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As Moscas da práxis

Autor: Rafael Teles de Paiva1

A mosca, um animal irracional, desprovido de consciência, reproduz


suas ações através de um instinto genético, uma cultura inserida em seu
DNA. O voo dessa pequena praga, provido de uma estratégia inata, um
“instinto selvagem” do ato de voar, é sem dúvida uma caução biológica.
Quando está diante de um doce, concentra-se apenas em adquirir aquilo que
poderá nutri-la naquele espaço de tempo. O instinto de uma Drosophila
melanogaster, em inúmeras ocasiões, chega a ser infalível: rápidos
movimentos, várias possibilidades encontradas de escapatória das
armadilhas da natureza a partir de seu panóptico natural. A possibilidade da
vigilância per instinctus desse reles animal, é o ponto de partida para este
artigo.

A mosca é o animal que, apesar de possuir o menor ciclo de vida do


reino Animalia, é um dos seres que mais se reproduz. Se um espécime possui
a capacidade física de perceber o mundo que a cerca e para se manter viva
(e assim perpetuar sua linhagem), demonstra um instinto cuja resposta
neuronal apresenta uma celeridade quatro vezes maior que a de um ser
humano (a mosca apresenta cerca de 100 mil neurônios, enquanto o nosso
cérebro detém de apenas 25 mil), e sua probabilidade de replicação é
gigantesca, portanto estamos diante de um animal que constantemente nos
vigia. Uma vigilância natural, instintiva, atribuída ao DNA e a sua
variabilidade genética. Para a mosca, não somos nada além de um apanhado
de seres que possivelmente dispõem de uma fartura nutritiva, independente
de qual gênero ou estado tal alimento possa se encontrar. Ela está na

1
Estudante do curso de licenciatura em Ciências Sociais da Universidade Estadual do
Ceará – UECE.
maternidade e no cemitério. A mosca está em todo lugar. É uma praga
natural.

Vamos de encontro ao mundo contemporâneo, à nossa práxis de


exploração capitalista. O capital está em constante transformação, em um
imparável processo de autovalorização. O mercado acumula, concentra e
centraliza o capital, fruto da exploração à classe trabalhadora. Nada pode ser
dissociado do sistema de produção pela produção. Estamos diante de uma
caução histórica que atribui à classe dominante o poder abstrato de controle
social. Não mais um controle associado à coação da liberdade. HAN (2018)
acredita que a ideia de “liberdade individual”, inserida no sistema capitalista
é “uma servidão na medida em que é tomada pelo capital para sua própria
multiplicação”2. Esse processo de multiplicação e obtenção de um acúmulo
de capital inconsciente, estruturado numa “alegoria” de liberdade individual,
e que constantemente se modifica e se amplia, é a raiz do aumento do
sofrimento psíquico concernente ao sintoma social de uma massa que, para
FREUD (2013) é “extremamente influenciável e crédula; é desprovida de
crítica”3.

A massa à qual me refiro é a grande massa de trabalhadores, a classe


que vende sua força de trabalho em troca de um salário, resultando na mais-
valia. O sofrimento da psique humana, colocando em seu devido lugar, isto
é, em sua práxis histórico-social, é proveniente dessa exploração que atualiza
e se prolifera com uma mosca. O capitalismo, tal como o animal, se estrutura
num panóptico, mas tenta superar as leis da natureza. Ele nasce infantil, com
uma consciência apregoada a princípios de acumulação célere para sua

2
HAN, BYUNG-CHUL. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder.
Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte, MG: Âyné, 2018. p. 13.
3
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. Tradução: Renato Zwick. Porto
Alegre, RS: L&PM Editores, 2013. p. 50.
sobrevivência, ao mesmo tempo que já se reproduz em instituições de
convívio social. O capital é concentrado, visando uma eliminação parcial da
concorrência e centralizado, estruturando o panóptico cultural, o artefato da
vigilância sobre os olhares dos 1% mais ricos. A consolidação da hegemonia
burguesa sobre a práxis é a criação e o aperfeiçoamento de um sistema de
vigilância que não mais reprime, mas desenvolve uma forma de “exploração
da liberdade”, como foi dito anteriormente.

O capitalismo é, alegoricamente, um “conglomerado de moscas”, que


sobrevoa sobre um “doce social”, produzido pela classe trabalhadora, a fim
de explorá-lo até se estafar, obter o máximo possível de matéria para assim
crescer e se multiplicar. Resta ao ser humano uma parte ínfima do doce, ainda
não contaminada com as “bactérias sociais”. Tais “germes da sociedade”, em
outras palavras, são tudo aquilo que há de mais dantesco na estrutura social
do sistema capitalista: o racismo, machismo, LGBTQIA+fobia, padrões de
beleza, ou seja, tudo aquilo que a sociedade só consegue superar se for
contrária à dominação da classe dominante, pelo tácito fator do
estabelecimento da hegemonia de classe, que se devem a aparelhos de
segregação estrutural, institucional e cultural. Prosseguindo na análise,
apenas as migalhas restam ao trabalhador, que se frustra psicologicamente,
agregando problemas relacionados a sua psique.

Por fim, as “Moscas sociais” servem de alegoria para o constante e


célere sistema capitalista. O panóptico é constante, rápido e inconsciente, é
imperceptível aos olhos do povo, o que permite a exploração da liberdade. A
mosca é o dono dos meios de produção, das relações sociais, de tudo aquilo
que a classe trabalhadora acredita ser “livre”. A medida que ela acredita mais
nessa ideia de liberdade, mais é explorada. A luta se enfraquece no meio de
sociabilização, a dominação estruturada nesse poder (que é abstrato) cumpre
a cada momento sua tarefa para consolidação de sua hegemonia. Uma mosca
pode morrer, da mesma forma que uma empresa pode falir ou perder sua
influência, mas outras centenas nascem e participam do mesmo processo,
ciclicamente. A luta de classes radical se faz vital, à medida que o Eu-
proletário torna-se constructo de uma massa de exploração, conduzida pelo
inconsciente, o Outro (a burguesia), como afirma Marx (2010): “ser radical
é agarrar as coisas pela raiz. E a raiz do homem é o próprio homem”4. A raiz
do homem inserido na práxis é a sua condição histórica e material, no caso
proletário, a reconstrução de sua consciência de classe, de luta contra o
sistema, consolidando bases capazes de sufocar e implodir, de modo que
efetue uma “esterilização sistêmica”, para que o ser possa finalmente se
prover do doce sabor da produção para a própria existência, sem ser vigiado
pela Drosophila burguesa.

REFERÊNCIAS

HAN, BYUNG-CHUL. HAN, BYUNG-CHUL. Psicopolítica: o neoliberalismo e as


novas técnicas de poder. Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte, MG: Âyné, 2018.
124 p.

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. Tradução: Renato Zwick. Porto
Alegre, RS: L&PM Editores, 2013. 176 p.

MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: Crítica da


filosofia do direito de Hegel. Tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São
Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2010. 176 p.

4
MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução. In: Crítica da filosofia
do direito de Hegel. Tradução: Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo, SP:
Boitempo Editorial, 2010. p. 151.

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