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por Renato Lessa
É certo que a política não morreu, a política está esquecida. E, em certo sentido, o
esquecimento é uma operação...
por Jean-Michel Frondon
O tema “Os desafios políticos do cinema” é para ser tomado, inicialmente, em dois sentidos: o
cinema...
Se a democracia é, hoje, o regime da palavra, cabe investigar a eficácia desta. Dos três
poderes, a que se somou...
O QUE É POLÍTICA?
por Marilena Chaui
por Jean-Pierre Dupuy
A civilização está em crise pois compreende que sua sobrevivência está em jogo. De agora em
diante, sua...
2007
O QUE É POLÍTICA?
por Marilena Chaui
Resumo
Muitos séculos depois, Espinosa notaria que é da “natureza comum aos homens” que se
devem deduzir os fundamentos do poder. Dos homens tais como são, não como deveriam ser
– claro esteja. Coléricos, invejosos, ambiciosos, vingativos; desejosos, enfim, de mandar sem
obedecer. Eis o núcleo mesmo do tema: uma vez que a sociedade é como é porque as paixões
assim o desejam, pode a razão encontrar as causas disso? Sim. E tais causas são a
esperança e o medo, paixões complementares. Nesse sentido, deve-se lembrar das teses
espinosanas sobre a instituição política, como seguem: para cada coisa singular, haverá
sempre outra capaz de destruí-la; as forças de potência e autoconservação na existência
serão, no homem, sempre infinitamente ultrapassadas pelas causas externas; a alegria,
responsável pelo aumento da potência de existir, e o medo, responsável pela diminuição
desta, constituem todas as paixões; a razão, como conhecimento do bom e do mau, não
suprime uma paixão (qualquer que seja ela), mas sim outra paixão, mais forte que a primeira
e contrária a ela; uma paixão que se refira ao presente é mais forte do que uma que se refira
ao passado ou ao futuro; cada pessoa esforça-se para conservar o que lhe é útil – bom – e
para afastar ou destruir o que lhe é nocivo – mau; o que é de natureza muito diferente da
natureza de uma pessoa não a afeta, ao passo que o que concorda com ela a fortalece;
enquanto uma pessoa estiver submetida às paixões, ela é necessariamente contrária à vida
em sociedade, e a potência de autoconservação é o “supremo direito da natureza”.
E hoje?
Hoje vige o esquecimento da política, por meio da destruição do espaço público. Para isso
concorrem: os governos neoliberais, que suprimem direitos econômicos, sociais e políticos,
em proveito dos interesses das classes dominantes e do capital; os grupos sociais que se
beneficiam com a manipulação da opinião pública, cada dia mais voltada para gostos,
preferências e sentimentos individuais; os programas de governo, não mais elaborados por
ideólogos, mas por agentes de “marketing”; os conhecimentos científicos e técnicos, que
segundo a ideologia vigente, dividem a sociedade entre “competentes” e “incompetentes”, de
modo a reduzir a participação política ao direito ao voto e o saber ao discurso especializado,
propagado pelos meios de comunicação de massa, que, então, transformam-se em imensos
consultórios sentimentais, sexuais, gastronômicos, geriátricos, ginecológicos, narcísicos etc.,
nos quais as noções de verdade ou erro são substituídas pelas de credibilidade ou
plausabilidade e confiabilidade – assim, para que algo seja aceito, basta que seja plausível,
além, claro, de anunciado por uma “personalidade autorizada” ou um “formador de opinião”.
Ou seja: nada mais de política como forma superior de vida – seja pela justiça, segundo
Platão; seja pela retidão e beleza, segundo Aristóteles.
Já na Idade Média, embora se mantenham tais ideias, elas são acrescidas da teologia cristã,
fundada, sobretudo, no pensamento de São Paulo, para quem – com base na visão hebraica
de mundo e no Antigo Testamento – “todo poder vem do alto”. Trata-se da ordem social em
consonância com a vontade divina.
A partir disso, mede-se a ruptura que representou o pensamento de Maquiavel, para quem o
poder político era soberano – ou do soberano, a quem cabia, segundo Jean Bodin, “decidir,
agir, criar e suprimir leis; enfim, exercer o direito de vida ou morte sobre os oprimidos”.
Dos contratualistas aos liberais, e destes aos marxistas, muito se escreveu sobre política;
muito ela mudou – sem, contudo, jamais perder de vista a estratificação social, fosse
diluindo-a nas ideias de Estado e Nação como agentes de uma unidade imaginária – à
maneira dos liberais –, fosse reinventando a política contra ou sem Estado – à maneira
revolucionária.
Mais recentemente, Hannah Arendt, Claude Lefort e Michel Foucault passaram a considerar o
papel desempenhado pela ação política na criação das formações sociais, nas quais uma
sociedade representa-se a si mesma, reconhecendo-se, ocultando-se, efetuando-se; enfim,
transformando-se constantemente.
a destruição da esfera da opinião pública, que deixa de ser o campo onde se exprimem
opiniões divergentes sobre a vida econômica, social, cultural e político. Opinião pública, na
origem, era a manifestação em público da reflexão realizada por grupos e classes sociais na
defesa de seus interesses, os quais, por sua vez, determinavam decisões e ações políticos, isto
é, concernentes A coletividade. Hoje, a opinião pública tornou-se a manifestação pública de
gostos, preferências e sentimentos individuais, que outrora pertenciam ao campo da vida
privada;
Todavia, falar em esquecimento da política pressupõe que saibamos o que é esse objeto do
esquecimento, ou seja, o que é a política.
II
Sabemos que, durante a Idade Média, a ideia da política como realização da justiça se
manteve, numa curiosa mescla das concepções de Platão e Aristóteles, acrescidas da
teologia cristã, particularmente o pensamento de Sao Paulo. Este, mantendo uma idéia
hebraica que sustenta o Antigo Testamento, afirma que “Todo poder vem do Alto”, o que
equivale a dizer que o poder político é uma graça ou um favor divino que se deposita na
figura do governante. Representante de Deus na terra, o governante é consagrado e coroado
pelo Papa, que confirma sua graça divina e assegura tratar-se do filho da justiça e pai da lei,
aquele que tem a lei em seu peito. Aqui, a vontade do governante é a lei — o que apraz ao rei
tem força de lei. Como representante de Deus na terra, o governante justo é aquele que possui
todas as virtudes e deve servir de espelho aos governados, de maneira que uma política é
justa quando o governante é moralmente virtuoso, e injusta quando moralmente vicioso. A
Idade Média concebe a justiça sob duas formas: a da ordem do mundo, instituída por Deus —
a ordem natural é uma ordem jurídica estabelecida pelos decretos divinos —, e a da ordem
social, instituída pelo governante, em consonância com a vontade divina.
Ora, não é por acaso que Gramsci pensará a política a partir de Maquiavel, ou melhor, da
divisão social, da liberdade e da segurança populares. Ele o faz porque seu ponto de partida
é a critica de Marx à ideia do contrato ou do pacto social como fundamento da soberania.
Como Maquiavel, Marx parte da divisão social — da divisão da sociedade em classes — e
considera o Estado moderno o exercício da dominação, pois realiza, em linguagem
maquiaveliana, o desejo dos grandes de oprimir e comandar, o que se dá através da
propriedade privada dos meios sociais de produção e da repressão militar e policial. A
revolução proletária é pensada por Gramsci como o renascimento da política, contra a
dominação, ou do Principe
Moderno.
Dos contratualistas aos liberais, dos liberais aos marxistas, muito foi escrito e feito na política,
mas sem perder de vista a divisão social — seja à maneira liberal, para ocultá-la nas figuras
do Estado e da Nação como unidade indivisa imaginária, seja à maneira revolucionária de
reinvenção da política sem e contra o Estado. E, evidentemente, sem abandonar o núcleo da
modernidade, configurado na afirmação de Maquiavel de que a política é o exercício do poder.
Todos sabem como Max Weber concebe o poder: o poder é a capacidade para obrigar à
obediência por meio da lei e é o uso legal da violência, podendo realizar-se de maneira
personalizada, quando carismático, ou de maneira impessoal, quando se efetua por meio do
Estado e dos instrumentos jurídicos postos por ele.
No entanto, todos também conhecem a distinção feita por Hannah Arendt entre força,
autoridade e poder. A força, diz ela, é o exercício direto e imediato da coerção e da repressão, e
seu fundamento é o medo. A autoridade é a coerção pela tradição interiorizada e
rememorada pela sociedade por meio de símbolos; seu fundamento é a obediência e o
respeito pela hierarquia. O poder é a coerção mediada pela lei, a qual pode ser tanto fonte de
liberdade como de dominação, e seu fundamento é o consentimento — quando o
consentimento é voluntário, o poder propicia a liberdade, quando o consentimento é forçado,
torna-se dominação e opressão. Para Arendt, a força opera por meio da violência com a
finalidade de eliminar diferenças, a autoridade opera pela formação do sentimento
comunitário, considerando as diferenças como secundárias. O poder, quando não se
transforma em dominação, opera no sentido de legitimar as diferenças.
Todavia, não são menos conhecidas de todos as análises de Michel Foucault. Contrapondo-se
à ideia weberiana e marxista de que o poder é essencialmente repressivo, Foucault prefere
tomá-lo sob outro ângulo. Em Vigiar e punir, analisando as mudanças no sistema penal e no
sistema carcerário, refere-se ao poder como produtor de corpos dóceis — o poder se torna
disciplina e como tal espalha-se pelo todo da sociedade, penetrando em todas as instituições
sociais. Mais tarde, em cursos ministrados no Collège de France, Foucault recorda a diferença
estabelecida por Aristóteles entre a vida natural e a vida boa (ou vida ético-política) e analisa
o interesse do poder, desde o século XIX, pelo controle sobre a vida natural dos homens,
interesse atestado pelo surgimento da demografia e das questões de higiene e saúde pública
— o que define como biopoder, isto é, um poder que se exerce sobre a vida dos indivíduos e
das sociedades. Em sua opinião, o racismo, a ideia nazista de eugenia racial e o campo de
concentração como “solução final” seriam as expressões mais claras dessa mudança sofrida
pelo poder. De fato, Foucault se dedica a análises sobre o fim da ideia de soberania como
definição do poder, mas salienta um aspecto da soberania que desembocará no biopoder.
Desde o século XVI, com Jean Bodin, a soberania se define pelo poder de fazer, promulgar e
executar a lei e o poder de vida e morte sobre os cidadãos — é essa ideia da soberania que
reaparece na definição weberiana do poder. Ora, diz Foucault, é evidente que o poder soberano
não tem o poder de dar a vida, mas apenas de tirá-la. Em outras palavras, a soberania é o
poder de fazer morrer ou deixar viver. A peculiaridade do biopoder está em ultrapassar o limite
imposto à soberania, pois, por meio da demografia, da higiene e saúde públicas, da
identidade individual definida pela nacionalidade e naturalidade, o poder se exerce sobre a
vida e sobre o dar à vida. Foucault fala, então, em biopolítica ou sobre as implicações
crescentes da vida natural do homem nos cálculos e mecanismos do poder, implicações
expressas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que não por acaso
começa pela afirmação da vida como direito.
De fato, esses filósofos consideram a política como o espaço público no qual são deliberadas
e decididas as ações concernentes à coletividade, de maneira que a política determina as
formas da sociabilidade e das sociedades, segundo nelas se definam a forma do poder e o
exercício do governo. Essa perspectiva se opõe à da ciência política. Esta admite a existência
de uma esfera política e de fatos políticos que se distinguem de todas as outras esferas e
fatos sociais, ou seja, concebe a política a partir do Estado ou das instituições estatais, da
forma dos governos, da existência de partidos políticos e da presença ou ausência de
eleições. Em resumo, toma a política como um fato circunscrito e não como modo da
existência sócio-histórica.
Todavia, a concordância entre Arendt, Foucault e Lefort termina neste ponto. Com efeito, para
Arendt, o poder político resulta de um consenso público, para Foucault, o poder é um conjunto
de operações, mecanismos e instituições que se espalha por toda a sociedade. Para Lefort, o
poder político é simbólico, é o polo de referência no qual uma sociedade dividida em classes
busca unificar-se, realizando o trabalho dos conflitos que a dividem. Em outras palavras,
acompanhando Maquiavel e Marx, Lefort pensa o poder a partir da divisão social e, portanto,
a partir do conflito e não do consenso.
III
“Cidadãos de Atenas! Como ireis agora julgar pela primeira vez um crime sangrento, ouvi a lei
de vosso tribunal. Sobre este Rochedo de Ares, doravante, sentar-se-á perpetuamente o
tribunal que fará a raça toda dos Egeus ouvir o julgamento de todo homicídio.(…). Este
rochedo é chamado de Areópago. Aqui, Respeito e seu irmão Temor, noite e dia igualmente,
manterão meus cidadãos longe do crime, enquanto conservarem inalteradas as leis (…). Não
mancheis a pureza das leis com a impureza de estratagemas (…). Guardai bem e com
reverência vossa forma de governo. Nem anarquia nem despotismo, eis a regra que aconselho
a cidade a observar com respeito. E não expulseis todo temor para fora das muralhas de
vossa cidade (…). Aqui, fundo um tribunal inviolável, sagrado, mantendo uma fiel observância
para que os homens possam dormir em paz.”
Estas palavras são pronunciadas pela deusa Atena no final da Oréstia (Esquilo, 525 a.C. —
456 a.C.), e com elas, simbolicamente, afirma-se a invenção da política, obra dos gregos.
No mesmo espirito, nas Suplicantes, Eurípides (485 a.C. — 406 a.C.) coloca na boca dos
atenienses a afirmação:
A política foi inventada quando surgiu a figura do poder público, por meio da invenção do
direito e da lei (isto é, a instituição dos tribunais) e da criação de instituições públicas de
deliberação e decisão (isto é, as assembleias e os senados). Esse surgimento só foi possível
porque o poder político foi separado de três autoridades tradicionais que anteriormente
definiam o exercício do poder: a autoridade do poder privado ou econômico do chefe de
família, de cuja vontade dependiam a vida e a morte dos membros da família, a do chefe
militar e a do chefe religioso, figuras que, nos impérios antigos, estavam unificadas numa
chefia única, a do rei. A política nasceu, portanto, quando a esfera privada da economia e da
vontade pessoal, a esfera da guerra e a esfera do sagrado ou do saber foram separadas e o
poder político deixou de identificar-se com o corpo místico do governante como pai,
comandante e sacerdote, representante humano de poderes divinos transcendentes.
Teu discurso, estrangeiro, começa com um erro, pois procuras um tyrannós nesta cidade que
não está sob o poder de um só: Atenas é livre. O démos aqui governa, os cidadãos
administram o Estado por rodízio. Nenhum privilégio é dado às fortunas, pois o pobre e o rico
têm direitos iguais.
Como o démos, incapaz de raciocínio correto, poderia conduzir a cidade no caminho certo?
Podemos observar que o estrangeiro, embora questione a capacidade do povo para legislar,
não contesta de maneira nenhuma o princípio do governo da lei — “nem despotismo nem
anarquia”, como dissera Atena. Sem dúvida, houve debates sobre quem tinha o direito de
formular e promulgar as leis, e a diferença na resposta explica não só a diferença entre
cidades gregas, mas também entre a Grécia e Roma.
Roma inventou a república. A res publica ou a coisa pública era o solo de Roma, distribuído
entre as famílias fundadoras da civitas, os pais fundadores ou Patres de onde vinham os
patrícios, únicos a possuir cidadania. A república era oligárquica: os homens adultos
membros das famílias patrícias eram os cidadãos, aqueles que eram membros do senado,
das magistraturas e comandantes militares, a plebe, excluída da cidadania ou da
participação direta no governo, fazia-se representar pelo tribuno da plebe — um patrício eleito
por ela — e, por meio do plebiscito, manifestava-se diretamente a favor ou contra uma decisão
do senado ou lhe fazia propostas, além de participar da força militar na qualidade de
comandada.
Resta, porém, compreendermos o enigmático final da fala de Atena, que citamos há pouco:
Aqui, fundo um tribunal inviolável, sagrado, mantendo uma fiel observância para que os
homens possam dormir em paz.
Trabalho sobre e dos conflitos, a política nasce articulada à ideia da paz. Recordemos, então,
um filósofo moderno para quem a paz é o núcleo da invenção da política: Espinosa (1632 —
1677).
IV
Somente na Cidade vivemos uma vida propriamente humana, para além da mera circulação
do sangue, da respiração e da alimentação, escreve Espinosa no Tratado político:
todos o homens, sejam bárbaros ou cultivados, estabelecem em toda parte costume e se dão
um estatuto civil, e não é dos ensinamentos da razão, mas da natureza comum dos homens,
isto é, de ,sua condição que se devem deduzir os fundamentos naturais do poder.
“Da natureza comum dos homens” devem ser deduzidos os fundamentos naturais do poder
(fundamenta naturalia imperii) ou dos homens tais como realmente são e não como
gostaríamos que eles fossem. Por natureza, dizem a Ethica (1677), o TTP (Tratado
teológico-político — 1670 e o TP (Tratado político), os homens não são contrários às lutas, ao
ódio, à cólera, à inveja, à ambição ou à vingança. Nada do que lhes aconselha o desejo é
contrário à sua natureza, e, por natureza, “todos os homens desejam governar e nenhum
deseja ser governado”. Donde a questão: a experiência mostra que todos os homens, “sejam
bárbaros ou cultivados”, estabelecem costumes e se dão um estatuto civil, e não o fazem
porque a razão assim o determina, mas porque a cupiditas assim o deseja, mas pode a razão
encontrar as causas e os fundamentos do que lhe mostra a experiência? A resposta é
afirmativa: a razão encontra em duas paixões a mola propulsora para a instituição da
política: a esperança e o medo.
A esperança (spes) é uma alegria inconstante nascida da ideia de uma coisa futura ou
passada de cujo desenlace duvidamos em certa medida.
O medo (metus) é uma tristeza inconstante nascida da ideia de uma coisa futura ou passada
de cujo desenlace duvidamos em certa medida.
Segue dessas definições que não há esperança sem medo, nem medo sem esperança. Aquele
que está suspenso na esperança e duvida que advenha algo esperado começou a imaginar
algo que exclua a existência do esperado e, por conseguinte, passa da alegria instável à
tristeza. Quem está suspenso na esperança tem medo de vê-la frustrada. Aquele, ao contrário,
que é vitima do medo, isto é, duvida que advenha algo odiado, imagina alguma coisa que
exclua a existência do temido e, por conseguinte, alegra-se na esperança de que não ocorrerá.
Medo e esperança não se separam sendo quando suprimida a dúvida, ainda que permaneça
insuperável a incerteza quanto ao curso das coisas singulares. Com a ausência de dúvida,
passamos do medo ao desespero e da esperança à segurança:
A segurança (securitas) é a alegria nascida de uma coisa passada ou futura sobre a qual já
não existe dúvida.
para cada coisa singular, haverá sempre outra mais forte capaz de destruí-la;
a alegria é o afeto que nos faz sentir que nossa potência de existir aumenta — a alegria nos
fortalece; a tristeza, ao contrário, é o afeto que nos faz sentir que nossa potência de existir
diminui — a tristeza nos enfraquece. Todos os nossos afetos são formas de alegria ou de
tristeza; a esperança é uma alegria; o medo, uma tristeza; a segurança é uma alegria; o
desespero, uma tristeza;
a força de uma paixão e seu aumento não dependem da nossa potência, mas da potência de
suas causas externas;
a razão, como conhecimento verdadeiro do bom e do mau, não tem qualquer poder sobre as
paixões, e uma paixão não pode ser suprimida por um conhecimento racional e sim por uma
outra paixão mais forte e contraria,
as paixões que se referem ao tempo presente são mais fortes do que as que se referem ao
futuro e ao passado; as paixões por uma coisa imaginada como necessária são mais
intensas do que aquelas por uma coisa imaginada como possível ou contingente; e mais
fortes pela coisa imaginada possível do que pela imaginada contingente;
cada um se esforça para conservar o que lhe é útil — bom — e para afastar e destruir o que lhe
é nocivo — mau —, e a potência para fazê-lo é maior naquele que é virtuoso, uma vez que o
fundamento primeiro e único da virtude não é outro sendo a potência de existir e agir,
definidora de nossa essência singular;
aquilo que é de natureza completamente diversa da nossa não pode favorecer nem entravar
nossa potência de agir, e, em absoluto, nenhuma coisa pode ser boa ou má para nós se não
tiver algo em comum conosco; por isso é má a coisa contrária à nossa natureza e
necessariamente boa a coisa que concorda com nossa natureza;
enquanto os homens estão submetidos às paixões não se pode dizer que concordam por
natureza e, inversamente, pode-se dizer que são contrários uns aos outros;
os homens concordam necessariamente quando vivem guiados pela razão porque esta lhes
mostra que possuem qualidades, propriedades, traços comuns pelos quais podem viver em
concórdia,
Espinosa invoca “o eloquente testemunho da experiência cotidiana” para confirmar que nada
é mais útil a um homem do que um outro homem — “anda na boca de quase toda gente o
provérbio: o homem é um deus para o homem” —, pois os homens percebem “que, com a
ajuda mútua, podem conseguir muito mais facilmente aquilo de que têm necessidade e que
somente unindo suas forças podem evitar os perigos que os ameaçam de todos os lados”. Se
a experiência mostra a utilidade da vida em comum, a razão, por seu turno, demonstra que
“as coisas que conduzem à sociedade dos homens ou as que fazem com que os homens
vivam em concórdia são úteis, ao contrário, são más as que induzem à discórdia na Cidade”.
Por que a identidade entre direito e potência ou entre direito e poder? A potência do universo
não é sendo a potência da substância absolutamente infinita, imanente às suas expressões
finitas, e por isso o direito de natureza não é sendo a potência natural de todo ser singular,
que lhe assegura fazer apenas o que segue da necessidade de sua natureza e julgar, segundo
seu próprio temperamento, o bom e o mau (ou, como diz Espinosa no Teológico-político
— visto que o direito de natureza coincide com a potência e o desejo de cada um —, tudo o que
cada um deseja é -lhe permitido por natureza e nada lhe é proibido por natureza sendo o que
ninguém deseja ou pode). Ora, se os homens vivessem guiados pela razão — cujas regras
visam ao que é verdadeiramente útil para cada um e para todos —, seriam virtuosos e cada
um exerceria esse direito sem dano para os demais, mas como são naturalmente
atravessados pelas paixões, que ultrapassam em muito a potência de sua virtude, são
contrários uns aos outros mesmo quando precisariam de auxilio mútuo. Em outras palavras,
se vivessem guiados pela razão, suas naturezas concordariam, pois, possuindo qualidades e
propriedades comuns que os tornam semelhantes, sua concórdia seria imediata e
espontânea, e, sendo todos virtuosos, cada um desejaria para os outros o mesmo bem a que
aspira (visto que, como lembramos acima, o que é natureza completamente diversa da nossa
não pode favorecer nem prejudicar nossa potência de agir, e, em absoluto, nenhuma coisa
pode ser para nós boa ou má se não tiver algo em comum conosco). Todavia, é também por
natureza que os homens são contrários uns aos outros, e, habitados pelas paixões, a
discórdia lhes é natural, imediata e espontânea. A única maneira de passar da contrariedade
à concordância, da discórdia à concórdia, é renunciar ao desejo natural de prejudicar os
outros.
Essa mudança se realiza em dois níveis. O primeiro, cujo efeito sendo desejo de não prejudicar
os outros, é uma passagem: da discórdia à concórdia, passa-se de uma paixão
ontologicamente fraca — o medo que todos têm de todos — a uma outra, ontologicamente
forte — a esperança dos benefícios decorrentes da utilidade recíproca. O segundo nível, porém,
cuja causa é a renúncia ao desejo natural de posse e destruição dos outros, é uma ruptura.
Visto que Espinosa afirma que a política deve ser deduzida da condição natural dos homens,
que estes são naturalmente passionais e racionais, e que a paixão pode dividi-los enquanto a
razão necessariamente os une, para chegar à instituição da política é preciso encontrar um
ponto de interseção entre a razão e a paixão. Esse ponto de interseção é exatamente o que
Espinosa designa com o nome de lei, igualmente válida para ambas. No que concerne à
paixão, trata-se da lei natural segundo a qual um afeto só pode ser vencido por um outro
afeto mais forte e contrário ao que deve ser vencido e do fato de nos abstermos de causar um
dano por medo de receber um dano maior. No que concerne à razão, exatamente a mesma
lei é demonstrada, pois “sob a condução da razão, escolhemos de dois bens o maior e de dois
males o menor” e “sob a condução da razão desejamos um bem maior futuro de preferência a
um bem menor presente, e um mal menor presente de preferência a um mal maior futuro”.
Graças a essa lei natural, que a um só tempo rege a paixão e a razão, a vida social, por meio
da cooperação (ou da divisão social do trabalho e de seus produtos) e das regras tácitas da
vida em comum, poderá ser estabelecida como alicerce da instituição da civitas ou das leis
civis, que serão mantidas pelos cidadãos, não pela força da razão (que não tem poder sobre
os afetos), e sim pelas ameaças de punição.
O campo aberto pela dinâmica afetiva funda-se na demonstração da força de um afeto para
vencer um outro mais fraco e contrário, a partir da definição da força de um afeto segundo a
diferença entre alegria e tristeza e conforme as circunstâncias, de tal maneira que um afeto é
mais forte quando voltado para algo presente e imaginado como necessário, e mais fraco
quando voltado para algo passado ou futuro e imaginado como possível ou contingente. A
dinâmica da contrariedade e força dos afetos indica que a esperança — paixão derivada da
alegria — é mais forte do que o medo — derivado da tristeza, e, no nível das circunstâncias, a
dinâmica afetiva da maior força do presente diante do passado e do futuro, e do necessário
diante do possível e do contingente, explica por que a segurança é mais forte do que a
esperança e o medo, e por que dela provém o verdadeiro poder das leis civis sobre nós.
Se, agora, quisermos compreender por que, para além dessa passagem, é também possível
falar em uma ruptura no advento do político, será preciso examinar um outro aspecto da
experiência imaginária da finitude: nossa relação com a contingência, ou seja, a forma
extrema da insecuritas, que Espinosa designa com a expressão maximo omnium metu.
Numa delas, dominados pelo medo, cremos no poder da sorte e nos submetemos a ela, visto
que, não podendo dominar todas as circunstâncias de nossas vidas, concluímos que não
temos poder nenhum sobre algumas. Disso nascem a superstição, a crença na
transcendência da potência divina, no poder divinatório de magos e sacerdotes, em suma, o
poder teológico e o poder monárquico. De fato, o desejo de vencer a dispersão e
fragmentação temporais dos eventos produz concatenationes arbitrárias entre as coisas e
entre os acontecimentos cuja estabilidade e permanência dependem de sua unificação
imaginária na figura da unidade do poder encarnado em um rei. Em suma, o poder nascido
apenas do medo é sempre imaginado como transcendente e separado dos homens (poder de
Deus), dos crentes (poder teológico) e dos cidadãos (poder monárquico).
Há, porém, outra maneira de enfrentar a contingência. Agora, distinguimos entre o que está
completamente submetido ao poder das causas externas (ou o que está fora de nosso poder)
e o que está em nosso poder, segundo as circunstâncias. Dirigimos nosso esforço e nossa
potência à conservação dessas circunstâncias e sobretudo à ampliação de sua presença e de
seu campo, ou, em outras palavras, buscamos reforçar o presente para que seja capaz de
determinar o futuro, de tal maneira que, graças a nós, as circunstâncias recebam uma espécie
de necessidade. Aqui também há “astúcia da razão”, pois a imaginação é levada a produzir
concatenationes, que dependem de nossa potência e que, por isso mesmo, se apoiam
tacitamente em connexiones necessárias, ainda que explicitamente ignoradas por nós. Nesse
caso, passamos da esperança à segurança, e para conservá-la precisamos manter as
circunstâncias de seu advento. Ora, a ampliação das circunstâncias em nosso poder não
muda a esperança em segurança sendo quando estabelecemos os instrumentos de
estabilização da temporalidade, ou seja, instituições políticas que estão e permanecem em
nosso poder. Em outras palavras, dado que essa instituição decorre da percepção do que está
em nosso poder, a potência coletiva assim instituída não se separa dos cidadãos. Isso
significa que a política assim instituída lhes é imanente, ou seja, democrática.
O filósofo considera que algo é um indivíduo (humano ou não) quando as partes que o
compõem se tornam constituintes de um todo unificado e a passagem dos componentes a
constituintes decorre de todos eles conjuntamente operarem como causa única de produção
de efeitos determinados. Graças à ideia do indivíduo como integração e diferenciação interna
dos constituintes (ou das partes constituintes do indivíduo, que podem ser fortes ou fracas) e
do principio de aumento e diminuição da potência ou intensidade da força pelas relações
com as potências externas — os constituintes fracos submetendo-se às pressões externas, os
constituintes fortes não só resistindo a elas, mas sobretudo as vencendo —, Espinosa pode
conceber o conflito como interno ao indivíduo, tanto quanto externo a ele. Trata-se de um
conflito de forças contrárias e de intensidade variável que dependem dos objetos desejados e
da intensidade do desejo. Cada potência individual é constituída por intensidades de forças
concordantes ou conflitantes e se relaciona com uma totalidade cujas forças podem
concordar ou conflitar com a sua, podendo fortalecer-se ou enfraquecer-se nessa relação.
A ideia do indivíduo como integração interna operada pela potência como causa comum
para obter um efeito único leva à ideia do indivíduo complexo como multitudo, e, por outro
lado, a ideia do indivíduo como diferenciação interna dos constituintes pela diferente
intensidade da força dos componentes permite compreender que a multitudo é constituída
por diferentes intensidades internas de forças e tanto pela concordância como pelo conflito
entre elas. Podemos, então, nos acercar de três temas constantes no discurso político
espinosiano: o primeiro refere-se à ideia de que o corpo político visa ao equilíbrio interno das
potências por uma ordenação institucional (res ordinandas) das forças determinado pelo
instante inicial de constituído do próprio corpo político, quando a forma política é definida
pela decisão quanto a quem tem o direito ao poder e pelo estabelecimento da
proporcionalidade geométrica entre as potências individuais, as da multitudo e as da
soberania, isto é, entre o direito natural e o direito civil. O segundo refere-se à ideia de que o
inimigo principal do corpo político nunca lhe é exterior, mas interno, qual seja, o particular que
enquanto particular movido por interesses privados arroga-se o direito de promulgar ou abolir
as leis. E o terceiro, o de que o equilíbrio das forças é continuamente rompido pela diminuição
ou pelo aumento da intensidade das forças internas (tanto as dos indivíduos como as
da, multitudo e as do imperium), de sorte que a dinâmica das forças permite pensar a
duração do imperium — tanto os meios de sua conservação como as causas de sua
destruição ou, ainda, de sua mudança.
Uma vez que o direito é medido pelo poder, que ser livre é ser senhor de si e que o direito
político é o poder da multitudo reunida numa só ação, a medida do direito, do poder e da
liberdade exige a compreensão de cada forma política a partir da distribuição proporcional
das potências que a constituem e, portanto, do lugar que a multitudo ocupa em cada uma
delas. Por essa medida saberemos qual estado é melhor, qual é superior e qual é livre. Cada
forma política é melhor quanto menor o risco de tirania, isto é, de passagem do direito
soberano ao direito natural de um só homem ou de um punhado de homens. Cada regime
político é superior a outro quanto menor for o número de disposições institucionais
necessárias para impedir o risco da tirania. E, enfim, um corpo político é mais livre do que
outro quando nele os cidadãos correm o menor risco da opressão porque sua autonomia é
tanto maior quanto maior o poder da Cidade. Consequentemente, quanto mais livre for uma
Cidade, menor será seu risco de ser oprimida por outras. Isso significa, por exemplo, que um
corpo político monárquico é um dos mais sujeitos a ser dominado por outro, pois seus
súditos já se habituaram de tal maneira a ser dominados por um só homem, que passar da
submissão a um dominante e obediência a um outro lhes é indiferente. Ao contrário, na
democracia, a autonomia individual estando claramente firmada na autonomia coletiva, cada
um e todos estão dispostos a lutar até à morte para impedir tanto o risco da usurpação
interna como o da invasão externa. Apesar de o filósofo demonstrar que todo e qualquer
corpo político pode apresentar o melhor, o superior e o livre em graus variáveis, torna-se claro
que o parâmetro subjacente a esses critérios é a política democrática.
Os indivíduos não formam uma coletividade apenas pondo o direito civil, mas também
dando-se costumes comuns. A articulação entre costumes e direito civil concerne aos sujeitos
sociais. Quando, pois, Espinosa afirma que a potência soberana tem direito a tudo a que tiver
poder, mas que esse poder possui limites, estes são duplos: o primeiro deles é social, isto é, diz
respeito aos costumes ou ao ingenium gentis; o segundo diz respeito às medidas que não
podem provocar “furor e indignação da multitudo” porque isso acarreta ódio aos governantes
— ou o desejo de transgredir as leis para repor as leis originárias, e ambos são ocasião para
que a Cidade produza a sedição. Institucionalizar é dispor as coisas de tal maneira que
estejam de acordo com a natureza dos lugares, as circunstâncias e o ingenium gentis, pois “é
preciso conduzir os homens de tal maneira que não acreditem estar sendo conduzidos, mas
vivendo sob seu livre decreto e conforme ao seu próprio feitio”.
Espinosa afirma que vícios e virtudes dos cidadãos não são deles, mas da Cidade, e o são
pela fraqueza e pela fortaleza. Portanto, os costumes dependem da qualidade das
instituições. E estas são postas pela lei. Dessa maneira, a relação lei-costume,
costume-regime político, costume-mudança revela-se múltipla e polissêmica, pois o costume
determina o que a lei não pode impor, enquanto a lei determina o que o costume deve fazer. O
conflito entre a força do costume e a força da lei determina o desejo de mudança. Ora,
Espinosa não diz que a mudança é desaconselhada pelo costume e sim que a mudança deve
submeter-se à nova lei e não à força do costume, pois submetendo-se a essa última o corpo
político não dará força à lei nova.
Também é decisivo para determinar até onde vai o poder da Cidade compreender que a
Cidade não poderá tornar-se inimiga de si mesma e que, portanto, os conflitos que a habitam
só podem ser conflitos dos cidadãos sob a lei e não dos cidadãos contra a lei. Se a Cidade for
capaz de impedir a usurpação da lei por particulares, sem que isso signifique supressão dos
conflitos sociais, tendo determinado sua autonomia e seu poder. Dessa maneira, podemos
compreender que a obediência exprime apenas a recriação ininterrupta da Cidade, pois nela
se obedece a uma lei que, no momento de sua instauração, foi posta pela multitudo, de sorte
que, ao obedecê-la, obedecem a si próprios como cidadãos. A obediência é apenas a repetição
ou reiteração, na dimensão do imaginário, do ato fundador da Cidade, pois nesse ato a
criação da potência da multitudo engendra a incomensurabilidade entre a soberania e os
particulares que vivem sob ela. A obediência é um ato segundo ou derivado e, por isso
mesmo, exprime muito mais a virtude da Cidade do que a dos cidadãos, pois a Cidade
obedecida só pode ser aquela cuja instauração cumpre o desejo do agente e a aptidão do
paciente. Se, numa Cidade, o princípio instituinte é impotente para suprimir a sedição, visto
não ser essa um conflito entre os cidadãos, mas entre eles e a lei da Cidade, então, esta ainda
não foi verdadeiramente instituída, pois falta-lhe aquilo que a constitui como tal: o poder da
potência soberana para ser reconhecida como soberana. A guerra civil assinala, portanto, a
injustiça da Cidade e a necessidade de destruí-la para que tenha lugar uma nova e verdadeira
instituição, em suma, aponta a necessidade da revolução.
Essas considerações nos permitem entender por que Espinosa julga a democracia a forma
superior da vida social e política.
Ora, há, na prática democrática e nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade
muito maiores e superiores ao que o liberalismo percebe e deixa perceber.
forma sociopolítica definida pelo principio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei)
e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas
ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque
livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis
das quais todos são autores (autores diretos, no caso de uma democracia participativa; e
indiretos, em uma democracia representativa). Dal o maior problema da democracia numa
sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios — igualdade e liberdade — sob
os efeitos da desigualdade real;
o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que, pela criação
dos direitos, a democracia faz surgir o novo como parte de sua existência e,
conseqüentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de ser;
única forma sociopolítica na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se
nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só
surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política
que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna,
permitindo sua passagem de democracia liberal a democracia social, encontra-se no fato de
que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) sentem a exigência de
reivindicar direitos e criar novos direitos;
forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela
presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência
das eleições, pois essas (contrariamente do que afirma a ciência política) não significam
mera “alternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor
é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato
temporário para isso. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas
eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o
principio afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém
aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, o que significa que eleger é
afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.
Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática
quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à
vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio
regime político, ou seja, quando institui direitos e essa instituição é uma criação social, de tal
maneira que a atividade democrática social realiza-se como um contrapoder social que
determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.
A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos
reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Eis por que podemos
afirmar que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao
possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela
existência dos contrapoderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma
para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas,
de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria práxis.
A sociedade democrática é, pois, aquela que não esconde suas divisões, mas procura
trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. É ela que pode responder à pergunta que nos foi
colocada: o que é a política?
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