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CAIo TÁcITo
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nistrativo alemão assim definia o papel da administração: "O resultado de cada
aplicação do poder de polícia não será mais outro: que este homem não perturbe."3
O poder de polícia tinha como estrita finalidade a garantia da segurança, da
tranqüilidade e da salubridade públicas.
O primeiro autor brasileiro de direito administrativo - Vicente Pereira do
Rego - assim descrevia, em 1857, a pertinência da ação do Estado:
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"Praticamente, os interesses, em que consiste o bem público, bem geral, ou
bem comum, public welfare, cometido à discrição do poder de polícia, abrangem
duas grandes classes: os interesses econômicos, menos diretos, menos urgentes,
menos imperiosos, mais complexos, e os interesses concernentes à segurança, aos
bons costumes, à ordem, interesses mais simples, mais elementares, mais pre-
ciosos, mais instantes em qualquer grau de desenvolvimento social nas coletivi-
dades organizadas e policiadas."7
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A cláusula do due process of Iaw, constante da 14.& Emenda, supera o seu
endereço original, meramente adjetivo, para alcançar o abono da jurisprudência
no sentido de firmar neutralidade do Estado em face do capitalismo dominante.
O Judiciário, de inspiração conservadora, assume supremacia política, implan-
tando o chamado "governo dos juízes" que, nos anos da década de 1890, firma
"a aliança do juiz e do capitalista, sob os auspícios dos grandes advogados da
época. A Corte Suprema se toma a guardiã da ortodoxia econômica", segundo
o depoimento de Roger Pinto. IO
Na medida, porém, em que se desfaz a auréola quase romântica dos capitães de
indústria e os conflitos sociais dia a dia se exacerbam, os sindicatos se fortale-
cem e despontam os primeiros sinais da crise afinal deflagrada em 1929, retoma
a primazia do poder de polícia como instrumento de intervenção do Estado na
ordem econômica e social. Um novo federal police power abre caminho ao plano
do New Deal e mobiliza a atividade administrativa para a regulamentação dos
negócios privados.
Em verdade, a opção se faz entre o controle da economia pelo governo, ema-
nado da representação popular e o controle pelo poder econômico concentrado
e absorvente. O poder de polícia, como forma de conter os excessos do capit!l-
lismo, sedimenta a ordem democrática e protege os economicamente fracos.
O fenômeno não se circunscreve a um único país ou a um s6 continente. Tal
como, no passado, o poder absoluto monárquico sucumbiu perante a afirmação
da cidadania, também não há direito subjetivo absoluto, que faça do indivíduo
um novo monarca. Todos se submetem, com maior ou menor intensidade, à
influência superior do interesse público, arbitrada pelo poder de polícia fundado
na lei.
No equilíbrio entre os princípios - de certa forma antagônicos - da liberdade
e da autoridade, o poder de polícia se coloca como uma das faculdades discricio-
nárias do poder público, visando à proteção da ordem, da paz e do bem-estar
social.
Nos regimes mais diversos, democráticos ou totalitários, a ênfase dos sistemas
legais se deslocou da abstenção para a intervenção, convocado o Estado a exercer,
a par da tradicional posição de amparo aos direitos indivíduais, o papel de pres-
tador de serviços e de fiscal dos abusos do poder econômico.
A crise moderna do Estado se coloca na dimensão da passagem de um sistema
de liberdade econômica, sujeita às leis do mercado, para um regime de dirigismo
sob o controle do poder regulamentar (rule marking power) e do poder de planejar
e socializar a economia (directing power).
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Tivemos oportunidade de acentuar, em outro ensaio,!l as etapas sucessivas
que, no plano constitucional, partiram da consagração dos direitos civis e políti-
cos para acrescer os direitos sociais do homem e afinal acolher os direitos cole-
tivos sem dono certo, os chamados direitos difusos. Em suma, a extensa avenida
que vai do cidadão ao consumidor. Em cada uma dessas fases, em que se aper-
feiçoa a busca da fidelidade ao princípio democrático, o poder de polícia é um
meio indispensável de ação dos governantes na prática do dever de boa admi-
nistração.
O fortalecimento do poder discricionário - do qual o poder de polícia é uma
das manifestações mais atuantes - colocou em destaque a necessidade de aper-
feiçoamento do controle de legalidade de modo a conter, oportunamente, os ex-
cessos ou violências da administração pública.
Se a administração pública, em defesa do interesse geral, policia os abusos
dos particulares e das empresas, quem policiará os excessos do poder?
Certamente, a via tradicional de garantia, no sistema de freios e contrapesos,
incumbe, por excelência, ao poder judiciário, guardião da legalidade e protetor
dos direitos e liberdades. Na medida em que se amplia, como assinalado, o
poder maior do Estado, constroem-se meios mais eficazes para a prática do con-
trole judicial. De um lado, pelo exame da constitucionalidade das leis, limita-se
a ação do poder legislativo na política de intervenção notadamente na ordem
econômica e social. De outra parte, aprofundou-se o controle de legalidade dos
atos administrativos mediante a construção, a princípio doutrinária e jurispru-
dencial, da teoria do desvio de poder, notável criação do Conselho de Estado da
França (que logo se internacionalizou), a qual permite condicionar a competência
da autoridade, impedindo que possa ser posta a serviço de interesses que não
se compatibilizem com a finalidade específica que, em cada caso, autoriza a ação
unilateral e imperativa da administração pública. 12
Remédios especiais contra os abusos de poder administrativo se consolidaram
através dos tempos. O histórico instrumento do habeas-corpus, como os moder-
nos procedimentos do mandado de segurança (ou do amparo, que é o seu irmão
gêmeo no direito mexicano e argentino), contrastam, com eficiência e celebridade,
as violações ou ameaças aos direitos individuais.
Mais recente, a ação popular, prevista na Constituição, faculta a qualquer cida-
dão assumir o papel de defensor do interesse coletivo, quando os atos ilícitos
do Estado causem dano à coisa pública.
Acaba de se incorporar ao elenco de tais medidas de proteção ao interesse
geral a adoção do processo da ação de responsabilidade do Estado para a pro-
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teção de interesses coletivos, atribuindo-se legitimação processual a aSSOClaçoes
representativas de segmentos da sociedade (Lei n.O 7.347, de 24 de julho de
1985).
Também ao poder legislativo incumbe exercer, embora indiretamente, a vigi-
lância sobre a administração pública, de modo a coibir as ilegalidades e abusos
do poder administrativo. Se não cabe ao órgão legislativo anular atos administra-
tivos ilegais (função privativa do Judiciário) há remédios indiretos contra os
abusos de autoridade, mediante pedidos de informações de iniciativa de seus
membros ou, de modo mais eficaz, por meio de comissões parlamentares de inqué-
rito (Lei n.O 1.579, de 18 de março de 1952).
A Constituição Federal prevê, no art. 45, processo especial de fiscalização pelas
Casas do Congresso de atos do poder executivo, inclusive os de administração
indireta. Para o exercício dessa função de sindicância, a Lei n.O 7.295, de 19
de dezembro de 1984, instituiu comissão de fiscalização e controle, cujo relató-
rio, nos casos submetidos a investigação, será objeto de declaração do plenário.
O direito comparado oferece, ainda, o modelo de órgão de verificação da
regularidade administrativa, ao qual cumpre examinar as reclamações contra atos
ou omissões das autoridades administrativas. A Constituição da Suécia, de 1809,
inaugurou a figura do comissário parlamentar, que se tomou conhecido pela de-
nominação de ombudsman e a instituição se difundiu por outros países do mundo
nórdico (Finlândia em 1979; Noruega em 1952; Dinamarca em 1954). Adotou-a
a Inglaterra com o parliamentary commissioner, de 1967, a Nova Zelândia (1962),
várias das províncias do Canadá, a par de experiências locais em Israel, França,
EUA, Alemanha Oriental, Filipinas, Havaí, Suíça. A figura do mediateur francês
e do defensor dei puebla espanhol são modalidades desse funcionário qualificado
que, como auxiliar do poder legislativo, desempenha o papel de protetor do
cidadão. Entre nós, Celso Barroso Leite propôs sua adoção com o título de co"e-
gedor administrativol3 e tivemos oportunidade de sugerir que, analogicamente,
cuidássemos de uma corregedoria geral das empresas estatais.l •
Já agora, no cenário dos direitos humanos, desponta a reação contra o risco
da presença esmagadora do Estado. A título de servir ao homem e à coletividade,
o Estado ameaça tomar-se opressivo, substituindo a personalidade pela unifor-
midade. No painel da liberdade, acendem-se as luzes de advertência do perigo
do autoritarismo emergente. Ao abuso do direito individual ou aos malefícios
da concentração econômica, que a lei habilita o Estado a prevenir ou reprimir,
13 Leite, Celso Barroso. Ombudsman; instituição escandinava que o mundo vem adotando.
1975.
14 Ver: Tácito, Caio. Os Tribunais de Contas e o controle das empresas estatais. Revista
de Direito Administrativo, 148:1·12, abr./jun. 1982; publicado sob o título: Corregedoria
para vigiar as estatais. In: Revista de Direito Público, (64):5 e segs.
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sucede-se o abuso da burocracia, perante a qual ficam desarmados tanto as pes-
soas como os próprios setores da sociedade.
A era dos direitos sociais, na qual o Estado passa a responder pela segurança
de uma parcela da sociedade contra os infortúnios da vida, faz proliferar os
órgãos do serviço público.
Não apenas as nações que declaradamente aderem ao modelo socialista se
caracterizam pela estatização de meios de produção. Toda a experiência de
governo, no curso do século, tende, em maior ou menor escala, à intervenção
que leva à socialização ostensiva ou velada, assemelhando o Estado ao empresário
e agravando o orçamento público com amplos programas assistenciais, quase
sempre deficitários. Daí a observação de Oskeshott de que a inflação é o funda-
mento do Estado-providência, no qual a dívida interna financia a assistência
social. Na sátira de Friedman, a inflação se assemelha ao alcoolismo, ambos
VÍtimas do excesso de liquidez.
A consciência, que se generaliza, de que a expansão do poder do Estado cons-
trange a liberdade e padroniza a sociedade, não se limita atualmente à criativi-
dade de meios de defesa da privacidade do indivíduo e do espírito de iniciativa,
aquilo a que chamamos de polícia do poder.
Assistimos a um progressivo retomo aos fundamentos do liberalismo, sem
prejuízo das conquistas da justiça social. Há um sensível espírito de desmassifi-
cação da sociedade, uma revolta contra as hierarquias e as burocracias domi-
nantes, a reativação da empresa média dotada de alta dose de sofisticação tec-
nológica (de que o Vale do Silicone, nos EUA, é um exemplo expressivo e bem~
sucedido). A palavra da moda, na catequese dos políticos, passa a ser a da pri-
vatização ou da desregulação da economia. A ação política se descentraliza e
abandona as linhas ortodoxas, passando a valorizar os meios informais de ex-
pressão e de pressão: associações de classe, organizações de base, sindicatos,
bóias-frias, sem-terras ou tribos indígenas, grevistas ou ocupantes de terras é
fábricas inovam, dentro ou à margem da lei, reivindicações com as quais o Es-
tado termina por negociar em benefício da paz social.
Desse caos aparente poder-se-á extrair um elemento constante que marca, de
certa forma, a revisão das bases da sociedade moderna. A par da ressurreição do
liberalismo, como sentido de existência do homem e de reconquista da felici-
dade, começa a se difundir o sentimento de participação, que se toma a bandeira
da reforma social.
Na empresa moderna a participação do operário não somente nos lucros, mas
na gestão e, por via de conseqüência, na responsabilidade do empreendimento.
Nas universidades, a participação de professores, estudantes e funcionários nos
colegiados de decisão e de planejamento. Nos serviços públicos a participação
do consumidor e do usuário na fixação de diretrizes administrativas, se não
mesmo na prática da administração. Nas relações da sociedade como da fa1Ul1ia
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o dever de obediência passa a se temperar com o endosso do consenso, integran-
do as camadas sociais mediante o fluxo de comunicação entre as bases e as
cúpulas dirigentes.
Este é, certamente, um processo de reforma que ainda não se cristalizou, pro-
gredindo entre traumas e contestações, com o preço de excessos e violências,
deformações e maquinações astutas ou agressivas, de que a expressão mais primi-
tiva é o terrorismo.
O caminho está, porém, aberto para uma nova solução liberal, a que Guy
Sorman acaba de dedicar um ensaio de rica densidade. 15 O novo liberalismo
soma os valores tradicionais da igualdade e da liberdade com o dever da solida-
riedade. Restaura o valor do indivíduo como finalidade, mas dele cobra os de-
veres de irmão e de vizinho, numa vida solidária e participativa.
Ao poder de polícia, símbolo da abstração do Estado, se contrapõe o poder das
idéias, expressão mais alta da individualidade. A limitação do poder é um pro-
blema de técnica jurídica, que tem seu molde nas constituições. Também é, no
entanto, um estado de espírito coletivo que tem como termômetro a opinião
pública, a se traduzir tanto pelo voto como pelos métodos informais de contes-
tação e de consenso.
O momento político atual é, entre nós, um exemplo claro desse episódio da
história política. As estruturas da ordem jurídica existente não mais satisfazem
aos reclamos de reforma social e institucional. A Constituição e as leis se des-
pem da sacralidade que é essencial ao equilíbrio da vida coletiva. Ao mesmo
tempo se cuida de remover o que se batizou de "entulho autoritário" e se coloca,
como expectativa de salvação nacional, o bálsamo da Assembléia Constituinte.
A crise atual da sociedade brasileira - não apenas a crise econômica ou a
crise política - exige mais, porém, do que a mera edição de mais uma Carta
Magna, a décima que iremos ter como nação independente. A nossa solução
liberal deverá ser, em profundidade, o fruto de uma nova ordem espiritual, feita
de consenso, participação e justiça social.