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SECRETARIA DE CIÊNCIA E
TECNOLOGIA UNIVERSIDADE
REGIONAL DO CARIRI - URCA
Não é à toa que falamos da nossa casa, a terra, como recursos naturais, nossas florestas,
nossas montanhas, nossas árvores, nosso chão molhado onde podemos pisar os pés e
sentir a vida que emana da terra, de forma transcendental, de forma de fortalecimento de
vínculos com aquilo que somos, terra, natureza. Não precisa ser crédulo para defender
isso, é preciso apenas um pouco de sensibilidade, de deixar de lado essa ideia que nos
venderam, de que nossa terra, nossa natureza e quem nós somos é um “recurso natural”,
recurso de quem? recurso para quem? recurso para o que exatamente? Para as
multinacionais? Para a mineração desenfreada, que mata, destrói, e polui nossa terra?
No livro Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak, Ailton. Companhia das letras,
2019.
Krenak fala da relação do seu próprio povo com a terra e de outros povos também, ele
cita exemplos, onde a terra deixa de ser vista como um recurso para servir a um fim,
mas ela passa a ser vista no meio de uma relação profunda com o homem, a terra é vista
como família, como lar, como fonte de vida, como meio orientador para o dia-a-dia, um
meio facilitador e harmonioso para as relações sociais, afinal, se somos todos natureza,
filhos da terra, e, ao mesmo tempo, moramos todos na mesma casa, temos algo em
comum.
“Como reconhecer um lugar de contato entre esses mundos, que têm tanta
origem comum, mas que se descolaram a ponto de termos hoje, num
extremo, gente que precisa viver de um rio e, no outro, gente que consome
rios como um recurso? A respeito dessa ideia de recurso que se atribui a uma
montanha, a um rio, a uma floresta, em que lugar podemos descobrir um
contato entre as nossas visões que nos tire desse estado de não
reconhecimento uns dos outros?” (p.25).
Não é dito pelo autor de que devemos unificar nada, mas sim que precisamos expandir
nossa visão para o horizonte, não existe um povo mais e outro menos evoluído, um
povo civilizado e outro selvagem. É uma pretensão absurda e egoísta, não vermos que
as diferenças sim, são reais, mas que não foram construídas de forma tão natural quanto
pensávamos, na verdade, a Europa arrastou para as colônias a ideia de civilização.
E é disto que o autor fala, a forma de “adiar o fim do mundo”, é nos voltando para o
princípio, quem nós somos enquanto povo? Porque nossa forma de vida é tão odiada?
Temos mesmo que seguir o modelo de ser, vestir, comer, usar, crer e se relacionar, dos
nossos colonizadores? Acredito que algo dentro de nós já nos dá a resposta quase que de
forma imediata a essas perguntas. Algo dentro nós que anseia por esse conhecimento
transcendental, por essa relação e vínculo que perdemos com a terra, que perdemos ao
achar que nós também não somos natureza. Nós somos! Fomos impelidos a pensar que
não, que nós somos a humanidade, e a natureza, bom, a natureza é recurso, e se existe
mesmo uma forma de estar no mundo, de ser humanidade, o que importa se utilizarmos
os “recursos naturais” para construir prédios, rodovia, catedrais, shoppings? Afinal, não
é para isso que servem os “recursos naturais”, não é?
Com tudo que é explanado em Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak, Ailton.
Companhia das letras, 2019.
O autor não só subverte os conceitos de humanidade, de natureza. Mas também
denuncia a falácia hipócrita do sistema no qual estamos inseridos, afinal, quem desmata,
polui, contamina o solo, provoca incêndios em grandes florestas, pode mesmo nos falar
sobre sustentabilidade? A resposta para isso é óbvia, mas o irônico e hipócrita é que eles
falam.
E Krenak, nos aponta um caminho, de resistência, de luta, de amor pela terra, amor pela
nossa cultura, um caminho de fortalecimento dos nossos vínculos com a terra, com ser
natureza. Nos encoraja a não ter medo da queda, afinal já caímos, estamos em queda, ao
perceber que algo tão vital foi banalizado, ridicularizado, expropriado de nossas mãos e
quase nada foi feito a não ser ficarmos alienados do direito de ser, assistindo quase que
boquiabertos o fim do mundo.
A luta pelo direito de ser ainda continua, muito ainda é preciso ser feito, mas Krenak
não só nos encoraja a sonhar, mas nos aponta caminhos como todos os que já foram
citados aqui: fortalecermos nosso vínculo como natureza, com a nossa terra, o “bem
viver”, não como meros consumidores, programados para sermos clientes de quem mata
nossa natureza, e nos vende o que foi produzido dela, e este é o principal caminho
apontado pelo autor, sonhar, amar, criar vínculos, “gozar a vida”, sem está alienado do
direito de ser, frustrado por um padrão inatingível de “humanidade”, e esta sem dúvida é
a grande contribuição de Krenak para o viés da decolonialidade.