Você está na página 1de 19

Novas práticas do campesinato na fronteira agropecuária na

Amazônia: seringueiros do Alto Acre no limite entre


preservacionismo ambiental e subsunção ao capital1
João Maciel de Araújo (Instituto Federal do Amazonas – IFAM)

Introdução

Frequentemente representações sobre a Amazônia são permeadas pela imagem de um


lugar mítico e místico, fascinando quem a conhece através da mídia, ou por breves passagens
pelas capitais dos Estados da Amazônia Legal. Despretensiosas, na aparência, este tipo de
representação é marcado pela exaltação de imagens que remetem ao exotismo, à magia, a
rituais sagrados, em que o ser humano é totalmente impotente diante da potência da natureza
ou da potência de deuses e xamãs. Algumas vezes próximos, e paradoxalmente distantes,
cientistas, políticos ufanistas e empresários (homens de negócios), tentam encontrar um ponto
para se firmarem neste suposto deslumbrante universo colorido e úmido, que estaria ao gosto
das conquistas e da glorificação de heróis de todas as áreas.

A Amazônia colocada nestes termos sugere que tudo que aí se investiga conduzirá, e é
conduzido, por sujeitos de outra ordem, estranhos e à margem das relações e conflitos das
sociedades modernas. De um lado uma visão do rude, do atrasado e incapaz, do outro, o bom
selvagem, aquele tipo único, capaz de conectar-se com a natureza vivendo uma simbiose
constante e harmoniosa. No plano humano, por vezes ainda imersa no campo da sacralidade, a
Amazônia se constitui como território em disputa. Lugar no qual se desenrolam uma miríade
de encontros e desencontros no tempo e no espaço: o europeu “civilizado” que encontra,
diverge, repele e acredita que os “selvagens” têm que mudar seu modo de vida; séculos depois
o reencontra e conclui que ele (o civilizado) deve agora adotar os pontos de vista e os modos
de viver do “selvagem”; o seringueiro subsiste primitivamente embrenhado no mundo
selvagem, enquanto sua vida é dedicada ao desenvolvimento revolucionário da
industrialização de um remoto mundo moderno; um século depois o mundo moderno,
industrializado, o alcança e o quer aniquilar; décadas depois o seringueiro incorpora artefatos
do mundo moderno ao seu cotidiano. Desta ótica, a Amazônia não possui uma dinâmica

1
44º Encontro Anual da ANPOCS – GT45 - Transformações rurais no Brasil e no mundo – desafios para a
política e para as ciências sociais.

1
diferente, pois aqui, também se processam as contradições humanas e dilemas sociais,
múltiplas alteridades, como em qualquer parte do planeta.

Conceber a Amazônia como construção social é perceber uma parte do continente


americano que há mais de 500 anos é povoado por agrupamentos que tiveram suas lutas por
territórios modificadas pela intrusão do colonizador que o dividiu em diferentes nações
ignorando territorialidades preexistentes. É perceber um colonizador que foi empurrado,
levado em diferentes correntes (às vezes acorrentado), de todos os lados
e terras, desembarcou de navios, de caminhões, ônibus, trens e avião. Seu destino, ponto de
chegada, é mais perto ou mais remoto, às vezes em constante movimento/deslocamento,
dependendo das lutas sociais que trava em seu cotidiano.

Apesar de remeter à Amazônia, o que diante da tradição literária e até acadêmica


corre o risco de ser interpretado sob estas perspectivas mais abstratas e generalizantes, esse
trabalho quer verificar o cerne das relações sociais que efetivamente se passam em territórios
localizados nos municípios de Assis Brasil, Brasiléia, Capixaba, Epitaciolândia e Xapuri, que
compreendem a região do Alto Acre2. Olhando de fora, da perspectiva objetivante, podemos
dizer que neste trabalho se aborda um aspecto isolado, de um pequeno grupo social, de uma
limitada porção do espaço e num breve período de tempo. Olhando de mais perto podemos
dizer que falaremos de resistência, direitos, cooperação, conflito, reconhecimento e liberdade.
E olhando de dentro, diríamos que estamos falando de trabalho, família, fé, coragem, alegria,
tristezas, raiva, companheirismo e valentia. Seguramente serão levantados aspectos singulares
em relação ao que já foi dito, mas que seriam apenas singularidades como outras a serem
descobertas em qualquer estudo datado e situado geograficamente.

Este trabalho versa sobre sujeitos de um grupo sociocultural cuja trajetória representa
legitimamente os processos sociais que se desenrolam há aproximadamente um século e meio
numa área da Amazônia brasileira, aqui tomada como na atualidade sendo um caso da
expansão da fronteira agropecuária. Nossa pesquisa buscou identificar e discutir mudanças
socioculturais ocorridas a partir da segunda metade da década de 1990, após a criação de
Reservas Extrativistas na região do Alto Acre, como resultado da resistência dos seringueiros.
Nosso maior desafio é contribuir para a compreensão da direção, a profundidade, o ritmo e os
processos que geram tais mudanças.

2
Segundo estimativa do IBGE, em 2020 estes municípios tem população aproximada de 84.536 habitantes, o
que representa cerca de 9,5% da população do estado do Acre.

2
Movimento social expressivo de luta pela terra no Brasil, durante o último quartel do
século XX, a organização dos seringueiros do Acre e sua reivindicação pela demarcação de
Reservas Extrativistas, se transformou num emblemático caso de luta pela preservação
ambiental de maneira geral e da Amazônia em particular. Após três décadas da criação das
primeiras Reservas na região do Alto Acre, se tornam cada vez mais frequentes os
questionamentos e ataques por parte do agronegócio sedento de terras, e da imprensa, à
legitimidade e viabilidade socioeconômica e ambiental destes territórios legados ao usufruto
dos seringueiros. Este trabalho apresenta evidências e discute mudanças nas práticas
econômicas, sociais, culturais e políticas de seringueiros que vivem em Reservas da região do
Alto Acre. Há especial atenção à margem de liberdade construída pelos seringueiros a partir
da tensão entre exigências da legislação ambiental e pressões decorrentes da expansão do
agronegócio da pecuária bovina de corte.

Buscamos embasar o trabalho em orientações teóricas que se dedicam a explicar os


processos próprios da sociedade de fronteira, visto ser esta uma inegável realidade da região
estudada. Procuramos interpretar as práticas dos sujeitos aqui considerados, segundo os
pressupostos de uma teoria relacional, para a qual os diferentes agentes do espaço social
travam intensas disputas para dominar os diferentes campos que constituem tal espaço
(BOURDIEU, 2010). O estudo é referenciado empiricamente em 4 comunidades de
seringueiros, de 4 territórios de Reservas Extrativistas – Resex3 localizadas em municípios da
região do Alto Acre, no estado do Acre, porção sul-ocidental da Amazônia brasileira. Com
enfoque temporal que se inicia a partir da segunda metade da década de 1990, foi realizada
revisão de literatura, pesquisa documental, observações diretas e entrevistas a diversos
agentes envolvidos com o problema abordado, entre os anos de 2018 e 2019.

Além desta introdução, o trabalho é composto de 3 seções: na primeira buscamos


trazer elementos que revelam as estruturas em que estavam inseridos os seringueiros e a
configuração do rural no Alto Acre quando iniciam a busca pela criação de reservas
extrativistas; na segunda buscamos situar a relação estabelecida entre seringueiros e o
movimento ambientalista; e na terceira, trazemos apontamentos que realçam o novo rural no

3
Do ponto de vista jurídico-legal, Reserva Extrativista é a Unidade de Conservação vinculada ao Sistema
Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, cuja responsabilidade administrativa é do ICMBio. Contudo, no
âmbito deste trabalho, esta também é a designação para os Projetos de Assentamento Agroextrativistas – PAEs,
vinculados à Política Nacional de Reforma Agrária, portanto, sob responsabilidade do INCRA. Esta decisão de
cunho exclusivamente analítico, se dá em razão de aspectos históricos e culturais comuns a ambas as
modalidades territoriais, do ponto de vista seus moradores. Os PAEs são as primeiras Reservas Extrativistas a
serem reconhecidas pelo Estado brasileiro e assim são classificados até hoje por parte de seus moradores. Para
entender melhor ver: Allegretti (2002).

3
Alto Acre, após a criação das reservas extrativistas. Concluímos que os seringueiros recriaram
sua condição camponesa, dando nova feição à ruralidade do Alto Acre. O comunitarismo
seringueiro como proteção; a necessidade de criar formas de partilha e sucessão; a
configuração de tipo translocal das famílias; e a adoção de atividades vinculadas ao capital na
fronteira, são indícios do enfrentamento a forças que lhes são contrárias e da construção de
inovações sociais, culturais e políticas. Esta geração de seringueiros não é menos relevante
para a luta do campesinato brasileiro, do que aquela que batalhou diretamente para a criação
das reservas extrativistas.

1. Antecedentes: seringueiros e o Rural no Alto Acre pré-reservas extrativistas

Durante a década de 1980, quando os seringueiros se colocavam no debate nacional


sobre reforma agrária e iniciavam contato com a problemática ecologista, o núcleo
argumentativo de seu discurso, e de seus aliados, era a denúncia sobre a exploração e a
exclusão a que estiveram submetidos por um século, primeiramente em razão das
contradições inerentes ao sistema de aviamento, que ordenava a produção de borracha natural
na Amazônia e, consequentemente, determinava a posição dos diferentes grupos no espaço
social de então e depois pela violência dos fazendeiros incentivados pelo desenvolvimentismo
dos governos militares.

Numa entrevista concedida ao antropólogo Beto Ricardo e ao indigenista André Villas


Boas em maio de 1989, por ocasião do lançamento de uma campanha da Aliança dos Povos
da Floresta, Ailton Krenak, na ocasião junto ao líder seringueiro Osmarino Amâncio, do
município de Brasiléia (AC), justificava a aproximação contraditória que os indígenas
estabeleciam com os seringueiros. Após uma série de respostas que deixava clara a
pertinência da aliança, Krenak é provocado pelo antropólogo Beto Ricardo:

[...] Beto: E eu entendo que os índios têm uma cultura milenar na floresta, estão
acostumados a viver com ela, sem reclamar dela ser uma vida áspera; agora, eles
[seringueiros] reclamam muito de aspereza. Então, uma parte do que eu tenho que
perguntar é para eles [seringueiros], mas para os índios que quero saber o seguinte:
vocês vão amarrar seu burro numa aliança com uma categoria social que reclama
tanto da aspereza da vida na floresta que às vezes eu fico pensando que eles estão a
fim de sair fora, como outras categorias camponesas que uma vez tendo o
reconhecimento, por exemplo, de direitos territoriais e outras coisas, venderam e se
mudaram para a cidade. Então, como é que você sente de fato a presença e a
consistência desses aliados?
Krenak: Bom, em primeiro lugar eu queria dizer o seguinte, nós estamos com uma
bola tão cheia hoje que se a gente quisesse fazia aliança com a UDR, eu podia fazer
uma aliança com a FIESP, eu não procurei o Mário Amato para fazer uma aliança,
nem o Ronaldo Caiado, eu procurei o Chico Mendes para fazer uma aliança
exatamente porque nós podíamos estender a mão para os seringueiros, para eles
terem acesso àquilo que a humanidade tem, a compreensão que a humanidade tem

4
de direitos. Porque esse povo era escravo até outro dia, em algumas regiões da
Amazônia eles ainda são escravos, escravos por dívidas, você é capaz de encontrar
em alguns seringais gente que é ferrado, a ferro, igual burro, na pele deles. Eu acho
que o aspecto talvez mais generoso da Aliança dos Povos da Floresta, é que ela não
é uma aliança de interesses escusos, ela é uma aliança entre povos, povos que
querem se proteger e que juntos querem proteger a floresta, querem proteger a
natureza. Nós não fizemos essa aliança com os seringueiros porque nós somos
obrigados ou precisamos, nós fizemos essa aliança porque nós queremos que os
seringueiros avancem cada vez mais nessa situação compreensão, que eles já
mostraram que tem, de que a floresta não é um lugar onde eles passam, é um lugar
onde eles vivem.
Beto Ricardo: Mas você não acha que eles vivem lá por falta de alternativa? Quer
dizer, eles receberam passagem de ida, foram esquecidos no meio da floresta e
vivem reclamando que não têm saúde, não têm escola, não têm acesso ao mercado,
não têm porra nenhuma e que eles só sabem cortar seringa e são analfabetos. Bom,
eles não têm alternativa. Eu quero saber se na medida em que eles tiverem
alternativa, se eles não vão abandonar isso.
Krenak: Esse povo não só tem alternativa como esse povo é o único que está
propondo alternativas para aquela região da Amazônia.
Beto Ricardo: Qual é?
Krenak: A alternativa que eles estão propondo é a não aceitação da retalhação da
floresta, o estabelecimento das Reservas Extrativistas, assegurar para essas Reservas
Extrativistas um suporte tecnológico, um suporte político, institucional, em que eles
possam realizar ali dentro das Reservas Extrativistas o seu projeto social, educar
seus filhos, criar seus filhos. Eles esboçaram um programa de educação na rede de
escolas de floresta, eles esboçaram um programa de saúde dos seringueiros. Eles não
estão pedindo INAMPS lá dentro, eles não estão pedindo INCRA lá dentro, pelo
contrário, eles pediram para o INCRA sair de lá de dentro. Então dizer que esse
povo não tem alternativa é desconhecer a formulação que eles estão fazendo desde o
final da década de 70, batendo em tudo quanto é porta, insistindo de quererem viver
ali. E eu te digo o seguinte, os seringueiros não estão na Amazônia porque foram
mandados para lá só com a passagem de ida, eles estão sendo chutados da Amazônia
a coturno no rabo todos os dias, eles estão pegando a bota dos caras e mordendo. Eu
já vi seringueiro mordendo na bota de quem está chutando eles de lá, agarrado o
dente na bota, dizendo: eu não vou sair daqui não. E dizer que eles estão só
esperando uma passagem para vir embora de lá, é desconhecer também que eles têm
morrido lá para ficar lá, e não são só as lideranças do Movimento dos Seringueiros
que têm morrido, não é só Chico Mendes, não é só os outros companheiros, o
Wilson Pinheiro, não só esses mais assim, ilustres companheiros que são mortos lá
no meio do mato, que os patrões deles matam eles lá todos os dias. Se você
observar, você vai ver que na verdade os seringueiros têm muito mais transporte,
têm muito mais passagem de volta para cá do que os nordestino têm para sair da
Paraiba. Eu te digo o seguinte, não é por falta de passagem de volta que os
seringueiros estão na Amazônia, o coração deles está lá. E eu acho que eles
repetiriam tranquilamente aquela frase do nosso parente norte-americano: “enterrem
meu coração na curva desse rio”. Eu acho que eles querem que o coração deles fique
lá nos seringais, por isso que eles não estão vindo para São Paulo. Agora, isso não
significa de maneira nenhuma desconhecer a aspereza da vida que eles vivem,
afinal de contas só tem, em alguns casos, seis anos, oito anos, ou dez anos que eles
saíram de sob a chibatada de um patrão, patrão no sentido Senhor, dono. Os negros,
segundo narra a história do Brasil, foram libertos em 1888, eu continuo vendo a
maior parte deles aí com saudade da Senzala, porque você estranha que os
seringueiros tenham saudades do patrão? (Fragmento transcrito de COHN, 2015, P.
62-64).
Esta fala, que nos poupa de maiores esforços para situar em perspectiva histórica o
seringueiro no contexto social, econômico, político e cultural da Amazônia e do Brasil, é

5
anterior a criação da Reserva Extrativista Chico Mendes, uma área de aproximadamente
970.000 hectares, que somou-se a Projetos de Assentamento Extrativistas4, colocando cerca
de 1.090.000 hectares de terra para o uso de milhares de famílias de seringueiros da região do
Alto Acre, que se encontravam ameaçadas de expulsão pelo projeto dos governos estadual e
federal, pois objetivavam destinar estas terras para a implantação de fazendas de gado de corte
por empresários subsidiados com recursos públicos. A reação dos seringueiros neste período
mudou sobremaneira a estrutura fundiária que predominava no Alto Acre e na maioria das
regiões afetadas no processo de alargamento da fronteira agropecuária (ARAÚJO, 2019).

A exemplo das demais regiões produtoras de borracha natural, mas com as


singularidades de seu processo de anexação ao Brasil, a estrutura fundiária do Acre
caracterizava-se pela acentuada concentração de terra pelos seringalistas (donos de seringais),
sendo o seringueiro, a rigor, um morador em situação instável, sujeito às vontades daqueles
que eram reconhecidos pelo Estado como legítimos proprietários. Neste contexto, apesar de
nos momentos de declínio do sistema de produção da borracha desenvolverem formas de
convivência com a floresta que iam além da mera produção de borracha (ALMEIDA, 2004),
os seringueiros se mostravam extremamente dependentes das elites econômicas e políticas
locais, levando uma vida marcada pela escassez (ALLEGRETTI, 2002).

Ao longo dos anos o contexto rural no Alto Acre esteve reduzido às tramas do sistema
de aviamento para produção da borracha, que informava a vida de um seringueiro desde o
nascimento. Os agentes que constituíam o rural (em que pese a partir dos anos 1960 a
emergência de agricultores ribeirinhos situados mais próximos aos núcleos urbanos) estavam
posicionados em torno do funcionamento do sistema de aviamento. Na medida em que
desmantelava-se tal sistema, tal qual funcionava quando a borracha da Amazônia supria
praticamente cem por cento do mercado mundial (até a primeira metade da década de 1910),
ocorriam tímidos ajustes no arranjo social e político da economia da borracha e da sociedade
local em geral. Mas a condição de extrema subalternidade relativa dos seringueiros mantinha-
se inalterada.

4
A reserva extrativista Chico Mendes possui porções de áreas menores que estão localizadas em municípios que
não são geograficamente pertencentes ao Alto Acre, como Rio Branco e Sena Madureira. Mas a maior parte de
seu território e da população está distribuída nos municípios de Assis Brasil, Brasiléia e Xapuri.
Os Projetos de Assentamento Agroextrativistas foram inicialmente nomeados pelo INCRA como Projetos de
Assentamento Extrativistas, que conforme já mencionamos, do ponto de vista dos seringueiros do Alto Acre,
eram, e ainda são, Reservas Extrativistas. No Alto Acre os PAEs, são: PAE Remanso, no município de
Capixaba; PAE Chico Mendes (conhecido como Cachoeira), e PAE Equador, no município de Xapuri; PAE
Porto Rico, no município de Epitaciolândia; e PAE Santa Quitéria, no município de Brasiléia.

6
Quando as rodovias, os títulos fundiários e créditos oficiais oferecidos pelos governos
a empresários do centro-sul, abrigados sobre a ideologia desenvolvimentista, desabaram sobre
a rotina dos seringueiros desta região da Amazônia, a partir dos anos 1970, a princípio as
alternativas foram migrar para a Bolívia e tentar continuar a viver precariamente do
extrativismo, ou ajustar-se a vida numa parcela de mais ou menos 80 hectares, em
Assentamentos do INCRA, ou ainda mudar definitivamente para as cidades (ESTEVES,
2010). Neste momento começa a se desenhar um arranjo social que refletia o modelo de
expansão da fronteira agropecuária tal como o planejado: grandes fazendas de gado, com mão
de obra abundante a ser superexplorada; e algumas áreas destinadas ao assentamento de
agricultores familiares migrantes, em projetos do INCRA.

É neste contexto, porém, que se inicia um movimento de resistência que articulou


pressupostos da ação católica pautada na Teologia da Libertação, sindicalismo rural,
contestação ao regime autoritário e, um pouco mais tarde, a crítica ecologista. Catalisando
elementos da experiência camponesa que florescera nos momentos de decadência do sistema
de produção de borracha, as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, no âmbito da Prelazia
do Acre e Purus, se transformaram na célula básica para um vigoroso processo de resistência
que resultou na criação das Reservas Extrativistas, bem como na participação dos seringueiros
no campo político e nas disputas eleitorais municipais, recém saídas da condição de áreas de
interesses da segurança nacional com o fim da ditadura militar, especialmente através do
Partido dos Trabalhadores (ARAÚJO, 2018).

2. Seringueiros e o ambientalismo no processo que originou reservas extrativistas no


Alto Acre

O título desta seção se refere ao Alto Acre, mas não se deve perder de vista que esse
processo, que originou diretamente os territórios que analisamos empiricamente, é parte
importante do debate nacional sobre Reservas Extrativistas. Allegretti (2002) esclarece que a
aproximação entre os seringueiros e o movimento ambientalista internacional após 1985 se
deu de maneira a conferir respaldo social às críticas dos segundos ao desastre ecológico que
resultava das ações de bancos internacionais em países do terceiro mundo, ao mesmo tempo
em que conferia poder às demandas por terra dos primeiros. Ou seja, a leitura que os agentes
favoráveis às causas dos seringueiros, à época, era a de que segmentos sociais historicamente
excluídos, reivindicando terras nos marcos das bandeiras por reforma agrária, não alcançariam
pressão suficiente para redirecionar as políticas fundiárias dos governos, de maneira que a
preservação do modo de vida dos seringueiros não seria alcançada. Neste sentido, foi

7
acentuado o destaque sobre o componente ecológico do modo de vida dos seringueiros,
ganhando ainda mais relevo após o assassinato de Chico Mendes em 1988.

Assim, as organizações dos seringueiros, notadamente o Conselho Nacional dos


Seringueiros – CNS (mas também os Sindicatos de Trabalhadores Rurais), estreitaram os
laços com o movimento ambientalista e passaram a lutar deliberadamente pela criação de
reservas extrativistas: territórios inalienáveis, mantidos sob domínio do poder público,
concedidos à organizações de representação coletiva, onde se mantém o formato de
“colocações de seringas” como unidade espacial para a reprodução das famílias5. Tais
organizações encamparam também a articulação por políticas e alternativas tecnológicas de
valorização da borracha e da castanha, bem como a prospecção de outros produtos da floresta
(ALLEGRETTI, 2002; ESTEVES, 2010). A política ambiental brasileira reconheceu as
reservas extrativistas, ao passo que no âmbito do Sistema Nacional de Unidades de
Conservação – SNUC as classificou na modalidade de Unidades de Conservação de Uso
Sustentável, em contraposição às Unidades de Conservação Integral. De maneira geral, e
diríamos simplória, nos documentos oficiais, as reservas extrativistas são conceituadas como
territórios destinados a reprodução social de populações tradicionais, com base no
extrativismo de recursos naturais renováveis6.

Os campos acadêmico, jornalístico, do desenvolvimento (como campo de poder), entre


outros, repercutiram, cada um a sua maneira, esta vertente da luta dos seringueiros, que foi
associada ao então emergente debate sobre o desenvolvimento sustentável, como um
paradigma diferente, preconizando a conciliação entre economia e conservação ambiental.
Sem dúvida bem sucedida quanto à contenção da apropriação privada de terras por grupos
empresariais, e aumento de capital simbólico entre seringueiros, a vinculação das reservas
extrativistas à causa ambientalista gerou uma série de resultados que, em última análise,
foram capturados pelos grupos dominantes da economia, repercutindo na forma de
constrangimentos às práticas dos seringueiros. Como exemplo, pode-se citar o caso do
chamado “manejo florestal madeireiro comunitário”, que compele os moradores destas áreas a

5
Em termos de tamanho, uma Colocação de Seringa compreende uma área de aproximadamente 300 hectares.
Sobre Colocações de Seringa, ver: ALMEIDA, M. W. B. As colocações: forma social, sistema tecnológico,
unidade de recursos naturais. In: Mediações, Londrina, v.17, n.1, (Dossiê – Amazônia: sociedade e natureza).
p. 121-152, Jan./Jun. 2012.
6
No âmbito do INCRA, os Projetos de Assentamento Agroextrativistas – PAEs, classificados no grupo de
“Projetos Diferenciados” (a exemplo de Projeto Casulo, Projeto de Desenvolvimento Sustentável – PDS, Polos
Agroflorestais, etc.) também seguem os mesmos princípios de gestão ambiental e fundiária e são definidos pelo
primado da produção extrativista como meio de manutenção das famílias.

8
cederem a preços irrisórios os estoques madeireiros a empresas capitalistas exportadoras de
matéria prima, sob o argumento de que se estaria combatendo a ilegalidade da atividade.

Em razão das representações que nos dias atuais os moradores de áreas de reservas
extrativistas (uma geração nascida sob esta nova realidade) fazem de suas ações,
independentemente desta virada ecologista que passou a permear as lutas dos seringueiros,
acreditamos ser pertinente recordar o que afirmaram Hébbet e Moreira (2008), quando
chamam a atenção para uma característica central dos camponeses da Amazônia, qual seja, a
de portadores de uma utopia fundamental de liberdade, de legar um pedaço de chão a seus
descendentes. Na relação deste tipo camponês amazônico especificamente com o
ambientalismo, os autores alertam que é fundamental ter em mente que a utopia camponesa,
ou em suas palavras, “a incrível utopia seringueira”, se distingue do pensamento ecológico
das grandes instituições oficiais da conservação ambiental pautadas numa tentativa, em última
análise, de salvar o modo de produção capitalista. A utopia camponesa, e a utopia seringueira
como uma de suas expressões, tratam de preservar modos de vida em harmonia com a
natureza. “Uma utopia revolucionária em torno da qual se cruzam camponeses e cientistas”
(HÉBBET e MOREIRA, 2008, p.102).

Deste ponto de vista e consubstanciado nas práticas e representações do campesinato


vinculado as reservas extrativistas do Alto Acre, nos dias que correm, não se pode negar que o
componente ecológico foi fundamental para o surgimento do seringueiro como categoria
política (identitária), que extrapolou uma designação profissional (de extrator de látex). Mas
pode-se, entretanto, recolocar as reservas extrativistas como expressão das lutas do
campesinato pela terra, portanto, no âmbito do debate da questão agrária brasileira, que no
século XXI opõe o projeto ruralista do agronegócio ao da produção camponesa. As práticas
atuais de partilha e sucessão geracional dos patrimônios familiares no interior das reservas
extrativistas, muitas vezes ao arrepio dos estatutos e regras estipuladas por uma legislação
orientada pela ideologia ambientalista de conservação de recursos naturais para atendimento
de interesses econômicos controlados por grupos capitalistas, não é outra coisa senão uma
versão da luta pela terra. É, pois, expressão da luta que não raro involuntariamente, o
campesinato trava contra o capital expropriador (MARTINS, 1996).

3. Seringueiros e o Rural no Alto Acre após a criação das reservas extrativistas

Embora tornada uma saída viável para a resolução de demandas territoriais históricas
de populações camponesas e pescadores (através das Reservas Extrativistas Marinhas) em

9
outros estados do Brasil, muito do que então se vislumbrava sobre reservas extrativistas
enfrenta obstáculos de difícil transposição, pois são de ordem política. Nas três décadas que
nos separam da entrevista de Ailton Krenak e Osmarino Amâncio, aprendemos que a
viabilidade da reserva extrativista, como era então concebida, no tocante ao que depende do
Estado, conformando um modelo original de desenvolvimento que não é o da fronteira
agropecuária, tampouco o do “desenvolvimento sustentável” – que acabou sendo capturado
pelos agentes hegemônicos da economia –, é exigida uma articulação de diferentes políticas e
um complexo arranjo institucional englobando todas as esferas do poder: por um lado devem
ser atendidas as necessidades básicas de apoio a produção, serviços de assistência social e etc.
das populações residentes nestas áreas; o que implica, por outro lado, na necessidade de
conter a voracidade por recursos naturais e riqueza social por parte daqueles que se opõem a
tal concessão. O resultado tem sido a renovação constante das estratégias empregadas nas
disputas entre os grupos antagônicos.

Mesmo quando referidas a Amazônia, há de se considerar a diversidade de situações


em que se criaram reservas extrativistas, o que implica desdobramentos também diversos.
Para além da relevância ecológica, todas compartilham uma história de enfrentamento e
resistência coletiva contra abusos de poder econômico e político. Almeida (2004) enfatiza a
diferença nos eixos estruturadores das mobilizações de seringueiros que resultaram na criação
da reserva extrativista do Alto Juruá (extremo oeste do estado do Acre), hoje município de
Marechal Thaumaturgo e da reserva extrativista Chico Mendes, no Alto Acre: no primeiro
caso, tratou-se de uma luta pelo fim do pagamento de renda a supostos proprietários dos
seringais; no segundo, tratava-se da luta pelo fim do processo de expulsão que os fazendeiros
levavam a termo. Do ponto de vista da localização geográfica, a reserva do Alto Juruá
encontra-se relativamente distante de rodovias, enquanto a Resex Chico Mendes (e outros
PAEs considerados neste trabalho) está à poucos quilômetros de distância da rodovia BR-317,
que compõe a malha rodoviária que interliga o Acre ao centro-sul do país.

Neste sentido, no caso do Alto Acre, apesar da criação das reservas extrativistas terem
atrapalhado os planos dos governos e fazendeiros, o fato não interrompeu em definitivo o
padrão do fluxo de mercadorias e pessoas, entre a região e o restante do mundo, que se
iniciava com a abertura das rodovias. Sendo assim, o Alto Acre transformou-se numa região
onde, do ponto de vista do capitalismo autoritário (VELHO, 2009), se sobrepõem desde então
dois modelos de desenvolvimento: um inaugurado com a ascensão do discurso do
desenvolvimento sustentável, capturado pelos agentes hegemônicos da economia; mas

10
também aquele cuja implantação iniciara-se anteriormente, com os governos militares: o
modelo da expansão da fronteira agropecuária através da pecuária bovina de corte. Há, no
entanto de se destacar que nesta região, o desdobramento do modelo de expansão da fronteira,
apesar de manter-se agraciado por vultuosos recursos de políticas creditícias e tributárias no
correr destas três décadas, guarda profundas diferenças do que se seguiu em regiões
adjacentes, como no caso da zona de influência da rodovia BR-364, sentido Porto Velho
(RO)/Rio Branco (AC), e na própria zona de influência da rodovia BR-317, no caso do
município de Boca do Acre (AM).

Nas áreas situadas diretamente nas zonas de influência das rodovias, o modelo da
expansão da fronteira agropecuária operou a valorização e, portanto, acentuou as disputas por
terras para a criação de gado bovino (geralmente precedida da retirada total da madeira com
valor de mercado). Esta afirmação é facilmente confirmada pelos Relatórios de Análise de
Mercado de Terras – RAMT, produzidos pelas Superintendências do INCRA sobre preços de
terras, mas também pelos dados levantados anualmente pela Comissão Pastoral da Terra –
CPT, que desnuda a persistência da violência no campo século XXI à dentro, com expulsões
de famílias e assassinatos de líderes camponeses nos Estados da Amazônia Legal. Mas
trazemos dois exemplos que revelam outras práticas (igualmente violentas) utilizadas por
ruralistas para a expropriação de trabalhadores, ao mesmo tempo em que se revela a diferença
da situação do campesinato do Alto Acre em relação às outras áreas.

No município de Boca do Acre (AM), é conhecida a prática de um fazendeiro,


empresário ligado a políticos do Amazonas, envolvido em esquemas de corrupção de agentes
públicos para grilagem de terras e desmatamento ilegal7, condenado por trabalho escravo
e etc., que fazia contratos com cláusulas abusivas para forçar assentados do INCRA no
PA Monte a lhe venderem seus lotes. O fazendeiro oferecia vacas para criação em regime de
arrendamento, com a condição de que o assentado que arrendasse o pasto, lhe entregasse 40%
do total de crias das vacas após um período de 4 anos. O detalhe é que uma cláusula do
contrato, que apesar de abusivo em vários casos foi reconhecido como legítimo em ações
judiciais, determinava que os 40% teriam de ser de animais machos, de maneira que o não
cumprimento daria o direito ao fazendeiro forçar a liquidação da dívida a partir da
apropriação do imóvel do assentado, pagando-lhe a diferença. O agente da CPT de Boca do
Acre estima que ao longo de mais ou menos uma década, utilizando este mecanismo, o

7
Mais informações sobre denúncias de desmatamento, nesta nota de 2019, na página do Ministério Público
Federal no Amazonas: https://mpf.jusbrasil.com.br/noticias/723344193/operacao-ojuara-mpf-denuncia-22-
envolvidos-em-crimes-ambientais-no-ac-e-no-am.

11
fazendeiro tenha se apropriado de cerca de 300 lotes do assentamento, perfazendo em torno de
30.000 hectares.

No estado de Rondônia, reservas extrativistas criadas na década de 1990 sofrem


ataques ininterruptos por parte de grupos poderosos. Atente-se especialmente ao exemplo
da Resex Estadual Jaci-Paraná, criada em 1996, localizada próxima à rodovia BR-364 sentido
Porto Velho/Rio Branco, cuja entrada e estabelecimento de fazendeiros são denunciadas pelo
alto nível de desmatamento atingido (em torno de 50%). Ali, tanto os fazendeiros coagem
aqueles que teriam direito ao território, que em muitos casos se apavoram e deixam o lugar,
quanto agem através da política, buscando reduzir sua área original, a ponto de, em 2014, a
Assembleia Legislativa de Rondônia editar um Decreto de revogação da criação da Resex8.
Segundo dados do Instituto Socioambiental, até o ano 2000, a área desmatada na Resex era de
778 hectares e em 2017, atingia 98.665 hectares de área desmatada, além de relatos de
retirada de madeira ilegal (estima-se em mais de 1 milhão de metros cúbicos). Além
da Resex Jaci-Paraná, pode-se pensar também no caso da Resex Federal Rio Ouro Preto, em
Guajará Mirim (RO), que em 2018 teve seu tamanho reduzido a pedido de fazendeiros, sob a
justificativa do Senado Federal de que a área seria compensada pela ampliação da Resex do
Lago Cuniã, localizada a centenas de quilômetros de distância.

Ou seja, no primeiro caso, o fato de não ter sido criada uma reserva extrativista,
embora “garantida” a destinação de terras para camponeses através de projeto de
assentamento em lotes individuais (o PA Monte), permitiu que a terra fosse reconcentrada por
um latifundiário; no segundo caso, embora criadas reservas extrativistas, houve a intrusão das
áreas por fazendeiros e madeireiros, sem o mínimo de respeito aos direitos dos camponeses,
que seriam legítimos detentores do domínio do uso das terras. Em ambas as situações é
patente a conivência das instituições do Estado. Ambas as situações são exemplos de pressões
a que também estiveram expostos os camponeses moradores das áreas de reservas
extrativistas no Alto Acre, sem, contudo, registrarem-se desfechos com desta magnitude.

Certamente apresentando pontos divergentes em relação ao que ambientalistas


intencionavam e mesmo em relação à proposta de reservas extrativistas segundo um modelo
original de desenvolvimento pautado na reprodução social a partir da valorização do
extrativismo, os seringueiros do Alto Acre lograram manterem-se na terra durante este
período, articulando uma inserção na cadeia da pecuária bovina de corte (criando e vendendo

8
Em maio de 2019 o Tribunal de Justiça de Rondônia decidiu pela improcedência do Decreto Legislativo que
pedia o fim da Resex.

12
bezerros a intermediários e comercializando matrizes entre si e com açougueiros locais) a
benefícios de direitos de acesso a bens e serviços sociais conquistados junto às estruturas do
Estado (serviços médicos, escolas, melhoria das vias de circulação, acesso a energia elétrica e
melhores condições de moradia, etc.) e ainda alguns benefícios de subsídio ao extrativismo de
látex e castanha do Brasil. Apesar da imprecisão e divergências (ou mesmo inadequação) de
dados numéricos para análises destes casos, cabe registrar que levantamentos dos órgãos
responsáveis pela gestão da Resex Chico Mendes, indicam que o número de famílias saltou de
1.092, no ano de 1998, para cerca de 3.100, em 2019, devido, majoritariamente, as uniões
matrimoniais das sucessivas gerações de seringueiros9.

A proximidade dos seringueiros do Alto Acre, por meio de seu vigoroso


comunitarismo, com os governos do PT, embora permeada de ambiguidades, conferiu um
ambiente de segurança durante duas décadas, de maneira que tornou-se inimaginável que
algum fazendeiro se instalasse no interior das reservas extrativistas praticamente sem
contestação, tal como se verifica no caso da Resex Jaci-Paraná.

A utopia camponesa fundamental, de legar melhores condições de vida às gerações


seguintes rebate sobre as práticas dos seringueiros de maneira que as gerações atuais cultivam
os recursos buscando não esgotá-los tal qual se constata nas práticas próprias da produção
capitalista. Neste sentido, os índices de desmatamento no interior das Resex estão bem abaixo
do que se verifica em outras áreas, como os projetos de assentamento parcelares individuais
criados pelo INCRA (ARAÚJO, 2018). Da mesma forma, a proposta de manejo florestal
madeireiro comunitário, oferecido insistentemente pelos governos do PT ao longo de duas
décadas, foi frustrada por diversos subterfúgios criados pelos seringueiros, que preferem
utilizar seus recursos madeireiros de maneira direta, ou negociando, às vezes
clandestinamente, pequenas quantidades no mercado local (ARAÚJO e ROCHA, 2020).

Tendo conquistado seu direito de permanência nas colocações, a contragosto de


capitalistas transnacionais e das elites políticas e econômicas locais, que não baixaram a
guarda e os ataques ao longo destas três décadas, os seringueiros reafirmaram sua condição
camponesa e incidiram determinantemente para a reconfiguração das estruturas políticas,
sociais e econômicas dos municípios do Alto Acre. É pertinente citar as reflexões de Hébette

9
O dado sobre 1998 pode ser acessado no Plano de Manejo da Resex Chico Mendes, de 2006 e disponível na
web: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/plano-de-
manejo/plano_de_manejo_reserva_extrativista_chico_mendes.pdf. O dado sobre 2019 está baseado no
Levantamento Ocupacional realizado em 2019, cujas planilhas com resultados finais nos foram gentilmente
cedidas.

13
e Moreira (1997) que enxergaram a formação de um campesinato autônomo na Amazônia,
possuidores de suas próprias instituições.

Contudo, a novidade do campo não reside na sua massa de trabalhadores, que tende
a declinar, mas na sua presença na sociedade e, particularmente, na qualidade e na
expressividade de suas lideranças, como muito bem entenderam os representantes do
latifúndio selvagem, que fizeram delas o principal alvo de seus pistoleiros. Essas
lideranças se capacitaram, através da ação e de treinamentos, a representar sua
categoria, não apenas nos modestos eventos do campo, mas no concerto da
sociedade regional, nacional e mesmo internacional: distinguem-se e se fazem
reconhecer mais do que outras figuras sociais em alguns ambientes políticos
importantes; dominam e manipulam o verbo e se movem com desenvoltura nas
artimanhas dos debates; alguns, ainda minoritários, se projetaram em espaços mais
amplos, como na direção do movimento sindical e em cargos representativos nas
câmaras municipais, Assembléia Legislativa e Câmara dos Deputados. Os gabinetes
dos ministros e até do presidente da República, do governador, dos prefeitos e dos
dirigentes de banco e agências governamentais, onde raramente são convidados, não
podem mais ser fechados a eles, mesmo porque se tornaram interlocutores
indispensáveis na administração do Estado e do Capital. O MST ostenta isto com
deleite.
A liderança pessoal, na qual excelem os representantes populares, não asseguraria a
presença do campesinato e não traria grandes resultados sem instituições que lhes
garantam visibilidade e continuidade. Não nos referimos aqui às inúmeras entidades
de assessoria e apoio, mas a instituições próprias dos trabalhadores rurais, algumas
específicas da categoria, como o STR, e outras representativas dos trabalhadores em
geral. (HÉBETTE e MOREIRA, 1997, p.126)
No caso aqui estudado (que diverge do cenário vislumbrado pelos autores somente
pelo fato de que a população camponesa se expandiu em número) as CEBs, os STRs, o CNS e
as Associações, mas, sobretudo, no tempo aqui considerado, um comunitarismo resultante da
bricolagem entre estas instituições e o ambiente político (e os agentes a ele correspondentes)
que introduziu minimamente uma gramática das políticas públicas no universo camponês
(Programa Luz para Todos, Programa de Aquisição de Alimentos, Programa Proflorestania,
etc.), está no cerne do reposicionamento dos seringueiros no espaço social do Alto Acre. Há
entre os sujeitos da geração mais velha o entendimento de que o seringueiro não mais ocupa
uma posição de subalterno tal qual a observada até o final dos anos 1980. Imbricado a este
comunitarismo, numa relação de complementariedade recíproca, onde não se pode divisar
claramente onde um foi mais determinante que o outro, situou-se ainda o Partido dos
Trabalhadores, que no contexto do Alto Acre certamente pode classificar-se no rol de
instituições dos camponeses, já que foi o principal meio que viabilizou o ingresso dos
mesmos no campo político. O conjunto destas instituições incidiu diretamente sobre as ações
do Estado brasileiro de maneira geral e do Alto Acre em particular (ARAÚJO, 2018) 10.

10
Apesar das conjunturas políticas nacional e estadual dominadas por políticos rivais, nas eleições municipais de
2020 o Partido dos Trabalhadores foi eleito para 3 das 5 prefeituras municipais do Alto Acre: após 8 anos
retornará ao Executivo de Assis Brasil; e reelegeu a prefeita de Brasiléia e o prefeito de Xapuri, este último, com

14
O fato de integrar-se marginalmente ao mercado da carne bovina, ou rejeitar a venda
de madeira através do manejo, indica menos um cálculo econômico do que uma prática que
lhe permite recriar sua condição camponesa. Os seringueiros transitam entre um modelo e
outro de desenvolvimento, obtendo ganhos materiais que lhes garantiram morar com maior
conforto, deslocarem-se rápida e agilmente em suas motocicletas entre suas colocações e a
cidade, mas, sobretudo, conferiu-lhes ganhos simbólicos. Este cenário inaugurou uma nova
configuração de casa onde a família se referencia na comunidade a qual pertence, mas não se
limita a ela, e a partir de uma perspectiva translocal, os diferentes indivíduos que a constituem
(VINCENT, 1987), experimentam múltiplas interações com diversos agentes situados na
cidade, ou em outras comunidades. Assim sendo, os seringueiros incidem sobremaneira na
dinâmica econômica do Alto Acre, quebrando um paradigma produtivo pautado na não
monetarização e na sazonalidade da atividade econômica.

Certamente soa contraditório classificar suas práticas como anti-capitalistas, pois eles
ampliaram o acesso a dinheiro e a bens materiais, mas seguramente protagonizam uma luta
contra o capital que lhes quer expropriar. Uma luta também contra a apropriação privada da
riqueza social. Nos marcos da democracia política, figurando como o grupo protagonista na
introdução da gramática das políticas públicas no Alto Acre, os seringueiros deram um duro
golpe à situação de patrimonialismo naturalizado e articulando-se a conjuntura econômica do
agronegócio contribuíram para dinamizar a economia do Alto Acre. Se os mais velhos dizem
que estão em melhores condições de vida que antigamente, as gerações mais novas, nascidas
no contexto das Resex, tem a liberdade de polemizarem mais com autoridades locais do que
com os atravessadores que compram seus bezerros. Mas uma coisa é certa, essa geração não
sabe o que é ter um patrão como senhor de seu destino, como alguns de seus antepassados. Ao
longo dos anos 2000 o comunitarismo seringueiro se deu sem proclamar a intenção de uma
revolução socialista, embora certamente sob influência de ideias dessa ordem.

Ao fim, as mudanças ocorridas após a reserva extrativista, inclusive a contraditória


criação de gado, orbitando em torno do comunitarismo, fazem parte de um amplo leque de
mecanismos acionados alternadamente, sobrepostos e complementares para que os
seringueiros possam afirmar sua condição camponesa, entendendo-se tal condição pela
relação que estabelecem historicamente com a terra para sua reprodução social, semelhante ao

uma trajetória política organicamente vinculada ao movimento seringueiro, tendo chegado à região nos anos
1990, atuando como assessor na Cooperativa Agroextrativista de Xapuri, fundada por Chico Mendes.

15
que notou Paoliello (2009) entre remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira de Iguape,
em São Paulo.

Muita coisa não se deu como originalmente concebido, mas não restam dúvidas de que
os seringueiros jogaram novas luzes sobre o intenso e difuso debate em torno do
desenvolvimento para a Amazônia – algo que foi distorcido por agentes outros, filiados
virtualmente ao discurso do desenvolvimento sustentável – ao mesmo tempo em que os
princípios do que propôs Osmarino Amâncio e seus companheiros de vanguarda à época
foram negados ao longo de três décadas. Três décadas que apesar de tudo, foram bem
diferentes do que se iniciou com o governo Bolsonaro, criando, por exemplo, um Conselho da
Amazônia Legal sem participação da sociedade civil.

Nos últimos dois anos tem se acentuado demonstrações de incompreensão do que de


fato ocorre nas áreas de Reserva Extrativista, por parte da imprensa nacional em matérias
tendenciosas, ou mesmo por parte do ministro do meio ambiente que em 5 de dezembro de
2019, assinou um texto no jornal Folha de São Paulo, sobre o que classificou como uma
população que vive indignamente, já que é obrigada a retirar seu sustento “da venda de
castanha de caju, borracha e açaí”, buscando justificar o fato de no mês anterior ter recebido
em seu gabinete uma comitiva de infratores ambientais e políticos do Acre claramente
contrários à Reserva Chico Mendes, que inclusive protocolaram na Câmara dos Deputados
um projeto de lei que visa o desmembramento de uma área situada nas bordas da referida
Resex. A despeito de ter visitado uma área da Resex Chico Mendes em março de 2019 a uma
área da Reserva Extrativista Chico Mendes e não ter observado que seringueiros não retiram
sustento da venda de castanha de caju, mas sim, de castanha do Brasil, a manifestação do
ministro revela não tratar-se somente de desconhecimento, mas de postura política. Foi nessa
dinâmica de disputas políticas que os seringueiros aí se mantiveram nos últimos 30 anos,
elevando, inclusive, a quantidade de pessoas que vivem nas, e das, áreas de reservas
extrativistas do Alto Acre.

Considerações Finais

Conclui-se que as práticas dos seringueiros no período considerado trazem novos


desafios ao arcabouço teórico consagrado para a explicação dos processos sociais e a
respectiva posição dos camponeses na formação social de fronteira na Amazônia brasileira. O
direito de permanência na terra trazida com a criação das Reservas Extrativistas, embora
condicionado pela função ambiental em boa medida baseada na pressão de grupos

16
relativamente estranhos ao campesinato, introduziu novos desafios e proporcionou aos
seringueiros novas experiências que impactam a organização interna (família e comunidade) e
externa (cidades) do universo camponês. Formas de ação coletiva foram desenvolvidas,
ressignificadas e articuladas à experiência camponesa e às circunstâncias políticas e
econômicas do período observado, de maneira que considerá-las contribui para novos olhares
sobre os diversos e inter-relacionados desdobramentos, em última análise, resultantes da luta
por reforma agrária nesta região do país. Tendo de conviverem com diferentes modelos de
desenvolvimento, os seringueiros ampliaram seu capital simbólico, ajustaram seus habitus e
mantêm sua condição camponesa.

Foi precisamente o direito de permanência na terra e o alcance de uma profunda


melhoria em sua posição política que determinaram que os seringueiros do Alto Acre não
figurassem no enredo já de muito denunciado das populações nativas sendo exterminadas pelo
avanço do capitalismo, cuja fronteira é o cenário. Foram condicionados a
mudarem/ajustarem/adaptarem suas práticas, mas não foram objetivamente alijados do
controle da terra e do seu trabalho. Neste sentido, paradoxalmente, a criação de gado, na
conjuntura social e política em questão, representa um inusitado mecanismo de reconstrução
coletiva de um grupo camponês na fronteira agropecuária.

Referências

ALLEGRETTI, M. H. A construção social de políticas ambientais – Chico Mendes e o


movimento dos seringueiros. 827p., mm, (UnB – CDS, Doutorado, Desenvolvimento
Sustentável – Gestão e Política Ambiental, 2002.

ALMEIDA, M. W. B. Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas. Revista


Brasileira de Ciências Sociais – RBCS, São Paulo, Vol. 19, Nº 55, pp. 33-53, 2004.

ARAÚJO, J. M. Projeto de sociedade e projeto de poder: apontamentos sobre os processos


políticos vividos pelos seringueiros do Acre no limiar do século XXI. Publicado nos Anais do
42º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências
Sociais – ANPOCS. Caxambu (MG): ANPOCS, 2018. Disponível em:
https://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-3/gt-31/gt19-27/11274-projeto-de-
sociedade-e-projeto-de-poder-apontamentos-sobre-os-processos-politicos-vividos-pelos-
seringueiros-do-acre-no-limiar-do-seculo-xxi/file. Acesso em agosto de 2020.

___________. O campesinato na fronteira agropecuária: comunidades seringueiras e a


democracia no Brasil. Publicado nos Anais da 19º Congresso Brasileiro de Sociologia –

17
SBS. Florianópolis: SBS, 2019. Disponível em:
http://www.sbs2019.sbsociologia.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=24. Acesso em
junho de 2020.

ARAÚJO, J. M. e ROCHA, T. A. Os Seringueiros do Acre e o mercado de madeiras tropicais


certificadas: notas sobre coerção e resistência. In.: Revista Espaço de Diálogo e Desconexão.
v. 12 n. 1 (2020). Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/redd/article/view/14009 .
Acesso em setembro de 2020.

BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução Mariza Corrêa – 11ª ed.
– Campinas, SP: Papirus, 2011.

COHN, S. (ORG.). AILTON KRENAK. Série Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.

ESTEVES, B. M. G. Do “manso” ao guardião da floresta. Rio Branco: Edufac, 2010.

HÉBETTE, J. & MOREIRA, E. S. A marcha do trabalhador do campo rumo à cidadania:


domínio da terra e estrutura social no Pará. In.: SEAD. SÃO PAULO EM PERSPECTIVA,
11(2) 1997. Disponível em:
http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v11n02/v11n02_14.pdf. Acesso em maio de 2020.

_________________. Contradições sociais, utopias agrárias e utopias ambientais na


Amazônia. In. STARLING, H. M. M.; RODRIGUES, H. E e TELLES, M. (Orgs.). Utopias
Agrárias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. pp. 84-107.

PAOLIELLO, R. M. “Condição Camponesa” e novas identidades entre remanescentes de


quilombos no Vale do Ribeiro de Iguape. In. GODOI, E. P; MENEZES, M. A; e MARIN, R.
A. (orgs.). Diversidade do campesinato: expressões e categorias: construções identitárias
e sociabilidades, v.1. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento Rural, 2009. pp.229-250.

MARTINS, J. S. O tempo da fronteira. Retorno à controvérsia sobre o tempo histórico da


frente de expansão e da frente pioneira. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 8(1): 25-
70, maio de 1996.

SILVA, S. S. Resistência camponesa e desenvolvimento agrário na Amazônia-acreana.


Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia
Presidente Prudente: [s.n] 2004.

18
VELHO, O. G. Capitalismo autoritário e campesinato: um estudo comparativo a partir
da fronteira em movimento. [online] Rio de Janeiro: Centro Eldestein de Pesquisas Sociais,
2009, 243p. ISBN 85-99662-92-2 Available from SciELO Books http://books.scielo.org.

VINCENT, J. A sociedade agrária como fluxo organizado: processos de desenvolvimento


passados e presentes. In. FELDMAN-BIANCO, B. (org.). A antropologia das sociedades
contemporâneas. São Paulo: Global, 1987. pp. 375-402.

19

Você também pode gostar