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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HISTÓRIA
DEPARTAMENTO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Beatriz Carvalho de Andrade


Tathiane de Almeida Barbosa Pedro
Tayana Costa de Souza

A Reforma do Novo Ensino Médio: um projeto de uberização do trabalho

Trabalho final da disciplina "Mundos do Trabalho" ministrada pelo Prof. Dr. Norberto Osvaldo
Ferreras

Niterói
2022
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O presente trabalho possui como objetivo analisar a “Reforma do Novo Ensino Médio”
sob a ótica do marxismo, utilizando como referências as obras de Karl Marx, Friedrich Engels,
Antônio Gramsci, Ístvan Mészáros, Ruy Mauro Marini e Florestan Fernandes. Ademais, serão
referenciadas as publicações dos doutores Ricardo Antunes e Vitor Filgueiras, do doutor Luiz
Carlos de Freitas, de Carlos Rodrigues Brandão, e da doutora Acácia Kuenzer. A tese defendida
é a de que a “Reforma do Novo Ensino Médio” possui como objetivo a formação de uma classe
trabalhadora que normalize o trabalho uberizado e precarizado. Além disso, apontaremos a
relação dos reformadores empresariais da educação pública nesse processo.
Inicialmente, é necessário compreender o conceito de educação que mobilizaremos. No
livro “O que é a educação?”, o doutor em Ciências Sociais, Carlos Rodrigues Brandão apresenta
uma análise crítica sobre o conceito de educação e como o ensino se constitui, questionando
se é apenas a escola a responsável por ensinar e o professor o único representante daquele que
“transmite o conhecimento”. A partir desses questionamentos, Brandão demonstra através do
estudo sobre o processo educativo em diversas sociedades, culturas e períodos históricos que,
na verdade, o ato de educar expressa seus interesses dependendo do contexto histórico e social.
Como afirmado pelo autor:
Formas de educação que produzem e praticam, para que elas reproduzam, entre todos os
que ensinam e aprendem, o saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais
de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião, do artesanato ou
da tecnologia que qualquer povo precisa para reinventar, todos os dias, a vida do grupo
e a de cada um de seus sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre os
homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria educação habita, e
desde onde ajuda a, explicar — às vezes a ocultar, às vezes a inculcar – de geração em
geração, a necessidade da existência e sua ordem.
(BRANDÃO, 1989.)

Desse modo, podemos afirmar que não existe um único modelo de educar, nem a insti-
tuição escola e a docência são seus principais representantes. Esse é apenas um modelo, que
faz parte de um momento histórico em que há sociedade com Estado, propriedade privada e
divisão social hierárquica por meio de classes. Logo, no modo de produção capitalista, a divisão
social do trabalho constrói formas diferentes de educar para cada tipo de função na sociedade,
o que representa uma dualidade estrutural entre uma educação voltada para o trabalho manual
ou intelectual, constituindo um processo desigual. Com isso, o autor apresenta os conceitos de
“educação reprodutiva” e “educação transformadora”. A primeira é o processo educativo que
reproduz uma estrutura hierárquica a partir de lógicas desiguais de exploração e opressão, que
teve início com o capitalismo. Já a “educação transformadora” busca reinventar o ato de educar,
subvertendo a divisão social do trabalho em classes sociais, questionando as hierarquias e o
sistema capitalista.
Nesse sentido, como demonstrou o militante comunista e filósofo Antônio Gramsci, a
escola detém um papel fundamental na sociedade de classes, pois, em conjunto com outras
instituições como a polícia, a Igreja, a imprensa e o judiciário, ela buscará conformar a classe
trabalhadora, imprimindo-lhe, ora pelo consenso, ora pela coerção, valores sociais de uma
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sociabilidade à semelhança daqueles que conseguem construir a hegemonia. Por isso, em Gramsci,
o Estado tem o papel de educar as massas consoante a sociabilidade forjada pelos interesses
das classes dominantes, naquilo que ele denominou de Estado-educador1 . Para completar essa
análise, o filósofo Ístvan Mészáros apontou que a educação escolar tem tido como função a
“interiorização” das relações do capital e a normalização desse processo de disciplinamento.
Portanto, a educação formal estatal não é capaz de apresentar uma alternativa emancipadora,
pois, a mesma está atrelada aos interesses do capital.2 Logo, ao relacionarmos os pensamentos
dos três autores- Brandão, Gramsci e Mészáros, podemos concluir que somente através de uma
transformação radical contra a ordem social do capital, será possível romper com o chamado
“Estado-educador”, construindo a “educação transformadora”.
Dessa maneira ao termos compreendido o papel da educação no modo de produção
capitalista, é imprescindível entendermos como opera o capitalismo na sociedade brasileira.
Segundo o sociólogo Florestan Fernandes, o Brasil não é fruto de um antagonismo entre sua
formação “arcaica” herdeira da colônia de exploração e sua formação “moderna” oriunda dos
núcleos urbanos e industriais, ao contrário, na sociedade brasileira há uma relação dialética entre
essas formações. Com isso, no País, conviveram tanto a escravidão quanto o trabalho assalariado,
logo, a burguesia brasileira não possuía um projeto nacional de nação soberana, tratando apenas
de manter o lócus de subordinação e de subdesenvolvimento de nossa economia e sociedade,
impondo ainda projetos políticos baseados na autocracia. Foi esse processo que constituiu o
capitalismo dependente no Brasil.
As elites das sociedades subdesenvolvidas cumprem suas funções históricas inver-
tendo os seus papéis. Em vez de pugnar pela autonomia crescente de suas sociedades
nacionais, agindo como inventores de cultura e de técnicas sociais novas, operam
como agentes e principais responsáveis de uma especialização que converte aquelas
sociedades em consumidoras retardatárias e frustradas do progresso sociocultural
alheio.
(FERNANDES, 2005)

O cientista social Ruy Mauro Marini aprofunda esse tema, demonstrando que as re-
lações sociais de produção no capitalismo dependente possuem como traço fundamental a
superexploração da classe trabalhadora. Esse processo ocorre com o intuito de ampliar a taxa de
extração de mais-valor como forma de reprodução ampliada do capital em seu circuito interno
(frações burguesas brasileiras) quanto no seu circuito externo (frações burguesas internacionais).
Nesse sentido, é para essa classe trabalhadora que a educação reprodutiva da escola pública se
destinará3 .
Todavia, o modo de produção capitalista passa por transformações constantes. Logo,
é primordial compreendermos o cenário atual a partir das novas tecnologias de informação e
comunicação (TICs) e o conceito de uberização do trabalho, para assim entendermos como o
novo ensino médio busca reforçar esse processo. Segundo o sociólogo Ricardo Antunes e o
1 (COUTINHO, 2011)
2 (MÉSZÁROS, 2008)
3 (MARINI, 2005)
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economista Vitor Filgueiras, no contexto da quarta revolução industrial e com o surgimento das
tecnologias de informação e comunicação (TICs), o trabalho passou a ser contratado ou realizado
através dessas tecnologias, podendo ser efetuado digitalmente ou presencialmente. Com isso,
apareceram empresas que se identificam como aplicativos ou plataformas digitais com o intuito
de conectar a demanda de clientes por serviços específicos ofertados por trabalhadores. Portanto,
como apontam Antunes e Filgueiras, a uberização do trabalho é essa expressão de modos de ser
do trabalho que se expandem nas plataformas digitais, sendo individualizadas e invisibilizadas.
Esse processo foi veiculado nas mídias como algo benéfico para o trabalhador por supostamente
facilitar o contato com os clientes e de ser um trabalho com maior autonomia, o que não ocorre
na prática.
A ideia de expansão das oportunidades para pequenos negócios, desenvolvida com a
ampliação das TIC, é também bastante difundida pelo Banco Mundial (World Bank,
2019) e instituições congêneres e apresentada como uma variante de neoempreende-
dorismo. Isso acarretaria, então, uma democratização dos meios de produção (basta
ter um computador/celular, carro ou mesmo bicicleta) para a produção autônoma de
renda, seja como criador, seja como parceiro de uma startup. E o léxico corporativo,
com sua alta dose de mistificação, acrescenta: mais do que nunca, seu sucesso só de-
pende de você. Tendência que se intensifica quando as empresas alegam disponibilizar
aplicativos ou as plataformas digitais para pessoas que querem ofertar e melhorar seus
negócios, engendrando a ideia de que o/as trabalhadores/as são clientes das empresas.
Por exemplo, a Uber afirma que o/as motoristas não são empregados, nem prestam
serviço à empresa, mas sim aos consumidores, de modo que são o/as trabalhadores/as
considerados independentes que contratam os serviços do aplicativo e não o contrário.
Nessa mesma direção, também é comum identificar nos estudos sobre esta temática,
a responsabilização do/as trabalhadores/as pelo sucesso ou fracasso em aproveitar as
“oportunidades” fornecidas pelas plataformas.
Os assim chamados apps e plataformas digitais impõem os/as trabalhadores/as, quase
sempre, o rótulo de autônomo/as, sendo o trabalhador/a remunerado por tarefa ou lapsos
temporais mínimos (como horas), sem qualquer garantia de jornada e de remuneração,
o que acarreta implicações importantes na dinâmica da gestão e controle da força de
trabalho (dada a ausência de compromisso explícito de continuidade).
(FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020)

Nesse sentido, a uberização do trabalho através das novas TICs é responsável por poten-
cializar o lucro das empresas por meio da extração da mais-valia, sofisticando o controle da força
de trabalho, por exemplo, através do registro do tempo de realização de cada tarefa, velocidade
de realização dela, avaliação dos consumidores, tudo sob o comando de algoritmos. Com isso,
podemos concluir que as ideias de liberdade e flexibilidade propagadas pelas empresas são, na
verdade, meios de precarização dos direitos dos trabalhadores, o que, na realidade, configura
um trabalho superexplorado e com intenso controle. Pode-se observar isso a partir de algumas
medidas adotadas por essas grandes empresas de aplicativos e plataformas digitais:
Primeiro: determinam quem pode trabalhar. Se elas são mais ou menos exigentes
na admissão, isso não muda o fato de que as decisões são tomadas segundo suas
conveniências e interesses (estratégias). Os/as trabalhadores/as estão sempre sujeitos à
aceitação do cadastro na plataforma para poder trabalhar.
Segundo: delimitam o que será feito, seja uma entrega, um deslocamento, uma tradução,
uma limpeza, etc. Os/as trabalhadores/as não podem prestar serviços não contemplados
pelas plataformas e aplicativos.
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Terceiro: definem que trabalhador/a realizará cada serviço e não permitem a captação
de clientes. Ou seja, as empresam contratam (ou não) os serviços segundo suas conve-
niências. As avaliações dos clientes são apenas um dos instrumentos para uma decisão
de alocação que é a empresa que realiza.
Quarto: delimitam como as atividades serão efetuadas. Isso ocorre nos mínimos deta-
lhes, seja o trajeto, condições dos veículos, controlando até mesmo o comportamento
do/as trabalhadores/as frente aos clientes.
Quinto: determinam o prazo para a execução do serviço, tanto para as entregas, quanto
os prazos máximos para realização das traduções, projetos e demais atividades realiza-
das.
Sexto: estabelecem de modo unilateral os valores a serem recebidos. Essa é uma
variável-chave, porque os pagamentos são manipulados para dirigir o comportamento
do/as trabalhadores/as.
Sétimo: determinam como os/as trabalhadores/as devem se comunicar com suas ge-
rências. Por exemplo, é vedado a/os entregadores/as acessar o site RECLAME AQUI,
redes sociais, ou quaisquer outros meios que não aqueles estipulados pelas empresas.
Oitavo: pressionam os/as trabalhadores/as para serem assíduos e não negarem serviços
demandados. No site da Uber, por exemplo, explica-se que o/a trabalhador/a poderá ser
desativado se tiver uma taxa de aceitação de corridas menor do que a taxa de referência
da cidade.
Nono: pressionam os/as trabalhadores/as a ficar mais tempo à disposição, através
do uso de incentivos. (. . . ) São comuns as promoções, que atuam como metas com
horários a serem cumpridos pelos entregadores/as, para incitar que trabalhem por mais
tempo.
Décimo: usam o bloqueio para ameaçar os/as trabalhadores/as, o que implica deixá-
lo/as sem poder exercer suas atividades por tempo determinado, por inúmeras razões
arbitrárias, sempre determinadas pelas plataformas.
Décimo primeiro: utilizam a possibilidade de dispensa a qualquer tempo e sem ne-
cessidade de justificativa, sem qualquer espécie de aviso prévio, como um importante
mecanismo de coerção e disciplinamento da força de trabalho.
(FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020)

Sendo assim, os trabalhadores são influenciados pelo discurso de empreendedorismo


e de trabalho autônomo, porém, na realidade o trabalho é rigidamente controlado, com uma
remuneração precária, sem férias, auxílio-doença e demais direitos trabalhistas. Não à toa, os
grandes grupos empresariais propagaram que os direitos dos trabalhadores aumentavam os custos
de contratação gerando desemprego, esse discurso ocorre justamente para enfraquecer a proteção
social da classe trabalhadora enquanto há uma intensificação da extração da mais-valia.
Dessa forma, durante a presidência de Michel Temer ocorreu a promulgação da lei
13.415/2017 que foi responsável pela aprovação da “Reforma do Novo Ensino Médio”, sem
contar com a participação dos docentes, discentes e a comunidade científica nesse processo.
Essa reforma possui como objetivo a implementação de uma organização curricular que admite
diferentes percursos, a partir de, no máximo 1800 horas dedicadas à Base Nacional Comum
Curricular, incluindo a parte diversificada. Assim, o jovem, para “atender seu projeto de vida”,
pode escolher uma entre as diferentes áreas: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas
tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas, e
formação técnica e profissional. Dessarte, como demonstra a doutora em Educação, Acácia
Kuenzer, em seu artigo “Sistema educacional e a formação de trabalhadores: a desqualificação
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do Ensino Médio Flexível”, esse “novo” ensino médio possui como principal consequência o
aligeiramento e a superficialização da formação educacional, dada a redução da carga horária
escolar em 1800 horas com apenas dois componentes curriculares obrigatórios em todo o
percurso- língua portuguesa e matemática.
Ademais, essa flexibilização também significa a redução de investimento público, posto
que, a escolha de um itinerário formativo específico leva à necessidade de um menor número de
docentes, sendo uma forma de resolver, embora de modo equivocado, a crônica falta de docentes
em algumas disciplinas. Como aponta Kuenzer:
Como cada sistema de ensino pode ofertar os itinerários formativos que considerar
adequados segundo as possibilidades estruturais e de recursos das instituições ou redes
de ensino, essa oferta pode se restringir a apenas um itinerário, dentre os menos com-
plexos e, portanto, que consomem menos recursos humanos, materiais e financeiros;
reside aí o caráter redutor de custos. Isso ocorre também pela determinação que a
formação geral básica tem apenas definida sua duração máxima, e não mínima; assim,
os sistemas de ensino têm autonomia para definir a duração dessa formação, que pode
ser inferior a 1800 horas, afastando-se ainda mais da possibilidade de uma educação
integral.
(KUENZER, 2020)

Paradoxalmente, essa “reforma” instituiu ainda a expansão da duração do ensino médio,


que deverá alcançar 1400 horas/ano, ou seja, 07 horas/dia, para constituição de escolas de
período integral dependendo da disponibilidade orçamentária do Ministério da Educação e
Cultura (MEC) para a realização desse processo. Contudo, a possibilidade desse investimento
financeiro em escolas públicas integrais é improvável, já que desde 2017 o Brasil está sob a
“Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos”, que limita o orçamento público. Outro
impacto dessa “Reforma” é a desprofissionalização dos docentes, posto que eles poderão ministrar
conteúdos de áreas afins à sua formação ou experiência profissional desde que comprovem o
seu “notório saber” por titulação específica ou prática, culminando em uma precarização do
mercado de trabalho para os licenciados e na instituição da terceirização dos serviços públicos,
visto que esses profissionais serão contratados e não concursados. Entretanto, o foco de análise
desse trabalho é o princípio de flexibilização que norteará a formação técnica e profissional no
“novo ensino médio”. Como define a autora:
A hipótese com a qual venho trabalhando nos últimos anos, provocada pelas pesquisas
de Zibas e por minhas próprias investigações, é a da inversão da proposta dual que, até
os primeiros anos da década de 1990, apresentava a escola média de educação geral
para a burguesia e a escola profissional para os trabalhadores. E, dadas as condições de
precarização que as escolas médias públicas que atendem os que vivem do trabalho
têm apresentado, a educação geral, antes reservada à elite, quando disponibilizada aos
trabalhadores, banalizou-se e desqualificou-se. Ou seja, a burguesia, quando disponi-
biliza a versão geral para os trabalhadores, o faz de forma desqualificada; e o ensino
médio de educação geral passou a ser escola para os filhos dos outros, enquanto a
educação em ciência e tecnologia passou a ser a opção dos filhos da burguesia, mesmo
que no ensino superior; para esses, o ensino médio é apenas um degrau necessário para
o acesso aos cursos valorizados pelo mercado, no regime de acumulação flexível.
(KUENZER, 2020)

A doutora em Educação desenvolve que uma das estratégias empregadas para realizar
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a precarização do trabalho é estabelecer uma redução ontológica do trabalhador, isso significa


que todo e qualquer conhecimento que não possa ser completamente abrangido pela lógica
capitalista precisa inicialmente ser excluído, em seguida reduzido à dimensão econômica, para
no fim ser incluído sob outro estatuto ontológico. Logo, esse regime de acumulação flexível
demanda a formação de subjetividades igualmente flexíveis, com o intuito de disciplinar a classe
trabalhadora e realizar a construção de um consenso.
Assim é que o discurso da acumulação flexível sobre a educação aponta para a necessi-
dade da formação de profissionais flexíveis, que acompanhem as mudanças tecnológi-
cas decorrentes da dinamicidade da produção científico-tecnológica contemporânea,
ao invés de profissionais rígidos, que repetem procedimentos memorizados ou recria-
dos por meio da experiência. Para que esta formação flexível seja possível, propõe a
substituição da formação especializada, adquirida em cursos de educação profissional
e tecnológica, por uma formação mais geral.
(KUENZER, 2020)

Por isso, no “Novo Ensino Médio” que será aplicado nas escolas públicas não há uma pre-
ocupação com o conteúdo das ciências humanas, ciências da natureza, linguagens e matemática,
o foco é uma educação técnica e profissional voltada para a ocupação de postos de trabalhos pre-
cários. Assim, é apenas assegurada uma base geral das disciplinas, flexibilizando o conhecimento
dos discentes. Outro ponto central do “NEM” é o desenvolvimento de competências cognitivas
que inculquem nos alunos a ideia do “aprender ao longo da vida”, justamente para prepará-los
enquanto trabalhadores que transitarão por inúmeras ocupações laborais ao longo da vida, por
isso, não há a preocupação de oferecer uma formação básica ou profissional especializada, o que
Kuenzer definiu como “pedagogia da acumulação flexível”.
Em resumo, o Ensino Médio, na atual versão, integrando a pedagogia da acumulação
flexível, tem como finalidade a formação de trabalhadores com subjetividades flexíveis,
por meio de uma base de educação geral complementada por itinerários formativos
por área de conhecimento, incluindo a educação técnica e profissional; a formação
profissional é disponibilizada de forma diferenciada por origem de classe, de modo
a levar os que vivem do trabalho a exercer, e aceitar, de forma natural, as múltiplas
tarefas no mercado flexibilizado. Ser multitarefa, neste caso, implica exercer trabalhos
disponibilizados pelo mercado, para os quais seja suficiente um rápido treinamento, a
partir de algum aporte de educação geral, seja no nível básico, técnico ou superior.
Daí o caráter “flexível” da força de trabalho; importa menos a qualificação prévia do
que a adaptabilidade, que inclui tanto as competências anteriormente desenvolvidas,
cognitivas, práticas ou comportamentais, quanto a competência para aprender e para
submeter-se ao novo, o que supõe subjetividades disciplinadas que lidem adequada-
mente com a dinamicidade, com a instabilidade, com a fluidez.
(KUENZER, 2020)

Dessa forma, fica evidente que a “Reforma do Novo Ensino Médio” é a aplicação de um
projeto de uberização do trabalho, posto que com os itinerários formativos e as disciplinas de
“Projeto de Vida” e “Empreendedorismo” presentes na matriz curricular do “Novo” Ensino Médio
possuem o objetivo de preparar os alunos de escolas públicas a ocuparem postos de trabalho
precarizados e com contratos flexíveis, típicos de um trabalho uberizado. Além disso, nos
itinerários formativos propostos para o “NEM”, os discentes aprenderão a mexer em plataformas
e sites voltadas para o trabalho por demanda.
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Contudo, é necessário salientar que essa “Reforma” aprofundará ainda mais a dualidade
educacional entre as classes sociais. Enquanto nas escolas públicas, a matriz curricular do “NEM”
apresenta itinerários formativos com habilidades voltadas para execução de trabalhos uberizados,
nas escolas particulares da classe média alta e da elite os itinerários formativos serão voltados
para realização de pesquisas científicas em laboratórios, oficinas culturais, desenvolvimento de
escrita criativa, entre outros. Ademais, nas escolas públicas há a redução da carga horária das
disciplinas com o intuito de privilegiar os itinerários formativos e as disciplinas de “Projeto
de Vida” e “Empreendedorismo”, mantendo apenas obrigatórias as disciplinas de Português e
Matemática. Porém, nas escolas particulares não há redução das disciplinas obrigatórias, visto
que o domínio dos conteúdos é considerado importante para a realização de vestibulares durante
o terceiro ano do ensino médio, por isso a maior parte das escolas privadas implementará o ensino
integral, para fornecer todas as disciplinas durante a manhã e na parte da tarde implementar as
disciplinas do “NEM” e seus itinerários.
Por fim, a aplicação das disciplinas de “Projeto de Vida” e “Empreendedorismo” na
educação pública e na privada apresenta objetivos diferentes. Nas escolas públicas “Projeto de
Vida” possuirá o intuito de desenvolver as habilidades socio-emocionais com subjetividades
flexíveis para preparar a massa de trabalhadores para ocupar postos de trabalho precarizados,
como apontado por Acácia Kuenzer. Na rede privada de ensino, “Projeto de Vida” possuirá
o objetivo de desenvolver a saúde mental dos discentes e auxiliá-los na escolha de um curso
de ensino superior e em seu planejamento de carreira, A disciplina “Empreendedorismo” na
rede pública de ensino terá a finalidade de introjetar nos alunos a ideia de que a ausência de
contratos trabalhistas é algo positivo, pois, poderão ter “liberdade” e serão “seu próprio patrão“.
Entretanto, nas escolas privadas, ”Empreendedorismo“ terá como objetivo o desenvolvimento
de noções administrativas e financeiras, para que os alunos da classe média alta e da elite
possam desenvolver habilidades para trabalharem nas empresas que podem herdar dos seus pais
ou se constituírem enquanto futuros empresários, tendo domínio de investimentos financeiros,
desenvolvimento de softwares de aplicativos, etc. Portanto, enquanto o discente da escola pública
é preparado para ser um trabalhador de aplicativos como Uber ou Ifood, o aluno da rede privada
é preparado para ser o empresário, dono dessas empresas que possuem aplicativos (Tecnologias
de Informação e Comunicação-TICs).
Esta forma de consumo da força de trabalho ao longo das cadeias produtivas aprofunda
a distribuição desigual do conhecimento, onde, para alguns, dependendo de onde e por
quanto tempo estejam integrados nas cadeias produtivas, se reserva o direito de exercer
o trabalho intelectual integrado às atividades práticas, a partir de extensa e qualificada
trajetória de escolarização; o mesmo não ocorre com a maioria dos trabalhadores,
que desenvolvem conhecimentos tácitos pouco sofisticados, em atividades laborais
de natureza simples e desqualificada e são precariamente qualificados por processos
rápidos de treinamento, com apoio nas novas tecnologias e com os princípios da
aprendizagem flexível.
(KUENZER, 2020)
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Figura 1 – O Novo Ensino Médio na rede privada

Propaganda do Colégio pH divulgada na página da escola na rede social Facebook


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Figura 2 – As disciplinas obrigatórias na rede privada

https://www.sistemadeensinoph.com.br/novo-ensino-medio/
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Figura 3 – Os itinerários formativos na rede privada

https://www.sistemadeensinoph.com.br/novo-ensino-medio/

Figura 4 – A redução das disciplinas no Novo Ensino Médio na SEEDUC-RJ

https://www.seeduc.rj.gov.br/novo-ensino-m%C3%A9dio
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Figura 5 – A redução das disciplinas no Novo Ensino Médio na SEEDUC-SP

https://novoensinomedio.educacao.sp.gov.br/
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Figura 6 – Alguns itinerários formativos da SEEDUC-SP, a preparação para trabalhos uberizados

https://novoensinomedio.educacao.sp.gov.br/

Dessa forma, é prioritário compreender que a aplicação da “Reforma do Novo Ensino


Médio” foi uma pauta dos grupos reformadores empresariais da educação pública. Como desen-
volvido pelo doutor em Educação, Luiz Carlos de Freitas:
Corporate reformers – assim são chamados os reformadores empresariais da educação
nos Estados Unidos, em termo criado pela pesquisadora americana Diane Ravitch.
Ele reflete uma coalizão entre políticos, mídia, empresários, empresas educacionais,
institutos e fundações privadas e pesquisadores alinhados com a ideia de que o modo
de organizar a iniciativa privada é uma proposta mais adequada para “consertar”
a educação americana, do que as propostas feitas pelos educadores profissionais.
Naquele país, a disputa de agenda entre os educadores profissionais e os reformadores
empresariais da educação vem de longa data.
(FREITAS, 2012)

No Brasil esses grupos surgem com o advento do neoliberalismo a partir do “Consenso


de Washington” de 1989, que foi um encontro na capital dos Estados Unidos que propunha uma
série de recomendações visando à ampliação do neoliberalismo nos países da América Latina
a partir de determinadas medidas. Seus principais agentes foram o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional (FMI). Uma de suas medidas seria a privatização de empresas públicas
nacionais. Apesar de inicialmente não ter aceitado as medidas do Consenso, posteriormente, o
governo do Brasil as adotou a partir da década de 90. As orientações neoliberais a serem seguidas
pelas políticas educacionais foram iniciadas efetivamente a partir da Conferência Mundial sobre
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“Educação para Todos”, realizada em Jomtien, Tailândia, em 1990, sendo convocada por agências
internacionais como UNESCO, UNICEF, PNUD e Banco Mundial.
Com isso, surgiram os reformadores empresariais da educação pública no Brasil. Alguns
deles são: a ONG “Todos pela Educação” do empresário Jorge Gerdau Johannpeter- dono
do Grupo Gerdau, a ONG “Parceiros da Educação” que conta com empresários dos bancos
Itaú/Bradesco/BTG Pactual/Votorantim S.A, a Fundação Lemann do empresário Jorge Paulo
Lemann- dono de diversas redes privadas escolares, Cogna Educação do empresário Rodrigo
Calvo Galindo- dono de diversas redes privadas da educação básica e superior, Insituto Unibanco
ligado ao Banco Itaú, Fundação Bradesco ligada ao Banco Bradesco, a Fundação Telefônica
Vivo do empresário Christian Gebara, a associação política RenovaBR do empresário Eduardo
Mufarej e o Instituto Ayrton Senna da empresária Viviane Senna. Nesse sentido, todos esses
grupos defenderam a “Reforma do Novo Ensino Médio” e se articularam politicamente para
que esse projeto fosse implementado. O intuito deles fica evidente, visto que para esses grandes
empresários é vantajoso a formação de uma classe trabalhadora alienada, que acredite em
meritocracia, empreendedorismo e que não possua acesso a uma formação política e social.
Outrossim, esses empresários propagam através dos aparelhos privados de hegemonia4 , os quais
eles também controlam, que o “NEM” resolverá os problemas da educação pública, dando mais
autonomia ao discente para “estudar o que gosta”.
4 (COUTINHO, 2011)
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Figura 7 – Grupos empresariais que participaram da elaboração da matriz curricular do Novo Ensino
Médio da SEEDUC-SP

https://novoensinomedio.educacao.sp.gov.br/
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Figura 8 – O Instituto Ayrton Senna foi um dos desenvolvedores da matriz curricular do Novo Ensino Médio
da SEEDUC-RJ

https://www.seeduc.rj.gov.br/novo-ensino-m%C3%A9dio

Sendo assim, podemos concluir que a “Reforma do Novo Ensino Médio” possui o
objetivo de formar um exército de reserva de jovens trabalhadores para atuarem como motoristas
de Uber, entregadores de Ifood, entre outras empresas que “contratam” por demanda através
das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), ou seja, profissionais sem vínculos
trabalhistas e superexplorados. Esse processo culmina na precarização da educação pública e
na desprofissionalização do fazer docente, o que intensifica ainda mais a desigualdade entre
a burguesia e o proletariado. Dessarte, somente através da luta contra o modo de produção
capitalista será possível reverter esse processo, construindo de fato uma educação popular e
transformadora.
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Referências

BRANDÃO, C. R. O que é a educação? 19. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. 41 p.

COUTINHO, C. N. (org.). O leitor de Gramsci. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011.

FERNANDES, F. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 5. ed. São Paulo: Global, 2005.

FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no


Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27 – 43, abril/julho 2020.

FREITAS, L. C. de. OS REFORMADORES EMPRESARIAIS DA EDUCAÇÃO: DA


DESMORALIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO À DESTRUIÇÃO DO SISTEMA PÚBLICO DE
EDUCAÇÃO. In: UNICAMP (Ed.). Educ. Soc. Campinas: [s.n.], 2012. v. 33, n. 119, p. 379 –
404. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/es/v33n119/a04v33n119.pdf.

KUENZER, A. Sistema educacional e a formação de trabalhadores: a desqualificação do Ensino


Médio Flexível. Ciência & Saúde Coletiva, Curitiba, v. 25, n. 1, p. 57 – 66, Janeiro/Junho 2020.

MARINI, R. M. A dialética da dependência. In: TRASPADINI, R. (org.). Ruy Mauro Marini:


Vida e obra. São Paulo: Expressão popular, 2005.

MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.

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