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(CASO Nº 80) PROCURAÇÃO

No dia 10 de outubro, Alzira outorga procuração a Bruno para venda da joia X de que é
proprietária por valor não inferior a €10.000.
Sabendo que Clotilde gostava da joia X, Bruno, em 11 de outubro, envia-lhe uma carta
propondo-lhe a venda da joia por €12.000 (sem estipular qualquer prazo para resposta).
No dia seguinte, sabendo que Mireille, uma sua antiga colega dos tempos de estudante em
França, se encontrava em Portugal, Alzira, sabendo da sua imensa fortuna e do seu fascínio por
joias, desloca-se ao hotel onde a excêntrica cidadā francesa se encontrava, e propõe-lhe a
venda da joia X por €20.000. Convencionaram um prazo de 10 dias para a resposta.
A 16 de outubro, Clotilde responde por fax a Bruno, aceitando comprar a joia X, mas por
€10.000.
No dia 18 de outubro, durante a tarde e mediante o silêncio de Bruno, Clotilde, com receio de
perder o negócio, envia novo fax a Bruno decla rando aceitar a compra da joia X por €12.000.
A 19 de outubro, Mireille desloca-se a casa de Alzira para lhe comunicar que aceita comprar a
joia X por €20.000.
Em 20 de outubro, Clotilde recebe uma carta de Bruno (enviada no dia 18 pela manhã), em
que este concordava vender a joia X por €10.000.

Quid juris?

RESOLUÇÃO DO CASO PRÁTICO

Outorgada procuração por Alzira a Bruno constitui-se este como representante (voluntário)
daquela (em conformidade com o disposto no artigo 262°, n° 1 do CC). Significa isto que os
atos que Bruno praticam em nome de Alzira, desde que enquadrados nos poderes conferidos
pela procuração (venda da joia X por valor não inferior a €10.000), produzem efeitos na esfera
jurídica de Alzira (artigo 258° do CC).

No exercício dos seus poderes representativos, Bruno, por carta, propõe a Clotilde a venda da
joia pelo preço €12.000. Ao não estipular prazo para resposta prevalece, antes de mais, o
preceituado na alínea b) do nº 1 do artigo 228° do CC, isto é, mantém-se a proposta <até que,
em condições normais, esta e a aceitação cheguem ao seu destino». O Código Civil não define
concretamente o período de tempo que, em condições normais, proposta e aceitação
demoram a chegar ao respetivo destino. Tratando-se de propostas contratuais remetidas pelo
correio, recorre a maioria da doutrina¹8, por analogia, ao regime jurídico das notificações
postais judiciais dirigidas a advogados, previsto no artigo 254°, nº 3 do Código de Processo
Civil, segundo o qual a receção se presume ocorrida no terceiro dia posterior ao do registo da
carta. Assim, aos três dias para o envio da proposta, adicionam-se três dias para a aceitação da
mesma. A estes seis dias acrescentam-se, ainda, cinco dias, em virtude de não ter Bruno
pedido resposta imediata, por aplicação, desta feita, da alínea c) do mesmo nº 1 do artigo 228°
do CC. Fica, então, Bruno, em nome de Alzira, vinculado à proposta feita a Clotilde pelo prazo
de onze dias, ou seja, (enviada a carta a 11 de outubro) fica vinculado à proposta até ao dia 22
de outubro.
A proposta de venda da joia por €20.000 feita pessoalmente por Alzira a Mireille, no dia 12 de
outubro, implica, assim, a violação do dever de proceder segundo as regras da boa-fé na
relação pré-contratual, imposto pelo artigo 227° do CC, e que se traduz, essencialmente, <<no
dever de actuação honesta, leal e transparente»19 tanto nos preliminares como na formação
do contrato. Com efeito, estando Alzira vinculada à proposta feita (por Bruno, seu
representante e em seu nome) a Clotilde, não devia ter proposto a venda do mesmo bem a
uma outra pessoa (Mireille). Com tal comportamento, Alzira violou sobretudo o dever de
lealdade na formação dos contratos por não ter procurado evitar danos aos seus parceiros
negociais (se Clotilde aceitar a proposta em primeiro lugar, pode Mireille ficar prejudicada; se
for Mireile a primeira a aceitar, arrisca-se Clotilde a sofrer prejuízos), desrespeitando, por
conseguinte, a máxima alterum non laedere.

Sendo convencionado o prazo de dez dias para a resposta de Mireille, é este o prazo de
duração da proposta, nos termos do artigo 228°, nº 1, a) do CC, ficando, por conseguinte,
Alzira, e uma vez que a proposta ocorreu em 12 de outubro, vinculada a essa proposta (tal
como sucede, aliás, com a proposta feita a Clotilde) até ao dia 22 de outubro.

A 16 de outubro, Clotilde responde (por fax) a Bruno, aceitando comprar a joia X, mas por
€10.000. Esta declaração negocial enquadra se na figura da "aceitação com modificações", o
que equivale a rejeição da proposta de venda por €12.000 (artigo 233°, primeira parte, do CC),
rejeição esta que, por sua vez, se torna eficaz no momento em que Bruno a recebe (artigo
224º, nº 1, primeira proposição, do CC), cessando, pois, em 16 de outubro (data da receção
desta rejeição por fax), o processo negocial entre Alzira (através de Bruno) e Clotilde (iniciado
a 10 de outubro)20. A declaração de Clotilde ("aceito comprar, mas por €10.000!") vale, ainda,
como nova proposta (artigo 233º, segunda parte, do CC), mas este é já um novo processo
negocial. O que significa que a posterior aceitação (via fax, em 18 de outubro) da mesma
Clotilde de compra da joia por €12.000 já não envolve conclusão do contrato, uma vez que
deixara de ser eficaz a respetiva proposta (de Bruno em nome de Alzira).

Em 19 de outubro, mediante declaração verbal na presença da destinatária, Mireille aceita a


proposta de Alzira, cujo prazo caducava, como se viu, a 22 de outubro. Esta aceitação de
Mireille corresponde a uma adesão total e completa à proposta de Alzira e, sendo por esta
imediatamente recebida, tornou-se perfeita, enquanto declaração, no próprio dia 19 de
outubro (artigo 224º, nº 1, primeira proposição, do CC), ou seja, antes da data-limite de
vigência dessa proposta (22 de outubro, conforme se definiu supra). Não havendo qualquer
requisito formal exigido por lei a observar, no momento em que a aceitação se tornou perfeita
concluiu-se o contrato (artigo 232° do CC) de compra e venda que tem como efeito a imediata
transferência do direito de pro priedade sobre a joia de Alzira para Mireille (artigo 408°, n° 1
do CC).

No momento da conclusão do contrato com Mireille, Alzira não se encontrava já vinculada a


qualquer outra proposta contratual. Porém, ao não revogar a procuração, suscita-se a questão
de incorrer em res ponsabilidade civil pré-contratual (artigo 227° do CC) por culposamente
defraudar as expectativas a Clotilde, que poderia ter concluido contrato com o representante.
Mireille é a proprietária da jóia.
(CASO N° 104) NEGÓCIO JURIDICO

Numa terça-feira, António toma de arrendamento, para o fim-de semana próximo, uma casa a
Bruno, situada em local abrangido pelo circuito de corridas de Vila do Conde, para poder
assistir, da varanda da casa, às provas de automóveis clássicos naquele circuito a decorrer
durante o mencionado fim-de-semana.

Dois dias volvidos (quinta-feira) as entidades organizadoras decidem, porém, cancelar o evento
em razão da falta de apoio financeiro da Câmara Municipal e, também, da desistência de
alguns patrocinadores.

Bruno invoca não ter qualquer culpa pelo sucedido, exigindo o pagamento da renda a António.

1. Terá sucesso?

2. Suponha agora que na terça-feira em que o negócio foi celebrado ja o cancelamento das
provas de automóveis havia sido decidido (no dia anterior, segunda-feira). António e Bruno,
contudo, só na quinta feira vieram a conhecer tal facto. Terá Bruno direito ao pagamento da
renda?

3. E se, atenta a suposição da pergunta anterior, apenas Bruno tivesse tido conhecimento do
facto, mas não esclarecesse António para não perder o negócio? Qual seria agora a sua
resposta?

RESOLUÇÃO DO CASO PRÁTICO

1. O negócio jurídico (contrato de arrendamento) celebrado entre António e Bruno sofreu uma
alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar. Com
efeito, ambas as partes concluíram o contrato de arrendamento numa terça-feira na
pressuposição da ocorrência de um evento (prova de automóveis) no fim de-semana próximo.
Esta foi, realmente, a convicção de ambas as partes, decisiva para a celebração do negócio. Tal,
porém, não veio a suceder, uma vez que, dois dias depois (quinta-feira), foi cancelado o
evento.
Enquadra-se esta situação na figura da pressuposição, isto é, da alteração superveniente das
circunstâncias prevista no artigo 437° do CC. De modo imprevisível (anormal), não se
verificaram no futuro (em relação ao momento da conclusão do negócio) as circunstâncias que
determinaram António e Bruno a contratar.
Não está em causa a validade do negócio. Este é realizado sem qualquer vício e, portanto, sem
contrariar qualquer norma imperativa. Não é, nessa medida, um problema de validade, mas de
ineficácia super veniente, dado se reportarem os problemas surgidos (cancelamento do
evento) a vicissitudes ocorridas na vida do negócio, logo posteriores (supervenientes) ao
momento da celebração. Enquanto parte lesada com a alteração anormal das circunstâncias
(tomou de arrendamento a casa de Bruno para poder assistir a um evento que, afinal, se não
veio a realizar), tem António, conforme prescreve o artigo 437°, n° 1 do CC, <<direito à
resolução» (ineficácia superveniente) «do contrato ou à sua modificação segundo juízos de
equidade», posto que «afetaria gravemente os princípios da boa-fé» exigir-lhe o pagamento
da renda sem a realização do evento (que motivou o negócio).
Resolvido o negócio por António, não tem Bruno direito ao pagamento da renda.

2. Com tal suposição, estaríamos já perante a figura do erro enquanto vício na formação da
vontade negocial, uma vez que ambas as partes representariam falsamente a realidade (erro-
ignorância quanto ao cancelamento das provas de automóveis) que motivou a celebração do
negócio jurídico.
Tratando-se de um erro sobre as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de
contratar, ajusta-se este negócio jurídico à figura do erro sobre a base do negócio sufragada
pelo artigo 252°, nº 2 do CC.
Ao dispor que «<é aplicável ao erro do declarante o disposto sobre a resolução ou modificação
do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi
concluído», este preceito implica uma remissão para os artigos 437° a 439° do CC. Mas tal não
pode significar, pura e simplesmente, a aplicação direta do regime fixado no artigo 437°, n° 1
do CC (resolução do contrato), pois, conforme se mencionou na resposta anterior, esse é um
regime destinado a regular vicissitudes ocorridas depois da conclusão do negócio e, neste
caso, do que se trata é de um erro na formação da vontade (erro-vício), ou seja, de uma
vicissitude ocorrida aquando da celebração do negócio.
O sentido e alcance do n° 2 do artigo 252° do CC envolvem um erro que é relevante, conforme
ensina Carvalho Fernandes, «nos termos em que o seja a alteração das circunstâncias que
fundaram a decisão de contratar, salvo as diferenças específicas de cada uma destas
figuras»>21.
Vale isto por dizer, seguindo ainda a lição de Carvalho Fernandes, que o erro releva desde que
«incida sobre circunstâncias "patentemente fun damentais” em que as partes fundaram a
decisão de contratar»²2, ou seja, que se trata de um erro (sobre circunstâncias essenciais ao
negócio) que envolve ambas as partes e, portanto, de um erro bilateral Sintetizando, a
remissão do artigo 252º, nº 2 para os artigos 437° a 439º, todos do CC, busca delimitar a
realidade sobre a qual incide o erro que é a que se encontra prevista no artigo 437º, nº 1:
circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar reconhecidas, segundo os
principios da boa-fé, como essenciais ao negócio. Uma realidade comummente definida como
"base negocial", consagrando o artigo 2520, nº 2 do CC a figura do "erro sobre a base do
negócio".

Constituindo o "erro sobre a base do negócio" um vício na formação da vontade negocial, não
se vislumbram razões que justifiquem desvios de regime à solução adequada ao tratamento
comum deste tipo de vícios: anulabilidade do negócio. Esta conclusão retira-se, aliás, do
próprio teor do artigo 252°, nº 2 CC. Ao enunciar "se, porém" logo no início, o legislador utiliza
a conjunção adversativa (porém") neste nº 2 para conectar o respetivo regime jurídico com e
do nº 1 do preceito que estatui a anulabilidade do negócio jurídico por erro sobre os motivos
em geral do negócio se houver acordo entre as partes quanto à essencialidade do motivo. Já
no nº 2 do artige 252° do CC, essa anulabilidade, porém, não carece de acordo quanto à
essencialidade do motivo, posto que o erro é bilateral²5
A legitimidade e os prazos para exercer o direito de anular encontram se sob alçada do regime
geral previsto no artigo 287°, n° 1 do CC.
Quanto à legitimidade, a questão torna-se complicada nestes casos de erro sobre a base
negocial por se tratar de erro bilateral. O artigo 252⁰, n° 2 do CC pretenderá, não obstante,
tutelar a posição da parte cuja vontade é claramente determinada pelo vício (erro), não
havendo gran des dúvidas de que, no caso, foi a vontade de António que se revelou
absolutamente causada pelo erro. A possibilidade de assistir as provas de automóveis
consubstanciou-se, na verdade, como motivo essencial à tomada de arrendamento da casa por
António, ao passo que, com toda a probabilidade, Bruno, ainda que envolvido também na
situação de erro, daria de igual modo a casa de arrendamento (para o fim-de semana) mesmo
sem as referidas provas. O erro è essencial para Antonio e já não assim para Bruno. Sendo no
interesse da parte cuja formação da vontade é determinantemente viciada pelo erro que o
legislador, através de artigo 252, nº 2 do CC, estabeleceu a anulabilidade do negocio, é pois,
António quem tem legitimidade para anular o contrato (artigo 287, nº 1, primeira parte, do
CC).
Deve fazê-lo no prazo de um ano a contar do momento da cessação do vicio que serve de
fundamento à anulabilidade (artigo 287, nº 1, desta feita segunda parte, do CC), isto é, desde a
ocasião em que se apercebe do cancelamento das provas de automóveis. Cabe realçar, porém,
que enquanto não pagar a renda pode António arguir a anulabili dade do negócio sem
dependência de prazo, tanto por via da ação como por via da exceção (artigo 287, nº 2 do CC).
Anulado o negócio por António, não tem Bruno direito ao pagamento da renda.

3. Se, no momento da conclusão do negócio, Bruno tivesse conhecimento de que fora


cancelado o evento, não haveria já erro sobre a base do negócio, uma vez que este não seria
comum a ambas as partes (não seria bilateral). O erro-vício seria apenas de António, mas seria
também determinante da vontade negocial. Não sendo erro sobre a base do negócio, nem
sobre o objeto, nem, tão pouco, sobre a pessoa do declaratário, configurar-se-ia, então, como
"erro sobre os motivos em geral" (artigo 252º, nº 1 do CC).
Percebendo que António ignorava o cancelamento das provas de automóveis e que, por isso,
pretendia tomar de arrendamento a casa para o fim-de-semana, Bruno (destinatário da
declaração viciada) não o esclareceu, existindo, assim, de sua parte, uma dissimulação do erro
de António (declarante) sobre os motivos (falsa convicção de que o evento se realizaria) que
determinaram a vontade negocial (tomar a casa de Bruno de arrendamento) e, portanto, dolo
por omissão, conduta subsu mível no artigo 253ª, nº 2 do CC; preceito que abrange não só a
indução em erro (dolo por ação), mas também a "dissimulação do erro" (dolo por omissão).
Para que seja anulável o negócio é necessário que o dolo seja, antes de mais, ilícito (dolus
malus) segundo os critérios estabelecidos pelo artigo 253°, n° 2 do CC. No que respeita ao dolo
por omissão, este será ilícito se o seu autor (Bruno, no caso) estiver adstrito o dever de
elucidar o declarante (António) e, conforme resulta, a contrario sensu, do mencionado
preceito, o dever de elucidar dimana necessariamente da lei (para situações específicas), de
estipulação negocial ou das conceções dominantes no comércio juridico.
No caso concreto, não existindo qualquer disposição legal específica ou estipulação negocial
entre António e Bruno que obrigue este a esclarecer aquele, a questão coloca-se no domínio
das "conceções dominantes no comércio jurídico", utilizando o legislador, nesta proposição
jurídica, conceitos - na expressão de Karl Engisch - "carecidos de preenchimento valorativo"26,
isto é, conceitos cuja determinação necessita de valorações adequadas a cada situação
concreta.
Na busca de melhor precisar tais conceitos, refere Mota Pinto a importância de se atender, em
cada caso concreto, ao tipo de negócio em causa e ao género de relação entre as partes, bem
como a relevância de considerar os ditames da boa-fé pré-contratual (artigo 227⁰, n° 1 do CC)
cuja observância pode impor o cumprimento de deveres de informação e esclarecimento
Mencionando que o uso negocial provindo das "conceções dominantes do comércio jurídico"
implica um dever de informação resultante da boa-fé contratual (destacado pelo preceituado
no artigo 573° do CC), adverte, por sua vez, Carvalho Fernandes que a interpretação da
proposição jurídica em causa deve ter o cuidado de não trazer <<para o campo do Direito a
consagração da má-fé, do arbítrio ou ganância dos mais habilidosos sobre a boa-fé, a justeza e
a moderação das pessoas de bem e honestas.
Nesta linha de pensamento, sempre se poderá dizer que fora do dever de elucidar,
fundamentado nas conceções dominantes do comércio ju rídico, pouco mais restará do que
situações de erro de cariz subjetivo (António toma de arrendamento a casa de Bruno
afirmando que o faz, vg.. por ser a casa com melhor vista para o circuito, não sendo esta a
perspetiva de Bruno que, todavia, se mantém em silêncio para não estragar o negócio) ou do
que casos em que o erro não merece tutela juridica dado o seu carácter irrelevante ou absurdo
(António convence se. por ex., de que todos os pilotos de automóveis, ao passar pela casa de
Bruno, costumam acenar para a varanda, quando na realidade isso não acontece). Devem,
assim, entender-se como residuais as situações em que a dissimulação do erro é tolerável pelo
uso negocial. Ora, esse não é claramente o caso de alguém que toma de arrendamento
determinada casa (ou de quem, e.g., compra um lugar de espetador num circuito de
automóveis) para assistir a uma corrida que se não vai realizar (por ter sido cancelada).
Segundo os mais elementares princípios da boa-fé ne gocial que orientam as conceções
dominantes do comércio jurídico, em casos de tal jaez não pode o declaratário deixar de estar
adstrito a um dever de informação que elucide o declarante e destrua o erro. Encon trava-se,
pois, Bruno, no caso concreto, adstrito ao dever de esclarecer António. Não tendo cumprido
tal dever de esclarecimento, atua neces sariamente com dolo ilícito por omissão (artigo 253°,
nº 2 do CC).
O negócio jurídico é, assim, anulável por dolo (omissivo) do declaratário, conforme dispõe o
artigo 254º, nº 1 do CC. Ao não afastar, consciente e voluntariamente, o erro de António,
incorre Bruno numa situação de dolo, sendo o erro (não removido pelo declaratário) a causa
do negócio. O dolo não afastou o erro e o erro foi a causa do negócio. Verifica-se, pois, a dupla
causalidade do dolo, exigida implicitamente pelo artigo 254°, n° 1 do CC, adaptada ao dolo por
omissão.

Sendo no interesse de quem se encontra em erro provocado (no caso, não afastado) por dolo
que o artigo 254°, n° 1 do CC estabelece a anulabilidade do negócio, é António quem tem
legitimidade para argui la no prazo de um ano após perceber que as corridas de automóveis
haviam sido canceladas (no ano subsequente à cessação do erro-vício), em conformidade com
o preceituado no artigo 287°, n° 1 do CC.
Uma vez anulado o negócio e destruídos os efeitos do mesmo, não tem Bruno direito à renda.

(CASO N° 108) DOAÇÃO


Em janeiro de há dois anos atrás, Frederico, por escritura pública, doou um prédio urbano a
Gisela, porque esta o ameaçou com uma denúncia criminal em razão de um delito fiscal que
Frederico efetiva mente cometera.
Em abril do ano passado, porém, o crime em causa acaba por prescrever.
Em setembro do mesmo ano, Gisela, que havia registado o prédio em seu nome, vende-o a
Horácio que, sabendo de tudo o que se passara entre Frederico e Gisela, de imediato também
o regista.
Em janeiro do corrente ano, Frederico pretende reaver o prédio.
Deve a sua pretensão ser atendida em tribunal?

RESOLUÇÃO DO CASO PRÁTICO

A doação de Frederico a favor de Gisela é feita sob coação moral (artigo 255° do CC). Por parte
de Gisela houve, efetivamente, uma ameaça ilícita de um mal (denúncia criminal) sobre a
pessoa de Frederico com o fim de obter deste uma declaração negocial (de doação) que
acabou por ser emitida, motivada pelo receio de concretização desse mal (por medo).

Apesar de a denúncia criminal ser um direito de qualquer cidadão nos crimes de natureza
pública (artigo 244° do CPP), a ameaça de Gisela
é ilícita, uma vez que utilizou a possibilidade de exercer esse direito com o objetivo de
prosseguir um fim indevido, qual seja, a obtenção da declaração negocial de Frederico. Como
bem chama a atenção Carvalho Fernandes, ao prescrever no n° 3 do Artigo 255° do CC que
«[n]ão constitui coação a ameaça do exercício normal de um direito», o legisla dor revela, a
contrario, que constitui coação a ameaça do exercício anormal de um direito, ou seja, o abuso
do direito (artigo 334° do CC) 29. Ora, ao direito de denunciar um crime subjaz, no essencial, a
ideia de que toda a comunidade se sentiu ofendida com a sua prática (dada a ofensa a um bem
jurídico) e, portanto, de que todo o cidadão tem legítimo interesse na perseguição jurídico-
criminal do infrator. Mas se alguém ameaça outrem com denúncia criminal para dele obter
uma declaração negocial que lhe proporciona vantagem própria e, portanto, indevida, já se
não pode falar de uso normal desse direito de denúncia. Foi o que sucedeu com Gisela que
ameaçou Frederico para obter a doação e, por isso, é ilícita a ameaça.

Além da ameaça ilícita com o fim de obter uma declaração negocial, exige, ainda, o artigo 255°
do CC que o mal com que o declarante é ameaçado respeite à sua pessoa, honra ou património
(fazenda) e lhe cause medo (receio de um mal) determinante da sua vontade negocial e,
consequentemente, da declaração (artigo 255°, n° 1 e n° 2 do CC). No caso, a ameaça incidiu
sobre a pessoa de Frederico (está em causa, em última análise, a sua liberdade pessoal) e o
medo da denúncia criminal determinou-lhe a vontade de doar o imóvel a Gisela (na coação
moral o vício na formação da vontade é, em rigor, o medo; não o medo mera mente
emocional, mas que promana de uma razão calculadora traduzida na previsão e receio de um
mal).

A consequência jurídica da «declaração negocial extorquida por coação» é a da respetiva


anulabilidade (artigo 256° do CC).
Resulta da proposição jurídica destacada a imposição de uma dupla causalidade enquanto
requisito da anulabilidade do negócio: é necessário que o medo seja causado pela ameaça do
mal (no sentido de que se não fosse a ameaça não existiria medo) e que a declaração negocial
seja causada pelo medo (se não existisse medo não se teria formado a vontade negocial e,
consequentemente, a respetiva declaração). No caso concreto verifica-se esta dupla
causalidade: Frederico doou o prédio urbano a Gisela motivado pelo medo (medo enquanto
causa do negócio) que, por sua vez, foi causado pela ameaça de denúncia criminal (coação ou
ameaça enquanto causa do medo). A declaração negocial de Frederico foi, assim, extorquida
por coação e é, portanto, anulável nos termos do artigo 256° do CC.

Para reaver o prédio terá Frederico de arguir a anulabilidade da doação, suscitando-se as


questões da legitimidade e do prazo para o efeito.

Rege nesta matéria o regime geral sufragado pelo artigo 287°, n° 1 do CC.

Quanto à legitimidade, torna-se necessário indagar no interesse de quem estabeleceu o


legislador a anulabilidade do negócio realizado sob coação moral. Não será difícil perceber que
o legislador ao estabelecer tal anulabilidade o fez no interesse do coagido por ser este quem
tem a vontade negocial viciada (por medo). Logo, é Frederico, coagido, quem tem legitimidade
para arguir a anulabilidade do negócio (artigos 256° e 287, nº 1, primeira parte, do CC).

No que ao prazo concerne, este é de um ano a contar da cessação do vício que serve de
fundamento à anulabilidade (artigo 287°, nº 1, segunda parte, do CC). O medo (vício) de
Frederico cessou com a prescrição do crime em abril do ano passado (momento em que a
denúncia criminal deixou de poder ser concretizada). Se Frederico pode arguir a anulabili dade
no ano subsequente à cessação do vício, pode fazê-lo até abril do presente ano. Tendo-o feito
em janeiro, fê-lo atempadamente.

O princípio geral do regime da declaração da anulação de um negócio é o de que tal


declaração tem efeito retroativo, devendo, consequente mente, ser restituído tudo o que haja
sido prestado em razão desse negócio (artigo 289⁰, n° 1 do CC). Deve, assim, em princípio,
Gisela restituir o prédio a Frederico.

Sucede, porém, que, entretanto, em setembro do ano passado, Gisela havia já vendido o
prédio a Horácio, terceiro face à doação. Coloca-se, neste conspecto, a questão de saber se a
anulação da doação de Frederico a Gisela afeta, ou não, os direitos de Horácio (terceiro).

Há que ter em conta, neste problema, a exceção (à regra do artigo 289⁰, n° 1 do CC) contida no
artigo 291° do CC que, no respetivo nº 1, estabelece a inoponibilidade dos efeitos da anulação
do negócio a tercei ros que adquiram direitos sobre os mesmos bens (que respeitam ao
negócio anulado), desde que se verifiquem os requisitos aí elencados. Só que um desses
requisitos impõe a boa-fé do terceiro, consistindo esta no desconhecimento, sem culpa, do
vício do negócio anulado (artigo 291°, nº 3 do CC) e, Horácio conhecia a ameaça de Gisela a
Frederico.
Horácio é, assim, considerado terceiro de má-fé, razão pelo qual não opera, in casu, a norma
excecional (artigo 291° do CC) que determina a inoponibilidade da anulação do negócio a
terceiros (de boa-fé), aplican do-se, ao invés, a regra geral (artigo 2890, n° 1 do CC).

Deve, em suma, o tribunal atender a pretensão de Frederico, ou seja, anular a doação a Gisela
(artigos 255°, 256° e 287°, nº 1, todos do CC) e determinar restituição do imóvel (artigo 2890,
n° 1 do CC).

(CASO N° 110) SIMULAÇÃO

Por motivos fiscais, Albano, em conluio com Manuel, decide fazer constar o preço de €50.000
na escritura pública de venda do seu imóvel Z quando na realidade Manuel, comprador, lhe
pagou €125.000.

Albano assina um documento particular em que reconhece ter recebido de Manuel €125.000.

Consta, ainda, da mencionada escritura pública que o negócio fica sem efeito se Joaquim, filho
de Albano, regressar do Brasil no prazo de cinco anos e revelar a intenção de morar no imóvel
Z.

Três anos após a conclusão do negócio, Manuel vende o imóvel a Ivo.

1. Mais um ano volvido, Joaquim regressa do Brasil e, efetivamente, pretende morar no imóvel
Z. Quid juris?

2. E se Joaquim não regressar do Brasil no prazo de 5 anos. Pode Albano reaver o imóvel?
RESOLUÇÃO DO CASO PRÁTICO

1. A venda do imóvel Z pelo preço de €50.000 é um negócio simulado, em conformidade com o


disposto no artigo 240°, n° 1 do CC. Existe, com efeito, uma divergência intencional de ambas
as partes (Albano e Manuel) entre a vontade real (compra e venda pelo preço de €125.000) e a
vontade declarada (compra e venda pelo preço de €50.000), entre elas acordada (pactum
simulationis), com objetivo de enganar (e prejudicar) a Fazenda Nacional (terceiro face ao
negócio).

Esta é uma simulação objetiva, pois versa sobre o conteúdo do negócio jurídico (o preço da
compra e venda) e não sobre os sujeitos da mesma. É também fraudulenta, porque a intenção
de Albano e Manuel foi a de enganar e, também, prejudicar a Fazenda Nacional (pagar menos
im posto).

Trata-se, ainda, de simulação relativa. Albano e Manuel fingiram celebrar um certo negócio
jurídico (o simulado: compra e venda do imóvel Z pelo preço de €50.000) para esconder um
outro negócio jurídico (o dissimulado: compra e venda do imóvel Z pelo preço de €125.000)
correspondente, este último, às suas reais vontades.

O negócio simulado é nulo (artigo 240°, n° 2 do CC), o que significa, para além de todas as
consequências do regime geral das nulidades consagrado no artigo 286° do CC, que é um
negócio inválido e, ab initio, ineficaz³0. Assim, pelo negócio simulado não adquiriu Manuel a
propriedade de Z.
Havendo, porém, sob este negócio simulado, um outro negócio que as partes quiseram
efetivamente realizar (o dissimulado), coloca-se o problema do seu valor jurídico. Rege, nesta
matéria, o preceituado no artigo 241°, nº 1 do CC: o negócio real ou dissimulado é alvo de
trata mento jurídico autónomo, isto é, aplica-se-lhe o regime jurídico que lhe corresponderia
se fosse realizado isoladamente e não a coberto de um negócio simulado. Admite-se, portanto,
a sua validade, ainda que esta não seja automática. O negócio pode, na verdade, ser válido,
nulo ou anulável como qualquer outro negócio, consoante se verifiquem, ou não, todos os
requisitos de validade decorrentes do correspondente regime jurídico (autónomo) aplicável. É
este o significado do nº 1 do artigo 241° do CC quando refere que ao negócio dissimulado «é
aplicável [...] o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação».

Problema de alguma complexidade que se suscita neste caso prático reside no facto de o
negócio (dissimulado) ser de natureza formal. Impõe, com efeito, o artigo 875° do CC, como
requisito de validade, que o contrato de compra e venda de bem imóvel se realize por
escritura pública ou por documento particular autenticado. Dispõe por sua vez, nesta matéria,
o artigo 241°, n° 2 do CC que o negócio dissimulado só é válido "se tiver sido observada a
forma exigida por lei". Ora, sendo o negócio dissimulado o negócio que as partes pretendem
ocultar, não se vê como poderia este observar a forma legal quando de escritura pública ou
documento autenticado se trata. Mesmo que exista um contrado cumento em que se atesta a
vontade real das partes (como não deixa de suceder no presente caso), este nunca
corresponderá a uma escritura pública (ou a documento autenticado). As partes não iriam
lavrar num cartório notarial (ou num escritório de advogado) o negócio simulado e noutro o
dissimulado; seria colocar a descoberto o negócio dissimulado que é precisamente o negócio
que as partes querem ocultar. Suscita-se, por conseguinte, a controversa questão de saber se
pode ser aproveitada para o negócio dissimulado a forma observada para o negócio simulado.

Tem razão Carvalho Fernandes quando, na linha de pensamento de Manuel de Andrade e de


Oliveira Ascensão, defende uma interpretação favorável à validade formal do negócio
dissimulado, levando em conta o regime do âmbito da forma legal (artigo 221° do CC) com o
qual este problema mantém estreita conexão³¹. Devem, neste sentido, as declarações do
negócio dissimulado valer como estipulações anteriores ou posteriores ao negócio simulado e
apurar, dentro do sentido lógico do artigo 221° do CC, quais as razões determinantes da
exigência de forma do negócio dissimulado. Coincidindo essas razões com as do negócio
simulado, então o documento formal do negócio simulado vale para o negócio dissimulado e
este será formalmente válido. Se não coincidirem, será, como é lógico, formalmente inválido.
Mas se às estipulações pró prias do negócio dissimulado lhe não forem aplicáveis as razões
deter minantes da forma, estas serão válidas por liberdade de forma. Assim, tratando-se de
simulação de preço no contrato de compra e venda do imóvel Z, vale o preço verdadeiro (o do
negócio dissimulado) independentemente da forma pela qual foi estipulado, <<pois a forma
legal do acto abrange a estipulação do preço, mas não a estipulação de

preço determinado»> 32 CC) 33 (em sintonia com o disposto no artigo 883° do

A venda dissimulada entre Albano e Manuel é válida.

Já quanto à cláusula negocial que determina a ineficácia do negócio no caso de Joaquim, filho
de Albano, regressar do Brasil no prazo de cinco anos e revelar a intenção de habitar o imóvel
Z, trata-se de condição resolutiva. Não obstante o prazo de cinco anos (que numa leitura
precipitada poderia inculcar a ideia de se tratar de um termo), há que considerar que o
acontecimento previsto na cláusula é (para além de futuro) incerto (no momento da
celebração do negócio não é realmente possível saber se Joaquim regressará, ou não, do Brasil
no prazo de cinco anos e se revelará, ou não, a intenção de habitar o imóvel Z). As partes
(Albano e Manuel) subordinaram, então, à verificação de um acontecimento futuro e incerto a
resolução dos efeitos do negócio, pelo que, nos termos do artigo 270° do CC, se trata,
conforme se referiu, de condição resolutiva. Esta cláusula faz parte do negócio dissimulado,
pois só a determinação do preço foi simulada (em todo o resto do clausulado, negócio
simulado e dissimulado coincidem).

Assim, tendo-se verificado a condição (Joaquim regressou do Brasil quatro anos após a
realização do negócio e revelou a intenção de morar no imóvel Z), os efeitos da venda de
Albano a Manuel resolvem-se automaticamente. É certo que, entretanto, na pendência da
condição, já Manuel havia vendido o mesmo imóvel a Ivo. Este negócio é válido, pois Manuel
era legítimo proprietário do imóvel, limitando-se, por conse guinte, a vender o que era seu.
Não havendo, porém, estipulação negocial em contrário, os atos de disposição de bens ou
direitos que constituem objeto do negócio condicional realizados na pendência da condição (é
o caso da venda de Manuel a Ivo que se constitui como ato de disposição do imóvel Z, objeto
do negócio condicional) ficam sujeitos à ineficácia desse negócio (condicional, celebrado entre
Albano e Manuel), conforme dispõe o artigo 274°, n° 1 do CC; ou seja, os efeitos do ato
dispositivo realizado na pendência da condição ficam subordinados aos efeitos do negócio
condicional. Concretizando: a condição resolutiva do negócio entre Albano e Manuel vale
(também) como condição resolutiva do negócio entre Manuel e Ivo. Verificada a condição,
ambos os negócios se resolvem (se Ivo foi esclarecido, ou não, por Manuel da existência do
anterior negócio condicional é já um problema de responsabilidade pré contratual).

O imóvel Z volta a ser, com efeitos retroativos (artigo 276° do CC), propriedade de Albano.

2. Não; mesmo que de simulação absoluta se tratasse, Albano (simulador) não poderia opor a
nulidade a Ivo (terceiro de boa-fé), nos termos do artigo 243°, nº 1 do CC. Mas no caso a
simulação é relativa e, como se viu, o negócio dissimulado (venda de Albano e Manuel) é
válido, tendo Ivo adquirido a propriedade do imóvel Z ao seu legitimo proprietário (Manuel).
Não regressando Joaquim do Brasil decorridos cinco anos da venda de Albano a Manuel, torna-
se certa a não verificação da condição resolutiva. E «a certeza de que a condição se não pode
verificar equivale à sua não verificação» (artigo 275°, n° 1 CC). Não se verificando a condição, o
imóvel consolida-se na propriedade de Ivo, não podendo Albano reavê-lo.

(CASO N° 124) SIMULAÇÃO

"Venda fantástica"

António vinha acumulando várias dívidas em virtude de um modo de vida pródigo que não
conseguia controlar. Para evitar que o seu imóvel Y viesse um dia a ser penhorado, combinou
com Bento, amigo de longa data, fingir a venda desse mesmo imóvel. Bento ficou agradado
com a ideia e desde logo conjeturou consigo próprio que, quem sabe, poderia vir ainda a
ganhar algum dinheiro com a situação.

Em janeiro de há três anos atrás, dirigiram-se ao notário para lavrar a respetiva escritura
pública e proceder ao registo de aquisição do imóvel por Bento. Alguns meses depois, sabendo
que Carlos pretendia comprar o imóvel, Bento informou-o de que estava disposto a vendê-lo
por "bom preço". Acabaram por chegar a acordo e, em fevereiro do ano seguinte, observadas
as formalidades legais, Carlos, que nem sequer suspeitava do conluio entre António e Bento,
comprava o imóvel e registava-o em seu nome.
Quando António descobre esta venda, indignado, solicita ao advogado X que tome
providências no sentido de destruir o negócio. Em janeiro do ano passado, o advogado X, em
representação de António, intenta uma ação de invalidade do negócio com o objetivo de
reaver o imóvel Y.

1. Será procedente esta ação? Justifique.

2. E se Pedro, credor de António, propuser, também ele, uma ação que vise destruir aqueles
negócios, em fevereiro do presente ano? Será procedente? Justifique.

RESOLUÇÃO DO CASO PRÁTICO

1. Entre António e Bento existe uma compra e venda simulada do imóvel Y. Para enganar (e
prejudicar) os credores de António (terceiros face ao negócio), este combina com Bento fingir
a venda do imóvel (pactum simulationis), donde, intencionalmente, a vontade real das par tes
(não realizar este negócio nem qualquer outro) diverge da vontade declarada (venda de Y).
Verificam-se, sem dúvida, os três requisitos da simulação exigidos pelo artigo 240°, n° 1 do CC.
Como sob a capa do negócio simulado se não esconde qualquer outro, a simulação diz-se
absoluta (em linguagem corrente fala-se em venda fantástica).

O negócio jurídico simulado é nulo (artigo 240°, n° 2 do CC).

A pretensão de António arguir a nulidade do negócio é suportada por um interesse jurídico


legítimo dado o imóve! Y lhe pertencer na realidade, ainda que aparentemente pertença a
Carlos que o registou em seu nome. António é de direito proprietário de Y em razão da
nulidade do negócio simulado que implica a inexistência de efeitos negociais e, por
conseguinte, a não transmissão da propriedade a Bento. Assim, é também nula a venda a
Carlos por se tratar de venda de bens alheios (artigo 892° do CC) e, consequentemente,
ineficaz (nemo plus juris ad alium transferre potest quam ipse habet).

Sendo António proprietário de Y e, portanto, interessado na declaração de nulidade de ambos


os negócios, não se contesta a respetiva legitimidade para argui-la em tribunal (artigo 286° do
CC); legitimidade que é, aliás, corroborada pelo artigo 242°, n° 1 do CC (<< [a] nulidade do
negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre Six 34).

Sucede que o problema que necessariamente se suscita em tal ação não é o da legitimidade
para arguir a nulidade, mas o da sua inoponibi lidade a terceiros de boa-fé. Em regra, uma vez
decretada a nulidade, declarada fica a inexistência de efeitos negociais ab initio ³5, devendo,
então, ser restituído tudo o que haja sido prestado em virtude desse negócio (artigo 289°, nº 1
do CC); Carlos teria, portanto, que devolver o imóvel a Bento e este a António (na prática,
Carlos teria que devolver o imóvel a António). Só que, face ao negócio simulado, António é
simula dor e Carlos terceiro (não é parte) de boa-fé (ignorava a simulação quando comprou o
imóvel e nisso consiste a boa-fé conforme prescreve o n° 2 do artigo 243° do CC), situação que,
inevitavelmente, se enquadra no artigo 243°, n° 1 do CC cujo regime excecional determina a
inoponibilidade da simulação a terceiros de boa-fé («<[a] nulidade proveniente da simulação
não pode ser arguida pelo simulador contra terceiro de boa-fé»).

Encontrando-se Carlos protegido pelo artigo 243°, nº 1 do CC, não lhe pode opor António a
nulidade do negócio simulado, sendo, por conseguinte, improcedente a correspondente ação.

2. Pedro, enquanto credor de António, tem, também ele, interesse legítimo em arguir a
nulidade da simulação, uma vez que o património de devedor é a garantia geral do credor,
conforme se infere do princípio geral contido no artigo 601° do CC, tendo portanto Pedro todo
o interesse em provar que o imóvel Y é propriedade de António. Pelos artigos 286° e 605°,
ambos do CC, tem, portanto, Pedro, enquanto credor interessado, legitimidade para invocar a
nulidade. E, neste caso, já Carlos se não encontra protegido pelo artigo 243°, n° 1 do CC, uma
vez que tal proteção só opera face aos simuladores e Pedro não é simulador, mas (também
ele) terceiro (face ao negócio simulado). Nem pelo recurso a qualquer sorte de analogia
poderia Carlos invocar a proteção do artigo 243º, nº 1 do CC dada a natureza excecional do
disposto neste preceito (artigo 11° do CC).

A situação conduz-nos, porém, a uma outra norma excecional que protege igualmente
terceiros de boa-fé face (não só a negócios simulados desta feita, mas) a qualquer negócio
inválido (nulo ou anulável), qual seja, a sufragada pelo artigo 291° do CC. Que o negócio
inválido (simulado) respeite a bem imóvel (no caso trata-se do imóvel Y), que o terceiro tenha
adquirido o direito sobre o mesmo bem a título oneroso (Carlos comprou Y), que esteja de
boa-fé (Carlos desconhecia, sem culpa, a simulação), que o registo da aquisição do terceiro
seja anterior ao registo da ação de nulidade (Carlos registou a sua aquisição um ano e um mês
após a realização do negócio simulado e Pedro intentou a ação de nulidade três anos e um mês
após o mesmo negócio) são os requisitos impostos pelo nº 1 do artigo 291° do CC e todos eles
se verificam no presente caso prático. É ainda necessário, segundo o n° 2 do mesmo preceito
(artigo 291° do CC), que (a contrario sensu) não tenha sido a ação de nulidade proposta dentro
dos três anos posteriores à conclusão do negócio (Pedro só propôs, como se disse, a ação de
nulidade três anos e um mês após a conclusão do negócio simulado); também este requisito se
encontra preenchido.

Sendo esta uma proteção do terceiro de boa-fé que opera sobre todos aqueles que
proponham ação de invalidade (nulidade e anulabilidade) - diferentemente do que sucede com
a proteção do artigo 243°, nº 1 do CC que só vale face aos simuladores -, poder-se-á dizer que,
volvidos os três anos a que se reporta o artigo 291°, n° 2 do CC, o terceiro adquire o próprio
direito em causa, não por aquisição derivada através do negócio celebrado (nemo plus juris...),
mas por aquisição originária ope legis.

Carlos torna-se, assim, proprietário do imóvel Y, sendo improcedente a ação proposta por
Pedro.

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