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Quais ecopoéticas nordestinas?

Maneiras de pensar e de habitar o mundo a partir do Nordeste brasileiro


Curso de mestrado e doutorado, PPGLIT-Cult, UFBA, 2023.2, segundas-feiras, 8h50-12h30
Luciano Brito

Kirkpatrick Sale, “Préface de l’auteur à l’édition française”, “Préface de


l’auteur à l’édition américaine”, “Chapitre 4. L’art d’habiter la Terre”,
L’Art d’habiter la terre: La vision biorégionale [Dwellers in the Land: The
Bioregional Vision, 1985], trad. Mathias Rollot e Alice Weil, Marselha,
Wildproject, 2020, p. 27-28, 29-30 e 75-86.
Traduzido por Luciano Brito, 2023

A arte de habitar a terra: A visão biorregional

Prefácio do autor à edição francesa (p. 27 e 28)

Quando eu escrevi este livro há trinta anos, a ideia era oferecer um guia entusiástico ao
movimento biorregional norte-americano. Então em plena emergência, essa corrente começava a
ter uma influência verdadeira sobre as políticas ambientais da época. E poderíamos dizer que a obra
cumpriu sua missão, pelo menos até quando, em torno dos anos 1990, a amplidão do movimento
começou a se reduzir, acabando por ser apenas um conjunto de forças locais sem uma presença
nacional ou internacional real. A ideia original, o sentido em si do biorregionalismo e seu papel
enquanto filosofia ambiental, no entanto, sobreviveram. Estão ainda vivos hoje, nos Estados
Unidos assim como em todo lugar onde políticas ecológicas se desenvolveram.
Uma das maneiras de explicar o que é o biorregionalismo é explicando a palavra espanhola
querencia. De fato, esse termo não implica tanto um “amor do domicílio” como dizem os
dicionários, mas tenta, em vez disso, contar aquele sentimento profundo e silencioso de bem-estar
interior que provém do conhecimento de um local particular da Terra, de seus ritmos cotidianos e
anuais, de sua fauna e sua flora, de sua história e sua cultura; um lugar preciso dentro do qual a
alma dá sinais de afeição e reconhecimento. Digamos, seguindo a intuição de René Dubos, que é
um sentimento tão plenamente universal e um dos elementos da experiência humana da vida, há
tanto tempo, que parece inscrito em nossos próprios patrimônios genéticos.

1
Poderíamos também utilizar a palavra francesa terroir, que é bem mais que uma simples
descrição enológica característica de um tipo de solo ou das condições solares de um lugar. De
certa forma, a palavra atesta as influências ambientais inerentes a um pedaço de terra particular;
procura dar a ver o conjunto de características que distinguem tal região de todas as outras. Mais,
para além da questão da singularidade de um lugar, o termo comporta também a ideia de uma certa
afeição pela paisagem, sua identidade, seus vegetais e seus animais; é o amor por um território
enquanto expressão única da natureza da qual se trata.
Em seu sentido mais básico, o biorregionalismo expressa essas ideias essenciais que creio
serem necessárias para a sobrevivência da humanidade na Terra: a compreensão ecológica, a
consciência regional e comunitária, a possibilidade de se desenvolver um conjunto de sabedorias e
de espiritualidades baseadas na natureza, a sensibilidade biocentrada, a organização social
descentralizada, a ajuda mútua e a humildade dos grupos humanos.
Escrevi há trinta anos que o biorregionalismo era “o meio crucial, e talvez virtualmente o
único possível, para acabar com o apocalipse ecológico iminente” – que se tornou algo bem pior
que não era até então, e que ameaça agora seriamente a capacidade da Terra de permanecer um
habitat hospitaleiro para a vida. Enquanto a compreensão biorregional não seja uma ótica
compartilhada pela maioria da humanidade, o apocalipse continuará a ameaçar nossos futuros
respectivos. Não temos realmente nenhuma outra escolha. É por tal razão que espero que vocês se
inspirem por este livro, o qual podem enfim ler em francês.

Kirkpatrick Sale
Mount Pleasant, Carolina do Sul
Setembro de 2016

Prefácio do autor à edição norte-americana (p. 29 e 30)

Porque a “biorregião” não é uma noção muito comum nos Estados Unidos, e porque a
ideia de uma “hipótese biorregional” não faz sequer vibrar os corações norte-americanos, parece
legítimo apresentar uma introdução a esse movimento. Eis precisamente o que busco fazer com
este trabalho.

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Ao fazê-lo, este livro não busca certamente constituir um compêndio exaustivo, pois o
campo do biorregionalismo, ainda que relativamente novo, já é constituído por uma soma colossal
de informações, de experiências, de análises e de sabedorias diversas que poderiam encher volumes
numerosos, bem mais grossos que este aqui. Este livro não é tampouco constituído de verdades
inscritas no mármore, porque o jovem esforço biorregional descobre a cada instante novas
perspectivas, novos territórios e vínculos a serem tecidos. Enfim, esta não é tampouco a única
versão oficial que existe, pois o biorregionalismo é fluido e orgânico, e comporta certamente tantas
abordagens quanto existem biorregionalistas – a minha não passa de uma entre outras.
Este livro é, na realidade, uma tentativa precoce de grafar no papel alguns dos axiomas
fundamentais e os contornos básicos da corrente; e de reunir em um só lugar alguns de seus
pensamentos, de modo a encorajar as reflexões, as discussões e os trabalhos sobre a questão. É a
minha própria visão que se encontra nestas linhas. E ainda que eu possa ter lido muitas coisas a seu
respeito, ainda que possa ter falado com várias centenas de pessoas que se reivindicam da corrente,
e ainda que eu pense que eu apresento aqui os princípios compartilhados do biorregionalismo, este
livro não pode pretender falar no lugar de todos os biorregionalistas. Os quais, aliás, provaram que
podem se expressar por si mesmos.
São os meus trabalhos precedentes sobre o grande fracasso do radicalismo, do
regionalismo e do gigantismo norte-americanos que, um tanto inevitavelmente, me levaram a estas
reflexões sobre o projeto biorregional. Para mim, o biorregionalismo é certamente o agrupamento
mais novo e mais complexo dos ideais de descentralização, de participação, de libertação, de
mutualismo e de comunidade que já pude expor naqueles trabalhos precedentes; mas é também, e
mais ainda, o que emerge espontaneamente à vista de diversas crises planetárias atuais: um
conjunto de ideais ecológicos, de consciência regional, de humildade particular, e de busca pela
sobrevivência global. Nisso, não se trata apenas de uma questão acerca de uma nova forma de
abordar antigos ideais norte-americanos, mas sobretudo de um meio crucial – talvez mesmo o
único possível – de operar um curto-circuito no apocalipse ecológico iminente.
Espero que vocês compreenderão e poderão compartilhar desse sentimento, sentir essa
urgência e, enfim, que essa hipótese lhes parecerá vivificadora. Pois que outra escolha temos
realmente?

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Capítulo 4. A arte de habitar a Terra (p. 75 a 86)

Em Os interpretadores, livro escrito no pico da Revolução irlandesa pelo autor irlandês


conhecido sob o pseudônimo Æ, encontra-se uma passagem na qual um grupo heterogêneo de
prisioneiros discute a forma que deveria tomar, idealmente, o Novo Mundo por vir. Um deles, um
filósofo, avança a ideia hoje familiar de um mundo unificado e de uma cultura global, científica,
cosmopolita. Um outro, o poeta Lavelle, argumenta com fervor contra tal configuração, tentando
mostrar que, quanto mais um mundo desenvolve sua superestrutura tecnológica, mais ele se afasta
de suas origens naturais. “Se pudéssemos receber toda a sabedoria do exterior, diz ele, seria um
evento político para tornarmos nossa cultura cosmopolita. No entanto, creio que a grande
sabedoria não provém de fora, mas nasce em nosso espírito tanto quanto é uma emanação do
espírito da Terra; é uma voz que fala diretamente a nós, habitantes desta terra.”
Não é difícil imaginar uma alternativa à situação perigosa na qual o paradigma industrial-
científico nos afundou; para tanto, basta imaginar o futuro dos “habitantes da terra”.
Devemos tentar reencontrar o estado de espírito dos Gregos antigos, ou seja, chegar a
pensar a Terra como uma criatura viva, e a inventar um equivalente moderno do culto de Gaia.
Devemos tentar aprender no que ela é sagrada, em todos os sentidos do termo, e que existe assim
uma maneira santa de se dispor face a ela e às suas obras, numa atitude de respeito, temor,
admiração, veneração, as quais não deixam espaço para a espoliação ou para o abuso. Devemos
tentar nos considerar como participantes integrados a, e não como mestres da comunidade biótica.
Devemos levar a sério aquela observação de Mark Twain que especifica que os humanos são
diferentes dos outros animais unicamente porque são capazes de enrubescer – inclusive porque
precisam fazê-lo. Ou ainda, para falar agora nos termos do filósofo Thomas Berry, é para
“reinventar o humano enquanto espécie” que somos convidados.1
Mas, para nos tornarmos habitantes da terra, para reaprendermos as leis de Gaia, para
chegarmos a uma compreensão profunda e sincera da Terra, a tarefa mais crucial (e talvez a única
que engloba todas as outras) é a de compreender o lugar, o local exato onde vivemos
especificamente. Os tipos de solos e de rochas que estão aos nossos pés; a fonte das águas que
bebemos; o sentido de diferentes formas de ventos; os vínculos entre insetos, pássaros, mamíferos,
plantas e árvores; os ciclos particulares das estações; os períodos durante os quais se é judicioso
plantar, cultivar, vasculhar – eis o que é preciso saber. Os limites dos recursos do lugar, a

1
Thomas Berry, comunicação para o Congresso Biorregional Norte-Americano, maio de 1984.

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capacidade de carga de suas terras e de suas águas; os locais frágeis; aqueles onde frutos podem se
desenvolver melhor; a presença de tesouros escondidos – eis o que deve ser visado. Enfim, as
culturas dos povos, das populações nativas de um território que cresceram com ele, os arranjos
humanos, sociais e econômicos, desenhados e adaptados segundo os critério geomórficos ao
mesmo tempo urbanos e rurais – eis o que deve ser levado em conta.
É isto tudo o que constitui a essência do biorregionalismo.
Dito isso, sou o primeiro a reconhecer que a palavra “biorregionalismo” não vem
espontaneamente aos lábios. De fato, e devemos reconhecê-lo, é uma palavra até desajeitada,
inclusive difícil (e não unicamente porque a maior parte das pessoas não significa realmente o que
significa). No entanto, creio que seja capaz de se tornar um conceito acessível e, uma vez
compreendido, penso que pode se revelar útil, até produtivo, tão bem que valha a pena utilizá-lo e
tomar tempo para explicar sua significação.
Afinal, não há nada de misterioso na palavra – bio vem do grego significando “forma de
vida”, como em biologia e biografia, e região vem do latim regere, “território regulado” – e não há
nada, pensando bem, de tão terrivelmente difícil de se entender o que ambos os termos significam
uma vez postos um com o outro: um território de vida, um lugar definido por suas formas de vida,
suas topografias e sua biota mais que por decretos humanos; uma região governada pela natureza
e não pela legislação. E se o conceito nos parece tão estranho de primeira, isto revela talvez
simplesmente a que ponto nos tornamos estrangeiros às sabedorias que carrega – e a que ponto
precisamos de seu ensinamento hoje.
Existe também uma outra razão convincente para utilizar tal denominação. Não é evidente
saber quem, entre o escritor Peter Berg ou o ecologista Raymond Dasmann, inventou o termo,
mas são precisamente os dois que, há pouco mais de uma década, trouxeram o termo ao debate
público através da organização Planet Drum [Tambor do planeta] e da revista irreverentemente
nomeada Raise the Stakes [Aumente as apostas], lançando de fato o que poderíamos chamar de um
(modesto) movimento. Desde 1985, contam-se por volta de sessenta grupos na América do Norte
que se definem como especificamente biorregionalistas, e mesmo uma organização continental
nascente, o North American Bioregional Congress [Congresso Biorregional Norte-Americano],
criado na ideia de fazer progredir a consciência biorregional, assim como de conectar e de alimentar
as organizações locais. Esses desenvolvimentos dão ao termo uma herança e uma atualidade
suficientes para justificar que o honoremos com novos usos.

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O biorregionalismo se definirá mais completamente por si ao longo da continuação do
texto, mas, num primeiro momento, parece útil dar uma ideia, uma amostra do conceito, seguindo
alguns dos temas que ele implica naturalmente.

Conhecer a terra sobre a qual vivemos e seus recursos. Sobre tal assunto, não saberemos talvez
nunca tanto quanto os que a habitavam desde o começo, aqueles mesmos que tinham quarenta
palavras para descrever a neve e que conheciam cada árvore da floresta. Mas não importa qual
dentre nós pode caminhar através do território e ver o que acontece ali, se tornar consciente dos
cantos dos pássaros, das quedas d’água e dos traços dos animais, subir por um córrego até uma
fonte ou descer pelo mesmo até que se torne um rio, e aprender pela observação quando retirar os
tomates, quais tipos de solos são os mais adaptados à cultura do salsão e onde crescem os mirtilos.
Num nível mais complexo, poderíamos desenvolver um inventário de recursos da região,
utilizando as informações do serviço de florestas locais para contar e cartografar os ares florestais;
se servir dos relatórios hidrológicos para determinar os escoamentos superficiais, comuns, e as
energias hidráulicas; coletar os perfis biológicos da flora comestível, anual e perene, originária do
lugar; aprender as condições climáticas anuais e os potenciais reais de energia do sol, do vento e da
água; e estudar as figuras ou rítmicas das terras humanas assim como seus melhores locais de
instalação. A maior parte desses elementos já está disponível, ainda que não tenham sido
desenvolvidos sobre uma base biorregional. De tudo isso, cada um poderia determinar com uma
certa precisão a capacidade de carga de uma região.
Tenho consciência de que tudo isso é um pouco bucólico, e de que poderíamos ter um
pouco de dificuldade em ver como situar tal todo num contexto urbano.2 Mas, no fundo, toda
cidade faz parte de uma região, e depende dos campos em volta para uma grande parte de seus
recursos e mercados, tanto quanto cada cidade é construída sobre fundações naturais. A partir de
então, conhecer a terra para o habitante da cidade significa aprender os funcionamentos detalhados
das trocas mercantis e das dependências em termos de recursos entre cidade e campo, assim que os
limites populacionais apropriados para a capacidade de retenção da região. Isso significa também
explorar as potencialidades naturais da terra sobre a qual a cidade está instalada – pois, ainda que

2
Poderia ser útil dissipar o mito propagado pelo Census Bureau (Secretaria do recenseamento norte-americano) e
outros, que visam contar que os Estados Unidos são antes de tudo uma nação urbana: ela é mais largamente não urbana,
e o é mesmo cada vez mais. Por volta de dois terços da população vive longe das cidades mesmo modestas (50.000
habitantes e mais), e mais de um terço dentre eles vive em zonas rurais e em vilarejos. Até nos ditos “ares
metropolitanos”, mais de 40% das pessoas vivem fora da cidade propriamente dita.

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nossas conurbações gigantescas tenham largamente perturbado a vida natural mudando o
itinerário de rios, arrasando as florestas, impermeabilizando os solos e confinando a maior parte da
vida animal em zoológicos e parques, também é igualmente verdade que grandes oportunidades
urbanas persistem: os jardins sobre os tetos, a energia solar, a reciclagem, a silvicultura urbana e
muito mais.

Aprender as tradições. Cada lugar tem uma história, um traço que revela como foram
exploradas as possibilidades humanas e naturais de uma região. É isso que devemos aprender a ver
com olhos novos: há mais a ser descoberto, como diz o botânico Wes Jackson, que a ser inventado.
E ainda que muitos lugares tenham perdido a memória, muitas fontes de informação continuam
existindo – como o mostram bem, por exemplo, os volumes magníficos Foxfire, as coleções
recentes de tradições indígenas, assim como outros projetos de história oral e de saberes populares
numerosos.
Evidentemente, não quereríamos – ou não seríamos capazes – de viver como faziam os
antigos. Mas toda exploração história e antropológica séria das maneiras deles de proceder ou de
sua sabedoria mostra que essas culturas antigas, e em particular as que estavam enraizadas na terra,
conheciam perfeitamente um grande número de coisas importantes que estamos apenas hoje em
processo de aprender: o valor das ervas medicinais, por exemplo, ou os métodos e as
temporalidades segundo os quais queimar a erva das pradarias, ou a maneira de posicionar e
construir as casas para que aproveitem ao máximo a energia solar passiva, ou ainda o papel
regulador e central das mulheres nas tomadas de decisões de comunidades tribais. A ela apenas,
uma tal história nos ajuda a perceber que o passado nunca foi morno, laborioso e prejudicial tal
como os partidários da high-energy e do high-tech tentam apresentar. Ernest Friedrich Schumacher
nos lembra que, desde que o mundo moderno organizou seu pensamento sobre a base de um
“edifício suficientemente extraordinário, batizado de ‘ciência objetiva’”, ele colocou de lado os
“dois mestres da escola da humanidade”: “o maravilhoso sistema da natureza vivente”, e “o
conjunto de valores tradicionais, a sabedoria tradicional da humanidade” pelos quais conhecemos
algo do primeiro. Talvez seja o momento de fazer ajustes.

Desenvolver o potencial. Uma vez que um lugar e as possibilidades que ele oferece são
conhecidos, a tarefa biorregional consiste em definir como o potencial de tal lugar pode ser
explorado, para o melhor, no interior das fronteiras da região, utilizando ao máximo todos os

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recursos bióticos e geológicos, tendo por únicas obrigações a serem respeitadas os princípios da
ecologia e a lógica da necessidade. Desenvolver plenamente a biorregião permite o florescimento
dos indivíduos e das comunidades que ela abriga, cada um e cada uma se tornando a partir de então
capaz de se beneficiar dos processos e da engenhosidade esquecidos de tempos antigos, ao mesmo
tempo que se beneficia, também, da ajuda das competências e dos saberes contemporâneos.
Assim, a autonomia – não tanto na escala do indivíduo quanto na da região – é inerente ao
conceito de biorregião. Começamos a compreender a que ponto, segundo a organização das
regiões humanas, os recursos materiais são ignorados, desperdiçados ou deixados ao abandono
porque a região se interessa apenas por fontes afastadas e depende de bens e de serviços, no mais
das vezes, extrínsecos. Vemos a qual ponto as regiões preferem exportar usas riquezas para
margens afastadas (sedes sociais deslocalizadas ou proprietários absentistas), mais que de cuidar
de seu próprio território. E tentamos imaginar o que poderia ser feito se cada região utilizasse seus
fundos, seus equipamentos, suas reservas e seus talentos, limitando-se unicamente à capacidade de
retenção do território e de suas restrições ecológicas próprias.

Libertar a si mesma, a si mesmo. No seio do desenvolvimento de cada região, o


biorregionalismo implica também o desenvolvimento potencial de cada indivíduo, e isto segundo
dois eixos principais.
De um lado, as numerosas restrições atuais que pesam no tocante à liberdade e à capacidade
de decisão de cada um seriam reduzidas, até eliminadas – por exemplo, as que constituem as forças
impessoais do mercado, as de governos e de burocracias afastados, ou ainda as de empresas que
ditam de maneira invisível as escolhas dos consumidores – ao passo que, no interior da biorregião,
as oportunidades políticas e econômicas seriam inevitavelmente abertas. Do mesmo modo,
vivendo cada vez mais perto da terra, cada um viveria necessariamente mais perto da comunidade
humana e seria a partir de então capaz de aproveitar os valores comunitários de cooperação, de
participação e de fraternidade, os quais, todos, estimulam em retorno o desenvolvimento pessoal.
De um outro lado, conhecer plenamente as características do mundo natural e estar no
cotidiano fisicamente conectado a ele permite a um sentido de unidade e de enraizamento, que os
antigos conheciam bem, de se desenvolver. E como o diz com perspicácia Simone Weil, “o
enraizamento é talvez a necessidade mais importante e a mais desconhecida da alma.”3 No mais, a
história prova claramente que os indivíduos que podem compreender melhor a natureza são os

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Simone Weil, O enraizamento [1949], trad. Giovani T. Kurz, Belo Horizonte, Ayiné, 2022 [atualização do tradutor].

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mais aptos a utilizarem corretamente seus dons – para a alimentação, para a energia, para o abrigo,
para o artesanato –, e são assim em medida de se desenvolverem e de prosperarem de uma maneira
que permanece inacessível aos que não detêm esses conhecimentos.
Saber, aprender, desenvolver, se libertar – eis alguns dos processos centrais da ideia
biorregional. Suas implicações são complexas e têm um grande alcance, e é o que nós vamos
explorar nos próximos capítulos.

Evidentemente, o biorregionalismo é ao mesmo tempo muito simples e muito complexo.


Muito simples porque todos os seus componentes já estão presentes, manifestos,
diretamente circundantes, exatamente onde estamos; porque nós sabemos que outros povos, mais
antigos e, segundo a expressão consagrada, talvez mais primitivos, compreendiam essas coisas e
viveram de maneira relativamente simples durante séculos numerosos graças a eles. Descobrir e
apresentar esse gênero de informações indispensáveis a uma sociedade biorregional não é difícil.
Numerosos povos ancestrais possuem ainda hoje alguns dos saberes de nossos ancestrais, e a
ecologia moderna, assim como seus procedimentos científicos contemporâneos, podem nos ajudar
a construir o resto do corpus de conhecimento biorregional.
Muito complexo porque ele é totalmente estrangeiro à maneira convencional de pensar
hoje nossa relação com o mundo, e que a priori, ele aparecerá para a maior parte das pessoas como
limitado demais, provincial, pitoresco, nostálgico, beato, utópico ou simplesmente impertinente –
se não for tudo isso ao mesmo tempo. Esse constato não deve surpreender, e as dificuldades que
impõe devem ser encaradas com sinceridade.
Evidentemente, uma mudança de atitude considerável é necessária antes que nossa
sociedade industrial comece a abandonar a ideia de controlar e de remodelar o mundo no nome de
uma monocultura global, e, em seguida, de perceber que o que é chamado de “provincial” não é
talvez nada além de uma maneira de se ocupar de suas questões, uma atenção às reformas locais
potenciais que poderiam ter uma chance de salvar o mundo.
Será preciso tempo para fazer ver e perceber no que o projeto de relocalização não é nem
nostálgico nem utópico, mas consiste, em vez disso, em um trabalho realista para o qual cada um
pode participar no cotidiano, e o qual tem uma chance imediata e concreta de influir sobre nossos
desperdícios e imprudências atuais.
Uma educação massiva e persuasiva será necessária para levar as pessoas a entenderem a
que ponto não é o projeto biorregional que é impertinente, mas precisamente a política habitual de

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todos os partidos majoritários, de todas as grandes nações industriais – das quais não há uma que
faça da manutenção do meio ambiente uma prioridade significativa ou que esteja pronta para
abandonar a economia industrial que nos ameaça.
Será preciso também paciência para levar as pessoas a superarem seus medos e seus ódios
tenazes do mundo natural – medos que se ampliam à medida que cresce sua ignorância desse
último; e para conduzir a uma melhor percepção do caráter vivente e precioso de Gaia que age
sempre de maneira homeostática, sem dúvidas às vezes de maneira imprevisível ou violenta, mas
sempre com boa disposição e numa ótica de preservação da vida.4
Entendam-me bem: não subestimo as complicações. No entanto, estou certo de que, com
o paradigma biorregional, temos um objetivo, uma filosofia e um processo pelo qual criar um
mundo que não é apenas necessário para a perpetuação de nossa espécie, mas também desejável e
possível.

Têmis era a primeira das filhas de Gaia, é a ela que foram confiadas as leis da natureza. É
no estudo escrupuloso dessas leis que podemos dirigir, da melhor forma possível, a reconstrução
das sociedades humanas em direção a um mundo biorregional. Muito evidentemente, as leis da
Natureza podem às vezes levar à confusão ou parecer contraditórias e até os especialistas que
passaram suas vidas inteiras nesse domínio não chegam sempre às mesmas conclusões. É então
com precaução que se deve abordar o assunto.
Ainda assim, depois de ter longamente percorrido a literatura referida, fico sem palavras
diante do fato de que, pelo menos nas grandes linhas, um grande consenso se estabelece sobre as
leis que regem o funcionamento de Gaia e a direção geral que convém tomar para os
estabelecimentos humanos e os ecossistemas. Fico igualmente surpreso pela extrema variedade de
investigadores que chegam às conclusões de que falo: ecologistas e arquitetos, universitários
provenientes das ciências políticas ou econômicas, sociólogos e naturalistas, escritores e urbanistas,

4
Para citar apenas um exemplo de medo comum da natureza, o Dr. Lewis Thomas menciona a paranoia compartilhada
a respeito das doenças e das bactérias nessa sociedade onde pensamos que “vivemos num mundo em que os micróbios
tentam sempre ter razão sobre nós, tentam nos arrancar célula depois de célula, e na qual somos ainda viventes e
inteiros somente graças à nossa vigilância e ao nosso medo”. Na realidade, observa ele, a doença e a patogenicidade
“não são a regra” na natureza e, de fato, “ocorrem tão pouco frequentemente e implicam um número tão pequeno de
espécies, considerando a enorme população bacteriana mundial, que é até estranho”. Lewis Thomas, As vidas de uma
célula: Notas de um estudioso de biologia [Bantam, 1974, p. 89], trad. Augusto Camara Neiva, São Paulo, Brasiliense,
1976 [atualização do tradutor].

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às vezes prudentemente “apolíticos”, às vezes realmente conservadores ou totalmente liberais, e
alguns francamente descentralistas ou regionalistas. Do trabalho que fizeram ao longo das últimas
gerações, creio que é possível deduzir os princípios centrais pelos quais construir os pilares
fundadores de um mundo ecológico: o paradigma biorregional.
Um tal paradigma, claro, é, para todos os pontos de vista, em total oposição ao paradigma
industrial-científico. Eu o examinarei mais em detalhe ao longo desta parte, mas pode ser
interessante começar já e aqui a comparar tais paradigmas para que suas diferenças estritas
apareçam:

PARADIGMA PARADIGMA
BIORREGIONAL INDUSTRIAL-
CIENTÍFICO

Escala Região Estado


Comunidade Nação / Mundo

Economia Conservação Exploração


Estabilidade Mudança / Progresso
Autossuficiência Economia mundial
Cooperação Competição

Regime político Descentralização Centralização


Complementaridade Hierarquia
Diversidade Uniformidade

Sociedade Simbiose Polarização


Evolução Crescimento / Violência
Divisão Monocultura

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Uma tal tabela, é claro, tende a mascarar as interconexões, os entrelaçamentos e as
complexidades numerosos, ativos, em meio a tudo isto. Ao longo das páginas seguintes, vou tentar
desenvolver e examinar mais precisamente esses conceitos e suas relações, abordando-os na ordem
sugerida pelo quadro, e me concentrando nos quatro critérios fundamentais de toda forma de
sociedade civilizada: a escala, a economia, o regime político e a sociedade. Dessa forma, espero
esboçar o retrato cíclico do paradigma biorregional, este meio pelo qual poderíamos nos tornar
“habitantes da Terra”.

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