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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIENCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
ESPECIALIZAÇÃO EM FILOSOFIA MODERNA E
CONTEMPORÂNEA

Maria Carolina Figueira Neves dos Santos Vilela

OPRIMIDO, HOMEM-MASSA E O MEDO DA LIBERDADE

Juiz de Fora – MG
2013
Maria Carolina Figueira

OPRIMIDO, HOMEM-MASSA E O MEDO DA LIBERDADE

Artigo apresentado como requisito parcial para a


obtenção do titulo de Especialista em Filosofia
Moderna e Contemporânea pelo Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Orientador: Prof. Juarez Sofiste

Juiz de Fora
2013
2
Resumo

O tema liberdade sempre esteve em pauta na vida dos homens e em seus escritos e
discussões, desde o início do pensamento crítico, fomentando grandes
manifestações e até mesmo grandes batalhas. No entanto, apesar de parecer tão
procurada, a liberdade também é temida. No presente artigo, analisaremos o medo
da liberdade sob a ótica do oprimido de Paulo Freire e do homem-massa constante
nos estudos de José Ortega y Gasset.

Palavras chave: liberdade, opressão, massificação.

Abstract

The theme of freedom has always been on the agenda in human life and in his
writings and discussions since the beginning of critical thinking, fostering large
demonstrations and even large battles. However, despite seeming so sought,
freedom is also feared. In this paper, we analyze the fear of freedom from the
perspective of the oppressed Paulo Freire and man-constant mass in studies of José
Ortega y Gasset.

Keywords: freedom, oppression, mass.

3
1. INTRODUÇÃO

A Pedagogia do Oprimido apresenta o homem como ser inacabado, e,


diferentemente dos animais, ciente dessa inconclusão; como ser histórico 1. Como
sujeito do mundo e da própria história, o ser humano traz em si a vocação de
transformar a realidade, na busca incessante por Ser Mais, pela sua crescente
humanização.

Busca por Ser Mais, que confronta a cultura do Ser Menos. A sociedade
industrial e burguesa trouxe consigo um falso ideal de igualdade, que, dada a
impossibilidade de sua realização, visto que cada indivíduo guarda suas
características e aspirações próprias, conduziu ao fenômeno conhecido como
massificação. Esse movimento traduziu-se pelo nivelamento da sociedade ao grau
da mediocridade, procurando sufocar qualquer ânsia criativa que se deslocasse do
padrão instituído. Levou o homem a uma acomodação, a uma preguiça intelectual,
ao desperdício de sua potência transformadora. Nos dizeres de José Ortega y
Gasset, “já não há protagonistas, só coro”2.

Essa homogeneização passou a ser vista como ferramenta crucial para a


manutenção da ordem pública (pelo menos desta ordem pública vigente); a
individualidade, a particularidade ficou cada vez mais perigosa. E a conseqüência
mais funesta deste movimento: ser massa tornou-se bom, tornou-se o sonho do
indivíduo. Antes reconhecido por seus feitos grandiosos, o homem ideal agora é
apontado pela sua submissão à situação vigente, pela sua imersão ao bloco
homogêneo e inerte de homens.

Com toda a sua potência e vocação por humanizar-se e libertar-se, o homem


tem medo e desumaniza-se.

Se o homem teme a escravidão desde o início dos tempos, se esta sempre foi
a pior das humilhações sociais, a liberdade não é buscada de maneira tão
expressiva. Se a escravidão de corpos parece cada vez mais incomum e repulsiva, a
escravidão de mentes e almas passa despercebida, e não é tão combatida quanto
deveria pela sociedade atual. Se a descoberta de um foco de trabalho escravo
1
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (Saraiva de Bolso), p.80.
2
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Morais
(WWW.jahr.org),2002, p. 43.
4
mobiliza organizações diversas e domina os noticiários, a libertação da escravidão
mental é interior, íntima e silenciosa.

O vocábulo liberdade está em todos os protestos, todos os gritos, todos os


coros, mas anda ausente das ações. Porque, se livra o indivíduo dos grilhões que o
dominador impõe, prende-o a si mesmo, à responsabilidade sobre a sua existência.
Ser escravo é doloroso; ser livre é cansativo.

Cansativo por que a liberdade não cai dos céus: tem que ser buscada. “A
liberdade, portanto, é risco e é conquista. É risco enquanto, pelo seu próprio
indeterminismo, deixa ao homem, não só a glória de optar pelo bem
voluntariamente, mas também o tremendo poder de optar pelo mal. É conquista
enquanto exige do homem um esforço contínuo de luta contra todas as forças
internas e externas que comprometem a realização de sua plenitude”3. Ser livre é ter
o poder e o ônus de escolher entre a imensidão das possibilidades e responder por
suas escolhas. É uma luta constante contra o imã que atrai de volta aos grilhões,
estejam eles no mundo ou no próprio interior do indivíduo.

No presente trabalho, trataremos dos fatores que levam os homens a


temerem a liberdade, analisando dois tipos diversos de homens que,
paradoxalmente, tem pontos em comum: o oprimido de Paulo Freire e o homem-
massa de Ortega y Gasset.

2. O OPRIMIDO
Se a liberdade atemoriza o opressor, pois representa a quebra de seu poder
hegemônico, a situação não é muito diferente para o oprimido. Destaca-se nisso o
fato de o oprimido ter o opressor hospedado em si, numa existência dual em que
ser, para o homem comum, é ser como o opressor: adotar seus valores, seus
costumes, seu modo de agir. Isto se deve ao fato de o oprimido estar imerso na
situação de opressão desde o seu nascimento; por diversas fontes, é convencido a
cada momento da superioridade de seu opressor. Através da mitificação da
realidade, o patrão, o senhor é “endeusado”, tido como onipotente; a situação de

3
ÁVILA, Padre Fernando Bastos. Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo. Fundação Nacional de Material
Escolar, 1975, 2ª ed., 2ª tiragem, p. 420.
5
dominação é vista fatalisticamente, como vontade irremediável de Deus, um destino
irrevogável, ao qual só lhes resta acomodar-se, ajustar-se.

A própria educação, que deveria elevar o homem à condição de Ser Mais,


contribui para a opressão. No que Paulo Freire chama de concepção bancária da
educação, os educadores, detentores do saber, depositam-no nos alunos, que
devem recebê-lo passivamente. Mesmo sem saber, muitos professores agem como
opressores, contribuindo para o processo de alienação da ignorância4, em que esta
encontra-se sempre no outro, o aluno/oprimido. Caridosamente empurram para o
educando conteúdos pré-selecionados, sem consulta das particularidades daquela
comunidade; conteúdos que muitas vezes nenhuma ligação tem com a realidade
concreta do aluno.

A educação, que deveria ser prática de liberdade, é na realidade prática de


opressão, de massificação. A uniformização é pilar de todas as escolas, desde a
inocente exigência do uso do uniforme escolar até a aterrorizante uniformidade de
pensamento. Qualquer singularidade é tolhida, e a maior realização da instituição de
ensino na vida de seus alunos é adestrá-los como indivíduos sem senso crítico;
cidadãos obedientes à ordem vigente. Nas escolas, o oprimido aprende que pensar
é perigoso, e que ele não é capaz de fazer isso por conta própria.

4
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (Saraiva de Bolso), p. 64.
6
Essa concepção bancária da educação, juntamente com o assistencialismo,
são os grandes responsáveis pelo ajustamento do oprimido à situação vigente. Os
programas assistencialistas, tão difundidos pelos governos chamados populistas, na
realidade não melhoram a vida do indivíduo, só o fazem acomodar-se à sua
carência, à sua necessidade de assistência, à sua miséria, já que qualquer pequena
melhora de vida ou ínfimo (às vezes somente virtual) aumento salarial faz com que o
trabalhador se sinta privilegiado e não queira lutar por melhores condições. E –
questão mais importante – apóie os nobres e caridosos donos do poder.

Nos slogans das ações governamentais, o oprimido é o pobre ignorante, o


“assistido” que recebe caridade de quem detém poder e inteligência. Em todo lugar,
tem uma certeza: ele não sabe, não tem conhecimento, não pode tê-lo. O
conhecimento, na visão de alguns educadores (que mesmo dizendo que anseiam a
educação libertadora, certamente ainda tem o opressor fortemente enraizado em si),
pode provocar não só a desordem, a revolução dos oprimidos, como também
poderia causar neste grupo de homens uma sensação de desmoronamento do seu
mundo, pela revelação de sua trágica situação no mundo, na vida 5. O saber não é
da alçada dos esfarrapados do mundo.

Então, “de tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem
nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em

5
Idem, p. 27.
7
virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua „incapacidade‟ 6”. E por isto
têm medo. O temor à liberdade, que impede o homem comum de seguir em busca
de sua vocação de Ser Mais, situa-se na crença de sua incapacidade de assumir o
risco de libertar-se. Esse homem, que acostumou-se toda uma vida a ter sua
existência nas mãos de indivíduos mais “capacitados”, não vê como pode ter a
competência de transformar a si mesmo e ao mundo em que sobrevive, mas onde
não parece estar, na acepção fenomenológica do estar no mundo. Desde seu
nascimento, esteve reduzido a uma quase coisa: nunca foi ouvido, pois nunca teve
direito de ter sua visão de mundo respeitada; foi proibido de ser, de dizer sua
palavra, dada a sua aderência ao universo do opressor.

Este é outro ponto primordial para compreender a não libertação do oprimido.


Mesmo consciente de sua incompletude, ciente também de sua situação de
dominado, o oprimido tem ainda o opressor instalado em si. E livrar-se dessa
presença é custoso.

Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e


seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em que esta,
implicando a expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem”
o “vazio” deixado pela expulsão com outro “conteúdo” – o de sua
autonomia. O de sua responsabilidade, sem o que não seriam livres. A
liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma
permanente busca.7

Esse fragmento do livro de Paulo freire apresenta duas informações


importantes:

a) Como já dito no início desse capítulo, o oprimido tem o opressor impresso em si.
A forma como vê o mundo é a forma mítica apresentada pelo opressor. Não
conhece a vida fora dessa situação, já que a vê legitimada em todos os cantos,
por todos os meios, em destaque a educação e a mídia, principalmente nos
veículos de difusão da cultura de massa e da ideologia do governo presente.
Logo, o oprimido está tão imerso no opressor que separar-se dele é uma
experiência muitas das vezes tão traumática quanto a própria opressão. Como

6
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (Saraiva de Bolso), p. 55.
7
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (Saraiva de Bolso), p. 38.
8
Freire destaca em outro trecho, “os oprimido são dependentes emocionais”8.
Muitas vezes não querem ser como o opressor, mas, o que é mais grave, querem
ser dominados por ele, depender dele, pois o vêem como merecedor do poder
que possui. Quando percebem a opressão, não reclamam dela com o patrão,
mas descontam na família e/ou se entregam aos vícios, mais comumente a
bebida (mais barata e acessível).

b) O oprimido sempre pensou e viveu de acordo com as regras que o dominador, de


forma mais ou menos explícita, lhe impunha. Além disso, o opressor é um
modelo de vida, de status, uma ambição do homem comum. Separar-se do
opressor, além de significar o fim da vida dual que levava e sua unificação como
homem que está sendo no mundo, significa a elaboração de algo que substitua
aquela presença tão forte. Um conteúdo de pensamento, uma forma de vida que
parta de sua personalidade – que ele nem sabe se possui. Um pensar autônomo,
que explicite sua busca pela liberdade, pela humanização, por Ser Mais. Mas ele
não está acostumado a pensar, e por isso se crê incapacitado para tal tarefa; o
“doutor” ou o professor podem fazê-lo muito melhor. Ele que não sabe sequer
ser, quase não vê o Ser Mais; quer ser como o opressor. A liberdade tem um
custo alto: exige pensar por si próprio, ter responsabilidade por esse pensar, por
esse ser livre para escolher. E apesar de todo homem guardar em seu íntimo a
potência por libertar-se a si, libertar o opressor, libertar todo o mundo, esse
homem não se vê capaz para tal empreendimento. O indivíduo atua de acordo
com a forma como se vê no mundo. E neste mundo, o oprimido se vê
despreparado, ignorante, feito para estar no exato lugar onde está agora. Neste
mundo mitificado pelo opressor, através da educação, da mídia e da fala direta
do patrão, numa realidade apresentada como algo estático, a qual todos devem
ajustar-se, deixando entrever ao oprimido que a mudança não é possível. E o
homem simples, sem pensar autônomo, acredita piamente nessa visão de mundo
e não luta.

Esse homem se acomoda ao hoje, sem vislumbre de transformação para


humanizar-se. Encara as situações-limite como barreiras impossíveis de ultrapassar,
não como a gama de possibilidades de crescimento que representam. E tem um

8
Idem, p. 57.
9
temor imenso da reação do outro. Outro que não representa só o opressor, com o
qual o conflito traria represálias legais e até emprego de violência, na ânsia deste
último por manter todo o seu poder. Mas o outro, nesse caso, também está no
companheiro, assustado com a possibilidade da repressão.

Mesmo já tendo em si o gérmen da liberdade, o homem não quer libertar-se


sozinho. Realmente, a liberdade não deve ser solitária, mas um processo de união
dos oprimidos, que devem encontrar-se em comunhão para libertar-se. No entanto,
esse homem ainda não sabe diferenciar a união de um grupo em torno da defesa de
um ideal e a imersão na massa alienadora. Então, entre abandonar os comunicados
da dominação e pensar autenticamente, porém sozinho, o oprimido prefere
gregarizar-se e continuar alienando-se na companhia de seus pares. A liberdade,
que para ele parece tão insegura, não apresenta compensações imediatas para a
solidão e a rejeição que pode trazer o pensamento autônomo.

O oprimido, feitas essas considerações, permanece observando a


possibilidade de liberdade com distância segura, já que o modo de agir e pensar que
essa busca implica ainda parece-lhe muito difícil e perigoso. Teme a liberdade
porque não se vê capaz de assumi-la. E por não assumi-la, contenta-se com os
anseios que restaram: tornar-se um opressor ou conformar-se mais ainda com a
situação de opressão.

3. O HOMEM-MASSA

Se Paulo freire situou seus estudos numa classe sócio-econômica específica,


o mesmo não se deu com o espanhol José Ortega y Gasset. Apesar de algumas
vezes chamar a seu objeto de estudo de homem-médio, não se refere
especificamente à classe média, mas sim à mediocridade desse indivíduo; não trata
de um grupo social, mas de um modo de agir do homem europeu do início do século
XX. Nas palavras do próprio autor, “Massa é todo aquele que não se valoriza a si
mesmo – no bem ou no mal – por razões especiais, mas que se sente „como todo

10
mundo‟, e, entretanto, não se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos
demais”9.

Além da descrição de seu homem-massa, Ortega y Gasset, nesse pequeno


trecho, já nos dá a primeira pista para responder ao problema que propomos neste
trabalho, o porquê esse homem não se liberta da massificação: sua acomodação a
este estado de ser, diríamos até sua fixação por ser massa e por imergir cada vez
mais nela. Comparado ao filisteu da cultura, conceito forjado pela intelligentsia alemã
do século XIX, essa espécie de homem

“(...) se satisfaz plenamente com o cotidiano da vida


privada pacata e confortável, não sendo capaz de
estabelecer para si próprio a realização de quaisquer
tipos de projetos superiores, mas apenas propostas
práticas passíveis de ser contabilizadas em melhorias
para sua vida privada imediata.”10

Mas isso não é tudo. Ao contrário do oprimido de Freire, que muitas vezes
não tinha acesso à educação e, quando conseguia essa oportunidade, tornava-se
presa de um instrumento da opressão, o homem-médio caminha entre os
intelectuais. Produto da educação do fim do século XIX, deslumbrada pelo progresso
industrial, recebeu toda a técnica para que fosse capaz de frutificá-lo e expandi-lo, e
junto com o saber teórico herdou uma arrogância de quem poder realizar qualquer
empreendimento. É intelectualmente mais esperto, mais capaz do que o homem de
qualquer época anterior, mas a sua capacidade não tem uso; pelo contrário, a
sensação de possuí-la só serve para fazê-lo se fechar em si mesmo, em sua
prepotência e arrogância.

Assistimos nessa época, impulsionada pela expansão do capitalismo e pela


divisão do trabalho, a uma crescente especialização do conhecimento humano, que
chegou até os dias atuais sem conhecer freio. Essa especialização dominou também
os meios científicos, fazendo com que os estudiosos se distanciassem cada vez
mais de uma visão geral do universo, da vida total, permanecendo cada vez mais
fechados em sua determinada área de pesquisa. Esse hermetismo fez o cientista

9
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Morais
(www.jahr.org),2002, p. 63.
10
BITTENCOURT, Renato Nunes. O advento do homem-massa. In: Filosofia. Ed. Escala, Ano V, número 52, p.
24.
11
satisfazer-se com suas limitações, com a consciência de não precisar ser um grande
sábio dos tempos antigos, não ser um Leonardo da Vinci ou um René Descartes,
mas também o fez sentir-se poderoso. E apesar de dominar somente um pequeno
setor do conhecimento humano, se vê no direito, graças à sua erudição, de palpitar
e intervir em áreas fora de sua alçada. Presenciamos a todo instante na atualidade,
ainda mais com o grande avanço dos meios de comunicação em massa e
principalmente com a expansão da Internet, a pronunciamentos desses
“especialistas”: economistas dissertando sobre educação, físicos discutindo ciências
políticas... E por serem considerados sábios, suas opiniões muitas vezes
equivocadas são tomadas como verdade e equivocadamente disseminadas aos
quatro ventos.

Todo o progresso técnico e teórico tornou esse homem completamente


prepotente e arrogante, como dissemos há pouco. As épocas anteriores sempre se
sentiram incompletas, imperfeitas, com inveja de outras civilizações. Ou olhavam
com nostalgia os primeiros tempos, como os renascentistas e sua revisão dos ideais
e artes clássicas greco-romanas, ou aspiravam à evolução que as sociedades
futuras trariam. Essa noção de sua imperfeição/incompletude, revisitando as noções
de Paulo Freire comentadas no capítulo anterior, levou os povos de todas as épocas
à busca por Ser Mais, por solucionar essa angústia, impulsionando assim o
progresso técnico e intelectual. No entanto, o homem do início do século XX é
completamente desprovido desse sentimento e, ainda mais, desprovido de sentido
histórico. Acredita viver na melhor das épocas, mas não atenta para o fato de que
tudo o que tem é resultado de séculos de estudos, proposições e experimentos.
Despreza tudo o que remete ao passado por ser ultrapassado, como se todo o
progresso presente tivesse surgido espontaneamente por obra da Natureza, não
pelo trabalho de milhares de homens. Como despreza o passado, não aproveita a
experiência dos ensinamentos de outros tempos e vive sob o risco de incorrer em
erros semelhantes aos cometidos e sanados no passado. É cada vez mais difícil
encontrar um indivíduo capaz de solucionar os problemas de nossa época, por mais
corriqueiros que sejam, dado o caráter mais complexo da sociedade atual, que esse
sujeito não acompanha. O homem-massa recebeu os frutos teóricos e práticos do
virtuoso século XIX, mas não sua alma. Não está preparado para sustentar seu
progresso, porque se vê na melhor das civilizações, que atingiu seu ápice e, por
12
isso, estacionou. Tem muito mais ferramentas para avançar, muito mais
possibilidades para realizar os feitos mais extraordinários, mas não tem uma meta,
um farol, e por isso se acomoda. Na sua opinião, é perfeito demais para melhorar.

Se recebe a alcunha de homem-médio pela mediocridade de seu espírito, é


chamado de homem-massa por não exercer sua individualidade. Nas palavras de
Ortega y Gasset, “carece de um “dentro”, de uma intimidade sua, inexorável e
inalienável”11. Atua somente como um grande bloco, e qualquer manifestação
diversa deste é repelida; a massa não tem qualquer escrúpulo e não mede esforços
para impedir que alguém se destaque por suas ações ou idéias diferentes, que
tragam alguma reforma. Qualquer minoria tende a ser eliminada, e qualquer
pensamento que escape da homogeneidade é banido, mesmo que vá trazer
melhoras. Nessa questão encontramos uma distinção importante entre as análises
de Freire e Ortega y Gasset: se na pedagogia do Oprimido (e em toda a pedagogia
de Freire) as minorias representam o opressor, o “vilão”, em A revolução das
massas são defendidas como “grupos especialmente qualificados”12, compostos por
indivíduos que pensam e agem por si próprios, que singularizam-se. Cada um
desses indivíduos separou-se da multidão por razões individuais, unindo-se
posteriormente por coincidência de opiniões formadas particularmente.

Mas a singularidade é mal vista na sociedade de massas, já que nesse meio


há uma forte crença na homogeneidade dos comportamentos e pensamentos como
amálgama que sustenta a ordem pública. O homem-médio é defensor da burocracia,
que impede a espontaneidade e a agilidade das ações humanas, estagnando suas
forças criativas. A burocratização, amiga íntima da massificação, atua terrivelmente
na educação dessa sociedade: homogeneíza toda uma classe escolar através de
um único parâmetro avaliativo comum, despojando o estudante de toda a sua
singularidade, e castra o potencial didático do professor, na medida em que o
submete a um sistema adotado da mesma forma em escolas de diferentes
características.

11
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Morais
(www.jahr.org),2002, p. 27.
12
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Morais
(www.jahr.org),2002, p. 62.
13
Infelizmente, porém irremediavelmente, a esfera política é atingida pela
preguiça e pela massificação da sociedade herdeira do século XIX. Discutiremos
esses pontos a seguir.

a) Massificação

Como dissemos a pouco, a massa não tolera nada que escape ao seu senso-
comum, esmagando as minorias. Feita essa observação, ressaltamos o fato,
explicitado pelo autor no capítulo VIII da Primeira Parte de A Revolução das Massas,
intitulado Porque as massas intervêm em tudo e porque só intervêm violentamente,
de que a maioria dos países já não possui um grupo de oposição política. Apesar de
praticamente todos denominarem-se democráticos, majoritariamente uma massa
homogênea domina as esferas do Poder Público e sufoca a minoria opositora,
impondo seus projetos e normatizações. O pluripartidarismo, que a primeira vista
parece um avanço na liberdade política, por permitir que grupos diversos
manifestassem suas idéias e sua proposições políticas e fossem capazes de
modificar a esfera do Poder Público, na verdade não oferece grande contribuição,
não por culpa de sua teoria, mas pela aplicação prática. Se no Brasil, para citar o
exemplo mais próximo, temos uma enormidade de legendas partidárias, o ideário
político continua homogêneo; se no papel ou no nome os partidos parecem diversos,
em suas ações confundem-se uns com os outros, manifestando sempre a mesma
ânsia por manter-se no poder e atacar quem ameace essa hegemonia (manifestação
própria do opressor, mesmo usando muitas vezes no nome os termos democrático,
libertador,entre outros), além de manter a opressão dominante. Apesar de
aparentemente oferecer mais opções ao eleitor, não faz diferença, pois na maioria
das vezes qualquer um dos grupos que chegue ao poder manterá a estrutura
vigente.

b) Mentes preguiçosas

O homem-massa, como já comentamos anteriormente, é desprovido de um


projeto de futuro, de um rumo certo. Com um enorme universo de possibilidades,
caminha ao acaso, como se nada conhecesse. Quando a massa chega ao poder, a
coisa pública é tomada por esse desnorteamento; o Poder Público torna-se

14
“onipotente e efêmero”13. A ação mais comum nas democracias contemporâneas é a
implantação, pelos governos de todas as esferas, de medidas paliativas, através de
programas assistenciais, em vez de buscar reais soluções para os problemas. Em
vez de melhorar a educação, facilita-se a aprovação dos alunos para melhorar os
índices educacionais; no lugar de melhorar a condição econômica dos cidadãos,
com maior oferta de empregos e valorização de seus salários, os governos oferecem
uma infinidade de “bolsas”, ação enormemente ridicularizada em programas
humorísticos e redes sociais, que nada mais faz do que alimentar a miséria. Essa
ação especificamente traz grande impacto na sociedade de massa, já que esses
auxílios governamentais, que deveriam ser um benefício, passam a ser vistos pelos
assistidos como direitos adquiridos, motivo de arruaças e protestos caso haja atraso
ou suspensão destes. Não bastasse o absurdo, como no caso do brasileiro Bolsa
Família, que paga um benefício a famílias que comprovam baixa renda
(comprovação esta envolta por inúmeras fraudes) por cumprirem uma obrigação
constitucional (matricular os filhos em idade escolar em uma instituição de ensino),
fica cada dia mais comprovado que o assistencialismo só estimula a acomodação e
a manutenção da pobreza. Além do fato de que dificilmente o valor do benefício é
empregado para o fim que é pago (no caso do Bolsa Família, a educação da criança
cadastrada).

A massa, um bloco sem identidade, pensa que o Estado lhe pertence e, pior,
confunde o estado com ela mesma. E apesar de toda a sua prepotência, sua idéia
de que não depende de ninguém, a massa não caminha sozinha, com as próprias
pernas: o Estado é a sua muleta. Confunde-se com ele por vê-lo como uma coisa
anônima, assim como ela, massa, e admira-o como entidade que mantém sua vida.
Ao surgimento de qualquer problema, apela e interpela o Poder Público para
resolvê-lo (o que já vimos que não acontece, por ser este também massificado). E
esse ciclo dificuldade→ assistencialismo→manutenção do problema parece não ter
fim.

Essa admiração e dependência gritantes ao Estado só alimentam a


manutenção da massificação, já que essa estatização da sociedade representa a
anulação da espontaneidade, visto que a massa segue o que pensa o Estado, pois
13
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Morais
(www.jahr.org),2002, p. 106.
15
este lhe garante a proteção, o sustento, a sobrevivência. E a civilização
contemporânea cada vez mais se distancia do pensar próprio, de sua ressurreição.

O homem do início do século XX, tratado por Ortega y Gasset (que, infelizmente,
parece-se muito ainda com homem desse nosso início de século XXI) tem a
potência, mas não tem a força. Tem todas as ferramentas, mas não sabe usá-las, ou
quando sabe, não quer fazê-lo. Permanece da forma como está, preso, sem
interioridade, sem individualidade, por pra acomodação, por puro comodismo. Não
vê a necessidade da mudança, justamente por ter tanto poder. Como disse o próprio
autor, “de tanto se mostrarem abertos mundo e vida ao homem medíocre, a alma
fechou-se para ele”14.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dissemos no início deste trabalho que trataríamos de dois tipos de homem ao


mesmo tempo diferentes e semelhantes. Pode parecer absurdo ou um paradoxo,
mas é real.

Diferentes, porque enquanto o oprimido vive num mundo mitificado pelo


opressor, o homem-massa mitifica um mundo em que não existe passado e no qual
tem poderes supremos. Enquanto o oprimido muitas vezes não teve acesso à
educação devido à carência ou necessidade de trabalhar desde a mais tenra idade,
o homem-massa é herdeiro e usufrutuário de toda a técnica e capacidade do ilustre
século XIX, das grandes revoluções e dos grandes inventos.

Diferentes porque enquanto o oprimido é fraco, ignorante, não pode nada, o


homem-massa pode tudo, porque é forte, esperto, inteligente, com todas as
ferramentas à sua disposição, e toda a capacidade para usá-las.

Comparativamente, pode até parecer que esse homem-massa, super poderoso,


é o opressor do oprimido, dada a sua inteligência, seu espírito de domínio. Mas
apesar de toda essa potência, toda essa energia, nosso homem-médio é tão
oprimido quanto os esfarrapados do mundo.

14
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Morais
(www.jahr.org),2002, p. 130.
16
Começamos então a perceber como esses homens são iguais. Igualmente
conduzidos por uma minoria pensante, uma minoria que se arrisca, que afronta e
confronta e impõe sua vontade. Porque a massa é medíocre, e mesmo com toda a
cultura que herdou, tem preguiça de pensar por conta própria, não por crê na sua
incapacidade, como o homem comum de Paulo Freire, mas pelo contrário, por crer
numa perfeição inexistente, que isenta-o da necessidade de criar e aperfeiçoar-se, já
que vive numa época e numa sociedade que alcançaram o cume da evolução.
Deixa-se conduzir no mesmo rebanho do oprimido, seguindo o arbítrio dos donos do
poder e amparando-se no Poder Público para obter a esmola de cada dia.

Esses dois grupos de homens são igualmente cegos de suas potencialidades.


Ambos vivem realmente em uma época em que as possibilidades de melhora saltam
aos olhos, em que as condições de vida deram um considerável passo adiante. Os
grupos sociais de outrora enfrentaram inúmeras dificuldades, inúmeras guerras,
ondas de escassez, fome e os males mais diversos, que impulsionaram o homem ao
progresso, a encontrar modos de solucionar seus problemas, a buscar melhorar-se.
Os homens de nosso tempo, ao contrário, encontraram todo o trabalho concluído.
Não estamos de forma alguma desmerecendo as descobertas científicas que se
aperfeiçoam a cada instante, mas é necessário ressaltar que as ferramentas
fundamentais para que elas pudessem ser descobertas e postas em prática vem de
tempo muito remotos. Parece que tempos mais fáceis levam à preguiça intelectual.
O conceituado jornalista Alexandre Garcia reforça essa ideia no artigo Mentes
Preguiçosas15, escrito na ocasião do falecimento do também jornalista e escritor Ivan
Lessa, membro do extinto jornal O Pasquim, criado em 1969, no período mais duro
do regime militar brasileiro instituído em 1964. Garcia ressalta a riqueza cultural do
período de exceção, onde a censura atingia todos os setores da produção artística.
Foi a época das grandes composições musicais de protesto,das peças teatrais
primorosas, dos grandes festivais. Estranhamente, a redemocratização inaugurada
em 1985 trouxe também a mediocridade. O Pasquim, famoso pelo humor ácido que
usava para criticar expressamente a política nacional (fato que provocou a prisão de
vários de seus integrantes durante o governo autoritário), encerrou seus trabalhos
em 1991; as criações musicais (se é podemos dar a honra de chamá-las assim),

15
GARCIA, Alexandre. Mentes Preguiçosas. Disponível em:
http://www.sonoticias.com.br/artigos/13/153607/mentes-preguicosas. Acesso em 20 de fevereiro de 2013.
17
consistem, na grande maioria, de “letras idiotizantes em músicas com um máximo de
três notas”16. Tudo isso num tempo em que liberdade de expressão é altamente
divulgada.

Se oprimido e homem-massa unem-se na sua mediocridade de pensar, unem-se


também na mediocridade de ser. Porque ser impõe liberdade. “Viver é sentir-se
fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo.
Nem um só instante se deixa descansar nossa atividade de decisão.” 17 E isso é tudo
a que esses homens se negam: a decidir sua vida, a usar as ferramentas que tem
diante de si, a enfrentar as situações da vida como uma forma de enriquecimento de
sua existência. E principalmente, a soltar-se da aderência que tem à situação
vigente, à sua acomodação com a vida pacata, tranqüila que levam, porque não se
preocupam em enfrentá-la como se deve. Não se incomodam em deixar sua marca
no mundo: quando mais despercebidos passarem pela vida, melhor se sentem.

Seja por crença numa incapacidade irremediável ou numa capacidade ilimitada


(ambas igualmente inexistentes), os homens de nossa época escondem-se da vida.
Mas um dia serão achados. E só cabe a cada um libertar-se para a humanização.

16
Idem.
17
ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Morais
(www.jahr.org),2002, p. 104.
18
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTENCOURT, Renato Nunes. O advento do homem-massa. In: Filosofia. Ed.


Escala, Ano V, número 52, p. 22-29.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012


(Saraiva de Bolso).

GARCIA, Alexandre. Mentes Preguiçosas. Disponível em:


http://www.sonoticias.com.br/artigos/13/153607/mentes-preguicosas. Acesso em 20
de fevereiro de 2013.

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Edição eletrônica: Ed.


Ridendo Castigat Morais (www.jahr.org),2002.

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