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Mesmo sem projeto, Lula terá sucesso se frear extrema

direita, diz Paulo Arantes


www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/03/mesmo-sem-projeto-lula-tera-sucesso-se-frear-extrema-direita-diz-
paulo-arantes.shtml

Eduardo Sombini, Eduardo Sombini 11 de março de 2023

Paulo Arantes, professor sênior do Departamento de Filosofia da USP, se notabilizou por


suas análises críticas das contradições do capitalismo brasileiro e da arquitetura política
concebida pelo lulismo.

Agora, no terceiro mês do terceiro mandato de Lula, ele diz que nunca foi tão a favor de
um governo. Em sua avaliação, o presidente tem pouca margem para fazer algo
diferente das políticas dos governos anteriores do PT, sintetizadas por ele na ideia de
redução de danos: o esfriamento dos conflitos sociais latentes em um país tão desigual
por meio do Bolsa Família e de outros programa sociais, por exemplo.

Qual é o projeto lulista? Eles continuam sem nenhum projeto, como não tinham em
2003. Em 2003, era um discurso progressista, desenvolvimentista, redistributivista.
Vai continuar sempre assim: tudo pelo social, tudo pelo emprego, não tem nada de
novo. A novidade, de fato, é o que o lulismo fez e nós não prestamos atenção e
não soubemos valorizar, só valorizamos quando veio o bolsonarismo: essa
redução de danos. Isto é, o lulismo foi um anteparo para essa destruição inerente
ao capitalismo nessa sua fase atual, em que ele destrói o seu próprio fundamento,
que é a fonte do valor, o trabalho vivo

Neste episódio, ele diz não ter certeza que Lula vai conseguir chegar ao fim do ano no
Planalto ou cumprir todo o mandato e que seu governo já terá tido sucesso se for capaz
de adiar um eventual retorno da extrema direita ao poder.

Este é o filósofo Paulo Arantes

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Lula vai fazer a mesma coisa [que nos mandatos anteriores]. Qual é a
possibilidade de o lulismo, entre aspas, dar certo? Adiar cada vez mais a volta da
extrema direita, que fez um ensaio geral. Pela primeira vez, um governo com uma
semana teve uma tentativa de golpe de Estado

Transformar a preservação da Amazônia em um negócio rentável, diz o autor, pode ser o


melhor instrumento para Lula comprar tempo em um cenário de desaceleração
econômica e pressão política, à semelhança do que o ciclo de valorização das
commodities nos mercados internacionais nos anos 2000 proporcionou aos dois
primeiros mandatos do petista.

Presidente Lula vai aos EUA para encontro com


Joe Biden

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Em fevereiro, Arantes lançou em livro um ensaio publicado no início dos anos 2000, "A
Fratura Brasileira do Mundo" (editora 34), que trata do debate sobre a brasilianização
dos países desenvolvidos. Na conversa, o autor falou sobre a evolução dessa ideia, que
expressa a piora das condições econômicas e sociais do capitalismo central, que se
tornaria mais parecido com o Brasil.

Arantes também discutiu a interpretação de pesquisadores como Gabriel Feltran, Miguel


Lago e Rodrigo Nunes, que analisam o bolsonarismo como um universo de
empreendedores fortemente ligados a uma economia de pilhagem e a ilegalismos de
todo tipo.

Leia a transcrição da entrevista abaixo.

Esse ensaio, que está sendo reeditado


agora em livro, foi escrito no começo
dos anos 2000. Nele, você se debruça
sobre o debate da época sobre a
brasilianização do mundo. Você
começa o texto indicando uma grande
ironia na temporalidade daquela
discussão: "Na hora histórica em que
o país do futuro parece não ter mais Paulo Arantes durante palestra na livraria Martins
futuro algum, somos apontados, para Fontes, em São Paulo
- Regis Filho -
mal ou para bem, como o futuro do 9.mai.14/Valor/Globo
mundo". Queria te pedir para fazer um
balanço dessa noção de brasilianização. Por que o Brasil —não a África do Sul, a
Índia ou o México— como síntese desse processo de aumento da desigualdade
nos países do capitalismo central e de rebaixamento das condições de vida dos
mais pobres? Como o Brasil aparece como uma expressão disso que estava
acontecendo no centro do sistema capitalista? A primeira observação que eu preciso
fazer é a seguinte: o ensaio foi escrito metade em 2000, metade em 2001 e publicado,
acho que em livro, em uma coletânea carioca, depois no meu livro em 2004 e agora,
reeditado. De modo que ele tem exatamente 22 anos de idade e é um dado importante:
praticamente é uma era geológica.

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Imagina que, quando eu escrevi, não existia o grande terrorismo sistêmico do 11 de
Setembro, não existia, inclusive, a grande maré da extrema direita mundial que começou
pelo menos a brotar a partir da crise de 2008. Não existia ainda a possibilidade, não se
cogitava um colapso financeiro como de 2008, e eu escrevi em plena era FHC. Já estava
no seu término e, portanto, em um certo sentido, o ensaio era uma espécie, como se
dizia no meu tempo, de creolina no chantilly alheio, porque a era FHC já estava nos seus
estertores, tinha mais dois anos pela frente, já era o apagão, que estava afundando o
regime, a usura natural do regime, e havia grande expectativa quanto uma possível
vitória, uma coisa historicamente inédita, do Lula, do lulismo, do PT à frente.

Entrar com aquele assunto —o país do futuro não tem mais futuro, e isso é uma
comprovação mundial— era totalmente contraintuitivo. Essa é a primeira coisa que eu
devia esclarecer a respeito da data. A segunda, que é mais importante, a [palavra]
brasilianização não é minha. É, como nós dizemos, dos gringos, sobretudo dos
americanos e depois de um alemão.

O americano é um sociólogo, Michael Lind, e o alemão é o Ulrich Beck, que se


notabilizou por um ensaio, aliás, muito importante, um livro muito bom, chamado
"Sociedade de Risco". Também usou pela primeira vez, no início dos anos 1990, a
palavra brasilianização, mais ou menos na mesma época em que o Lind estava usando.
Eu já explico a circunstância.

Só que um usou em um sentido negativo, a brasilianização da sociedade americana


significa que nós estamos indo para uma direção horrível, cada vez pior, a nação
americana está se degradando socialmente. O Ulrich Beck apontava a brasilianização do
mundo como uma espécie de apoteose global. Ou seja, o mundo está cada vez mais
parecido com o Brasil, por que nós estamos adentrando alguma coisa que ele chama o
admirável mundo novo do trabalho, que é o trabalho precário ou o trabalho flexível, como
nós fizemos, e para esse paraíso do trabalho precário e flexível, esse alemão, Ulrich
Beck, escolheu o Brasil. Poderia ter escolhido a Índia, a África do Sul, qualquer outro
país, mas escolheu o Brasil, e o Michael Lind também escolheu o Brasil para dizer o
contrário.

Eu falei: bom, então eu vou explorar isso. Para o alemão, para o Ulrich Beck, que não é
um idiota, pelo contrário, é grande sociólogo, mas cometeu esse, digamos, deslize
apologético, nós confirmávamos a nossa vocação de país do futuro. Se vocês quiserem
conviver bem de uma maneira feliz, não ressentida, não desconfortável com esse novo
mundo do trabalho desintegrado, precarizado, flexibilizado, sem direitos, olhem para o
Brasil, como eles são felizes, lá tem samba, tem Carnaval, tem sociedade simpática e
todo o mundo se vira em uma boa. Não sei, acho que o sociólogo teve um surto, viu um
filme colorido com Doris Day no Brasil e "olha, o Brasil do futuro se completou, está lá e
é o futuro da humanidade que se espelha no Brasil, que é essa nova sociedade do
trabalho em reformulação".

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O americano dizia: "Uma sociedade do trabalho em desintegração, veja o estado
lamentável da desindustrialização americana, a degradação do centro da cidade, mire-se
no exemplo", e ele escolheu o Brasil, poderia ter escolhido outro, poderia ter escolhido a
Índia, a Indonésia, a África do Sul, isto é, qualquer país de renda média que nós
chamaríamos de semiperiferia, que é onde nós estamos. Nós não somos periferia
extrema nem núcleo orgânico do sistema. Nós somos uma espécie de classe média
mundial. Não sei por que ele escolheu o Brasil, porque o futuro dos Estados Unidos é
como o Brasil: é uma sociedade de castas, em que há uma espécie de guerra de todos
contra todos, mas lá embaixo, esquecendo o topo da pirâmide, se pode viver
tranquilamente.

Era esse, digamos, o ponto de partida do ensaio. A partir daí, o que pensar dessa visão
que o núcleo orgânico ou, como se dizia antigamente, o Primeiro Mundo, nos viu a favor,
outro contra? Como é que nesse disparate, de um lado e de outro, nós poderíamos nos
reconhecer ou não ou nos autoanalisarmos? É claro que o meu ensaio vai nessa
direção. O país do futuro, o futuro chegou, só que esse futuro é sombrio, mas não é nem
o que é descrito pelo Michael Lind nem muito menos o descrito pelo Ulrich Beck.

Você mencionou agora que esses dois autores olharam para o Brasil por ser um
país de renda média, e não deixa de ser uma espécie de paradoxo olhar para um
país de renda média no momento que essas sociedades passavam por um
achatamento desse grupo de renda média. Esse era um dos pontos importantes do
debate que você apresenta, a classe média que é comprimida, os super-ricos que
se tornam mais ricos e os trabalhadores que se tornam mais precários. Como
enxerga isso? Olha, é difícil entender o que se passava na cabeça deles naquele
momento. Por exemplo, o Ulrich Beck, quando diz isso, diz o seguinte: um terço,
digamos, da classe trabalhadora alemã será rifado.

Era o que o Fernando Henrique estava dizendo, a famosa entrevista depois de um ano
de governo, é o seguinte: "Sinto muito, rapaziada, mas uma boa porção da classe
trabalhadora brasileira, os inimpregáveis, serão inimpregáveis para sempre. Isso é uma
mudança estrutural irreversível do capitalismo global. Eu não posso fazer nada e,
portanto, virem-se como puderem". Ele não diz isso, mas está subentendido e ganhou
grande prestígio entre os meios intelectuais brasileiros progressistas porque não era
demagogo, não era populista, estava dizendo a verdade para o povo. Ora, um terço da
sociedade brasileira vai sobrar, se não um pouco mais.

Ocorre que a esquerda alemã, se ouvisse isso —e foi um alemão que me disse isso, o
Robert Kurz, que eu cito muito—, se um dirigente alemão (prefeito, senador, governador
de província, estado federal ou o primeiro-ministro) dissesse isso, ele estaria em 48
horas na rua, demitido pelo Congresso. Embora isso fosse acontecer, ele não poderia
jamais dizer e enaltecer, como o Ulrich Beck estava dizendo. "Olha, veja só, não é o fim
do mundo, dá para se virar muito bem, eu posso perfeitamente jogar no mar um terço da
classe trabalhadora ou dos assalariados alemães e não vai acontecer nada. O que
sobrar, vocês vão ser muito felizes na vida, é só imitarem o Brasil, terem o jogo de

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cintura do Brasil, a flexibilidade, ser uma sociedade mais relacional, não mais
hierárquica, estrita, puritana". Era isso que eles estavam dizendo, e eu peguei o caminho
do meio para dizer o seguinte para os meus conterrâneos.

O pretexto era explicar o Brasil para americano, para franceses dizer: "Olha, mirem-se no
exemplo brasileiro, não é nem a desindustrialização ou seus resultados como o
sociólogo americano está descrevendo, porque nós nunca chegamos ao que Estados
Unidos foram até então, até a deslocalização, a globalização e a desindustrialização, que
eles querem retomar agora. Nunca fomos isso".

Aí eu dizia para os franceses: "Vejam o que está acontecendo na França, está


acontecendo um novo fenômeno. Quando esse fenômeno apareceu, vocês começaram
a comentar os americanos, os sociólogos americanos que estavam comentando a
decomposição social da sociedade vencedora da Segunda Guerra Mundial e que havia
puxado o crescimento mundial e integrado, para bem dizer, no assalariamento, boa parte
da população —white collars ou blue collars, tanto faz.

Os franceses estavam começando a prestar atenção no que estava ocorrendo nos


Estados Unidos e vendo se não estava ocorrendo algo análogo na França, mas nunca
usaram a palavra brasilianização e começaram a ver como havia muitas semelhanças
entre o que estava acontecendo: como eles chamavam, a nova pobreza francesa, os
novos pobres, os excluídos, que é uma expressão francesa, os que estão do outro lado
da fratura social, que é outra expressão francesa, estava acontecendo e estava
espelhando os Estados Unidos.

O principal era aquilo que um antropólogo francês, o Loïc Wacquant, chamou de a


punição dos pobres, o encarceramento em massa, que era um privilégio americano,
estava começando a acontecer na França também. Também uma população
descartável, encarcerada e precarizada, eles compararam com os Estados Unidos. Mas
como os Estados Unidos estavam se comparando com o Brasil, eu fechei o triângulo
nisso e disse: "Olha, vocês franceses estão se brasilianizando também nesta acepção".
Então, vamos começar a fazer o estudo comparado das nossas respectivas periferias.

Não deu outra: anos depois, as periferias francesas começam a entrar em efervescência,
mas já vinham havia algum tempo. As do Brasil também, mas um outro tipo de
efervescência mais parecida com o massacre, que nós sabemos, que é cantado em
prosa e verso pelos Racionais. Aí, você começou a perceber que havia similitudes entre
as "banlieues" francesas e as periferias paulistas, cariocas, pernambucanas. Aí,
começou a ascender uma espécie de estudos comparativos sobre quem estava mais
acelerado nesse processo de desagregação sem precisar usar a palavra brasilianização.

O primeiro francês que usa naquele momento, até onde eu sei, foi o Loïc Wacquant, que
começou a vir ao Brasil com frequência. Ele era antropólogo, o campo de trabalho dele
eram os Estados Unidos, ele escrevia sobre os guetos americanos negros e começou a
frequentar o Brasil e estudar as favelas cariocas, se juntou a antropólogos e urbanistas
cariocas e começou a pesquisar o Brasil. Pela primeira vez, em um artigo pronunciado

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na Anpocs, a conferência nacional da pós-graduação em ciências sociais, ele fez uma
comparação entre três guetos —o americano, o francês e a favela brasileira— e falou
pela primeira vez em brasilianização. Feitas todas as ressalvas: uma coisa são os
Estados Unidos, outra coisa é a França, outra coisa é a favela carioca, que é um outro
mundo diferente, mas há algo em comum.

Esse algo em comum, aí entro eu, é o fim de linha do capitalismo global, que começa
com várias desmodernizações ou vários colapsos da modernização, para usar uma
expressão consagrada por esse alemão, chamado Robert Kurz, que, ao contrário do que
se dizia antigamente, começa pela periferia para chegar no centro. Começou primeiro
com a desconexão da África Subsaariana, depois o colapso do socialismo soviético, do
mundo soviético. Ele diz: "Agora vai chegar a vez de vocês aí no centro. Vocês não
perdem por esperar". Demorou um pouquinho, porque ele falou isso em 1991 e esse
esfarinhamento vinha aos poucos até implodir de maneira acintosa em 2008. Aí é
impossível negar, foi por onde eu entrei.

O meu público, na verdade, eram os brasileiros que, naquele momento, achavam que as
cortinas do futuro estavam finalmente chegando, que as promessas dos nossos grandes
pensadores desde os anos 1930 estavam em vias de se completar e que, finalmente, o
Brasil como uma sociedade coerente, que nós costumamos chamar de nação, sociedade
nacional e sociedade nacional do trabalho, que havia começado a pintar, dar o ar de sua
graça no fim dos anos 1930 com Getúlio Vargas, finalmente se completaria e que, em um
certo sentido, mesmo a destruição privatizante do FHC tinha sido um tijolinho nessa
construção.

No momento em que essa cortina desse espetáculo do futuro se abre, eu venho e digo
essas barbaridades. Obviamente, não caiu muito bem nos poucos que leram. A ideia era
essa: o nosso futuro chegou, ele é esse, o capitalismo não tem mais nada a oferecer e a
fórmula soviética está historicamente rifada por mil razões, nem todas coincidentes.
Portanto, comparar Estados Unidos, França, Brasil —poderia ter comparado com outros
países, se eu conhecesse melhor, enfim, não ia me aventurar. E eu: mirem-se no
exemplo americano, mirem-se sobretudo no nosso exemplo, nossa fratura que vem da
colônia e vocês vão perceber que essa fratura é constitutiva e faz parte do DNA do
capitalismo. O capitalismo, quando começa como sistema, precisa de uma periferia. Sem
centro, sem periferia, sem metrópoles, sem colônias, ele não vive. Quando ele chega ao
seu fim, prestes a explodir, é quando elas se tornam indiscerníveis. Portanto, há uma
periferização do centro e a periferia está cada vez mais parecida com o centro.

Essa ideia está mais ou menos no artigo para dizer: "Olha, franceses e brasileiros,
pensem um pouco, o nosso destino agora é comum e é um destino terminal do ponto de
vista capitalista, o capitalismo tende a isso, de modo que essa fratura é insanável". A
convergência, isto é, que os mais atrasados alcancem os mais adiantados na corrida, é
um mito de fundação do capitalismo, mas ela acontece no desastre comum.

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A ideia do artigo é essa: contar que ela aconteceu. Esse é o futuro, esse desastre é
comum, agora o que se faz diante disso? As soluções clássicas estão ultrapassadas:
socialistas, social-democratas, de gestão, liberal, aí não tem solução. Liberal
simplesmente é tocar um negócio e de maneira pragmática, fazer o retorno do
investimento existir. Tudo bem, a menos que o planeta exploda antes.

Como vê a manifestação dessa ideia de brasilianização hoje? Porque nesses 20


anos, você citou alguns exemplos, houve o governo do PT, a crise financeira de
2008, Junho de 2013, a vitória de Bolsonaro em 2018 e, naquele momento, você
estava apontando o Brasil como um laboratório da mundialização e, hoje, o Brasil
parece mais como a ponta de lança da expansão da extrema direita global, apesar
da vitória do Lula na última eleição. O bolsonarismo de alguma maneira atualiza
essa ideia de brasilianização do mundo? Eu diria que. O conceito de brasilianização
perde o seu poder de revelação, que eu acho que tinha há 20 anos, quando esses
autores americanos e europeus começaram a usar a palavra.

Agora, ele tende a se banalizar, porque pensando no Bolsonaro ou no fato de que foi o
primeiro governo estritamente de extrema direita que o Brasil constituiu, o bolsonarismo
é uma parte relevante, de maior interesse de estudo, não só nosso, mas no exterior, de
um surto de extrema direita inédito em relação, inclusive, ao fascismo histórico, e que
aparece em vários lugares ao mesmo tempo. No poder, apareceu em primeiro lugar nas
sociedades pós-soviéticas como a Hungria, a Polônia, a República Tcheca, a Eslováquia,
Bulgária, Romênia. Aparece por lá não por acaso, tem que ver com a era soviética, e
também em outros lugares.

Poderíamos falar, por exemplo, em israelização do mundo, que é o que está


acontecendo. Se, nesse momento, eu disser onde é que está a extrema direita no poder
prestes a dar um salto mortal no escuro, é Israel. Uma autora chamada Eva Illouz, uma
judia francesa nascida no Marrocos, tem um artigo dizendo: "Olha, esse paisinho
pequenininho lá perdido no Oriente Médio, que é apenas uma espécie de cabeça de
lança militar americana, como costuma ser carimbado, ele é isso, mas é muito mais. Ele
é o laboratório do que vem por aí, que é justamente um governo de extrema direita". Isso
ela escreveu anos antes do Bibi, do Netanyahu se embrenhar nessa desmontagem do
Poder Judiciário. Vocês podem se ver nesse espelho israelense, porque é justamente
uma extrema direita apoiada por uma classe social relegada, que são os imigrantes
judeus que vieram do norte da África e do Oriente Médio. Não é uma extrema direita
ditatorial que se impõem pelo poder das armas, é uma direita popular.

Há vários capítulos dessa direitização do mundo, desde os anos 1990, os anos 10 desse
século, várias ondas até culminar no Trump, no Brexit, depois no Orbán, no Erdogan, no
Bolsonaro, na última encarnação do Netanyahu e por aí vai, sem esquecer da grande
reviravolta hinduísta do Modi, na Índia. Então, o Bolsonaro é um elo dessa cadeia, um
elo proeminente, quase ganhou a sua reeleição. Agora, ele está meio na berlinda pelos
fiascos que cometeu, pode ser estratégico ou pode ser simplesmente incompetência —e,
se for incompetência, será substituído. Mas o bolsonarismo, a extrema direita brasileira
com força, como nós estamos vendo neste momento, está aí e é um protagonista dessa

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faixa toda. A ideia de brasilianização não faria mais sentido. São vários pequenos Brasis
ou vários pequenos Israéis ou várias pequenas Húngrias. Outro dia, tinha um artigo da
Lúcia Guimarães na Folha falando do Ron DeSantis na Flórida: é uma Hungria com
crocodilos, já começou. A Flórida já é uma pequena Hungria, já é um Israelzinho. O Ron
DeSantis está batalhando para se transformar em um Trump 2.0.

O Brasil é uma onda importante dessa maré, então brasilianização nesse sentido não
faria mais sentido. É apenas o editor, o Milton Ohata, que resolveu ressuscitar esse texto
como uma plaquete. Ele achou: "Tem coisas aqui antecipadas". Não sei, ele que se
explique, eu estava quietinho, dormindo no meu livro, eu não fiz nada [risos].

Com certeza tem. A gente começou a falar do bolsonarismo, eu queria passar para
um outro ponto. Eu vi uma entrevista e uma live sua na época das eleições, e você
cita os trabalhos do Rodrigo Nunes e do Miguel Lago e avança essa ideia de que o
Brasil de hoje não é uma sociedade de classes, mas parece muito mais como uma
sociedade de empreendedores de vários portes, muito associada ao universo
religioso, no mais das vezes pentecostal ou neopentecostal, e também muito
ligada à delinquência, das contravenções consideradas menores —sonegar um
imposto aqui, explorar uns trabalhadores ali— até o crime organizado mais pesado
—as facções e as milícias. Consegue detalhar esse raciocínio? Porque uma
sociedade de empreendedores e de que forma ela se liga ao bolsonarismo? Essa
ideia não é minha, eu tenho que glosar os autores dessas ideias. No caso, o Miguel Lago
e o Rodrigo Nunes, que me parecem os que têm mais ideias originais a respeito do que
é o bolsonarismo fora dos clichês tradicionais sobre extrema direita, fascismo,
obscurantismo, enfim, clichês também sobre os evangélicos, e o Gabriel Feltran, que foi
o primeiro a escrever coisa nova sobre bolsonarismo dizendo: "Olha, é um movimento
popular, vem de baixo".

A classe média e a classe média alta estão surfando nessa reviravolta popular, que ele
chama de revolução do jagunço, empoderamento dos intermediários. O Rodrigo Nunes
também vai nessa direção e fala, inclusive, nos capatazes das plantations, o equivalente
disso historicamente. O Miguel Lago insiste no fato da mobilização dos perfis de rede
social. Esse perfil é uma persona que está conseguindo essa proeza política que
depende de várias condicionantes sociais. Esses perfis estão atuando offline, e a grande
atuação desses perfis offline foi o dia 8 de janeiro deste ano, segundo o Miguel Lago. A
novidade do bolsonarismo é que é a primeira vez que o nosso presidente é um perfil, e
tem o lado desse empreendedorismo, uma dimensão estrutural do capitalismo na fase
atual de desagregação. Não são mais as grandes superfícies e os fronts de trabalho; os
grandes conflitos de classe se esfarinharam e os sobrantes, os sobreviventes se
engalfinham como empreendedores. Têm os pequenos, os médios, os grandes, os
grandes predadores, as multinacionais, é outra coisa. Por exemplo, no nosso caso aqui,
a mineração, que são os grandes empreendedores que estão, de fato, implodindo o
Brasil.

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O Gabriel Feltran diz que é uma rebelião que aconteceu na periferia e é enquadrada por
pastores, por policiais, na verdade, diz o Feltran, é o empoderamento das forças
policiais, das organizações coercitivas, sejam essas forças organizações oficiais ou não
oficiais. Pode ser uma milícia, a Polícia Militar, a Polícia Civil, a Polícia Rodoviária,
podem ser muitas coisas. É o homem forte que parasita uma sociedade e uma economia
que tende a ser, nos seus polos, uma economia de pilhagem. Esses três autores
começaram a dizer, sobretudo o Gabriel, e estão desdobrando coisas. Há uma novidade
nessa grande cadeia de extrema direita e nós estamos vendo mais ou menos cercando o
mundo.

Nós temos uma peculiaridade: essa pequena delinquência. Obviamente, deve ter na
Hungria, em Israel, no mundo inteiro, nos Estados Unidos, na Inglaterra, mas aqui é
diferente. Aí entra alguma coisa que tem que ver com a América Latina. Não há um acre
quadrado que não esteja envolvido em ilegalismo de toda sorte. O México é um
narcoestado, a América central não existe mais, é um corredor de passagem,
barbarizada, é um corredor polonês de imigrantes com pequenas fortalezas que são
ditaduras, como a da Nicarágua, ditaduras ensandecidas. O Panamá, que é um pouco
uma espécie de estação de respiro, porque tem as rendas do canal. Ora, esse país que
desce do México e vai até a Patagônia, passa pelo Brasil, pela Colômbia, está agora
pegando fogo no Peru.

Quando chega no Brasil, há uma ramificação dessas delinquências. A novidade do Brasil


é que a ramificação dessas pequenas delinquências que, somadas, podem devastar
uma Amazônia, podem dirigir os rumos do agronegócio, podem financiar uma destruição
de Brasília, mesmo que sejam pequenos empresários que fretam ônibus, mas os pontos
todos se ligam. O diferencial do Brasil é que a família governante do Brasil fazia parte
dessa rede de delinquência, e a joia da coroa, com o perdão do péssimo trocadilho,
aconteceu nessa semana. É um negócio inacreditável uma família presidencial de
contrabandistas, ligando militares, Poder Executivo, Receita Federal, todos empenhados.
Quando você imagina o que foi a privataria FHC, para usar o lugar comum, com isso, é
muito desproporcional. É pequena delinquência, só que essa pequena delinquência
somada devasta um país.

Por exemplo, você veja o caso de Roraima. O que está acontecendo em Roraima? Todo
o mundo está faturando com a crise humanitária, obviamente, politicamente, e tem os
outros que estão na defensiva e não ousam falar: são os militares, o agronegócio, os
políticos que apoiam os arrozeiros, que apoiam o garimpo em Roraima e assim por
diante. Mas o que ninguém quer falar é que os progressistas que ganharam as eleições
em outubro do ano passado estão transformando aquilo em um simulacro de guerra
contra as drogas. Porque são 50 mil pessoas, Roraima é um estado do garimpo, dos
arrozeiros e é uma base militar. Garimpo, pequeno, grande, médio, igualmente
predadores. Eu estou deixando as grandes mineradoras, que estão lá no Pará. Militares
e políticos formam um bloco só, e Roraima é isso.

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Ora, no momento que os progressistas, os humanitários, os humanistas entram em cena,
ganharam a eleição, "vamos fazer alguma coisa". Começa pelo extermínio dos
yanomamis, o mundo inteiro, uma unanimidade. O que nós vamos fazer? Vamos tirar os
garimpeiros de lá. O que significa tirar os garimpeiros de lá? É uma espécie de
supercracolândia. Vão reeditar, no limite, uma guerra às drogas. Se quiser, pode até
haver financiamento e inteligência militar americana para combater o garimpo ilegal na
Amazônia pois interessa a preservação da Amazônia. Sendo que desses 50 mil no
sistema da garimpagem, 90% é povo descartado por essa brasilianização do capitalismo
que aconteceu há 25, 30 anos atrás. O que se faz com esse povo descartado? É como o
pessoal do tráfico nas favelas das grandes aglomerações brasileiras, é uma carreira, é
um emprego.

O que eles vão fazer? Eles vão alimentar uma eterna guerra ao garimpo ilegal, como se
faz a eterna guerra às drogas, quando nós sabemos que ela não resolve absolutamente
nada. A guerra às drogas tem 50 anos de idade e é apenas uma forma de controle
social. Você já começa lá em cima, em Roraima, você imagina o resto da Amazônia.
Quantos militares falam: "Quem está tocando fogo na Amazônia não somos nós. Nós
gostaríamos de fazer outra coisa, inclusive inundar a Amazônia, transformar em um
grande lago". É o projeto dos militares na ditadura, são loucos mesmo.

É o povo. Quando eles falam o povo —e, portanto, esse povo ora nos serve como
eleitores, ora nos serve como predadores de Brasília, ora nos serve como acampadores
dos quartéis, mas é popular. É caboclo, é população ribeirinha, são indígenas que estão
lá nessa garimpagem. O que você vai fazer? Vai matá-los? Vai expulsá-los? Você
empurra para o mar? Portanto, é a guerra interminável às drogas nas periferias que é
uma indústria. Tudo interessa ali, menos acabar com as drogas. Essa guerra às drogas
alimenta meio mundo, das milícias a senadores, sem falar nos grandes traficantes que
nunca estão aqui, estão no resto do mundo.
Essa é a particularidade do Brasil neste momento de desintegração, quando justamente
a Amazônia aparece como o futuro do mundo, nós voltamos a ser o futuro do mundo
graças à Amazônia, só que a Amazônia já está corroída por isso. Não adianta ficar com
satélite monitorando o desmatamento e conseguir fundos alemães e noruegueses para
manter uma sociedade de baixo carbono em regiões que vão viver de quê? De créditos
de carbono. Aí, eu já eu já vou começar a interpretar o que seria o governo Lula, mas
não é o caso agora.

Não, queria passar para o governo Lula mesmo porque, em uma dessas
entrevistas, me chamou muito atenção, você disse que esperava tudo e não
esperava nada do governo Lula e fez uma crítica a essa ideia de que o PT se
comportou como o síndico de um condomínio de várias facções políticas e se
limitou a reduzir os danos, sem um projeto, sem um horizonte de transformação
social, qualquer coisa mais profunda. Como está vendo, à luz disso, o governo
Lula no começo do terceiro mês? Eu acho que são bons, são inteligentes, preparados,
razoavelmente civilizados —se o termo de comparação for o bolsonarismo, aí todo o

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mundo é civilizado. Mas, não é que eu tema, eles não têm outra alternativa. Eles vão
fazer mais do mesmo, não tem como, só com meios mais precários ainda, porque não
terão mais o bônus do boom das commodities.

A retração econômica é mundial, pelo menos no primeiro mandato. Se ele conseguir um


segundo mandato, pode ser que a coisa mude, mas eu acho que a estratégia continuará
sendo a mesma: é redução de danos. Nós sentimos na pele o alívio da vitória do Lula,
apertadíssima como foi. Portanto, é uma vitória completamente relativa. Na verdade, não
foi uma vitória do Lula, foi uma proeza porque ele lutou com forças adversas, que era um
Poder Executivo do Estado delinquente, com Forças Armadas, a média da magistratura,
enfim, tudo que nós sabemos. Mas foi uma vitória assegurada porque o Zé [Joe] Biden e
uma parte da Europa Ocidental tinha interesse em que ele ganhasse e que o Bolsonaro
era uma roubada.

Foi o que segurou os militares, o pragmatismo. Militares, por definição, são golpistas e,
mais ainda, são bolsonaristas. O nosso atual ministro é apenas um legalista por
conveniência: "Nesse momento, é mais conveniente para minha carreira ser um legalista
aos olhos do Biden e da Europa Ocidental e da opinião pública em geral do que é ser
aquilo que eu penso". Isso não vem ao caso.

O que eu estou dizendo é que, se você me disser: "Qual é o projeto do lulismo?". Eles
continuam sem nenhum projeto, como não tinham em 2003. Dois mil e três era um
discurso progressista, desenvolvimentista, redistributivista. Continuará sempre assim:
proteção social, tudo pelo social, tudo pelo emprego, não tem nada de novo. A novidade,
de fato, que o lulismo fez e que nós não prestamos atenção e não soubemos valorizar,
só valorizamos quando veio o bolsonarismo, foi essa redução de danos. Isto é, o lulismo
foi um anteparo para essa destruição inerente ao capitalismo nessa sua fase atual
destrutiva, em que ele destrói o seu próprio fundamento, que é a fonte do valor, o
trabalho vivo.

Ao mesmo tempo, não se desfaz dessa forma fetichista, que é a relação pela
mercadoria. Daí essa máquina infernal que vai sobreviver ao fim físico do mundo pelas
mudanças climáticas. O capitalismo não acaba por si mesmo, ele vai continuar a destruir,
mas o mundo acaba antes. Esse é um prognóstico.

O governo Lula fez aquilo que não imaginava que fosse fazer: reduzir danos. Isto é, ele
comprou tempo para postergar cada vez mais esse encontro de contas, esse ajuste de
contas que será feito no fim. Como ele comprou tempo? Ele tinha dinheiro do boom das
commodities. Ele pôde irrigar com cash, com dinheiro vivo, essas pontas mais explosivas
do tecido social, como se diz no jargão, que não existem mais. Então, ele irrigou as
periferias de empregos, de dinheiro, programas sociais muito bem-planejados e
desenhados. Funcionaram. Esses programas sociais foram desenhados para segurar as
pontas, para o muro não ruir, e funcionou muito bem —todas as contrapartidas, muito
bem-desenhadas—, é "best practice" no mundo inteiro. Como controlar os pobres sem

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mudar a sociedade, esse é o exemplo do Brasil. A Índia copia, o Paquistão copia, a
Indonésia copia, a África copia. Todo o mundo quis fazer igual até que veio o
bolsonarismo e destruiu isso.

O bolsonarismo apressou o fim do mundo, em certo sentido, porque ele destruiu esse
anteparo de gestão desse caos terminal no qual nós vivemos, que se chama capitalismo
e que o lulismo estava contendo dizendo que estava fazendo outra coisa: avançando o
processo social, desenvolvimento, emancipação, os direitos. Ninguém discorda disso.
Pode falar à vontade, mas estava fazendo isso, e eu acho que isso foi muito bom para o
Brasil. Foi bom nesse sentido: você pega a cracolândia e reduz danos. É ótimo, ninguém
é contra, precisa ser muito energúmeno, de extrema direita, para passar o trator em
cima.

Eles fizeram isso com sucesso e um sucesso tão grande que precipitou a queda da
Dilma, que eu acho que foi uma grande manobra de luta de classe. "Esses caras estão
muito fortes, estão ganhando todas as eleições, vamos tirá-los do caminho". E tiraram
em uma boa, sem disparar um tiro e cumprindo a lei. Isso se chama luta de classes, que
a esquerda esqueceu.

Aí veio o pesadelo bolsonarista, que é o fim dessa política de redução de danos, que é
pressão para que o reino da delinquência, portanto o mais forte, da milícia ao presidente
da República, passem a mão naquilo que lhes convém. Pode ser uma farinha de
cocaína, pode ser uma joia do rei da Arábia Saudita. Está tudo no mesmo bolo da
rapinagem. Era isso que estava acontecendo e, portanto, o grande capital achava que ia
tirar sua lasquinha também, porque para ele não teria mais limites, mas ele viu que teria
limites —um desses limites é físico, precisava de um planeta para explorar.

Terminou isso, o Lula volta, porque os americanos mandaram N recados: "Olha, não
avança o sinal porque nós fechamos a torneira de vocês, vocês vão ser um câncer ou
serão párias mundiais". O ministro disse, com todas as razões, que não havia
possibilidade de golpe porque seria uma loucura. "Nós estaríamos no ostracismo
imediatamente em 48 horas, insustentável. Nós teríamos que governar e nós não
sabemos governar. Nós viemos aqui para outra coisa, para ganhar um salário de 1
milhão", era para isso que eles estavam aí.

O Lula vai fazer a mesma coisa [que nos mandatos anteriores]. Qual é a possibilidade de
o lulismo, entre aspas, dar certo? Adiar cada vez mais a volta da extrema direita, que
está aí preparando-se para voltar. Fizeram um ensaio geral: pela primeira vez, um
governo com uma semana teve uma tentativa de golpe de Estado, meio tabajara, porque
os militares pensaram duas vezes, tinha o veto internacional, diplomático, então eles
deixaram o pessoal no sereno. Isso significa que eles estão reforçando os escalões
médios do antigo bolsonarismo, que vão começar a se auto-organizar. Pode apostar: os
1.500 que vão sair da Papuda, processados ou não, vão sair radicalizados, com novos
lideranças, com um novo tipo de organização.

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O que eu imagino que está no consciente ou no subconsciente dos formuladores de
políticas lulistas está o varejo do toma lá dá cá com os Liras da vida. Vão engoli-los, mas
faz parte, eles já conviveram com esse pessoal desde o tempo do Mensalão. Eles estão
carecas de saber como se lida com essa bandidagem parlamentar. Não é esse o
problema.

O problema é que, para que ele continue a afastar o perigo do retorno, do "second strike"
da extrema direita, é necessário que tenha dinheiro. Para ter dinheiro, não tem mais
commodity, tem o que? A Amazônia. Eles vão fazer aquilo que o Bolsonaro sempre disse
que todo o mundo queria fazer com a Amazônia: chantagear o mundo. "Olha, se vocês
não financiam, se não vêm investimento, se vocês não viabilizam alguma coisa que é um
arremedo de economia com juros baixos, crescimento, emprego, mais ou menos, por um
tempinho só, vocês vão fuder com tudo aqui, esse pessoal volta".

Então, vou vender o peixe de que nós somos o futuro do planeta, porque a Amazônia
está conosco e nós vamos passar a gerir a Amazônia através do quê? De crédito de
carbono, entre outras coisas. É como se fosse o dinheiro que foi para o Bolsa Família,
você vai comprar tempo agora para evitar esse retorno do que é a realidade bárbara
social brasileira, que não desapareceu por causa de 2 milhões de votos a mais em 31 de
outubro. Ela está aí, então é preciso comprar tempo, e o dinheiro para comprar esse
tempo tem que vir de alguma coisa, eu digo de maneira muito grosseira, o crédito do
carbono. Tem que ser transformada em um negócio rentável, em termos de investimento,
a Amazônia, que nós vamos proteger.

Mas já começaram a proteger de maneira errada. Roraima e as terras indígenas já estão


sendo protegidas como quem está fazendo um combate de guerra às drogas. As
periferias brasileiras provam que as guerras às drogas não dão em nada, então eles vão
transformar Roraima em mais uma periferia brasileira que toda vez tem alguém
prometendo combater o garimpo ilegal, a madeira ilegal, contrabando, os traficantes que
estão lá, como se promete em todas as favelas brasileiras, do Rio, de São Paulo, no
Brasil afora, sem sucesso há 40 anos. Tem alguma coisa aí que parece um círculo
vicioso.

Ora, nós temos que apostar na duração desse círculo vicioso para ver se, nesse meio
tempo em que o fim não volte, apareça alguma ideia. Até agora, não há condição de
aparecer, porque as pessoas têm que apagar incêndios diários. Eu, digamos, não estou
apostando contra o governo, pelo contrário, nunca fui tão a favor que esse troço funcione
por alguns meses, porque eu não tenho certeza que eles vão chegar vivos ao fim do ano,
quanto mais cumprir um primeiro mandato. Já houve uma tentativa de golpe na primeira
semana.

Eles não têm as Forças Armadas, as Forças Armadas estão sublevadas. Elas estão
sendo compradas, subornadas, não existe controle civil, nem nos Estados Unidos, sobre
os militares. Esse é um dos problemas, e os militares têm programa. Esse programa é o
mesmo de 1964. Veja tudo o que eles escreveram sobre Amazônia. Eles têm ideias
sobre a Amazônia, sobre índios, quem são as novas ameaças e por aí vai.

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Onde é que está a nossa força? Ele mal venceu, e já querem chutá-lo. Tem um golpe na
primeira semana, e todos os editoriais acham que o barbudo tem que ajoelhar e beijar a
cruz do Banco Central. O Banco Central, qualquer aluno —nem de graduação, de
cursinho— sabe que, se juros altos segurassem inflação, não era preciso o Plano Real,
que foi feito com uma certa engenharia sofisticada. Todo o mundo sabe o que está
acontecendo, e os caras querem insistir no mesmo. A mesma máquina econômica que
gerou a catástrofe, que alimenta, que é o combustível dessa desintegração, não tem
como. Ao mesmo tempo, eles não querem o Bolsonaro, todos eles são antibolsonaristas.
Estão chamando uma nova leva.

Essa nova leva é cada vez mais incontrolável porque é o meio do bolsonarismo que foi
tornado órfão pelo exílio do Bolsonaro e pela ducha fria dos militares, que durante quatro
anos incentivaram e depois na hora H, "não contem conosco porque é muito complicado,
o golpe não é assim, não é mais o caso de dar golpe". Estão órfãos, mas como eles
representam uma força social imponente, a máquina social gera essa extrema direita
neste momento, eles vão se reorganizar de outra maneira e vai aparecer algum líder.

O problema é que tem que ser um líder carismático. Se não for carismático, não adianta
nada, e por enquanto só tem dois disponíveis no mercado. Um está nas suas
trapalhadas em Brasília, para lá e para cá, falando pelos cotovelos o que deve e o que
não deve, e o outro está escondido na Flórida, mas perdendo o seu carisma a cada dia
que passa. Mas, em certo momento, ele pode voltar. Basta ter 100 mil pessoas o
esperando no aeroporto e pronto, recomeçou a opereta.

O Ilustríssima Conversa está disponível nos principais aplicativos, como Apple Podcasts,
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O podcast entrevista, a cada duas semanas, autores de livros de não ficção e


intelectuais para discutir suas obras e seus temas de pesquisa.

Já participaram do Ilustríssima Conversa Eliane Brum e Maria Rita Kehl, convidadas para
o episódio comemorativo dos cinco anos do podcast, João Moreira Salles, autor de um
livro sobre o modelo predatório de ocupação da Amazônia, Ailton Krenak, que abordou a
tragédia do povo yanomami, Gabriela Lotta e Pedro Abramovay, que discutiram os
papéis de burocratas e políticos em uma democracia, FelipeLoureiro, que analisou as
relações entre EUA e Rússia depois do início da Guerra da Ucrânia, Denise Ferreira da
Silva, para quem a violência racial é um pilar da modernidade, Letícia Cesarino,
antropóloga que expõe como algoritmos favorecem o populismo, Roberto Moura, que
relançou clássico sobre a história negra do Rio, Celso Rocha de Barros, que falou sobre
a história e os desafios futuros do PT, Christian Lynch, autor de livro sobre Bolsonaro e o
populismo, entre outros convidados.

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