoca-se um
particular para que prestar assistência ao poder público, transferindo-lhe a execução do
serviço. Contudo, o ato de delegação não importa apenas na transferência de
competências prestacionais para o particular, mas também lhe são passados poderes de
fiscalização relativamente aos usuários do serviço. Nesse contexto, é inegável que as
concessionárias acabam por exercer, em alguma medida, a fiscalização de polícia no
âmbito do serviço público que executam.

Perceba-se que, em todos estes casos, a delegação de poder de


polícia para particulares representam uma forma de incremento dos direitos
fundamentais, e não uma violação a tais direitos. O que se pretende é deixar que o
executor do serviço público, que está em contato direto com o usuário, realize a
fiscalização e, eventualmente, tome medidas de polícia com vistas à conservação de
outros direitos (como à incolumidade física do próprio utente e de terceiros, ou a
proteção dos bens afetados à prestação do serviço). A delegação do poder de polícia a
pessoas privadas não amesquinha, por si só, os direitos fundamentais, mas pode ter o
efeito inverso, isto é, incrementar a sua efetividade.

Além da delegação direta de poderes de autoridade pelo titular da


função de polícia, é possível identificar outra forma de exercício de poder de polícia por
particulares: a denominada autorregulação. Entidades privadas muitas vezes editam os
próprios regulamentos, julgam as questões e executam as decisões, o que pode
significar a exclusão de indivíduos de espaços sociais importantes, como o mercado
mobiliário. Diante de tantas perplexidades, não é possível acreditar na suficiência de um
modelo de função administrativa que se alicerça em noção que está fora do direito, que

da soberania, do poder, do imperium, em cujo âmbito há organizações e pessoas colocadas –


pela lei, pela força ou pela propriedade – numa posição jurídica de supremacia, e, por outro
lado, a esfera dos cidadãos ou dos particulares: de um lado, o Estado cum imperio, do outro, a
Sociedade sine imperio.” (grifos no original)
13
Versão preliminar – não citar e não circular

desconhece a centralidade dos direitos fundamentais e que confia, tão-somente, na


legalidade para impor limites à Administração Pública.

I.2. A justificação metodológica: o problema da colisão in concreto de direitos

A fundamentação metodológica do poder de polícia é tratada


apenas em caráter secundário pelos manuais de direito administrativo brasileiro.
Embora negligenciada, ela pode ser considerada um refinamento em relação ao modelo
teórico anterior. De acordo com esta visão, atribuir ao Estado a tarefa de delimitar ou
restringir direitos, quando concretamente exercitados, deriva de um problema
essencialmente normativo, e não da necessidade imediata de garantir a ordem pública.
Como os direitos em geral, e os direitos fundamentais em particular, são assegurados
em caráter conjunto e universal, é natural esperar que ocorram colisões no seu exercício
em situações concretas, das quais surge a necessidade de acomodação. Um exemplo
ajuda a esclarecer.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu, sem distinção, o direito


de liberdade, o qual seguramente compreende o direito de ir e vir nas vias públicas (art.
5º, caput e XV), e também o direito à liberdade de manifestação (art. 5º, IV), e à
liberdade de reunião (art. 5º, XVI), dispensada a necessidade de consentimento da
Administração Pública. Estes direitos entram em flagrante colisão quando a
manifestação ocorre em vias públicas, impedindo que os usuários utilizem o bem
público de uso comum do povo. Deste dilema surge a necessidade de agir, por parte do
Estado, a fim de amoldar o exercício de direitos constitucionalmente previstos em
caráter abstrato, mas que concretamente entram em conflito.

Este modo de fundamentar o poder de polícia é atribuído ao


italiano Renato Alessi, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello, confira-se:

“Convém desde logo observar que não se deve confundir


liberdade e propriedade com direito de liberdade e direito de
propriedade. Estes últimos são expressões daquelas, porém tal
como admitidas em um dado sistema normativo. Por isso,
14
Versão preliminar – não citar e não circular

rigorosamente falando, não há limitações administrativas ao


direito de liberdade e ao direito de propriedade – é a brilhante
observação de Alessi –, uma vez que estes simplesmente
integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na
verdade, a fisionomia normativa dele. Há, isto sim, limitações à
liberdade e à propriedade”35.

Igualmente para o italiano Presutti, para quem “as limitações à


liberdade e a propriedade privada por causa do interesse público (...) devem classificar-
se em duas grandes categorias: negativas e positivas. As limitações negativas
constituem a mera definição da liberdade e da propriedade individual”36. No
Brasil, no mesmo sentido é a conceituação de Clóvis Beznos:

“Polícia administrativa é a atividade administrativa, exercitada


sob previsão legal, com fundamento numa supremacia geral da
Administração, e que tem por objeto ou reconhecer os confins dos
direitos, através de um processo, meramente interpretativo,
quando derivada de uma competência vinculada, ou delinear os
contornos dos direitos, assegurados no sistema normativo, quando
resultante de uma competência discricionária, a fim de adequá-los
aos demais valores albergados no mesmo sistema, impondo aos
administrados uma obrigação de não fazer”37.

Vale aprofundar tais ideias. Em primeiro lugar, cabe distinguir


entre as atividades de restrição (ou constrição, limitação) e delimitação (ou
configuração, conformação) de direitos. No primeiro caso, há uma compressão dos
espaços a que o direito poderia alcançar se analisado em abstrato. Por exemplo, o titular
de um imóvel pode considerar incluída em suas faculdades decorrentes do direito de
propriedade a prerrogativa de construir um prédio de cinco andares. Porém,
determinado Município pode, sob o pretexto de regular as construções (polícia edilícia),
proibir que as construções sejam superiores a três andares. Aqui, tem-se uma atividade
de restrição a um direito individual.

35
MELO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 24ª. Ed. São Paulo:
Malheiros, 2007, p. 794.
36
Presutti, Instizuioni di Diritto Admministrativo Italiano, p. 243 apud BASAVILBASO, Benjamim
Villegas. Derecho administrativo, t. 5. Buenos Aires: Editora Argentina, 1954, p. 21. Negrito
acrescentado ao trecho.
37
BEZNOS, Clóvis. Poder de polícia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 76.
15
Versão preliminar – não citar e não circular

Por outro lado, a atividade de limitação consiste em demarcar a


fronteira que separa o “direito” do “não-direito”, isto é, as faculdades e prerrogativas
que podem ser legitimamente extraída do enunciado normativo que confere o direito em
abstrato. Exemplo clássico de limitação é utilizar a prerrogativa de liberdade de
manifestação artística (art. 5º, IX, da CF88) para pintar um quadro na principal avenida
da cidade, interrompendo completamente o trânsito de veículos. Não se pode dizer que a
conduta do artista, neste caso, está albergada pelo direito mencionado, já que a liberdade
de manifestação artística possui limites próprios para o seu exercício. Nesta hipótese
não há limitação, mas sim delimitação. A Administração age para impedir uma conduta
que, em último grau, não é lícita.

O debate entre a limitação e conformação de direitos é já antigo


no âmbito da metodologia do direito, sendo especialmente relevante no âmbito da teoria
dos direitos fundamentais38. Nesta seara se costuma distinguir entre a teoria interna dos
direitos fundamentais, que simplesmente recusa a colisão de direitos fundamentais, e a
externa. Para os adeptos da teoria interna, os direitos possuem um âmbito próprio de
aplicação, sendo certo que a (falsa) colisão é o indício de que um dos indivíduos
transpassou tal círculo. O problema dos direitos fundamentais é encontrar o justo limite
de cada um, atividade que deu origem ao princípio da concordância prática no direito
constitucional. Na teoria interna o Estado não pode restringir os direitos fundamentais.
Desponta como principal defensor desta concepção o alemão Friedrich Müller.

De outro lado, a teoria externa dos direitos fundamentais sustenta


a vocação expansiva de tais direitos e defende a utilização da ponderação como método
jurídico para superar o conflito. Como assinala Robert Alexy, a referida teoria
pressupõe a existência de duas categorias jurídicas: o direito em si, que não está
restringido, e o direito restringido, precisamente o que sobra quando se colocam as
restrições. Tal concepção entende com tarefa da interpretação constitucional: (i)
identificar o conteúdo do direito (seus contornos máximos, sua esfera de proteção) e (ii)

38
A propósito do tema, confira-se a obra de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação
constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
16
Versão preliminar – não citar e não circular

precisar os limites externos que decorrem da necessidade de conciliá-lo com outros


direitos e bens constitucionalmente protegidos39.

Em todo caso, parece clara a incapacidade do ordenamento


jurídico de fornecer pautas abstratas a priori capazes de impedir que haja alguma
margem de liberdade de atuação do administrador. Este é um ponto consensual: o
defensor da teoria interna sustentará a necessidade de concordância prática entre
direitos; o adepto da teoria externa dará ao intérprete a possibilidade de ponderar in
concreto. Contudo, não se pode deixar de afirmar que constitui inegável paradoxo
atribuir ao Estado a tarefa de limitar ou delimitar os direitos fundamentais, os quais, em
última instância, servem para o fim de constranger a própria ação estatal. É como
entregar ao presidiário a chave do cárcere, deixando ao seu talante definir quando e
como ficará cativo. Esta é uma crítica óbvia ao modelo metodológico.

Em contrapartida, a vantagem deste modelo em relação ao


anterior consiste no abandono da noção de ordem pública como fundamento para o
exercício do poder de polícia. Aqui esta é consequência e não causa para a ação estatal.
Abandona-se o pecado original autoritário que fundamenta o poder de polícia, mas,
contudo, não se apresenta um substituto legítimo. Neste sentido, vale mencionar que a
conhecida frase de Norberto Bobbio, no sentido de que “o problema fundamental em
relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas de protegê-los”40,
parece deixar a descoberto uma parcela importante do fenômeno jurídico, que consiste
precisamente na necessidade de legitimação, exigência própria de uma sociedade que já
não é mais positivista. Daí a pertinente observação de Ricardo Lobo Torres, que afirma:
“se realmente a problemática da eficácia é importante, nem por isso pode se sobrepor ou
levar ao esquecimento a legitimação”, e arremata o autor, “a resposta ao problema da
justificação projeta consequências jusfundamentais na prática constitucional”41.

39
Cf. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 139-151.
40
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 24.
41
TORRES, Ricardo Lobo. “Introdução”. Ricardo Lobo Torres (org.). Legitimação dos direitos
humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 2-3.
17
Versão preliminar – não citar e não circular

Ora, ao afirmar que o seu exercício deriva da necessidade de


restringir ou delimitar o exercício dos direitos fundamentais, os quais, por sua vocação
expansiva, acabam por colidir, transfere-se o problema do poder de polícia para uma
questão de positivação de direitos. Mas isso não esvazia a necessidade de legitimação.
Logo, o modelo metodológico, embora represente inegável avanço frente às teorias
anteriores, não pode ser adotado sem ressalvas. O problema das limitações
administrativas não é exclusivamente uma questão de metodologia do direito ou de
teoria das normas, o que significaria o esvaziamento de uma discussão que é
eminentemente filosófica ou política. Quando se chama o cidadão a abrir mão de
parcela de seu direito em favor do interesse público, qualquer que seja, impõe-se seja
lhe dado razão substancial para tanto. Esta é uma exigência de qualquer direito
administrativo que se pretenda democrático.

II. ALGUMAS IDEIAS PARA UMA NOVA TEORIA PARA O PODER DE POLÍCIA

A fundamentação geral do poder de polícia na cláusula geral de


ordem pública, somada a uma legalidade fragilizada pelas razões já apontadas, são
elementos que propiciam o exercício arbitrário de tal função administrativa. É preciso,
portanto, realizar esforços no sentido de encontrar um novo alicerce para o exercício da
atividade estatal de intervenção nos direitos fundamentais, que supere as referências
genéricas à ordem pública ou a defeitos na positivação de direitos, substituindo-as por
uma legitimação que seja, ao mesmo tempo, democrática e ética. E a busca por esse
novo fundamento conduz à necessidade de revisão da posição do papel do Estado nas
sociedades contemporâneas.

Em primeiro lugar, é preciso assentar a tese de que o Estado e a


função pública – respectivamente, pessoa jurídica e o ius imperii – não são fins em si
mesmos, mas sim instrumentos a serviço de uma missão maior; são elementos que
servem à cooperação para a realização e o desenvolvimento da personalidade humana42.

42
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 24ª. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 107: “Procedendo-se a uma síntese de todas essas idéias, verifica-se que o
Estado, como sociedade política, tem um fim geral, constituindo-se em meio para que os
indivíduos e as demais sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares. (...)
18
Versão preliminar – não citar e não circular

Esta, por sua vez, é entendida como o núcleo essencial do princípio da dignidade da
pessoa humana e causa última da existência do próprio Estado.

Este modelo deve estar assentado em três diferentes premissas


gerais, que representam a superação de paradigmas do Estado oitocentista. Em primeiro
lugar, deve haver um fundamento político-filosófico renovado. Havendo perfeita
distinção entre a esfera de atuação privada, reservada à sociedade, e a esfera pública, de
atuação dos governantes, no Estado oitocentista tudo que era de interesse público
necessariamente também era estatal, de acordo com a premissa hobbesiana. Assim, este
era senhor absoluto do interesse público, detentor da primazia sobre a sociedade civil,
não lhe cabendo fornecer justificativa para o seu agir. Não assim quanto ao Estado
contemporâneo, que não mais pode reivindicar esta posição de supremacia sem um
argumento de legitimação.

Como afirmado anteriormente, a dogmática jurídica não mais


prescinde de argumentos morais; eles são essenciais à nova ciência jurídica, e não
podem faltar à teoria do Estado e ao direito administrativo. Contudo, não há espaço para
reedição do velho e exaurido debate entre o jusnaturalismo e o positivismo. Uma teoria
do poder de polícia deve recorrer à teoria democrática como fundamento de uma ética
pública, onde a prevalência do Estado, quando cabível, somente pode ser resultante da
discussão no espaço público e da persuasão racional entre cidadãos livres e iguais. Essa
é a proposta da democracia deliberativa, assim definida por Amy Gutman e Dennis
Thompson, verbis:

“Podemos definir democracia deliberativa como uma forma de


governo na qual cidadãos livres e iguais (e seus representantes)
justificam decisões em um processo no qual eles dão uns aos
outros razões que são mutuamente aceitáveis e acessíveis pelas
generalidade dos partícipes, com o objetivo de alcançar
conclusões que são vinculantes para os cidadãos presentes mas
abertas a modificações no futuro”43.

Assim, pois, o desenvolvimento integral da personalidade dos integrantes desse povo é


que deve ser o seu objetivo, o que determina uma concepção particular de bem comum para
cada Estado, em função das peculiaridades de cada povo”. (negrito acrescentado)
43
GUTMAN, Amy; THOMPSON, Dennis. Why deliberative democracy?, Princeton: Princeton
University Press, 2004, p. 7.
19
Versão preliminar – não citar e não circular

Sendo assim, o poder estatal de restrição aos direitos


fundamentais demanda adesão dos administrados e somente pode ser entendido num
contexto de justa cooperação social. As limitações aos direitos fundamentais
admissíveis são aqueles que cidadãos livres e iguais, “em busca de termos justos para a
cooperação não possam razoavelmente rejeitar”44.

Este é o fim último do poder de polícia: encontrar os confins dos


direitos (restringindo-os ou delimitando-os) de modo a tornar viável a vida social
democrática. É inadmissível que as pessoas sejam tratadas como meros objetos de
legislação, mas devem ser entendidas como partes ativas no processo de edificação do
espaço público. Essa forma da pensar coloca em evidência o indivíduo e a sociedade
civil, superando-se o primado do Estado e a identidade imediata entre o público e o
estatal.

Desta forma, fica patente a necessidade de adesão dos particulares


à atividade administrativa, o que torna especialmente relevante os mecanismos de
atuação ditos horizontais, tais como os acordos substitutivos, dos quais o maior exemplo
são os termos de ajuste de conduta celebrados no exercício do poder de polícia45.
“Nesse cenário, aponta-se para o surgimento de uma Administração Pública dialógica,
a qual contrastaria com a Administração Pública monológica, refratária à instituição e
ao desenvolvimento de processos comunicacionais com a sociedade” 46.

Em segundo lugar, uma nova teoria do poder de polícia deve


possuir um novo fundamento sociológico, de certa maneira já antecipado neste texto.
Em tal contexto, não se admite o exercício do poder com premissa na incapacidade
moral dos indivíduos, como se o Estado fosse o superego da sociedade. No modelo
novo, deve ser reconhecida a plena capacidade da sociedade civil de coordenar seus

44
GUTMAN, Amy; THOMPSON, Dennis. Why deliberative democracy?, Princeton: Princeton
University Press, 2004, p. 7.
45
Os termos de ajuste de conduta são um verdadeiro sucesso no âmbito do poder de polícia
ambiental.
46
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito administrativo democrático. Belo Horizonte: Fórum,
2010, p. 217.
20
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interesses e suas demandas, de modo que a atividade interventiva estatal deve ser
sempre pautada pela subsidiariedade. Partindo de tal premissa, é reconhecida a plena
possibilidade de bipartição entre público e o estatal, nos termos seguintes:

“Público significa ‘o que é comum, pertence a todos, é do povo,


pelo que, opondo-se a privado, se mostra que não pertence nem se
refere ao indivíduo ou ao particular’ (SILVA, 2000, p. 661). A
esfera pública inclui as questões da coletividade, que estão para
além do indivíduo, da família e dos grupos restritos. O público é
mais abrangente que o estatal. Ele manifesta-se em duas
modalidades: público estatal e público não estatal. Apenas num
hipotético ‘Estado total’, em que o Estado fosse o sujeito de todas
as iniciativas coletivas, é possível pensar em uma identificação
plena entre um e outro. Em sociedades complexas e pluralistas,
além dos entes estatais, o público inclui uma gama de
organizações e instituições que prestam serviços de interesse
coletivo, ou seja, são públicas não estatais. (BRESSER
PEREIRA, 1997)”.47 (negrito acrescentado)

Em outras palavras, o interesse público pode recomendar que o


Estado aja na qualidade de particular, coordenando-se com os demais atores
privados, e que a sociedade civil, em determinadas hipóteses, haja com poder de
império, desde que tal delegação seja justificada e cercada de garantias aos direitos
dos envolvidos. É sobre essa premissa que se entenda legítima a delegação de poder
para particulares no exercício das competências executórias de serviços públicos.

Acresça-se que o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do


julgamento da ADI nº. 3.026/DF, já flertou com este avanço teórico. Neste julgado, a
corte reconheceu a natureza pública não-estatal da Ordem dos Advogados do Brasil,
qualificando-a como serviço público independente48. Em outras palavras, o Tribunal

47
SCHMIDT, João Pedro. “O comunitário em tempos de público não estatal”. Avaliação
(Campinas) [online]. 2010, vol.15, n.1, p. 34.
48
STF, ADI 3026-DF, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.09.2006. Confira-se a emente: “AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. § 1º DO ARTIGO 79 DA LEI N. 8.906, 2ª PARTE.
"SERVIDORES" DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. PRECEITO QUE POSSIBILITA
A OPÇÃO PELO REGIME CELESTISTA. COMPENSAÇÃO PELA ESCOLHA DO REGIME
JURÍDICO NO MOMENTO DA APOSENTADORIA. INDENIZAÇÃO. IMPOSIÇÃO DOS
DITAMES INERENTES À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA. CONCURSO
PÚBLICO (ART. 37, II DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL). INEXIGÊNCIA DE CONCURSO
PÚBLICO PARA A ADMISSÃO DOS CONTRATADOS PELA OAB. AUTARQUIAS ESPECIAIS
E AGÊNCIAS. CARÁTER JURÍDICO DA OAB. ENTIDADE PRESTADORA DE SERVIÇO
PÚBLICO INDEPENDENTE. CATEGORIA ÍMPAR NO ELENCO DAS PERSONALIDADES
21
Versão preliminar – não citar e não circular

afirmou que a instituição de classe dos advogados, embora possua natureza pública em
razão da função que desempenha, não é estatal, já que não está formalmente vinculada à
estrutura do Estado49. Ademais, o tribunal reconheceu a possibilidade de exercício de
poder de polícia das profissões por entidades não-estatais, avançando, assim, com
relação à posição adotada no julgado da ADI nº. 1.717/DF, já mencionada neste texto.

Esses dois elementos reunidos devem ser sopesados na construção


de uma nova teoria do poder de polícia, desgarrada das noções hobbesiana ou no
problema metodológico apontado. À luz desses elementos, a função estatal de polícia
deve ser compreendida como a força pública de conformação de direitos que serve de
suporte à cooperação social democrática e à realização dos direitos da pessoa humana.

JURÍDICAS EXISTENTES NO DIREITO BRASILEIRO. AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA DA


ENTIDADE. PRINCÍPIO DA MORALIDADE. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 37, CAPUT, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. NÃO OCORRÊNCIA. 1. A Lei n. 8.906, artigo 79, § 1º,
possibilitou aos "servidores" da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime
celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria. 2.
Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração
Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A
Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades
jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se
inserem essas que se tem referido como "autarquias especiais" para pretender-se afirmar
equivocada independência das hoje chamadas "agências". 5. Por não consubstanciar uma
entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a
qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente
necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função
constitucionalmente pr ivilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da
Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e
seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer
órgão público. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e
independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização
profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui
finalidade institucional. 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto
aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente.
9. Improcede o pedido do requerente no sentido de que se dê interpretação conforme o artigo
37, inciso II, da Constituição do Brasil ao caput do artigo 79 da Lei n. 8.906, que determina a
aplicação do regime trabalhista aos servidores da OAB. 10. Incabível a exigência de concurso
público para admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela OAB. 11. Princípio da
moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao
âmbito da ética da legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do
próprio sistema. Desvio de poder ou de finalidade. 12. Julgo improcedente o pedido”.
49
V. SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. “Conselhos de fiscalização
profissional: entidades públicas não-estatais”. Revista de Direito do Estado nº. 04, 2006, p. 323:
“A superação desse impasse se dá com a separação de duas realidades distintas: a natureza
pública, de um lado, e a estatal, de outro. Todavia, por vezes, esta distinção é esquecida. De
um modo geral se pretende vincular a natureza de direito público à estrutura burocrática que
integra o Estado. A premissa da qual se parte é a de que, por ser público, o ente também seria,
necessariamente, estatal. A recíproca também é tida como verdadeira. Desta outra forma
entende-se que se não for estatal, o ente só poderia ostentar natureza jurídica de direito
privado”.
22
Versão preliminar – não citar e não circular

III. SÍNTESE CONCLUSIVA

O direito administrativo é, dentre os ramos clássicos do direito,


aquele de desenvolvimento mais recente. Ele é mais novo que o direito constitucional, e
certamente ainda um infante se comparado com o direito civil. Não bastasse isso, em
razão das modificações das tarefas do Estado e do dinamismo nas relações deste com a
sociedade civil, o direito administrativo não pode gozar da mesma estabilidade do
direito privado, cujas categorias remontam há mais de um milênio. Disto decorre a
obrigação de sua constante releitura e adaptação.

O tema “poder de polícia” é um assunto que está presente no dia-


a-dia da cidadania, quando se dirige um veículo nas vias públicas, quando se compra
medicamentos, quando se constrói uma casa. Em tempos de expansão vertiginosa da
tecnologia, o espaço de liberdade do cidadão tem se ampliado e o exercício legítimo do
poder de polícia emerge como garantia essencial à segurança, à paz e à convivência
pacífica e harmoniosa. Já se sabe que a demanda hoje é por mais Estado, e não menos
Estado. Mais do que nunca a regulação pública dos domínios da liberdade –
aparentemente ilimitada pela expansão da tecnologia – torna-se imperiosa. Essa
regulação, contudo, não pode ser feita sem mais explicações e de modo unilateral. Pelo
contrário, ela demanda intensa justificação constitucional.

O pressuposto do poder de polícia não pode mais ser o homem


hobbesiano, mas deve reconhecer os indivíduos como sujeitos de direito, autônomos e
capazes de cooperar socialmente. Uma teoria do poder de polícia compatível com a
ordem constitucional de 1988 deve reconhecer a sua subsidiariedade, com primazia da
autorregulação, e a necessidade de participação dos regulados nas decisões públicas
coletivas e individuais.

23
Versão preliminar – não citar e não circular

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição


portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1976.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito
administrativo econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
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