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O PAPEL DO SUJEITO HUMANO NA DINÂMICA

SOCIAL (1)

Eugène Enriquez

O tema que abordarei tem retido minha atenção há vários anos (2). A razão é
simples: como muitos outros autores, fiquei irritado com o sucesso das teses sobre
a morte do sujeito(desenvolvidas por discípulos dogmáticos de Michel FOUCAULT)
e com as teses sobre a história como processo sem sujeito (L. ALTHUSSER). De
minha parte, pareceu-me sempre aberrante fazer desaparecer o indivíduo humano
do movimento da história, pois, em maior ou menor grau, ele participa da dinâmica
de uma determinada sociedade, como psique,como lugar de condutas significativas
e como ser em interação contínua com outros, em grupos e organizações. Fazer
desaparecer o indivíduo ou o sujeito (voltarei mais tarde àdistinção que é possível
fazer entre esses dois termos), sob o pretexto de que o pensamento"de direita" só
tinha encarado a história sob o ângulo da ação dos grandes homens, pareceu-me o
sinal do triunfo de teorias que enaltecem, mesmo sem dizê-lo, um
determinismoabsoluto dos processos sociais. Seguindo essas abordagens, o
indivíduo só pode endossar condutas enunciadas como legítimas por sua nação,
sua classe ou sua raça. O indivíduo torna-se, assim, um ser falado, um ser agido;
ele nunca é um ser falante nem um autor de seus atos.É contra essa tendência
reducionista, que nega a interrogação de D. LAGACHE, segundo a qual "o papel
das personalidades individuais na história não pode ser descartado a priori",que
decidi me manifestar. No momento atual, meu propósito é susceptível de ser
considerado como modismo. As Grandes determinações sociais estão enterradas
(sem dúvida um pouco precipitadamente demais) e, ao invés, só se fala do
indivíduo, do sujeito, do aumento do individualismo. No entanto, não é porque esse
tema voltou violentamente que vou abandoná-lo. Com efeito, por um lado, fui um
dos primeiros a abordá-lo e não tenho nenhuma razão para me desdizer; por outro
lado, a argumentação que proponho se afasta da que tem sido habitualmente
apresentada.Para ir diretamente ao cerne do assunto, gostaria de partir de uma
consideração trivial: todo indivíduo nasce em uma sociedade que instaurou, em
parte voluntariamente, em parte inconscientemente, uma cultura. Em outras
palavras, é impossível analisar a conduta de um indivíduo sem referi-la à conduta
dos outros para com ele, conduta estruturada social e culturalmente. Nessas
condições, para retomar a terminologia de C. CASTORIADIS, todo indivíduo é
fundamentalmente heterônomo, isto é, ele só existe e só pode funcionar no interior
de um social dado, de uma cultura particular que desenvolve suas "significações
imaginárias" (CASTORIADIS) (3) específicas e que lhe dita, em parte, sua conduta.
Nessas Condições, é preciso pressupor, logicamente, a anterioridade dos processos
sociais, já que nascemos sempre em um grupo, em uma etnia, em uma classe, em
uma nação etc.Essa emergência acontece, além disso, numa sociedade que é, ela
própria, heterônima, já que ela não se pensa como sendo o produto da ação
histórica e da atividade psíquica de seus membros, mas como estando submetida a
um Sagrado Transcendente, que pode tomar a forma de totens, de antepassados e
de Deuses, ou de um Deus único, que lhe deu direito à existência. Uma tal
sociedade heterônima tem, portanto, tendência a só produzir indivíduos
heterônimos, conformados a seus votos e a seus ideais. Não é necessário, no
entanto, ir muito longe nesse sentido, ou seríamos constrangidos a nos alinhar à
tese que quero combater: a do determinismo social que traz, ao mesmo tempo, o
esvaziamento da história(já que a história tem um sentido predeterminado, quer seja
por Deus, BOSSUET, BURKE,DE MAISTRE, quer pelo desenvolvimento das forças
produtivas, MARX, LENIN) e o do papel do indivíduo em um processo que se
desenvolve segundo uma lógica implacável. De fato, as sociedades nunca são
totalmente heterônimas. Elas crêem em seus Deuses e em seus mitos, mas só até
certo ponto (Paul VEYNE (4) teve razão ao perguntar se os gregos acreditavam em
seus mitos). Freqüentemente, elas souberam mantê-los "à maior distância possível"
(5), a fim de que eles desempenham seu papel de garantia das vidas psíquica e
social, mas deixassem também, a cada homem, "a possibilidade de saber que
alhures, num lugar-tela, se projetam os desejos mais insatisfeitos e ficar seguro de
que esse alhures não irá invadir o aqui da vida cotidiana" (6).Só quando os
religiosos cedem ao desejo de instaurar um Estado teocrático, que pode exigir o
sacrifício de seus membros pela causa que encarna, é que a distância não pode
mais ser mantida e que é possível situar a sociedade completamente (ou quase
completamente, porque toda sociedade comporta falhas, zonas inexploradas,
portadoras de mudanças possíveis) do lado da heteronomia. Notamos que as
sociedades modernas, desde a Renascença e, sobretudo, desde a Revolução
Francesa, souberam deixar sua parte ao religioso sem lhe atribuir uma autoridade
essencial sobre as consciências nem um papel central na organização. Elas se
tornaram, mesmo sem percebê-lo, cada vez mais fundadorasdelas mesmas e
afastaram um pouco seu aspecto heterônimo e, em certos casos, fanático
(7).Quanto ao indivíduo humano, ele também só é parcialmente heterônimo.
Embora exista, em toda sociedade, um discurso dominante, esse discurso é
modulado diferentemente pelos diversos grupos e classes que compõem essa
sociedade e, às vezes, até mesmo se choca, não a um contra-discurso organizado
mas, como dizem FRITSCH e PASSERON, choca-se as condutas que se referem a
outros valores e hábitos, ignorando soberanamente a ideologia dominante. Além
disso, não se pode esquecer que o discurso, por mais totalitário que seja,não reina
totalmente sobre as consciências e os inconscientes e que ele provoca fenômenos
de rejeição, a médio ou a longo prazo. É claro que consequências danosas podem
decorrer de tal discurso. Mas, como FREUD aponta:não parece que se possa levar
o homem, seja lá por que modo, a trocar sua natureza pela de um térmita; ele
sempre estará inclinado a defender seu direito à liberdade individual, contra a
vontade da massa (8).Enfim, devemos nos lembrar que cada indivíduo é um desvio
em relação a todos os outros,na medida em que sua psique se estrutura
progressivamente, apoiando-se nas funções corporais, em pessoas e grupos
sempre diferentes. Deve-se, portanto, concluir que o

O indivíduo mais heterônimo (mais conformado aos imperativos sociais) está


sempre em condições de demonstrar, como evocava FREUD, uma parcela de
originalidade e deautonomia".Acrescentarei ainda que o indivíduo desempenha
sempre, de maneira invisível, pelo menos de imediato e, às vezes, sem sabê-lo, um
papel essencial nas transformações sociais. O que escreve CASTORIADIS a
respeito do nascimento do capitalismo esclarece esse ponto:Centenas de
burgueses, visitados ou não pelo espírito de Calvino e pela ideia de ascese
intramundana, se põem a acumular riquezas. Milhares de artesãos arruinados e de
camponeses esfaimados encontram-se disponíveis para entrar nas fábricas. Alguém
inventa uma máquina a vapor, outro um novo tear. Filósofos e físicos tentam pensar
o universo como uma grande máquina e buscam encontrar suas leis. Reis
continuam a se subordinar e a debilitar a nobreza e criam instituições nacionais.
Todos os indivíduos e grupos em questão perseguem fins que lhes são próprios.
Ninguém visa à totalidade social enquanto tal. No entanto, o resultado, o
capitalismo, é de uma ordem completamente diferente (9).Assim, se os processos
psicogenéticos pressupõem, então, os processos sociais, como sublinha
CASTORIADIS, estes últimos nunca regulam completamente a conduta individual,
sempre imprevisível, ainda mais porque não são desprovidos de ambigüidade,
ambivalência e de contradição (salvo no caso da "horda primitiva" ou de uma
sociedade que erigiu um Estado total, dominando os homens pelo terror e pela
opressão interiorizados).Tendo argumentado que a heteronomia completa não pode
existir, fico mais à vontade para me distinguir de uma certa tendência do
pensamento contemporâneo, relativa ao papel do indivíduo e do primado do
individualismo. Poderei também precisar as diferenças que estabeleço entre
indivíduo e sujeito (mesmo observando que essas diferenças podem ser de
natureza ou simplesmente de grau).De fato, a individualização, objeto de tantas
preocupações, é, mais freqüentemente, apenas um elemento do processo de
massificação. Se cada um deve manifestar sua singularidade,deve fazê-lo porque
todos os outros estão submetidos à mesma injunção. Um diretor de pessoal de uma
grande empresa dizia recentemente a seus gerentes: "Todos vocês devem se tornar
criativos". Assim, cada um deve ser criativo à sua maneira, mas a criatividade
torna-se uma norma irrefutável. E esse diretor continuava: "Quero ver vocês todos
como uma única cabeça". O conformismo está diretamente implicado em uma tal
concepção do individualismo. Assim, em nossa época, não é bom fazer parte dos
que não são combatentes,"matadores frios", vencedores que querem ir até o fim,
que gostam de tomar iniciativa e gostam do risco, que estão prontos a se "exaurir"
pelo triunfo da equipe, do seu serviço, da sua organização. Uma nova ética puritana
se organiza: o vencedor deve experimentar uma ascese, deve se sacrificar
(sacrificar sua vida, seu tempo, sua família) pela organização da qual ele veste a
camisa. Ele deve gozar com essa renúncia, pois não há tarefa mais elevada do que
desempenhar a missão que lhe foi confiada. Nessa ética, o elemento esportivo
predomina, porque o homem de sucesso não é o homem nobre nem o virtuoso, mas
é ohomem da performance mensurável, performance sempre a recomeçar, a vitória
nunca sendo definitiva. Ao contrário, ela pode ser bem efêmera. O winner
[vencedor] sempre pode se tornar o loser [perdedor]. Max WEBER não se enganava
quando escrevia: "Quando no exercício do dever profissional não pode ser ligado a
valores espirituais e culturais mais

elevados, o indivíduo renuncia, em geral, a justificá-lo". Nos Estados Unidos, onde


seu paroxismo predomina, a busca da riqueza, desvestida de seu sentido
ético-religioso, tende,hoje em dia, a se associar a paixões puramente agonísticas, o
que lhe confere, na maioria das vezes, características de um esporte (10). Assim,
quando se fala do indivíduo, tem-se no pensamento um indivíduo conformado, que
deve funcionar segundo comportamentos que agradam à sociedade. Esse
movimento de conformismo não fascina somente os indivíduos que trabalham na
indústria e no comércio.Têm repercussões e impacto profundo em todos os
membros da sociedade, pelo próprio fato da empresa ter conseguido vender sua
paixão pela eficácia ao conjunto do corpo social e,assim, ter exportado seus valores
para fora de seu campo restrito. Todos os indivíduos devem ter agora o espírito de
empresa, quer se trate de pessoas que trabalhem na empresa,nas universidades,
nos hospitais. A adesão à "cultura da empresa" torna-se dogma; o "culto da
empresa", um novo ritual.É particularmente perturbador o fato de que esse
movimento não apenas invade todos os campos da vida social, mas que, além
disso, não se restringe a pessoas susceptíveis de obter satisfações tangíveis,
financeiras ou de prestígio, ou ainda, posições de poder. Ele atinge,igualmente, os
que W. REICH, naquele tempo, designava por "zé-ninguém" (11), os que tendem a
se tornar transmissores dos ideais da sociedade. REICH mostrava que o
"zé-ninguém" admirava tanto os que ele acreditava serem grandes, aqueles a quem
chamamos vencedores, que ele se desfazia de sua capacidade de liberdade e de
produção de ideias, para depositar seu destino nas mãos dos outros, algumas vezes
mostrando-se mais "realista que orei". O "zé-ninguém" está sempre, igualmente, na
primeira fila para aplaudir os grandes e dar consistência a todos os movimentos
autoritários de tipo mais ou menos fascistizante.Como escreve REICH:O grande
homem sabe quando e em quê ele é "zé-ninguém". O "zé ninguém" ignora que ele é
"zé-ninguém" e tem medo de ter consciência disso. Ele dissimula sua pequenez e
sua estreiteza de espírito por trás de sonhos de força e de grandeza, atrás da força
e da grandeza de outros homens. Orgulha-se dos grandes chefes de guerra, mas
não se orgulha de si mesmo. Admira o pensamento que ele não concebeu, em vez
de admirar o que ele concebeu(12).Por isso é que ele pode propagar a "peste"
emocional, a renúncia ao pensamento como prazer de representação ininterrupta e
processo destinado a todos os homens.O processo de individualização, favorecendo
a singularidade na massificação buscada e aceita por grandes, médios ou pequenos
homens, é, então, a condição de produção e de representação de indivíduos que se
situam mais na heteronomia do que na autonomia.Resta-me, depois de descrever
esse fenômeno, agora bem conhecido, tentar interpretá-lo e marcar sua
abrangência. Só com essa condição será possível refletir sobre o que constitui o
surgimento do sujeito.Esses indivíduos heterônimos (levando-se em conta que a
heteronomia total não existe nesse mundo) precisam, para existirem, idealizar a
sociedade e os ideais que ela propõe. Em outras palavras, eles funcionam (mais do
que vivem) sob a égide da doença do ideal. Quanto mais os ideais são necessários
à constituição o do sujeito, pois lhe fornecem uma base e o poder de escolher entre
ações legitimadas pela sociedade, ou por suas próprias exigências pessoais, tanto
mais a doença do ideal (a idealização) desempenha um papel fundamental na
edificação de uma sociedade e de indivíduos heterônimos. Por que a idealização
desempenha um papel tão importante?Porque ela nos tranqüiliza

profundamente: uma sociedade idealizada, apresentando-se como objeto


maravilhoso, é a melhor garantia de nossa estabilidade psíquica. Ela transmite uma
mensagem de serenidade: a ordem social existe e nos preserva de toda
interrogação fundamental a seu respeito (especialmente sobre o caos originário,
sempre ameaçador); o'mundo criado não é contestável, a sociedade dá um sentido
preestabelecido a nossas diversas ações e nos indica, portanto, o que devemos
fazer e como seremos recompensados.A idealização permite a cada um sentir-se
parte interessada no devir social e ser liberto de seu desamparo original, evocado
por FREUD no Futuro de uma Ilusão, angústia de estar sem proteção e ser
abandonado, rejeitado pelas autoridades tutelares que assumem o papel de pais
benevolentes. Além disso, ela lisonjeia nosso próprio narcisismo. Se adoramos
chefes que encarnam ideais fortes ou sociedades aparelhadas de virtudes
admiráveis, nós próprios nos tornamos admiráveis. Miremo-nos no espelho que nos
é estendido pelo próprio objeto de nossa admiração.A idealização é, assim, o
mecanismo central que permite a toda sociedade instaurar-se e manter-se e a todo
indivíduo viver como um membro essencial desse conjunto, correndo omínimo
possível de riscos. É por isso que o indivíduo pode aceitar recalcar seus
desejos,reprimir suas pulsões, aderir profundamente às injunções sociais e, às
vezes, ser um agente ativo desses processos de recalque, de repressão e de
adesão. Ele troca sua liberdade pela segurança de manter seu narcisismo
individual, apoiado pelo narcisismo grupal ou social(pois cada grupo ou cada
sociedade quer formar um "nós" indissociável).É necessário precisar esse último
ponto. Vivemos em sociedades nas quais, de fato, os ideais são múltiplos,
contraditórios, nas quais, dificilmente, eles suscitam a aceitação ou a identificação.
Vivemos um déficit de ideais transcendentes, enquanto o século XIX nos tinha dado
como ideal o progresso infinito do espírito humano em sua vontade de domínio
científico do mundo. De fato, estamos divididos e angustiados. Perdemos
progressivamente nossos marcos identificatórios. É o momento em que as
identidades pessoais começam a deteriorar e as sociedades tentam redefinir
identidades coletivas fortes, mesmo se os ideais que elas têm a nos propor são,
freqüentemente, ideais vazios e desprovidos de sentido. (Com efeito, que sentido
pode ter ganhar por ganhar, produzir por produzir, consumir por consumir?)Ora, a
tentativa de refazer identidades coletivas fortes, provocando a idealização (quando
as causas a defender e os projetos a realizar não são evidentes), está cheia de
perigos. A Identidade coletiva, o narcisismo social, tem como futuro possível a
xenofobia, o racismo, ofanatismo. G. DEVEREUX expressa-o muito bem:O ato de
formular e de assumir uma identidade coletiva maciça e dominante, e isso,qualquer
que seja essa identidade, constitui o primeiro passo para a renúncia `definitiva` à
identidade real. Se somos apenas um espartano, um capitalista, um proletário, um
budista,estamos perto de não ser absolutamente nada e, portanto, de simplesmente
não ser (13).

Reencontrar a coesão, graças a identidades coletivas fortes, é se voltar ao grupo de


pertinência, ao nosso "nós", é imputar os problemas ao outro, sem se dar conta de
que,através desse processo, nós próprios nos dissolvemos enquanto portadores de
uma identidade irredutível à dos outros. É recusar (como já apontei anteriormente) o
fato de que somos o produto de identificações múltiplas, de que podemos ter
marcos identificatórios mutáveis ao longo de nossa vida e de que, graças a esse
jogo identificatório, podemos escapar à pré-formação desejada pela sociedade e
não nos tornar indivíduos totalmente heterônimos.A identidade coletiva favorece
ainda, como mostrou FREUD (14), o "narcisismo das pequenas diferenças", que
tem como efeito "unir uns aos outros, pelos vínculos do amor [e eu mencionaria os
da fascinação, da sedução ou da obrigação], uma massa maior de homens, com a
única condição de restarem ainda outros de fora para serem alvos de ataques".
Esse "narcisismo" permite "uma satisfação cômoda do instinto agressivo e através
dela a coesão da comunidade se torna mais fácil para seus membros". Não
podemos, no entanto, esquecer que esse "narcisismo grupal" pode até chegar ao
racismo exacerbado e,daí, ao fanatismo religioso e político que permite a indivíduos
de uma cultura não suportarem o menor desvio da parte de outros que
compartilham a mesma cultura. Com efeito, quanto mais uma cultura se quer
unificada, mais intolerante ela se torna e mais ela deseja a morte dos outros ou, ao
menos, a sua conversão. Ela é animada pelo ódio e por uma alucinação coletiva, na
qual se forja uma imagem dos estrangeiros (ou dos desviantes) como perseguidores
onipotentes e, portanto, seres a eliminar. O indivíduo que adere sem falha a esse
tipo de cultura só pode se sacrificar por ela e comportar-se de forma heterônoma.
Vê-se, portanto, que, quanto mais a identidade coletiva existe, menos o
questionamento é possível menos os indivíduos podem tentar aceder à
autonomia.O indivíduo individualizado (e não individuado, a individuação estando do
lado da constituição do sujeito), o indivíduo singular, preso na massificação obtida
pelo apego às identidades coletivas, não pode ser considerado como sujeito
humano. Tal indivíduo só sabe repetir, reproduzir, recriar o funcionamento social tal
como ele é (salvo a reserva já feita,mas sobre a qual faço questão de insistir, de que
um tal indivíduo, totalmente pré-formado e definido pela sociedade, sempre tem em
si mesmo os recursos para se libertar das malhas do social).A essa figura do
indivíduo individualizado opõe-se seu inverso: a figura do sujeito. O sujeito humano
é aquele que tenta sair tanto da clausura social quanto da clausura psíquica, bem
como da tranqüilização narcísica, para se abrir ao mundo e para tentar
transformá-lo.Quando digo que o sujeito transforma o mundo, as relações sociais,
as significações das ações, não quero identificá-lo ao grande homem que tem uma
visão globalizante, que visa à transformação da totalidade enquanto tal. Quero
simplesmente dizer que cada um, aceitar as determinações que o fizeram tal como
é, tem como projeto voluntário, nos lugares da vida cotidiana, em sua vida de
trabalho, em suas relações sociais de todos os dias, tentar introduzir uma mudança
em si mesmo e nos outros, por mínima que seja, a respeito de qualquer tipo de
problema.O sujeito é um ser criativo. Para definir criatividade, o melhor é citar
WINNICOTT (15):

A pulsão criativa pode ser vista em si mesma; bem entendido, ela é indispensável
ao artista que deve fazer obra de arte, mas ela está igualmente presente em cada
um de nós, bebê,criança, adolescente, adulto ou velho, que pousa um olhar
surpreso em tudo o que vê; ela está presente em quem faz, voluntariamente,
qualquer coisa, seja uma lambuzada com seus excrementos, seja um choro
intencionalmente prolongado para saborear sua musicalidade.Essa pulsão criativa
aparece tanto na vida cotidiana da criança retardada, que sente prazer em respirar,
quanto na inspiração do arquiteto que, de repente, sabe o que quer construir e
pensa então nos materiais que poderá utilizar, a fim de que sua pulsão criativa tome
forma e figura, e que o mundo possa testemunhá-la.A referência a WINNICOTT
significa que não me interesso particularmente pela vontade que os grandes
homens têm de transformar todas as variáveis do mundo (uma tal preocupação é a
de um espírito "elitista"); levo a sério, em compensação, a vontade de cada um de
fazer mudar as coisas (pequenas e grandes) e o desejo de criar, aqui e agora, uma
novidade irredutível. Os artistas não se enganaram a esse
respeito.HUNDERTWASSER declara a seus alunos:Se vieram para aprender, é
ainda pior, porque vão aprender coisas que não lhes são próprias,que não
correspondem a vocês e que estragam suas vidas. A única maneira de se
encontrarem enquanto artistas é através de sua própria ação criadora (16) e isso
pode ser feito somente em suas casas, não na escola!.Paul KLEE escreve: O que
quero ensinar a meus alunos não é a forma fechada, imobilizada; é a formação, a
gestação, o nascimento, o primeiro movimento indistinto da matéria, antes que ela
se fixe em natureza morta... Quanto mais longe mergulha o olhar do artista, mais
seu horizonte se alarga do presente ao passado. E mais se imprime, em lugar de
uma imagem da natureza,aquela única que conta, a criação enquanto
gênese.Marcel DESCHAMP exclama: "Alarguei a maneira de respirar" e o poeta
VictorSEGALEN, em seus Conselhos a um viajante, assim se expressa:Evita
escolher um lugar de asilo... chegarás, meu amigo, não ao charco das alegrias
imortais, mas aos remansos cheios de em briaguez do grande rio diversidade.O
sujeito é, portanto, um ser capaz, ao mesmo tempo sapiens, demens (objeto da
hybris),ludens e viator, homem portanto de sabedoria e loucura, do jogo e da
vagabundagem,respirando a plenos pulmões um ar salubre, dando "um sentido
mais puro às palavras da tribo" (MALLARMÉ), interessando-se mais pela
germinação das coisas do que pelos resultados tangíveis, inebriado pela
diversidade da vida e capaz de percebê-la; portanto,homem que sabe desposar
suas contradições e fazer de seus conflitos, de seus medos, de suas metamorfoses
a própria condição de sua vida, sem dominar o caminho que toma nemas
conseqüências exatas de seus atos; homem apto a recolocar em jogo sua vida e a
correr riscos.

Foi por isso que chamei esse sujeito de criador da história (17). Porém, é preciso
parar um momento, porque uma armadilha nos espera aqui: o criador de história,
em particular o'grande homem, freqüentemente é apenas um "indivíduo
individualizado", preso na gangue dos ideais, mesmo se tem a aparência de um
sujeito que teve uma influência primordial na dinâmica social.Os grandes homens
correspondem efetivamente à definição de pessoas que querem criar coisas
voluntariamente. No entanto, estão presos à fantasia do dominação total que os leva
a negar a alteridade do outro (e, aliás, a sua própria alteridade). Michel SERRES, a
esse respeito, propõe uma visão totalmente negativa: Não digo: há loucos perigosos
no poder e um só bastaria. Mas digo: no poder só há loucos perigosos. Todos jogam
o mesmo jogo e escondem da humanidade que eles preparam sua morte sem
acasos, cientificamente (18).Essa visão é radical e não posso compartilhar
inteiramente dela. O que não impede que ela tenha uma parte de verdade. Com
efeito, entre os grandes homens, pode-se identificar os megalômanos ocupando
uma posição paranóica, os manipuladores ocupando uma posição perversa, os
sedutores ocupando uma posição histérica. Caracterizemos rapidamente esses três
tipos. O megalômano, um pouco paranóico, sente-se eleito por Deus, pela natureza,
para realizar uma missão salvadora, para lavar o mundo de sua sujeira, fazendo-o
tomar consciência de sua culpabilidade, assegurando-lhe a redenção, recriando-o
apenas pela palavra e instalando-se num imaginário enganoso (no qual tudo se
torna possível). Assim, há o exemplo, estudado por FREUD (19), do presidente
Woodrow WILSON, identificado a seu pai, pastor presbiteriano que lhe havia
reservado o papel de salvador do mundo. WILSON acreditava-se eleito por Deus
(seu pai encarnando a palavra divina) para propor, depois da guerra de 1914-1918,
os fundamentos de uma paz geral e definitiva entre as diferentes nações em guerra.
Sabe-se o que aconteceu com esse projeto grandioso: o desmembramento do
império austro-húngaro deu à Alemanha a hegemonia da Europa Central e foi um
dos fatores da segunda guerra mundial. Essa desagregação da Europa Central tem
ainda,atualmente, efeitos devastadores (aumento dos nacionalismos e do
anti-semitismo). "Eis asconseqüências dos atos `virtuosos' daquele que se tomava
como o Jeová dos Hebreus",segundo FREUD e BULLITT (20), do homem que
declarava, durante a campanha para a sua eleição à presidência dos Estados
Unidos, a um de seus detratores:Lembre-se de que Deus quis que eu fosse
presidente dos Estados Unidos e que nem você nem nenhum mortal pode impedi-lo
(21).Assim também HITLER, caso bem conhecido e, ao mesmo tempo, complexo
demais paraser evocado em poucas linhas, quis fazer do alemão o povo eleito e,
para isso, deveria fazerdesaparecer o outro povo que se considerava objeto da
eleição divina, o povo judeu. Poder-se-iam citar muitos outros nomes; basta o de
STALIN, obcecado com a força pela força,inventando complôs, incapaz de viver
sem inimigos e fazendo seu povo pagar pelo fruto de seu delírio paranóico.Quanto
ao manipulador perverso, esse está, por sua vez, possuído pela fantasia do domínio
total dos seres e das coisas, crê falar a linguagem da verdade, reduz as relações
humanas relações de objetos, só considera o mundo sob o ângulo econômico.
LENIN, que não tinha

interesse algum pelos outros, que queria dobrar o mundo à sua vontade, que tomou
o poder contra os mencheviques, graças a um golpe de força (porque o perverso
não ama o real e, ao contrário, denegou a realidade), que estava pronto a utilizar
qualquer meio para chegar a seus fins, é um bom exemplo desses chefes
perversos; a um nível mais irrisório, os tecnocratas,recém-saídos das grandes
escolas, quiseram dobrar o mundo a seus modelos e a suas equações.O sedutor
histérico é o novo tipo de grande homem em voga. Ele vê o mundo como um grande
teatro e tem o papel de escrever a peça mais persuasiva, de assegurar a
mise-en-scène mais ao gosto da mídia e de ser o ator com melhor desempenho. O
teatro é também para ele um terreno de esportes, como já indiquei anteriormente.
Ele é histérico na medida em que erotiza o conjunto das relações sociais, onde
gosta da performance por ela mesma(ela dá satisfação a seu eu grandioso, que
toma a si mesmo por ideal), só pensa em termos de estratégia, tem gosto pelo
instantâneo, pelo acontecimento (Bernard TAPIE declara: sou um ser dos
acontecimentos). O surpreendente é que esse homem não se reivindique
capacidades carismáticas excepcionais, como WILSON ou HITLER, ou capacidades
manipulatórias, nem uma força de pensamento e de ação, como LENIN: ao
contrário, ele se proíbe de ser excepcional. Sua mensagem é simples: "Sou
admirável porque o quis e qualquer um de vocês pode se tornar admirável, se fizer
como eu, se tiver tanta coragem quanto eu". O grande patrão italiano C. de
BENEDETTI exprime muito bem essa posição: Na Itália, meus aliados (...) são as
pessoas comuns, porque sou, a seus olhos, uma demonstração do possível (...). Se
elas tomarem um grande patrão italiano, AGNELLI por exemplo, não podem sonhar
em se tornar AGNELLI. AGNELLI a gente nasce, não se torna.Em contrapartida, é
possível tornar-se DE BENEDETTI, há milhares de empresários na Itália que podem
querer isso e esperá-lo. Partem de uma situação similar à minha e o tempo
necessário para isso não parece uma duração mítica, mas uma duração
realista.Pode-se compreender o sucesso de um tal modelo, pois ele promete a
qualquer um, com a condição de ser corajoso, poder ser um verdadeiro chefe de
empresa (e o que é mais glorioso atualmente que chegar a esse lugar?).Poderia
acrescentar à minha panóplia de "caracteres" os antigos burocratas obsessivos que
fizeram sua carreira à sombra de grandes homens (os apparatchiki) e que um dia se
tornam uma mistura de manipuladores perversos e de sedutores-histéricos, como
GORBACHEV.Mas uma tal evolução e uma tal mistura de estilo é ainda muito nova
para ser descrita e explicada de maneira rigorosa. Tentarei em outra ocasião.Em
todo caso, se os megalômanos-paranóicos podem parecer mais ou menos
"doidos"segundo a concepção de Michel SERRES, os outros escapam a essa
denominação. Eles se apresentam, ao contrário, como indivíduos perfeitamente
normais. Mas, talvez, de uma normalidade esmagadora. M. CHIRAC declarou um
dia: "Eu não sonho, não tenho dúvidasmorais". Podemos nos perguntar se essa
falta de fantasia não é um pouco perigosa para quem fala e para aqueles a quem
ele se dirige. A psicanalista Joyce McDOUGALL (22)caracteriza essas pessoas
como "caracteriais de tipo normal". Ela descreve a seu respeito:O caracterial de tipo
normal criou para si uma carapaça que o protege de todo despertar de seus
conflitos neuróticos e psicóticos. Ele respeita as ideias recebidas como respeita as

regras da sociedade e não as transgride jamais, nem mesmo na imaginação. O


sabor da Madeleine não desencadeia nada nele e ele não perderá seu tempo em
busca do tempo perdido. Mesmo assim, ele perdeu alguma coisa. Essa normalidade
é uma carência que atinge a vida fantasmática e que afasta o sujeito dele
mesmo.Em outras palavras, um indivíduo sem fantasias, sem interrogação, sem
dúvida, um sujeito encara passado (segundo o termo de McDOUGALL) ou
encouraçado (segundo a terminologia de REICH) está afastado dele mesmo e, mais
ainda, dos outros. Pode-se então perguntar se essa paranormalidade lhe permite
ser sensível à surpresa, ao inusitado, a perceber as coisas e os seres sob outro
ângulo, criar seja lá que novidade for.Teríamos, assim, nas duas extremidades: os
loucos de poder e os hiper-normais. Eles têm uma influência social inegável, pois
exprimem em voz alta o pensamento banalizado e dão satisfação aos desejos
recalcados. São mesmo os mais numerosos entre as pessoas que ocupam postos
de responsabilidade. Mas não são verdadeiros criadores de história, no sentido que
dou a esse termo, pois falta a ambos, conforme McDOUGALL, "uma certa
anormalidade" (uns pecam pelo excesso, outros pela falta) que lhes permitiria
"manter os olhos ávidos da infância" (McDOUGALL) e ter vontade "de tudo
questionar, de tudo desarrumar, de tudo realizar" (McDOUGALL). São desprovidos
da aptidão à transgressão. Não confiam na "imaginação radical" (CASTORIADIS)
que jaz em todo ser humano. E,assim, só sabem repetir, reproduzir. São portadores
da pulsão de morte, tanto em sua forma violenta como em sua forma sedutora.A
noção de sujeito torna-se precisa: não é apenas alguém que traz um projeto
voluntário, é também um ser que atinge "um certo grau de anormalidade" e que está
em condições de interrogá-lo, de se lançar no desconhecido, de ter segundo, o
termo de FREUD, "uma alma de conquistador", mesmo se nada descobre, mesmo
se não provoca mais que um leve impacto sobre o movimento do mundo. É também
um homem que demonstra consistência. MOSCOVICI, a partir de trabalhos de
Psicologia Social Experimental que desenvolveu com C. FAUCHEUX, insiste sobre
essa noção, "que significa, por um lado, o caráter irrevogável de sua escolha e, por
outro, a recusa de compromisso sobre o essencial (23). Em Certo sentido, o sujeito
é um homem movido por uma ideia fixa, como FREUD quando anunciava: "A
Psicanálise é a minha causa". Vê-se bem aqui a diferença entre consistência e
coerência. Um ser coerente tem uma personalidade compacta, sem falhas. Corre
pela vida como em uma auto-estrada. Ele não tem projeto, a não ser o de continuar
a fazer funcionar a sociedade tal como ela é. Um ser consistente pode ter dúvidas,
tomar caminhos transversais,recolocar em questão algumas de suas ideias (como
FREUD ou MARX, remanejando continuamente suas análises e suas teorias). Mas
ele conserva o mesmo projeto, que é um verdadeiro projeto existencial: permitir a
tomada de consciência, fazer advertir o sujeito individual, em FREUD; favorecer a
tomada de consciência de situações reais, fazer advir osujeito coletivo, em MARX.
Se o sujeito evolui, ele o faz em sua linha, em sua linhagem, na tradição da qual é
herdeiro e que enriquece e deforma.Mas essa consistência deve ser perceptível e
deve poder provocar reações e discussões.MOSCOVICI, igualmente, acrescenta
que um tal sujeito deve "optar por uma posição clara,visível e, em seguida, criar e
sustentar um conflito com a maioria, lá onde a maioria é tentada a evitá-lo."

O sujeito não é homem de comprometimentos. Ao mesmo tempo, é uma pessoa


capaz de criar redes de alianças, pois sabe que se ele se encontrar sozinho, se
outros não podem se identificar a ele e com sua causa, só poderá fracassar (não é à
toa que a criação da Associação Internacional de Psicanálise pode tranqüilizar
FREUD e que a criação da 1aInternacional era ardentemente desejada por MARX).
A ideia fixa não impede a astúcia (nosentido da Mètis dos gregos) e o
aproveitamento da oportunidade, quando ela se apresenta.ARISTÓTELES dizia que
o homem de gênio deveria saber utilizar o Kairos, a ocasião.Aqui não se trata de
manipulação, porque o sujeito deve estar cheio de furor (de hybris),deve ser capaz
de sair dele mesmo (ek-stase), para fazer triunfar suas ideias.ARISTÓTELES já o
sabia e o mostra muito bem no "problema trinta", recentemente republicado.
Consistência e furor, consistência e astúcia andam juntas. Nem MARX nem FREUD
foram pessoas boazinhas; no entanto, souberam conciliar furor, consistência e
astúcia, o que não é nada fácil.Uma outra característica do sujeito é a de viver como
um "exortar", segundo a expressão de V.SEGALEN. Para SEGALEN, o exota é
aquele que tem a percepção do diverso e o poder de conceber outro, sendo assim
aquele que olha o mundo como se o visse pela primeira vez.Ele é, portanto, o
homem pronto a ser tomado pela surpresa e pelo inusitado, como também a
provocá-los. Está muito próximo do que BLANCHOT evoca a respeito do homem
votado ao exílio, à dispersão. BLANCHOT escreve:há uma verdade do exílio, há
uma vocação do exílio" e essa vocação "é a dispersão, porque a dispersão, da
mesma forma que apela para uma estadia sem lugar, da mesma forma que renega
toda relação fixa entre a força e um indivíduo, um grupo ou um Estado, delimita
também, diante da exigência do todo, uma outra exigência e, finalmente, interdita a
tentação da Unidade-Identidade (24).O "exota", o exilado, não pode jamais estar
colado a uma organização, a um Estado, a uma identidade coletiva. É possível ser
um "exota" na sua própria sociedade, sentir-se à margem mesmo se a sociedade
deseja sua integração. O que é interessante, no momento atual, é que,em vista dos
movimentos de migração que se intensificam, serão vistos cada vez mais"exotas"
reais, isto é, pessoas vindas de outros países, provenientes de outras culturas,
pessoas que, assim, necessariamente, posaram um olhar novo e surpreso sobre a
sociedade que os acolhe e que, quer queiram ou não, questioná-la-ão e a
influenciarão, do mesmo modo que serão influenciados por ela.Os "exotas",
entretanto, não ficarão presos no processo de idealização. Estarão, ao contrário,
presos na necessidade de sublimação, como os "exotas" indígenas que teriam
escolhido esse destino.Serei breve sobre o processo de sublimação, sobre o qual
discorri várias vezes em textos recentes (25). Deixarei de lado o aspecto
indispensável da atividade de sublimação na formação do vínculo social, na medida
em que é evidente, agora, que nenhuma sociedade poderia ter sido fundada se os
homens não pudessem ter passado do prazer sexual direto ao prazer da
representação e da imaginação, se eles não pudessem ter passado da satisfação
das pulsões egoístas àquelas obtidas pelo agenciamento de pulsões altruístas,
valorizadas socialmente.

Parece-me mais importante observar que a sublimação implica no reconhecimento,


por cada um, de sua própria estranheza, da estranheza dos outros e no desejo de
propor, sem vontade de dominação, ao conjunto dos indivíduos com os quais se
vive, uma investigação conjunta e partilhada. Sublimar é aceitar sua parte de
estranheza, de contradição, de remorsos, de metamorfose ou de êxtase. O fato de
poder se interrogar sobre si mesmo, de se descobrirestrangeiro para consigo
mesmo (porque o ser humano se constitui na clivagem), permite considerar o outro
como menos estranho e mais semelhante a si mesmo. Assim, o outro (ou a coisa)
não é mais um ser a dominar, a domar, por nossa atividade intelectual ou física, mas
alguém com quem se pode tentar manter relações de reciprocidade, relações que
podem se mostrar difíceis, conflituosas se necessário, mas que tendem a ser as
mais simétricas possíveis.A sublimação não impede o ideal, mas ela luta contra a
doença do ideal. O sujeito é então aquele que aceita se recolocar em questão, ser
questionado, ele não tem necessidade delegações que lhe sirvam simplesmente de
apoio para existir. De fato, sublimar é difícil, porque é viver ao mesmo tempo como
ser completo (homo sapiens [homem sábio], homodemens [homem louco],
susceptível de ser atravessado por afetos que não controla, que o põem em estado
de desordem, sem saber se poderá aceder a uma nova ordem, homo
ludens[homem jogador] e homo viator [homem viajante], como evoquei
precedentemente) e como ser clivado, dividido, mantendo-se em pé diante da
angústia provocada pela ausência dos Deuses e pela possibilidade de que o outro
não seja um apoio, mas se revele adversário implacável. A sublimação implica,
igualmente, na aceitação da tradição, da filiação, dadívida que temos para com os
que nos precederam e para com as gerações futuras. Se a dívida não é
reconhecida, se o homem cede à tentação de auto-engendramento, estará talvez
em condições de se tornar um grande homem. Ele deixará apenas ruínas atrás de
si. Para Engendrar novidades e a vida, é preciso admitir ainda a violência mortífera
que atua na fantasia de auto-engendramento. Sublimar é, portanto, estar consigo
mesmo, com os outros,com seus pais e com seus filhos, em uma relação na qual a
vida palpita, vida cheia de angústia e de alegria, de possível morte e de
transfiguração.Essas pessoas que não cedem às ilusões, que vivem com os outros,
não numa interrogação permanente, mas numa interrogação suficiente, colocam-se
então numa história coletiva,sabendo que seu lugar nunca estará totalmente
assegurado, sentindo-se e querendo-se, em parte, integradas, em parte, exiladas.
São talvez elas que provocam as rupturas mais fundamentais, a possibilidade de um
caminho para a instauração de sociedades de sujeitos mais autônomos, mesmo
quando elas não o sabem e mesmo quando pensam que são apenas"zé-ninguém",
sem projeto voluntário verdadeiramente constituído (em tal caso, é a realização de
uma vida guiada por suas próprias exigências e pelo reconhecimento do vínculo
social que forma o projeto).Essas pessoas, definitivamente, comportam-se como
verdadeiros heróis. Utilizo o termo no sentido que lhe deu FREUD: o herói, aquele
que teve a coragem "de sair da formaçãocoletiva". Essas pessoas souberam colocar
seus ideais, reconhecer a alteridade do outro,reconhecer-se a si mesmas. (O
caminho para o outro passa pelo caminho para si). Esse Heroísmo é um heroísmo
partilhável. Basta que cada um queira tentar ser ele mesmo com os outros. Então, o
mundo será composto mais por sujeitos autônomos do que por
indivíduos"individualizados" e a dinâmica social será o produto do confronto de
homens livres e responsáveis.

Para concluir meu intento, é evidente que as condições colocadas para atingir a
plena autonomia indicam que sua ocorrência é fraca. É mais fácil deixar-se guiar
que conduzir sua própria vida, mais fácil imitar que inventar, mais fácil idealizar que
sublimar. Mas uma outra constatação é necessária: da mesma maneira que o
indivíduo totalmente heterônimo não existe, como mostrei na primeira parte de
minha exposição, o sujeito inteiramente autônomo também não existe.
Simplesmente porque o homem é clivado, contraditório,mistura inextricável [
ue não se desemaranhar, desembaraça ou desenlaça
] de pulsão de vida e de morte, capaz do melhor e do pior, freqüentemente
obcecado pelo poder, pelo prestígio e sentindo um desejo de segurança narcísica e,
também, porque as sociedades precisam, para se manter, de um mínimo de ilusões
e de crenças, de disfarces e de hipocrisia. Cada um de nós é, de fato, em certos
momentos, mais um indivíduo pronto a aderir, incapaz de se colocar questões,
pedindo amarras fortes, cedendo à idealização (dos Deuses, do Estado ou de um
outro ser humano, caso contrário, a paixão não seria desse mundo) e, em outros,
um sujeito mais autônomo, em condições de questionar o mundo e a si mesmo e de
procurar, tateando, seu próprio caminho. Portanto, a ideia de uma sociedade de um
sujeito tendo acedido à autonomia se dilui. O que permanece, em compensação, é a
possibilidade de cada sociedade e de cada pessoa entrever a dificuldade do
caminho e de, às vezes, arriscar-se por ele. Tanto quanto é impossível chegar à
verdade, é impossível atingir a autonomia. Nem por isso a busca da verdade e da
autonomia devem terminar. Saber que perseguimos um fim impossível nos chama,
simplesmente, para um pouco de modéstia, de humor e de ironia, em relação a nós
mesmos e a nossas possibilidades de influência. Talvez seja ao atingir a consciência
de nossas impossibilidades que cheguemos, mais frequentemente, a nos conduzir
de maneira autônoma e a não nos deixar prender nas ilusões que o social difunde e
das quais o ser humano é particularmente ávido. Se, às vezes, os heróis ficam
cansados, em outros momentos, podem se reerguer e nos surpreender.Aceitemos o
augúrio e trabalhemos cotidianamente para fazer da "vida imediata"(ELUARD) mais
um lugar de surpresas do que um lugar de repetição morna.
notas:
01.- Traduzido de ENRIQUEZ, Eugène. "Le rôle du sujet humain dans la dynamique
sociale".Revue Européenne des Sciences Sociales. Tomo XXIX, 89, 1991, p. 75-89,
por Sonia Roedel.02.- Cf. meu texto "Individu, création et histoire". In: Connexions,
n. 44, E.P.I., 1984, e o capítulo de minha tese Pouvoir et lien social, Paris: Gallimard,
1980, intitulado "O papel da conduta do indivíduo " .03.- CASTORIADIS, C.
L'institution imaginaire de la société. Paris: Seuil, 1975.04.- VEYNE, P. Les Grecs
ont-ils cru à leurs mythes? Paris: Seuil, 1975.05.- ENRIQUEZ, E. "Le mythe ou la
communauté inchangée". L'esprit du temps, n. 11, Ed. deMinuit, 1986.06.-
Ibidem.07.- Esse ponto será retomado mais adiante neste texto.08.- FREUD, S.
Malaise dans la civilisation (1929). Paris: PUF., 1970.09.- CASTORIADIS, C., op. cit

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