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07/05/2023 23:00

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2007

O QUE É POLÍTICA?

por Marilena Chaui

Resumo

O helenista Moses Finley descreveu o nascimento da política como um acontecimento que


distinguiu para sempre Grécia e Roma dos outros grandes impérios antigos. Por quê? Porque
os gregos e romanos não dispunham de modelos políticos a seguir; ou seja: eles precisaram
inventar maneiras de lidar com seus conflitos sociais. Para isso, fundaram o poder público,
através de instituições como os tribunais, que regulavam o direito e as leis, e as assembleias
ou os senados, que deliberavam e decidiam acerca dos bens e das questões comuns – o que
só foi possível porque o poder político extrapolou as esferas privada, militar e religiosa. O
governante não era, pois, pai, comandante ou sacerdote.

A democracia, por exemplo. Nela – invenção grega –, os homens adultos de determinada


“pólis” eram tratados com isonomia (igualdade perante a lei) e isegoria (liberdade de opinião).
Legislavam, pois. Já quanto ao princípio do governo da lei, se não vigia a anarquia tampouco
o despotismo. E é essa a diferença entre Grécia e Roma, uma vez que nesta a “coisa pública”
era comandada pelos membros das famílias fundadoras da “civitas”, ou seja, os “patres” ou
cidadãos. Tratava-se, enfim, de uma república oligárquica.

Muitos séculos depois, Espinosa notaria que é da “natureza comum aos homens” que se
devem deduzir os fundamentos do poder. Dos homens tais como são, não como deveriam ser
– claro esteja. Coléricos, invejosos, ambiciosos, vingativos; desejosos, enfim, de mandar sem
obedecer. Eis o núcleo mesmo do tema: uma vez que a sociedade é como é porque as paixões
assim o desejam, pode a razão encontrar as causas disso? Sim. E tais causas são a
esperança e o medo, paixões complementares. Nesse sentido, deve-se lembrar das teses
espinosanas sobre a instituição política, como seguem: para cada coisa singular, haverá
sempre outra capaz de destruí-la; as forças de potência e autoconservação na existência
serão, no homem, sempre infinitamente ultrapassadas pelas causas externas; a alegria,
responsável pelo aumento da potência de existir, e o medo, responsável pela diminuição
desta, constituem todas as paixões; a razão, como conhecimento do bom e do mau, não
suprime uma paixão (qualquer que seja ela), mas sim outra paixão, mais forte que a primeira
e contrária a ela; uma paixão que se refira ao presente é mais forte do que uma que se refira
ao passado ou ao futuro; cada pessoa esforça-se para conservar o que lhe é útil – bom – e
para afastar ou destruir o que lhe é nocivo – mau; o que é de natureza muito diferente da
natureza de uma pessoa não a afeta, ao passo que o que concorda com ela a fortalece;
enquanto uma pessoa estiver submetida às paixões, ela é necessariamente contrária à vida
em sociedade, e a potência de autoconservação é o “supremo direito da natureza”.

E hoje?

Hoje vige o esquecimento da política, por meio da destruição do espaço público. Para isso
concorrem: os governos neoliberais, que suprimem direitos econômicos, sociais e políticos,
em proveito dos interesses das classes dominantes e do capital; os grupos sociais que se
beneficiam com a manipulação da opinião pública, cada dia mais voltada para gostos,
preferências e sentimentos individuais; os programas de governo, não mais elaborados por
ideólogos, mas por agentes de “marketing”; os conhecimentos científicos e técnicos, que
segundo a ideologia vigente, dividem a sociedade entre “competentes” e “incompetentes”, de
modo a reduzir a participação política ao direito ao voto e o saber ao discurso especializado,
propagado pelos meios de comunicação de massa, que, então, transformam-se em imensos
consultórios sentimentais, sexuais, gastronômicos, geriátricos, ginecológicos, narcísicos etc.,
nos quais as noções de verdade ou erro são substituídas pelas de credibilidade ou
plausabilidade e confiabilidade – assim, para que algo seja aceito, basta que seja plausível,
além, claro, de anunciado por uma “personalidade autorizada” ou um “formador de opinião”.

Ou seja: nada mais de política como forma superior de vida – seja pela justiça, segundo
Platão; seja pela retidão e beleza, segundo Aristóteles.

Já na Idade Média, embora se mantenham tais ideias, elas são acrescidas da teologia cristã,
fundada, sobretudo, no pensamento de São Paulo, para quem – com base na visão hebraica
de mundo e no Antigo Testamento – “todo poder vem do alto”. Trata-se da ordem social em
consonância com a vontade divina.

A partir disso, mede-se a ruptura que representou o pensamento de Maquiavel, para quem o
poder político era soberano – ou do soberano, a quem cabia, segundo Jean Bodin, “decidir,
agir, criar e suprimir leis; enfim, exercer o direito de vida ou morte sobre os oprimidos”.

É com Hobbes e os teóricos da Ilustração, da independência norte-americana e da Revolução


Francesa que o poder soberano passa a caber ao Estado.

Dos contratualistas aos liberais, e destes aos marxistas, muito se escreveu sobre política;
muito ela mudou – sem, contudo, jamais perder de vista a estratificação social, fosse
diluindo-a nas ideias de Estado e Nação como agentes de uma unidade imaginária – à
maneira dos liberais –, fosse reinventando a política contra ou sem Estado – à maneira
revolucionária.

Mais recentemente, Hannah Arendt, Claude Lefort e Michel Foucault passaram a considerar o
papel desempenhado pela ação política na criação das formações sociais, nas quais uma
sociedade representa-se a si mesma, reconhecendo-se, ocultando-se, efetuando-se; enfim,
transformando-se constantemente.

Muitos são os aspectos que determinam o esquecimento da política. Desses, gostaria de


destacar aqueles que produzem a privatização o do espaço público e o destroem:

o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado sob a ação da


economia e dos governos chamados neoliberais, uma vez que se definem pela eliminação de
direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos
interesses privados da classe dominante, ou seja, do capital;

a destruição da esfera da opinião pública, que deixa de ser o campo onde se exprimem
opiniões divergentes sobre a vida econômica, social, cultural e político. Opinião pública, na
origem, era a manifestação em público da reflexão realizada por grupos e classes sociais na
defesa de seus interesses, os quais, por sua vez, determinavam decisões e ações políticos, isto
é, concernentes A coletividade. Hoje, a opinião pública tornou-se a manifestação pública de
gostos, preferências e sentimentos individuais, que outrora pertenciam ao campo da vida
privada;

a destruição da discussão e do debate públicos sobre projetos e programas de governo e


sobre as leis — destruição produzida pelo surgimento do marketing político, sob os efeitos da
ideologia pós-moderna, que aceita a submissão da político aos procedimentos da sociedade
de consumo e do espetáculo. O marketing político busca vender a imagem do político e
reduzir o cidadão à figura privada do consumidor. Para obter a identificação do consumidor
com o produto, o marketing produz a imagem do político como pessoa privada:
características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, esportivas, hábitos
cotidianos, vida em família, bichos de estimação. A privatização das figuras do político e do
cidadão privatiza o espaço público;

a ideologia da competência, segundo a qual a sociedade se divide entre os competentes, que


possuem conhecimentos científicos e técnicos e por isso têm o direito de mandar e comandar,
e os demais, que, não tendo tais conhecimentos, são tidos como incompetentes e com a
obrigação de obedecer. Sob o efeito da ideologia da competência, a política é considerada
uma questão técnica que deve ficar nas mãos de especialistas competentes, cabendo aos
cidadãos reconhecer a própria incompetência, confiar na competência dos técnicos e reduzir
a participação política ao momento do voto nas eleições;

a ação dos meios de comunicação de massa. Sob o impacto da ideologia da competência, as


ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais o campo dos
discursos dos especialistas que nos ensinam como viver; imensos consultórios sentimental,
sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, culinário, de cuidados com o corpo (ginástica,
cosméticos, vestuário, medicamentos), de jardinagem, carpintaria, bastidores da criação
artística, literária e da vida doméstica. Como observa Christopher Lash, no livro A cultura do
narcisismo, os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade,
substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade — para que
algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou que seja oferecido
por alguém confiável. Os fatos cedem lugar a declarações de “personalidades autorizadas” e
de “formadores de opinião”, que não transmitem informações, mas preferências que se
convertem imediatamente em propaganda. Qual a base de apoio da credibilidade e da
confiabilidade? A resposta encontra-se no apelo intimidade, à personalidade, à vida privada
como suporte e garantia da ordem pública.

Todavia, falar em esquecimento da política pressupõe que saibamos o que é esse objeto do
esquecimento, ou seja, o que é a política.

II

Quando lemos os filósofos antigos, particularmente Platão e Aristóteles, podemos observar


que a política é definida como uma forma superior de vida — a vida justa, segundo Platão; a
vida boa e bela, segundo Aristóteles. Para ambos, a política se define pela justiça, ainda que
cada um deles tome o justo de maneira diferente. Para Platão, uma política é verdadeira ou
justa quando nela o sábio governa, o corajoso a protege e o concupiscente produz os meios
materiais de conservação da comunidade. Em outras palavras, a política justa é aquela em
que a razão comanda, subordinando ao seu comando a força militar e o poderio econômico.
Aristóteles, porém, parte da existência de uma divisão social, qual seja, a existência de pobres
e ricos, e considera justa a política que opera no sentido de diminuir tanto quanto possível
essa desigualdade — ou, como diz o filósofo, a política é a arte de igualar os desiguais. Por
esse motivo, Aristóteles distingue dois tipos de justiça: a justiça distributiva ou do partilhável,
que se refere à distribuição pública dos bens para diminuir a distância entre pobres e ricos; e a
justiça do participável, isto é, daquilo que não pode ser dividido, distribuído ou partilhado,
mas apenas participado, isto é, o poder político, que deve ser exercido por todos os cidadãos.

Sabemos que, durante a Idade Média, a ideia da política como realização da justiça se
manteve, numa curiosa mescla das concepções de Platão e Aristóteles, acrescidas da
teologia cristã, particularmente o pensamento de Sao Paulo. Este, mantendo uma idéia
hebraica que sustenta o Antigo Testamento, afirma que “Todo poder vem do Alto”, o que
equivale a dizer que o poder político é uma graça ou um favor divino que se deposita na
figura do governante. Representante de Deus na terra, o governante é consagrado e coroado
pelo Papa, que confirma sua graça divina e assegura tratar-se do filho da justiça e pai da lei,
aquele que tem a lei em seu peito. Aqui, a vontade do governante é a lei — o que apraz ao rei
tem força de lei. Como representante de Deus na terra, o governante justo é aquele que possui
todas as virtudes e deve servir de espelho aos governados, de maneira que uma política é
justa quando o governante é moralmente virtuoso, e injusta quando moralmente vicioso. A
Idade Média concebe a justiça sob duas formas: a da ordem do mundo, instituída por Deus —
a ordem natural é uma ordem jurídica estabelecida pelos decretos divinos —, e a da ordem
social, instituída pelo governante, em consonância com a vontade divina.

Podemos, assim, avaliar a imensa ruptura e subversão trazida pelo pensamento de


Maquiavel. Distanciando-se dos filósofos antigos e da teologia política, Maquiavel afirma que
a política não diz respeito à justiça nem à graça divina e sim ao exercício do poder. Toda
sociedade, diz ele, é atravessada por uma divisão originária, pois se divide entre o desejo dos
grandes de oprimir e comandar — movidos pelo desejo de bens — e o desejo do povo de não
ser oprimido nem comandado — movido pelo desejo de liberdade e segurança. Em lugar de
tomar como ponto de partida a ideia clássica da comunidade, Maquiavel parte da divisão
social, e por isso, para ele, a política é o exercício do poder com o propósito de domar, refrear e
conter o desejo dos grandes e concretizar o desejo do povo por liberdade e segurança. Mas a
marca inovadora de Maquiavel não está só no abandono da figura da comunidade una e
indivisa, nem apenas no deslocamento da política da justiça para o poder como garantia da
liberdade e da segurança populares. Também é inovadora sua concepção da virtude do
governante. Com efeito, longe de propor que o governante seja um espelho de virtudes morais,
Maquiavel define o governante como grande dissimulador e paciente ouvinte do verdadeiro, e
sua virtude consiste em estar atento à verità effetuale delle cose, ou melhor, aos
acontecimentos. O príncipe virtuoso é aquele que muda de ideia, de sentimento e de ação
segundo as exigências das circunstâncias, de maneira a não ser vitima delas e sim o seu
senhor.

A concepção maquiaveliana da política como exercício do poder abre o campo para a


concepção moderna do poder político como soberania. É Jean Bodin, no século XVI, quem,
pela primeira vez, define a soberania: é soberano aquele que tem o poder de decisão, que faz,
promulga e abole leis e tem o direito de vida e morte sobre os governados. Essa definição da
soberania, que inicialmente se aplica à figura do rei absoluto, tornar-se-á a definição da
soberania do Estado. Assim, a política se refere ao exercício do poder soberano pelo Estado,
ideia que será amplamente desenvolvida por Hobbes e, depois dele, pelos teóricos da
Ilustração, da Independência norte-americana e da Revolução francesa, que introduzem
versões variadas da ideia de contrato social ou pacto social como momento de instituição da
soberania, isto é, como um acordo de vontades para instituir um soberano e submeter-se a ele,
desde que ele garanta a vida, a propriedade privada ou bens e a liberdade dos governados.

Ora, não é por acaso que Gramsci pensará a política a partir de Maquiavel, ou melhor, da
divisão social, da liberdade e da segurança populares. Ele o faz porque seu ponto de partida
é a critica de Marx à ideia do contrato ou do pacto social como fundamento da soberania.
Como Maquiavel, Marx parte da divisão social — da divisão da sociedade em classes — e
considera o Estado moderno o exercício da dominação, pois realiza, em linguagem
maquiaveliana, o desejo dos grandes de oprimir e comandar, o que se dá através da
propriedade privada dos meios sociais de produção e da repressão militar e policial. A
revolução proletária é pensada por Gramsci como o renascimento da política, contra a
dominação, ou do Principe
Moderno.

Dos contratualistas aos liberais, dos liberais aos marxistas, muito foi escrito e feito na política,
mas sem perder de vista a divisão social — seja à maneira liberal, para ocultá-la nas figuras
do Estado e da Nação como unidade indivisa imaginária, seja à maneira revolucionária de
reinvenção da política sem e contra o Estado. E, evidentemente, sem abandonar o núcleo da
modernidade, configurado na afirmação de Maquiavel de que a política é o exercício do poder.

Todos sabem como Max Weber concebe o poder: o poder é a capacidade para obrigar à
obediência por meio da lei e é o uso legal da violência, podendo realizar-se de maneira
personalizada, quando carismático, ou de maneira impessoal, quando se efetua por meio do
Estado e dos instrumentos jurídicos postos por ele.

No entanto, todos também conhecem a distinção feita por Hannah Arendt entre força,
autoridade e poder. A força, diz ela, é o exercício direto e imediato da coerção e da repressão, e
seu fundamento é o medo. A autoridade é a coerção pela tradição interiorizada e
rememorada pela sociedade por meio de símbolos; seu fundamento é a obediência e o
respeito pela hierarquia. O poder é a coerção mediada pela lei, a qual pode ser tanto fonte de
liberdade como de dominação, e seu fundamento é o consentimento — quando o
consentimento é voluntário, o poder propicia a liberdade, quando o consentimento é forçado,
torna-se dominação e opressão. Para Arendt, a força opera por meio da violência com a
finalidade de eliminar diferenças, a autoridade opera pela formação do sentimento
comunitário, considerando as diferenças como secundárias. O poder, quando não se
transforma em dominação, opera no sentido de legitimar as diferenças.

Todavia, não são menos conhecidas de todos as análises de Michel Foucault. Contrapondo-se
à ideia weberiana e marxista de que o poder é essencialmente repressivo, Foucault prefere
tomá-lo sob outro ângulo. Em Vigiar e punir, analisando as mudanças no sistema penal e no
sistema carcerário, refere-se ao poder como produtor de corpos dóceis — o poder se torna
disciplina e como tal espalha-se pelo todo da sociedade, penetrando em todas as instituições
sociais. Mais tarde, em cursos ministrados no Collège de France, Foucault recorda a diferença
estabelecida por Aristóteles entre a vida natural e a vida boa (ou vida ético-política) e analisa
o interesse do poder, desde o século XIX, pelo controle sobre a vida natural dos homens,
interesse atestado pelo surgimento da demografia e das questões de higiene e saúde pública
— o que define como biopoder, isto é, um poder que se exerce sobre a vida dos indivíduos e
das sociedades. Em sua opinião, o racismo, a ideia nazista de eugenia racial e o campo de
concentração como “solução final” seriam as expressões mais claras dessa mudança sofrida
pelo poder. De fato, Foucault se dedica a análises sobre o fim da ideia de soberania como
definição do poder, mas salienta um aspecto da soberania que desembocará no biopoder.
Desde o século XVI, com Jean Bodin, a soberania se define pelo poder de fazer, promulgar e
executar a lei e o poder de vida e morte sobre os cidadãos — é essa ideia da soberania que
reaparece na definição weberiana do poder. Ora, diz Foucault, é evidente que o poder soberano
não tem o poder de dar a vida, mas apenas de tirá-la. Em outras palavras, a soberania é o
poder de fazer morrer ou deixar viver. A peculiaridade do biopoder está em ultrapassar o limite
imposto à soberania, pois, por meio da demografia, da higiene e saúde públicas, da
identidade individual definida pela nacionalidade e naturalidade, o poder se exerce sobre a
vida e sobre o dar à vida. Foucault fala, então, em biopolítica ou sobre as implicações
crescentes da vida natural do homem nos cálculos e mecanismos do poder, implicações
expressas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que não por acaso
começa pela afirmação da vida como direito.

O problema das ricas e instigantes análises de Foucault está na ausência de referência às


condições materiais destas duas formas de poder, o disciplinar e o biopolítico. De fato, em 
Vigiar e punir nunca é mencionado o momento em que o modo de produção capitalista
necessita da força de trabalho assalariada e, portanto, requer os corpos dóceis, a disciplina.
Mas, uma vez que, em seus inícios, o capitalismo se exprime ideologicamente na ética
protestante do trabalho como vocação e dever, a economia e a ideologia instituem o dever de
trabalhar e a repressão do desejo e da fruição, impondo férrea disciplina aos corpos. Da
mesma maneira, no caso dos cursos do Collège de France, nunca é mencionado o advento da
sociedade industrial e de massa nem é feita menção à presença assustadora da numerosa
classe trabalhadora, vivendo em condições miseráveis nos centros urbanos — classe cuja
reprodução como força de trabalho impõe as políticas de higiene e saúde públicas e, hoje, as
políticas de estimulo à fruição, ao gozo, ao desejo, isto é, o consumo de massa, que demoliu a
moral repressiva dos inícios do capitalismo.

De toda maneira, independentemente dos reparos que se possa fazer às análises


foucaultianas, sob um aspecto elas retomam uma perspectiva clássica a respeito da política,
qual seja, a não-identificação da política com o aparelho estatal. Ao pensar o poder como
uma ação e uma operação que se espalham capilarmente por todas as instituições sociais,
Foucault reencontra, surpreendentemente, Hannah Arendt e Claude Lefort e, como eles, se
opõe ao ponto de vista da ciência política.

De fato, esses filósofos consideram a política como o espaço público no qual são deliberadas
e decididas as ações concernentes à coletividade, de maneira que a política determina as
formas da sociabilidade e das sociedades, segundo nelas se definam a forma do poder e o
exercício do governo. Essa perspectiva se opõe à da ciência política. Esta admite a existência
de uma esfera política e de fatos políticos que se distinguem de todas as outras esferas e
fatos sociais, ou seja, concebe a política a partir do Estado ou das instituições estatais, da
forma dos governos, da existência de partidos políticos e da presença ou ausência de
eleições. Em resumo, toma a política como um fato circunscrito e não como modo da
existência sócio-histórica.

Ao contrário, à maneira dos clássicos, Arendt, Lefort e Foucault consideram as formações


sociais como instituídas pela ação política. Assim, a política é a criação de instituições
sociais múltiplas nas quais uma sociedade se representa a si mesma, se reconhece e se
oculta de si mesma, se efetua e trabalha sobre si mesma, transformando-se temporalmente.
Ou seja, a política não só é instituição do social, mas é também ação histórica.

Todavia, a concordância entre Arendt, Foucault e Lefort termina neste ponto. Com efeito, para
Arendt, o poder político resulta de um consenso público, para Foucault, o poder é um conjunto
de operações, mecanismos e instituições que se espalha por toda a sociedade. Para Lefort, o
poder político é simbólico, é o polo de referência no qual uma sociedade dividida em classes
busca unificar-se, realizando o trabalho dos conflitos que a dividem. Em outras palavras,
acompanhando Maquiavel e Marx, Lefort pensa o poder a partir da divisão social e, portanto,
a partir do conflito e não do consenso.

III

“Cidadãos de Atenas! Como ireis agora julgar pela primeira vez um crime sangrento, ouvi a lei
de vosso tribunal. Sobre este Rochedo de Ares, doravante, sentar-se-á perpetuamente o
tribunal que fará a raça toda dos Egeus ouvir o julgamento de todo homicídio.(…). Este
rochedo é chamado de Areópago. Aqui, Respeito e seu irmão Temor, noite e dia igualmente,
manterão meus cidadãos longe do crime, enquanto conservarem inalteradas as leis (…). Não
mancheis a pureza das leis com a impureza de estratagemas (…). Guardai bem e com
reverência vossa forma de governo. Nem anarquia nem despotismo, eis a regra que aconselho
a cidade a observar com respeito. E não expulseis todo temor para fora das muralhas de
vossa cidade (…). Aqui, fundo um tribunal inviolável, sagrado, mantendo uma fiel observância
para que os homens possam dormir em paz.”

Estas palavras são pronunciadas pela deusa Atena no final da Oréstia (Esquilo, 525 a.C. —
456 a.C.), e com elas, simbolicamente, afirma-se a invenção da política, obra dos gregos.

No mesmo espirito, nas Suplicantes, Eurípides (485 a.C. — 406 a.C.) coloca na boca dos
atenienses a afirmação:

O que conserva a cidade dos homens é o nobre respeito às leis.


E também no mesmo espirito, em Da República, o romano Cicero escreve (63 a.C.):
A coisa pública — a res publica — é a coisa do povo; e por povo deve-se entender não um
agrupamento de homem como um rebanho, mais uma assembleia numerosa de homens
associados uns aos outros por sua adesão a uma mesma lei e por uma certa comunidade de
interesses.

O helenista Moses Finley descreveu o nascimento da política — a “invenção da política”,


segundo ele — como um acontecimento que distinguiu para sempre a Grécia e Roma em face
dos grandes impérios antigos. Por que invenção? Porque gregos e romanos não dispunham
de modelos, mas tiveram que inventar sua própria maneira de lidar com os conflitos e
divisões sociais.

A política foi inventada quando surgiu a figura do poder público, por meio da invenção do
direito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da criação de instituições públicas de
deliberação e decisão (isto é, as assembleias e os senados). Esse surgimento só foi possível
porque o poder político foi separado de três autoridades tradicionais que anteriormente
definiam o exercício do poder: a autoridade do poder privado ou econômico do chefe de
família, de cuja vontade dependiam a vida e a morte dos membros da família, a do chefe
militar e a do chefe religioso, figuras que, nos impérios antigos, estavam unificadas numa
chefia única, a do rei. A política nasceu, portanto, quando a esfera privada da economia e da
vontade pessoal, a esfera da guerra e a esfera do sagrado ou do saber foram separadas e o
poder político deixou de identificar-se com o corpo místico do governante como pai,
comandante e sacerdote, representante humano de poderes divinos transcendentes.

Nas Suplicantes, um mensageiro chega a Atenas e pergunta: quem é o tyrannós desta


cidade? E Teseu lhe responde:

Teu discurso, estrangeiro, começa com um erro, pois procuras um tyrannós nesta cidade que
não está sob o poder de um só: Atenas é livre. O démos aqui governa, os cidadãos
administram o Estado por rodízio. Nenhum privilégio é dado às fortunas, pois o pobre e o rico
têm direitos iguais.

A Grécia inventou a democracia: todos os homens adultos nascidos na pólis eram cidadãos


com isonomia e isegoria (respectivamente, a igualdade de todos perante a lei e a igualdade de
todos para emitir as suas opiniões, debatê-las e votá-las), membros natos das assembleias e
tribunais, e participantes da força militar, que se realizava sob a forma de milícia popular, isto
é, dos cidadãos armados.

Ainda nas Suplicantes, depois da fala de Teseu, o estrangeiro, surpreso, indaga:

Como o démos, incapaz de raciocínio correto, poderia conduzir a cidade no caminho certo?

Podemos observar que o estrangeiro, embora questione a capacidade do povo para legislar,
não contesta de maneira nenhuma o princípio do governo da lei — “nem despotismo nem
anarquia”, como dissera Atena. Sem dúvida, houve debates sobre quem tinha o direito de
formular e promulgar as leis, e a diferença na resposta explica não só a diferença entre
cidades gregas, mas também entre a Grécia e Roma.

Roma inventou a república. A res publica ou a coisa pública era o solo de Roma, distribuído
entre as famílias fundadoras da civitas, os pais fundadores ou Patres de onde vinham os
patrícios, únicos a possuir cidadania. A república era oligárquica: os homens adultos
membros das famílias patrícias eram os cidadãos, aqueles que eram membros do senado,
das magistraturas e comandantes militares, a plebe, excluída da cidadania ou da
participação direta no governo, fazia-se representar pelo tribuno da plebe — um patrício eleito
por ela — e, por meio do plebiscito, manifestava-se diretamente a favor ou contra uma decisão
do senado ou lhe fazia propostas, além de participar da força militar na qualidade de
comandada.

Resta, porém, compreendermos o enigmático final da fala de Atena, que citamos há pouco:

Aqui, fundo um tribunal inviolável, sagrado, mantendo uma fiel observância para que os
homens possam dormir em paz.

Trabalho sobre e dos conflitos, a política nasce articulada à ideia da paz. Recordemos, então,
um filósofo moderno para quem a paz é o núcleo da invenção da política: Espinosa (1632 —
1677).

IV

Somente na Cidade vivemos uma vida propriamente humana, para além da mera circulação
do sangue, da respiração e da alimentação, escreve Espinosa no Tratado político:

todos o homens, sejam bárbaros ou cultivados, estabelecem em toda parte costume e se dão
um estatuto civil, e não é dos ensinamentos da razão, mas da natureza comum dos homens,
isto é, de ,sua condição que se devem deduzir os fundamentos naturais do poder.

“Da natureza comum dos homens” devem ser deduzidos os fundamentos naturais do poder
(fundamenta naturalia imperii) ou dos homens tais como realmente são e não como
gostaríamos que eles fossem. Por natureza, dizem a Ethica (1677), o TTP (Tratado
teológico-político — 1670 e o TP (Tratado político), os homens não são contrários às lutas, ao
ódio, à cólera, à inveja, à ambição ou à vingança. Nada do que lhes aconselha o desejo é
contrário à sua natureza, e, por natureza, “todos os homens desejam governar e nenhum
deseja ser governado”. Donde a questão: a experiência mostra que todos os homens, “sejam
bárbaros ou cultivados”, estabelecem costumes e se dão um estatuto civil, e não o fazem
porque a razão assim o determina, mas porque a cupiditas assim o deseja, mas pode a razão
encontrar as causas e os fundamentos do que lhe mostra a experiência? A resposta é
afirmativa: a razão encontra em duas paixões a mola propulsora para a instituição da
política: a esperança e o medo.

A esperança (spes) é uma alegria inconstante nascida da ideia de uma coisa futura ou
passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida.

O medo (metus) é uma tristeza inconstante nascida da ideia de uma coisa futura ou passada
de cujo desenlace duvidamos em certa medida.

Segue dessas definições que não há esperança sem medo, nem medo sem esperança. Aquele
que está suspenso na esperança e duvida que advenha algo esperado começou a imaginar
algo que exclua a existência do esperado e, por conseguinte, passa da alegria instável à
tristeza. Quem está suspenso na esperança tem medo de vê-la frustrada. Aquele, ao contrário,
que é vitima do medo, isto é, duvida que advenha algo odiado, imagina alguma coisa que
exclua a existência do temido e, por conseguinte, alegra-se na esperança de que não ocorrerá.

Podemos falar num sistema medo-esperança porque tristeza e alegria instáveis, medo e


esperança são paixões inseparáveis, expresso máxima de nossa finitude e de nossa relação
com a contingência, isto é, com a imagem de uma temporalidade descontinua, imprevisível e
incerta, pois, escreve Espinosa, jamais podemos estar certos do curso das coisas singulares e
de seu desenlace. Viver sob o medo e a esperança é viver na dúvida quanto ao porvir. A
experiência da contingência e da dúvida torna o medo e a esperança inconstantes e
intercambiáveis não apenas em momentos sucessivos, mas também na simultaneidade:
numa metamorfose interminável, cada uma dessas paixões habita e perpassa a outra. Ou,
como escreve Espinosa, quem está suspenso na esperança e duvida do desenlace
teme enquanto espera, e quem está suspenso no medo e duvida do que possa acontecer
espera enquanto teme.

Medo e esperança não se separam sendo quando suprimida a dúvida, ainda que permaneça
insuperável a incerteza quanto ao curso das coisas singulares. Com a ausência de dúvida,
passamos do medo ao desespero e da esperança à segurança:

A segurança (securitas) é a alegria nascida de uma coisa passada ou futura sobre a qual já
não existe dúvida.

O desespero (desperatio) é a tristeza nascida de uma coisa passada ou futura sobre a qual já


não existe dúvida.

A segurança, portanto, nasce da esperança e o desespero, do medo, quando já não existem


dúvidas sobre a ocorrência de algo. Isso decorre de que o homem imagina algo passado
como estando presente ou imagina a existência daquilo que o fazia duvidar do desenlace.
Assim, mesmo sem ter certeza sobre as coisas singulares, podemos não duvidar que ocorram
ou deixem de ocorrer, e essa ausência de dúvida é a causa da segurança ou do desespero.

Recordemos brevemente algumas teses espinosianas fundamentais para seu pensamento


sobre a instituição da política:

para cada coisa singular, haverá sempre outra mais forte capaz de destruí-la;

a força de nossa potência de autoconservação na existência (que define a essência de um ser


singular) é limitada e infinitamente ultrapassada pela força das causas externas, que
produzem em cada indivíduo paixões. Ou seja, somos passivos enquanto somos uma parte
finita da Natureza que não pode ser concebida por si sem as outras;

a alegria é o afeto que nos faz sentir que nossa potência de existir aumenta — a alegria nos
fortalece; a tristeza, ao contrário, é o afeto que nos faz sentir que nossa potência de existir
diminui — a tristeza nos enfraquece. Todos os nossos afetos são formas de alegria ou de
tristeza; a esperança é uma alegria; o medo, uma tristeza; a segurança é uma alegria; o
desespero, uma tristeza;

a força de uma paixão e seu aumento não dependem da nossa potência, mas da potência de
suas causas externas;
a razão, como conhecimento verdadeiro do bom e do mau, não tem qualquer poder sobre as
paixões, e uma paixão não pode ser suprimida por um conhecimento racional e sim por uma
outra paixão mais forte e contraria,

as paixões que se referem ao tempo presente são mais fortes do que as que se referem ao
futuro e ao passado; as paixões por uma coisa imaginada como necessária são mais
intensas do que aquelas por uma coisa imaginada como possível ou contingente; e mais
fortes pela coisa imaginada possível do que pela imaginada contingente;

cada um se esforça para conservar o que lhe é útil — bom — e para afastar e destruir o que lhe
é nocivo — mau —, e a potência para fazê-lo é maior naquele que é virtuoso, uma vez que o
fundamento primeiro e único da virtude não é outro sendo a potência de existir e agir,
definidora de nossa essência singular;

aquilo que é de natureza completamente diversa da nossa não pode favorecer nem entravar
nossa potência de agir, e, em absoluto, nenhuma coisa pode ser boa ou má para nós se não
tiver algo em comum conosco; por isso é má a coisa contrária à nossa natureza e
necessariamente boa a coisa que concorda com nossa natureza;

enquanto os homens estão submetidos às paixões não se pode dizer que concordam por
natureza e, inversamente, pode-se dizer que são contrários uns aos outros;

os homens concordam necessariamente quando vivem guiados pela razão porque esta lhes
mostra que possuem qualidades, propriedades, traços comuns pelos quais podem viver em
concórdia,

a potência de autoconservação é o “supremo direito de natureza”, isto é, a identidade entre


direito e potência ou entre direito e poder.

Espinosa invoca “o eloquente testemunho da experiência cotidiana” para confirmar que nada
é mais útil a um homem do que um outro homem — “anda na boca de quase toda gente o
provérbio: o homem é um deus para o homem” —, pois os homens percebem “que, com a
ajuda mútua, podem conseguir muito mais facilmente aquilo de que têm necessidade e que
somente unindo suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam de todos os lados”. Se
a experiência mostra a utilidade da vida em comum, a razão, por seu turno, demonstra que
“as coisas que conduzem à sociedade dos homens ou as que fazem com que os homens
vivam em concórdia são úteis, ao contrário, são más as que induzem à discórdia na Cidade”.

Por que a identidade entre direito e potência ou entre direito e poder? A potência do universo
não é sendo a potência da substância absolutamente infinita, imanente às suas expressões
finitas, e por isso o direito de natureza não é sendo a potência natural de todo ser singular,
que lhe assegura fazer apenas o que segue da necessidade de sua natureza e julgar, segundo
seu próprio temperamento, o bom e o mau (ou, como diz Espinosa no Teológico-político
— visto que o direito de natureza coincide com a potência e o desejo de cada um —, tudo o que
cada um deseja é -lhe permitido por natureza e nada lhe é proibido por natureza sendo o que
ninguém deseja ou pode). Ora, se os homens vivessem guiados pela razão — cujas regras
visam ao que é verdadeiramente útil para cada um e para todos —, seriam virtuosos e cada
um exerceria esse direito sem dano para os demais, mas como são naturalmente
atravessados pelas paixões, que ultrapassam em muito a potência de sua virtude, são
contrários uns aos outros mesmo quando precisariam de auxilio mútuo. Em outras palavras,
se vivessem guiados pela razão, suas naturezas concordariam, pois, possuindo qualidades e
propriedades comuns que os tornam semelhantes, sua concórdia seria imediata e
espontânea, e, sendo todos virtuosos, cada um desejaria para os outros o mesmo bem a que
aspira (visto que, como lembramos acima, o que é natureza completamente diversa da nossa
não pode favorecer nem prejudicar nossa potência de agir, e, em absoluto, nenhuma coisa
pode ser para nós boa ou má se não tiver algo em comum conosco). Todavia, é também por
natureza que os homens são contrários uns aos outros, e, habitados pelas paixões, a
discórdia lhes é natural, imediata e espontânea. A única maneira de passar da contrariedade
à concordância, da discórdia à concórdia, é renunciar ao desejo natural de prejudicar os
outros.

Essa mudança se realiza em dois níveis. O primeiro, cujo efeito sendo desejo de não prejudicar
os outros, é uma passagem: da discórdia à concórdia, passa-se de uma paixão
ontologicamente fraca — o medo que todos têm de todos — a uma outra, ontologicamente
forte — a esperança dos benefícios decorrentes da utilidade recíproca. O segundo nível, porém,
cuja causa é a renúncia ao desejo natural de posse e destruição dos outros, é uma ruptura.

Visto que Espinosa afirma que a política deve ser deduzida da condição natural dos homens,
que estes são naturalmente passionais e racionais, e que a paixão pode dividi-los enquanto a
razão necessariamente os une, para chegar à instituição da política é preciso encontrar um
ponto de interseção entre a razão e a paixão. Esse ponto de interseção é exatamente o que
Espinosa designa com o nome de lei, igualmente válida para ambas. No que concerne à
paixão, trata-se da lei natural segundo a qual um afeto só pode ser vencido por um outro
afeto mais forte e contrário ao que deve ser vencido e do fato de nos abstermos de causar um
dano por medo de receber um dano maior. No que concerne à razão, exatamente a mesma
lei é demonstrada, pois “sob a condução da razão, escolhemos de dois bens o maior e de dois
males o menor” e “sob a condução da razão desejamos um bem maior futuro de preferência a
um bem menor presente, e um mal menor presente de preferência a um mal maior futuro”.
Graças a essa lei natural, que a um só tempo rege a paixão e a razão, a vida social, por meio
da cooperação (ou da divisão social do trabalho e de seus produtos) e das regras tácitas da
vida em comum, poderá ser estabelecida como alicerce da instituição da civitas ou das leis
civis, que serão mantidas pelos cidadãos, não pela força da razão (que não tem poder sobre
os afetos), e sim pelas ameaças de punição.

O campo aberto pela dinâmica afetiva funda-se na demonstração da força de um afeto para
vencer um outro mais fraco e contrário, a partir da definição da força de um afeto segundo a
diferença entre alegria e tristeza e conforme as circunstâncias, de tal maneira que um afeto é
mais forte quando voltado para algo presente e imaginado como necessário, e mais fraco
quando voltado para algo passado ou futuro e imaginado como possível ou contingente. A
dinâmica da contrariedade e força dos afetos indica que a esperança — paixão derivada da
alegria — é mais forte do que o medo — derivado da tristeza, e, no nível das circunstâncias, a
dinâmica afetiva da maior força do presente diante do passado e do futuro, e do necessário
diante do possível e do contingente, explica por que a segurança é mais forte do que a
esperança e o medo, e por que dela provém o verdadeiro poder das leis civis sobre nós.

A experiência imaginária da finitude se realiza como dependência de algo outro e,


simultaneamente, como desejo de consumir essa alteridade, absorvê-la e aniquilá-la; e a
discórdia passional entre os homens nasce do desejo de cada um de ter a posse e a fruição
exclusiva de um bem. Dos bens desejados pela imaginação/paixão, o maior é a posse de um
outro ser humano para fazê-lo desejar nosso desejo; e, para a imaginação coletiva, o bem
supremo é julgar-se escolhido por Deus com exclusão de todos os outros (ser o povo eleito).
Nessa dependência do outro, seja como desejo de possuí-lo com exclusividade, absorvê-lo e
consumi-lo, seja como desejo de impedi-lo de alcançar um bem que lhe poderia pertencer,
emerge pela primeira vez o medo da solidão, cujo aparecimento é necessariamente ambíguo,
pois exprime a um só tempo nossa carência do outro e nossa recusa do outro como separado
e estranho. Todavia, o “eloquente testemunho da experiência” nos força a reconhecer a
impossibilidade de efetivar o desejo de total consumação e aniquilamento do outro, pois esse
desejo se volta contra nós, seja porque, no confronto conosco, o outro experimenta esse
mesmo desejo em relação a nós, seja porque a destruição do outro nos lança no desamparo.
Assim, o medo da solidão pode transformar-se em desespero, cuja causa somos nós
mesmos. É aqui, entretanto, que intervém a lei natural do mal menor e do bem maior sob a
forma de um afeto mais forte do que o medo produzido pelo desejo de aniquilamento do
outro, isto é, sob a forma da esperança, operando a passagem da destruição ou discórdia à
cooperação ou concórdia. O que permite essa passagem de uma paixão à sua contrária e, de
um lado, sob a lei do mal menor e do bem maior, a vitória afetiva da esperança, paixão de
alegria, cuja força é superior e contrária à do medo, paixão da tristeza; e, de outro, o fato de
que o que reforça a esperança, mesmo que ela não o saiba, é que a concordância possui
fundamento ontológico, ou seja, o fato de que os homens possuem características,
qualidades e propriedades comuns, conhecidas pela razão. Poderíamos ate mesmo falar
numa “astúcia da razão”, que se serve de uma paixão, a esperança, para dar força operante e
potência racional dos elementos ontologicamente comuns aos homens e que fundam a
possibilidade da cooperação entre eles. De fato, é preciso observar que Espinosa distingue
entre as relações fundadas na paixão e aquelas fundadas na razão, afirmando que as
primeiras podem tornar os homens contrários uns aos outros, enquanto as segundas os
tornam necessariamente concordantes. Em outras palavras, sob as paixões, a discórdia é
uma possibilidade que não exclui a da concórdia, ainda que ambas sejam necessariamente
instáveis e inconstantes; sob a razão, porém, a concórdia é necessária, pois inscrita na
natureza dos homens. A “astúcia da razão” consiste em se valer de uma paixão alegre,
propensa à concórdia, para nela introduzir estabilidade e constância ao lhe dar os meios para
transformar-se em segurança.

Se, agora, quisermos compreender por que, para além dessa passagem, é também possível
falar em uma ruptura no advento do político, será preciso examinar um outro aspecto da
experiência imaginária da finitude: nossa relação com a contingência, ou seja, a forma
extrema da insecuritas, que Espinosa designa com a expressão maximo omnium metu.

A experiência da contingência é irredutível, pois nunca poderemos ter a certeza quanto ao


desenlace do curso das coisas singulares. No entanto, há duas maneiras distintas de
enfrentar a contingência.

Numa delas, dominados pelo medo, cremos no poder da sorte e nos submetemos a ela, visto
que, não podendo dominar todas as circunstâncias de nossas vidas, concluímos que não
temos poder nenhum sobre algumas. Disso nascem a superstição, a crença na
transcendência da potência divina, no poder divinatório de magos e sacerdotes, em suma, o
poder teológico e o poder monárquico. De fato, o desejo de vencer a dispersão e
fragmentação temporais dos eventos produz concatenationes arbitrárias entre as coisas e
entre os acontecimentos cuja estabilidade e permanência dependem de sua unificação
imaginária na figura da unidade do poder encarnado em um rei. Em suma, o poder nascido
apenas do medo é sempre imaginado como transcendente e separado dos homens (poder de
Deus), dos crentes (poder teológico) e dos cidadãos (poder monárquico).

Há, porém, outra maneira de enfrentar a contingência. Agora, distinguimos entre o que está
completamente submetido ao poder das causas externas (ou o que está fora de nosso poder)
e o que está em nosso poder, segundo as circunstâncias. Dirigimos nosso esforço e nossa
potência à conservação dessas circunstâncias e sobretudo à ampliação de sua presença e de
seu campo, ou, em outras palavras, buscamos reforçar o presente para que seja capaz de
determinar o futuro, de tal maneira que, graças a nós, as circunstâncias recebam uma espécie
de necessidade. Aqui também há “astúcia da razão”, pois a imaginação é levada a produzir 
concatenationes, que dependem de nossa potência e que, por isso mesmo, se apoiam
tacitamente em connexiones necessárias, ainda que explicitamente ignoradas por nós. Nesse
caso, passamos da esperança à segurança, e para conservá-la precisamos manter as
circunstâncias de seu advento. Ora, a ampliação das circunstâncias em nosso poder não
muda a esperança em segurança sendo quando estabelecemos os instrumentos de
estabilização da temporalidade, ou seja, instituições políticas que estão e permanecem em
nosso poder. Em outras palavras, dado que essa instituição decorre da percepção do que está
em nosso poder, a potência coletiva assim instituída não se separa dos cidadãos. Isso
significa que a política assim instituída lhes é imanente, ou seja, democrática.

Vejamos, então, como Espinosa concebe a instituição da política.

O filósofo considera que algo é um indivíduo (humano ou não) quando as partes que o
compõem se tornam constituintes de um todo unificado e a passagem dos componentes a
constituintes decorre de todos eles conjuntamente operarem como causa única de produção
de efeitos determinados. Graças à ideia do indivíduo como integração e diferenciação interna
dos constituintes (ou das partes constituintes do indivíduo, que podem ser fortes ou fracas) e
do principio de aumento e diminuição da potência ou intensidade da força pelas relações
com as potências externas — os constituintes fracos submetendo-se às pressões externas, os
constituintes fortes não só resistindo a elas, mas sobretudo as vencendo —, Espinosa pode
conceber o conflito como interno ao indivíduo, tanto quanto externo a ele. Trata-se de um
conflito de forças contrárias e de intensidade variável que dependem dos objetos desejados e
da intensidade do desejo. Cada potência individual é constituída por intensidades de forças
concordantes ou conflitantes e se relaciona com uma totalidade cujas forças podem
concordar ou conflitar com a sua, podendo fortalecer-se ou enfraquecer-se nessa relação.

A ideia do indivíduo como integração interna operada pela potência como causa comum
para obter um efeito único leva à ideia do indivíduo complexo como multitudo, e, por outro
lado, a ideia do indivíduo como diferenciação interna dos constituintes pela diferente
intensidade da força dos componentes permite compreender que a multitudo é constituída
por diferentes intensidades internas de forças e tanto pela concordância como pelo conflito
entre elas. Podemos, então, nos acercar de três temas constantes no discurso político
espinosiano: o primeiro refere-se à ideia de que o corpo político visa ao equilíbrio interno das
potências por uma ordenação institucional (res ordinandas) das forças determinado pelo
instante inicial de constituído do próprio corpo político, quando a forma política é definida
pela decisão quanto a quem tem o direito ao poder e pelo estabelecimento da
proporcionalidade geométrica entre as potências individuais, as da multitudo e as da
soberania, isto é, entre o direito natural e o direito civil. O segundo refere-se à ideia de que o
inimigo principal do corpo político nunca lhe é exterior, mas interno, qual seja, o particular que
enquanto particular movido por interesses privados arroga-se o direito de promulgar ou abolir
as leis. E o terceiro, o de que o equilíbrio das forças é continuamente rompido pela diminuição
ou pelo aumento da intensidade das forças internas (tanto as dos indivíduos como as
da, multitudo e as do imperium), de sorte que a dinâmica das forças permite pensar a
duração do imperium — tanto os meios de sua conservação como as causas de sua
destruição ou, ainda, de sua mudança.

Para Espinosa, existem normas universais para a instituição do poder político: 1) a


necessidade de que a potência soberana seja inversamente proporcional à potência dos
indivíduos tomados um a um ou somados, isto é, a potência soberana — o direito civil — deve
ser incomensurável ao poder dos cidadãos — direito natural — tomados um a um ou
somados, pois o direito civil é potência da multitudo corporificada no direito civil; 2) a
necessidade de que a potência dos governantes seja inversamente proporcional à dos
cidadãos, mas agora em sentido inverso ao anterior, isto é, tomados coletivamente, devem ter
mais potência do que o governante, pois o poder coletivo ou potência e direito
da multitudo não se identifica com ninguém. Em outras palavras, o governante não se
identifica com o poder soberano. Há distância necessária entre a potência do governante e
o imperium. Ou seja, o governante não é o soberano, pois este é sempre a multitudo. E porque
a figura do governante não se confunde com a do poder soberano, os detentores do poder
soberano, isto é, os cidadãos enquanto multitudo, têm o poder para depor o governante, se
tiverem forças para isso. A soberania é, portanto, intransferível. O que se distribui não é a
soberania — pois esta permanece com a multitudo —, e sim o direito de participação no
poder. O que distingue os regimes políticos não é, portanto, a origem do poder (a origem é
sempre a mesma, a massa como corpo único e causa única) nem o número de governantes
(pois o governante não é idêntico à soberania), mas a definição do direito de exercer o
poder. Percebe-se, então, que nem o número de governantes nem o caráter eletivo ou
representativo dos governos determinam a forma do corpo político.

Uma vez que o direito é medido pelo poder, que ser livre é ser senhor de si e que o direito
político é o poder da multitudo reunida numa só ação, a medida do direito, do poder e da
liberdade exige a compreensão de cada forma política a partir da distribuição proporcional
das potências que a constituem e, portanto, do lugar que a multitudo ocupa em cada uma
delas. Por essa medida saberemos qual estado é melhor, qual é superior e qual é livre. Cada
forma política é melhor quanto menor o risco de tirania, isto é, de passagem do direito
soberano ao direito natural de um só homem ou de um punhado de homens. Cada regime
político é superior a outro quanto menor for o número de disposições institucionais
necessárias para impedir o risco da tirania. E, enfim, um corpo político é mais livre do que
outro quando nele os cidadãos correm o menor risco da opressão porque sua autonomia é
tanto maior quanto maior o poder da Cidade. Consequentemente, quanto mais livre for uma
Cidade, menor será seu risco de ser oprimida por outras. Isso significa, por exemplo, que um
corpo político monárquico é um dos mais sujeitos a ser dominado por outro, pois seus
súditos já se habituaram de tal maneira a ser dominados por um só homem, que passar da
submissão a um dominante e obediência a um outro lhes é indiferente. Ao contrário, na
democracia, a autonomia individual estando claramente firmada na autonomia coletiva, cada
um e todos estão dispostos a lutar até à morte para impedir tanto o risco da usurpação
interna como o da invasão externa. Apesar de o filósofo demonstrar que todo e qualquer
corpo político pode apresentar o melhor, o superior e o livre em graus variáveis, torna-se claro
que o parâmetro subjacente a esses critérios é a política democrática.

A estrutura do campo político se oferece originariamente diferenciada: há o sujeito político


soberano — a multitudo, que constitui o imperium, há o cidadão, que participa do exército do
poder conforme sua distribuição decidida no momento da instituição — participação que é
seu poder para fazer as leis e participar do governo; há o governante, que executa o que
soberania decide, dando às decisões a forma da lei positiva ou direito civil; e, finalmente, há o
súdito, que está obrigado a obedecer às decisões do sujeito político, a respeitar as leis postas
pelos cidadãos e a submeter-se aos decretos do governante. Na democracia, todas essas
figuras políticas coincidem, e também coincidem sua existência empírica e sua existência
política. Nos demais regimes, essa coincidência desaparece, uma vez que nem todos são
cidadãos, embora todos sejam súditos e, no momento da instituição, todos sejam sujeito
político. Mas, porque o sujeito político nunca se torna virtual, as instituições das sociedades
divididas em classes devem contemplar mecanismos pelos quais os excluídos do governo e
da cidadania possam satisfazer o direito natural, através do direito civil — lembrando que são
as divisões sociais que determinam a forma da participação no poder. Finalmente, as
diferenças internas que estruturam todo e qualquer corpo político deixam entrever todos os
conflitos possíveis entre seus componentes e constituintes.

Os indivíduos não formam uma coletividade apenas pondo o direito civil, mas também
dando-se costumes comuns. A articulação entre costumes e direito civil concerne aos sujeitos
sociais. Quando, pois, Espinosa afirma que a potência soberana tem direito a tudo a que tiver
poder, mas que esse poder possui limites, estes são duplos: o primeiro deles é social, isto é, diz
respeito aos costumes ou ao ingenium gentis; o segundo diz respeito às medidas que não
podem provocar “furor e indignação da multitudo” porque isso acarreta ódio aos governantes
— ou o desejo de transgredir as leis para repor as leis originárias, e ambos são ocasião para
que a Cidade produza a sedição. Institucionalizar é dispor as coisas de tal maneira que
estejam de acordo com a natureza dos lugares, as circunstâncias e o ingenium gentis, pois “é
preciso conduzir os homens de tal maneira que não acreditem estar sendo conduzidos, mas
vivendo sob seu livre decreto e conforme ao seu próprio feitio”.

Espinosa afirma que vícios e virtudes dos cidadãos não são deles, mas da Cidade, e o são
pela fraqueza e pela fortaleza. Portanto, os costumes dependem da qualidade das
instituições. E estas são postas pela lei. Dessa maneira, a relação lei-costume,
costume-regime político, costume-mudança revela-se múltipla e polissêmica, pois o costume
determina o que a lei não pode impor, enquanto a lei determina o que o costume deve fazer. O
conflito entre a força do costume e a força da lei determina o desejo de mudança. Ora,
Espinosa não diz que a mudança é desaconselhada pelo costume e sim que a mudança deve
submeter-se à nova lei e não à força do costume, pois submetendo-se a essa última o corpo
político não dará força à lei nova.

Até onde vai o poder da Cidade?

Em um primeiro momento, Espinosa deduz a potência da Cidade pela designação de seu


limite, isto é, daquilo que escapa necessariamente ao seu poder, ou seja, tudo aquilo a que a
natureza humana tem horror e que, se lhe fosse imposto, desencadearia a fúria e a
indignação popular. Em suma, escapa ao poder da Cidade tudo o que a faça odiada pelos
cidadãos. Se a Cidade deve temer seus inimigos, precisa instituir-se de maneira a impedir que
encontrem meios para surgir e para justificar-se. Isso significa, por um lado, que a Cidade
deve ser respeitada e temida pelos cidadãos, mas que só pode sê-lo na medida em que suas
exigências forem proporcionais ao que a multitudo pode respeitar e temer sem se enfurecer. A
soberania só pode existir sob a condição expressa de não ser odiada porque não é odiosa. Se
a Cidade exigir mais, ou se exigir menos, deixará de ser um corpo político. Ou, como escreve
Espinosa: “o poder que temos em vista exercer não deve ser medido apenas pela potência do
agente, mas também pela aptidão que o paciente oferece”.

Também é decisivo para determinar até onde vai o poder da Cidade compreender que a
Cidade não poderá tornar-se inimiga de si mesma e que, portanto, os conflitos que a habitam
só podem ser conflitos dos cidadãos sob a lei e não dos cidadãos contra a lei. Se a Cidade for
capaz de impedir a usurpação da lei por particulares, sem que isso signifique supressão dos
conflitos sociais, tendo determinado sua autonomia e seu poder. Dessa maneira, podemos
compreender que a obediência exprime apenas a recriação ininterrupta da Cidade, pois nela
se obedece a uma lei que, no momento de sua instauração, foi posta pela multitudo, de sorte
que, ao obedecê-la, obedecem a si próprios como cidadãos. A obediência é apenas a repetição
ou reiteração, na dimensão do imaginário, do ato fundador da Cidade, pois nesse ato a
criação da potência da multitudo engendra a incomensurabilidade entre a soberania e os
particulares que vivem sob ela. A obediência é um ato segundo ou derivado e, por isso
mesmo, exprime muito mais a virtude da Cidade do que a dos cidadãos, pois a Cidade
obedecida só pode ser aquela cuja instauração cumpre o desejo do agente e a aptidão do
paciente. Se, numa Cidade, o princípio instituinte é impotente para suprimir a sedição, visto
não ser essa um conflito entre os cidadãos, mas entre eles e a lei da Cidade, então, esta ainda
não foi verdadeiramente instituída, pois falta-lhe aquilo que a constitui como tal: o poder da
potência soberana para ser reconhecida como soberana. A guerra civil assinala, portanto, a
injustiça da Cidade e a necessidade de destruí-la para que tenha lugar uma nova e verdadeira
instituição, em suma, aponta a necessidade da revolução.

Essas considerações nos permitem entender por que Espinosa julga a democracia a forma
superior da vida social e política.

Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da


ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais
identificam liberdade e competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar,
que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e a
competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que há uma redução
da lei a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a
tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria; em terceiro, que há
uma identificação entre a ordem e a potência dos poderes executivo e judiciário para conter
os conflitos sociais, impedindo sua explicitação e desenvolvimento por meio da repressão; e,
em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”,
é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida, no plano legislativo, pela ação dos
representantes, entendidos como políticos profissionais, e, no plano do poder executivo, pela
atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado.

A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania


organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos
representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas
econômicos e sociais.

Ora, há, na prática democrática e nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade
muito maiores e superiores ao que o liberalismo percebe e deixa perceber.

Podemos, em traços breves e gerais, caracterizar a democracia como ultrapassando a


simples ideia de um regime político identificado forma do governo, tomando-a como forma
geral de uma sociedade e, assim, considerá-la como:

forma sociopolítica definida pelo principio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei)
e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas
ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque
livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis
das quais todos são autores (autores diretos, no caso de uma democracia participativa; e
indiretos, em uma democracia representativa). Dal o maior problema da democracia numa
sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios — igualdade e liberdade — sob
os efeitos da desigualdade real;

forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e


necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não
é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra
dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando
esses possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?

forma sociopolítica que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o


principio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o
principio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo,
para isso, a ideia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos,
os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a
participação nos direitos existentes e, especialmente, para criar novos direitos. Esses são
novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes
daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que
os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade;

o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que, pela criação
dos direitos, a democracia faz surgir o novo como parte de sua existência e,
conseqüentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de ser;

única forma sociopolítica na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se
nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só
surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política
que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna,
permitindo sua passagem de democracia liberal a democracia social, encontra-se no fato de
que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) sentem a exigência de
reivindicar direitos e criar novos direitos;

forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela
presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência
das eleições, pois essas (contrariamente do que afirma a ciência política) não significam
mera “alternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor
é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato
temporário para isso. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas
eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o
principio afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém
aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, o que significa que eleger é
afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.

Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática
quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à
vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio
regime político, ou seja, quando institui direitos e essa instituição é uma criação social, de tal
maneira que a atividade democrática social realiza-se como um contrapoder social que
determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.

A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos
reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Eis por que podemos
afirmar que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao
possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela
existência dos contrapoderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma
para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas,
de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria práxis.

A sociedade democrática é, pois, aquela que não esconde suas divisões, mas procura
trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. É ela que pode responder à pergunta que nos foi
colocada: o que é a política?

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