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¡DALE!

CURADORIA PEDAGOGIAS DECOLONIAIS 30/04/2020 –


COSMOLOGIAS OUTRAS

Ideias para adiar o fim do mundo - Ailton Krenak

Ailton Krenak nasceu em 1953, na região do vale do rio Doce, território do povo Krenak, um
lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração de
minérios. Ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas,
organizou a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na
Amazônia. É um dos mais destacados líderes do movimento que surgiu durante o grande
despertar dos povos indígenas no Brasil, que ocorreu a partir da década de 1970. Contribuiu
também para a criação da União das Nações Indígenas ( UNI ). Ailton tem levado a cabo um
vasto trabalho educativo e ambientalista, como jornalista, e através de programas de vídeo e
televisivos. A sua luta nas décadas de 1970 e 1980 foi determinante para a conquista do
“Capítulo dos índios” na Constituição de 1988, que passou a garantir, pelo menos no papel,
os direitos indígenas à cultura autóctone e à terra. É coautor da proposta da Unesco que criou
a Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço em 2005 e é membro de seu comitê gestor. É
comendador da Ordem do Mérito Cultural da Presidência da República e, em 2016, foi-lhe
atribuído o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em
Minas Gerais.

O pequeno livro é composto por duas palestras e uma entrevista. É de certa forma um
compilado de falas. Todas realizadas em Portugal que curiosamente é apresentado no
primeiro texto com algum tensionamento e desconforto. Embora haja uma ruptura entre os
textos, há também continuidades bastante evidentes. O segundo texto e a entrevista são de
2017, o primeiro texto de 2019. Ou seja, não há uma linearidade, embora da forma como o
livro se apresenta as ideias vão se acumulando e se complementando.

Algumas palavras para introduzir o meu ponto de vista de leitura do texto e um panorama
mais geral da leitura:

O texto me fez pensar bastante sobre posicionalidade, em especial sobre a relação entre
universal e local. Essa dicotomia é bastante ocidental, assim como boa parte das crises que o
autor apresenta críticas, questionamentos e propostas. A posição do autor como indígena da
etnia krenak coloca um aspecto bastante interessante.
Uma forma bastante comum de pensar sobre apresentações ou textos escritos por
pessoas indígenas é que eles vão apresentar aspectos das sua cosmologias, e que os
não-indígenas vão aprender com aquela pessoa sobre práticas ou pontos de vista excêntricos
ou exóticos.
Talvez - e com isso corro o risco de estar universalizando a partir da minha
experiência na formação como antropólogo - o lugar mais comumente colocado para essas
intervenções seja de dados de pesquisa, perspectiva nativa, informações privilegiadas ou de
primeira mão, ou mesmo no lugar da excentricidade para pensar a diversidade de formas
humanas. Em uma inclusão pela diferença, ou pela dessemelhança. O interessante é que nos
textos desse livro o autor não faz isso.
A forma como ele se coloca é justamente aquela que não parece permitida aos
indígenas, nem aos negros, ou a outros grupos não-privilegiados que é o de uma interpretação
sobre o mundo. Ao invés de fechado na reclusão da especificidade ele encara os grandes
temas, sem abandonar a sua posição ou seu ponto de vista como Krenak. São textos
propositivos, são intervenções concretas e bem construídas, que tem bastante solidez como
argumento.
Nesse sentido entendo os textos de duas formas que podem dialogar com a proposta
do nosso grupo: pedagogias para adiar o fim do mundo e pedagogias da queda. Talvez esses
sentidos fiquem mais evidentes na apresentação.

Adiando o fim do mundo

Para chegar nos ponto sobre o fim do mundo o autor faz um caminho que começa no
questionamento da construção da ideia de humanidade nos últimos 2 mil ou 3 mil anos. Essa
ideia de humanidade teria legitimado escolhas que culminaram, ao menos nos últimos 500
anos nas colonizações. Essa legitimidade e ideia de humanidade está baseada em uma certa
verdade ou uma concepção de verdade.
Diante disso ele questiona se realmente somos uma humanidade. Coloca também que
o “clube da humanidade” ao qual alguns, atualmente, estão relativamente inclusos tem
limitado a capacidade de invenção, criação, existência e liberdade. Ele fala isso do ponto de
vista de alguém que é considerado quase-humano, ou menos-humano. Nesse ponto o
questionamento da humanidade me trouxe a reflexão se humanizar é de fato o que queremos,
já que talvez para alguns grupos a humanidade não é exatamente algo que eles querem ou
almejam participar.
O título do primeiro texto que também é o título do livro é uma provocação, que
segundo ele narra nasceu de maneira espontânea e foi criando um sentido.
Ao questionar a ideia de humanidade ele também apresenta formas de se relacionar
com a natureza que para os ocidentais parece um tanto absurda, como relações de parentesco
com montanhas ou rios. Ele questiona a seguir: por que essas narrativas não entusiasmam?
De certa forma seu argumento apresenta um panorama onde repetimos gestos e ideias, que
por isso são superficiais porque contamos sempre as mesmas coisas, as mesmas histórias.
A exploração da Terra está ligada a essas ideias repetidas sobre humanidade e sobre a
forma de nos relacionarmos com ela. Exploramos a Terra como recurso, não compreendemos
as montanhas, os rios, as árvores, a floresta como seres também relacionais. Por isso nos
descolamos da terra. Essa ideia que ele trabalha me parece bastante interessante, em especial
porque estamos um tanto viciados na dicotomia entre natureza e cultura. Para ele tudo é
natureza. E isso nos reconecta a terra.
Por isso a sub-humanidade estaria ligada a relação próxima com a terra. Em certo
sentido a própria dicotomia entre natureza e cultura é que cria a nossa separação da Terra e
dos seus elementos. A própria ideia de natureza que trabalhamos e compartilhamos como
algo imutável parece incoerente diante dessa visão.
Assim, aqueles que estão em uma relação orgânica com a terra, são justamente
aqueles que incomodam, os que questionam a separação que funda a própria ideia de
humanidade que cultivamos e compartilhamos. Por isso é necessário um questionamento
crítico dessa ideia de humanidade como algo homogêneo.
Nesse sentido a terra seria uma plataforma para diferentes cosmovisões. Partindo
disso, a provocação sobre adiar o fim do mundo está relacionada justamente em poder contar
mais uma história. Entendendo como as histórias daqueles que passaram muitas vezes por
possibilidades de fim do mundo podem alimentar também a forma como podemos adiar o fim
do mundo. São formas de suspender o céu quando o céu está caindo.

Sonhar a Terra e para adiar o fim do mundo

A tensão entre o Estado brasileiro e as sociedades indígenas. O que nós chamamos de


sociedades indígenas são os grupos que sobreviveram ao encontro colonial.
A região do rio Doce foi onde os Krenak foram gradualmente confinados pelo
governo. E esse confinamento dos grupos a partir do antagonismo com o Rstado é a base da
história do Brasil. A partir da história da morte do rio Doce, e como essa história é parte
dessa relação tanto do confinamento dos grupos indígenas em áreas restritas, como da
exploração da Terra até seu esgotamento. O rio que acabou colocou os indígenas e outras
comunidades ribeirinhas na real condição de um mundo que acabou.
A exclusão das formas de organização de vida local que não estão integradas ao
mundo da mercadoria põe em risco todas as outras formas de viver. Esse aspecto está
intimamente relacionado a já falada desassociação a terra como parte integrante das relações
que mantemos. Contra isso ele analisa a vivência Krenak, onde o próprio nome do grupo faz
alusão com uma relação orgânica com a Terra. É, nesse sentido, uma humanidade que não
consegue ser concebida sem uma profunda conexão com a terra. A relação superficial do
mundo ocidental tem de diferentes formas esgotado a Terra, sobretudo ao pensá-la como
recurso.
Ailton Krenak não está apenas preocupado com o destino de seu próprio povo
especificamente, já que sobreviveram as diversas possibilidades de fim, a sua preocupação se
estende indefinidamente. Além disso, não entende o “nós” como algo restrito, mas como algo
dinâmico e em movimento. Quando ele fala na salvação da humanidade não fala dos outros,
nem deles, mas de um nós que parece absolutamente profundo e expansivo, sem deixar de
reconhecer a diferença, nem pensá-la como um abismo fundamental.
Justamente por isso ele se pergunta, como encontrar os pontos de contato, em um
contexto em que a própria realidade nos cerca por esses abismos.
Então ele fala do sonho, não como algo fora da realidade ou distante, como um
projeto a ser realizado. Ele busca o sentido dos sonhos nas tradições que entendem o sonho
como parte da vida e dos processos de conhecimento e autoconhecimento. Sonhar seria, a
princípio, um exercício disciplinado de buscar orientações no sonho para as nossas ecolhas do
dia a dia. O sonho como caminho de aprendizado, como construção de pensamento, como o
próprio contato com diferentes dimensões da experiência que não acessamos materialmente.

Seríamos essa humanidade que dizemos ser?

O condicionamento da ideia de ser humano nos condicionou de forma fundamental.


Desestabilizar essa ideia pode produz um rompimento e por isso uma queda. Mas será que
estamos prontos para cair? Essa é talvez seja um dos saltos epistemológicos mais importantes
do texto. A ideia da queda. Certamente estamos caindo. Essa queda não seria a primeira nem
a última. Uma pedagogia da queda não seria justamente ao invés de rejeitarmos de todas as
formas a queda aprendermos a cair? Por que nos causa desconforto a sensação de estarmos
caído? Por que tentamos de diversas formas impedir a queda?
Estamos, segundo o autor, apegados demais a uma visão que temos, e essa visão
produz uma ideia fixa. As ideias e práticas que se repetem. Vamos cair de qualquer forma,
não seria mais prudente prepara-nos para isso? Estamos acostumados demais com o aparato
técnico que nos afasta, cada vez mais, da Terra e das relações com tudo que nos rodeia. Não
seria o momento de expandir nossos mundos para os diversos que seguem existindo? É
preciso, por isso, descobrir um paraquedas.
Não podemos para isso seguir repetindo um ciclo que não abre horizontes e que não
acena para outros mundos no sentido prazeroso. Não podemos repetir as experiências que nos
lançam a experiência constante da perda de liberdade e que só reproduzem o que já foi feito.
O mesmo que é sempre o mesmo.
A proposta de projetar o paraquedas exige criatividade e posicionalidade. De onde
estamos nos posicionando para pensá-lo? Das experiências que se repetem e nos fecham em
mundos já conhecidos? Seria preciso acessarmos o lugar que provoca outras visões e o lugar
do sonho. O sonho, como a experiência transcendente que implode o casulo do humano. Para
criar novos mundos seria preciso abrirmos a nossa forma de ver, de sonhar, de imaginar, de
nos deslocarmos. Desestabilizando. Aceitando a queda. A ideia de natureza, de humano volta
aqui pervertida. Ao invés de pervertida contra nós, podemos perverter a nosso favor. Como
forma de nos salvar.
O mundo chegou por encomenda a nós. Teríamos feito melhor? Sem essa presunção
do que somos talvez possamos entregar outros mundos aos que vem depois de nós.
O homem, que não são todos os homens, é, pela narrativa que o ocidente acostumou a
construir, a medida de todas as coisas. Como ele não é todos os homens, há os que são
muito-humanos e os que são quase-humanos. Isso não é natural. A natureza é outra coisa.
Como disse, a própria palavra se perverte e seu uso volta de outra forma. Há diversos
desastres, são eles acontecimentos do encontro do contato. Estamos todos jogados nesse
abismo​.

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