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Eduardo Giannetti

critica a modernidade
em novo livro
'Trópicos utópicos' reúne microensaios do economista e fílosofo
Leonardo Cazes
26/06/2016 - 04:30

RIO — Em setembro de 1996, ao participar do programa “Roda


Viva” como um dos entrevistadores de Caetano Veloso, o
economista e filósofo Eduardo Giannetti perguntou ao cantor e
compositor se era possível o Brasil conquistar a civilização e, ao
mesmo tempo, não perder sua “alma iorubá, selvagem, índia”. A
busca dessa síntese, chamada por Giannetti de “trópicos utópicos”
no programa, era, na sua opinião, o que guiava a obra do artista.
Quase 20 anos depois da entrevista, o economista lança o livro de
microensaios “Trópicos utópicos — Uma perspectiva brasileira da
crise civilizatória” (Companhia das Letras), em que retoma a
pergunta feita a Caetano (que assina a quarta capa do livro), mas
agora num mundo à beira do colapso. Nas três primeira seções da
obra, o economista faz uma dura crítica à “santíssima trindade” da
modernidade — a ciência, a tecnologia e o crescimento econômico
— para na quarta, e última, lançar as bases da utopia que o Brasil
pode oferecer ao mundo. Com referências a poetas e pensadores
de diversos campos e lugares, Giannetti acredita que a forma dos
microensaios pode atrair “tanto o leitor preguiçoso quanto o leitor
aplicado”.

— É um formato que sempre me atraiu na história da filosofia. Eu


fiz a opção de empoderar o leitor. Não gosto dessa palavra, mas
não tem outra em português (risos). O microensaio provoca o
leitor a refletir a cada texto. Ele não precisa concordar com o livro
todo, aceitar tudo que está ali. Isso estabelece um jogo ágil e
dinâmico. Quem for estudar o livro, vai perceber que ele tem
muito mais estrutura do que aparenta — diz o economista, em
entrevista ao GLOBO por telefone, de São Paulo, onde mora.

O que o motivou a escrever esse livro? Ele parece ter sido


gestado ao longo de bastante tempo.

Sem dúvida foi um livro de longa gestação, que se confunde com a


minha própria trajetória. No início do meu doutorado, em
Cambridge, minha preocupação central era a relação entre o
homem e o mundo natural e as implicações ecológicas dessa
relação. Depois, minha pesquisa foi para outro caminho, mas essa
questão continuou comigo. Passei sete anos fora do Brasil, perdi
completamente o contato com o país. Quando retornei, passei por
um processo de “retropicalização” muito forte. O título do livro,
inclusive, surgiu de um “Roda Viva” com o Caetano Veloso. Eu já
tinha enviado o livro para o Caetano, e o meu editor, Luiz
Schwarcz, teve a ideia de pedir para ele escrever o texto da quarta
capa. Esse livro traz o meu reaprendizado do Brasil, que me fez
apreciar coisas que não via antes. É uma perspectiva brasileira da
crise civilizatória escrita por alguém que morou muito tempo fora
do Brasil. É uma crítica à crise através de um olhar brasileiro. Eu
tentei colocar ao longo do livro todo essa perspectiva do “Novo
Mundo Tropical”, com raízes no modo brasileiro de ser e sentir.

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Quais seriam os sinais visíveis da crise civilizatória que o
mundo vive hoje?

Essa crise se desdobra em dois componentes principais. Há o


limite objetivo da natureza em suportar um determinado modo de
apropriação dos recursos naturais. A questão ambiental e
climática é central no século XXI. Nós caminhamos rumo a um
esgotamento. O outro componente é o sentimento de frustração
com a vida apesar de todo o avanço da tecnologia, o que é captado
em todas as pesquisas sobre bem-estar e felicidade. A essa altura
do século XXI já está bastante claro que o mundo moderno não
entrega o que promete. Por exemplo, a ciência desacredita a
religião, mas o que fica no lugar? Resta um vazio, preenchido por
versões caricatas e infantilizadas da religiosidade ou pelo
consumismo desenfreado que não leva a nada. É o paradoxo de
que o 5% mais rico da população mundial sente mais falta de bens
materiais do que os outros 95%. O mundo tem hoje 7 bilhões de
pessoas. Só que 1 bilhão responde por 50% de todas as emissões
de gás carbônico. Outros 3 bilhões respondem por 45% das
emissões e os 3 bilhões da base da pirâmide, por 5%. E são esses 3
bilhões que vão sofrer as piores consequências da extravagância
do 1 bilhão que está no topo.

Essa reflexão sobre o mundo, colocada dessa maneira, é


um pouco angustiante. Você é um homem angustiado?

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Eu penso permanentemente nesses temas. As grandes questões
pelas quais me interesso são de natureza religiosa, mas não sou
religioso no sentido de aderir a um credo organizado. Tenho quase
horror a religiões institucionalizadas e dogmáticas. Sou cético
demais. Demorei muito para entender que não podia buscar as
respostas para essas questões na ciência. Por suas características
constitutivas, a ciência não tem como abordá-las. O máximo que a
ciência faz é oferecer um nexo causal. No livro, dou o exemplo dos
porquês. O pai que perde a filha e questiona o porquê. O médico
dá uma explicação científica do que aconteceu. Mas esse porquê
não chega nem perto de responder o questionamento do pai. Eu
vivo uma situação curiosa.

Ao apontar a utopia brasileira, você exalta a mestiçagem.


O que você entende por isso?

Entendo a mestiçagem do ponto de vista cultural. Aqui, ocorreu


uma fusão singularíssima de três matrizes culturais de origens
distintas: ameríndia, portuguesa-ibérica-europeia e africana. A
nossa biodiversidade e a nossa diversidade sociocultural são os
nossos trunfos frente à crise da civilização. Trata-se de aproveitá-
las para lidar com os nossos desafios. No livro, eu apresento duas
visões. A visão mimética pretende que a gente aprenda e copie,
tanto quanto for possível, o modelo dominante, que hoje é o
norte-americano. Já a visão profética contém em si um exagero,
que todos teriam que ser como e aprender com o Brasil. É o caso
dos Estados Unidos, que acham que todos devem ser iguais a eles.
Isso não cabe. No entanto, não significa que não possamos ter a
nossa visão, brasileira, do que seja a melhor vida. Não podemos
nos contentar em ser uma cópia malfeita dos líderes do mundo
ocidental, ao mesmo tempo que, afirmo isso, temos muito a
assimilar da cultura científica-tecnológica. O que eu fiz foi dar
uma visão analítica, utilizando a minha bagagem, para constituir
uma coisa mais realista talvez dentro dessa perspectiva.

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O Brasil acumula passivos enormes em relação a


representantes dessas culturas, como os índios e os
negros, por causa de violações históricas. Esse passivo
deve ser enfrentado a partir dessa perspectiva?

Sim, essas questões devem ser enfrentadas por esse prisma. O


racismo no Brasil é completamente diferente do norte-americano.
Não adianta importar o modelo deles para lidar com isso. O
racismo no Brasil tem uma natureza social, e não de raça. O
abismo social no Brasil é de tal ordem que não dá para ter ideia do
preconceito. Lá, foi uma experiência de outra ordem, de
monstruosidade de separação. Os portugueses viveram oito
séculos mantendo relações com os árabes, tinham um know-
how para a diferença que os anglo-saxões nunca tiveram. E isso é
muito fundamental na colonização brasileira. Gilberto Freyre
captou isso muito bem, apesar de às vezes romantizar a situação
do negro, e acabou injustiçado por outros pensadores.

SERVIÇO
“Trópicos utópicos — Uma perspectiva brasileira da crise
civilizatória”

Autor: Eduardo Giannetti.

Editora: Companhia das Letras.

Páginas: 240 páginas.

Preço: R$ 49,90.

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