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DIREITO AO TERRITÓRIO,

DIREITO À VIDA
@dewaneios_

SEMANA DOS POVOS INDÍGENAS 2022 I 17 A 23 DE ABRIL


Fotografia: Acervo pessoal
Revisão: Daniela Silva Huberty
Projeto gráfico e diagramação: Cristina Pozzobon
Ilustrações: Wanessa Ribeiro
Tiragem: 35 mil exemplares
Gráfica: Impressos Portão

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temática. Caso queira falar conosco, entre em contato pelo e-mail:
formacao@comin.org.br

Conselho de Missão entre Povos Indígenas - COMIN


Fone: 55 51 3590-1440

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

XD598 Direito ao território, direito à vida / organização Douglas Kaingang, Kassiane Schwingel. –
Porto Alegre : COMIN : Fundação Luterana de Diaconia, 2022.
36 p. ; 21 cm.

Inclui bibliografia
ISBN 978-65-992277-6-9

1. Indígenas - América do Sul. 2. Indígenas - Direitos humanos. 3. Indígenas - Direitos


territoriais. I. Kaingang, Douglas. II. Schwingel, Kassiane.

CDU 342.7(=1.8-82)

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 8/10213)


Organização
Douglas Kaingang
Kassiane Schwingel

DIREITO
AO TERRITÓRIO,
DIREITO
À VIDA

Fundação Luterana de Diaconia


Porto Alegre - RS
2022
TERRITÓRIO, DIREITO E VIDA:
OUTRAS COMPREENSÕES
O direito ao território poderia ser compreendido como apenas mais um dos
direitos pelos quais os povos indígenas tanto lutam para que sejam consolida-
dos na prática, mesmo estando garantidos na legislação. Porém, esse direito
é reconhecido como garantidor do acesso aos demais direitos, como direito à
saúde e direito à educação específica e diferenciada, por exemplo. É o direito ao
território que fortalece a identidade étnica, os modos de vida próprios e, espe-
cialmente, o direito à vida em si.

Ter o direito ao território garantido é caminhar em direção à vida digna, não


somente para as pessoas indígenas, mas para todas as formas de vida que habi-
tam este espaço. Garantir os territórios indígenas, seus espaços físicos de repro-
dução social e cultural, é garantir vida aos animais, às matas, aos rios. Direito ao
território é direito à vida, talvez até direito a muitas vidas!

Para além da compreensão do território como espaço delimitado de terra, os


povos indígenas trazem consigo outra noção de território, expressa no texto a se-
guir como “onde está conectada, intrinsecamente, sua forma de estar no mundo
com outros domínios da vida, como a organização social, os ritos, o acesso ao que
ocidentalmente chamamos de ‘recursos naturais’, à saúde e, por fim, à própria
existência física e cultural.”

Mergulhar nesta outra compreensão de mundo, do território e da vida é um


desafio e um privilégio. Desafio para pessoas não indígenas, que aprendem des-
de cedo a se enquadrar na sociedade capitalista, do consumo e do lucro. Também
desafio para pessoas indígenas, que tiveram seus modos de ser profundamente
alterados nos violentos processos de invasão e ocupação de seus territórios, mas
que buscam fortalecer sua ancestralidade para retomar o que adormeceu.
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Mas, maior que o desafio, ter acesso a esta outra compreensão de mundo,
território e vida é um grande privilégio, pois nos possibilita reconhecer outro
modo de relação entre seres. Modo esse que quer garantir vida a todas e todos!
Eis o grande propósito deste material da Semana dos Povos Indígenas 2022:
mostrar que os povos indígenas, suas mulheres, crianças, homens, jovens, anciãs
e anciões apontam um caminho possível de vida, que busca na ancestralidade o
fortalecimento necessário.

Para traduzir ao papel essas concepções, Douglas Jacinto da Rosa, do povo


Kaingang, trabalhou no texto. As ilustrações, que buscam traduzir ideias e senti-
mentos através da arte, foram feitas por Wanessa Ribeiro, descendente do povo
Guarani. Há, no texto, falas de várias pessoas indígenas de diferentes povos,
sobre as quais há uma lista de referências ao final do material.

Desejamos que a leitura nos provoque, nos inquiete e nos movimente para
que possamos somar nas lutas pelos territórios indígenas e, por consequência,
na luta pela vida!

DOUGLAS JACINTO DA ROSA, pesquisador Kaingang,


Bacharel em Gestão Ambiental pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR), Mestre em Antropologia Social pelo Pro-
grama de Pós-graduação em Antropologia Social/PPGAS
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Membro do Conselho Estadual dos Povos Indígenas/CEPI/
RS. Membro do Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da
Mata Atlântica/CERBMA/RS. Atuação nos campos da gestão
ambiental e territorial, antropologia, etnologia, direitos
indígenas, políticas socioambientais e indigenistas.

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NOSSO TERRITÓRIO
Os povos indígenas das terras bai- meteorológicos, espíritos, alteridades
xas da América do Sul representam seus humanas e não humanas, em constan-
territórios como espaços-tempo, indis- te comunicação, em um espaço-tempo
sociáveis das vidas humanas e não hu- da transformação. O tempo e o espaço
manas que ali habitam numa trama de são eixos que se enlaçam, as distâncias
sentidos e significados continuamente e as paisagens são pensadas como vida
construídos. Corpo, pensamento e terri- em movimento, ritualmente significa-
tório remetem à imagem da “terra mãe”, das e cosmologicamente situadas.
recorrente nas mitologias ameríndias. Este profundo emaranhado de senti-
O sentimento de pertencimento, e dos e significados é resultado da experi-
por vezes de parentesco com a terra, com- ência histórica e culturalmente vivida por
põe a narrativa e as condutas territoriais diferentes grupos geracionais e de gêne-
das alteridades indígenas. Esta perspecti- ro de um mesmo povo indígena em seus
va é fio condutor para uma aproximação espaços de vida, pela via da memória, da
dos sentidos de território para essas so- narrativa, do mito, do ritual, da história
ciedades; as experiências coletivas e ima- oral e da escrita, elaborou-se elementos
géticas sobre o lugar ao qual concebem para a sua duração no tempo, construin-
conectadas suas humanidades, suas filo- do seus territórios e territorialidades.
sofias, suas cosmologias, e, por extensão, “Esses lugares são criados pela nossa
sua existência, traduzem-se de diferentes subjetividade, pela nossa memória, pela
formas na vida social e cosmológica. Esta nossa capacidade de narrar, de contar
perspectiva, por sua vez, abre possibilida- história [...] de cantar e dançar e suspen-
de de relações com os demais seres que der o céu.” (Ailton Krenak)
nestes espaços vivem. A paisagem, figura fabulosa na memó-
“Na cultura Guarani, tudo tem vida, ria narrada, tornada mito, tornada história,
tem espírito, a árvore tem espírito, a povoa a imaginação, o pensamento e a
água tem espírito, a pedra tem espírito.” filosofia. Ela ganha forma nas palavras e
(Davi Guarani – Karai Popygua) classificações ameríndias, constituindo
Aqui – desde a América – coexistem substâncias de afeto e pertencimento;
animais, plantas, minerais, fenômenos antes ilustram horizontes culturais do que
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NO COMEÇO APENAS OS INDÍGENAS
VIVIAM NESTAS TERRAS, E,
ESTOU FALANDO DO BRASIL É
CLARO, TERRA PARA OS POVOS
INDÍGENAS, É A GRANDE MÃE
QUE ACOLHE, QUE ALIMENTA,
QUE NUTRE, QUE AMPARA, QUE
CURA, QUE DÁ VIDA. TERRA É
VIDA, É MAIS PORTANTO QUE UM
OBJETO, É MAIS QUE UM TESOURO
A SER EXPLORADO, É MAIS QUE
LATIFÚNDIO PARA A CULTURA
PASTORIL OU AGRONEGÓCIO, É
MAIS QUE PORTADORA DE RIQUEZA
MINERAL OU VEGETAL A TERRA
ESTÁ VIVA E ELA GUARDA A
MEMÓRIA DE TODOS NÓS.
DANIEL MUNDURUKU)

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fronteiras geográficas e limites fundiários. jurídica, com exceção de alguns casos no
“Nesse momento, nós chamamos contexto da Amazônia Legal, não conju-
hoje território para significar que, antes gam uma equação de igualdade com o
do português chegar no Brasil, nós era território de um determinado povo indí-
sem fronteira. O território, é importante gena. A terra indígena pensada e delimi-
falar isso, é onde já tinha povos indígenas, tada arbitrariamente a partir das normas
vários povos né, uma coisa assim inaliená- e códigos do Estado não contempla as
vel, Argentina, Paraguai, era tudo território diferentes territorialidades dos diferentes
indígena” (Luís Salvador) seres ligados aos territórios indígenas.
Tal experiência é proporcionada a par- Porém, é a partir da terra indígena que
tir de um intenso tipo de relação entre a repousam as possibilidades dos povos in-
pessoa e o lugar no qual habita e se vê dígenas seguirem durando no tempo. Ou
intimamente conectada e mobilizada por seja, o que hoje se conhece como “terra
diferentes dimensões dos seus sistemas indígena” não contempla, em muitos ca-
de significados. O território é onde está sos, a dimensão do território em si, porém
conectada, intrinsecamente, sua forma de é o que tem possibilitado resistir e existir
estar no mundo com outros domínios da simbólica e materialmente.
vida, como a organização social, os ritos, A terra indígena não é substituível por
o acesso ao que ocidentalmente chama- outra, porque é um lugar sagrado, que
mos de “recursos naturais”, à saúde e, por possui história, onde se cultiva um modo
fim, à própria existência física e cultural. de ser de cada povo. Ela é fundamental
A terra é necessária e, mais ainda, indis- para a existência de um povo como co-
pensável portanto à reprodução física e cul- letivo diferenciado. É o que faz dele um
tural de um povo indígena. Muito além de povo. Se essa terra se perder, as condições
recortes e delimitações políticas represen- da produção da diferença são atacadas e
tadas em mapas, a conceitualização e cate- inviabilizadas.
gorização indígena é sobre sua experiência Território, portanto, é um espaço que
coletiva com os espaços que lhe tornam remete a um sentimento de pertenci-
única. Deste modo, estão em jogo não ape- mento e afeto, construído e modificado
nas os recursos em suas dimensões físicas, simbólica e praticamente a partir de sis-
senão relações que colocam em perspecti- temas de significados historicamente si-
va o corpo como aldeia, pensamento como tuados. É onde se vive com parentes e pa-
filosofia e território como lugar ao qual se rentas da espécie humana e não humana
pertence a vida e a diferença. de acordo com os sistemas culturais e
As terras indígenas como categoria cosmológicos de cada povo indígena.

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TERRITÓRIO INVADIDO

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O BRASIL NÃO EXISTIU. O
BRASIL É UMA INVENÇÃO.
E A INVENÇÃO DO BRASIL
NASCE EXATAMENTE DA
INVASÃO, INICIALMENTE
FEITA PELOS PORTUGUESES,
DEPOIS CONTINUADA PELOS
HOLANDESES, E DEPOIS
CONTINUADA PELOS FRANCESES,
NUM MODO SEM PARAR, ONDE
AS INVASÕES NUNCA TIVERAM
FIM. NÓS ESTAMOS SENDO
INVADIDOS AGORA.
AILTON KRENAK

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O atual Brasil se configurou através da Fato é que, desde a invasão colonial,
violência sobre pessoas, territórios e territo- os povos indígenas são perseguidos e sub-
rialidades pré-existentes. O atual Brasil não jugados por defenderem seu mundo, sua
foi fruto de uma descoberta, o Brasil desde lógica e seus territórios, oferecendo, até o
a narrativa indígena foi invadido. Dessa for- presente, resistência ao projeto coloniza-
ma, a partir da invasão e do esbulho dos dor excludente e “civilizador”. Aqui a noção
territórios indígenas, os povos indígenas de civilizador está ironicamente associada
foram despojados de sua autonomia e li- à lógica etnocêntrica, afinal foi a lógica de
berdade. A formação do Brasil, e o “sucesso superioridade cultural europeia em rela-
do seu projeto societário”, traduziu-se aos ção aos povos indígenas que, desdobrada,
povos indígenas em violências simbólicas resulta em processos como o genocídio,
e materiais, continuadas e atualizadas até esbulho, escravização e catequização dos
o presente. Ou seja, o que se chamou de povos indígenas, negando suas filosofias,
descobrimento para os povos indígenas foi subjetividades, suas histórias e dignidade,
invasão; o que se chamou de projeto socie- despindo suas ontologias e se apossando
tário para o Brasil, para os povos indígenas de seus territórios, autorizado pela ideia
foram violências sistemáticas. etnocêntrica de “civilização”.
Estima-se que, na época da chegada Podemos observar que, historicamen-
das pessoas da Europa, fossem mais de te, os processos de desterritorialização dos
mil povos indígenas, somando entre 2 e povos indígenas são orquestrados pela
4 milhões de pessoas. Cinco séculos de- linha de implementação dos sucessivos
pois, de acordo com o Instituto Brasileiro projetos de desenvolvimento nacional que
de Geografia e Estatística (IBGE), tínhamos materializam o processo colonial e de colo-
896.917 pessoas indígenas, cerca de nialidade. A impressão é de que o projeto
0,47% da população total do país. Dessas, de colonização enxerga a expulsão dos po-
324.834 vivem em cidades e 572.083 em vos indígenas como condição fundamen-
áreas rurais (Censo IBGE, 2010). tal para o “desenvolvimento” do país.
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Se percorrermos rapidamente os di- Quinhentos anos de guerras, con-
versos processos de expansão de fronteiras frontos, extinções, migrações forçadas e
coloniais e projetos de desenvolvimento reagrupamento étnico envolvendo cen-
no Brasil - a colonização do litoral no século tenas de povos indígenas e múltiplas
XVI, seguida por dois séculos das entradas forças invasoras de pessoas portuguesas,
ao interior por bandeirantes; a ocupação espanholas, francesas, holandesas e,
da Amazônia e a escravização dos povos nos últimos dois séculos, brasileiras,
indígenas nos séculos XVII e XVIII; o es- dão testemunho da resistência ativa dos
tabelecimento das plantações de açúcar povos indígenas para a manutenção do
e algodão no Nordeste nos séculos XVII e controle sobre suas áreas de vida.
XVIII, baseadas no uso intensivo da mão de A resistência dos povos indígenas a es-
obra de pessoas escravizadas trazidas coer- ses projetos é histórica em suas diferentes
citivamente de diferentes territorialidades formas. No presente, ocorre na forma de
do continente africano; a expansão das reafirmação territorial de parcelas de anti-
fazendas de gado ao Sertão do Nordeste e gos territórios, conjugada na mobilização
Centro-Oeste e as frentes de mineração em pelas retomadas de suas terras. Os povos
Minas Gerais e no Centro-Oeste, ambas a indígenas dizem, através de sua conduta
partir do século XVIII; a expansão da cafei- territorial, que defendem nada mais que a
cultura no Sudeste nos séculos XVIII e XIX; possibilidade existencial, física e simbólica
no Sul, com maior intensidade no final do que conforma as suas cosmologias e sua
século XIX, os territórios indígenas foram vida associadas a um determinado terri-
intensamente degradados pelos projetos tório. Defender o território é defender a
de “povoamento” e escoamento dos ciclos existência coletiva e refazer o mundo.
econômicos da erva-mate, gado, madei- Os investimentos coloniais foram e
ra e soja ao longo dos séculos XX e XXI -, são diversos e atendem a pressupostos de
podemos entender de que maneira cada exploração e fixação da colonização para
frente de expansão produziu um conjunto aplicação de projetos de desenvolvimento.
próprio de desterritorialização, contando A escravização dos povos indígenas e agru-
geralmente com estatuto normativo. Es- pamentos arbitrários dos mesmos, os “des-
ses processos resultaram em formas al- cimentos” - consistia em deslocamentos
ternativas de territorialização, resistência e coercitivos dos povos indígenas do interior
reinvenção por parte dos povos indígenas. do território para junto dos aldeamentos

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portugueses para fins de catequização e tica de aldeamentos”, formalizados, poste-
uso da mão de obra indígena na forma de riormente em 1850, na chamada Lei de
escravidão -, marcam os primeiros séculos Terras. Ambos os processos visam reduzir os
de invasão. Para esta feita, uma condição espaços vitais dos povos indígenas a glebas
jurídica é estabelecida, as chamadas guer- definidas de terras, geralmente situadas
ras justas. Esse estatuto jurídico, na forma nos grotões menos valorizados, liberando
de Cartas Régias, autorizou que os coletivos espaço para o empreendimento colonial.
indígenas que se negassem à fé cristã e aos Estes projetos de desenvolvimento
descimentos fossem concebidos como ini- que, a partir da ditadura militar (1964-
migos, sendo justificado o seu extermínio 1985), potencializaram as grandes rodo-
para a aplicação do projeto colonial. vias no Norte e Centro-Oeste do país e no
A resistência indígena é respondida Sul, manifestaram-se pela potencialização
na forma de leis e políticas públicas que do sistema agroindustrial e monocultural,
justificaram, historicamente, a desterrito- conectados a uma profunda modificação
rialização, o extermínio físico e cultural de das paisagens e do espaço, vinculadas aos
povos indígenas para aplicação do projeto ciclos de capital globalizado, e podem ser
societário brasileiro, onde as lógicas indí- considerados como um dos últimos epi-
genas nunca foram consideradas. Aliás, a sódios formais de ataque aos territórios
tônica colonial é a negação e hierarquiza- indígenas. Como consequência direta
ção das alteridades indígenas, num pro- desta postura do Estado, combinada com
cesso sistemático de invisibilidade e mar- outras práticas que ferem os direitos hu-
ginalização. Dentre estas políticas públicas manos, a Comissão Nacional da Verdade
que promoveram a desterritorialização de (2011-2014) apontou que cerca de 8.350
povos indígenas, cabe destacar aquelas de pessoas indígenas foram mortas somente
incentivo à colonização europeia, que dis- no período da ditadura militar.
tribuíram territórios indígenas dizendo-os
sem ocupação. Quem são hoje
Mais tarde, processos de aldeamento os brasileiros
promovidos pelo Estado, muitos destes e as brasileiras
através da violência, conjugaram o esbulho que atacam
e reduziram os seus espaços de vida. Esses povos indígenas?
processos ficaram conhecidos como “polí-

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TERRITÓRIO EM RISCO
Em decorrência dos processos de cabouço normativo, preceitua o reco-
mobilizações e reflexões coletivas dos nhecimento do caráter pluriétnico da
povos indígenas, assim como de mo- sociedade brasileira e, desta forma, a
vimentos sociais de diversos segmen- especificidade dos povos indígenas,
tos da sociedade civil, o processo da os direitos originários dos povos indí-
Assembleia Nacional Constituinte, em genas às terras tradicionalmente ocu-
1987, culminou na promulgação da padas, seus usos, costumes, línguas e
Constituição da República Federativa organização social (artigo 231), assim
do Brasil em 1988. O novo paradigma como o reconhecimento da capacida-
constitucional, pelo menos em ter- de civil e autodeterminação dos povos
mos formais, rompeu com séculos de indígenas (artigo 232).
políticas indigenistas marcadamente Ocorre que, após três décadas da
orientadas por vieses etnocêntricos, promulgação de nossa jovem Cons-
assimilacionistas e tutelares. tituição, os coletivos indígenas ex-
O texto constitucional, em seu ar- perienciam diferentes desafios que

políticas indigenistas etnocêntricas são aquelas


que foram criadas por não indígenas considerando
as culturas indígenas como inferiores. Políticas
indigenistas assimilacionistas são aquelas que
tinham como objetivo integrar os povos indígenas à
sociedade brasileira de tal modo que deixassem de se
enxergar como povos com especificidades. Políticas
indigenistas tutelares são aquelas que buscam
exercer tutela sob as pessoas indígenas, ou seja,
considerando as incapazes de ter plena autonomia.
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NÓS SOMOS A TERRA.
SOMOS INDISSOCIÁVEIS
DELA. NÃO QUEREMOS
TERRA PARA GERAR LUCRO,
MAS PARA GARANTIR A
NOSSA EXISTÊNCIA.
SÔNIA GUAJAJARA

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põem em risco sua integridade física so momento histórico inclusive com
e cultural. Sendo o território a base alinhamento ideológico contrário aos
material e simbólica para a existência ordenamentos jurídicos contemporâ-
dos povos indígenas enquanto socie- neos, como é o caso da Resolução
dades diferenciadas, é justamente o nº 4/2021 da Fundação Nacional
elemento que desperta maior inte- do Índio (FUNAI), que busca aprovar
resse desde a invasão. Ou seja, não formas de exploração dos territórios
basta que o direito ao território esteja indígenas. A própria morosidade na
reconhecido na lei maior do país, pois regularização fundiária é uma estra-
é preciso ações do Estado para que o tégia de ataque aos povos indígenas,
direito se efetive na prática. que ficam cada vez mais vulneráveis
Os ataques aos territórios dos sem seus territórios demarcados.
povos indígenas se dão de diferen- Na vida concreta dos povos indíge-
tes formas, a dizer: através de pro- nas, os diversos ataques no campo das
posições de expedientes normativos leis e políticas públicas dão espaço às
que ameaçam os direitos dos povos invasões, ao desmatamento, ao garim-
indígenas no Congresso Nacional po e mineração ilegais e vivências do
(Legislativo), como é o caso do recém racismo contra povos indígenas. Sobre o
aprovado, na Comissão de Constitui- desmatamento, o Instituto Nacional de
ção e Justiça e de Cidadania (CCJC) Pesquisas Espaciais (INPE) tem alertado
da Câmara dos Deputados, Projeto para o aumento significativo nos últi-
de Lei n° 490/2007; a recepção de mos anos, como no período de janeiro a
interpretações jurídicas inconstitucio- abril de 2020, quando 1.204,15 km² do
nais, etnocêntricas e racistas por au- território brasileiro foram desmatados.
tarquias do Judiciário, como é o caso Célia Xakriabá explica que os povos
de questionamentos sobre o direito indígenas têm sido os grandes defen-
territorial dos povos indígenas com sores das florestas, pois a relação com
base no chamado marco temporal; as árvores está para além da lógica uti-
e, por fim, o esfacelamento institu- litarista: “Embora não sejamos reconhe-
cional dos órgãos competentes pela cidos como melhores artilheiros, somos
efetivação dos direitos territoriais dos os melhores zagueiros: defendemos
povos indígenas (Executivo), em nos- nossos biomas, sustentamos o pulmão
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O PL 490 2007 propõe mudança no rito
processual de regularização fundiária.
A Constituição Federal de 1988 preceitua que é de
competência da União demarcar e proteger as Terras
Indígenas, e a proposição do PL 490 prevê que a demarcação
das terras indígenas deva acontecer a partir de projeto
de lei, assim como estabelece novos critérios para a
demarcação das terras indígenas. Um dos critérios mais
impactantes e violentos do pl é a incorporação da chamada
Tese do Marco Temporal, que, como sabemos, impede o
reconhecimento territorial a coletivos indígenas que não
estivessem na posse da parcela territorial em pleito
em 5 de outubro de 1988. O PL 490 tem a pretensão de
flexibilizar as normativas sobre intervenções externas
em forma de projetos de desenvolvimento no contexto
de Terras Indígenas, abrindo precedentes para projetos
de desenvolvimento associados a interesses estritamente
econômicos, assim como atenta contra o direito à consulta
dos Povos Indígenas. Ou seja, atenta contra a inviabilidade
das demarcações e o usufruto exclusivo da terra.

Marco temporal é uma tese jurídica que defende que


os povos indígenas só teriam direito aos territórios
que estavam sob sua posse em 05 de outubro de
1988 ou pelos quais estivessem em disputa judicial
no mesmo período, data em que foi promulgada a
Constituição. Trata se de uma tese inconstitucional, pois
a Constituição reconhece o direito originário dos povos
indígenas, e também uma tese que legitima e legaliza o
histórico de violências contra as populações indígenas.
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A Resolução número 4, de 22 de janeiro de 2021, da
FUNAI, preceitua o estabelecimento de critérios de
heteroidentificação para determinar quem é ou não
é indígena. Esta medida viola os direitos indígenas
de autodeterminação e autodeclaração, como está
convencionado em nosso ordenamento jurídico. Esta
medida administrativa foi considerada inconstitucional
pelo Supremo Tribunal Federal ADPF 709 .

do mundo. Parem o desmatamento. pelo aquecimento global, onde falta


Porque, quando corta uma árvore, corta água, onde falta o próprio alimento
parte de nós, corta água, corta a vida. para aquelas pessoas. E o preconceito,
Nos perguntamos o que o progresso da o racismo com o indígena nordestino
morte vai fazer? Aonde vai escrever essa é ainda maior! Porque você vai olhar
caneta o dia que tiver cortado todas as o indígena nordestino, você não vai
árvores? Por isso, continuamos apren- ver aquele indígena com o cabelo
dendo mais a cada dia com a árvore viva escorrido, o olho puxado, mas ele é
do que com um papel morto. E nós, suas indígena. Ele está ali, mantendo sua
filhas e filhos, possamos continuar a res- cultura, lutando pelo seu território,
pirar com ela.” lutando pela sua organização social.
Existem impactos mais presentes Então isso acaba impactando ainda
em determinadas regiões do Brasil, mais. O índice de violência na região
ou então aparecem com roupagens Nordeste se torna um pouco maior,
diferentes de acordo com o contexto. porque o agronegócio está ali dentro
Paulo Tupinikim fala da realidade da daquela região. Principalmente na
região do Brasil conhecida como Nor- Bahia, onde há muitos fazendeiros,
deste: “A região Nordeste é uma re- onde os senhores do café hoje são os
gião muito peculiar porque estamos senhores do gado, e isso acaba tra-
no semiárido, estamos na caatinga, zendo esse impacto para a população
regiões completamente impactadas indígena ali.”
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Outra grande ameaça, especial- pautadas pelos diferentes projetos de
mente na região Norte, tem sido o ga- desenvolvimento regional, é caracteri-
rimpo ilegal. Alessandra Munduruku zado um forte aparato do agronegócio
traz um relato da situação no território e de commodities, além de barragens,
Munduruku, no Pará: “Primeiramente, hidrelétricas, rodovias, etc.
quando a gente soube que a Anglo- Este cenário tem seus reflexos no
-América estava interessada nas nossas interior dos territórios indígenas pela
terras, foi em 2019. A ANM [Agência via do modelo produtivo de commodi-
Nacional de Mineração] estava dando ties através do arrendamento, seguido
licença pros garimpeiros explorar lá da tentativa permanente de regula-
dentro. Aí a gente conversou com os ca- mentar essa prática ilegal a partir de
ciques, com as outras lideranças e com expedientes normativos no Congresso.
as mulheres também. A informação Em geral, os ataques estão camuflados
que eu soube é de que era uma em- na narrativa de “desenvolvimento” das
presa inglesa, totalmente de fora do es- terras indígenas; na prática, Propostas
tado do Pará e sem ter o conhecimento. de Emenda à Constituição (PECs), Pro-
Esses países que acham que o território jetos de Lei (PLs) e demais expedientes
é deles, ainda mais dizendo que eles normativos têm a intenção de flexibili-
não vão entrar no território demarcado. zar leis ambientais e indigenistas, de
Só que eles esqueceram, essas empre- modo a violar o preceito constitucional
sas, que muitos povos indígenas estão de usufruto exclusivo dos territórios
na briga pela demarcação há muitos pelos coletivos indígenas.
anos. E o rio Tapajós tem muita história O que fica evidente, a partir dos
do povo Munduruku, muita resistên- ataques formalizados em forma de ex-
cia. Teve muitos conflitos também, mas pedientes normativos e dos ataques
nunca deixou de ser terra indígena.” concretos sofridos, é uma reedição da
No Sul do Brasil, em um contexto negação das alteridades indígenas e,
regional de significativa densidade de- por extensão, dos territórios indíge-
mográfica e fronteiras urbanas do país, nas para justificar o esbulho e a vio-
cuja cobertura vegetal característica lência material e simbólica. Embora
da Mata Atlântica já está quase toda tenhamos a sinalização de avanços
removida por conta das intervenções importantes no âmbito normativo, a

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realidade demonstra que a efetiva- mas por estar defendendo um direito
ção dos direitos indígenas ainda é que já existe. E aí, por fazer essa luta,
distante. Esta sequência repetida de a gente é atacado, é criminalizado, é
fatos que remontam à colonização se perseguido, se não morto.”
expressa a partir da assimetria de po- “Passamos por uma situação mui-
der e, mais precisamente, conjuga-se to complicada que é a situação de
na forma do que o sociólogo Anibal pandemia. Ainda estamos passando
Quijano (1992​) denominou de ​para- por esse momento, um momento de
digma da colonialidade. perdas muito grandes para as popula-
A colonialidade se expressa em for- ções indígenas. São mais de 300 vidas
ma de violência epistêmica, materia- indígenas que se perderam ao longo
liza-se como tentativa de colonizar as desse tempo, ao longo dessa pande-
diferentes lógicas que fundam outras mia. Então a pandemia, além de trazer
sociedades e, nesse caso, as alterida- as perdas das vidas indígenas, além
des ameríndias. Perspectiva corrente de trazer o impacto na saúde das po-
na lógica integracionista e racista pulações indígenas, inclusive na parte
presente em proposições legislativas, cultural e religiosa, ainda passamos
jurídicas e executivas sobre o viés da por essa situação da política, que é o
assimilação dos povos indígenas tem passar da boiada pra poder retroceder
no concreto sua desterritorialização e, nos nossos direitos garantidos”, afirma
por extensão, o genocídio. Paulo Tupinikim.
Esta postura provoca perseguições
e mortes, como conta Sônia Guajaja-
ra: “É uma luta que a gente faz pelo
cumprimento constitucional, mas
também porque é um direito originá-
rio de nós, indígenas aqui no Brasil.
Então hoje é uma disputa muito in-
justa, porque acaba que a terra virou
um objeto de disputa entre o poder
político e o poder econômico e nós
estamos na linha de frente como víti-

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TERRITÓRIO DA VIDA
Os territórios indígenas, que foram lidade das pessoas indígenas com
invadidos, saqueados, explorados e co- outras alteridades do território, cujos
locados em risco, resistem no presente princípios não partem da objetificação
como territórios de vidas. Nas cosmo- da natureza na perspectiva dos “recur-
logias indígenas, como mencionado sos naturais”. Ao contrário. As plantas
anteriormente, o mundo é povoado e outros elementos são professoras,
por muitas alteridades (humanas e não mestras, amigas ou não. Formam um
humanas) e o mundo está dotado de conjunto epistemológico dotado de
consciência, potencialidades, intencio- conhecimentos e potências. Ensinam e
nalidades. Nessa perspectiva, as onto- curam as pessoas indígenas de males
logias indígenas se vêem como parte do corpo e do espírito.
de processos epistemológicos perma- As alteridades do território empres-
nentes com seus territórios. Aliás, na tam seus nomes e propriedades às
perspectiva indígena, o conhecimento pessoas indígenas; alegoricamente as
produzido junto ao território e coleti- pessoas indígenas são plantas, pedras,
vamente compartilhado é parte funda- minerais, animais, astros e outros ele-
mental da tessitura do pertencimento. mentos. Esses elementos, por sua vez,
Os ancestrais e as ancestrais que vive- já foram ancestrais indígenas e são
ram e morreram no território, os luga- parentes. Na narrativa Kaingang, por
res que ocupam um lugar de destaque exemplo, o “tronco velho” é a chave
no imaginário, os ambientes, acidentes para a compreensão do intrincado flu-
geográficos e seus componentes são xo que, antes da objetivação proposta
experienciados a partir da produção pelo pensamento ocidental, parte da
conjunta do corpo e da pessoa indíge- subjetivação e potência do outro e da
na junto ao território. outra em um processo permanente de
O pensamento ameríndio integra produção de significados, sentidos e
as relações de sociabilidade e socia- sentimentos, ramificando a trama vida.
25
Para nós Kaingang, tudo
possui tón ou para os não
indígenas, tudo possui espírito.
a mata tem tón, a água tem
tón, a terra tem tón, e é com
esses tón que devemos pedir
permissão ao entrar na mata,
para pegar vãnhkagta remédio
do mato, pegar frutas, pegar
material para artesanato,
para tudo.
Jucelaine Amaro

26
A luta dos povos indígenas pela afir- luta do movimento social indígena de
mação dos seus direitos territoriais é, na modo geral.
narrativa indígena, a luta pelo direito à Na potência da narrativa e da ex-
vida em suas diferentes dimensões, afi- periência das mulheres indígenas, é
nal a vida e suas potencialidades não possível aprofundar a compreensão
são uma condição exclusiva dos seres ameríndia de que corpo e território
humanos. Logo, o pensamento indíge- são indissociáveis. Aliás, o território é o
na amplia o espectro delimitado pela corpo indígena, especialmente o corpo
objetivação do mundo proposta pelo das mulheres indígenas.
pensamento ocidental. Na perspectiva As mulheres indígenas organiza-
indígena, a vida e o território ocupam ram, em 2019, a I Marcha das Mu-
o mesmo horizonte, pois a terra dá lheres Indígenas, cujo tema era “Ter-
alimento ao corpo e ao espírito, cura o ritório: nosso corpo, nosso espírito”.
corpo e o espírito, fortalece o corpo e Nas páginas seguintes, comparti-
o espírito. lhamos trechos da carta final desta
Perder o território é, na narrativa in- marcha, elaborada pelas mulheres
dígena, o equivalente a perder a mãe. indígenas:
De outro modo, podemos observar a
luta dos povos indígenas pela defesa
e garantia do território como a luta do
próprio território pela vida, na medida
em que esses e essas que lutam como
pessoas também são a floresta e de-
mais alteridades do território. Na nar-
rativa indígena e no movimento social
indígena, a luta e a resistência são par-
te da experiência no contemporâneo,
e essa resistência é conjugada por di-
ferentes segmentos do movimento so-
cial indígena. Recentemente, o prota-
gonismo das mulheres indígenas tem
ampliado os horizontes e fortalecido a

27
“Somos totalmente contrárias às nar- línguas próprias, é também fundamen-
rativas, aos propósitos, e aos atos do atual tal para nós. Muitas de nossas línguas
governo, que vem deixando explícita seguem vivas. Resistiram às violências
sua intenção de extermínio dos povos coloniais que nos obrigaram ao uso da
indígenas, visando à invasão e exploração língua estrangeira, e ao apagamento
genocida dos nossos territórios pelo capi- de nossas formas próprias de expressar
tal. Essa forma de governar é como arrancar nossas vivências. Nós mulheres temos
uma árvore da terra, deixando suas raízes um papel significativo na transmissão da
expostas até que tudo seque. Nós estamos força dos nossos saberes ancestrais por
fincadas na terra, pois é nela que buscamos meio da transmissão da língua. Queremos
nossos ancestrais e por ela que alimenta- respeitado o nosso modo diferenciado de
mos nossa vida. Por isso, o território para nós ver, de sentir, de ser e de viver o território.
não é um bem que pode ser vendido, tro- Saibam que, para nós, a perda do território
cado, explorado. O território é nossa própria é falta de afeto, trazendo tristeza profunda,
vida, nosso corpo, nosso espírito. atingindo nosso espírito. O sentimento da
Lutar pelos direitos de nossos territórios violação do território é como o de uma
é lutar pelo nosso direito à vida. A vida e o mãe que perde seu filho. É desperdício
território são a mesma coisa, pois a terra nos de vida. É perda do respeito e da cultura,
dá nosso alimento, nossa medicina tradicio- é uma desonra aos nossos ancestrais, que
nal, nossa saúde e nossa dignidade. Perder foram responsáveis pela criação de tudo. É
o território é perder nossa mãe. Quem tem desrespeito aos que morreram pela terra.
território, tem mãe, tem colo. E quem tem É a perda do sagrado e do sentido da vida.
colo tem cura. Quando cuidamos de nossos Assim, tudo o que tem sido defendi-
territórios, o que naturalmente já é parte de do e realizado pelo atual governo contra-
nossa cultura, estamos garantindo o bem ria frontalmente essa forma de proteção
de todo o planeta, pois cuidamos das flo- e cuidado com a Mãe Terra, aniquilando
restas, do ar, das águas, dos solos. A maior os direitos que, com muita luta, nós con-
parte da biodiversidade do mundo está sob quistamos. A não demarcação de terras
os cuidados dos povos indígenas e, assim, indígenas, o incentivo à liberação da
contribuímos para sustentar a vida na Terra. mineração e do arrendamento, a tentativa
A liberdade de expressão em nossas de flexibilização do licenciamento am-

28
biental, o financiamento do armamento Em 2021, aconteceu a II Mar-
no campo, os desmontes das políticas in- cha das Mulheres Indígenas, dessa
digenista e ambiental, demonstram isso. vez com o tema “Mulheres ori-
Nosso dever como mulheres indígenas e ginárias: reflorestando men-
como lideranças, é fortalecer e valorizar tes para a cura da terra”. Esse
nosso conhecimento tradicional, garan- tema, assim como o tema anterior,
tir os nossos saberes, ancestralidades destacam o papel da mulher in-
e cultura, conhecendo e defendendo dígena como categoria de pessoa
nosso direito, honrando a memória das fundamental para a compreensão
que vieram antes de nós. É saber lutar da dos sentidos do território no pen-
nossa forma para potencializar a prática samento indígena. A experiência
de nossa espiritualidade, e afastar tudo o da mulher indígena junto aos seus
que atenta contra as nossas existências. coletivos, a relação com o território,
com ambientes e conhecimentos
[...] associados conferem às mulheres
indígenas o lugar de referência
Temos a responsabilidade de para pensarmos outros começos e
plantar, transmitir, transcender, e ampliarmos o horizonte na relação
compartilhar nossos conhecimentos, com o território, com o planeta e
assim como fizeram nossas ancestrais, com a vida em suas diferentes di-
e todos os que nos antecederam, mensões.
contribuindo para que fortaleçamos,
juntas e em pé de igualdade com os
homens, que por nós foram gerados,
nosso poder de luta, de decisão, de
representação, e de cuidado para com
nossos territórios. Somos responsáveis
pela fecundação e pela manutenção
de nosso solo sagrado. Seremos sem-
pre guerreiras em defesa da existência
de nossos povos e da Mãe Terra.”

29
30
TERRITÓRIO RETOMADO
No atual Brasil, os povos indígenas naquele jovem, a sobrevivência daquele
contemporâneos compreendem-se em jovem em cima daquela terra. Por que a
continuidade histórica e cultural, com gente briga pela demarcação? Para que
uma ancestralidade social e cosmoló- fique um pedaço de terra para seu jamré,
gica anterior à sociedade não indígena para seu régre, para não perder a língua
brasileira, sobretudo no que diz respei- né, a coletividade é importante, ela que
to à ocupação territorial. Sua memória chama territorialidade.” (Luís Salvador )
e experiência coletiva remontam a Os sentidos que enlaçam as mobili-
um passado milenar, latente nas suas zações e reflexões coletivas de luta pela
narrativas, nas línguas, nos cantos, nas terra atualmente são a expressão do pen-
danças, nos sonhos, nas artes, nos sím- samento ameríndio em sua força descolo-
bolos e sistemas culturais. Os símbo- nizadora. No movimento social indígena,
los, os sentidos e os sentimentos estão essa conduta territorial e posturas socio-
presentes em diferentes “lugares” no ambientais vertem-se através do conceito
território, na natureza e sobrenatureza. de retomada. A retomada aqui pode ser
A vida ameríndia em seu território, compreendida como os esforços coletivos
como mencionado anteriormente, é a pela recuperação/retomada de parcelas
conexão com sua ancestralidade. A ter- territoriais inscritas a partir da memória
ra, que ganha categorias diversas entre coletiva e de longa duração em territórios
os povos indígenas, é mais do que um ancestrais. Esse território foi esbulhado
limite fundiário, reúne um conjunto pela colonização e modernidade em uma
de elementos naturais e sobrenaturais planificação, objetificação e retenção dos
reconhecidos como próprios de uma fluxos da vida.
territorialidade indígena cosmológica “Teko´a é aldeia, tekó é vida, esse A
e historicamente construída. é lugar. É o lugar onde se produz a vida
“A importância da terra, momento e o bem viver guarani, tekoa porã; sem
que você luta pela terra, você tá pensando o tekoa não tem o tekó, sem a terra, sem
31
Queremos que o Estado
brasileiro e os juízes
entendem que a vida do índio
está na terra, onde nasceram,
cresceram e morreram
nossos antepassados.
Luis Salvador

32
a aldeia não tem vida.” (Davi Guarani - cioambientais, sonhos e embates em
Karai Popygua) diferentes contextos territoriais. Con-
A colonização e modernidade, a partir ceber estas mobilizações a partir de
da noção de propriedade, são umas das direitos previstos constitucionalmente
expressões da objetificação do território. e afirmados em tratados internacio-
Uma infinidade de formas de desenvol- nais, os quais posicionam os direitos
vimento define a modernidade colonial. territoriais dos povos indígenas como
Ao dar forma, o processo colonial desfaz originários, é metodologicamente se
as tramas de envolvimento ao longo posicionar para além do senso comum.
dos fluxos das vidas entrelaçadas no E, mais do que isso, é um dever ético e
território, esgarça, retém e desenvolve, moral da sociedade não indígena aco-
em linhas retas, as vias de sobreposição, lher o pensamento dos povos indíge-
produzindo desigualdade, devastação e nas sobre os sentidos do território.
homogeneização. A retomada é a expressão do pensa-
A retomada revolve por dentro a mento indígena para reaver os fluxos da
planificação estabelecida pelos suces- vida que fizeram suas humanidades e
sivos projetos de “desenvolvimento” ao suas cosmologias. Também expressa o
longo dos séculos de uma cosmologia retorno dos corpos e pensamentos indí-
colonial. Ao acessar, na memória cole- genas ao conjunto de outras alteridades
tiva, os sentidos de suas humanidades que, assim como os povos indígenas,
e conjugar as retomadas, os povos in- foram subjugadas ao longo dos últimos
dígenas têm evidenciado sua posição cinco séculos. A retomada é também a
descolonizadora, buscando o restabe- pauta por outras formas de se relacionar
lecimento dos fluxos da vida, através da com a natureza e sobrenatureza, que
imaginação e memórias ancestrais. amplia horizontes socioambientais e
Estas mobilizações e reflexões se coloca em contraponto às crises so-
coletivas de luta pela terra ganham cioambientais em curso, na forma de
ressonância em nosso recém firmado aquecimento global e crises climáticas.
pacto social expresso em nossa Cons- Talvez seja a retomada do território (ter-
tituição (1988); estas mobilizações são ras, corpos, espíritos, alteridades, vidas)
agenciadas pelas lideranças indígenas a última chance da humanidade.
e seus coletivos através de posturas so-

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Referências:
AMARO, Jucelaine. Entrevista concedida a Douglas Kaingang. Iraí-RS, 15 de set. 2021.
GUAJAJARA, Sonia. Entrevista concedida ao Conselho de Missão entre Povos Indíge-
nas. Brasília, 30 jun. 2021.
ITAÚ CULTURAL. Terra e território. Youtube, 16 abr. 2019. Disponível em: <https://
youtu.be/xYF8TUYYtGE>. Acesso em: 11 set. 2021.
JORNALISTAS LIVRES. Uma conversa com Karai Popygua (David), liderança indígena
Guarani - Jornalistas Livres. Youtube, 23 abr. 2019. Disponível em: <https://
youtu.be/-hTzVlTiweM>. Acesso em: 19 set. 2021.
KRENAK, Ailton. Entrevista concedida ao documentário Guerras do Brasil.doc. Netflix.
Acesso em: 7 set. 2021.
______. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.
MÍDIA ÍNDIA OFICIAL. Alessandra Munduruku para o Mídia Índia, fala sobre os em-
preendimentos predatórios em seu território. Youtube. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=M67Q-youj7s>. Acesso em: 10 set. 2021.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú Indígena, Lima, v.
12, n. 29, p 11-20, 1992.
SALVADOR, Luís. Entrevista concedida a Douglas Kaingang. Vicente Dutra-RS, 17 e
22 de set. 2021.
TUPINIKIM, Paulo. Entrevista concedida ao Conselho de Missão entre Povos Indíge-
nas. Brasília, 30 jun. 2021.
XAKRIABÁ, Celia. Não existe floresta em pé, com sangue Indígena no chão [...].
São José das Missões, 21 set. 2021. Facebook. Disponível em: <https://www.
facebook.com/photo/?fbid=405241614503047&set=a.277318490628694>.
Acesso em: 12 out. 2021.

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Se conhecer e compreender mais da
relação dos povos indígenas com o
território inquietou você, acompanhe
as páginas das organizações indígenas
nas redes sociais e saiba como
fortalecer a luta pelos territórios,
que é a luta pela vida!

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