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Dicionário da Educação do Campo

rado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia,


Salvador, 2011.´
Wittmann, L. C.; Gracindo, R. V. (org.). O estado da arte em política e gestão da educa-
ção no Brasil: 1991 a 1997. Brasília: Anpae; Campinas: Autores Associados, 2001.

Políticas educacionais neoliberais


e educação do campo
Roberto Leher
Vânia Cardoso da Motta

A expressão “políticas educacio- particularmente, a atuação da iniciati-


nais neoliberais” parece, à primeira va privada e, mais amplamente, do ca-
vista, um contrassenso. Afinal, se neo- pital na educação brasileira – e, a con-
liberal, não deveriam caber medidas do trapelo, as iniciativas dos trabalhadores
Estado para subordinar a educação ao em prol do caráter público da educação
mercado. Contudo, um exame mais sis- estatal, como é o caso da Educação do
temático da questão permite concluir Campo, é importante destacar, inicial-
que o neoliberalismo é, sobretudo, mente, que o neoliberalismo realmente
uma produção que tem muito de es- existente não possui uma conceituação
tatal; por isso, a existência de políticas precisa e consolidada, pois as suas prá-
educacionais neoliberais é cabível e, na ticas não correspondem exatamente
perspectiva dominante, inevitável. Para às que a ideologia neoliberal propaga
compreender esse aparente paradoxo, como doutrina e princípios.
é importante submeter à crítica a au- Em Hayek (1998), a base do libera-
torrepresentação do neoliberalismo se- lismo anglo-saxão, o único que consi-
gundo os seus teóricos. dera genuíno, é a liberdade individual
O termo “neoliberalismo” é recen- dentro da lei. É esse princípio basilar
te, data do ano de 1945, e é utilizado, em que explica o progresso das nações
geral, para denotar a adesão à doutrina prósperas e bem-sucedidas. Para esse
liberal de tradição anglo-saxã que afir- expoente da Escola Austríaca de Eco-
ma ser a liberdade do indivíduo dentro nomia, a vertente racionalista e cons-
da lei a melhor forma de alcançar, por trutivista do liberalismo francês, ao
meio de métodos pragmáticos, a pros- contrário, deturpa o verdadeiro libera-
peridade e o progresso. O cerne dessa lismo, pois, ao preconizar medidas de
noção é a defesa do capitalismo de li- Estado para garantir certa igualda-
vre mercado. O Estado somente deve de social, seja por meio do sufrágio
intervir para restabelecer a livre con- universal seja pela concessão de alguns
corrência econômica e a iniciativa indi- direitos aos trabalhadores, instaura a
vidual. Para compreender o significado ditadura da maioria e configura um Es-
das políticas educacionais neoliberais – tado social hiperdimensionado, buro-

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crático, custoso e ineficiente que acaba reduzisse, exclusivamente, à garantia


por produzir as crises do capitalismo. do mínimo de educação possível para
Desse modo, para o principal propa- os “perdedores”, aqueles que, seja por
gandista do neoliberalismo, é este o sua “natureza humana inferior”, seja
conceito central do liberalismo por algum outro infortúnio, sucumbi-
ram no mercado. Alternativamente, a
[...] sob a aplicação de regras educação em livre metabolismo com
universais de conduta justa, pro- o mercado seria a mais adequada, pois
tegendo um reconhecível do- ensinaria às crianças e aos jovens a vir-
mínio privado dos indivíduos, tude do individualismo e da ordem so-
formar-se-á uma ordem espon- cial competitiva.
tânea das atividades humanas
Contudo, em que pese o fato de en-
de muito maior complexidade do
contrarmos nessas proposições muito
que jamais se poderia produzir
da ideologia neoliberal praticada pelos
mediante arranjos deliberados
governos afins e pelas corporações
[...]. (Hayek, 1998, p. 49)
que atuam direta ou indiretamente na
educação – formar competências para
Eis aqui o fundamento da “mão
o mercado, flexibilização do controle
invisível” do mercado e da crença de
que é a ordem espontânea (o mercado estatal sobre a educação privada, indi-
autorregulável) que produz a sociedade vidualização do ato pedagógico, ava-
mais próspera e complexa. Na ordem de liação tecnocrática para estimular a
mercado, os cidadãos livres interagem competição entre as instituições educa-
naturalmente, sobressaindo-se os mais cionais por meio de rankings, prêmios
capazes, em geral os proprietários – e castigos, educação compensatória
os cidadãos ativos, para utilizar uma elementar (ler, contar e escrever) para
noção kantiana. Os demais, conside- os chamados pobres, associação dos
rados “cidadãos passivos” – mulheres objetivos educacionais com os da go-
e trabalhadores –, devem ser privados
de participação política e econômica
vernabilidade etc. –, é irrefutável que,
mesmo nas experiências neoliberais P
real. A ideologia liberal é refratária, mais ortodoxas, todos reivindicam al-
por conseguinte, ao universalismo e à gum papel do Estado na educação. De
conceituação dos seres humanos como fato, o fundo público é demandado
“seres humanos genéricos”, na qual to- permanentemente pelo setor privado
dos os que possuem um rosto huma- e pelas corporações. Quando a alta fi-
no devem ter igual cidadania política e nança passa a operar também no servi-
econômica. Em outros termos, o libe- ço educacional, a voracidade do capital
ralismo anglo-saxão, tal como definido sobre as verbas educacionais toma pro-
por Hayek, é incompatível com a de- porções ainda maiores, como é possí-
mocracia e com o igualitarismo. vel depreender de programas como o
Nos termos dessa doutrina, seria Fundo de Financiamento ao Estudante
de supor que as políticas neoliberais do Ensino Superior (Fies).
advogariam o afastamento radical do Sobre os nexos capital–Estado, é
Estado da educação, em benefício de preciso recusar a leitura não crítica da
um mercado autorregulável ou, pelo restrição do âmbito do Estado aos orga-
menos, que a atuação do Estado se nismos estatais centralizados que atuam

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com servidores públicos, dirigentes go- A despeito dessa atuação difusa,


vernamentais, leis, normas etc. O capi- não institucionalizada, o capital, em
tal age de modo difuso, por meio de todas as suas expressões – institui-
pressões diretas e indiretas, como as em- ções financeiras, corporações, organi-
preendidas por organismos internacio- zações de diversos tipos etc. –, deseja
nais e agências financeiras que definem, manter relação com os governos para
mediante condicionalidades, o risco chegar ao coração do Estado (a cha-
país, os acordos das relações exteriores, mada área econômica), objetivando
as taxas cambiais, a política de juros, os criar normas que subordinem a edu-
incentivos fiscais etc. Parte relevante cação à lógica do capital. Ademais, é
desse modo de agir do capital é operada indubitável que os representantes do
diretamente pelas frações burguesas capital têm todo interesse em fortale-
locais que manejam o Estado. É isso o cer o papel educador do Estado (em
que explica a força relativa de iniciati- termos gramscianos, no sentido de
vas como o Movimento Compromisso levar aos “quatro cantos” a sua lógica),
de Todos pela Educação, o sujeito de em prol da coesão e do controle so-
maior relevância na definição da agenda ciais em um contexto de permanente
educacional no Brasil de hoje, ou dos “estado de exceção”, para utilizar uma
bancos e dos fundos de investimen- expressão benjaminiana.2 Dificilmen-
tos que estão redefinindo o setor priva- te os padrões de exploração do tra-
do mercantil de educação e até mesmo, balho e de expropriação dos meios
por meio de parcerias público-privadas, de trabalho e de direitos sociais pode-
a educação pública. riam ser manejados com “paz social” sem
De fato, a principal medida edu- esse protagonismo estatal, compreen-
cacional do Governo Lula da Silva, o dido aqui não apenas como sociedade
Plano de Desenvolvimento da Educa- política, mas como Estado integral, do
ção, expressa a agenda dos setores do- qual a sociedade civil é parte decisiva.
minantes, servindo de referência para Pelo exposto, é possível postular
que estados e municípios se lancem em que as políticas educacionais neolibe-
desenfreada corrida rumo às parcerias rais não podem ser confundidas com
público-privadas, principalmente com o livre mercado, pois elas são não
organizações que lideram o referido apenas compatíveis com determinado
Todos pela Educação – como Itaú- grau de ação estatal, como dificilmente
Social, Airton Senna, Gerdau, Roberto poderiam existir sem o Estado, como
Marinho, Vitor Civita, entre outras –, demonstrou de modo preciso Polanyi
mas também com empresas do agro- (2000). Essa proposição é fundamen-
negócio, que implementam, nas esco- tal para a compreensão do modo de
las públicas rurais, sua concepção de agir neoliberal. Porém, é igualmen-
educação e desenvolvimento sustentá- te indispensável não perder de vista que
vel. O referido movimento tem avan- a força determinativa do capital sobre a
çado na política de que já é hora de o educação não se resume ao Estado estri-
Estado abandonar suas escolas públi- to senso, pois o capital opera de modo
cas, ofertando-as à gestão privada, por difuso, mas eficaz, fora da organização
meio das escolas charters e da difusão estatal, como apontado anteriormen-
dos vouchers.1 te. A consequência dessa proposição é

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que, ao contrário da crença comum, o público. Como já salientado, a Consti-


simples fato de o Estado empreender tuição admitiu o repasse de recursos
iniciativas no terreno da educação não públicos apenas para as instituições
assegura, a priori, o abandono de prin- (ditas) sem fins lucrativos (art. 213),
cípios neoliberais. não contemplando as particulares, pre-
Em relação às políticas estatais vistas no artigo 209. Entretanto, o capi-
congruentes com os valores e princí- tal tem a sua própria dinâmica e engen-
pios difundidos pelo neoliberalismo, dra, permanentemente, leis que lhe são
cabe destacar, no plano normativo convenientes. Por isso, não pode abrir
mais geral, as medidas que abrangem mão de assegurar governos permeáveis
as leis maiores, como a Constituição aos seus propósitos. Ao contrário da
Federal: “O ensino é livre à iniciati- crença vulgar do neoliberalismo, o mer-
va privada...” (art. 209); “Os recursos cado é forjado por iniciativas estatais.
públicos serão destinados às escolas pú- O mercado de educação, evidentemen-
blicas, podendo ser dirigidos a escolas te, não é infinito: o ensino médio, por
comunitárias, confessionais ou filan- exemplo, alcança apenas metade dos
trópicas” (art. 213). Também as leis jovens na idade correspondente (15 a
ordinárias, como a Lei de Diretrizes 17 anos). Além disso, a renda demasia-
e Bases da Educação Nacional (LDB) damente concentrada impede a expan-
(lei nº 9.394/1996), contribuem para a são do mercado consumidor das merca-
segurança jurídica dos investidores. Em dorias educacionais.
primeiro lugar, cabe salientar a inversão Certamente, foram demandas do ca-
operada pela LDB na garantia do con- pital que levaram à criação e à descon-
quistado direito à educação: “A edu- certante expansão do Fundo de Fi-
cação, dever da família e do Estado” nanciamento ao Estudante do Ensino
(art. 2º) (Brasil, 1996). Reforçando os Superior. Trata-se de outra forma de
termos do artigo 209 da Constituição, subsídio ao setor privado que, embo-
a LDB propugna que “O ensino é li- ra independente, está cada vez mais
vre à iniciativa privada” (art. 7º) (ibid.) articulada ao Programa Universidade P
e define as categorias das instituições para Todos (ProUni), pois vem sendo
privadas, objetivando garantir o segmen- utilizada para financiar, com juros sub-
to propriamente empresarial (art. 20). sidiados, as bolsas parciais. O subsídio
Também o repasse de verbas para as público se dá por meio do custeio, pelo
escolas privadas foi estabelecido na lei: Estado, dos juros praticados no emprés-
“Considerar-se-ão como de manuten- timo ao estudante, juros que são inferio-
ção e desenvolvimento do ensino as res aos de mercado. Trata-se, por conse-
despesas [...]. VI – concessão de bolsas guinte, de um subsídio implícito.
de estudo a alunos de escolas públicas Esses valores referem-se aos juros
e privadas [...]” (art. 70) (ibid.). subsidiados, mas a eles é preciso acres-
A rápida expansão do setor privado centar a inadimplência, parcialmente
particular com fins lucrativos, a partir coberta pela União. Em 2007, dos 467
dos anos 1990, não teria sido possível mil contratos ativos, 55 mil estavam em
sem as proposições elencadas acima. O atraso, totalizando R$ 498,5 milhões.
capital opera a sua reprodução ampliada O Fies teve uma execução de R$ 685,5
também acessando diretamente o fundo milhões em 2007. O Plano Plurianual

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(PPA) 2008-2011 apontava como meta Como salientado, a compreensão da


do Fies atingir 700 mil beneficiários em mercantilização da educação superior e,
2011, com 100 mil novos beneficiários mais recentemente, da educação tecno-
a cada ano, o que significaria aumentar lógica, que se dá com a criação do Pro-
em quase 50% o número de contratos grama Nacional de Acesso ao Ensino
ativos existentes em 2007. Cabe desta- Técnico e Emprego (Pronatec) – que
car que, ao final do Governo Fernando amplia o ProUni e o Fies à educação
Henrique Cardoso, inequivocamente tecnológica – requer a consideração ge-
comprometido com o setor privado, ral do ProUni. Esse programa foi difun-
o Fies possuía 200 mil contratos. A lei dido exaustivamente pelas campanhas
nº 11.552/2007 (Brasil, 2007) possibi- publicitárias do MEC como o principal
litou o financiamento pelo Fies de até meio de acesso à educação superior dos
100% dos encargos para os estudantes setores das classes populares pertencen-
que são bolsistas parciais do ProUni, tes aos segmentos menos pauperiza-
inclusive para os que possuem bolsa dos. É um extraordinário programa de
complementar de 25% oferecida pelas subsídio público para os negócios pri-
IES participantes desse mesmo progra- vados. Atualmente, apenas pouco mais
ma – o que atesta a complementaridade da metade das vagas anunciadas pelo
dos vários programas (Leher, 2010). ProUni são efetivamente ocupadas. Por
Em um contexto de enorme des- isso, o custo aluno/ano está em torno
compasso entre a oferta da educação do dobro da mensalidade efetivamente
“terciária” privada e o mercado consu- paga pelos estudantes matriculados nas
midor (a concentração de renda no país privadas e que não fazem parte do pro-
não permite ampliar o chamado mer- grama. Ademais, a qualidade desses cur-
cado educacional) e atendendo ao lobby sos, em sua esmagadora maioria, é me-
privado, amplamente engajado na base díocre. Outro aspecto a salientar é que
do Governo Lula da Silva, em maio de os cursos oferecidos são, no geral, os de
2010 o Ministério da Educação (MEC) menor custo relativo. Apenas 0,7% das
ampliou ainda mais o programa de matrículas preenchidas pelo programa
subsídio público, por meio do Fies, às são de Medicina e 0,002% de Geologia
instituições privadas. Entre as princi- (o custo dos cursos de Geologia é eleva-
pais medidas de ampliação, cabe citar do por causa do material de laboratório
a redução da taxa de juros à metade e pesquisa de campo). Ao mesmo tem-
(de 6,5% para 3,4% ao ano), o prolon- po, os cursos de curta duração seguem
gamento do crédito (de 9,5 para 14,5 curva ascendente, ultrapassando 10%
anos) e a instituição de mensalidades das vagas (Brasil, 2009; Leher, 2010).
fixas, independentemente da inflação e Resultou dessas políticas pró-mer-
da taxa de juros real. Seguramente, es- cantis uma extraordinária expansão do
sas medidas, destinadas a compensar setor empresarial de educação supe-
a diferença entre o empréstimo e a taxa rior. Assim, por exemplo, conforme o
de juros real, aumentaram os gastos pú- Censo da Educação Superior do Insti-
blicos. A expectativa do MEC em 2010 tuto Nacional de Estudos e Pesquisas
era investir R$ 1,6 bilhão no programa, Educacionais (Inep), em 2002 havia
subsidiando 200 mil novas matrículas 1.637 instituições de ensino superior
nas instituições privadas (Leher, 2010). no Brasil, das quais 195 eram públicas,

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317 (ditas) sem fins lucrativos e 1.125 e organizações de direito privado sem
particulares (com fins lucrativos). Em fins lucrativos, voltadas para atividades
2008, último ano do Censo Inep em de pesquisa. A propriedade intelectual
que foi feita a discriminação entre pri- sobre os resultados obtidos pertence-
vadas sem fins lucrativos e com fins rá às instituições detentoras do capital
lucrativos, o total de instituições tinha social e não às universidades. Ademais,
subido para 2.252, sendo 236 públicas, os professores universitários podem se
437 (ditas) sem fins lucrativos e 1.579 dedicar às atividades empresariais, des-
particulares (com fins lucrativos) (Ins- vinculando-se de suas obrigações de
tituto Nacional de Estudos e Pesquisas ensino e pesquisa públicos, mas man-
Educacionais, 2009). tendo seus salários pelo Estado.
Porém a mercantilização não se es- Os editais que definem as áreas
gota no suporte financeiro e legal do prioritárias de atuação da universidade
Estado ao setor privado-mercantil; al- são definidos com relevante presença
cança, inclusive, o cerne da educação empresarial. Com isso, o que é dado a
superior: as prioridades de pesquisa, o pensar na universidade é parcialmente
teor do currículo, as formas de avalia- estabelecido pela representação direta
ção e a carreira docente. O principal do capital. Desse modo, as corpora-
ordenamento do Estado que permite ções podem definir linhas de pesquisa
ao capital influenciar diretamente o e prioridades do fazer acadêmico, em
conhecimento produzido ou em circu- detrimento da função social das uni-
lação na universidade é a Lei de Inova- versidades de problematizar as teorias
ção Tecnológica (lei nº 10.973/2004), científicas e de se engajarem na solu-
que estabelece medidas de incentivo à ção dos problemas atuais e futuros dos
inovação e à pesquisa científica e tec- povos. No agronegócio, a presença
nológica no ambiente produtivo, por das corporações difunde, no seio mes-
meio do apoio à constituição de alian- mo da atividade universitária, o modelo
dos transgênicos e, mais genericamen-
ças estratégicas e ao desenvolvimento
de projetos de cooperação envolvendo te, do agronegócio voltado para a ex- P
empresas nacionais, universidades e portação, em detrimento da soberania
centros públicos de pesquisa e funda- alimentar dos povos.
ções ditas de apoio privado nas uni- A admissão das corporações e das
versidades. As universidades podem, parcerias das universidades com as
mediante remuneração e por prazo empresas, por meio dos editais, altera
determinado, nos termos do contrato o lugar dos serviços no fazer universi-
ou convênio, compartilhar seus labo- tário, protegidos que estão dos espaços
ratórios, equipamentos, instrumentos, públicos da universidade em poderosas
materiais e demais instalações com mi- fundações, ditas de apoio, privadas;
croempresas e empresas de pequeno isso possibilita ao capitalismo acadê-
porte, em atividades voltadas à inova- mico assumir um lugar de prestígio e
ção tecnológica, e permitir a utilização de poder na hierarquia interna da uni-
de seus laboratórios, equipamentos, versidade, o que realimenta a força do
instrumentos, materiais e demais ins- referido capitalismo acadêmico.
talações existentes em suas próprias Se, sob o ponto de vista dos seto-
dependências por empresas nacionais res dominantes, não parecem restar

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dúvidas sobre o fato de que eles em- tos, mas o conjunto dos trabalhadores,
preendem intensa luta de classes no como parte do processo de constitui-
campo educacional, sob o ponto de ção da classe nas lutas do presente.
vista dos trabalhadores tal questão está Dilemas estratégicos, contudo, estão
longe de integrar a estratégia de grande longe de terem sido equacionados. Al-
parte dos setores da esquerda socialista. guns movimentos preconizam que a
Com efeito, o objetivo político dos se- educação popular deve ser organizada
tores dominantes ao buscarem subme- fora do âmbito estatal; outros susten-
ter a educação à sua estratégia política tam que a educação deve estar assegu-
vem sendo combatido principalmente rada como dever do Estado, mas que
por movimentos sociais, notadamente não compete ao Estado educar – tarefa
pelos movimentos próximos ao Movi- dos educadores e do poder popular.
mento dos Trabalhadores Rurais Sem O tema é importante, pois confor-
Terra (MST), por sindicatos da educa- ma os arcos de forças das lutas pela
ção autônomos em relação aos gover- educação pública.
nos, pelo Fórum Nacional em Defesa Em relação à estratégia de luta pelo
da Escola Pública entre 1987 e 2005 público, as ações do MST em prol da
e, no caso da educação superior, por educação do campo são as mais mar-
setores minoritários das universidades, cantes do Brasil. Buscando dar um sen-
particularmente pela esquerda estu- tido ao público que recusa a tutela esta-
dantil e pelo movimento docente or- tal, o movimento sustenta um projeto
ganizado no Sindicato Nacional dos ético-político universal que contém as
Docentes das Instituições de Ensino principais marcas da pedagogia socialis-
Superior (Andes-SN). No âmbito latino- ta – como o sentido do trabalho na for-
americano, os mais relevantes movi- mação do ser social e, dialeticamente,
mentos sociais estão tomando para si como forma de alienação a ser superada
as tarefas de formação política de seus nas lutas sociais – sem perder de vista
militantes e de educar suas crianças a particularidade do campo, recusando as
e jovens. É o caso das experiências concepções arcaicas da educação rural
dos zapatistas, com os conselhos de e da educação para o campo.
bom governo (juntas de buen gobierno), Para derrotar a pedagogia pró-
e da Assembleia dos Povos de Oaxaca sistêmica encaminhada pelas diversas
(APPO) no México; da Coordena- expressões do capital, os movimentos
ção Nacional dos Povos Indígenas do que apostam na autoformação da clas-
Equador (Conaie); dos trabalhadores se e na luta pelo público têm amplia-
desempregados e das fábricas ocupa- do seus próprios espaços educativos
das, na Argentina, por meio dos bacha- nos moldes preconizados por Gramsci
relados populares; e do MST, no Brasil, (2000): o “partido” como educador
inscritas nesses processos. coletivo capaz de elevar a consciência
Para alterar a correlação de forças social para o momento ético-político.
com o capital, essas iniciativas de for- Nesse prisma, cada militante tem de es-
mação política e de educação popular tar preparado para ser um organizador
necessitam de um salto de qualidade, da atividade política, potencializando
visando construir processos que en- as ações diretas, a democracia protagô-
volvam não apenas alguns movimen- nica e o debate estratégico.

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Para fortalecer a formação ético- educação pública somente será de fato


política do conjunto da classe traba- pública quando for parte das lutas ge-
lhadora, a Escola do Campo é pensa- rais dos trabalhadores (Leher, 2011).
da como uma instituição educacional No caso brasileiro, as oportuni-
passível de ser forjada como espaço de dades de autoconstrução de espaços
elevada formação – porque omnilateral formativos originais, densos teorica-
(ver Educação Omnilateral) – que as- mente e ousados no enfrentamento
segure a todas as crianças e jovens co- dos problemas estão circunscritas a
nhecimentos e métodos para diagnosti- determinados movimentos, não con-
car e solucionar os grandes problemas figurando um quadro de clara luta de
nacionais e dos povos. O MST sustenta classes no terreno da educação. Os
que não basta garantir o acesso à esco- desafios são políticos, teóricos, orga-
la pública. Urge uma revisão profunda nizativos e pedagógicos. Porém, como
das formas de pesquisar e de produzir lembra Marx, os humanos se colocam
o conhecimento. Sem uma crítica ra- problemas que, potencialmente, po-
dical ao eurocentrismo e à sua forma dem ser resolvidos.
atual – o pensamento único neoliberal –, Em tempos de crise, ocorre uma ace-
a educação serve de arma a favor dos leração do tempo e muitas das fortalezas
setores dominantes. do capital apresentam fraturas. A inves-
A crítica ao capitalismo dependente tigação sobre o modo como os setores
somente será possível fora das teias das dominantes operam a comodificação da
ideologias dominantes. Esse é um de- educação é uma condição para o êxito
safio teórico que não será resolvido da resistência ativa e para forjar a des-
nos espaços intramuros das institui- mercantilização radical da educação pú-
ções educacionais, pois, como subli- blica unitária, pois recusa a disjunção en-
nhou Florestan Fernandes (1989), a tre pensar e fazer, mandar e obedecer.

Notas P
1
O sistema voucher e o modelo de escola charter são mecanismos de repasse de fundos públi-
cos ao setor privado para a gestão de escolas públicas de ensino básico que vêm se generali-
zando nos sistemas educacionais do Chile e dos Estados Unidos, com algumas experiências
similares nas redes de ensino público brasileiro. Os vouchers são subsídios às famílias para
que elas paguem pela educação de seus filhos nas escolas de sua escolha. E as escolas char-
ters são um tipo de financiamento público de abertura de escolas por entidades privadas.
Representam a institucionalização do protagonismo do setor privado na educação pública
e a desresponsabilização do Estado pela educação básica, sob o signo da “autonomia” dos
pais na escolha da escola e da eficiência da gestão privada.
2
Em 1921, Walter Benjamin escreveu o ensaio Zur Kritik der Gewalt (Para uma crítica da
violência) no qual desenvolve, dialeticamente, uma reflexão sobre a violência, construída
com base na ambiguidade da palavra Gewalt, que em alemão designa tanto a violência quan-
to o poder legítimo. Dessa reflexão sobre a pura violência, Benjamin define que vivemos,
como regra geral, num “estado de exceção” (ver Benjamin, 1986 e 1987).

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Dicionário da Educação do Campo

Para saber mais


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