Você está na página 1de 13

58 A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado I 59

A tudo isto vêm somar-se as inquietações relaciona- ruptura frontal com a ideologia das civilizações prece-
das com as possibilidades de vigilância sem precedente dentes, organizadas de maneira holista e com um funda-
que a tecnologia das telecomunicações permite e que são mento sagrado, o individualismo é um sistema de valores
exemplificadas pela multiplicação das câmaras de que instala o indivíduo livre e igual como valor central da
videovigilância nas cidades, bem como pelas inúmeras nossa cultura, como fundamento da ordem social e polí-
informações reunidas sobre os consumidores, graças à tica. Esta configuração de valores afirma-se plenamente a
web. É por isso que alguns denunciam o desenvolvi- partir do século XVIII,tendo-se tornado o primeiro prin-
mento dum Big Brother electrónico, dum universo cípio da ordem pluralista e liberal. Com os modernos,
orwelliano em que os tele-ecrãs e a web permitem espiar ficam consagrados os princípios da liberdade individual
os actos e gestos mais ínfimos dos cidadãos e dos con- e da igualdade de todos perante a lei: o indivíduo apre-
sumidores. senta-se como o referencial último da ordem democrá-
Apesar disso, a confiança na tecnociência está muito tica. Pela primeira vez na história, as regras da vida
longe de ter desaparecido. Embora a mitologia do pro- social, a lei e o saber deixaram de ser recebidos do exte-
gresso indefinido e necessário tenha desaparecido, conti- rior, da religião ou da tradição, devendo antes ser cons-
nuamos a esperar e a crer nos "milagres da ciência" para truídos pelos seres humanos, os únicos autores legítimos
combater as doenças, viver mais tempo e com melhor do seu modo de ser em conjunto. Como o poder deve
saúde. Continua a fazer sentido melhorar a condição emanar da livre escolha de cada um e de todos, ninguém
humana mediante aplicações técnicas do saber científico. deve ser obrigado a adoptar esta ou aquela doutrina e
Todavia, a relação com o progresso tornou-se ambiva- submeter-se às regras ditadas pela tradição. Direito de
lente, oscilando entre a mitificação e o desencanto, o eleger os seus governantes, direito de se opor ao poder
terror e a esperança: não foi a noção de progresso que instalado, direito de procurar por si mesmo a verdade e
faliu, mas a sua afirmação religiosa dogmática. Na época direito de orientar a sua vida de acordo com a sua von-
hipermoderna, o horizonte da tecnociência tornou-se tade: o individualismo aparece como código genético das
confuso. Ao perder o seu carácter inicial de evidência, sociedades democráticas modernas. Os direitos do
tornou-se incerto e problemático. homem são a sua tradução institucional.
Todavia, esta revolução individualista não foi levada
até ao fim. Houve todo um conjunto de "obstruções"
A nova cultura do indivíduo que se mantiveram ou surgiram e que travaram o pro-
cesso de autonomização individual implicado pelos
Embora a nossa época se caracterize pelo desenvol- novos princípios de base. A ordem familiar, as ideolo-
vimento duma nova economia de mercado, também gias revolucionárias e nacionalistas, a compartimentação
somos testemunhas duma nova época de individualismo. disciplinar, a moral autoritária e normas sexistas foram
Este não é, evidentemente, uma invenção recente. Em outros tantos dispositivos colectivos que contrariaram a
60 I A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado I 61
afirmação total e completa do princípio da individuali- relação aos responsáveis políticos, o desinteresse dos
dade. Foi uma revolução importante, mas inacabada ou cidadãos relativamente à coisa pública, a redução acen-
incompleta, que marcou os nossos países, pelo menos até tuada dos militantes dos partidos e a confusão das iden-
aos anos 60.
tidades políticas. Hoje em dia, 3 Franceses em cada 4
Estamos no momento em que estes obstáculos foram declaram desconfiar da classe política. Incapaz de cum-
afastados. Esta é a novidade do nosso ciclo. Tal como há prir as suas promessas e de dar solução aos problemas do
uma desregulação económica que deixa o mercado livre momento, o poder político é tido por ineficaz e afastado
para desempenhar o seu papel com muito menos restri- das preocupações essenciais dos cidadãos. Por outro
ções, também desapareceu, em grande medida, aquilo lado, o abstencionismo aumenta, instalando-se como
que funcionava tradicionalmente como um travão à indi- fenómeno duradouro da vida política: há uma minoria
vidualização. Os valores hedonistas, a oferta cada vez que nunca vota, ou quase nunca, ao passo que cada vez
maior de consumo e de comunicação e a contracultura mais eleitores votam intermitentemente em função das
concorreram para a desagregação dos enquadramentos eleições e do que está em jogo. Muitos cidadãos sentem-
colectivos (família, Igreja, partidos políticos e mora- -se pouco interessados pela vida política e nada interessa-
lismo) e, ao mesmo tempo, para a multiplicação dos dos pelos programas dos partidos, não tendo confiança
modelos de existência. Daí o neo-individualismo de tipo em nenhum deles para governar o país. Mais de 6 Fran-
opcional, desregulado e não compartimentado. A "vida à ceses em cada 10 declararam "não estar muito interessa-
escolha" tornou-se emblemática deste homo individualis dos" ou "nada interessados" em política. Mais de 70%
desenquadrado, liberto das imposições colectivas e dos que têm entre 18 e 29 anos inserem-se neste último
comunitárias. Em termos históricos é uma segunda revo- caso. Embora muitos Franceses continuem a ter uma
lução individualista que está em curso, instituindo desta posição política, mais de um terço dos cidadãos declara
vez um individualismo acabado e extremo: um hiperin- que não é "nem de esquerda, nem de direita" e que não
dividualismo (25). tem confiança em nenhum dos dois campos para gover-
Esta nova liberdade de que os indivíduos beneficiam nar. Uma sondagem realizada em 2006 revela que mais
apenas levou ao limite a sua desorientação e, desde logo, de 60% dos Franceses não reconhecem diferença entre a
no que diz respeito ao domínio político. Tendo como esquerda e a direita. Grande diminuição da identificação
pano de fundo uma sociedade liberta de mega-ideologias com as famílias políticas, abstencionismo, volatilidade
que prometiam um futuro melhor e desorientada devido ou fluidez eleitoral, investimento na felicidade privada e
ao desaparecimento dos grandes projectos políticos despolitização de massas: na esfera política reflecte-se
estruturantes, aumentam o cepticismo e o descrédito em nitidamente a desorientação individualista hipermoderna.
É uma perda de orientação política que, ao ampliar-
(25) GilIes Lipovetsky, L'Ere du vide, Gallimard, 1983, eLes -se, expressa o declínio da capacidade mobilizadora dos
Temps hypermodernes, Grasset, 2004. partidos junto do eleitorado, bem como crenças e identi-
62 I A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado I 63

dades políticas menos "cimentadas". O hiperindividua- do seu destino, a impotência para dirigir o curso das coi-
lismo coincide com a diminuição da consciência de classe sas anda a par da incerteza e da insegurança. Enquanto
e com uma identificação menos forte com as famílias o poder do mercado impõe a sua lei à democracia, os
políticas. Ao mesmo tempo que o domínio político con- responsáveis políticos esforçam-se por dar respostas sóli-
tribui menos para a identidade social do que na época das e duradouras aos problemas causados por aquele.
modernista, progride a subjectivização da identidade Daí a desorientação, resultante do cepticismo, que o
política. O recuo do domínio dos partidos e das ideolo- cidadão sente perante a acção dos que supostamente o
gias messiânicas faz aumentar a proporção dos eleitores representam, daí, também, o interesse que está disposto
que não seguem as palavras de ordem de nenhum dos a conceder a tudo o que pareça poder mudar a distribui-
partidos. Na época do individualismo extremo, abundam ção das coisas - como, por exemplo, uma nova maneira de
"as crenças sem pertença": actualmente, são mais os fazer política, considerada mais moderna, mais de acordo
leitores que se declaram de acordo com apenas uma parte com a realidade do mundo -, mas também o desaponta-
minoritária das ideias do partido em que têm intenção de mento que surge quando esta atitude modernista choca
votar do que os que aderem à maioria das suas ideias. com as realidades concretas. Bill Clinton e Tony Blair
Para além disso, os eleitores revelam cada vez mais pro- tiveram esta experiência e outros tê-Ia-ão também.
pensão para hesitar, aguardando até ao último momento A França é particularmente afectada por esta vaga de
do voto para se decidirem. Com o hiperindividualismo desorientação, pois é na verdade o país europeu mais
surge também o "eleitor estratega", ou seja, o distan- afectado pela abstenção, em que o número de aderentes
ciamento e a autonomização dos particulares em relação aos partidos políticos e aos sindicatos é mais fraco e onde
aos partidos. A hora é de identidades políticas mais a extrema-direita obtém melhores resultados desde há 20
individualizadas, mas também mais flutuantes e incertas. anos. Como em França os poderes públicos são consi-
A falência das ideologias totalitárias da primeira derados o instrumento supremo da coesão social e a
modernidade não explica por si só a desorientação con- instância promotora do bem público, a "mundialização" .

temporânea. Numa sociedade que perdeu a capacidade liberal entra directamente em choque com a sua cultura
de dominar a sua evolução económica e que reduziu política secular. Os Franceses, que estão pouco prepara-
drasticamente a margem de manobra dos poderes públi- dos para adoptar uma atitude de confiança em relação
cos, reforça-se a ideia de que se é governado menos pelos à economia de mercado, sentem a globalização econó-
representantes políticos do que pela hegemonia dos mica como uma violência dirigida contra si, como uma
mercados. O passo seguinte é a desorientação, devido ameaça de desaparecimento da sua identidade nacional.
aos limites dum poder político que sentimos que, com A impotência dos poderes públicos numa nação que se
maior ou menor clareza, já não detém todos os instru- construiu em larga medida através do centralismo estatal
mentos necessários para gerir o mundo. Em sociedades e que tem por hábito esperar muito do Estado, explica,
onde, em princípio, o povo é reconhecido como senhor em grande parte, o mal-estar francês.
64 A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado I 65
Volta a surgir o populismo, os discursos xenófobos Ao mesmo tempo que recuam os pólos de identificação
banalizam-se e a democracia esvazia-se da capacidade de de carácter universal, assimilados a abstracções longín-
se governar. Dever-se-á então falar duma crise que quas, os indivíduos voltam-se para as suas comunidades
ameaça a própria ordem democrática? Neste aspecto, particulares mais próximas. A identificação dos indiví-
note-se que o antiparlamentarismo perdeu o carácter duos afirma-se cada vez menos pela adesão a princípios
virulento que teve entre as duas grandes guerras, que o políticos de carácter geral e cada vez mais a referenciais
projecto revolucionário já não empolga as gerações mais que relevam da história, da cultura, do domínio religioso
novas e que o derrube da democracia em parte alguma e da etnicidade. Há uma explosão das identidades,
está na ordem do dia: a verdade é que a incerteza con- gerada pelo processo de balcanização social, que resulta,
temporânea é inseparável do respeito pela ordem ~emo- por sua vez, duma multiplicidade de minorias e de gru-
crática pluralista. Nem todos os pontos de referência pos que se ignoram ou são mutuamente hostis.
desapareceram. Embora a política tenha ficado desacre- Esta nova distribuição das coisas não se realiza sem
ditada, a democracia liberal está plebiscitada: a destabili- perigos. Os indivíduos, libertos dos enquadramentos
zação hipermoderna inicia-se num quadro de pacificação colectivos, mas "desorientados" e frágeis, podem querer
dos comportamentos políticos e de adesão sem prece- segurança numa integração em grupos, "seitas" ou redes
dentes aos valores do liberalismo democrático. A época que são, por vezes, radicais e violentos. Este fenómeno
do hiperindividualismo coincide com o descrédito do não é marginal: tudo leva a crer que vai continuar, devido
domínio político e a consagração ideológica dos direitos às novas exigências identitárias que uma hiperindividua-
do homem, colocados como fundamento último e uni- lização ansiógena faz despontar. Uma das vertentes da
versal da vida em sociedade. É uma consagração dos hipermodernidade é, por isso, o aumento do caos balca-
direitos do homem que conclui o processo de reconhe- nizado, das seitas e dos movimentos terroristas. Ainda
cimento do indivíduo como referência absoluta, como que não consigam destruir a democracia, as minorias
bússola moral, jurídica e política dos nossos contempo- activistas conseguem colocá-la em estado de choque,
râneos, desligados de todas as antigas formas de pertença aterrorizar o quotidiano e desferir golpes sucessivos à
colectiva. tranquilidade pública. Mais sólida do que se pensa, a
Tal não impede de modo algum a manifestação sociedade liberal não soçobra, mas os efeitos não deixam
repentina do comunitarismo e dos "retraimentos identi- de ser consideráveis. Tendo como pano de fundo a desta-
tários". Ao atomizar o social, a dinâmica de individua- bilização psicológica dos indivíduos, o perigo futuro não
lização gerou uma forma nova de insegurança identitá- reside na destruição violenta das democracias liberais,
ria, que está implícita na perda das raízes comunitárias. mas na sua perseguição pelas minorias perigosas, numa
Daí a necessidade de identificação com comunidades insegurança crónica.
específicas - étnicas, religiosas ou infranacionais -, sus-
ceptível de criar um sentimento de pertença colectiva.
66 A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado I 67
A destabilização dos mundos privados social e natural: agora é um princípio de indeterminação
e de livre governo de si mesma que comanda a condição
A desorientação hiperindividualista ultrapassa em feminina. É claro que este processo é acompanhado pela
muito a esfera política, como se pode ver nas relações manutenção de todo um conjunto de traços e de funções
com a família e entre os sexos. A família contemporâ- herdados da história. Apesar dum forte impulso da cul-
nea regista baixa da nupcialidade, aumento de divórcios, tura democrática, não assistimos a qualquer intermuta-
coabitação pré-nupcial, aumento significativo dos bilidade real dos papéis sexuais. A mulher hipermoderna
nascimentos fora do casamento e baixa da fecundidade. conjuga a revolução moderna da autonomia individua-
À ordem constrangedora do passado sucedeu a família lista e a persistência da herança histórica, a dinâmica da
diversificada, que cada um escolhe, sem modelo nem igualdade e perpetuação da dissimetria social masculino/
norma absolutos, em função da sua ideia de felicidade. /feminino (27). Não deixa de ser verdade que os papéis
Ao mesmo tempo que se multiplicam as famílias recom- sexuais e as relações entre os sexos deixaram de estar
postas e se fala no casamento dos homossexuais, a famí- rigidamente definidos. Tudo neste domínio se tornou
lia é arrastada para um processo de privatização e de aberto, negociável e indeterminado.
desinstitucionalização radical: tornou-se um assunto Semelhante revolução não acontece sem despertar
estritamente afectivo e psicológico, um instrumento de novas perplexidades, novas desorientações e novos tipos
realização pessoal, liberto das exigências de grupo. A dinâ- de conflito entre o homem e a mulher. No âmbito do
mica de individualização destruiu a ordem tradicional, casal hipermoderno, a ideia de que o homem é o chefe da
que fazia prevalecer as tradições e os interesses do grupo família perdeu toda a legitimidade. O moderno que se
sobre os desejos pessoais. A instituição obrigatória e diri- afirma é caracterizado pela igualdade e pela autonomia,
gista de antigamente metamorfoseou-se em instituição pela participação dos dois cônjuges nas decisões. Por
emocional e flexível, em laço contratual que se pode isso, a repartição dos papéis não tem nada de imutável.
construir e reconstruir livremente. Tendo perdido qual- Em princípio, tudo é negociável e susceptível de ser
quer carácter de evidência, a família tornou-se "incerta", revisto, já nada é evidente, já nada na vida do casal se
objecto de hesitação, de deliberação, de decisão estrita- impõe "naturalmente". Em que altura ter filhos? Quan-
mente individual (26). tos filhos? Quem se ocupa deles e quando? Quem vai às
Aliás, os papéis de género conhecem uma evolução compras? Quem realiza esta ou aquela tarefa doméstica?
semelhante. No último meio século, a condição feminina Trabalhar ou ficar a cuidar das crianças? Com a dinâ-
alterou-se mais do que em todos os milénios precedentes. mica da individualização, multiplicam-se inevitavelmente
Pela primeira vez na história, o lugar do feminino deixou os contornos e os temas dos diferendos que opõem os
de ser pré-ordenado e totalmente orquestrado pela ordem
(27) Gilles Lipovetsky, La Troisieme femme. Permanence et
(26) Louis Roussel, La Famille incertaine, Odile Jacob, 1989. révo/ution du (éminin, Gallimard, 1997.
68 I A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado I 69

homens e as mulheres que vivem juntos. Assistimos, por É uma fragilização que se desenvolve num quadro
um lado, à generalização da norma amorosa como cada vez maior de solidão. O sentimento de solidão é
norma do casal e, por outro, ao desenvolvimento de vivido "de tempos a tempos" ou "frequentemente" por
conflitos que se alargam a cada vez mais questões, tendo mais de um terço dos europeus. É como se o desapa-
ambos dificuldade em fazer concessões, querendo cada recimento de todas as barreiras que restringiam a liber-
um realizar-se, reivindicando ambos autonomia e igual- dade individual provocasse apenas o encerramento do
dade. Nestas condições, a esfera íntima suscita tanta indivíduo numa concha pessoal. As cidades tentaculares
insegurança, ou mais ainda, do que a vida pública. As são como que o símbolo desta solidão individual colecti-
nossas grandes desilusões e frustrações são muito mais vamente partilhada. Desde o início dos anos 60 que a
afectivas do que políticas ou de consumo. Quem não proporção de pessoas sozinhas duplicou, atingindo cerca
viveu esta experiência corrosiva? A relação estreita entre de 14% em 2004. Há 8,3 milhões de Franceses que
o amor e a desilusão não tem, evidentemente, nada de vivem sozinhos, sendo cerca de 5 milhões mulheres. Em
novo. O que mudou foi a multiplicação das experiências Paris, uma em cada duas habitações é ocupada por uma
amorosas ao longo da vida. pessoa sozinha. Em 30 anos, o número de famílias mono-
Apagamento das culturas de classe, recuo dos senti- parentais mais do que duplicou, representando 20% do
mentos de pertença a uma colectividade, fragilização da total. As pessoas idosas vivem mais do que as outras a
vida profissional e afectiva, destabilização dos papéis e provação do isolamento e ficam sozinhas cada vez mais
das identidades sexuais, afrouxamento dos laços familia- tempo. São muitos os estudos que sublinham o drama do
res e sociais, enfraquecimento dos enquadramentos reli- isolamento afectivo e social que afecta os desemprega-
giosos: todos estes factores acentuaram fortemente o dos. É por isso que proliferam os clubes de solteiros, os
sentimento de isolamento dos seres humanos, a sua inse- sítios de encontros na internet e a dedicação aos animais
gurança interior, as experiências de fracasso pessoal e as domésticos - em França, há mais de 56 milhões. Mais de
crises subjectivas e intersubjectivas. Quanto mais o indi- 50% das famílias possuem pelo menos um animal de
víduo é livre e senhor de si, mais parece vulnerável, frágil estimação. Nunca na história da humanidade os seres
e desarmado interiormente. São disso prova a multiplica- humanos tiveram tantas possibilidades de estar conecta-
ção dos suicídios e das tentativas de suicídio, a espiral da dos uns com os outros, utilizando redes de comunicação,
ansiedade e da depressão, o crescimento da toxicodepen- e nunca tiveram um sentimento de isolamento tão forte.
dência, dos psicotrópicos e das consultas psiquiátricas (28). Ora, é este estado de solidão e de infelicidade subjectiva

(28) Em França, a taxa de pessoas que sofrem de depressão é a segunda causa de morte entre os 15 e os 24 anos e a primeira entre
aumentou sete vezes entre 1970 e 1996. 11% dos Franceses regis- os 25 e os 40 anos. Um inquérito recente revela que 15% dos estu-
taram recentemente um episódio depressivo e 12% declararam ter dantes pensaram no suicídio durante os 12 últimos meses e que 5%
sofrido de ansiedade generalizada nos últimos seis meses. O suicídio fizeram uma tentativa ao longo da sua vida.
70 I
A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado 171

que está subjacente, em parte, ao aumento do consu- sões e intimidações. Daí uma maior latitude dos consu-
mismo que permite estas pequenas felicidades que com- midores: paralelamente ao "turbocapitalismo" desregu-
pensam a ausência de amor, de laços ou de reconheci- lado e globalizado (29),afirma-se um "turboconsumidor",
mento. Quanto mais os laços sociais e entre os indivíduos ou seja, um consumidor liberto do peso do ethos, dos
se tornam frágeis ou frustrantes, maior é o triunfo do hábitos e das tradições de classe. As classes altas já não
consumismo como refúgio, evasão ou pequena "aven- julgam indigno comprar em low cost e as marcas de luxo
tura" que atenua a solidão e as dúvidas sobre si mesmo. são conhecidas e desejadas em todos os grupos, incluindo
os mais modestos. As actividades e as paixões transcen-
dem as diferenças sociais e criam "tribos" transversais e
Uma cultura de hiperconsumo heterogéneas. As revistas, a publicidade e as ofertas
comerciais fazem eco disso, visando alvos que se alargam
A hipermodernidade corresponde também a uma a todo o corpo social e, ao mesmo tempo, são segmen-
nova época histórica do consumo, assinalada quer pelo tados em função da sua pertença a este ou aquele uni-
processo de individualização, quer pela desregulação. verso do consumo. O comprador do novo estilo deixou
Até aos anos 70, os bens adquiridos e símbolos do con- de estar compartimentado e ser previsível: tornou-se
sumismo eram prioritariamente familiares: o automóvel, errático, nómada, volátil, imprevisível, fragmentado e
os electrodomésticos, o telefone, a televisão e a apare- sem regras. Dado que está liberto dos controlos colecti-
lhagem de alta-fidelidade. A época hipermoderna carac- vos de antigamente, o hiperconsumidor é um sujeito que
teriza-se, por seu lado, por uma nova revolução consu- faz zapping e é descoordenado.
mista em que os equipamentos são essencialmente Se é necessário falar de hiperconsumo é também por-
individuais: o computador pessoal, o telemóvel, o iPpod, que a esfera mercantil se tornou omnipresente, tentacular
o GPS portátil, os jogos de vídeo e o smartphone. Nestas e ilimitada. Consome-se em todo o mundo, em qualquer
condições, cada um gere o tempo como quer, pois está lado e a qualquer momento: nos hipermercados e nos
menos condicionado pelas restrições de carácter colec- centros comerciais, nos cinemas, nas gares, nos aeropor-
tivo e muito mais preocupado em obter tudo o que possa tos, nos horários habituais de funcionamento, mas tam-
contribuir para o seu conforto, para a sua maneira de bém, e cada vez mais, ao domingo, depois de jantar e
viver e para a forma de se comportar ao escolher o seu pela noite dentro, sendo-se servido por empregados ou
mundo pessoal. É por isso que esta personalização vai a servindo-se a si mesmo, utilizando máquinas automá-
par da dessincronização dos usos colectivos: o espaço- ticas ou encomendando pela internet. Por seu lado, as
-tempo do consumo tornou-se o do próprio indivíduo. festas, outrora religiosas, transformaram-se em convites
Ao mesmo tempo, o universo do consumo vê dissol- para fruir, como se fossem orgias de consumo. Actual-
ver-se as antigas culturas de classe que enquadravam os
comportamentos dos diferentes meios sociais com pres- (29) Edward LuttWak, Le Turbo-capitalisme, Odile Jacob, 1999.
721 A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado I 73

mente, o essencial das nossas relações tende a ser mer- damento das famílias, viciação em jogos de vídeo, ciber-
cantil: quase toda a nossa existência está colonizada dependências, toxicodependência, condutas viciantes,
pelas marcas e pelo mercado. Este não cessa de se alargar, anarquia dos comportamentos alimentares, bulimias e
penetrando em todas as dimensões da vida: depois dos obesidades. Embora o capitalismo de hiperconsumo seja
objectos, é a cultura, a arte, a política, o tempo, a comu- contemporâneo do aparecimento do "consumidor pro-
nicação, a experiência vivida e até o domínio religioso fissional", "perito" e responsável, atento à saúde, aos
que são apanhados na rede do marketing e da mercan- preços e à qualidade de vida, é-o também do consumidor
tilização integral. A época do hiperconsumo é a da dila- anómico, cada vez menos senhor de si mesmo. Observa-
tação extrema, da excrescência da esfera mercantil. Por -se, por isso, uma vaga de fenómenos de excesso e de
isso, se os indivíduos são mais livres na sua vida privada, descontrolo, de comportamentos desestruturados, de
são também mais dependentes do mercado para a satis- consumos patológicos e compulsivos. O enfraqueci-
fação dos seus desejos. Quanto menos este impõe os mento dos controlos colectivos, os estímulos hedonistas
pormenores da forma de cada um consumir, maior é o e o excesso de escolha consumista contribuíram em con-
ascendente geral do consumo sobre os modos de vida e junto para criar um indivíduo frequentemente pouco
os prazeres. preparado para resistir, quer às solicitações do exterior
É difícil negar que o universo do hiperconsumo traz quer aos impulsos do interior. A cultura da possibilidade
consigo uma multiplicidade de benefícios: bem-estar de os indivíduos disporem livremente de si no supermer-
material e melhor saúde, informação e comunicação. cado contemporâneo dos modos de vida é também
Contribui para tornar possível uma maior autonomia aquela em que se assiste ao aumento da tendência para o
dos indivíduos nos seus gestos quotidianos. Todavia, desequilíbrio pessoal. Na sociedade de hiperconsumo
desencadeia ao mesmo tempo um processo de desorien- afirma-se o princípio da capacidade plena de cada um se
tação, devido ao excesso de escolha de que beneficiamos conduzir a si mesmo, ao mesmo tempo que se manifes-
em matéria de produtos, modelos, modas, viagens, estilos tam a dependência e a impotência subjectivas (30).
e marcas. Gera no comprador hipermoderno novas Entretanto, as actividades mais elementares da vida
incertezas relacionadas com a abertura do espaço das quotidiana tornam-se problemáticas e geram interroga-
escolhas, que se expressam até no consumo cultural: ao ções contínuas. Verifiquemo-lo com o caso da alimenta-
homem perdido na multidão (Tocqueville), órfão dos ção. Hoje em dia confrontamo-nos com a desorgani-
pontos de referência da sua identidade, junta-se agora o zação dos hábitos alimentares, a cacofonia dos pontos de
consumidor perdido na hiperescolha da oferta cultural,
que lança todos os anos no mercado milhares de livros e
centenas de filmes e músicas. (30) Sobre estes tópicos, vd. Gilles Lipovetsky, Le Bonheur para-
doxal. Essai sur la société d'hyperconsommation, Gallimard, 2006
Há outros fenómenos que traduzem a desorientação [A Felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a Sociedade do Hipercon-
do hiperconsumidor: compras compulsivas, sobreendivi- sumo, Lisboa, Edições 70, 2006].
74 I A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado 75

referência e dos critérios e o aparecimento duma verda- E a felicidade?


deira "gastroanomia" (31). Actualmente já não se trata
tanto de comer, mas de saber o que comer, uma vez que A destabilização que a sociedade de hiperconsumo
nos encontramos entre os estímulos à gula e o receio de provoca não se fica por aqui. Ela afecta a própria iden-
nos alimentarmos mal, de consumir demasiados açúca- tidade das pessoas excluídas do paraíso mercantil. Num
res, demasiadas gorduras, demasiados corantes, de nos mundo invadido pelo mercado, a pobreza ganha um
tornarmos obesos numa sociedade que faz da magreza o novo rosto, até por terem desaparecido as antigas cultu-
modelo. E será razoável consumir produtos genetica- ras da pobreza. A maioria actual foi educada num uni-
mente modificados sem saber o que essa modificação verso de bem-estar e todos aspiram a fruir o consumo,
acarreta? A inflação das imposições higienistas, hedo- os lazeres e as marcas. Cada indivíduo, pelo menos em
nistas e estéticas e a fusão de informações e de discursos espírito, é um hiperconsumidor. Os que foram educados
contraditórios provocaram uma cacofonia alimentar, num cosmos consumista e não podem beneficiar dele
bem como um estado de insegurança no consumidor. vivem a sua condição com um sentimento de frustração,
É uma cultura simultaneamente hedonista e ansiosa que de desvalorização de si e de fracasso pessoal. Numa
assim triunfa, não a de Dioniso. época de consumo excrescente, o subconsumo é portador
Toda a vida actual se confronta com dilemas seme- de exclusão, de vergonha de si, de auto-estigmatização:
lhantes. Por exemplo, tomar o avião é também contribuir pedir ajuda social, poupar no essencial, estar atento a
para a poluição que provoca o aquecimento do planeta, todas as despesas, privar-se de tudo, não poder limitar as
usar o telemóvel é arriscar-se a tumores malignos que as despesas ao rendimento anual. Nos nossos países,
ondas podem gerar no cérebro. Já nada é evidente: a embora o capitalismo de hiperconsumo tenha feito desa-
incerteza tornou-se a norma dos hiperconsumidores parecer a miséria absoluta, faz agora aumentar a miséria
desorientados, que procuram respostas nas revistas e na interior e o ressentimento dos que não podem ter acesso
internet, mas também nos novos movimentos religiosos à felicidade consumista prometida a todos, por viverem
ou nas seitas, e que, no caso dos mais angustiados e uma "su bexistência " .
menos seguros de si, chegam a já não poder comer, Todavia, é ainda mais globalmente, mais estrutural-
correr, falar ou vestir-se sem a orientação dum treinador mente, que é necessário falar de desorientação na civili-
que lhes segure na mão para lhes dizer o que é preciso zação consumista. Em França, o PIB duplicou desde
fazer. 1975. Quem poderá afirmar que se é duas vezes mais
feliz? O consumo de energia, a riqueza colectiva e o nível
de vida aumentam, mas o nível médio de felicidade não
se altera. A sociedade de hiperconsumo é a do "sempre
(31) Claude Fischler, L'Homnivore, Odile Jacob, 1990; Jean- mais", mas não há "sempre mais felicidade". Os indiví-
-PierrePoulain, Sociologiesde l'alimentation,PUF,2005. duos querem ganhar sempre mais dinheiro, porque a
76 I A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado 177

oferta do mercado não cessa de se ampliar, porém, após sentido e o funcionamento das culturas particulares her-
ter sido atingido um certo nível de rendimento, o senti- dadas das tradições milenares.
mento de felicidade deixa de aumentar em caso de Provavelmente, as crises que abalam os mercados
rendimento suplementar (32). Apenas os muitos caren- financeiros darão origem a novas medidas de regulamen-
ciados declaram ser mais felizes ao verem aumentar o seu tação para as prevenir, mas não se vê actualmente o que
nível de vida. Por um lado, toda a nossa sociedade se possa evitar a continuação da expansão do capitalismo
virou para a corrida ao consumo; por outro, esta não globalizado. Só resta o mercado concorrencial, que se
conseguiu criar, nem "aumentar", a felicidade. "C'est impõe ao mundo como único sistema económico. A tecno-
quand le bonheur?" (*), canta Cali. Temos a sensação de ciência impõe-se igualmente como meio universal e incon-
que a resposta tarda cada vez mais... trolável até nos países que, reintroduzindo o fundamen-
É nestas condições que aumenta uma desorientação talismo teológico-político, se esforçam por adquirir
que, sem ser niilista, não deixa por isso de ser impor- armamento nuclear. Aliás, que parte do mundo não faz
tante.
sua a ideologia do crescimento e não sonha gozar os
paraísos artificiais do universo consumista? É claro que
os problemas ambientais farão promover modos de
consumo mais sóbrios, menos devoradores de energia,
Convergência dos modelos ou guerra das civilizações?
menos consumidores da ecosfera, mas, por outro lado, a
Assim, a menos que haja um cataclismo planetário, o mercantilização total da experiência irá acentuar-se à
universo de amanhã organizar-se-á cada vez mais em medida que se estende a todo o planeta. A integração das
função destes quatro pólos universais do futuro hiper- restrições requeri das pelo desenvolvimento sustentável
moderno: o hipercapitalismo, a hipertecnologia, o não será o túmulo do hiperconsumo, mas o instrumento
hiperindividualismo e o hiperconsumo. Irão evoluir e da sua perpetuação duradoura em todo o mundo.
terão as marcas das culturas particulares, mas não dei- Contesta-se, por vezes, a noção de cultura-mundo,
chamando a atenção para o facto de o individualismo ser
xarão de ser os princípios estruturantes do mundo que
uma característica distintiva do Ocidente. É não reco-
há-de vir. Não antevemos que alguma civilização possa
escapar a esta nova "grande transformação" à escala nhecer que embora os direitos do homem estejam longe
planetária. Para além das crises, dos "atrasos" e das desi- de constituir o princípio organizador das leis e do poder
gualdades de desenvolvimento, o que verdadeiramente se em muitos países são, no entanto, reivindicados em todos
impõe é uma cultura-mundo que remodela totalmente o os continentes. De modo desigual e mais ou menos repri-
midas, em todo o mundo se expressam as mesmas exi-
gências de liberdades individuais e de bem-estar, o mesmo
(32) Richard Layard, Le Prix du bonheur, Armand Colin, 2007. princípio da disposição livre de si, ao mesmo tempo que
n "Quando chegará a felicidade?" (N. T.) se desvanece o domínio dos modos de vida tradicionais.
78
A Cultura-Mundo
A Cultura como Mundo e como Mercado I 79

Será ingénuo acreditar que a dinâmica da individua- à individualização da adesão e à reapropriação indivi-
lização irá parar às portas do Ocidente. Na Rússia, dual da crença, embora esta possa ocorrer sob uma
transformada em democracia iliberal, crescem as paixões forma ultra-ortodoxa (34).Para além dos sinais que anun-
da moda e do luxo e os apetites do individualismo consu- ciam uma nova islamização da cultura e da sociedade, é
mista. A China, que não beneficia das instituições duma a cultura moderna do indivíduo (35) que avança, reorga-
democracia liberal, assiste ao despontar do individua- nizando os comportamentos familiares e religiosos.
lismo do ter e do reino da livre troca.
É por esta razão que não deveríamos aceitar a tese da
Mesmo nos países dominados pelo fundamentalismo guerra entre as civilizações. Longe de haver uma alteri-
islâmico, a individualização está em marcha. É prova dade radical das culturas, estas não deixam de ser trans-
disso a diminuição da taxa de fecundidade, que, em países formadas e remodeladas pelos princípios-força da moder-
como o Irão ou a Tunísia, é agora idêntica à da França. nidade e da hipermodernidade. Já não há nenhuma
Esta queda da fecundidade traduz exemplarmente o civilização exterior ao impulso da cultura-mundo, já
abandono dos comportamentos e dos modos de vida nenhuma escapa à experiência de desorientação social e
tradicionais, a transformação radical das relações de individual que ela gera. Afinal de contas, é a cultura-
autoridade entre marido e mulher e o controlo dos nasci- -mundo que está na origem do redespertar do funda-
mentos em função das vontades individuais. Por trás da mentalismo religioso, enquanto reafirmação da fé, em
atitude cultural de oposição ao Ocidente, assiste-se, a um culturas que, precisamente, registam um recuo do domí-
nível mais profundo, ao avanço do modelo ocidental nio do religioso. Para além da diversidade das formas
individualista na ordem familiar: na Jordânia, no Egipto culturais, estão em acção linhas de força universais e
e na Argélia está já a reduzir-se a proporção dos casa- comuns, idênticas em toda a parte.
mentos entre primos direitos, ditados pelo costume; no Contudo, recusar a tese do conflito entre civilizações
Líbano e no Magrebe, as mulheres casam-se mais tarde, não significa defender a ideia duma homogeneização do
esperando, por vezes, pelos 28 ou 30 anos, e o aborto é planeta que anula todas as divisões e diferenças culturais.
amplamente praticado no Cazaquistão, no Azerbeijão e O individualismo não se situa fora da história, ele só se
na Albânia (33).O próprio neofundamentalismo religioso pode concretizar a partir de elementos particulares que se
aparece como uma religião do indivíduo, na medida em enraízam nas culturas seculares. Tocqueville disse que
que substitui a religiosidade tradicionalista pelo princípio
moderno da escolha e da convicção pessoal. Não esta- (34) Olivier Roy, L'!s[am mondialisé, Seuil, 2002.
mos a assistir a um regresso à prática dos antepassados, (35) A própria a violência terrorista dos "homens-bomba" e
mas, pelo contrário, à crítica às autoridades tradicionais, outros suicidas, apesar da ideologia anti-ocidental que lhe está subja-
cente, apresenta uma carácter moderno-individualista, como se pode
ver no internacionalismo do recrutamento, no voluntarismo e no
(33) Sobre estes temas, vd. Youssef Courbage e Emmanuel Todd, empenho subjectivo dos seus agentes e no niilismo e na fuga para a
Le Rendez-vous des civilisations, Seuil, 2007.
frente das destruições maciças e hiperespectaculares.
80 I
A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado I 81

"os povos sofrem sempre a influência da sua origem". espectacular dos Estados. Enquanto alguns anunciam o
Esta condição mantém-se. Qualquer que seja o poder da deperecimento inevitável do Estado-nação (36), devido à
globalização, ela não irá impedir as sociedades de conti- globalização, às redes transnacionais, à proliferação das
nuarem mergulhadas na sua história, na sua língua e na diásporas e ao despontar das economias regionais, nunca
sua cultura. Apesar das forças unificadoras da cultura- a balcanização do mundo foi tão grande, nem nunca
-mundo, as heranças culturais, os "temperamentos houve tantos países-membros na ONU: eram 51 em
nacionais" e as religiões continuarão a imprimir a sua 1945, quando o organismo internacional foi fundado, 99
marca nos comportamentos e nas maneiras de ser e de em 1960, 154 em 1980 e 192 em 2008. Inegavelmente, a
sentir. Não caminhamos para um mundo em que os época fica marcada pelo número de Estados, pela revi-
gostos, os modos de vida e os costumes sejam idênticos, vescência do Estado-nação: longe de se reduzir a uma
mas para culturas diferentes, reestruturadas pelas mes- remanescência condenada a desaparecer, não há dúvida
mas lógicas do capitalismo e do tecnicismo, do indivi- de que este está destinado ainda a desenvolver-se (37).
dualismo e do consumismo. Não haverá um modelo O Estado-nação continua sólido, pois as forças transna-
único, mas versões diferentes de uma cultura-mundo cionais suscitam a valorização da diferença e da identi-
fundada no mercado, na tecnociência e no indivíduo. dade nacional, o apego ao território e à memória, e tam-
As civilizações não são entidades fechadas umas às bém os egoísmos económicos. Não são os conflitos entre
outras: para além das reafirmações identitárias e funda- cerca de sete ou oito grandes civilizações (S. Huntington)
mentalistas contemporâneas, elas aproximam-se, per- que configuram o mundo, mas a fragmentação do mundo
dendo os seus pontos de referência tradicionais e as suas geopolítico numa multiplicidade de Estados grandes e
homogeneidades. A cultura-mundo significa cultura uni- pequenos.
versal, mas isso não implica que tenha abolido do mundo A União Europeia, onde, aliás, o enfraquecimento
a diversidade das culturas particularistas. Num quadro das nações é moderado, é um caso excepcional. No resto
globalista que é agora convergente e de origem ocidental, do globo, os Estados, longe de partilharem a sua sobe-
podem ser criadas instituições políticas, ideologias e rania, esforçam-se por reforçá-la e defender os interesses
valores dominantes totalmente diferentes dos que o Oci- nacionais (38). A força da globalização não conseguiu
dente liberal tem em comum: a mundialização hiper- retirar legitimidade à ideia de nação. Apesar do consu-
moderna de forma alguma implica o triunfo garantido mismo individualista impetuoso, perdura o apego a esta
das democracias liberais.
Se a cultura-mundo não suprime as soberanias nacio-
nais, também não elimina as idiossincrasias culturais. (36) Kenichi Ohmae, The End of the Nation State, The Free
Press, 1995. Vd. também Jean-Marie Guéhenno, op. cit., capo I.
Este planeta unificado pelos mercados é também aquele
(37) François Thual, La Planete émiettée, Arléa, 2002.
em que se assiste à multiplicação dos micronacionalis-
(38) Michael Mann, "État-nation: mort ou transfiguration?
mos secessionistas e, em âmbito mais lato, à proliferação L'Europe et le monde", Le Débat, n° 84, Março-Abril de 1995.
A Cultura-Mundo A Cultura como Mundo e como Mercado
\ 83
82 I

ideia, ainda que sob novas formas. Os povos que não (e também alianças, cooperações e associações) que radi-
possuem soberania lutam para a obter e muitos são os cam nos interesses económicos dos países, nas suas ambi-
que tiveram êxito nesta tarefa histórica. Embora as ções de possuir armamento nuclear e nos objectivos
forças do hipercapitalismo sejam mais poderosas do que clássicos da segurança e de poder político. Tudo isto terá
as dos Estados, isso não se traduz de modo algum na consequências sobre o modo como se apresenta a mun-
desvalorização da ideia de nação e do seu direito sobe- dialização: embora desde meados dos anos 80 os Estados
rano a organizar a sociedade civil e as relações interna- se tenham esforçado por construir um espaço económico
cionais e a assumir os problemas de segurança e da jus- mundial unificado, não se pode excluir que, no futuro,
tiça. As forças transnacionais não são de forma alguma o este assuma formas novas e diversificadas de capitalismo,
prenúncio da era pós-nacional. Na cena internacional, mais adaptadas aos projectos políticos nacionais.
são sempre as nações e os seus interesses os protagonistas
dos conflitos e das negociações.
Embora nada confirme o "choque das civilizações",
por outro lado muitos sinais levam a pensar que, num
mundo multipolar onde o poder regulador se atenuou,
serão as nações e a defesa dos seus interesses vitais, a sua
segurança em matéria de abastecimento alimentar (39) e
energético e a sua estratégia soberana de desenvolvi-
mento a impor-se como actores fundamentais do mundo
que se aproxima. Por exemplo, a globalização torna evi-
dente o aumento do poder do Brasil, da Rússia e dos
novos gigantes asiáticos, que, dotados de uma dinâmica
própria e com os seus fundos soberanos, têm um peso
cada vez maior nos investimentos e no funcionamento da
economia mundializada (40).No futuro, não haverá anta-
gonismo de civilizações, mas conflitos internacionais

(39) Devido ao aumento súbito dos preços dos géneros alimen-


tares, vários países (Brasil, Indonésia, Vietname, índia, etc.) anun-
ciaram a proibição ou o contingentação das suas exportações de
arroz, a fim de proteger os seus mercados internos.
(40) Em 2008, os fundos públicos de pensões e os fundos sobe-
ranos foram avaliados em 3,5 mil milhões de dólares, podendo ascen-
der a 12,5 milhões em 2015.

Você também pode gostar