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Índice:
1. Introdução ao tema
1.1. Importância deste diálogo e razão da escolha do tema
2. Direito e Estatuto dos Artistas em Portugal
2.1. Família jurídica do ordenamento português
2.2. Origem histórica e evolução no tempo
2.3. Regime legal
I) Âmbitos de proteção dos artistas
3. Direito e Estatuto dos Artistas nos Estados Unidos da América
3.1. Família jurídica do ordenamento estadunidense
3.2. Origem histórica e evolução no tempo
3.3. Regime legal
I) Âmbitos de proteção dos artistas
4. Direito e Estatuto dos Artistas na Espanha
4.1. Família jurídica do ordenamento espanhol
4.2. Origem histórica e evolução no tempo
I) Diplomas legais
II) Entidades sindicais mais relevantes
4.3. Regime legal
I) Âmbitos de proteção dos artistas
5. Apontamento crítico-comparativo
6. Conclusão
6.1. Síntese comparativa
6.2. Grelha comparativa
7. Referências bibliográficas
3
1. Introdução ao tema
Há quem defina o artista como o criador e praticante das belas-artes, como aquele que
tem a vocação artística, que tem o talento e exprime a o sentimento da arte. A UNESCO, em
1980, procurou definir o artista na sua Recommendation concerning the Status of the Artist1
como, e passo a citar, “qualquer pessoa que cria ou dá expressão criativa, ou recria obras de
arte, que considera ser a criação artística uma parte essencial da sua vida, contribuindo desta
forma para o desenvolvimento da arte e da cultura, e que é ou pede para ser reconhecido como
artista, estando ou não vinculado a qualquer relação de emprego ou de associação.” 2 Esta
definição do artista que procuramos destacar revela-se extremamente essencial para a
“delimitação do exato universo a que se destinam os regimes laboral, de proteção social e fiscal
específico”3 destes profissionais, tornando-se mais acessível, seguro e protegido o seu estatuto
num ordenamento que se dedica a tal ofício e à “concretização da almejada subsistência digna
dos artistas” 4.
Concretamente, os profissionais da cultura, seja a que ordenamento jurídico ou canto
do mundo a que nos estejamos a referir, são o veículo ou instrumento humano de expressão
artística e cultural de excelência. Deste modo, para que o acesso livre à fruição e expressão
cultural seja assegurado aos cidadãos, devem ser criadas e garantidas condições de segurança,
estabilidade e dinamização do setor cultural como um todo, permitindo àqueles que dependem
e fazem depender a sua vida profissional e económica deste meio a maior criatividade e
inovação possíveis5.
Através deste artigo de análise crítica e comparatista dos direitos, deveres e estatuto dos
artistas em diversos ordenamentos jurídicos, nomeadamente no sistema português,
estadunidense e espanhol, colocarei questões que procuro responder quanto à origem da
discussão que envolve a consagração destes direitos, qual a evolução histórica, legal e
juridicamente relevante dos mesmos, assim como procurar compreender o porquê da
consagração de cada ordenamento nesta matéria se ter realizado da forma como se realizou.
De forma introdutória, irei ainda mencionar de forma breve as famílias jurídicas em que cada
um destes sistemas, de forma a proporcionar uma melhor explicação e orientação das razões
1 https://www.unesco.org/en/legal-affairs/recommendation-concerning-status-artist
2 Destacado realizado por PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto Profissional do Artista - Regime
Laboral e de Segurança Social”, Fundação GDA (2018), p. 7
3 Idem, p. 8
4
Idem, p. 8
5 DRAY, Guilherme e BARRIAS, José, “Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura Anotado, Decreto-lei
4
justificativas da presença (ou a ausência) de determinados direitos e deveres dos profissionais
da cultura em cada um deles. Procurarei proceder, de forma a concluir o trabalho que venho
realizar, uma análise aprofundada sobre cada um dos regimes demarcados e a correspondente
análise e síntese crítica, destacando para esse efeito qual aquele (ou aqueles) que eu considero
o(s) mais adequado(s) à prossecução dos direitos dos trabalhadores da área da cultura e das
artes várias e o porquê da minha escolha nesse sentido.
5
de qualquer outra fonte de Direito e pela consequente ideia do Estado de Direito. Este, por sua
vez, é considerado uma verdadeira ciência jurídica e não um mero instrumento de resolução de
conflitos no caso concreto (como ocorre no Direito da Common Law inglês). Como refere o
professor DÁRIO MOURA VICENTE, a pretensão que vigora no artigo 1.º, nº2 do Código
Civil português de regular num texto legal a eficácia jurídica de todos os factos normativos,
incluindo aqueles que têm o mesmo valor que a lei 6 releva precisamente a preponderância e
importância conferida à lei como principal fonte de Direito que reflete, por sua vez, uma
“tendência comum a esses ordenamentos jurídicos” 7, referindo-se aos ordenamentos
português, alemão e francês. Outra das características essenciais e a destacar desta família
jurídica é o papel de relevância dado aos princípios e valores jurídicos que reguem a sociedade,
inscritos na Lei fundamental, isto é, a Constituição, de países como Portugal. A Constituição
da República Portuguesa (daqui em diante CRP) sistematiza conceitos como os da dignidade
humana, da liberdade, seja ela de expressão ou associação, da igualdade substantiva e da
solidariedade do Estado como garante de proteção e manutenção social e das relações entre
particulares e Estado, nomeadamente dos direitos à saúde, à educação, à habitação e, mais
relevante para este artigo, da liberdade de criação cultural, regulada pelo artigo 42.º da CRP.
Existe, desta forma, uma procura relativamente acentuada no sentido da salvaguarda dos
direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, pelo menos em termos constitucionais.
6 MOURA VICENTE, Dário, “Direito Comparado”, Vol. I, 4º Edição, Revista e Atualizada, Almedina (2019),
p. 156
7
Idem, p. 156
8 https://dre.pt/dre/detalhe/decreto/13564-1927-467443 (Nota: contando que o diploma em questão já se
encontra revogado há vários, não estão presentes nesta ligação as disposições do decreto.)
9 PEREIRA PORTELA, AUGUSTO, “O Estatuto Profissional do Artista - Regime Laboral e de Segurança
6
exigida às empresas, quer individuais quer coletivas, de espetáculos, era obtida junto à Inspeção
Geral dos Teatros 10. É interessante que este Decreto, que data de há quase 100 anos atrás, tenha
consagrado a obrigatoriedade da carteira profissional de forma que um artista, neste caso da
área do espetáculo especificamente, pudesse exercer a sua profissão, carteira essa que não é
agora exigida, apesar de tal assunto ser discutido por alguns. Este tema surge, essencialmente,
no contexto da contratação dos atores a recibos verdes e da necessidade de regulação de um
sistema de Segurança Social especial, de forma a se tornar mais flexível e adaptado à natureza
do ofício destes profissionais, ao que regressarei mais tarde. É ainda, e por último, importante
realçar que este primeiro diploma dedicado à regulamentação artística portuguesa prestava já
atenção à problemática dos artistas menores, tendo estipulado que "os menores de dezasseis
anos estavam proibidos de participar em espetáculos públicos, a não ser que a Inspeção Geral
dos Teatros o autorizasse.” 11.
Outra obra legislativa de extrema relevância foi o Decreto-lei 43181, de 23 de setembro
de 196012 e o Decreto nº 43190 com a mesma data que o veio regular. Neste diploma vieram a
ser reguladas as condições gerais de acesso à atividade dos profissionais de espetáculos 13,
tratando de definir uma regulamentação de natureza jurídica especial para o trabalho artístico,
naturalmente justificada pela natureza específica desta atividade que justificaram na altura, e
ainda o justificam agora, um "desvio ao regime jurídico geral"14. Como nos indica o preâmbulo
do Decreto-lei em análise, o objetivo primeiro do diploma era "conceder maiores garantias aos
profissionais, sem perder de vista as conveniências das empresas", o que é uma perspetiva de
louvar dada a data do decreto, sendo extremamente positivo a consciência já nesta época do
alcance social e cultural deste área profissional e da necessidade de a regular como tal,
mantendo sempre em mente as particularidades e especificidades que dela advêm.
Por fim, e antes de passar a desenvolver o âmbito da legislação hoje em vigor
relativamente ao Estatuto de que aqui se fala, é importante mencionar a Lei nº4/2008 de 7 de
fevereiro que, efetivamente, não esteve à altura das expectativas nela depositadas. A cada vez
mais incontestável necessidade de um tratamento mais abrangente do setor da cultura foi
essencialmente o motivo de fracasso desta Lei que, apesar de tudo, se manteve em vigor até ser
10 Idem, p. 22
11 PINTO FERREIRA DOS SANTOS, Susana I., “O Enquadramento Jurídico laboral dos Profissionais de
Espetáculos – Algumas reflexões” (2004) apud PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto Profissional do
Artista - Regime Laboral e de Segurança Social”, Fundação GDA, p. 21
12 https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/43181-1960-514840
13 PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto Profissional do Artista - Regime Laboral e de Segurança
em Especial” apud PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto Profissional do Artista - Regime Laboral e de
Segurança Social”, Fundação GDA, p. 24
7
revogada pelo atual Decreto-Lei. Na sua redação atual, a Lei nº4/2008 de 7 de setembro
“apenas regula as relações de trabalho subordinado, muitas atividades culturais ficam
excluídas do respetivo âmbito de aplicação, nomeadamente as relações de trabalho autónomas
e sem subordinação jurídica, com ou sem dependência económica” 15. Em termos de
disposições concretas, a aprovação de um regime de intermitência previsto no artigo 8.º, que
consiste da criação da possibilidade de as entidades empregadoras, em período de
descontinuidade de espetáculos, reduzirem temporariamente a retribuição aos trabalhadores 16,
não só se revelou danoso para as condições de vida e meios de subsistência dos profissionais
da área do espetáculo, como criou um precedente extremamente prejudicial em termos de
insegurança e instabilidade laboral e financeira dos artistas portugueses. O que no fundo esta
Lei veio a efetivar, assim como o princípio de base de casos como o do Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça nº2716/13.2TTLSB.L1.S1, de 21 de abril de 2016 17, é a precariedade
contratual como regra para estes profissionais, no sentido em que qualquer artista cuja
ocupação profissional caia nos parâmetros legais desta Lei está sujeito a ser contratado de
forma temporária e instável, sem qualquer motivo justificativo dessa precariedade.
15 DRAY, Guilherme e BARRIAS, José, “Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura Anotado, Decreto-lei
Nº 105/2021, de 29 de Novembro, com a Redação Conferida Pelo Decreto-lei Nº 64/2022, de 27 de Setembro”,
Editora D’ideias (2023), p. 10
16 PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto Profissional do Artista - Regime Laboral e de Segurança
Document
18 https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/105-2021-175043505
19 DRAY, Guilherme e BARRIAS, José, “Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura Anotado, Decreto-lei
8
de trabalho e garantia de direitos laborais aos profissionais da área da cultura, “importa,
também, criar um sistema de proteção social que seja adequado a estes profissionais e que os
apoie nas diversas eventualidades que os podem afetar”, leia-se a “doença, parentalidade,
desemprego, invalidez e velhice” 21. Em termos de disposições específicas que corroborem
estas ideias, o artigo 1.º delimita o objeto do presente Estatuto, estabelecendo relativamente
aos profissionais da área da cultura: o registo dos profissionais da área da cultura, ou RPAC
(alínea a)); o regime do contrato de trabalho (alínea b)); o regime do contrato de prestação de
serviço (alínea c)); e ainda o regime de proteção social (alínea d)). É de realçar que, apesar
deste diploma regular a modalidade contratual dos contratos de prestação de serviços, não há
nem uma neutralidade do legislador quanto às modalidades referidas (contrato de trabalho e
contrato de prestação de serviço) e muito menos uma “influenciação” no sentido da adoção da
prestação de serviços em detrimento do regime do contrato de trabalho. O que se pretende é
apenas abranger o maior número de realidades existentes na sociedade e procurar não “fechar
os olhos” às mesmas, não deixando, contudo, de incentivar a contratação pelo trabalho artístico
e não apenas pela prestação de serviços que terminam com a sua realização. No próximo ponto
irei desenvolver de forma mais aprofundada os âmbitos de proteção e aplicação deste decreto
e outra legislação, nas várias áreas aplicáveis.
Ainda sobre o regime legal atualmente consagrado e aplicável no ordenamento
português, cabe mencionar o Código do Direito do Autor e dos Direitos Conexos (ou CDADC),
aprovado pelo Decreto-Lei nº 63/85 de 198522, com redações e modificações várias até aos dias
de hoje. De forma, primeiramente, a realizar uma breve contextualização sobre a origem dos
direitos de autor até chegarmos ao diploma atualmente consagrado, cabe mencionar que os
direitos de autor foram definidos em 1972 no Decreto-Lei n.º 13725, de 27 de Maio de 1927
(Regime de Propriedade Literária, Científica e Artística) e, mais tarde, pelo Decreto-Lei n.º
46980, de 27 de Abril de 1966 (Código do Direito de Autor). Surgiu, então, a necessidade de
alterar este último diploma “em função da realidade portuguesa, decorrente da
institucionalização da democracia, dos aperfeiçoamentos deste direito no plano internacional,
das convenções internacionais a que vimos aderindo e das necessidades criadas pelo progresso
da comunicação e da reprodução” 23. Também a adesão de Portugal aos atos de revisão da
Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas e da Convenção
Universal sobre o Direito do Autor, realizados em Paris a 24 de Julho de 1971, obrigaram à
alteração, tanto terminológica como substancial, da regulamentação destes direitos. Ainda no
21 Idem, p. 10
22 https://dre.pt/dre/legislacao-consolidada/decreto-lei/1985-34475475
23 Índice do Diário da República Eletrónico quanto ao Código do Direito do Autor e dos Direitos Conexos
(CDADC).
9
contexto do regime deste Código, há que referir o papel da Inspeção-Geral das Atividades
Culturais (ou IGAC), cuja missão concorre com as competências inscritas no CDADC por ser
a entidade que, por excelência, deve garantir os direitos e deveres dos autores, espectadores e
agentes culturais e controlar a atuação das entidades sob dependência do membro do Governo
responsável pela área da cultura 24.
24 https://www.igac.gov.pt/pedagogia-e-prevencao-do-direito-de-autor
10
consagrar o regime especial de segurança social relativamente ao regime constante no Código
dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social. Como refere JOSÉ
BARRIAS, todo este capítulo concretiza um dos principais objetivos do Estatuto de alargar
esta proteção social nas situações de maior precariedade do setor da cultura, como são exemplo
os contratos de trabalho de muita curta duração e o exercício da atividade em regime de
prestação de serviços25. Porém, há que ressalvar que este regime especial apenas á aplicável
aos profissionais da área da cultura com inscrição válida no Registo dos Profissionais da Área
da Cultura (RPAC)26. Este regime, concretiza-se, entre outras medidas: na criação do Subsídio
por Suspensão da Atividade Cultural, com o objetivo de garantir um rendimento adequado aos
trabalhadores da cultura em períodos de suspensão involuntária da sua atividade profissional
(artigos 56.º a 73.º); na criação do Fundo Especial de Segurança Social dos Profissionais da
Área da Cultura para a gestão administrativa e financeira do Subsídio mencionado (artigos 34.º
e 35.º); e na definição do regime de proteção social específico aplicável aos profissionais com
um contrato de trabalho de muito curta duração (artigos 41.º a 46.º) e de aos de regime de
trabalho independente (artigos 47.º a 55.º) 27. Coloca-se a questão de qual o regime aplicável a
quem não estiver inscrito no RPAC. Estes continuam abrangidos pelos regimes de proteção
social estabelecidos no Código Contributivo e não o regime especial previsto neste Estatuto 28.
Por último, a proteção dos direitos morais, particularmente dos autores, à protegida, à
semelhança dos direitos patrimoniais, pelo já referido CDADC. Assim, diz-nos o artigo 9.º, nº3
que, independentemente desses direitos patrimoniais sobre a obra, “o autor goza de direitos
morais sobre a sua obra, designadamente o direito de reivindicar a respetiva paternidade e
assegurar a sua genuinidade e integridade.” Sendo estes direitos intrínsecos ao autor e à sua
personalidade, “não podem ser objeto de transmissão nem oneração, voluntárias ou forçadas,
os poderes concedidos para tutela dos direitos morais, nem quaisquer outros excluídos por lei.”,
como determina o artigo 42.º do Código, sob a epígrafe “Limites da transmissão e da oneração”.
Mais adiante no CDADC, o Capítulo VI trata de regular especificamente deste género de
direitos. A ideia já apontada do carácter pessoal dos direitos do autor é corroborado pelo artigo
56.º, nº 2 que estipula que “este direito é inalienável, irrenunciável e imprescritível,
perpetuando-se, após morte do autor”, nos termos do artigo seguinte quanto ao aspeto
sucessório do exercício dos direitos até a obra ser considerada de domínio público (número 1)
e à defesa da genuinidade e integridade das obras por parte do Estado, particularmente através
25 Anotação de BARRIAS, José, “Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura Anotado, Decreto-lei Nº
105/2021, de 29 de Novembro, com a Redação Conferida Pelo Decreto-lei Nº 64/2022, de 27 de Setembro”,
Editora D’ideias (2023), p. 80
26 Idem, p. 80
27 Idem, p. 80-81
28 Idem, pp. 28, 81
11
do Ministério da Cultura (número 2). É de realçar ainda a disposição relativa aos autores
incapazes que indica que estes podem exercer os seus direitos morais sobre o seu trabalho,
desde que tenham “entendimento natural” para tal, isto é, sejam suficientemente capazes de os
entender e exercer de forma adequada (artigo 69.º do CDADC).
p. 290
12
que uma decisão judicial pode recusar a aplicação de uma lei por esta ser inconstitucional” 32),
a jurisprudência mantém neste sistema o papel de grande importância e relevância,
principalmente no que diz respeito ao conceito de precedente judicial e do princípio stare
decisis, ou seja, “a regra de Direito aplicada por um tribunal na decisão proferida em
determinado caso deve ser observada subsequentemente em casos análogos, constituindo um
precedente vinculativo para os tribunais inferiores”. Realça-se, deste forma, a expressão
deveras acentuada das decisões jurisprudenciais para o tratamento de questões como aquela
que irei tratar de seguida e ao longo deste ponto.
32 Idem, p. 318
33 J. FISHMAN, James, “The Emergence of Art Law - Cleveland State Law Review” (1977), p. 482
34 Idem, p. 482
35 Idem, p. 483
13
que os artistas pudessem possuir direitos pessoais e morais sobre o seu trabalho que
transcendessem ou sobrevivessem aos seus direitos de propriedade.” 36.
É, contudo, importante destacar um dos mais relevantes atos de resposta à necessidade
de apoio dos artistas na América, o Volunteer Lawyers for the Arts (VLA) de 1969. Este
projeto, que dura até aos dias de hoje, foi fundado em Nova Iorque com o objetivo de
providenciar assistência e representação legal gratuita a centenas de artistas e organizações
artísticas, o que agora se traduz no apoio de vários milhares por diferentes regiões e cidades ao
longo de aproximadamente doze Estados 37. Este movimento foi crucial ao desenvolvimento de
novas cadeias de representação dos artistas americanos, com o foco principalmente nas suas
necessidades como trabalhadores de uma área com determinadas particularidades e carências
que necessitam de assistência e apoio governamental.
Por último, cabe-me mencionar ainda a Multiple Dwelling Law de 1978 no contexto da
exigência na criação de instalações de trabalho e de hospedagem suficientes e adequadas à vida
e ofício dos profissionais da cultura e das artes nos Estados Unidos. Foi aprovada, então, em
Nova Iorque novamente, esta Lei que “providenciou para as necessidades especiais dos
artistas” 38 que permitiu a estes a vivência e desenvolvimento profissional no mesmo espaço
na área de Soho.
36 Tradução livre de J. FISHMAN, James, “The Emergence of Art Law - Cleveland State Law Review” (1977),
p. 490: “Until 1977 American law had not recognized that artists might have a moral or personal right in their
work which transcended or outlasted their ownership right.”
37 Idem, p. 487
38 Tradução livre de J. FISHMAN, James, “The Emergence of Art Law - Cleveland State Law Review” (1977),
14
categoria em que são incluídas pinturas, desenhos, esculturas ou fotografias de uma “estatura
reconhecida” 39. Este é, como desenvolverei de seguida, o único ato legal dos Estados Unidos
que trata da matéria dos direitos morais dos artistas, neste caso dos artistas plásticos. Todavia,
foi de grande importância, porque estabeleceu a diferenciação entre os direitos de ownership
(propriedade) e copyright (autorais) do trabalho artístico e os direitos que dizem respeito ao
próprio indivíduo criador e que, por essa razão, não podem ser alienados, ao contrário do que
acontece com os primeiros direitos referidos 40. Este “act” trata ainda de consagrar que os
direitos morais são não-transferíveis e apenas podem ser exercidos pelo próprio artista,
caducando com a morte do mesmo ou, no caso de um trabalho desenvolvido em conjunto, com
a morte do último artista sobrevivo 41.
O US Digital Millennium Copyright Act42 (ou DMCA) trata-se de uma lei federal de
1998 destinada à proteção dos direitos autorais de potenciais furtos online, isto é, da reprodução
ou distribuição ilegal do trabalho de outrem. Esta é aplicável, naturalmente, a qualquer obra
que esteja sujeita às regras do copyright. O DMCA veio implementar dois tratados
internacionais de 1996 da World Intellectual Property Organization (WIPO), o WIPO
Performances and Phonograms Treaty, que os EUA ratificaram. Tendo sido uma das obras
legislativas mais relevantes para a regulação atualmente conferida aos direitos de autor e de
propriedade dos artistas dos EUA (em termos federais), este ato, assim como tantos outros,
vieram essencialmente demonstrar a hegemonia dada pelos Estados Unidos a este tipo de
direitos em detrimento dos direitos pessoais e morais dos artistas. Irei desenvolver esta questão
um pouco mais no ponto seguinte.
No que diz respeito à área das artes do espetáculo, o Screen Actors Guild-American
Federation of Television and Radio Artists (ou SAG-AFTRA) é um sindicato estadunidense
criado em 2012 cujo propósito se prende na representação de atores de cinema e televisão,
jornalistas, músicos e cantores, modelos, entre outras personalidades associadas a este meio.
Fundada através da fusão entre o Screen Actors Guild e o American Federation of Television
and Radio Artists, este sindicato permite que milhares de profissionais da cultura vejam o seu
trabalho regulado sob uma jurisdição 43, o que permite que estes tenham uma maior segurança
e estabilidade nesse sentido. O sindicato destina-se ainda a negociar os melhores salários,
condições de trabalho e benefícios de saúde e pensão, a preservar e expandir as oportunidades
39 Tradução livre do artigo do New York Law Journal, “When Art Meets Building: A Primer on the Visual
Artists Rights Act” (2014), p. 1
40 FORSCHER, Sharon, “The Visual Artists Rights Act of 1990” (2008), no âmbito do projeto Volunteer
15
de trabalho dos seus membros e a proteger os mesmos contra usos não autorizados do seu
trabalho44.
16
quantitativa e qualitativamente distintas. Isto impede que um dos coautores em questão possa
intentar uma ação contra o outro coautor, porque a “it is not possible to infringe one's own
copyright.” 48. Tal significa que um coproprietário poderá utilizar a obra conjunta para si
mesmo ou licenciar o seu uso a terceiros sem a necessidade do consentimento do coautor,
apenas tendo que lhe prestar contas posteriormente. Apesar de ter sido discutido judicialmente
que não fosse necessária a prestação de contas caso o coautor apenas utiliza-se diretamente o
trabalho conjunto, os tribunais americanos têm decidido no sentido de afirmar esta obrigação,
mesmo nos casos de uso direto49, o que parece ser o mais adequado e seguro jurídica, judicial
e intelectualmente mais seguro e estável para os autores em questão.
Quanto ao ramo da proteção social, um questionário realizado em 2013 pela Future of
Music Coalition (infelizmente já não disponível para consulta) que interrogou 3,400 artistas
com sede nos Estados Unidos por variadas disciplinas, tais como a dança, teatro, música, artes
visuais e produtores, revelou que 43% dos respondentes não tinham cobertura de seguro de
saúde, tendo 88% reportado que tal se devia à falta de acessibilidade de custos como a razão
primária para tal50. Apesar da existência de entidades como a Entertainment Community Fund 51
(antiga The Actors Fund) que se dedicam ao apoio social e financeiro dos artistas das mais
variadas áreas da cultura graças à compreensão essencial das exigências especificas que este
meio acarreta para aqueles que dele dependem, a carência no acesso a uma proteção social
acarreta não só dificuldades para estes trabalhadores em preservar e salvaguardar a sua saúde
física, mental e psíquica, como também impacta na sua situação financeira, especialmente
quando estes se vêm obrigados a cobrir os custos necessários para garantirem determinados
cuidados médicos de forma a exercer o seu ofício52.
Por fim, surge a problemática dos direitos morais dos artistas nos Estados Unidos.
Objetivamente, os países da Common Law, leia-se os EUA e o Reino Unido, mostram uma
tendência geral para a não consagração deste tipo de direitos ou, pelo menos, da consagração
dos já mencionados “copyrights” sob uma vertente quase meramente comercial e económica e
não pessoal, que emane da personalidade do seu criador. Este cariz surge associado ao
(teoricamente semelhante) conceito droit d’auteur de origem francesa53. Os sistemas da
Common Law vêm o trabalho artístico como um bem tangível que pertencente ao criador e não
48 Referência feita por MARGONI, Thomas e PERRY, Mark, “Ownership in Complex Authorship: A
Comparative Study of joint Works in Capyright Law” (2011), p. 14
49 Idem, p. 14
50 Tradução livre de INTERNACIONAL LABOUR ORGANIZATION, “Social Protection in the Cultural and
(2013), p. 22
17
como algo pessoal e que o representa como artista e pessoa, apenas como algo passível de ser
vendido, trocado e economicamente valorizado54. O direito moral do autor é considerado um
direito de personalidade ao contrário de um direito de propriedade 55. Tais características
justificam a ausência quase total de legislação que regule este tipo de direitos nos Estados
Unidos, à exceção da já referida e apresentada Visual Artists Rights Act. Para além disso, e
apesar de os tratados que serviram de base ao também já analisado US Digital Millennium
Copyright Act fazerem menção aos direitos morais dos performers, a lei federal estadunidense
não faz qualquer referência aos mesmos 56.
54 Adaptação livre de FIA (International Federation of Actors), “The Moral Rights of Performers – The current
situation on 2013” (2013), p. 22-23: “Common law systems view the artistic work as a tangible asset which
belongs to the creator. It not an embodiment of the creator’s personality, but simply an asset that he owns and
which, like any other asset, can be traded. Copyright is clearly an economic concept.”
55 Tradução livre de J. FISHMAN, James, “The Emergence of Art Law - Cleveland State Law Review” (1977),
p. 490-491: “The moral right of the author is considered a right of personality as opposed to a property right.”
56 Idem, p. 23
18
Lei Fundamental espanhola e é dada uma grande importância à lei como fonte de Direito. A
jurisprudência não é considerada fonte de Direito em Espanha, sendo apenas a lei, o costume e
os princípios gerais de direito considerados como tal pelo artigo 1.º, número 1 do Código Civil
espanhol57. Os pareceres judiciais dos tribunais deste país servem, contudo, para complementar
“o ordenamento jurídico com a doutrina que, de modo reiterado, for estabelecida pelo Supremo
Tribunal ao interpretar e aplicar” as fontes de Direito 58.
I) Diplomas legais
Começando pelo âmbito da propriedade intelectual do artista, cabe referenciar a Ley de
10 de janeiro de 1879 61, sujeita a várias reformulações e revisões ao longo dos anos. A
propriedade intelectual de que aqui se fala abarca duas grandes áreas: os direitos de autor e a
propriedade industrial ou comercial62. De forma muito primária, consagrou-se a noção de uma
proteção das obras literárias, artísticas e científicas ser regerem mediante a legislação relativa
57 https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1889-4763
58 https://e-justice.europa.eu/13/PT/national_case_law?SPAIN&member=1
59 Tradução livre de SÁNCHEZ GARCÍA, Raquel, "La propriedad intelectual en la España contemporánea,
1847-1936" (2001), p. 3
60 SÁNCHEZ GARCÍA, Raquel, "La propriedad intelectual en la España contemporánea, 1847-1936" (2001),
19
aos mencionados direitos de autor, estando estas obras protegidas por citas disposições desde
o momento da sua criação 63. Posto isto, a Ley de 1879 representou um importante marco
histórico nesta área, servindo de impulsionadora ao desenvolvimento de novas e mais
completas formulações. Assim como a legislação espanhola em geral na altura, o diploma
pecava por fornecer um conceito indefinido do que poderia significar o conceito de
“propriedade intelectual”. Até 1889, a lei previa única e exclusivamente a posse de coisas
materiais e tangíveis, apenas havendo uma consagração dos “direitos de personalidade” na
esfera autoral posteriormente e pela influência da dogmática alemã, particularmente de Otto
von Gierke64. Duas das formulações mais importantes deste diploma legal foram a criação do
Registo de la Propriedad Intelectual nos termos do artigo 33 e a extensão do reconhecimento
dos direitos autorais aos herdeiros do artista. Quanto ao primeiro aspeto, o Registo contribuiu
para que regularmente, nas bibliotecas providenciais, se anotassem por ordem cronológica as
obras científicas, literárias ou artísticas que caíssem no âmbito de aplicação da Ley. As
produções artísticas, como esculturas e pinturas, estavam dispensadas desta obrigação 65. A
segunda questão reveste uma disposição muito vantajosa para os autores, no sentido em que
"punha a salvo as duas produções e reconhecia os direitos dos seus herdeiros” 66, considerando
que, nos termos do artigo 6 da Ley de 1879, este tipo de direitos sobrevive ao seu primeiro
titular (o criador da obra em questão), sendo transmitido para os seus herdeiros, sejam eles
testamentários ou legatários, por um período de 80 anos.
O Real Decreto Legislativo 1/1996, de 12 de abril 67 veio aprovar o texto consolidado
da Lei de Propriedade Intelectual, regularizando, esclarecendo e harmonizando as disposições
legais vigentes à data sobre a matéria, suplantando a anterior Ley de 1879. Esta obra legislativa,
para além de fornecer um enquadramento jurídico mais completo e percetível aos direitos a
esta matéria associados, cobre uma vasta gama de direitos de propriedade intelectual, incluindo
patentes, copyrights, marcas registadas dos artistas, entre outras questões de igual relevância.
Um dos pontos de maior inovação deste diploma em relação ao anterior que lhe serviu de base
foi o reconhecimento dos direitos morais (para além dos comerciais e de propriedade física)
dos autores da literatura, arte e trabalhos científicos, nomeadamente nos termos do artigo 14.
Esta havia sido, até então, uma questão negligenciada pela lei espanhola, apesar de neste
diploma ainda não existir uma noção totalmente presente da dimensão pessoal, íntima e
63 Idem, p. 1
64 Adaptação do conteúdo da nota de rodapé 23 em SÁNCHEZ GARCÍA, Raquel, "La propriedad intelectual en
la España contemporánea, 1847-1936" (2001), p. 17
65 SÁNCHEZ GARCÍA, Raquel, "La propriedad intelectual en la España contemporánea, 1847-1936" (2001),
p. 18
66 Idem, p. 19
67 https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1996-8930
20
intrínseca à pessoa do artista dos direitos morais. Falarei, então, no ponto seguinte, sobre a Ley
2/2019, de 1 de março que confere algumas disposições mais atuais sobre esta temática, que
desenvolverei adequadamente.
O Real Decreto Ley 2816/1982, de 27 de agosto (com atualizações conferidas pelo Real
Decreto 314/2006, de 17 de março) que aprova o Regulamento Geral de Polícia de Espetáculos
Públicos e Atividades Recreativas 68, vem regular algumas questões relacionadas com a
produção e organização de espetáculos e outros estabelecimentos destinados ao público. Realço
as disposições dos artigos 55 e 57 que dizem respeito, respetivamente, às proibições impostas
aos "actores, artistas, deportistas y ejecutantes de la atividad recreativa”, cuja definição é dada
pelo antigo 54, e ao limite máximo de idade de admissão dos artistas de qualquer sexo. Entre
as proibições destacadas pelas alíneas do artigo 55 menciono o impedimento de se negar a
atuar, salvo por causa legítima e por razões de força maior devidamente justificadas (alínea c))
e da alteração por vontade própria do conteúdo da sua atuação, salvo se haja acordo do autor,
diretor ou árbitro e não ultrapasse essa modificação a “ordem moral e socialmente admitida”
(alínea d)). Considero curiosa a formulação desenvolvida nesta disposição, particularmente a
consagração de uma cláusula proibitiva desta natureza sobre a faculdade de um artista ou
profissional da área recreativa se negar (ou não o poder fazer, neste caso) a atuar. Não
parecendo demasiado drástica e servindo de um mecanismo de maior segurança e estabilidade
na produção artística nesse sentido, esta parece dar aso a menos acontecimentos inesperados
não atempadamente justificados (salvo casos extremos). Por fim, a questão do estabelecimento
da idade máxima dos artistas e demais nos 16 anos para trabalhos diurnos e nos 18 anos para
trabalhos noturnos, em virtude de “razões de proteção da infância e juventude”, parece-me
muito pertinente, mas não de forma geral e totalmente imperativa, admitindo que poderia ter
sido considerada uma cláusula que determinasse a possibilidade de menores de 16 anos
desenvolverem este tipo de atividade, desde que devidamente autorizado pelos maiores por si
responsáveis e com a devida precaução e averiguação de uma não utilização do menor para
ganhos próprios pelos mesmos (ou seja, sempre em virtude da vontade e bem-estar do menor).
68 https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1982-28915
21
A Unión de Actores y Actrices é um sindicato profissional e independente criado a 1986 com
o intuito de representar os artistas da área do espetáculo, criar um espírito de união entre
indivíduos com as mesmas reivindicações profissionais, laborais e culturais e lutar pela
proteção máxima da “dignidade da profissão”, procurando “a criação de uma sociedade mais
justa e de uma cultura livre e não dirigida” 69. Esta União, na esteira do preconizado pela
UNESCO em 198070, dirige a sua atividade através de três linhas essenciais, a saber: o modelo
fiscal, no sentido da procura por um regime fiscal adequado à atividade artística que
“contemple anos financeiramente bons, compensando anos menos rentáveis” 71; a proteção
social, através da defesa do modelo de intermitência de forma a permitir que os artistas tenham
os seus rendimentos seguros e podem aposentar-se da sua atividade profissional com a
salvaguarda de uma “pensão digna” 72; e, por último, a representatividade sindical e ação
política e institucional, com o objetivo último de “reforçar a negociação coletiva” 73 e de
assegurar o cumprimento adequado das disposições legais e normativas correspondentes ao
âmbito de trabalho, assim como das políticas culturais nacionalmente desenvolvidas.
Também a Sociedad de Artistas, Intérpretes o Ejecutantes (ou AIE), oficialmente criada a 1989,
procurou desenvolver como objetivo primeiro a gestão e proteção dos direitos de propriedade
intelectual dos artistas, particularmente da área musical 74. Rege-se, portanto, com base na Ley
de Propriedad Intelectual de 1987 que, como já apontado e será ainda desenvolvido no ponto
seguinte, sofreu variadas alterações ao longo dos anos. Para além da referida gestão e proteção
dos direitos artísticos, a AIE fornece ainda treino, apoio e recursos aos seus membros
integrantes de forma a apoiá-los no desenvolvimento das suas carreiras. A busca pelo
tratamento condigno e a defesa de uma compensação adequada destes trabalhadores pelo seu
trabalho é uma linha condutora recorrente neste tipo de associações.
69 https://www.uniondeactores.com/index.php/la-union/conoce-la-union
70 Referência feita por PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto Profissional do Artista - Regime Laboral e
de Segurança Social”, Fundação GDA (2018), p. 49
71 Idem, p. 49
72 Idem, p. 49
73 Idem, p. 49
74 https://www.aie.es/aie/que-es-aie/
22
Assim sendo, começarei por falar sobre o Real Decreto 2621/1986, de 24 de diciembre75
que sofreu algumas alterações em determinados artigos ao longo de 1990, 1996 e 2015. Este
Decreto procede à aprovação dos Regimes Especiais de Segurança Social dos Trabalhadores
Ferroviários, Jogadores de Futebol, Representantes de Comércio, Toureiros e Artistas, sendo
ainda responsável pela integração do Regime dos Escritores de Livros e do Regime Especial
de Trabalhadores por Conta Própria ou Autónomos no Regime Geral de Segurança Social. A
necessidade de aprovação deste diploma surge, essencialmente, associado à necessidade de
ajustar determinadas particularidades de determinadas áreas e da noção de que estes setores de
atividade não poderão ser regidos por um sistema geral “one size fits all”, porque simplesmente
não seria comportável. Assim sendo, como refere AUGUSTO PEREIRA PORTELA, as
especialidades aplicáveis aos artistas neste campo da proteção dentro do Sistema de Segurança
Social procuram “sanar uma situação precária, onde períodos alternados de desemprego e a
pluralidade de empregadores definem a singularidade deste grupo”. Todavia, e apesar desta lei
determinar sistemas especiais de remuneração e regularização das contribuições de artistas, o
que é muito importante, o sistema espanhol pecava ainda por não colmatar certas
incongruências legislativas e de regime entre, por exemplo, os artistas e o pessoal técnico e
auxiliar. A título de exemplo, no que diz respeito às normas de quotização, enquanto os artistas
e pessoal técnico e auxiliar do cinema são regulados por disposições especiais, os técnicos e
auxiliares do teatro não gozam do mesmo sistema, podendo existir, assim, uma equipa em que
coexistem profissionais com as mesmas funções, mas sujeitos a regimes de naturezas
distintas 76. Podemos dizer então que nesta altura, “o direito espanhol carece de um estatuto
geral do artista ou do criador cultural e deveria ser responsabilidade do legislador o
desenvolvimento de medidas legais que aprofundem de forma uniforme esta questão” 77.
A Ley 2/2019, de 1 de marzo78 veio modificar o texto revisto da supramencionada Ley
de Propriedad Intelectual, aprovada pelo Real Decreto Legislativo 1/1996, de 12 de abril. A
novidade que a aprovação deste diploma veio trazer ao ordenamento jurídico espanhol foi a
integração no mesmo de Diretivas da União Europeia, nomeadamente a Diretiva 2014/26/UE
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014 79 e a Diretiva (EU)
2017/1564, igualmente do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de setembro de 2017 80.
75 https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1986-33763
76 PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto Profissional do Artista - Regime Laboral e de Segurança
Social”, Fundação GDA (2018), p. 105
77 Tradução livre da citação de SONIA MOLINA apud PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto
Profissional do Artista - Regime Laboral e de Segurança Social”, Fundação GDA (2018), p. 106
78 https://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-2019-2974
79 https://eur-lex.europa.eu/legal-
content/EN/TXT/PDF/?uri=CONSIL:ST_5084_2016_INIT&qid=1682777314635
80 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32017L1564
23
As transposições destes atos derivados de Direito da União vieram afetar principalmente
disposições relativas à regulamentação de entidades de gestão coletiva dos direitos de
propriedade intelectual, mas também normas específicas, como a que possibilita o
encerramento de páginas web que infrinjam determinados direitos de propriedade intelectual
sem a necessidade de requerer uma autorização judicial para tal. Contudo, a reforma mais
importante e também marcante do próprio ordenamento jurídico espanhol foi a integração
definitiva das disposições do Tratado de Marrakesh de 2013 que diz respeito à facilitação de
acesso a trabalhos publicados para pessoas cegas, com deficiência visual ou outra incapacidade
de acesso aos mesmos. Especificamente, através deste Tratado e da sua adoção pela legislação
de Espanha, foi permitida a conversão para formato de áudio e outros formatos digitais das
obras contidas em bibliotecas, arquivos e museus. Esta adaptação foi extremamente relevante
e necessária, pois possibilitou que os artistas invisuais (mas também indivíduos não
necessariamente ligados à atividade) pudessem mais facilmente aceder às obras publicadas e
desenvolver, por conseguinte, a sua própria atividade de forma segura e estável.
Por fim, o Real Decreto-ley 1/2023, de 10 de enero 81 que veio consagrar o,
popularmente, conhecido como o “Novo Estatuto do Artista” espanhol. O que este diploma
veio trazer de essencial foram determinadas medidas de urgência em matéria de incentivos à
contratação laboral e melhoria da proteção social das “personas artistas”. Uma dessas medidas
trata-se da aprovação do primeiro subsídio especial de desemprego para o setor cultural e
artístico, aplicado a profissionais seja da área cénica, audiovisual ou musical, assim como aos
técnicos e auxiliares necessários para o desenrolar de ditas atividades. Este benefício adapta-
se à situação intermitente desta atividade e é compatível com os rendimentos que derivam de
outros direitos destes trabalhadores, nomeadamente dos seus direitos de propriedade intelectual
e de imagem82. É garantida ainda aos artistas abrangidos por esta legislação (profissionais
comprovados como estando em situação legal de desemprego e que apresentem 60 dias
contabilizados de prestações de serviço na área artística nos 18 meses antecedentes) uma maior
compatibilidade da aposentadoria com os rendimentos derivados do trabalho criativo e
artístico83, nomeadamente através do artigo 249 quater da lei. A última medida que irei destacar
especificamente deste diploma, antes de proceder à delimitação específica da forma como os
vários âmbitos de proteção destes profissionais são garantidos no ordenamento espanhol, é o
aperfeiçoamento da proteção social dos artistas com baixos rendimentos, integrados no
81 https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2023-625
82 GARRIGUES, “El nuevo Estatuto del Artista incluye novedades sobre jubilación, desempleo y protección
social” (2023) (https://www.garrigues.com/es_ES/noticia/nuevo-estatuto-artista-incluye-novedades-jubilacion-
desempleo-proteccion-social)
83 Idem
24
Régimen Especial de Trabajadores Autónomos (ou RETA). No âmbito desta reforma, é
permitido que o trabalhador independente paga uma quota mensal mais reduzida e, para além
disso, abre a possibilidade, a pedido do interessado, do prazo de pagamento das parcelas seja
trimestral e não mensal84, contribuindo, também isto, para a maior proteção social e tributária
dos artistas com determinados desafios.
84 Ibidem
25
pedidos desta classe de trabalhadores cuja profissão, como também já mencionado, se
caracteriza pela instabilidade, descontinuidade e intermitência. Isto torna, factualmente, os
artistas e profissionais da área da cultura e das artes vulneráveis a determinadas ameaças em
termos de proteção social e económica se não existir um devido e justificado apoio aos
mesmos. A título de exemplo, o artigo 14 do Real Decreto-ley 1/2023, de 10 de enero, que
consagra a atribuição de um bónus pela contratação por prazo indeterminado de pessoas com
capacidade intelectual limitada (âmbito destes indivíduos definido pelo art. 2 do Real Decreto
368/2021, de 25 de mayo) aponta precisamente no sentido da avaliação e reconhecimento de
determinadas doenças que, mesmo não estando necessariamente ligadas ou não sejam
necessariamente patologias derivadas de atividades específicas do setor cultura, merecem
igualmente um tratamento específico para as mesmas.
Por último, mas não menos importante, os direitos morais em Espanha são, referido supra,
também estes abrangidos pela Ley de Propriedad Intelectual. A ideia fundamental deste
género de direitos é a sua natureza inalienável e irrenunciável, tendo esta noção várias
concretizações. É garantido ao autor que este publique as suas obras como e se o quiser fazer,
que o faça através do seu nome ou não, que seja reconhecido como autor que é, que exija o
respeito adequado pela integridade da sua obra, impedindo deformações ou ataques à sua
imagem pessoal ou do seu trabalho, que a modifique e que a elimine ou retire do comércio, se
assim for a sua vontade. Em Espanha, os direitos morais são considerados como separados
dos direitos económicos à obra, relacionado com a já referida exploração da mesma. Assim,
há notoriamente uma maior tutela destes direitos neste ordenamento do que no estadunidense.
5. Apontamento crítico-comparativo
Depois de expostos os regimes presentes nos vários ordenamentos quanto aos direitos
e estatuto conferidos aos artistas e profissionais da área da cultura e das artes, irei de forma
comparativa analisar os três em vários aspetos.
No que diz respeito à existência ou não de um Estatuto, seja ele “nacional” ou
“federal”, o facto de, no ordenamento estadunidense, não existir um diploma único que se
intitule como Estatuto ou que regule os direitos e aspetos particulares desta profissão pouco
ortodoxa e apenas vários "Acts” dispersos sobre variadas matérias não dá a segurança
necessária a estes profissionais. Em Portugal, com a aprovação deste recente Estatuto dos
Profissionais da Área da Cultura, procurou-se precisamente criar um núcleo bem
sistematizado e seguro destes direitos e garantias, assim como, mencionado anteriormente,
tornar a legislação mais abrangente. Apesar de tudo, não chegámos ainda ao ponto ideal, ou
26
mesmo suficiente. Este Estatuto não é ainda capaz de acautelar a proteção no desemprego,
por exemplo, para quem trabalha durante diferentes períodos de tempo para diferentes
empregadores ou até mesmo através de diferentes modalidades85. Apesar disto e de algumas
omissões e insuficiências do diploma, o caminho que já foi conquistado até agora é inegável e
há que admitir que foram reconhecidos certos problemas inerentes à área artística. Em
Espanha, o também recente Estatuto do Artista revela bastante semelhanças com o nosso
Estatuto, mesmo em termos de objetivo central do diploma. Este consagra, como foi visto,
várias medidas de urgência em termos de proteção social e melhoria das condições de
contratação. O que vem trazer de diferente em relação ao Estatuto português é uma maior
preocupação e abrangência de disposições relativas ao desemprego dos artistas e a proteção
de que estes necessitam face a essa situação delicada.
Quanto aos âmbitos de aplicação e dos direitos consagrados, a maior diferença que
salta à vista entre os ordenamentos analisados é a discrepância na consagração e importância
dos direitos morais. Tanto em Portugal como na Espanha, há uma preocupação com a defesa
dos direitos morais pessoais, intrínsecos, alienáveis e inalteráveis, principalmente no âmbito
dos direitos do autor, tanto que foram consagrados um Código e uma Ley, respetivamente. Os
direitos intelectuais e da moral do próprio criador advém da simples qualidade de autor de
determinadas obras artísticas e surgem no âmbito da proteção intelectual das mesmas. Já nos
Estados Unidos, como também já foi referido, há uma grande carência quanto à
regulamentação dos direitos morais, apenas existindo, a nível federal, um “act” que se ocupa
de tal matéria, o Visual Artists Rights Act, sendo que mesmo este se destina a apenas uma
parcela relativamente pequena no oceano de modalidades artísticas e de artistas existentes
neste país e em todo o mundo. O que predomina neste ordenamento é, contudo, as entidades
sindicais que se dedicam quer à proteção intelectual das obras de arte, quer à defesa das
reivindicações sociais dos artistas, quer ainda da defesa destes mesmos direitos morais dos
mesmos. São várias, pelo que apenas referi desenvolvidamente algumas das mais duradouras
e importantes associações.
Para terminar, também a altura em que este tipo de direitos e questões começam a ser
regulados nos vários ordenamentos é relevante de ser mencionado. O país, segundo a minha
pesquisa, no qual estas disposições começaram mais cedo a ser desenvolvidas, mesmo que de
uma forma bastante arcaica, foi a Espanha. Desde o século XIX que se sentia a necessidade
de regular a propriedade intelectual dos artistas, seja através do direito de este possuir,
alienar, destruir, por aí em diante, as suas obras ou o direito inerente a si e próprio do seu
85https://www.publico.pt/2022/01/08/culturaipsilon/opiniao/estatuto-profissionais-area-cultura-conseguimos-
compromissos-faltam-1991161
27
ofício. Em Portugal, essa maior preocupação iniciou-se no mundo dos espetáculos públicos,
nos anos 20 do século XX. Já nos Estados Unidos, a maior atenção prestada pelos
investidores nas artes de galeria e museu surge no âmbito também já explicitado do pós-
Segunda Guerra Mundial com o aumento do interesse neste género de cultura.
6. Conclusão
Para concluir este trabalho, irei proceder a uma pequena síntese comparativa, terminando
com a indicação de qual dos regimes considero o mais adequado ou qual a conjugação que
considero que criaria o formato mais completo e garante das reivindicações extremamente
apropriadas dos artistas. A título finalístico, apresento ainda a grelha comparativa deste
trabalho.
86 MOURA VICENTE, Dário, "Direito Comparado", Vol. I, 4ª Edição, Revista e Atualizada, Almedina (2019),
p. 197
28
a nível federal, não desfazendo as leis nacionais que existem em cada Estado e que ajudam a
colmatar, algumas delas, lacunas e hiatos que existam ou mesmo que facilitem a adaptação às
próprias realidades de cada Estado. Não considero, mesmo assim, este o melhor modelo para
a proteção suficiente e cautelosa dos direitos, garantias e reivindicações dos profissionais da
área das artes e da cultura, assim como dos técnicos e auxiliares que permitem que a arte
chegue a nós como chega.
Direito e Estatuto
dos Artistas Portugal Estados Unidos Espanha
(Grelha da América
Comparativa)
Código do Direito do
Autor e dos Direitos Não há proteção moral Ley 2/2019, de 1 de
Conexos, aprovado pelo (à exceção do Visual marzo (Ley de
Âmbito da proteção
Decreto-Lei nº 63/85 de Artists Rights Act de Propriedad Intelectual)
moral/intelectual 1985: arts. 9.º/3; 42.º, 1969)
56.º/2
29
Decreto-lei nº 105/2021,
29 de novembro (Estatuto
dos Profissionais da Área Não é uno (existência Ley 2/2019, de 1 de
da Cultura) e Código do de várias leis federais marzo (Ley de
Regime(s) legal que abordam o tema). Propriedad Intelectual
Direito do Autor e dos
aplicável atualmente Não há estatuto dos atual) e Real Decreto-ley
Direitos Conexos (ou
CDADC), aprovado pelo artistas. 1/2023, de 10 de enero
Decreto-Lei nº 63/85 de
1985
30
7. Referências bibliográficas:
- COMISIÓN SECTORIAL DE INVESTIGACIÓN CIENTÍFICA, “Análisis de la
Propriedadad Intelectual en la Universidad de la República” (2015)
- DRAY, Guilherme e BARRIAS, José, “Estatuto dos Profissionais da Área da
Cultura Anotado, Decreto-lei Nº 105/2021, de 29 de Novembro, com a Redação
Conferida Pelo Decreto-lei Nº 64/2022, de 27 de Setembro”, Editora D’ideias
(2023)
- FIA (International Federation of Actors), “The Moral Rights of Performers – The
current situation on 2013” (2013)
- FORSCHER, Sharon, “The Visual Artists Rights Act of 1990” (2008)
- INTERNACIONAL LABOUR ORGANIZATION, “Social Protection in the
Cultural and Creative Sector – Country Practices and Innovations” (2021)
- J. FISHMAN, James, “The Emergence of Art Law” (1977)
- MARGONI, Thomas e PERRY, Mark, “Ownership in Complex Authorship: A
Comparative Study of Joint Works in Copyright Law” (2011)
- MOURA VICENTE, Dário, "Direito Comparado", Vol. I, 4ª Edição, Revista e
Atualizada, Almedina (2019)
- NEW YORK LAW JOURNAL, “When Art Meets Building: A Primer on the
Visual Artists Rights Act” (2014)
- PEREIRA PORTELA, Augusto, “O Estatuto Profissional do Artista - Regime
Laboral e de Segurança Social”, Fundação GDA (2018)
- SÁNCHEZ GARCÍA, Raquel, "La propriedad intelectual en la España
contemporánea, 1847-1936" (2001)
31