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6 A d O ptions

A CRISE DA CULTURA E O LIBERALISMO

Publicado na Folha da Manhã, quinta-feira, 16 de março de 1944

Neste texto foi mantida a grafia original


FLORESTAN FERNANDES

Especial para a "Folha da Manhã"

O tema do momento é a crise de cultura no ocidente. Artigos, ensaios e profundas análises


sociológicas têm sido escritos sôbre os aspectos e as graves consequências da mudança; poucos
autores, entretanto, viveram tão de perto o drama da transição como Karl Mannheim, que conheceu
na Alemanha totalitária o rebento espúrio do liberalismo e viu pessoalmente na Inglaterra e nos
Estados Unidos outro lado do desenvolvimento da sociedade liberal-democrática. Porisso tem
especial interêsse para nós um de seus ensaios ("As Causas da Crise Contemporânea da Cultura", in
Libertad y Planificación"), em que analisa a crise da cultura nas sociedades liberais-democráticas,
partindo de dados fornecidos pela sociologia.

Há uma estreita dependência entre sociedade e cultura, entre estrutura social e vida intelectual
(Mannheim toma o termo neste sentido restrito), de modo que qualquer modificação ou
transformação sofrida pela primeira, reflete-se nas esferas da segunda. Ora, a sociedade liberal-
democrática do ocidente está em crise; ela passou ou está passando de seu estado de sociedade
liberal-democrática de minorias para o de massas. Em consequência, os fatores sociais que agiram
nessa transformação vão também agir sôbre a vida intelectual: a produção e a utilização (consumo,
diz Mannheim) da cultura e as relações entre o autor e o público, que dependem estreitamente de
certas condições sociais se transformam à medida que aquelas condições se modificam. Porisso, a
vida intelectual também está ameaçada pelos dois princípios, mutuamente antagônicos, o liberal
"laissez- faire" e a regulamentação, que lutam no campo econômico. Êle se arrisca a todos os
perigos que decorrem do funcionamento sem nenhuma direção das sociedades democráticas de
massas, que se tornam mais graves e agudos quando as formas liberais são substituidas por formas
ditatoriais de regulamentação.

Numa sociedade democrática, sabemo-lo, a cultura depende de "normas peculiares de uma ordem
social não regulamentada". Há apenas um mínimo de organização artificial, aparecendo essas
sociedades, à primeira vista, como "um conjunto casual e inarticulado". Uma análise mais profunda,
todavia, mostra que mesmo nas esferas não econômicas há processos similares ao da livre-
concorrência, com um ajustamento automático entre a classe que produz e a que assimila a cultura,
através de atividades inorganizadas e privadas.

Uma análise da cultura, encarada sob êste ponto de vista, deve começar, está claro, por aquêles
que criam a cultura, isto é, os intelectuais e por sua posição dentro da sociedade, considerada como
um todo. Verificamos, então, que os intelectuais se constituem, na sociedade liberal-democrática da
minoria em "élites" reduzidas, cuja missão essencial consiste não só em criar a cultura, mas em lhe
dar uma forma, um significado social e institucional. Elas estimulam o desenvolvimento do
conhecimento objetivo e as tendências à introspecção, à contemplação e à reflexão. Quando estas
"élites" são destruidas ou encontram obstáculos à sua organização, as condições sociais necessárias
ao aparecimento da cultura e sua manutenção desaparecem. A crise contemporânea da cultura se
explica justamente a partir dos obstáculos aparecidos na seleção das "élites" criadoras em
consequência da transição da sociedade liberal-democrática de minorias para a de massas: "a crise
da cultura na sociedade liberal-democrática é devida em primeiro lugar ao fato de que os processos
sociais que antes favoreciam o desenvolvimento das minorias seletas criadoras, agora produzem o
efeito contrário, isto é, chegam a ser obstáculo à formação das "elites", porque seções mais amplas
da população, ainda que se achem em condições sociais desfavoráveis, tomam uma parte ativa nas
atividades culturais" (pgs. 78-79). Aí se apresentam os processos de "democratização negativa", de
"seleção negativa", etc., que resultam da democratização da cultura, a qual deu amplas
oportunidades para um número muito grande de indivíduos que procuraram se orientar
preferencialmente, para êsses grupos seletos e criadores.

À medida que êsse fenômeno se firma, vemos a história dramática da sociedade democrática do
ocidente repercutir no desenvolvimento de sua vida intelectual. As minorias seletas aumentam em
número, devido ao crescente afluxo de indivíduos, e perdem grande parte de seu poder, tendendo a
exercer cada vez menos suas funções e suas influências diretoras. Paralelamente, o público
organizado que se punha entre o autor e a minoria como intermediário, desaparece, ficando o autor
sujeito, bruscamente, à influência direta das massas, que aumenta de importância. Este público _ um
público _ massa, desintegrado, reunindo-se em função de estímulos sensoriais - não influe no autor
como aquele outro que, selecionado em grupos estáveis, tinha determinados gostos e tipos de
reação. E assim, uma excessiva democratização da cultura e a consequente ascensão de indivíduos
e grupos que não estão educacionalmente preparados para ocupar aquelas funções intelectuais, faz
com que seus valores predominem e haja uma consequente queda no nivel cultural médio.

Êsses processos sociais, porém, apresentam dois aspectos distintos: na primeira fase de transição
os resultados sempre foram favoráveis e positivos (por exemplo: indivíduos provenientes de outras
classes sociais levavam às "élites" novos interêsses e pontos de vista, ampliando seu horizonte
cultural; serviam de intermediários entre aquelas minorias e a maioria, reajustando a cultura à
sociedade, etc.). Mas, o mecanismo liberalista não permite parar aí o processo _ êle ampliou-se
demasiadamente e sem orientação, ganhando continuamente em massa e perdendo em qualidade.

Dessas facilidades de aquisição da cultura resultou uma proletarização da "inteligentsia", aparecendo


no mercado de trabalho intelectual mais oferta do que procura. O significado desta proletarização
seria a perda do valor social das profissões liberais e consequente atribuição de menor importância a
essas atividades por parte da opinião pública. Diminuido o valor do intelectual, é lógico que também
diminuisse o valor do produto de seu trabalho _ a cultura. Isto não aconteceu imediatamente após a
passagem da sociedade aristocrática para a liberal-democrática porque esta, em seu primeiro
período, apareceu sob a forma de minorias seletas (a riqueza era condição indispensável para a vida
intelectual). Mas, passou-se para a sociedade de massas e com a democratização da cultura
aparecem aspectos novos nos processos de formação e de seleção das "élites" que, apresentando
inicialmente ótimos resultados culturais, acabaram por levar às suas consequências negativas
inevitáveis.

Restam duas perguntas, que Mannheim procura resolver: por que só agora a cultura adquiriu seu
caráter de massas e não quando apareceu o proletariado? Por que a decadência cultural se tornou
visível só quando a democratização da cultura afetou as classes não proletárias? A mentalidade de
uma classe, diz Mannheim, depende de sua situação frente à produção econômica. Porisso o
proletariado, que deve a sua existência ao progresso da industrialização e à racionalização técnica,
procura desenvolver a sociedade de massas nesse sentido. A classe que ficou com o poder, nas
sociedades liberais-democráticas de massa pertence à burguesia _ aos seus mais baixos estatus:
pequenos funcionários, homens de negócios pouco importantes, pequenos lavradores e
comerciantes, etc. Ora, o invento técnico, a racionalização, a produção em grande escala são seus
inimigos naturais e por êles são combatidos incondicionalmente, com a finalidade de impedir o
aparecimento das grandes fábricas, das grandes emprêsas, etc.; mas, nada se pode alterar numa
das esferas da sociedade sem alterar as demais esferas sociais, e qualquer tentativa de regressão
social e econômica a uma éra precapitalista precisa ser acompanhada de uma modificação da
mentalidade existente também para formas precapitalistas. Essa classe média procurará resolver o
impasse agindo artificialmente sôbre a racionalização técnica, esforçando-se por atenuar a
industrialização, a organização em grande escala e impedir a proletarização crescente nas
sociedades democráticas de massa. Isso não se efetua por si mesmo, automaticamente, mas só pela
interferência da fôrça ou de um plano: o desenvolvimento da sociedade liberal-democrática
desorganizada culmina na ditadura, implicando todos aquêles inconvenientes da substituição de
formas livres por outras impostas artificialmente.

É claro que essa é uma etapa do desenvolvimento social das sociedades modernas que sem dúvida,
vencendo a crise, acabarão por modelar seus elementos em formas culturais estáveis. Contudo _ e a
crítica de Mannheim é contra isto _ aplicamos atualmente os processos de seleção a suas correlatas
instituições de um modo inadequado, já que não visamos mais a seleção limitada de intectuais. Êste
e outros defeitos de funcionamento da sociedade liberal-democrática podem levar ao naufrágio da
civilização; mas, a ditadura, de forma alguma pode ser oposta a estas tendências negativas do
liberalismo, porque ela mesma "nasce da atuação negativa das fôrças da democracia de massas, e
não é mais que uma tentativa violenta para estabilizar uma etapa do desenvolvimento da sociedade
liberal que por sua natureza era transitória".
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