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As moscas da práxis

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MOSCA: REPRODUÇÃO
RAFAEL PAIVA
8 DE JUNHO DE 2021
·
OPINIÃO
·
7 MIN
A mosca, um animal irracional, desprovido de consciência, reproduz suas ações através de

um instinto genético (uma “cultura” inserida em seu DNA). O voo dessa pequena praga que,

provida de uma estratégia inata, um “instinto selvagem” do ato de voar, constitui numa das

mais belas cauções biológicas. Quando está diante de um doce, por exemplo, concentra-se

apenas em adquirir aquilo que poderá nutri-la naquele espaço de tempo. O instinto da

Drosophila melanogaster, em inúmeras ocasiões, chega a ser infalível: rápidos movimentos,


uma gama possibilidades encontradas de escapatória às armadilhas da natureza, devido a

seu “panóptico” natural. A possibilidade da vigilância per instinctus dessa minúscula

criatura, é o ponto de partida para este artigo.

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A mosca é o animal que, apesar de possuir um dos menores ciclos de vida do reino

Animalia, é um dos seres que mais se reproduz. Se certo espécime possui a capacidade

física de perceber o mundo que a cerca e, para se manter viva (e assim perpetuar sua

linhagem), demonstra um instinto cuja resposta neuronal apresenta uma celeridade quatro

vezes maior que a de um ser humano (a mosca apresenta cerca de 100 mil neurônios,

enquanto o nosso cérebro detém de apenas 25 mil). Além disso, sua capacidade de

replicação é gigantesca. Ante o exposto, estamos diante de um animal que constantemente

nos vigia. Uma vigilância natural, instintiva, construída devido ao seu DNA e a sua

variabilidade genética. Para a mosca, não somos nada além de um apanhado de seres que

ocasionalmente dispõem de uma fartura nutritiva, independente de qual gênero ou estado

de conservação tal refeição possa se encontrar. Ela está na maternidade e no cemitério. A

mosca está em todo lugar. É uma praga natural.

Nesse contexto, indo de encontro à nossa práxis hodierna, o Capital está em constante

autovalorização. A burguesia acumula, concentra e centraliza o capital, fruto da exploração

da força de trabalho, antes pertencente ao proletariado. Nada pode ser dissociado do

sistema de produção pela produção. Estamos diante de uma caução histórica que atribui à

classe dominante o poder abstrato de controle social. Não mais um controle associado à

coação da liberdade. Han (2018) acredita que a ideia de “liberdade individual”, inserida no

sistema capitalista é “uma servidão na medida em que é tomada pelo capital para sua

própria multiplicação”1. Esse processo de multiplicação e obtenção do acúmulo de capital


inconscientemente, estruturado numa “alegoria” de liberdade individual, e que, de modo

célere, se modifica e se amplia, é a raiz do aumento do sofrimento psíquico concernente ao

sintoma social de uma massa que, para FREUD (2013) é “extremamente influenciável e

crédula; é desprovida de crítica”2.

A massa à qual me refiro é a do proletariado, a classe que vende sua força de trabalho em

troca de um salário (mais-valia). O sofrimento da psique humana, colocando em seu devido

lugar, isto é, em sua práxis histórico-social, é proveniente dessa exploração que está em

constante transformação e se proliferação, semelhante às moscas. O capitalismo, tal qual o

animal, se estrutura num panóptico que tenta superar as leis da natureza. Ele nasce infantil,

com uma consciência apregoada a princípios de acumulação acelerada, visando sua

sobrevivência, ao mesmo tempo que se reproduz em instituições de convívio social. O

capital é concentrado, visando uma eliminação parcial da concorrência e centralizado,

estruturando o panóptico cultural, o artefato da vigilância sob o controle dos 1% mais ricos.

A consolidação da hegemonia burguesa3sobre a práxis concerne à criação e ao

aperfeiçoamento de um sistema de vigilância que não mais reprime, mas desenvolve,

principalmente, uma forma de “exploração da liberdade”, como foi dito anteriormente.

O capitalismo é, alegoricamente, um “conglomerado de moscas”, que sobrevoam sobre um

“doce social”, produzido pela classe trabalhadora, a fim de explorá-lo até se estafar, e obter

o máximo possível de matéria para assim crescer e se multiplicar. Resta ao ser humano,

apenas uma ínfima parte da guloseima, não contaminada pelas “bactérias sociais”. Tais

“germes da práxis”, em outras palavras, são tudo aquilo que há de mais dantesco na

estrutura social capitalista: o racismo, machismo, LGBTQIA+fobia, padrões superficiais de

beleza etc. Em suma, toda forma de segregação que a sociedade só consegue superar se

for contrária à dominação da classe dominante, pelo tácito fator do estabelecimento da

hegemonia de classe, que se deve aos aparelhos de higienização estrutural, institucional e

cultural. Dando prosseguimento à análise, apenas as migalhas restam ao trabalhador, que

manifesta severa frustração psicológica, agregando gravíssimas patologias psicossociais.

Por fim, as “Moscas sociais” servem de alegoria para o acelerado sistema capitalista. O

panóptico é constante, veloz e inconsciente, imperceptível aos olhos do outro, o que permite
a exploração da liberdade. A mosca é a manifestação alegórica do dono dos meios de

produção, do inconsciente coletivo, de tudo aquilo que a classe trabalhadora acredita ser

“livre”. A medida que ela acredita nessa ideia de “liberdade”, mais é explorada. A luta

enfraquece no meio de sociabilização. A dominação estruturada nesse poder (que é

abstrato) cumpre a cada momento sua tarefa para consolidação de sua hegemonia. Uma

mosca pode morrer, da mesma forma que um grande empresa pode perder sua influência,

mas outras centenas nascem e participam do mesmo processo, ciclicamente, construindo

oligopólios e reestabelecendo a centralização hegemônica dos meios de produção. A luta

de classes radical se faz vital, à medida que o “Eu-proletário” torna-se constructo da massa

explorada, conduzida pelo Inconsciente, o Outro (a burguesia). Marx (2010) afirma que “ser

radical é agarrar as coisas pela raiz. E a raiz do homem é o próprio homem”4. Portanto, a

raiz do homem inserido na práxis é a sua condição histórica e material e, no caso proletário,

a reconstrução de sua consciência de classe, de luta contra o sistema, consolidando bases

capazes de sufocá-lo e implodi-lo, de modo que efetue uma “esterilização sistêmica”, para

que a classe oprimida possa finalmente se prover do doce sabor da produção para sua

própria existência, longe das correntes panópticas da Drosophila burguesa.

Nossas Fontes

i. ↑HAN, BYUNG-CHUL. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder.


Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte, Minas Gerais: Âyné, 2018. p. 13
ii. ↑FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. Tradução: Renato Zwick. Porto
Alegre, Rio Grande do Sul: L&PM Editores, 2013. p. 50
iii. ↑O conceito de “hegemonia” parte de uma análise efetuada por Antonio Gramsci em
seus Cadernos do Cárcere e configura, em resumo, no conjunto de elementos em
torno do interesse da classe dominante, para a então consolidação do chamado
“bloco-histórico”, num processo que se direciona não só politicamente, mas
étnico-culturalmente e ideologicamente. Além disso, a hegemonia expressa a
capacidade de desarticulação da classe antagônica, a partir dos meios explicitados.
(FRIGOTTO, G. A Produtividade da Escola Improdutiva: um (re)exame das relações
e estrutura econômico-social capitalista. 4 ed. São Paulo, SP: Cortez Editora, 1989.
p. 192). Nesse excerto, Gramsci (2016) refere-se ao papel repressivo de uma classe
sobre a outra, constituindo na hegemonia: “[…] na noção geral de Estado entram
elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria
possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é,
hegemonia couraçada de coerção)” (GRAMSCI, 2016, v. 3, C. 6, § 88, p. 248).
iv. ↑MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: Crítica da filosofia
do direito de Hegel. Tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo,
SP:Boitempo Editorial, 2010. p. 151.

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