Você está na página 1de 3

Cultura e democracia

JOÃO BATISTA DE ANDRADE

Li e reli o artigo "O mostro e o poeta", de Antonio Negri e Giuseppe Cocco, publicado
nesta página no último dia 3 de março. Tarefa difícil, entender. Não onde os autores queriam
chegar, coisa fácil -defender o Ministério da Cultura. E tudo, claro, ainda sob o impacto da
troca de opiniões entre o secretário de Políticas Públicas do MinC e o poeta Ferreira Gullar.
Defender o MinC, tudo bem. Mas o artigo revela problemas graves de visão do que é política
cultural num país como o nosso, em nosso tempo.
A começar do primeiro parágrafo, onde a questão é o presidente Lula. O personagem é
ungido a alguma categoria próxima do divino, centralidade da questão cultural e democrática
no Brasil de hoje. "Sua singularidade se mantém e se reproduz na multiplicidade". E
arredonda não se tratar, Lula, de projeto, "mas de forma de vida". O culto é mais do que
evidente -e nem sequer se tentou ocultá-lo.
Se há uma coisa perigosa para a sociedade é a submissão ao carisma do líder que se
torna a centralidade: ele é a cultura, o resto são expressões diversificadas de sua divindade.
Ele, entendido aqui a figura, com seu sorriso, sua barba, sua sabedoria, seu português, sua
malandragem, sua bondade, sua liderança, sua história. Assim, a política cultural fica marcada
por uma delimitação -a pergunta: "De que lado você está?".
Mesmo com a ressalva de que Lula é, evidentemente, um democrata, não posso deixar
de lembrar do filme "Hanussen", do húngaro Istvan Szabo, que conta a trajetória de um
mágico em plena ascensão do nazismo. O mágico é extremamente carismático e popular, de
tal modo que acha que pode seguir sua trajetória independente da política, sem aderir a Hitler.
É o que os fascistas não aceitam: para eles, só havia um líder carismático na Alemanha -
Hitler. Nenhum espaço para ninguém mais.
Essa é a lógica desse tipo de liderança divinizada, típica das ditaduras (imposição de
líder), mas também é o risco que correm os regimes democráticos conduzidos pelo carisma de
seus líderes. A cultura se torna vassala dessa expressão dominante. Seus adeptos devem usar
viseiras para não enxergar nada que possa colocar em xeque a divindade do líder. Ao líder
aderem-se suas virtudes e defeitos. Os cantos dos olhos servem para vigiar: descoberto, o
crítico é rapidamente classificado como inimigo e denunciado com todo rigor.
É preciso escapar dessa armadilha. Os governos nem sempre estão errados, mas
críticos não são obrigatoriamente inimigos. E também nem sempre a expressão cultural da
"elite" é elitista e excludente. O mundo da cultura precisa dessa convivência entre tudo -entre
consagrados e novos, entre capital e interior, entre gêneros, entre tendências, entre o rico e o
pobre-, mesmo que ela se apresente carregada de conflitos. Erra quem faz a transposição
mecânica do social para o cultural, como se na expressão cultural dos indivíduos se
reproduzisse mecanicamente a luta de classes que se dá na sociedade.
O mundo da cultura é como um rio generoso, que se enriquece de novas águas de
todas as fontes possíveis. É fundamental que existam as diferenças, que os fatos tenham
interpretações múltiplas, que a imaginação de cada um recrie o mundo à sua imagem e
semelhança e que nenhuma matriz, política ou social, seja imposta a essa criação.
É preciso também cuidado com expressões aparentemente generosas, como "a cultura do
povo". Como se o povo não fosse constituído por indivíduos.
Por trás dessa aparente "generosidade" intelectual, celebra-se a acomodação de uma
certa cultura que se reproduz sem crítica, fácil de adotar e de manipular. Os indivíduos
populares, sem o poder dos indivíduos da elite, apresentam-se, muitas vezes, incapazes da
crítica e da criatividade e exercitam a repetição de valores auto-afirmativos, como uma
espécie de defesa. Dependendo dos governos, recebem mais ou menos apoio da sociedade e
do Estado. Costumam ter tratamento marginal, mas podem ser usados pelo poder contra as
elites, quando estas se tornam incômodas.
É sabido que os regimes autoritários ou populistas preferem, por isso mesmo, as
expressões populares da cultura, enquanto trabalham como podem para impedir o
estreitamento das relações da "elite" cultural com seu povo. Como? Censurando (nas
ditaduras) ou perseguindo e desmoralizando (nas democracias desavisadas).
É preciso mais atenção à multiplicidade e pluralidade da cultura. E mais paciência,
mais tolerância e mais sabedoria quando estamos numa democracia, depois de tantos anos de
ditadura. A política cultural, para avançar nessa diversidade, é a política plural, da inclusão,
conduzida com espírito público, transparência e respeito às liberdades de opinião e criação.
Inclusão implica alargar políticas já existentes e também a criação de novas políticas, com a
expansão dos recursos (expansão real!) e equipamentos de nossos órgãos de política cultural,
incluindo as secretarias e o MinC.

João Batista de Andrade, 66, cineasta e escritor, doutor em comunicação pela USP, é secretário de Cultura do
Estado de São Paulo. Foi presidente da Cinemateca Brasileira e, por duas vezes, da Associação de Cineastas de
São Paulo.

Para quem não leu o artigo do Negri, aqui vai...

O monstro e o poeta
ANTONIO NEGRI e GIUSEPPE COCCO

O ódio da elite a Lula é proporcional à insistência desse governo, moderado e disciplinado,


em tentar abrir brechas nas bases sociais do bloco de poder. Nesse sentido, Lula é
monstruoso, porque está aquém da representação e além da utopia. Ele não é, pois,
homologável nem à soberania do "um" (seja ele o "povo", o "partido", "o" intelectual) nem a
nenhuma utopia abstrata. Lula é, ao mesmo tempo, um e muitos. Sua singularidade se mantém
e se reproduz na multiplicidade. Não se trata de projeto, mas de forma de vida.

É essa monstruosidade que incomoda a elite, também no que diz respeito às políticas culturais
do Ministério da Cultura. O poeta Ferreira Gullar (em sabatina desta Folha, no dia 21/12/05)
afirma que "não acompanha", mas que "dizem que os projetos [do MinC] não andam. Nem as
solicitações de verbas". Ele sentencia: "O governo tem de dar respaldo para [a cultura]", e não
intervir.
Não poderíamos encontrar expressão mais apropriada do "liberalismo" das elites brasileiras:
os subsídios públicos (o Estado) devem sempre ir para os mesmos (os "grandes" cineastas, os
"autores" confirmados), e o mercado (a competição e o risco), para os outros! As críticas da
elite ao MinC tentam aproveitar uma real ambigüidade sobre o que se entende por política
cultural. Não é por acaso que, por uma ironia apenas superficial, o poeta e o secretário de
Políticas Culturais do MinC trocaram acusações de stalinismo.
Na realidade, permanece cá e lá uma visão de esquerda que pensa a cultura como um
instrumento necessário à construção, a partir de uma política de Estado, de um "projeto de
nação". Evidentemente, esse discurso "oferece" à hipocrisia da elite a oportunidade retórica de
defender a "liberdade" da criação. Ficamos assim com essa falsa oposição entre uma liberdade
de criação, que deveria ser garantida por mecanismos não estatais, e uma publicidade da
cultura, que passaria por algum mecanismo de "centralização" estatal.
Hoje, a cultura não tem só um expressivo peso econômico. A economia como um todo
depende cada vez mais, em seu conjunto, das dimensões culturais. Algo que não saberia
limitar-se aos sucessos de um ou outro grande "autor", por mais genial que ele seja. O que é
cultural no capitalismo globalizado das redes é o trabalho em geral. Ou seja, um trabalho que
se torna intelectual, criativo, comunicativo -em uma palavra, imaterial.
A cultura "gera valor" (como diz o "management") porque o que é incorporado aos produtos
são formas de vida: estilos, preferências, status, subjetividades, informações, normas de
consumo e até a produção de opinião pública. A mercadoria precisa ser dotada de valor
cultural. O trabalho se torna, assim, ação cultural. O trabalho da cultura e na cultura se torna
cada vez mais o paradigma da produção em seu conjunto.
Hoje em dia, vivemos um tempo unificado e disperso que implica também uma nova
espacialidade, não funcional, de inter-relações contínuas. Toda a vida é mobilizada em um
fluxo contínuo -de circulação produtiva- que pode ser chamado de biopolítico: produção de
formas de vida por meio de outras formas de vida.
Nesse novo mundo, a multidão das singularidades que cooperam em rede define um campo
totalmente diferente do individualismo da retórica liberal e neoliberal. As singularidades se
definem pelas relações que as ligam entre elas, pelo reconhecimento do outro. O trabalho da
multidão só pode acontecer na medida em que paixão, imaginação e intelecto se encontram no
que podemos chamar de amor das singularidades que cooperam horizontalmente. O amor,
entendido como nova ética do trabalho e como nova estética, produz o comum.
Não estamos idealizando. Muito pelo contrário, falamos de algo extremamente material, ou
seja, tanto dos produtos de uma colaboração voluntária, aberta e auto-organizada, que
caracteriza os movimentos do "copyleft" e do "open source", quanto dos pré-vestibulares
"comunitários" para negros e pobres. O comum não é privado (mercado) nem público
(estatal): sua constituição passa pelo reconhecimento de que não é mais possível uma
produção e uma estética, a não ser na base de uma apropriação social dos bens públicos.
Corretamente, as políticas culturais do MinC estão além dessa oposição, na medida em que
procuram se abrir aos sujeitos novos da criação cultural contemporânea. Esses sujeitos,
múltiplos, não são mais representados pelo Estado, pois não podem ser reduzidos ao "um" (ao
"povo" e/ou à "nação"), ao passo que sua multiplicidade não tem nada a ver com o
individualismo egoísta do mercado.
A procura de mais democracia, diversidade e pluralidade das políticas de fomento à cultura
por parte do MinC constitui uma inovação maior porque coloca a produção cultural no cerne
da mobilização democrática e produtiva da sociedade como um todo.
Antonio Negri, 72, filósofo italiano, é professor titular aposentado da Universidade de Pádua (Itália) e professor
de filosofia do Colégio Internacional de Paris (França). Entre outras obras, escreveu, em parceria com Michael
Hardt, os livros "Império" e "Multidão".
Giuseppe Cocco, 50, cientista político, doutor em história social pela Universidade de Paris, é professor titular
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre outras obras, escreveu, com Antonio Negri, o livro "Glob(AL):
Biopoder e Luta em uma América Latina Globalizada".

Você também pode gostar