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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS


NÚCLEO INTERDISCIPLINAR DE ESTUDOS E PESQUISAS EM DIREITOS HUMANOS
PROGRAMA INTERDISICPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTOS TEÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS II

Prof. Dr. João da Cruz Gonçalves Neto


Goiânia, 8 dezembro de 2023

ROTEIRO DE AULA V

CONTRA OS DIREITOS HUMANOS!

Por Slavoj Žižek.

Publicada originalmente na New Left Review, n. 34, julho-agosto de 2005. Traduzido


do inglês por Sávio Cavalcante. Revisão de Martha Ramírez-Gálvez e Silvana Mariano
para a revista Mediações.

As invocações contemporâneas aos diretos humanos, em nossas sociedades liberal-


capitalistas, geralmente repousam sobre três suposições.
1) A primeira, que tais invocações funcionam em oposição a fundamentalismos que
naturalizariam ou essencializam traços contingentes historicamente
condicionados.
2) A segunda, que os dois direitos mais fundamentais são a liberdade de escolha e o
direito de dedicar a própria vida à busca do prazer (ao invés de sacrificá-la por
alguma causa ideológica maior).
3) A terceira, que a invocação aos direitos humanos pode formar as bases para uma
defesa contra o “excesso de poder”.

1) Os fundamentalismos

• O que a Europa vê no outro é a si mesma. Ela introduziu o fundamentalismo e a


barbárie em outros povos.
• Hegel: o mal reside frequentemente no olhar que o percebe. Os Bálcãs se
“balcanizaram no período de meados do século XIX, momento em que foram
completamente expostos aos efeitos da modernização europeia.
• A Turquia do séc. XVI era tolerante e multicultural, possuía a mesma
característica que o Ocidente hoje celebra como um sinal de sua superioridade
cultural – o espírito e a prática da tolerância multicultural. A situação dos Balcãs
das década de 90 é apresentado como um efeito da degenerescência islâmica.

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• Os traços fundamentalistas – intolerância religiosa, violência étnica, fixação em
trauma histórico – que o Ocidente agora associa com “os Bálcãs” se originam no
próprio Ocidente.
• O que os europeus ocidentais observam e deploram nos Bálcãs é o que eles
mesmos introduziram ali e o que eles combatem é o seu próprio legado histórico
descontrolado.
• Mas, deveríamos examinar os modos pelos quais a essencialização
fundamentalista dos traços contingentes é, ela mesma, uma característica
da democracia liberal-capitalista.
• Está na moda queixar-se de que a vida privada está sob ameaça ou mesmo
desaparecendo em face da habilidade dos meios de comunicação de expor em
público os detalhes pessoais mais íntimos, mas o que ocorre é a vida pública
em si está desaparecendo, a esfera pública propriamente dita, na qual se
opera como um agente simbólico que não pode ser reduzido a um indivíduo
privado, a um feixe de atributos, desejos, traumas e idiossincrasias pessoais.
• O lugar-comum “sociedade de risco” – de acordo com o qual o indivíduo
contemporâneo experimenta a si mesmo como algo completamente
“desnaturalizado”, mesmo em relação às suas características mais naturais,
desde identidade étnica à preferência sexual, como sendo escolhidas,
historicamente contingentes, aprendidas – é, então, profundamente enganador. O
que testemunhamos hoje é o processo oposto: uma re-naturalização sem
precedentes. Todas as grandes “questões públicas” são agora traduzidas em
atitudes para uma regulação de idiossincrasias “naturais” ou “pessoais”.
• Isto explica por que, em um plano mais geral, conflitos etno-religiosos pseudo-
naturalizados são a forma de luta que mais se ajusta ao capitalismo global. Na
era da “pós-política”, quando a política propriamente dita é
progressivamente substituída por uma administração social de especialistas,
as únicas fontes de conflito restantes são as tensões culturais (religiosas) ou
naturais (étnicas). E a “avaliação” é precisamente a regulação da promoção
social que se encaixa com esta re-naturalização. (Sem política o que nos
resta é uma luta moral, um controle e regulação da vida social, no aspecto
cultural. Mudar o mundo, próprio da política, não é mais possível. Por isso
a re-naturalização das relações sociais, que agora se reduzem ao moral e ao
cultural, sem desafiar a política vista como técnica necessária.)

2) Os dois direitos mais fundamentais: liberdade de escolha e direito ao prazer

A ausência da liberdade de escolha

• As condições de escolha tornam a escolha não livre (Amish).


• Muçulmana: pertencimento à comunidade ou individualidade idiossincrática?
• Livre escolha pode ser um violento desenraizamento.

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• Centro nervoso da ideologia liberal: a liberdade de escolha, fundamentada na
noção de sujeito psicológico, com propensões para se concretizar.
• A ideologia dominante vende as mesmas inseguranças causadas pelo
desmantelamento do Welfare State como oportunidades para novas liberdades.
• O sujeito psicológico tende a ver as mudanças como resultados.

A política da jouissance

• A oposição entre o ocidente liberal e o Islã fundamentalista se condensa no


direito da mulher à livre sexualidade.
• Todas as questões traumáticas se referem ao fato do que alguns/as não
participam do jogo de deixar seus corpos para a sedução sexual.
• A atitude liberal é tolerante na medida em que a presença do outro não seja
intrusiva, não seja outro.
• A tolerância, assim, coincide com seu oposto.
• A intolerância à minha proximidade emerge cada vez mais como um Direito
humano – a manter uma distância segura dos outros.
• É a mesma lógica do militarismo pacifista: a Guerra é aceitável na medida em
que traz a paz; está tudo bem com a democracia se ela está livre de seus excessos
populistas.
• O motivo subjacente dos fundamentalismos é optar pelo oposto do imperativo da
jouissance, para conter o excessivo narcisismo hedonista da cultura laica,
reintroduzindo o espírito do sacrifício.
• A rejeição do prazer demanda de seus seguidores um violento auto sacrifício à
causa, a fascinação por uma jouissance obscena total.
• Por outro lado, a vida orientada pelo prazer acarreta a disciplina de uma “vida
saudável”. A ordem do superego para se divertir é entrelaçada de forma
imanente à lógica do sacrifício.
• A escolha elementar é sempre desdobrada por uma adicional, entre elevar o
esforço pelo dever em si, mas pelas gratificações que provoca.

3) Defesa contra o poder?

• Não são os direitos humanos uma defesa contra o excesso de poder, enquanto
oposição ao fundamentalismo e busca pela felicidade?
• Marx: o poder se dá por excesso por conta de sua própria natureza. Ele vai além
da crítica usual de que a representação política nunca reflete diretamente a
estrutura social – ele aponta para o que Lacan chamará depois de “lógica do
significante”.
• Quando lidamos com dois ou mais grupos socioeconômicos, seus interesses em
comum podem apenas ser representados sob o disfarce da negação de suas
premissas compartilhadas.

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• Da mesma forma que o único denominador comum de todas as classes é o
excremento em excesso, e refugo, e resíduo de todas as classes – os rejeitados de
todas as classes.
• Para que esse sistema funcione ele também tem que atuar como representante de
uma classe particular – as que não podem representar a si mesmas.
• Estrutura paradoxal da representação bonapartista: manter-se por cima de todas
as classes implica uma dependência direta sobre o resíduo de todas as classes,
como última referência dos que não são capazes de agir como a gente coletivo.
• De acordo com a lei, o Estado está a serviço dos súditos; de acordo com o
superego subjacente a mensagem pública da responsabilidade é complementada
pela mensagem do exercício incondicional do poder: eu faço com vocês o que eu
quiser. Este excesso obsceno é um componente necessário da ideia de soberania.
• A assimetria é estrutural: a lei pode apenas sustentar sua autoridade se os súditos
escutarem nela o eco da obscena e incondicional autoafirmação do poder.
• Este excesso de poder nos leva ao argumento fundamental contra as grandes
intervenções políticas que têm por objetivo uma transformação global - elas
provocam violentos desastres em escala sem precedentes.
• Três teorizações sobre essas catástrofes: a) abertas – o Esclarecimento é um
processo emancipatório sem potencial totalitário inerente; as catástrofes apenas
indicam um projeto inacabado (Habermas); 2) a dialética do esclarecimento de
Adorno, Horkheimer e, hoje, Agambem – a propensão totalitária do
Esclarecimento é inerente e definitiva, tendo como consequência o mundo
administrado, junto com campos de concentração e genocídios; 3) Etienne
Balibar – a modernidade inaugura novas liberdades e novos perigos, e não há
garantia teleológica suprema do resultado.
• Ponto de partida de Balibar: a insuficiência da noção hegeliano-marxista de
converter a violência em um instrumento da Razão histórica, uma força que gera
uma nova formação social. Sua instrumentalização é eticamente inaceitável, mas
também teoricamente equivocada, ideológica no sentido forte.
• Balibar vê em Marx uma oscilação entre essa “teoria da conversão” teleológica
da violência e a noção muito mais interessante da história como um processo em
aberto de lutas antagônicas, cujo resultado final positivo não está garantido por
qualquer necessidade histórica que o englobe.
• Balibar: o marxismo é incapaz de gerar uma teoria adequada do fascismo e do
stalinismo e seus resultados extremos.
• Nossa tarefa é dupla: implantar uma teoria da violência histórica como algo que
não pode ser instrumentalizado por nenhum agente político, o que ameaça tragar
o próprio agente político em um ciclo vicioso de autodestruição; e também
propor a questão de como converter o processo revolucionário em si em uma
força civilizadora.
• Arendt: distingue o poder político e o mero exercício da violência. A autoridade
apolítica direta (exército, igreja, escolar) são exemplos de violência e não de
poder político no sentido estrito do termo.
• Temos que distinguir entre a lei pública simbólica e os seus complementos
obscenos, que implica que não há poder sem violência.

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• “O espaço político nunca é “puro”, mas sempre implica algum tipo de confiança
na violência pré-política. Por certo, a relação entre poder político e violência
pré-política é de implicação mútua. A violência não é apenas o complemento
necessário do poder, mas o próprio poder já está sempre na raiz de toda relação
aparentemente “apolítica” de violência.”
• A tarefa das análises críticas é perceber o processo político oculto que sustenta
todas essas relações “a” ou “pré” políticas.

A pureza humanitária

• A política despolitizada dos DHs como ideologia do intervencionismo militar,


que serve a fins político-econômicos específicos.
• Balibar: reversão da relação teórica e histórica entre “homem” e “cidadão” – o
homem é formado pela cidadania e não o contrário.
• Homo Sacer : paradoxalmente, ficou privado dos DHs no momento em que foi
reduzido a um ser humano em geral, não situado.
• Rancière: os direitos que parecem inúteis em seu lugar são mandados para o
exterior, como roupas velhas, dadas aos pobres.
• DHs é o direito das potências intervirem política, econômica, cultural e
militarmente em países do Terceiro Mundo.
• A posição dos DHs é anti-essencialista, com a de Foucault quando afirma que o
sexo é gerado pela multiplicidade de práticas de sexualidade. O homem,
portador de direitos, é gerado por um conjunto de práticas políticas que
materializam a cidadania. Os DHs são uma falsa universalidade ideológica, que
legitima e mascara a política concreta do imperialismo, das intervenções
militares e do neocolonialismo ocidentais.

O retorno da universalidade

• Interpretação marxista: os DHs universais são o direito dos homens proprietários


a trocar livremente no mercado, explorar trabalhadores e mulheres e exercer
dominação política.
• Essa é apenas uma metade. Como a universalidade abstrata se tornou um fato da
vida social? Em que condições os indivíduos se experimentam a si mesmos
como sujeitos de direitos humanos universais?
• Marx (o fetichismo da mercadoria): em uma sociedade na qual predomina a
troca de mercadoria, os indivíduos fazem referência a si mesmos como
personificações contingentes de noções universais abstratas.
• O que eu sou é vivenciado como contingente, pois o que me define é a
capacidade universal “abstrata” de pensar e trabalhar.
• A existência concreta da universalidade é o indivíduo sem um lugar adequado no
edifício social. A universalidade é um ato violento.
• Rancière: ambiguidade radical da noção marxista da diferença entre a
democracia formal – os DHs, as liberdades políticas – e a realidade econômica
de exploração e dominação.

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• A aparência da égaliberté possui também uma eficácia própria, não é só
aparência. O que era originalmente um edifício ideológico imposto por
colonizadores é tomado pelos súditos como uma maneira autêntica de articular
suas queixas autênticas.
• Rancière: embora os DHs não possam ser postulados como um além a-histórico
e essencialista, eles também não devem ser descartados como um fetiche
reificado.
• Rancière: longe de serem pré-políticos, os DHs universais designam o espaço
preciso da politização propriamente dita – o direito de um agente político em
declarar sua não coincidência radical consigo mesmo (sua identidade particular)
para postular a si mesmo como o supranumerário, aquele sem lugar adequado no
edifício social, e, portanto, como um agente da universalidade do social em si.
• Paradoxo. No exato momento em que tentamos conceber os direitos políticos
dos cidadãos sem fazer referência aos DHs universais meta-políticos, perdemos
a própria política, reduzimo-la a um jogo pós-político de negociação de
interesses particulares.

Perguntas sobre o texto:

A - O fundamentalismo

1) Podemos aceitar os pressupostos dos DHs de Zizek nos apresenta? Esses


pressupostos, mais que dos DHs, são próprios da cultura liberal? (1)
2) Por que o fundamentalismo que a Europa vê em outros povos é o dela próprio?
O que é esse fundamentalismo? (1-2)
3) Como e porque acontece hoje um processo de renaturalização sem precedentes?
(2)
4) Os DHs naturalizam a vida social? (2)
5) Por que as tensões naturais ou culturais são as tensões possíveis numa era de
pós-política e porque é a mais ajustada ao capitalismo global? (2)
B.1 - A ausência da liberdade de escolha

6) Por que a liberdade individual (como tolerante, multicultural) é resultado de


extrema violência? (3)
7) Como se constitui essa liberdade de escolha na ideologia liberal e por que ela é
seu centro nervosa? 93)
8) Como essa ideologia do sujeito como indivíduo psicológico faz com que se
possua apenas razões biográficas para os problemas sociais? (4)

B.2 - A vida dedicada à busca do prazer


9) Numa sociedade de indivíduos idiossincráticos a busca do prazer é um direito
básico. De que maneira a política preocupa-se cada vez mais com formas de
controlar sua fruição? (4)

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10) Tanto os liberais ocidentais quanto os fundamentalistas islâmicos mistificam
moral e ideologicamente suas posições quanto o direito da mulher à livre
sexualidade, segundo o autor. Explique esse argumento. (4)
11) Como Zizek faz equivaler essas posições antagônicas? (4)
12) Qual o ciclo vicioso do imperativo da jouissance? Por que é patológico? (5)

C – Defesa contra o poder?

13) O que é o excesso de poder e porque é um elemento necessário da soberania?


Qual seu paradoxo? (7)
14) Qual nossa tarefa para lidar com a violência histórica? (8)
15) A política pressupõe, necessariamente, a confiança na violência, uma vez que
esta é o próprio poder. Como a posição “apolítica” é também violenta? (9)
16) Os que intervêm em nome dos direitos humanos são partidários de uma
formulação diferente de justiça ou se opõem a projetos de justiça coletivos? (9)
17) Como podemos problematizar a oposição entre os direitos humanos universais
(pré-políticos) e os direitos políticos específicos de um cidadão? (9)
18) Por que a noção de biopolítica é uma armadilha ontológica? (11)
19) Por que os DHs são uma falsa universalidade ideológica? (11)
20) Quando a universalidade abstrata se tornou um fato da vida social? (11-12)
21) A diferença sintomática padrão acusada por Marx entre a democracia formal (os
direitos do homem, as liberdades políticas) e a realidade econômica de
exploração e dominação, pode ser lida de maneira mais subversiva: a aparência
da égaliberté não é mera aparência, mas possui eficácia própria, rearticulando
relações socioeconômicas reais. Explique. (13)
22) Qual a solução de Rancière a essa antinomia (entre a universalidade do homem e
a especificidade da esfera política)? (13)

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