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TERRA, TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADE NO MODO DE VIDA E NA


IDENTIDADE CULTURAL CAMPONESA

Lais Mourão Sá
Universidade de Brasília
2010
Introdução
Terra é uma palavra que nos remete a vários significados. A terra que
pisamos de pés descalços, a terra que as mãos reviram para plantar, a terra que
cheira gostoso com o banho da chuva. Terra também é o nome do nosso planeta,
que tem o sentido de mãe generosa, solo do nosso pertencimento e dos nossos
cuidados.
Mas a terra que já foi de Deus, hoje é do homem e do diabo: um pedaço
cercado que vale dinheiro. Propriedade individual.
Porém, muitos povos do campo brasileiro ainda vivem com o sentido da
terra comum. As atividades extrativistas realizadas por populações tradicionais,
por exemplo, principalmente na Amazônia, baseiam-se uma concepção coletiva do
uso da terra, no espaço geográfico dos ecossistemas onde ocorrem as espécies que
são alvo das atividades produtivas, como o babaçu e o açaí, entre tantos outros.
Também os casos dos fundos de pasto na Bahia, e as terras de santo no Maranhão,
representam formas de apropriação coletiva da terra.
No entanto, aí já começamos a transpor o sentido restrito da noção de terra
como apenas a base espacial onde acontece a vida, e passamos para as idéias de
território e territorialidade.
Neste texto, vamos tratar destes conceitos e de sua importância para a
compreensão das lutas pela terra dos povos do campo.

Primeiras definições de uma tríade conceitual


Existem muitas áreas científicas que se utilizam desses três conceitos, como,
por exemplo, a geografia e as ciências agrárias. Aqui, nós vamos dar ênfase a uma
abordagem antropológica, porém dialogando com os conceitos dessas outras áreas
científicas, pois essa atitude interdisciplinar é necessária para uma compreensão
da totalidade da questão camponesa.
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Neste sentido, vamos considerar que a noção de terra se refere à base


material, ao espaço ambiental onde um grupo humano se estabelece e desenvolve
seu modo de vida. O conceito de território, por sua vez, acrescenta a necessidade
de se compreender o modo pelo qual um grupo humano se estabelece social e
culturalmente neste espaço, de acordo com as formas coletivas que permitem a
reprodução do seu modo de vida e de sua identidade cultural. Dessa forma, a noção
de território destaca a relação complexa que existe entre a terra enquanto espaço
material e os processos sociais, a dimensão cultural e simbólica, os valores éticos,
espirituais, simbólicos e afetivos.
Já a territorialidade, se refere aos movimentos e transformações, à dinâmica
espacial e temporal que esse modo de vida apresenta no território, quando o
vemos numa perspectiva histórica. Esses movimentos históricos que compõem a
territorialidade de um grupo social podem ser vistos em diferentes dimensões,
todas elas estreitamente entrelaçadas, tais como a dimensão ecológica, econômica,
as relações de poder, a condição política do território, a dimensão simbólico-
cultural.
Assim, por exemplo, o território dos grupos familiares de agricultores
nativos coletores de capim dourado do Jalapão-TO, se define por suas atividades
artesanais de cunho tradicional na região, a partir de suas raízes ancestrais
indígenas. Porém essas habilidades artesanais passaram a se diversificar a partir
de demandas recentes de mercado, o que influenciou na dinâmica de sua forma
territorial, ampliando a extensão de seus deslocamentos espaciais, de sua
capacidade organizativa e de suas redes de relações socioeconômicas. Essas
mudanças aconteceram em função dos espaços ecossistêmicos onde o capim
dourado pode ser coletado, da necessidade de novas formas de manejo dessa
espécie do cerrado, devido à intensificação da coleta, e em função do surgimento
de novas formas de relações sócio-culturais, com a criação e transmissão das novas
habilidades artesanais desenvolvidas no contato com o mercado regional e
nacional.
Podemos, então, usar o conceito de territorialidade, para compreender as
mudanças produzidas na experiência territorial desses agricultores, destacando as
diferentes dimensões do seu modo de vida que se transformaram durante este
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processo. Tal processo gerou, não apenas a expansão da ocupação da terra por
uma atividade econômica camponesa na região, mas a redefinição do modo
camponês de se estabelecer social e culturalmente no território, e uma nova
territorialidade, ou seja, o surgimento de novos aspectos ambientais, sócio-
culturais, político-institucionais e econômicos. Vemos, então que o conceito de
territorialidade funciona como uma espécie de síntese dessa tríade, mostrando a
união entre a base material, a dimensão sócio-cultural e o movimento histórico.

Territorialidade e movimentos no campo

A dimensão antropológica dos conceitos de terra, território e


territorialidade nos mostra que existe um estreito entrelaçamento entre a base
material e a dimensão sócio-cultural e histórica dos modos de vida camponeses.
Isso nos permite também entender as especificidades e a diversidade dos povos do
campo.
Podemos, assim, entender a territorialidade camponesa como modo de
manifestação histórico-cultural das identidades coletivas dos sujeitos sociais do
campo, na sua diversidade de interesses e necessidades, que vão tomando forma
na luta política pela afirmação e defesa de seus direitos sociais. Neste sentido, a
noção de território camponês é importante para dar visibilidade aos seus modos
de produção da vida e de pertencimento à terra, enquanto a noção de
territorialidade aponta para a historicidade dos processos pelos quais esses modos
de produção se reproduzem e se transformam.
A visão antropológica aponta também para uma articulação intrínseca entre
os modos coletivos de produção da vida social no território e as visões de mundo,
valores, percepções, saberes e ideologias que dão sentido cultural prático e
simbólico a esses modos de produção. Com isso, podemos perceber a importância
dos laços sociais e do esforço coletivo pelo qual um grupo humano consegue se
apropriar coletivamente do ecossistema em que se insere (terra). Os modos de
ocupação e uso do solo, os conhecimentos e práticas ecológicos que tornam
possíveis as técnicas de produção, a memória coletiva e a identidade cultural, tudo
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isso mostra a complementaridade entre a base material e sociocultural, que define


o conceito de território.

Compreendemos, então, que a perda do território significa perda da


existência e da identidade. Podemos, assim, usar os conceitos de terra, território e
territorialidade para compreender a história dos movimentos sociais, das lutas
coletivas dos povos do campo e da cidade, na conquista e/ou manutenção da base
material essencial para sua existência.

No campo e na floresta, os movimentos camponeses e indígenas se


organizam historicamente na luta pelo direito à terra e ao território, no sentido de
defender e valorizar o seu modo de vida. Na cidade, os movimentos de sem-teto
ocupam seus espaços e/ou se espacializam, ali onde estão ameaçados de perder a
terra, para conquistar o direito ao território, promovendo assim a territorialização
da luta pela terra e pela moradia.

Nesta perspectiva, os movimentos sociais aparecem como movimentos


socioterritoriais, como sujeitos coletivos que se organizam para defender seus
direitos de territorialidade, em diversos níveis de enfrentamentos e conflitos, com
o objetivo de transformar sua realidade de vida.

Vistos pela lente histórica, esses movimentos socioterritoriais apresentam


dinâmicas específicas e diferenciadas, segundo os tempos e espaços regionais e
locais onde acontecem. São diferentes processos históricos de territorialização,
desterritorialização e reterritorialização. Vamos olhar mais de perto essas noções.
Por desterritorialização podemos entender os efeitos de extermínio, de
expropriação, de deslocamento forçado e ruptura das relações sócio-históricas,
que destroem a integridade da relação entre a base material e cultural das
populações sobre as quais se aplicam. Como exemplo, temos os efeitos das políticas
coloniais da fase de acumulação primitiva do sistema do capital, quando, em
diversos países, os camponeses europeus foram expulsos de suas terras para
permitir a reorganização produtiva que deu origem ao modo de produção
capitalista; ou o avanço contemporâneo do neocolonialismo capitalista sobre as
terras dos povos tradicionais no campo (na diversidade de situações indígenas,
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quilombolas e camponesas), causando a perda do acesso aos meios de produção, e


a perda das referências culturais e do modo de vida.

A reterritorialização se refere aos processos pelos quais populações


expropriadas (ou ameaçadas de expropriação) de sua base material rural engajam-
se em movimentos de re-apropriação, tais como os quilombos, as ocupações de
terras improdutivas por populações urbanas migrantes que perderam suas terras,
a retomada de terras violentamente apropriadas por agentes externos (nos casos
de terras indígenas, por exemplo) e a luta por criação de unidades de conservação
de uso sustentável, como as reservas extrativistas amazônicas.

A reterritorialização camponesa
O processo histórico de reterritorialização dos povos do campo é
fundamental para uma redefinição do modelo de desenvolvimento para o campo e
sobre o projeto de nação daí decorrente.

A noção de reterritorialização ajuda a compreender o momento histórico


atual da territorialidade do campo brasileiro. Trata-se de um processo histórico
intrínseco ao contexto neocolonial da luta pela terra, e que se manifesta
principalmente a partir da década de 60, com a reação dos movimentos do campo à
re-ordenação neoliberal do mercado de terras e das relações agricultura-indústria
e campo-cidade, sob a hegemonia do capital globalizado.

Um olhar atento à realidade do campo permite distinguir as múltiplas


estratégias de reterritorialização camponesa e a luta dos povos tradicionais do
campo pela re-definição estratégica de seus territórios, com seus modos de vida e
conhecimento específicos.
As situações concretas atualmente existentes no campo brasileiro
apresentam formas muitas vezes degradadas em relação ao modo de vida
camponês, devido ao impacto predatório e colonialista do modelo capitalista
hegemônico e à precariedade com que a Reforma Agrária está sendo feita no Brasil.
Por outro lado, existem formas incipientes e altamente complexas que estão sendo
construídas pelos povos do campo em sua luta de resistência e afirmação de um
novo projeto de campo para o Brasil.
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Nesse sentido, o conceito de reterritorialização implica em uma visão


histórica da luta de classes no campo para que se compreenda o momento atual. A
territorialidade que resulta das lutas por reterritorialização dos povos do campo
produz visibilidade, poder e legitimidade às lutas dos sujeitos do campo, no
diálogo e negociação por políticas públicas de desenvolvimento rural sustentável.

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http://www.geografia.fflch.usp.br/publicacoes/Geousp/Geousp15/Artigo8.pdf

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