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Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos

Andreia Sofia Pinto Oliveira


Benedita Mac Crorie

Manual de Direito Constitucional


I Parte

Outubro de 2017

(Este texto destina-se ao uso exclusivo dos alunos como apoio ao seu estudo. Trata-se de uma
versão provisória, de uma parte de um livro em preparação, não devendo, por isso, ser citado
ou utilizado para qualquer outro fim.)

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I – Introdução ao constitucionalismo

1. O Estado moderno – o direito e a democracia

O atual mapa político do Mundo é muito recente e nele encontramos inúmeros países,
também no continente europeu, que lá foram inscritos apenas no final do século passado ou até
na última década. Antes da Segunda Guerra Mundial, predominavam grandes manchas
contínuas que identificavam os territórios sob o domínio das antigas potências europeias -
sobretudo na África e na Ásia – com “colónias” e “protetorados” onde avultava ainda a
hegemonia planetária do Império Britânico. A ideia de que cada cor pintada no mapa delimita
um território independente e um povo representado por um governo próprio, em pé de igualdade
com todos os outros países, apenas ganhou alguma verosimilhança depois das guerras de
libertação nacional que se sucederam à derrota da Alemanha e do Japão, em 1945. Contudo,
esta representação de um mundo repartido entre Estados soberanos, dotados de igual dignidade
perante o Direito Internacional, é bem mais antiga e exprimiu-se, pela primeira vez, nos
“Tratados de Vestefália”, em 1648, como base para construir a paz numa Europa destruída por
intermináveis guerras religiosas, como veremos adiante.

Hoje, os Estados soberanos enfrentam riscos novos e condicionalismos inéditos. Os


processos contemporâneos de globalização comunicativa, económica e jurídica vieram
perturbar profundamente os valores de referência na construção das identidades culturais e nas
estruturas políticas e sociais das comunidades, pondo em causa o papel “tradicional” dos
Estados, a sua autoridade e as suas funções. As modernas democracias constitucionais, que até
recentemente tinham sabido conjugar com sucesso, o Princípio da Maioria com o Primado do
Direito, confrontadas com o declínio da soberania dos estados, comprometem o sentido da
representação democrática e favorecem a erupção de correntes políticas populistas e pulsões
autoritárias. O capital financeiro internacional, as alterações climáticas, as novas tecnologias da
vida, a propagação de epidemias, desconhecem as fronteiras territoriais dos estados soberanos
que, por sua vez, procuram nas integrações regionais e na correspondente partilha de soberania
(União Europeia, Mercosul, ASEAN) compensar a sua crescente vulnerabilidade.

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Com efeito, a globalização está a afectar “as funções mais elementares e as condições
de legitimação dos estados-nação democráticos”, como afirma o filósofo Jürgen Habermas. É
uma crise que afecta incontornavelmente a própria credibilidade dos instrumentos de
representação democrática. Joseph Stiglitz, antigo vice-presidente do Banco Mundial, afirma
que “a mudança mais importante para colocar a globalização no bom caminho é uma mudança
na governação”. Uma crítica dirigida ao Sistema das Nações Unidas e às instituições que regem
as relações económicas, como por exemplo a Organização do Comércio Internacional, o Fundo
Monetário Internacional, o Banco Mundial. Por outro lado, os efeitos perversos incontroláveis
que a invocação dos valores dos direitos humanos e da democracia, designadamente como
legitimação para o uso da força, tem introduzido nas relações entre estados, contribui,
objetivamente, para acentuar a desordem que reina na política internacional ainda que,
inversamente, a internacionalização dos direitos fundamentais, particularmente desde o fim da
guerra fria, venha apontando no sentido de um caprichoso enlace dos direitos humanos com as
temáticas do desenvolvimento, da boa governação e da democracia, que poderia conduzir a uma
maior eficácia da cooperação internacional e das missões da ONU de manutenção da paz. São
também notórias as dificuldades experimentadas pela Organização das Nações Unidas perante
circunstâncias que reclamam, como aconteceu no Kosovo, na Namíbia, no Cambodja, em
Timor, no Iraque - com resultados muito diversos - o exercício transitório de atribuições que se
considerava serem exclusivas da soberania interna dos estados e, como tais, deveriam em
princípio estar subordinadas a controlo democrático por instituições estaduais. Segundo uma
lição antiga, sabemos bem que a tolerância e o bom governo, escrutinado pelos cidadãos,
constituem a melhor e a mais duradoura proteção da democracia e dos direitos humanos.

2. A era das “Luzes” e as revoluções na Europa e na América

Como referimos anteriormente, o fim das guerras religiosas foi selado na Europa do
século XVII sobre as ruínas do Império dos Habsburgos, com a Paz de Vestefália. Desde então,
foi a soberania dos Estados, reconhecidos como partes iguais e árbitros supremos, que passou
a reger o novo Direito Internacional, proibindo a ingerência nos seus assuntos internos,
condição para a conservação da paz, e ditando regras humanitárias à própria guerra. A paz, é

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certo, revelou-se precária, como temia o filósofo Hugo de Groot, mas a tolerância e o gozo da
liberdade de consciência - por caminhos rebeldes e “gloriosos” onde brilha o pensamento de
John Locke - impuseram o Princípio da Separação dos Poderes e a proteção dos Direitos do
Homem no princípio e no fim do próprio Estado, porventura, expressão secularizada da crença
cristã na “universalidade da graça”. Depois - em nome de uma ordem internacional fundada no
pacto que logrou pôr termo à Guerra dos Trinta Anos, na era distante de 1648 – iria prometer-
se a tutela universal efetiva dos direitos humanos, quer por meios militares quer por meios
jurisdicionais. Num movimento pendular, é agora em nome destes valores que se erguem os
estandartes da guerra. É essa radical universalidade, estimulada pela positivação dos direitos
fundamentais na ordem constitucional democrática, que nos devolve, hoje, ao problema de
sempre – a liberdade, a paz, a fragilidade da condição humana.

A emergência do moderno Estado de Direito, a partir do século XVII, realiza-se como


crítica do poder régio, contestação da monarquia absoluta, denúncia da arbitrariedade, que se
deseja “limitar”.

Na Inglaterra, de forma pioneira, esse objectivo coincide com uma aspiração tradicional
- o reconhecimento do papel central de um “Parlamento” que corporiza nas suas duas câmaras
- a dos “Lordes” e a dos “Comuns” - concepções e representações de interesses tipicamente
medievais, em luta ancestral contra o centralismo monárquico. o regime político que
concretamente se vem instituir na Inglaterra do último quartel do séc. XVII não precisou, para
se impor, de representar o Estado como uma pessoa jurídica, não elaborou uma Constituição
escrita nem sujeitou a Administração Pública a um Princípio da Legalidade, como aconteceria
depois na América e no continente europeu. Decapitaram um monarca mas salvaram a
monarquia, satisfazendo-se com o juramento solene por Guilherme e Maria de Orange, da
"Declaração de Direitos” no termo da “Revolução Gloriosa”. Será necessário um século de
elaboração e divulgação da filosofia iluminista para que surja, a Oeste, a primeira Constituição
escrita e para que, do lado de cá da Mancha, o Principio da Separação dos Poderes seja
proclamado como conteúdo essencial da própria Constituição.

3. A Constituição como Lei Fundamental - Uma sentença de 1803: “Marbury versus


Madison”

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A Constituição é a Lei Fundamental. Por ela se realiza um desígnio extraordinário: a
submissão do direito do mais forte à força do direito, segundo uma certa ideia de justiça. A
Constituição reconfigura o passado, descreve o destino comum, conforma o futuro e os
processos de mudança social. Mas, acima de tudo, impõe limites rigorosos ao poder dos que
governam em nome do povo que representam, determina as regras do jogo político, facilita a
alternância, limita a acumulação de mandatos sucessivos, regula, enfim, o exercício da
representação democrática. Por isso, a Lei Fundamental não é uma lei como as outras. Pelo
contrário: é a Constituição que regula os procedimentos a seguir para a aprovação de todas as
outras leis, que determina as formas que elas devem revestir consoante as matérias de que
tratam, que identifica os órgãos soberanos competentes para as fazer e para as aprovar, para
ordenar a sua publicação, para assegurar o seu cumprimento e, por fim, para punir a sua
violação. É bom de ver que seriam escusadas tantas canseiras se o mesmo órgão competente
para fazer as outras leis pudesse, sem mais cautelas, mudar também a própria Lei Fundamental
quando lhe aprouvesse. Questão distinta, contudo, é a de saber o que deve ser feito se uma lei
violar a Constituição. Poderão os juízes, cuja missão é justamente assegurar o cumprimento das
leis, recusar a aplicação de uma norma legal se entenderem que ela não respeita a Lei
Fundamental? Mas se a sua missão é justamente aplicar a lei, como se poderá negar-lhes
competência para assegurar que a lei superior prevaleça sobre a lei inferior?

Nos Estados Unidos da América o problema ficou definitivamente resolvido nos


princípios do século XIX, não muitos anos após a Declaração da Independência e a vitória na
guerra contra a opressão colonial britânica. Curiosamente, o texto da Constituição aprovada
pela Convenção de Filadélfia, em 1787, é completamente omisso quanto a esta questão, ainda
que o assunto ali tenha sido abordado pelos deputados constituintes. Contudo, logo em 1803, o
Supremo Tribunal Federal dos EUA, na decisão de um caso que apenas por esse motivo iria
aceder à celebridade - “Marbury versus Madison” - vai exercer pela primeira vez o controlo
judicial da constitucionalidade das leis, reclamando para os juízes o poder inalienável de recusar
a aplicação de leis inconstitucionais. Foi relator da sentença o Presidente do Supremo, John
Marshall, que assim enunciou “o paradoxo”: “Com que finalidade se limitou o poder e com que
finalidade foi tal limitação reduzida a escrito, se tais limites puderem ser ultrapassados, em
qualquer altura, por aqueles que se pretendia limitar?”

Nos últimos dias do seu mandato como 2º Presidente dos EUA, John Adams nomeou
42 juízes para os tribunais distritais de Columbia. Era uma derradeira tentativa do Partido
Federalista de condicionamento do poder judicial. Para azar do Presidente cessante, o Senado
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atrasou a confirmação dos juízes nomeados que só ficaria concluída na véspera do início de
funções do seu sucessor. O resultado foi que os documentos de nomeação não chegaram a sair
da Presidência e o novo Presidente, Thomas Jefferson, iria considerá-las inválidas. Porém,
Marbury - um dos juízes nomeados - não se resignou e requereu ao Supremo Tribunal que
emitisse uma intimação (Writ of Mandamus) para obrigar o Secretário de Estado, James
Madison, a concluir o processo de nomeação. O Tribunal iria, contudo, declarar-se
incompetente, com fundamento em que a norma legal que o habilitava a decidir o caso em 1ª
instância, violava a distribuição de competências entre o Supremo Tribunal e os tribunais
inferiores, tal como previa a secção II do artigo 3º da Constituição dos EUA. É verdade que
esta interpretação da norma constitucional invocada como fundamento da decisão, não iria
vingar. Em contrapartida, a argumentação acessória produzida por John Marshall a favor do
reconhecimento da competência dos juízes para fiscalizar a constitucionalidade das leis, iria
prevalecer para sempre e havia de conquistar o Mundo... Entretanto, a coberto da exaltação
retórica da supremacia judicial – que lhe permitiu recusar a aplicação da lei que, precisamente,
lhe atribuía competência naquela matéria! - tinha sido evitada uma “guerra” de resultado incerto
entre os juízes e o chefe do poder executivo!

Uma análise mais demorada do caso “Marbury v. Madison” revela porém que esta
modalidade de controlo judicial da constitucionalidade das leis (judicial review) inaugurada
pelo Supremo Tribunal Federal americano, consegue evitar, em parte, a acusação de que o poder
judicial estaria dessa forma a “usurpar” as atribuições próprias do poder legislativo. De facto,
o Supremo Tribunal limitou-se, como estava obrigado, a decidir o conflito que as partes lhe
submeteram – não revogou nenhuma lei nem criou outra que a substituísse. Aliás, a lei
continuou em vigor e o próprio Tribunal não ficou impedido de, na decisão de um caso futuro,
interpretar a lei de maneira diversa da anterior, se as circunstâncias do novo caso justificassem
a adoção de outro entendimento. Além do mais, isso apenas aconteceria se a decisão de um
novo caso viesse a ser suscitada. Não há notícia de que algum dos restantes 41 juízes que não
foram notificados para tomar posse, tenha posteriormente recorrido judicialmente, nem se sabe
de outros casos que tivessem obrigado o Supremo Tribunal a pronunciar-se de novo sobre a
norma que, naquele caso concreto, se recusou a aplicar por alegado vício de
inconstitucionalidade. Contudo, se o fundamento invocado pelo Supremo para recusar a
aplicação de leis inconstitucionais radica na própria natureza da função judicial, então qualquer
juiz, em qualquer tribunal, estaria também obrigado - por dever irrenunciável do cargo que
desempenha - a proceder de igual forma. O poder de controlo da constitucionalidade das leis

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pelos juízes fica assim circunscrito quanto à sua validade e aos seus efeitos, à resolução de um
caso concreto que, por força da interposição do respetivo processo judicial, lhes seja submetido.
É apenas por força do “princípio do precedente” e da hierarquia das instâncias de recurso para
os tribunais superiores, que a reivindicação desta competência “corporativa” vai transformar a
Constituição na Lei Fundamental e constituir os tribunais no seu “guardião” supremo.

4. Do controlo da constitucionalidade à justiça constitucional

Vimos como o controlo judicial da constitucionalidade das leis conseguiu afirmar-se no


direito constitucional americano sem aparente violação do princípio da separação dos poderes.
A “judicial review” pode ser exercida por qualquer tribunal, a decisão do tribunal afeta
exclusivamente as partes em litígio e o caso apenas chegará ao Supremo Tribunal Federal
através das instâncias comuns de recurso e quando o Tribunal entenda que é competente para o
julgar. Estamos ainda muito longe da “justiça constitucional” que, passado mais de um século,
iria singrar na Europa.

A teoria da separação dos poderes insere-se, originalmente, num quadro de


preocupações em que se pretende salvaguardar a liberdade dos cidadãos através da limitação
do poder político que resultaria, justamente, da sua distribuição e recíproca vigilância entre os
seus detentores.

A arquitetura do Estado de Direito reflete portanto a inspiração de um corpo ideológico


heterogéneo que, de Platão ou Cícero, se estende a Locke e Montesquieu. Combina interesses
e padrões culturais diversos e até opostos, dos governos mistos da Europa Medieval até ao
despotismo iluminado. Edifica-se em circunstâncias históricas específicas e movimenta
distintos protagonistas que definirão por fim volumes, ritmos e colorações variáveis.

Constata-se à partida que das "três formas naturais da atividade do Estado" - Legislativa,
Executiva e Judicial - apenas duas correspondem a efetivos poderes, deixando de fora os
tribunais. No capítulo VI do livro XI do "Espírito das Leis", é Charles de Montesquieu que o
reconhece, ainda que contraditoriamente: " O poder de julgar, tão terrível entre os homens, (...)

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torna-se, por assim dizer, invisível e nulo”. Teme-se a magistratura e não os magistrados.”

Com efeito, os Tribunais não participam, e pretende-se que não participem, na luta que
no pensamento liberal se exprime no binómio Estado- Sociedade e que era protagonizada, de
um lado, pelo monarca constitucional, chefe do executivo, expiando o pecado autocrata, e do
outro, pelo parlamento, oráculo racionalista de ilustrados burgueses livres e iguais. O decurso
do tempo e a variação da longitude, porém, vão precipitar situações particulares e novos
problemas.

Na Inglaterra, a inexistência de uma Constituição escrita, que persiste até hoje, torna
irrelevante o tema da fiscalização judicial da leis. A isto, acresce o principio da supremacia do
Parlamento, suprema autoridade em matéria constitucional, pelo menos, desde a Revolução
Gloriosa de 1688. A doutrina oficial recomendava que os juízes interpretassem os “atos do
Parlamento” – as Leis – por forma a evitar resultados absurdos mas se um preceito legal
claramente explicitasse a intenção de alcançar um resultado absurdo, era obrigação dos
tribunais aplicá-los mesmo assim. Apenas com a adesão à Comunidade Económica Europeia e
à Convenção Europeia dos Direitos Humanos viria tal principio a enfrentar desafios
significativos, em resultado da possibilidade de invocação nos tribunais ingleses de normas de
Direito interno contraditórias com o Direito europeu. A estrita sujeição dos tribunais ao
Parlamento não impediu porém que fosse a Inglaterra, em 1701, o primeiro Estado a proceder
à consagração legal do estatuto de independência dos juízes transferindo, é certo, a competência
para a sua nomeação, do Rei para o Parlamento, através do "Act of Settlement",

Na Europa Continental vai persistir longo tempo a rejeição de qualquer papel dos
tribunais no controlo da conformidade dos atos do legislativo com a Constituição. Todavia,
relativamente à fiscalização judicial da atividade da administração, em França, a aplicação dos
decretos reais era fiscalizada por um órgão jurisdicional que podia recusar-lhes eficácia,
negando-lhes o "registo", caso entendessem que eles violavam prerrogativas locais consagradas
pelo costume. Esta tradição seria revogada pela Revolução Francesa de 1789, juntamente com
as restantes instituições do "antigo regime". Com efeito, só por uma lei de 24 de Maio de 1872,
se irá admitir a necessidade de sujeitar a administração a um controlo jurisdicional culminando
com a atribuição ao "Conselho de Estado", da "justiça delegada". Reconheceu-se que a mera
afirmação do primado da Lei não era garantia suficiente da conformidade da ação do governo
com a "vontade geral", o que melhor se compreende tendo em conta a constante expansão das
funções da administração, configurando um conceito novo de "serviço público".

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Simultaneamente, intensifica-se a produção legislativa que vai conduzir não só à necessidade
de estabelecer uma hierarquia das Leis mas também à definição constitucional de um domínio
material exclusivo do legislador - a reserva de lei.

A conjugação de todas estas transformações vai criar porém as condições para contornar
os obstáculos políticos e ideológicos que na Europa Continental se levantavam à sindicância
judicial dos atos do próprio poder legislativo. Mas teríamos de esperar pelo séc. XX para que a
fiscalização judicial da constitucionalidade das leis fosse admitida como legítima, ora na versão
de um modelo concentrado num tribunal especializado ora instituindo um modelo misto que
articula o controlo concentrado com o controlo difuso - de que é exemplo o regime de
fiscalização judicial da constitucionalidade das leis adotado pela Constituição portuguesa de
1976.

O poder judicial é, com efeito, o supremo guardião da Lei Fundamental. Não por estar
acima do poder executivo ou da representação democrática que é titular do poder legislativo,
mas apenas porque só ele está em condições de satisfazer uma exigência de “neutralização
política” indispensável ao funcionamento do sistema e sua “válvula de segurança”. O poder
judicial é esse poder “de certa forma nulo, inexistente” de que falava Montesquieu no “Espírito
das Leis”. Mas a independência dos juízes - a garantia de um decisor último, isento e imparcial
- tornou-se o elemento mais perene e universal do “princípio da separação dos poderes”, já
reconhecido na Revolução francesa, a par com a garantia dos direitos humanos, como expressão
da própria substância da ideia de Constituição.

A Europa não encontrou resposta para este paradoxo até à primeira metade do século
XX. Só a partir do fim da segunda guerra mundial, o controlo judicial da constitucionalidade
das leis iria começar a implantar-se na Europa, seguindo o modelo recomendado nos anos vinte
por um notável filósofo austríaco, Hans Kelsen, que, perseguido pelos nazis, iria mais tarde
procurar refúgio nos Estados Unidos. No modelo de controlo judicial da constitucionalidade
que preconiza, e ao contrário do modelo americano, destaca-se a criação de um tribunal com a
função específica de exercer o controlo da constitucionalidade, a possibilidade da realização da
fiscalização da conformidade das leis com a Constituição e a competência para a declaração de
inconstitucionalidade de quaisquer normas, com força obrigatória geral. O Tribunal
Constitucional português (TC) é o vértice de um sistema de controlo judicial que combina
elementos destes dois sistemas históricos.

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Bibliografia:

José Joaquim Gomes Canotilho – Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina,


Coimbra, 2007;

Joseph Stiglitz - Globalization and its discontents, W.W. Norton, New York, 2002;

Jürgen Habermas - The Post-National Constellation, The MIT Press, Cambridge,


Massachusetts, 2001;

Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos – Teoria Geral do Controlo Jurídico do Poder Público,
Edições Cosmos, Lisboa, 1996;

Rogério Guilherme Ehrhardt Soares - Direito Público e Sociedade Técnica, Atlântida, Coimbra,
1969.

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5. O controlo da constitucionalidade à luz da Constituição da República Portuguesa
de 1976

Partindo das duas tradições que têm vindo a ser reconhecidas em matéria de controlo da
constitucionalidade, a tradição americana e a tradição austríaca, nós vamos encontrar,
fundamentalmente, dois modelos de justiça constitucional. Uma justiça constitucional difusa -
que corresponde ao sistema americano – em que a competência para fiscalizar a
constitucionalidade das leis é reconhecida a qualquer juiz chamado a fazer a aplicação de uma
determinada lei a um caso concreto submetido a apreciação judicial - e uma justiça
constitucional concentrada, em que a fiscalização judicial da constitucionalidade das leis fica
reservada a um único órgão.

Em quase todas as Constituições europeias do pós-guerra veio a ser criado um Tribunal


Constitucional, enquanto órgão integrado no conjunto dos Tribunais, ao qual deve competir o
controlo da Constituição. Hans Kelsen acabou por ter, assim, uma influência decisiva na
compreensão das relações entre as diferentes fontes de Direito e do papel particular da
Constituição.

A Constituição da República Portuguesa de 1976 assume um sistema misto, que nem é


difuso -pois existe um órgão específico vocacionado para o controlo da constitucionalidade, o
Tribunal Constitucional -, nem é concentrado, porque o TC não é o único órgão a que compete
a fiscalização da constitucionalidade.

A Constituição de 1911 foi a primeira Constituição portuguesa a prever expressamente


a competência dos tribunais para apreciar a constitucionalidade das normas jurídicas, segundo
o modelo norte-americano. Mais tarde, em 1976, o controlo da constitucionalidade é entregue
a três orgãos. Aos tribunais, na linha da Constituição de 1911; ao Conselho da Revolução, a
quem competia a fiscalização abstrata da constitucionalidade; e à Comissão Constitucional, a
quem competia dar parecer sobre os pedidos de fiscalização abstrata da constitucionalidade
(parecer não vinculativo) e a quem competia apreciar em sede de recurso as decisões dos
tribunais que desaplicassem normas com fundamento na sua inconstitucionalidade.
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Só com a revisão constitucional de 1982 é que o sistema de controlo da
constitucionalidade, tal como nós o conhecemos hoje se desenhou, tendo desaparecido o
Conselho da Revolução e tendo sido criado o Tribunal Constitucional, que teve na Comissão
Constitucional a sua antecessora, mas que agora assume poder de decisão em matéria jurídico-
constitucional.

Neste sistema, a fiscalização abstrata da constitucionalidade está concentrada no


Tribunal Constitucional, de acordo com o modelo austríaco – artigos 278 e 281 da CRP.

Na fiscalização concreta, todos os tribunais têm acesso directo à Constituição – artigo


204º -, mas das suas decisões há recurso para o Tribunal Constitucional, restrito à questão da
constitucionalidade - artigo 280º.

O sistema é misto – difuso na base e concentrado no topo – porque todos os juízes têm
o poder-dever de fiscalizar a constitucionalidade das normas jurídicas aplicáveis aos casos que
tiverem de julgar e ao Tribunal Constitucional cabe a última palavra em matéria de
constitucionalidade.

No que se refere à fiscalização concentrada podemos, antes do mais, distinguir entre


controlo da inconstitucionalidade por ação e por omissão. Na inconstitucionalidade por ação o
que está em causa é uma violação da Constituição por força da atuação do legislador; na
inconstitucionalidade por omissão, o Tribunal Constitucional vai aferir se, perante uma
exigência constitucional concreta e determinada de legislar, o legislador incumpriu essa
exigência ao não o fazer. Tal controlo encontra-se previsto no art. 283.º da CRP.

No que se refere à fiscalização abstrata por acção, podemos distinguir dois tipos de
controlo: a fiscalização abstrata preventiva e a fiscalização abstrata sucessiva. Quanto à
fiscalização abstrata preventiva, esta tem lugar antes da entrada em vigor do diploma A
fiscalização abstrata sucessiva tem lugar após a entrada em vigor do diploma e apenas pode ser
requerida pelas entidades elencadas no n.º 2 do art. 281.º É abstrata porque tem por base o
controlo de uma norma, independentemente da sua aplicação a um caso concreto.

Se o TC declarar a norma inconstitucional, esta deixa de vigorar no ordenamento


jurídico, ou seja, a declaração de inconstitucionalidade tem força obrigatória geral, nos termos
do art. 282.º CRP.

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II - Princípios constitucionais fundamentais

6. Os princípios constitucionais fundamentais

Existe um corpo de princípios fundamentais que é hoje comum à maioria dos Estados.
Muito embora as Constituições sejam diversas, reflectindo singularidades históricas e culturais
dos diversos povos, cada vez mais reconhecemos que há muitos aspectos comuns nas
Constituições do nosso tempo. Muitas vezes, esses traços comuns resultam de influências
assumidas de textos constitucionais estrangeiros ou de instrumentos internacionais,
Declarações ou Tratados que constituem marcos em matéria de direitos humanos, por exemplo,
nos trabalhos dos poderes constituintes. Outras vezes, caminhos diversos convergem em
soluções parecidas, que, muitas vezes, assumem outros nomes, mas que se identificam na sua
função e na sua estrutura.

O estudo dos princípios constitucionais fundamentais é uma das matérias em que esta
convergência é mais notória. Os princípios a que aqui faremos referência (e que são referidos
na Constituição da República Portuguesa) são também património comum do
constitucionalismo contemporâneo. Na Constituição Portuguesa, estes princípios têm assento,
prinicipalmente, nos primeiros onze artigos da Lei Fundamental e precedem a parte primeira
dedicada aos “Direitos e Deveres Fundamentais”. Curiosamente, não estão num
“compartimento” fechado, numa parte, num capítulo do texto constitucional, mas estão antes e
estão fora das partes e dos capítulos em que se analisa a nossa Lei Fundamental. Não são uma
parte, são uma síntese do todo.

Hoje em dia, o estudo da Constituição – de uma qualquer Constituição – é um exercício


de intertextualidade, pois as Constituições não existem, nem se compreendem isoladas – assim
como os Estados não subsistem isoladamente. Relacionam-se com outras Constituições e, muito
particularmente, com instrumentos internacionais, que completam e enriquecem o seu sentido,
como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, os grandes Tratados das Nações
sobre Direitos Humanos, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950, o Tratado da
União Europeia, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a Carta dos Direitos
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Fundamentais da União Europeia. É este um dos grandes desafios colocados aos
constitucionalistas no nosso tempo.

Analisando os dois primeiros artigos da Constituição Portuguesa, constatamos


particularmente ricos em fórmulas que nos remetem para grandes princípios do
constitucionalismo moderno e contemporâneo: a primazia da “dignidade da pessoa humana”,
da “vontade popular”, a caracterização da República Portuguesa como um “Estado de Direito
Democrático”, a valorização do “pluralismo de expressão”, a referência expressa à necessária
“separação e interdependência de poderes”, a incorporação do ideal da “realização da
democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
Sendo – em particular o artigo 2º - complexos na sua formulação, estes artigos contêm uma
síntese da nossa Lei Fundamental, sendo assinalável o facto de, muito embora sendo a nossa
Constituição extensa e contendo normas muito específicas regulando sectores da intervenção
dos poderes públicos na vida social, muitas vezes, o Tribunal Constitucional vem sancionar
actos do poder legislativo, por exemplo, por entender que são contraditórios com princípios
acolhidos nos artigos 1º e 2º da Constituição.

Não pode, pois, duvidar-se de que estes princípios constitucionais são verdadeiros
princípios jurídicos, são verdadeiras normas jurídicas na medida em que estabelecem o que
“deve-ser”.

7. O princípio do Estado de Direito

O artigo 2.º da CRP diz-nos que Portugal é um Estado de Direito. A fórmula “Estado de
Direito” é de inspiração germânica. Na cultura anglo-saxónica a fórmula pela qual se traduz a
primazia do Direito e a sua aplicação a todos, inclusivamente ao soberano, ao titular máximo
do poder público, pondo assim um travão ao risco de uso arbitrário do poder, designa-se por
“rule of law”.

Não basta a existência de uma constituição, independentemente do seu conteúdo, para


que possamos considerar a existência de um Estado de Direito. Um Estado de Direito para que

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possa verdadeiramente sê-lo implica que o Estado se organize de modo a garantir que não haja,
por parte dos entes públicos, abusos no exercício dos seus poderes.

Num Estado de Direito quem exerce autoridade está obrigado a exercer o poder nos
estritos limites das normas jurídicas existentes; e não de acordo com preferências pessoais.
Essas normas jurídicas têm de ser definidas previamente de modo claro, de maneira a permitir
que os cidadãos possam antever as consequências jurídicas das suas acções.

Vamos então dedicar-nos ao estudo dos princípios fundamentais e dos requisitos


mínimos que devem constar numa constituição de um Estado que se quer verdadeiramente de
Direito.

Neste domínio, a doutrina constitucional tem estabelecido uma distinção entre


elementos formais e elementos materiais, nos quais se pode analisar o princípio do Estado de
Direito. Dentro dos elementos formais podemos referir o princípio da separação (e
interdependência) de poderes, o princípio da constitucionalidade das leis, o princípio da
legalidade da administração e ainda a independência do poder judicial.

No que se refere ao princípio da separação de poderes, remetemos para o que já foi dito
a este propósito. Ainda assim, convém realçar que a nossa Constituição não se limita a
consagrar um princípio de separação, salientando também uma interdependência de poderes,
isto é, o controlo do poder não se faz apenas separando, dividindo poderes, mas também através
do estabelecimento de controlos mútuos entre os diversos órgãos de soberania.

8. O princípio da dignidade da pessoa humana

No que se refere aos elementos materiais, tem-se entendido que um Estado de Direito
tem necessariamente de respeitar e de se comprometer com a realização de determinados
valores, como sejam o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da igualdade, o
princípio da proporcionalidade e o princípio da protecção da confiança dos cidadãos.

Vamos começar por analisar o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no


artigo 1.º da CRP e que é considerado um princípio estruturante do ordenamento jurídico
português, uma vez que traduz uma ideia fundamental de toda a ordem jurídico-constitucional:
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a pessoa enquanto fundamento e fim do Estado.

O princípio da dignidade da pessoa humana é um princípio jurídico, ou seja, é verdadeira


norma jurídica, o que implica que o seu desrespeito se consubstancia numa violação da
Constituição. Tal significa que ainda que procuremos compreender o princípio tendo em conta
a sua evolução enquanto princípio filosófico ou religioso, o que nos interessa para a nossa
disciplina é determinar o sentido que deve ser de lhe atribuir enquanto princípio constitucional,
o que implica que não possa ser interpretado tendo em consideração uma mundividência
específica, devendo ser um princípio aberto.

Aos princípios constitucionais e, neste caso concreto, ao princípio da dignidade da


pessoa humana, não é atribuída apenas uma função. Também os princípios, enquanto normas
constitucionais, são dotados de uma multifuncionalidade. De facto, o Tribunal Constitucional
tem atribuído funções diferenciadas ao princípio da dignidade da pessoa humana. Na sua
jurisprudência o Tribunal tem entendido que este princípio é fundamento de outras regras ou
princípios, desempenhando uma função normogenética, ou seja, de princípio gerador de outras
normas. Por outro lado, tem também servido como critério de interpretação ou enquanto
ferramenta auxiliar na concretização/densificação do âmbito de protecção das normas de
direitos fundamentais. Finalmente, é ainda utilizado como fonte directamente aplicável.

O princípio da dignidade da pessoa humana exerce uma função normogenética na


medida em que é fundamento de regras ou princípios já expressamente consagrados no nosso
ordenamento jurídico, constituindo a sua razão de ser, e, para além disso, é dotado de uma
vertente criadora, sendo princípio gerador de novas normas. Esta função assume uma particular
importância no que se refere a matéria de direitos fundamentais pois tem-se entendido que a
dignidade é o fundamento destes direitos, não só dos direitos liberdades e garantias, mas
também dos direitos económicos sociais e culturais.

Também no domínio do direito criminal o princípio da dignidade da pessoa humana


assume uma grande importância. Este ramo do direito assenta na dignidade, uma vez que toda
a sua construção gira em torno de uma concepção do homem como ser digno e livre, que deve
poder ser responsabilizado pelas suas condutas, sendo susceptível de um juízo de
censurabilidade, isto é, de culpa. A culpa pressupõe a liberdade e a dignidade da pessoa humana,
na medida em que a pena se funda num juízo de reprovação do agente por não ter agido em
conformidade com o dever jurídico, quando poderia e deveria tê-lo feito.

16
Por outro lado, ainda dentro da função normogenética, este princípio tem servido para
atribuir a outros direitos, que não os expressamente consagrados na Constituição, o carácter de
direitos fundamentais. É o caso, por exemplo, do direito geral de personalidade, que antes de
ser consagrado de forma expressa na Constituição obteve reconhecimento na jurisprudência do
TC. É também neste princípio que se fundam os direitos de informação sobre o andamento dos
processos em que cada cidadão seja interessado e o direito ao conhecimento das resoluções
definitivas através da sua notificação ou publicação, enquanto direitos de natureza análoga a
direitos, liberdades e garantias. E é ainda o princípio da dignidade da pessoa humana que serve
de fundamento a um direito a um mínimo para uma existência condigna, enquanto direito
fundamental.

Sendo a dignidade da pessoa humana um princípio ético-jurídico, cabe-lhe também um


papel especialmente importante na interpretação e na integração de preceitos normativos,
particularmente no que se refere aos direitos fundamentais e na concretização do seu âmbito de
protecção. Assim sendo, ele servirá como princípio interpretativo destes direitos e como
instrumento metódico de resolução de conflitos.

Finalmente, o princípio da dignidade também tem sido invocado por si só para se


aferirem eventuais violações da Constituição.

Ora se o princípio da dignidade da pessoa humana é dotado desta multifuncionalidade,


é essencial saber que sentido lhe devemos atribuir, na medida em que a sua interpretação se
reflectirá, necessariamente, em todas essas funções. A utilização do princípio enquanto
instrumento metódico de resolução de conflitos entre direitos fundamentais ou na concretização
do âmbito de protecção destes direitos, por exemplo, poderá conduzir a resultados diferentes
consoante a interpretação que se faça do conceito de dignidade.

Este é um conceito que se concretiza historicamente, assumindo um valor


eminentemente cultural, o que não significa dizer que os contornos do princípio são intangíveis
ou imutáveis. O contexto cultural não é estático, estando em constante mutação, até porque,
cada vez mais, este conceito se desenvolve através de um intercâmbio com outras culturas.

Por outro lado, o conceito de dignidade não é um conceito descritivo, o que tem como
consequência que as controvérsias quanto à sua aplicação sejam necessariamente controvérsias
de valoração ética. O princípio da dignidade pode, consequentemente, ser passível de diferentes
interpretações e muitas vezes até de interpretações antagónicas. Em situações de conflito de

17
direitos, por exemplo, é frequente o princípio ser simultaneamente invocado enquanto
fundamento da liberdade e enquanto fundamento de restrições da liberdade.

Entendemos que a interpretação mais correcta do princípio deve ter em conta a


consagração constitucional de um direito ao desenvolvimento da personalidade previsto na
nossa Constituição desde 1997 e que se funda numa presunção a favor da liberdade individual.
A “imagem do homem” que perpassa a nossa constituição tem de ser compatível com diferentes
modos de vida e por isso tem de ser necessariamente pluralista.

Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem também utilizado, em algumas decisões,
a “fórmula do objecto” para densificar o conceito de dignidade. Esta “fórmula” tem a sua
origem na doutrina alemã, com Günter Dürig1, e inspira-se na filosofia moral de Kant. Dürig
considera que é possível delimitar um núcleo material mínimo de dignidade pessoal, que deve
constituir uma garantia irredutível num Estado de Direito e que não depende da concepção que
a própria pessoa tenha da sua dignidade. Esse núcleo abrange as situações em que o homem
concreto é reduzido à condição de objecto ou de um simples meio.

Temos dúvidas que a adopção desta “fórmula” seja a solução mais adequada para, sem mais,
interpretarmos o conceito de dignidade porque se corre o risco de, através dela, se estar a deixar
nas mãos das entidades judiciais a tarefa de determinar um núcleo material mínimo de dignidade
que se pode sobrepor à concepção que a pessoa faz da sua própria dignidade. Pensamos fazer
sentido a posição defendida por Jorge Reis Novais que, apesar de considerar que esta fórmula
é por vezes utilizada de forma indevida, entende que é útil para a concretização do princípio da
dignidade, ainda que o seu “conteúdo normativo” seja insuficiente. Assim, na sua perspectiva,
só haverá violação da dignidade quando a instrumentalização seja particularmente gravosa,
degradante ou humilhante, o que pode resultar da intencionalidade de quem instrumentaliza ou
do próprio contexto do caso2.

Alguns Acórdãos do Tribunal Constitucional Português relevantes:

1Günter Dürig - “Der Grundrechtsatz von der Menschenwürde”, in AöR, n.º 2, 1956, p. 127.
2
Jorge Reis Novais - A Dignidade da Pessoa Humana, Vol. II (Dignidade e Inconstitucionalidade),
Almedina, Coimbra, 2016, pp. 112 ss.
18
Acórdão n.º 16/84:

“[O princípio da dignidade] (,,,) é um princípio estruturante, uma vez que é constitutivo ou de
uma ideia básica de toda a ordem constitucional, a concepção que faz da pessoa fundamento e
fim do Estado e que vem na linha da tradição cultural do Ocidente.”

Acórdão n.º 509/02:

“Daqui se pode retirar que o princípio do respeito da dignidade humana, proclamado logo no
artigo 1º da Constituição e decorrente, igualmente, da ideia de Estado de direito democrático,
consignado no seu artigo 2º, e ainda aflorado no artigo 63º, nºs 1 e 3, da mesma CRP, que
garante a todos o direito à segurança social e comete ao sistema de segurança social a protecção
dos cidadãos em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de
capacidade para o trabalho, implica o reconhecimento do direito ou da garantia a um mínimo
de subsistência condigna.”

Ac. 144/2004:

“Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto a específica
negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo
algum, a Constituição. A liberdade de exercício de profissão ou de actividade económica tem
obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos directamente associados à
protecção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471º, nº 1 e 61º, nº 1, da
Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de trabalho ou de
empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos
[artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2, alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em
causa a violação do artigo 47º, nº 1, da Constituição.”

Acórdão n.º 101/09:


19
Voto de vencida - Conselheira Maria Lúcia Amaral:

“A determinação do que seja a «lesão da dignidade da pessoa humana» aparece assim como um
elemento integrante da correcta compreensão da ordem constitucional de regulação. Posto que
tal ordem foi dada tendo em conta a imposição de um vínculo específico ao legislador, a
delimitação do seu âmbito (…) não pode ser feita se se não atribuir um certo sentido substancial
– por mínimo que seja – à expressão salvaguarda da dignidade”

9. O princípio da igualdade

Intimamente ligado com o princípio da dignidade da pessoa humana está também o


princípio da igualdade. De facto, a dignidade do indivíduo só é verdadeiramente respeitada se
este for tratado em condições de igualdade relativamente aos restantes indivíduos. Há
referências a critérios de igualdade em várias disposições da Constituição, mas é no art. 13.º
que este princípio está consagrado em termos mais abrangentes, enquanto princípio geral em
matéria de direitos fundamentais. A inserção do princípio nesta parte da CRP significa que, em
matéria de direitos fundamentais, a garantia de igualdade entre os cidadãos é medular do próprio
sistema constitucional dos direitos fundamentais, que são estruturas de igualdade e não de
privilégios. Mas este princípio é também uma exigência que decorre já do princípio do Estado
de Direito, entendido em sentido material, isto é, como um Estado comprometido com a
realização da justiça. Tal significa que os poderes públicos, no exercício de todas as suas
funções (seja a executiva, a legislativa ou a judicial) estão vinculados ao respeito do princípio
da igualdade.

Desde as primeiras Constituições portuguesas que podemos encontrar referências a este


princípio, mas a interpretação que lhe é dada, em Estado social de Direito, já não se pode limitar
ao sentido que lhe era atribuído no período do constitucionalismo liberal. De facto, quando se
passa a reconhecer o princípio da igualdade enquanto princípio jurídico, aquilo que se pretendia
era essencialmente consagrar a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, ou seja, o ideário

20
liberal opõe-se precisamente à existência de privilégios, e, por isso, a consagração do princípio
da igualdade pretende evitar que tal possa continuar a acontecer. Assim, este princípio traduz-
se, num primeiro momento, na seguinte ideia: a lei é igual para todos e todos são iguais perante
a lei.

Hoje já não interpretamos o princípio da igualdade apenas com este sentido, ainda que
continue a ser muito importante esta sua dimensão, que aliás se reflecte na própria letra do n.º
1 do artigo 13.º da CRP. É que para garantir verdadeiramente a igualdade torna-se também
necessário, no próprio momento de feitura da lei, ter em consideração as diferenças reais que
existem entre as pessoas, diferenças essas que podem, inclusivamente, implicar que se tenha de
tratar diferentemente, para que se consiga atingir uma igualdade material e não apenas formal.
Uma vez que os pontos de partida são diferentes, tem-se usado a seguinte expressão para
explicar o modo como hoje deve ser interpretado o princípio da igualdade: devemos tratar o
que é essencialmente igual como igual e o que é essencialmente diferente como diferente.

Assim, o princípio da igualdade poderá inclusivamente justificar ou até exigir


tratamentos diferenciados quando haja fundamento objectivo para tal diferenciação. A questão
que se coloca é a de saber até onde se pode ir ao estabelecer regimes diferenciados, isto é, como
pode o julgador determinar se a diferenciação e a sua medida são legítimas ou se se
consubstanciam numa violação do princípio da igualdade. Para esta avaliação tem-se entendido
que é útil o elenco de factores de discriminação presente no n.º 2 do art. 13.º da CRP, uma vez
que estando em causa uma diferenciação com base em algum desses factores o escrutínio levado
a cabo pelo Tribunal Constitucional deve ser mais exigente. Estas são as consideradas
“categorias suspeitas”, ou seja, são os factores que historicamente têm sido motivadores de
tratamentos discriminatórios e, havendo uma diferenciação de tratamento que se baseie numa
destas categorias há autores que entendem que se deve considerar a existência de uma presunção
de inconstitucionalidade. Esta seria uma presunção afastável mediante prova em contrário,
desde que se comprove que o que justifica o tratamento desigual são outras razões que não se
confundem já com a “categoria suspeita”.

Quando não seja esse o caso, isto é, quando não esteja em causa uma diferenciação de
tratamento que assenta numa categoria suspeita, há autores, como é por exemplo o caso de
Maria Lúcia Amaral3, que entendem que a margem a atribuir ao legislador deve ser mais ampla,

3 Maria Lúcia Amaral - “ O princípio da igualdade na Constituição Portuguesa”, in Estudos em


Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 50
ss.
21
sendo apenas de avaliar se a discriminação em causa é arbitrária, isto é, destituída de um
qualquer fundamento objectivo razoável. Esta não é, no entanto, uma posição consensual na
doutrina, havendo quem defenda, como é o caso de Jorge Reis Novais4, que mesmo nestes casos
o controlo levado a cabo pelo Tribunal Constitucional deve ser mais exigente do que um mero
controlo do arbítrio, devendo o Tribunal aferir se o tratamento diferenciador respeita critérios
de proporcionalidade ou justa medida.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional não é completamente conclusiva quanto a


esta questão. Se houve Acórdãos em que o Tribunal se limitou a aferir da arbitrariedade da
medida legislativa em causa, como é o caso do Acórdão n.º 187/2001, relativo à reserva de
propriedade das farmácias em favor dos farmacêuticos, não parece já ter sido essa a posição
que assumiu por exemplo no Acórdão n.º 353/12, relativo ao corte dos subsídios de pensionistas
e funcionários públicos, no qual foi além de um mero controlo do arbítrio, tendo fundamentado
a sua decisão de inconstitucionalidade na violação do princípio da igualdade, na dimensão de
igualdade proporcional. Nas palavras do Tribunal: “a liberdade do legislador recorrer ao corte
das remunerações e pensões das pessoas que auferem por verbas públicas, na mira de alcançar
um equilíbrio orçamental, mesmo num quadro de uma grave crise económico-financeira, não
pode ser ilimitada. A diferença do grau de sacrifício para aqueles que são atingidos por esta
medida e para os que não o são não pode deixar de ter limites.”

Alguns Acórdãos do Tribunal Constitucional Português relevantes:

Acórdão n.º 186/90:

“O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade


legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas
que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento
materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem
qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade,
enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio

4Jorge Reis Novais - Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa, Coimbra


Editora, Coimbra, 2004, pp. 114 e 115.
22
(Willkürverbot).”

Acórdão n.º 187/2001:

“É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência deste
Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções – proíbe apenas diferenciações de
tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios
objectivos e relevantes. (…) Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da
distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento
jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por
outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que
possa ser considerado relevante.

Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual,
esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado
ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade, e,
consequentemente, a justificação para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes
tem de se poder considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente
relevante.

Acórdão n.º 353/12:

“Nestes termos, poderá concluir-se que é certamente admissível alguma diferenciação entre
quem recebe por verbas públicas e quem atua no setor privado da economia, não se podendo
considerar, no atual contexto económico e financeiro, injustificadamente discriminatória
qualquer medida de redução dos rendimentos dirigida apenas aos primeiros. Mas, obviamente,
a liberdade do legislador recorrer ao corte das remunerações e pensões das pessoas que auferem
por verbas públicas, na mira de alcançar um equilíbrio orçamental, mesmo num quadro de uma
grave crise económico-financeira, não pode ser ilimitada. A diferença do grau de sacrifício para
aqueles que são atingidos por esta medida e para os que não o são não pode deixar de ter limites.
23
Na verdade, a igualdade jurídica é sempre uma igualdade proporcional, pelo que a desigualdade
justificada pela diferença de situações não está imune a um juízo de proporcionalidade. A
dimensão da desigualdade do tratamento tem que ser proporcionada às razões que justificam
esse tratamento desigual, não podendo revelar-se excessiva.”

10. O princípio da proporcionalidade

Há uma ligação muito estreita entre o princípio da dignidade e o princípio da


proporcionalidade. A dignidade funda a autonomia individual, esta autonomia só poderá ser
limitada quando tal seja efectivamente necessário para tutelar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos e na estrita medida dessa necessidade.

A CRP refere expressamente este princípio em matéria de direitos fundamentais, tanto


no que se refere à restrição como à suspensão destes direitos. Também no âmbito da actividade
da Administração e da Polícia se faz uma referência expressa a critérios de justa
medida/proporção. No entanto, este é um princípio que se estende evidentemente a toda a
actuação do Estado, sendo uma decorrência de um princípio mais geral de segurança jurídica
que é uma exigência de um Estado de Direito.

Tem de haver um equilíbrio entre as vantagens obtidas por todos através de determinada
medida e as desvantagens que essa mesma medida cause a todos ou a alguns membros da
comunidade. O problema da “justa medida” – de contrariar o excesso e a escassez - é um
problema clássico da filosofia, que, no direito constitucional, assume, hoje, a forma de princípio
constitucional da proporcionalidade.

A actuação dos poderes públicos deve ser equilibrada, ponderada. Num Estado de
Direito, “não se utilizam canhões para atirar a pardais”.

Para aferir eventuais violações ao princípio da proporcionalidade, a doutrina


tradicionalmente tem vindo a estruturá-lo em três vertentes: a idoneidade, a necessidade e a
proporcionalidade em sentido restrito. Para se verificar se uma medida estatal supera o teste da
proibição do excesso importa conferir se esta é idónea, necessária e equilibrada.
24
Em primeiro lugar, torna-se necessário averiguar se a medida é idónea ou apta para
prosseguir o objectivo proposto: princípio da idoneidade, aptidão ou adequação. Pretende-se
aferir se um determinado meio é, em circunstâncias normais, apto, idóneo, para alcançar o
objectivo proposto. Para que haja violação do princípio da proporcionalidade nesta vertente, a
inaptidão deve ser previsível quando se leva a cabo a medida. A idoneidade pressupõe,
evidentemente, que tanto o fim que se visa prosseguir como o meio utilizado sejam legítimos.

A segunda condição diz respeito à necessidade da medida: trata-se de apreciar se não


existe outra menos gravosa capaz de assegurar o objectivo com o mesmo grau de eficácia:
princípio da necessidade ou indispensabilidade. O que se pretende agora avaliar é se não haverá
outro meio igualmente apto para a prossecução do fim mas que seja menos oneroso/gravoso
para os particulares. Assim, mesmo que uma medida estatal seja adequada, ela poderá revelar-
se violadora do princípio da proporcionalidade nesta segunda dimensão, por existirem meios
igualmente eficazes de prosseguir a finalidade pretendida e que são menos agressivos para a
esfera dos cidadãos.

Em terceiro lugar, no teste da proporcionalidade em sentido restrito deve ainda aferir-


se se a medida adoptada é equilibrada no sentido de as desvantagens dela advenientes não serem
superiores aos benefícios que se visam alcançar. Na proporcionalidade em sentido restrito
colocam-se em confronto custos e benefícios, no sentido de avaliar se é exigível que os cidadãos
sofram esses custos, tendo em conta a vantagem que resulta para o interesse público da medida
a prosseguir.

Para que não haja violação do princípio da proporcionalidade, a medida em causa tem
de ter passado pelo crivo destes três “testes”. A jurisprudência constitucional, na análise que
tem feito quanto ao cumprimento das exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade,
tem vindo a reconhecer uma margem de apreciação ao legislador, pelo que apenas em situações
de manifesto desrespeito de algum dos critérios referidos o Tribunal Constitucional tem
considerado estarmos perante uma violação do princípio.

Convém ainda referir a ligação estreita que se estabelece entre o princípio da


proporcionalidade e os princípios da igualdade e da protecção da confiança, uma vez que na
concretização destes últimos também se têm vindo a utilizar critérios de proporção.

25
Alguns Acórdãos do Tribunal Constitucional Português relevantes:

Acórdão n.º 187/2001 (em desenvolvimento do Acórdão n.º 634/93): “o princípio da


proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas
restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a
prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente
protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para
alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para
alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido
estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins
pretendidos).”

Acórdão n.º 632/2008:

“Pode suceder que uma medida legislativa que não seja, em si mesma, inadequada face à
prossecução de certo fim se venha a revelar, para tanto, como algo de desnecessário ou
inexigível. Como atrás se disse, a ‘passagem’ pelo primeiro teste da proporcionalidade não torna
inútil, ou supérfluo, o exame que o segundo teste dispensa. (…) A convocação surge agora
acompanhada da ideia de concordância prática: a medida de valor da necessidade – diz-se –
deve aferir-se em função do que é indispensável, ou exigível, para a salvaguarda de outros
interesses ou bens constitucionalmente protegidos. (…) Do que se trata, aqui, é de averiguar se
existiam, no caso, meios alternativos para a realização do mesmo fim; se entre esses meios
havia, ou não, diferenças quanto ao grau da sua onerosidade para os destinatários das medidas
restritivas; e se, finalmente, se tinha ou não escolhido, de entre eles, o meio mais benigno ou
menos oneroso.”

11. O princípio da proteção da confiança

26
A atuação dos poderes públicos num Estado de Direito, como dissemos, não pode ser
arbitrária. Os cidadãos têm o direito de fazerem as suas opções confiando em quadros
normativos claros, acessíveis e estáveis.

O legislador está obrigado a ser claro nos comandos que dirige aos cidadãos. Estes
carecem de ser interpretados, naturalmente, mas não pode o legislador refugiar-se
desnecessariamente em fórmulas ambíguas ou labirínticas, sob pena de os cidadãos não
saberem aquilo com que podem contar e ficando assim sem possibilidade de confiar e de
antecipar as consequências jurídicas das suas acções.

A Administração Pública também está vinculada a respeitar a confiança que os cidadãos


nela depositam. Assim não pode, por exemplo, sem mais, hoje conceder validamente um
benefício – atribuir uma licença, conceder um subsídio – e amanhã revogar. Os actos
constitutivos de direitos dos cidadãos não são livremente revogáveis.

Um dos aspectos em que é mais sensível a actuação deste princípio tem a ver com o
problema das normas retroativas, em que a confiança dos cidadãos é afectada por uma actuação
do legislador que projecta a sua eficácia no passado. Pode haver duas formas de retroatividade:
a retroatividade pura ou autêntica, em que a norma afeta situações jurídicas verificadas no
passado, ou a retroatividade impura ou inautêntica, também designada por retrospetividade, em
que a norma se aplica apenas para o futuro, mas no quadro de situações jurídicas duradouras,
constituídas no passado, mas que continuam no presente e continuarão no futuro. Pense-se
numa alteração da lei de arrendamento, aplicável aos contratos anteriores à entrada em vigor da
lei, ou numa alteração à lei do contrato de trabalho, alterando as condições existentes no
momento em que este foi celebrado e com as quais ambas as partes concordaram.

Na nossa Constituição, há três situações em que a Constituição expressamente exclui a


possibilidade de intervenções normativas de carácter retroativo: as leis penais (artigo 29º); as
leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (artigo 18º) e as leis fiscais (artigo 103º,
número 3, aditado na revisão constitucional de 1997).

Fora destas situações de retroatividade legal expressamente proibida, o legislador pode


excepcionalmente criar normas com eficácia retroativa que afetem desfavoravelmente os
cidadãos.

27
Para que tais normas possam ser consideradas ainda conformes às exigências adequadas
a um legislador de um Estado de Direito, é necessário que se cumpram determinados requisitos,
que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem desenvolvido.

Primeiro, é necessário averiguar se a confiança dos cidadãos é merecedora de tutela


jurídica e quão intensa deve ser essa tutela. Para isso, impõe-se verificar (1) se o Estado criou
expetativas de continuidade do quadro legal aplicável; (2) se as expetativas são legítimas, isto
é, fundadas em boas razões, e (3) se os cidadãos fizeram planos de vida com base nessas
expetativas. Se tais requisitos se cumprem, isso significa que existe uma confiança depositada
pelos cidadãos no Estado, a que este não pode ser cego na definição de normas.

Segundo, é necessário que a mudança normativa seja exigida por um interesse público
que, pela sua importância e valor, sobreleve o valor das expectativas privadas. Se tal não
acontecer, se da ponderação entre as expetativas juridicamente tuteladas e o interesse público
se concluir que este não sobreleva a importância daquelas, então há violação da proteção de
confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito.

Alguns Acórdãos relevantes:

Acórdão 287/90:

“A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes
critérios:

a) afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma


mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes
não possam contar; e ainda

b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses


constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui,
ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos,
liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.ª revisão).”

28
“Embora não haja retroactividade que afecte um direito, estamos perante um daqueles casos em
que a lei se aplica para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes não
terminadas. Como esta delimitação tem o Tribunal Constitucional Federal alemão falado de
«retroactividade inautêntica, retrospectiva»(…)”

Acórdão 396/11:

“As reduções agora introduzidas, na medida em que contrariam a normalidade anteriormente


estabelecida pela actuação dos poderes públicos, nesta matéria, frustram expectativas fundadas.
E trata-se de reduções significativas, capazes de gerarem ou acentuarem dificuldades de
manutenção de práticas vivenciais e de satisfação de compromissos assumidos pelos cidadãos.
(...) Não se pode ignorar, todavia, que atravessamos reconhecidamente uma conjuntura de
absoluta excepcionalidade, do ponto de vista da gestão financeira dos recursos públicos.(...) não
pode razoavelmente duvidar-se é de que as medidas de redução remuneratória visam a
salvaguarda de um interesse público que deve ser tido por prevalecente – e esta constitui a razão
decisiva para rejeitar a alegação de que estamos perante uma desprotecção da confiança
constitucionalmente desconforme.”

12. O princípio democrático

Há evidentemente uma relação muito estreita entre Estado de Direito e democracia, uma
vez que um Estado de Direito em sentido material exige também o respeito pelo princípio
democrático. O que legitima, em Estado de Direito, o exercício do poder é precisamente o facto
de este resultar de uma escolha que é feita pelo povo, titular do poder soberano. Assim, o
princípio democrático exige que todos, em condições de plena igualdade (ainda que se possa
exigir uma idade mínima para o exercício de direitos políticos) tenham uma palavra a dizer

29
sobre os destinos colectivos. Diz o n.º 1 do artigo 3.º da CRP que “a soberania, una e indivisível,
reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição”.

Por outro lado, os direitos fundamentais, particularmente os direitos, liberdades e


garantias de natureza política só se realizam cabalmente em democracia.

Os regimes democráticos funcionam segundo uma regra da maioria, mas as decisões


maioritárias não são completamente livres, na medida em que estão limitadas precisamente pelo
respeito do princípio do Estado de Direito e dos direitos fundamentais. Tal significa que as
maiorias não podem tomar uma decisão que contrarie, por exemplo, o princípio da igualdade
ou o princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio do Estado de Direito e os direitos
fundamentais funcionam como garantes das minorias.

Este princípio democrático manifesta-se na nossa Constituição através da consagração


do direito de sufrágio/voto. Diz o n.º 1 do art. 10.º da CRP que “o povo exerce o poder político
através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais
formas previstas na Constituição.”

Desta disposição retiramos que o nosso sistema é essencialmente de democracia


representativa, o que significa que, através do voto, escolhemos as pessoas que irão exercer a
soberania em nosso nome. Apesar disso, a nossa Constituição instituiu alguns mecanismos de
democracia semi-directa, como é o caso do referendo, previsto no artigo 115.º da CRP, a própria
iniciativa dos cidadãos para a convocação de referendos e ainda a iniciativa legislativa popular,
nos termos do art. 167.º da CRP. Pretende-se, com este tipo de mecanismos, criar uma maior
proximidade entre os cidadãos e os processos de tomada de decisões que os afectam.

A Constituição atribui também um papel central aos partidos políticos, enquanto


instrumentos de expressão da vontade popular. Tal está expressamente consagrado no n.º 2 do
art. 10.º. É, por exemplo, aos partidos que cabe apresentar candidaturas para as eleições
parlamentares. Mas essa manifestação da vontade popular pode também ocorrer por outros
meios, como seja, por exemplo, através do exercício da própria liberdade de expressão, da
liberdade de associação ou dos direitos de manifestação e reunião.

30
13. O princípio da socialidade

Para além da democracia política, o artigo 2.º da CRP faz ainda referência à realização
de uma democracia económica, social e cultural como objectivo fundamental a prosseguir pelos
poderes públicos. A concretização de uma democracia económica, social e cultural implica que
o Estado deva procurar atenuar as diferenças reais entre as pessoas, em situações de maior
carência, não pode deixar desprotegidos os seus cidadãos e deve promover a igualdade de
oportunidades entre todos.

A República Portuguesa é, portanto, um Estado de Direito democrático e social que


deve promover a justiça social. Há uma estreita ligação desta dimensão social com o princípio
da dignidade da pessoa humana que, como tivemos já oportunidade de ver, é o fundamento
constitucional de todos os direitos fundamentais, sejam direitos, liberdades e garantias, sejam
direitos económicos, sociais e culturais. Por outro lado, é do princípio da dignidade que se tem
feito derivar o direito a um mínimo para uma existência condigna, direito este juridicamente
exigível.

O princípio da socialidade está também intimamente relacionado com o princípio da


igualdade, uma vez que a própria interpretação deste último em Estado social implica que não
possam deixar de ser tidas em conta as diferenças reais entre as pessoas, sendo inclusivamente
exigível que se trate diferentemente para atenuar essas desigualdades.

Assim, o facto de sermos um Estado social de Direito significa que não está na livre
disponibilidade do Estado a garantia dos direitos económicos, sociais e culturais dos seus
cidadãos.

Bibliografia:

Benedita Mac Crorie - “O recurso ao princípio da dignidade da pessoa humana na


jurisprudência do Tribunal Constitucional”, in Estudos em Comemoração do Décimo
Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Almedina, Coimbra, 2004;

31
Jorge Miranda – Rui Medeiros - Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 2010;

Jorge Reis Novais - Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa,


Coimbra Editora, Coimbra, 2004;

- A dignidade da pessoa humana, Vol.. I (Dignidade e Direitos Fundamentais),


Almedina, Coimbra, 2015;

- A dignidade da pessoa humana, Vol. II (Dignidade e Inconstitucionalidade),


Almedina, Coimbra, 2016;

José Joaquim Gomes Canotilho - Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª Edição,


Almedina, Coimbra, 2003;

José Joaquim Gomes Canotilho – Vital Moreira - Constituição da República Portuguesa


Anotada, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, 2007;

Maria da Glória Garcia - Estudos sobre o princípio da igualdade, Almedina, Coimbra, 2005;

Maria Lúcia Amaral - “ O princípio da igualdade na Constituição Portuguesa”, in Estudos em


Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Coimbra Editora, Coimbra, 2004;

- A forma da República, Coimbra Editora, Coimbra, 2005;

- “O princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência constitucional”, in


Jurisprudência Constitucional, n.º 13, 2007.

32
III - Direitos fundamentais

14. A distinção entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos sociais e


culturais

A ideia de que aos seres humanos deve ser reconhecido um estatuto especial, um
conjunto de direitos e de deveres adequados à sua especial natureza foi sendo desenvolvida por
diversas correntes filosóficas ao longo da História das Ideias.

Desde a Antiguidade Clássica que encontramos autores que reflectiram sobre valores
como a dignidade e a igualdade, havendo na filosofia clássica importantes afloramentos das
ideias de igualdade e dignidade. O Cristianismo e a afirmação de que todos os seres humanos
são filhos de Deus, de que cada ser humano é único e de que têm igual dignidade marcou
decisivamente a nossa cultura e o modo como nela se manifestam os direitos fundamentais.

Seria, no entanto, necessário aguardar pelo final do século XVIII para que estas ideias
fossem positivadas. É com o Estado constitucional de final do século XVIII, em particular, com
as Revolução Americana e Francesa, que se dão as primeiras consagrações globais, universais
e com valor constitucional dos direitos fundamentais. Aí começa um movimento de positivação
dos direitos fundamentais, que fora já iniciado na Inglaterra há alguns séculos atrás, mas que
agora se expande universalmente. Por todo o lado surgem “Declarações de Direitos”, dirigidas
ao próprio Estado, que as edita. São direitos que o Direito não cria, mas reconhece, declarando-
os.

Os direitos fundamentais foram objecto de um processo longo de consolidação –


primeiro no campo das ideias, da filosofia; depois, nas Constituição dos Estados; mais
recentemente, no plano internacional.

33
Normalmente, quando os autores se referem ao problema do reconhecimento
progressivo de um acervo de direitos fundamentais, costumam usar uma figura, uma metáfora
– que é a metáfora das gerações.

Tal como a história humana se faz pela sucessão de gerações, também a história dos
direitos se poderia contar usando a mesma metáfora.

O uso desta metáfora remonta aos anos 70 do século XX, sendo a sua autoria atribuída
a Karel Vasak, que analisou o processo europeu de reconhecimento progressivo aos direitos
fundamentais, associando à metáfora das gerações a triologia da Revolução Francesa. E, assim,
defendeu que os direitos da primeira geração – direitos de defesa do indivíduo perante o Estado
– se associavam ao ideal de Liberdade; os direitos de segunda geração – direitos sociais –
estavam ao serviço do ideal da Igualdade; os direitos de terceira geração – direitos de
solidariedade entre povos e gerações – estavam ao serviço da Fraternidade.

Nos direitos de primeira geração incluir-se-iam a liberdade física, as liberdades


intelectuais e espirituais – de pensamento, de consciência, de religião, de expressão, de criação
artística.

Nos direitos de segunda geração, encontraríamos o direito à saúde, o direito à educação.

Finalmente, os direitos de terceira geração abrangem o direito dos povos à


autodeterminação, o direito ao desenvolvimento e o direito ao ambiente

Esta metáfora das gerações foi, depois, usada por muitos autores, cada um fazendo a sua
própria leitura das principais etapas no processo de desenvolvimento do conjunto dos direitos
fundamentais.

Seguindo, por exemplo, a proposta de Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais, p.


51-70), descobrimos um primeiro grupo de direitos, que coincide com a que expusemos
anteriormente, composta pelos direitos à liberdade, direito à propriedade, reconhecidos como
direitos de defesa do indivíduo perante o Estado, direitos que exigem do Estado,
fundamentalmente, uma postura de abstenção perante as pessoas. São direitos que cumprem
uma função de defesa do indivíduo perante os poderes públicos, aos quais corresponde um
status negativus, um dever de abstenção, de não ingerência, de não restrição, de não violação.

34
Nas palavras do autor: “São liberdades sem mais, puras autonomias sem
condicionamentos de fim ou de função, responsabilidades privadas num espaço
autodeterminado. Liberdades individuais que, no entanto, não são caoticamente ou
anarquicamente entendidas, pois actuam num contexto social e político organizado, onde
procuram a segurança colectiva em contrapartida da qual aceitam (aceitaram) limitar-
se.”(Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais, p. 51)

Num segundo grupo de direitos, encontraríamos os direitos de participação política –


direitos que reconhecem na pessoa um ser capaz de participar no processo de autodeterminação
comunitária – votando, manifestando-se, reunindo-se, associando-se, sindicalizando-se.

Num terceiro momento, os direitos sociais – direito à saúde, direito à educação, direito
à habitação, direito à segurança social – direitos que exigem do Estado um conjunto de
prestações de serviços ou pecuniárias para satisfazer as necessidades individuais. São direitos
estruturalmente diferentes dos direitos de defesa; são direitos a prestações. Correspondem a
uma visão do Estado não como inimigo das liberdades, mas como um ente que necessita de
intervir para garantir os direitos fundamentais.

Desde o último quartel do século XX têm surgido diversas correntes que reclamam o
reconhecimento de novos direitos: por exemplo, os direitos relacionados com a protecção do
ambiente – direitos que se relacionam com a protecção de interesses colectivos e
transgeracionais; direitos contra a manipulação genética, à identidade genética, à
autodeterminação bioética, o direito a morrer com dignidade, de que agora tanto se fala; os
direitos que se prendem com a utilização da informática e a defesa de liberdades pessoais face
a novas ameaças; os direitos dos povos à paz, à boa governação; e até os direitos dos animais.

A Constituição Portuguesa dispõe de uma catálogo de direitos fundamentais extenso,


que as diversas revisões constitucionais têm enriquecido progressivamente e onde estão
presentes direitos das diversas “gerações” e mesmo vários dos chamados “direitos novos”,
como o direito ao ambiente (artigo 66º), o direito à fruição cultural (artigo 78º).

A CRP consagra no seu art. 1.º o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal significa
que a concepção antropológica consagrada na nossa Constituição é a do humanismo ocidental,
ou seja, é uma concepção liberal moderna. Neste contexto deve entender-se o princípio da
dignidade da pessoa humana como o princípio de valor que confere unidade de sentido e
fundamento ao conjunto de preceitos relativos aos direitos fundamentais.

35
As normas de direitos fundamentais previstas na CRP dividem-se em normas relativas
a direitos, liberdades e garantias (DLG) (artigos 24.º a 57.º da CRP) e normas relativas a direitos
económicos, sociais e culturais (DESC) (artigos 58.º a 79.º da CRP). Dentro das normas
relativas a direitos, liberdades e garantias podemos distinguir entre:

- direitos, liberdades e garantias pessoais (artigo 24.º a 47.º);

- direitos, liberdades e garantias de participação política (artigo 48.º a 52.º);

- e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (artigo 53.º a 57.º).

O catálogo de direitos fundamentais constante da CRP tem também explícita a nota


característica de abertura que acima referimos. Esta encontra-se no artigo 16º da Constituição.
De acordo com esta “cláusula aberta”, os direitos fundamentais reconhecidos na ordem jurídica
portuguesa não são apenas aqueles que constam do catálogo contido na Parte I da Constituição,
mas são também todos os direitos consagrados em normas de direito internacional ou mesmo
na lei a que deva reconhecer dignidade de direitos fundamentais.

Assim, além dos direitos fundamentais “em sentido formal” ou tipificados no catálogo,
temos ainda direitos fundamentais dispersos na Constituição, ou seja, direitos fundamentais
constitucionais, mas que se encontram previstos fora da parte I, e temos direitos fundamentais
extra-constitucionais, de fonte internacional ou legal.

Na identificação dos direitos fundamentais extra-catálogo, podemos socorrer-nos de um


simples critério de analogia com os direitos do catálogo ou podemos socorrer-nos de um critério
material de direitos fundamentais (ver, neste sentido, critérios propostos por Vieira de Andrade,
Os Direitos Fundamentais, p. 79 e seguintes).

A existência de uma dicotomia entre direitos, liberdades e garantias e direitos


económicos, sociais e culturais está, antes do mais, relacionada com a própria evolução histórica
dos direitos fundamentais e é ainda oriunda dos textos de Direito Internacional. Para além disso,
esta distinção parte do entendimento de que os direitos, liberdades e garantias se
consubstanciam em direitos de defesa, de não intervenção, dos particulares face ao Estado,
enquanto os direitos económicos, sociais e culturais são direitos a prestações estaduais
positivas.

36
Convém realçar que, na nossa ordem jurídica, esta não é uma distinção meramente
teórica, uma vez que tem consequências práticas significativas, uma vez que implica o
reconhecimento de um regime mais protector, estabelecido na CRP para os direitos, liberdades
e garantias.

As normas de direitos fundamentais previstas na CRP dividem-se em normas relativas


a direitos, liberdades e garantias (DLG) (artigos 24.º a 57.º da CRP) e normas relativas a direitos
económicos, sociais e culturais (DESC) (artigos 58.º a 79.º da CRP). Esta distinção marca de
modo acentuado o regime aplicável aos direitos fundamentais. Como já referimos, não se trata
de uma mera questão de arrumação dos direitos em categorias, uma vez que esta distinção tem
consequências práticas significativas: por um lado, implica o reconhecimento de um regime
mais protector, estabelecido na CRP para os direitos, liberdades e garantias; por outro lado,
também releva do ponto de vista da protecção judicial dos direitos, havendo meios específicos
de protecção de direitos, liberdades e garantias, que excluem os direitos económicos, sociais e
culturais.

15. Regime geral dos direitos fundamentais

A nossa Constituição estabelece, antes do mais, um regime geral dos direitos


fundamentais, ou seja, um regime que se aplica quer a direitos, liberdades e garantias, quer a
direitos económicos e culturais e que está previsto no Título I da Parte I da CRP.

Vamos então fazer uma breve análise desse regime.

- Artigo 12º

Consagra o princípio da universalidade, segundo o qual todos os cidadãos gozam dos


direitos consignados na Constituição e estão sujeitos aos mesmos deveres. Tal não invalida que
certos direitos pressuponham, pela sua própria natureza, uma certa idade, como é, por exemplo,
37
o caso da generalidade dos direitos políticos, nomeadamente dos previstos no art. 49.º (direito
de voto) e no art. 122.º (elegibilidade para Presidente da República), ou ainda que haja direitos
reservados, pela sua natureza, a certas categorias de pessoas, como é o caso dos arts. 51.º ss
(direitos dos trabalhadores), ou do art. 71.º (cidadãos portadores de deficiência).

Quanto às pessoas colectivas, segundo o disposto no artigo 12º, n.º 2, estas gozam dos
direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza. Tal significa que as pessoas
colectivas gozam de direitos fundamentais que não pressuponham características intrínsecas ou
naturais do homem. (No Acórdão n.º 198/85, o Tribunal Constitucional reconheceu, por
exemplo, que o sigilo da correspondência constitui um daqueles direitos compatíveis com a
natureza das pessoas colectivas, o que não significa que tal direito se aplique a estas nos mesmos
termos e com a mesma amplitude que se aplica às pessoas físicas.)

- Artigo 13.º

Consagra o princípio da igualdade, que, segundo alguns autores é uma exigência que
decorre já do princípio do Estado de Direito, entendido em sentido material, isto é, como um
Estado comprometido com a realização da justiça. A inserção do princípio nesta parte da CRP
significa que, em matéria de direitos fundamentais, a garantia de igualdade entre os cidadãos é
medular do próprio sistema constitucional dos direitos fundamentais, que são estruturas de
igualdade e não de privilégios.

Tal não implica, necessariamente, uma igualdade absoluta, visto que o princípio da
igualdade visa apenas proibir as discriminações arbitrárias, sem fundamento razoável. O
princípio da igualdade poderá inclusivamente justificar tratamentos diferenciados das pessoas
quando haja fundamento objectivo para tal diferenciação.

- Artigo 14.º

38
Refere-se aos direitos fundamentais de cidadãos portugueses residentes no estrangeiro,
estabelecendo que estes gozam dos direitos que não sejam incompatíveis com a ausência do
país. Como exemplo de um direito que não pode ser gozado por cidadãos portugueses que não
residam em Portugal podemos referir a capacidade eleitoral passiva, na maioria dos actos
eleitorais. Já a capacidade eleitoral activa poderá ser exercida também por aqueles que residam
no estrangeiro, nos termos previstos na CRP e na lei.

- Artigo 15.º

Quanto aos estrangeiros e apátridas, nos termos do artigo 15º da Constituição, estes
gozam também dos direitos consignados na Constituição para os cidadãos portugueses. Este
artigo estabelece, então, um princípio da equiparação.

Os estrangeiros e apátridas estão apenas excluídos do gozo do leque de direitos que


pertencem exclusivamente a cidadãos portugueses e que estão previstos no n.º 2 deste artigo –
direitos políticos, exercício de funções públicas que não sejam de carácter meramente técnico
e direitos fundamentais que a Constituição ou a lei reservam para os nacionais. Esta disposição
parece dar “carta branca” ao legislador ordinário para alargar as excepções, reservando aos
cidadãos portugueses quaisquer direitos que entenda. No entanto, tem-se entendido que as
excepções a estabelecer por lei ordinária àquela regra não são livres, devendo as leis que
eventualmente reservem direitos deste tipo para cidadãos portugueses ser consideradas
verdadeiras leis restritivas e sujeitas às condições de legitimidade estabelecidas no artigo 18.º.

Os restantes números (3, 4 e 5) do art. 15.º consagram excepções às excepções. Assim,


sob condição de reciprocidade, podem ser reconhecidos alguns direitos políticos limitados a
estrangeiros com residência em Portugal (números 4 e 5); um estatuto especialíssimo de acesso
a elevados cargos do Estado para cidadãos de Estados de língua portuguesa (estatuto de que,
neste momento, só os cidadãos brasileiros podem beneficiar – número 3).

16. O regime específico dos direitos, liberdades e garantias

39
Vimos que a CRP estabelece uma dicotomia entre direitos, liberdades e garantias e direitos
económicos sociais e culturais. Vimos também que essa distinção não é meramente teórica,
tendo consequências no regime aplicável aos diferentes direitos.

Independentemente da bondade desta diferenciação (que já vimos que é contestada),


vamos ver qual o regime estabelecido pela Constituição para os direitos, liberdades e garantias
e que visa proteger, com especial intensidade, estes direitos. Dentro do regime específico dos
direitos, liberdades e garantias, podemos distinguir entre: um regime material, um regime
orgânico e um regime de revisão constitucional.

O regime material específico está essencialmente previsto no artigo 18.º da Constituição


(embora haja também outras disposições constitucionais que atribuem um regime mais
protector a estes direitos, como é o caso dos arts. 19º, 20º, nº 5, 21º, 22º e 272º, nº3).

O n.º 1 do artigo 18.º estabelece que os direitos, liberdades e garantias são directamente
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. Assim sendo, este regime material
específico consubstancia-se, em primeiro lugar, na aplicabilidade imediata, o que significa que
os preceitos constitucionais vinculam todos os órgãos ou agentes do poder sem necessidade de
mediação legislativa.

No entanto, a aplicabilidade directa das normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias


não implica sempre a transformação automática destes em direitos concretos e definitivos.

É necessário distinguir consoante as normas de direitos, liberdades e garantias sejam ou


não exequíveis por si mesmas. Se a norma constitucional for exequível por si mesma, ela pode
ser imediatamente invocada, ainda que haja falta ou insuficiência de lei. A regulamentação
legislativa não é essencial, sendo apenas útil pela certeza e segurança que cria quanto às
condições de exercício dos direitos ou quanto à delimitação frente a outros direitos. Pelo
contrário, se a norma não for exequível por si mesma (ex: art. 26º, n.º 2), o sentido a atribuir ao
art. 18.º é o de que o legislador está vinculado a editar as medidas legislativas necessárias, não
tendo o poder de apreciação quanto á oportunidade de legislar. A falta dessas medidas implica
uma inconstitucionalidade por omissão, sujeita ao regime de controlo do artigo 283º.

Por outro lado, o art. 18.º estabelece a vinculação das entidades públicas e privadas aos
direitos, liberdades e garantias. Segundo esta disposição os direitos, liberdades e garantias
obrigam tanto entidades públicas como entidades privadas.

40
Quanto às entidades públicas, retiramos deste preceito que o Estado está, que todos os
poderes públicos estão vinculados aos direitos, liberdades e garantias. Abrangem-se aqui
obviamente os órgãos legislativos, os órgãos jurisdicionais e toda Administração Pública,
estendendo-se este imperativo de respeito pelos direitos, liberdades e garantias mesmo a
poderes que não sejam estaduais, mas exercidos através de pessoas colectivas públicas, com
autarquias, universidades, ou outras.

Mais controvertida é a questão de saber em que termos é que os privados, nas relações
que estabelecem entre si, estão vinculados aos direitos, liberdades e garantias. Esta é uma
questão controversa em vários Estados. Por exemplo, nos Estados Unidos da América, está
agora pendente na Supreme Court a apreciação de um caso de um casal gay que foi a uma
pastelaria do Estado do Colorado encomendar um bolo para o seu casamento, em julho de 2012,
que iria realizar-se no Estado de Massachussets, porque, à época, o casamento entre pessoas do
mesmo sexo não era permitido no Colorado (veio a sê-lo em 2015). O dono da pastelaria
Masterpiece recusou. Disse-lhes que lhes podia vender bolos de aniversário, bolachas,
brownies, tudo menos bolos de casamento, porque o casamento entre pessoas do
mesmo sexo colidia com as suas convicções religiosas. Os dois potenciais clientes
iniciaram uma batalha judicial e aguarda-se para 2018 uma decisão sobre este caso
de conflito entre a liberdade do dono da pastelaria e os direitos dos clientes.

Apesar de a nossa Constituição referir expressamente a vinculação das entidades


privadas no n.º 1 do artigo 18.º, tem-se entendido que esta norma não é inteiramente conclusiva,
quanto ao sentido e ao alcance desta vinculação. Debatem-se a este propósito várias teorias,
umas que advogam a aplicabilidade imediata destes preceitos constitucionais nas relações entre
sujeitos privados (posições monistas) e aquelas que só indirectamente admitem a relevância dos
direitos fundamentais nesta área (posições dualistas).

17. As restrições de direitos, liberdades e garantias:

Vamos agora tratar o problema das restrições legais aos direitos, liberdades e garantias.
Quando falamos de restrições estamos a referir-nos a uma acção que afecta desvantajosamente

41
o conteúdo de um direito fundamental, ou seja, a restrição implica um enfraquecimento do
âmbito de protecção do direito.

Por que é que o legislador precisa de restringir direitos fundamentais? Os direitos


fundamentais não são absolutos nem ilimitados. A própria necessidade de co-existência de
diversos direitos fundamentais titulados por múltiplos sujeitos cria a necessidade de
intervenções legislativas que, nalguns casos, inevitavelmente, vão limitar o “espaço” que se
poderia considerar protegido por uma liberdade ou um direito fundamental.

Essa actuação legislativa é, naturalmente, problemática, porque permite ao legislador


interferir no espaço de liberdade de cada um, regulando-o, daí que a Constituição crie um
conjunto de requisitos, de “cautelas” que devem ser verificadas sempre que estejamos perante
leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.

Antes, porém, de estudarmos quais são esses requisitos, convém entendermos melhor o
que são leis restritivas, começando por enfrentar o problema da determinação do âmbito de
protecção dos direitos.

Só estamos perante uma lei restritiva quando esta comprime o âmbito de protecção do
direito, tal como ele resulta da norma (ou das normas) que o consagra(m).

A determinação do âmbito de protecção é, pois, uma tarefa prévia essencial para que se
possa concluir quanto à verificação ou não de uma restrição. Ora, nesta matéria, há duas formas
de circunscrever o âmbito de protecção: uma é a teoria do âmbito de protecção alargado e outra
é a teoria de âmbito de protecção estreito.

Segundo as teorias do âmbito de protecção alargado, este deve ser definido, abrangendo
o mais amplo e completo conjunto de manifestações possíveis do direito fundamental. Não cabe
ao intérprete excluir prima facie do âmbito de protecção do direito situações que estão dentro
das margens semânticas da norma, cujos pressupostos devem ser amplamente interpretados
(posição defendida por Robert Alexy).

Segundo as teorias do âmbito de protecção estreito, deve tentar afastar-se ab initio do


âmbito de protecção do direito as manifestações meramente aparentes do direito. Nem tudo o
que cabe nas “margens semânticas” da norma que consagra o direito fundamental constitui uma
conduta protegida enquanto manifestação desse direito. Ao intérprete cabe a tarefa de

42
identificar os limites dessa garantia, atendendo ao sentido e ao alcance da norma constitucional
e às condutas que se devem considerar efectivamente como alvo de protecção.

Também na doutrina portuguesa estas posições se confrontam. Como é fácil de


compreender, as teorias do âmbito de protecção alargada potenciam os conflitos entre direitos
fundamentais enquanto as teorias estreitas os limitam.

Jorge Reis Novais defende que na delimitação do âmbito de protecção do direito deve
excluir-se apenas aquilo que, com toda a evidência, não pode ser considerado pela consciência
jurídica própria de Estado de Direito como exercício jusfundamentalmente protegido –
comportamentos que apresentem intolerável danosidade social ou sejam radicalmente
incompatíveis com os requisitos mínimos da vida em comunidade e que, por isso, suscitam
reprovação social e jurídica consensuais.

18. Requisitos das restrições legais aos direitos, liberdades e garantias:

Quais são as condições que a Constituição estabelece para a restrição de DLG?

A nossa Constituição prevê, nos números 2 e 3 do artigo 18º seis requisitos substanciais
para a restrição legal de direitos, liberdades e garantias: previsão constitucional expressa;
restrição justificada pela necessidade de protecção de bens constitucionalmente relevantes;
respeito pelo princípio da proporcionalidade; necessidade de as restrições terem carácter geral
e abstracto; carácter prospectivo (eficácia projectada no futuro) das restrições; respeito pelo
conteúdo essencial dos direitos. Grande parte da doutrina tem uma posição crítica quanto ao
primeiro e ao último requisitos constitucionais, tendendo a desvalorizá-los ou a contorná-los.

- Previsão constitucional expressa:

O art. 18.º, n.º 2 estabelece uma exigência de previsão constitucional expressa da


respectiva restrição. Ora esta exigência constitucional coloca uma série de problemas, uma vez
que há muitos preceitos constitucionais que não prevêem expressamente restrições legislativas.
43
(ex: direito à vida, à integridade pessoal e outros direitos pessoais - arts. 24.º a 26.º, liberdade
de aprender e de ensinar - art. 43.º, direitos de deslocação e emigração - art. 44.º, direito de
reunião e manifestação - art. 45.º, etc.)

A doutrina tem procurado diferentes vias para contornar este requisito de previsão
constitucional expressa da possibilidade de restrição, seja através da ideia de limites imanentes,
da existência de restrições implícitas ou ainda do apelo ao art. 29.º da DUDH.

Jorge Reis Novais, cuja tese de doutoramento trata precisamente o problema das
restrições não expressamente previstas na Constituição, considera, por seu lado, que a
consagração constitucional de um direito fundamental sem a simultânea previsão da
possibilidade da sua restrição não deve constituir qualquer indicação definitiva sobre a sua
limitabilidade. Segundo este autor, “[t]omado a sério, o limite do n.º 2 do artigo 18.º CRP
significaria serem inconstitucionais hipotéticas normas ordinárias que, por exemplo,
possibilitassem à Administração impor medidas de vacinação obrigatória em caso de epidemia
(por violação do art. 25.º, n.º 1), que permitissem a um corpo policial ou de bombeiros entrar,
sem autorização, no domicílio de alguém em caso de incêndio (por violação do art. 34.º) ou que
proibissem um culto religioso que envolvesse a prática de crimes (por violação do art. 41.º, n.º
1) (…).”

Assim, partindo da natureza principiológica da generalidade das normas constitucionais


de direitos fundamentais, o Autor entende que estas consagram garantias subordinadas a uma
reserva geral imanente de ponderação ou necessidade de compatibilização com valores, bens
ou interesses dignos de protecção.

O reconhecimento de uma reserva geral imanente de ponderação despe de todo e


qualquer sentido útil o requisito da necessidade de previsão constitucional expressa, pois onde
a Constituição preveja, implícita ou explicitamente, a necessidade de restrição, já o legislador
estava autorizado a restringir com base naquela reserva.

- Necessidade de salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente


protegidos:

44
Por outro lado, a restrição só se pode justificar para a salvaguarda de um outro direito
ou interesse constitucionalmente protegido: o interesse que se visa acautelar tem que ter
suficiente e adequada expressão no texto constitucional (ex: defesa nacional, a segurança
interna, ordem pública, etc.). O fim que se visa com a restrição de um bem jurídico fundamental
tem de ter dignidade constitucional, sob pena de a restrição ser ilegítima, injustificada.

- Princípio da proporcionalidade:

Não basta, no entanto, que haja outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos a
garantir. É ainda exigido que a restrição se limite ao necessário para salvaguardar esses outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nos termos do artigo 18º, número 2. Está
aqui em causa o princípio da proporcionalidade, que obriga a que entre o conteúdo de uma
decisão estadual e o fim que ela prossegue haja um equilíbrio.

Podemos distinguir três critérios no seio do princípio da proporcionalidade: a


idoneidade, a necessidade e a proporcionalidade em sentido restrito.

O princípio da idoneidade ou adequação obriga a que se tenha em conta se um dado


meio é apto para a realização do fim em vista. O que se requer é um juízo de razoabilidade,
bastando provar que razoavelmente, em circunstâncias normais, o meio escolhido é apto para
alcançar o fim de interesse público que justifica a medida estadual.

Quanto ao princípio da necessidade, trata-se de apreciar se não existe outra medida


menos gravosa capaz de assegurar o objectivo com o mesmo grau de eficácia. O que se pretende
avaliar é se não haverá outro meio igualmente apto para a prossecução do fim mas que seja
menos oneroso para os direitos fundamentais.

Finalmente, na proporcionalidade em sentido restrito, deve aferir-se se a medida


adoptada é equilibrada no sentido de as desvantagens dela decorrentes não serem superiores aos
benefícios que se poderão alcançar.

- Necessidade de as restrições terem carácter geral e abstracto:

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O art. 18.º, n.º 3 exige ainda que as restrições de direitos, liberdades e garantias têm de
revestir carácter geral e abstracto. Ou seja, as normas que as prevêem têm de ter como
destinatários um número indeterminado ou indeterminável de pessoas e devem aplicar-se a um
número indeterminado ou indeterminável de situações.

- Proibição da retroactividade das leis restritivas:

Esta exigência visa tornar claro que, se a possibilidade de leis retroactivas – sempre
indesejável num Estado de Direito, preocupado em garantir e respeitar a segurança jurídica dos
cidadãos – não é sempre inconstitucional, em matéria de restrições a direitos, liberdades e
garantias, é inadmissível. Ou seja, não deve haver aqui margem de ponderação no sentido de
perceber se o fim que legitima a restrição sobreleva as expectativas juridicamente protegidas.
Se essas expectativas se referem a direitos, liberdades e garantias, estas devem sempre
prevalecer.

- Respeito pelo conteúdo essencial

A Constituição proíbe que a restrição legislativa afete o conteúdo essencial do direito


fundamental.

O que quer isso exatamente dizer?

Não é fácil interpretar tal exigência (e ainda menos aplicá-la a situações concretas).

A dificuldade maior é a de saber em que é que consiste efectivamente o âmbito nuclear


intocável de cada direito fundamental.

Perante esta dificuldade têm surgido algumas posições que tudo reconduzem a juízo
casuístico quanto à parcela do direito que deve ser poupada à restrição na situação concreta, Porém,

46
no limite, nestas situações, acabamos por reconduzir esta exigência ao princípio da
proporcionalidade.

Convém ter, no entanto, presente que este requisito em particular do conteúdo essencial
não é uma “excentricidade” da Constituição portuguesa. Está presente também noutras
Constituições e consta actualmente de modo expresso do artigo 52º, número 1 da Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia, ao lado dos requisitos do princípio da
proporcionalidade. Donde se deve atentar no facto de, também ao nível da União, se fazer uma
consideração autónoma do requisito do respeito pelo conteúdo essencial.

Bibliografia:

Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, Vol. II, 5ª Edição, Almedina,
Coimbra, 2013.

Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 5.ª Edição, Coimbra Editora,
Coimbra, 2012.

José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976,


5ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012.

José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina,


Coimbra, 2007.

Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, Centro de Estudios Constitucionales,


Madrid, 1993.

Sérvulo Correia, Direitos Fundamentais – Sumários, Lisboa, AAFDL, 2002.

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