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UENP - Universidade Estadual do Norte do Paraná


Disciplina: Optativa: Tópicos Especiais em História do Brasil I

CANGAÇO: PARTICULARIDADES DO MOVIMENTO SERTANEJO NA


CAATINGA NORDESTINA

Geografia do Cangaço

O presente trabalho tem como objetivo abordar o Movimento do Cangaço nos seus
aspectos sociais, políticos e econômicos, ressaltar a participação das mulheres no movimento
e analisar a representação do cangaço no imaginário cinematográfico, musical e na literatura.
Iniciamos a nossa abordagem a partir do artigo Geografia do cangaço: concepções
conceituais para pensar o banditismo sertanejo, escrito por Ana Paula Rodrigues Costa, onde
a autora discorre a respeito do conceito de banditismo social, elaborado por Eric Hobsbawm,
junto a costumeira aplicação desse conceito em alguns trabalhos para caracterizar o
movimento do cangaço, muitas vezes padronizando, sem levar em consideração as
implicações ao homogeneizar o cangaço como banditismo sociais.
Devemos pensar o espaço como ponto de partida para essa análise, haja vista que as
condições de subserviência e a falta de melhores meios de sobrevivência foram base para
surgir diversos movimentos populares no Nordeste, sejam eles, independentes ou coletivos,
agravado pelas condições naturais do clima semiárido. A partir disso, se destaca o movimento
do cangaço, ligado a questões sociais e culturais, que se produziram no processo de
apropriação desse sertão nordestino, caracterizado pela figura de homens valentes, frutos de
uma cultura sertaneja, com a ideia intensa de “cabra macho”, ligado ao código moral da honra
sertaneja, em que a honra é levada a extremos, pois denotava a desonra familiar, e o cangaço
se configurava como meio de reaver a mesma.
O movimento do cangaço teve maior expressão na passagem do século XIX para o
XX, intensificando a formação de bandos armados. É interessante ressaltar que essa datação
serviu para a caracterização dele como endêmico, pois antes de 1890, a aparição de bandos
armados se dava de forma esporádica e por ordens de um coronel. Já no século XX, chegou ao
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auge como epidêmico, porque surgiram bandos independentes pelo sertão nordestino, como
Antônio Silvino, Sinhô Pereira e Lampião.
Em algumas pesquisas, o cangaço é conceituado como banditismo social, a partir de
Eric Hobsbawm, para caracterizar a ação de sujeitos que decidiam viver como nômades,
ditando suas próprias regras. Mas para analisá-lo na teoria de banditismo social, é necessário
cautela, pois deve-se levar em consideração as especificidades de cada localidade e cultura
que foram constituídos cada sujeito, sendo necessário focar nas particularidades de cada
espaço e relações culturais e sociais. Dessa maneira, não é possível aplicar um conceito
homogêneo para distintos locais.
A autora cita Hobsbawm, e como o autor afirma que a imagem lhe interessa mais do
que a realidade, expressando o que era retratado nas lendas e no folclore popular contidos em
canções, romances e livretos de cordéis. Isso mostra que não houve um aprofundamento de
base documental para categorizar o movimento do cangaço na categoria de banditismo social.
A autora traz uma reflexão importante, pois destaca-se duas áreas economicamente
distintas: as áreas de litoral, voltadas para a produção da Monocultura escravista da cana-de-
açúcar, ligando esse território a contexto da metrópole, enquanto que as áreas de sertões são o
território da pecuária, tendo sua ocupação voltada a uma base econômica de suporte, pensando
no abastecimento da área de produção da cana-de-açúcar. Com isso, o sujeito deve ser
considerado como elemento para a compreensão da conjuntura, evitando realizar uma análise
que o relativize, pois produzem sua própria identidade em interação com o contexto de suas
ações que moldam o lugar em um determinado tempo-espaço.
Os sujeitos pertencentes ao cangaço, e a forma como passaram a atuar no mesmo,
relacionam-se ao contexto cultural e espacial de uma localidade específica. Essas relações
constituem os sertanejos nordestinos, e sem a vivência que liga o sujeito a um lugar, não é
possível compreender a vivência e atuação dos bandos de cangaceiros, pois os homens
destemidos foram escolhidos para ocupar os espaços mais longínquos da colônia. Este aspecto
se reverbera e passa a fazer parte do cotidiano e da cultura local. Dessa forma, o espaço
apresenta-se como base de compreensão para o fenômeno do cangaço, tomado como
banditismo sertanejo.
Mas para compreender melhor o cangaço, é necessário entender o termo e suas
derivações. O vocábulo é bastante antigo e tem algumas alusões, como em 1872, empregado
pela primeira vez, significando: “reunião de objetos menores e confusos, utensílios das
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famílias humildes, mobília de pobre e escravo”. No entanto, apresentam-se outras definições,


em 1889, que indica “conjunto de armas que costumam conduzir os valentões”.
Há outras explicações para o termo, que refere-se ao objeto canga, que deu nome tanto
a um equipamento de tortura, como ao equipamento cangalha usado no lombo de bois e de
outros animais de tração. No primeiro caso, a canga se assemelhava ao tronco que era usado
para castigar os escravos e denotava a ideia de opressão. Utilizar o termo cangaço em
referência ao tronco significava liberdade, independência, dignidade, representada no dito
popular “nesse pescoço não se bota canga”. No segundo caso, um utensílio que foi utilizado
como meio de transporte e de carga, que remete ao conceito de união, pois os animais
andavam lado a lado.
A atuação de bandos armados pelo sertão nordestino, até meados do século XIX,
acontecia com mais incidência em períodos de seca, mas, sabe-se que os motivos que levaram
esses bandos a caminharem pelo sertão nordestino não encontram seu cerne simplesmente na
seca, pois a elite coronelística se beneficiava da miséria que atingia as classes baixas para
perpetuar suas riquezas. Dessa forma, as condições para o surgimento do movimento do
cangaço foram caracterizadas em três: “Cangaço como meio de vida, de vingança e refúgio”.
O cangaço como meio de vida tinha um sentido profissional, (alternativa de trabalho) como
vingança seria um meio que os homens encontravam para vingar-se de alguma ofensa física
ou moral, e como refúgio era a garantia de proteção, um esconderijo para homens
perseguidos.
Dentre os condicionantes para a propagação do movimento do cangaço em áreas
sertanejas, a condição do relevo irregular propiciava esconderijos naturais como fator
fundamental para que o movimento se expandisse e se convertesse de endêmico para
epidêmico, com maior atuação nos estados de Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Ceará,
Bahia e Rio Grande do Norte. A condição do relevo irregular auxiliava os cangaceiros a
despistarem as forças policiais, caminhando sobre rochas, lajedos e chão duro para não
deixarem rastros ou empregando outras técnicas para confundir os perseguidores.
O conhecimento do meio ambiente era a garantia da vida cangaceira, que servia tanto
para proteção quanto para suprir as necessidades básicas de sobrevivência. A vivência como
vaqueiros, agricultores e a atuação das benzedeiras no sertão propiciava esse conhecimento a
eles, desde se orientar durante o dia pelo sol, à noite pelas estrelas, de utilizar as plantas
corretas para doenças e ferimentos. O saber popular dos sertanejos reflete a construção
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humana e social dos sujeitos, repassados por gerações, transmitindo suas experiências pelas
narrativas, produzindo sua identidade na cultura. Logo, o conhecimento topofílico foi
fundamental para a sobrevivência e os vários anos de atuação dos bandos de cangaceiros,
desenvolvendo a geografia do cangaço.
Os cangaceiros, quando tomavam a decisão de fazerem vida no movimento, passavam
a habitar as matas, fazendo daquele espaço o seu lugar, estabelecendo itinerários, de modo a
suprirem suas necessidades básicas de sobrevivência. Assim, o lugar do bandido cangaceiro
situava-se à margem da sociedade urbana, habitando as mais variadas localidades, com suas
diferentes estruturas geomorfológicas presentes em todo o sertão nordestino.
Para finalizar, a violência social é retratada com as mortes dos cangaceiros sem
julgamentos e a mando do estado, onde há uma piedade popular aos cangaceiros, pelas mortes
trágicas que tiveram. Essa piedade popular é expressada pelos sujeitos que seguem os ritos do
catolicismo popular, no sentido da comoção pelo sofrimento das horas finais, pois acreditam
que todas as pessoas, após sua morte, têm o direito de serem enterradas dignamente e que os
pecados cometidos fica a encargo do(a) pecador(a) prestar contas a Deus. A morte trágica
apresenta-se como a “absolvição” desses sujeitos por parte da sociedade, pois deveriam ser
punidos pelos crimes cometidos, mas tinham o direito de receber o perdão em vida ou na
morte, podendo conferir ao cangaceiro um status de mártir.

Cangaço: O terror na população

A obra “O Corisco Preto”: cangaço, raça e banditismo no Nordeste brasileiro”, do


autor Petrônio Domingues, serviu como base para nossa pesquisa para ilustrar dois pontos
importantes no cangaço, a construção do imaginário popular em meio às notícias sobre os
cangaceiros através da mídia e sobre importantes líderes que deixaram suas marcas em uma
história de luta construída no interior do Nordeste.

O imaginário popular foi construído e fomentado através de notícias da mídia que


transmitiram ao longo do tempo que o cangaço se fez e ganhou fama como um grupo
constituído de homens ruins capazes de atrocidades inimagináveis, que ganhavam a vida
invadindo cidades e apavorando toda a população nordestina. Como exemplo de um desses
ataques, usaremos um caso ocorrido em Propriá, uma importante cidade de Sergipe, invadida
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em 16 de agosto de 1909, o ataque foi noticiado em um jornal importante localizado na capital


da República, o jornal seguia o relato narrando o acontecido: diziam se constituírem em um
grupo de cangaceiros, invadindo repentinamente, infestando a cidade para praticar seus roubos
e depredações, “Segundo o correspondente, “foi imenso o pânico da população da laboriosa
cidade”. (DOMINGUES, 2017, p. 3), ao finalizar a notícia, os correspondentes tranquilizam a
população de que todas as medidas foram tomadas e o controle em Propriá foi restabelecido.

Esses ataques, que vinham acontecendo nas cidades nordestinas, geravam pesadelos e
calafrios na população, bastava a notícia de que os cangaceiros estavam próximos da cidade
para que a vida normal se alterasse, segundo o autor Petrônio Domingues, em casos extremos
suspendiam-se o dia de trabalho, encerravam-se festas e até enterros, com isso as forças
policiais reforçavam a segurança da população e agiam contra os bandos de cangaceiros.

O cangaço caracteriza-se, na história do Nordeste brasileiro, como um dos


fenômenos que passou a simbolizar a região e seu povo, deixando profundas marcas
na chamada cultura nordestina, no imaginário popular e na memória histórica da
região. (SARMENTO, 2019, p.26)

Entre os anos de 1900 e 1940 aconteceu o auge do cangaço na região do Nordeste


brasileiro, os indivíduos denominados cangaceiros, utilizavam esse estilo de vida como modo
de sobrevivência, saqueando a população, em fazendas, vilarejos, etc, o aparecimento do
cangaço, segundo estudos da história, surge através da decadência econômica, social, jurídica,
política, etc, o que também motivou com entusiasmo foi o abuso da autoridade policial, mas
no geral existem vários fatores que explicam o surgimento do cangaço e suas motivações.
Porém para uma análise mais densa, o autor Petrônio Domingues usa de base o que pondera
Billy Chandler esclarecendo que o cangaço ganha forma e sentido a partir do aprofundamento
das ambiguidades de vida desses homens chamados de bandoleiros(cangaceiros) e quem sem
isso nada mais é do que uma estrutura, sem a explicação exterior das ambivalências desses
indivíduos, [...] “das vidas desses homens ou da sociedade em que essas vidas se
desenrolaram”. (DOMINGUES, 2017, p. 4). Ao abordarmos sobre as particularidades desses
homens, vamos discorrer sobre alguns os nomes importantes para o cangaço e líderes que
marcaram a história do banditismo rural/cangaço.

Líderes
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Quando o contexto é o cangaço, não podemos deixar de citar nomes importantes que
marcaram a sua trajetória e ascensão no Nordeste brasileiro, entre todos os nomes, alguns
ficaram em evidência, como por exemplo, Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Ângelo Roque e
Jararaca, porém nem uma dessas figuras ganhou tanta popularidade como: Virgulino Ferreira,
o vulgo Lampião.
Segundo Domingues, no ano de 1926 Lampião estreou no cangaço, percorrendo com
seu bando de salteadores, diversos estados nordestinos, agindo como um fora da lei, vivia da
violência, intimidando, roubando fazendas, povoados e vilas; praticando “justiçamento”,
estuprando mulheres e fazendo prisioneiros. Ele se tornou uma figura muito respeitada, tinha
também muitos informantes que o protegiam, negociava com fazendeiros, políticos e
autoridades locais, chegava a levar uma vida pública fora do comum. “Sabe-se
suficientemente bem que Lampião andava muito e que não parava em parte alguma”.
(VILLELA, 1995, p.8).

Nessa etapa da análise sobre o cangaço, o autor Petrônio Domingues utiliza de alguns
trechos de um livro póstumo, composto por uma série de crônicas realizadas por Graciliano
Ramos, crônicas que foram publicadas entre as décadas de 1920 e 1950. Alguns aspectos de
Lampião e seus “cabras” não haviam sido passadas despercebidas pelo autor, assim realizar
tal obra foi de extrema importância para a análise comportamental dos indivíduos que faziam
parte do bando de Lampião e também a análise do próprio, como figura terrível e assustadora.

Acontecendo então um encontro com um certo discípulo de Lampião resolveu


escrever sobre a tal figura horripilante

[...] “um sujeito “imensamente forte, alourado, vermelhaço, de olho mau”. Esse
sujeito teria dito que “todas as vezes que praticava um homicídio abria a carótida da
vítima e bebia um pouco de sangue”. (DOMINGUES, 2017, p. 4)

Graciliano Ramos não se limitou a apenas essas descrições, assim continuou


expressando todo seu espanto, relatando que

“O cangaceiro tipo Lampião aniquila o inimigo: devasta-lhe os bens e, se não o


mata, faz coisa pior – castra-o. Às vezes castra-o literalmente, o que é horrível”. Na
opinião de Ramos, ele se valia desses requintes de crueldade porque precisava
“conservar sempre vivo o sentimento de terror que inspira” e que era a “mais eficaz
das suas armas”. (DOMINGUES, 2017, p.5)
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Com essa fama de terrível, Lampião se tornou objeto de temor e de respeito de uma
vasta região, ele era uma espécie de “bandido-guerrilheiro” da caatinga, e foi capaz de
enganar e vencer forças policiais diversas vezes, usando tantas formas habilidosas nas suas
escapatórias, que o povo do sertão chegava a acreditar que ele possuía poderes milagrosos,
alvo de muitas curiosidades por causa de sua aparência, sua cartucheira, chamava a atenção:
tinha dois palmos de largura e continha quatro fileiras de cartuchos, e duas mais de botões de
ouro e prata, essa descrição demonstra um ser que impunha respeito, sempre bem vestido e
apresentável aos olhos curiosos, “temido e destemido”, assim fazia seu feitio diante de todos.

Outra figura bastante conhecida no cangaço, era Christino Gomes da Silva Cleto,
conhecido como: “Corisco ou Diabo Louro, braço direito e homem de confiança de Lampião,
era ainda mais terrível que o próprio chefe e se destacou por sua coragem e crueldade. No
texto é relatado uma de suas “aventuras” e de seu bando, ocorrida por volta de 1930, os
cangaceiros prenderam Domiciano, o tabelião da então vila de Curaça, no estado da Bahia,
estipularam seu resgate em cinco contos de réis e mesmo a família do refém pagando a
importância estipulada, Corisco e seus cabras mataram Domiciano, sangraram o infeliz e o
esquartejaram, espalharam seus restos mortais por toda cidade, essa é apenas uma das
atrocidades cometidas por Corisco, o cabra tinha sangue nos olhos quando se tratava de
aniquilar o inimigo, o autor Graciliano Ramos definiu Corisco como um “pequeno monstro”,
“violento e bruto”

[...] “fazia “tremer os inimigos”, causava “pavor entre os catingueiros


desamparados”, trazia “em desassossego ricos fazendeiros”. Todo o Nordeste o
conhecia na década de 1930. Seu nome, aliás, ganhava manchetes nos jornais de
todo o Brasil. Homem de confiança e braço direito de Lampião, tornou-se um dos
subchefes do bando quando o “rei do cangaço” dividiu seus sequazes em
subgrupos.” (DOMINGUES, 2017, p.12).

Analisando o contexto externo de todo esse movimento denominado cangaço, nos


deparamos com uma estrutura social precária e a inserção da população no cangaço se tornava
a única saída no momento, em contraponto com a vida no sertão que pouco oferecia, havia
apenas o modesto trabalho no campo, com as mãos na enxada e um salário muito baixo, a
maioria, sem dúvida, arriscava-se a seguir Lampião ou Corisco porque não tinha nada melhor
a fazer, ou se deixavam sucumbir a uma vida de miséria ou se lançavam no cangaço como
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forma de melhorar de vida. Haviam também outras variadas motivações para ingressar no
cangaço: muitos indivíduos ingressaram no cangaço motivados por injustiça, se naquela terra
de ninguém entre a polícia e os cangaceiros, parte da população sertaneja se alistava na
polícia, enquanto outra parte, com medo da polícia, ou tendo sofrido em suas mãos, tornava-se
bandoleiros e também tinha aqueles indivíduos que escolhiam a vida no cangaço como meio
de poder se vingar de algum crime cometido contra sua família por um inimigo pessoal ou por
uma família rival.
Como toda história tem um ponto final, o fim desses dois indivíduos se deu de forma
trágica. Na madrugada do dia 28 de julho de 1938, o bando de Lampião foi pego de surpresa
por um ataque das tropas volantes (polícia), seu líder temido foi atingido por três tiros e
faleceu no local, seu cadáver foi decapitado e sua cabeça foi levada para diferentes locais em
exibição de sua morte. Já em 1940, Corisco o homem de confiança de Lampião, foi
surpreendido, mas não se entregou, dizendo a Rufino que não era homem de se entregar, foi
metralhado na barriga, deixando seu intestino fora do abdômen, até em seu fim manteve sua
raiz de “cabra macho”, morrendo com honra.

Os cangaceiros foram decapitados, a população junto com as autoridades realizaram


um cortejo horripilante com as cabeças dos bandoleiros, levando de cidade em cidade,
vilarejos e vilarejos, sendo expostas para visitação pública para expor o fim trágico de seu
líder enigmático (Lampião) e de seu temido bando. Em Santana do Ipanema, por exemplo,
foram colocadas na calçada da igreja, existe uma fotografia desse momento, que se tornou um
marco na história do cangaço nordestino. Somente no dia 6 de fevereiro de 1969, no governo
Luiz Viana Filho, foi que os restos mortais puderam ser inumados definitivamente, antes, o
Museu fez moldes para reproduzir as cabeças e continuar a expô-las como provas materiais da
morte destes homens e mulheres. Uma sentença terrível para esses cangaceiros, constituem
nas mortes sem antes um julgamento e uma segunda terrível ação seria de não deixar enterrar
suas cabeças, que partindo da análise d sociedade o ato de se enterrar seus mortos é um ação
digna e não deixar fazê-lo revela um ato covarde de punição a esses indivíduos, mesmo após
suas mortes. Após a morte de corisco e Lampião, o cangaço nordestino foi enfraquecendo, até
se extinguir por completo.

Em sua obra Petrônio Domingues utiliza uma frase do autor Graciliano Ramos
presente no livro “Viventes das Alagoas”, que define bem essas duas figuras importantes para
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o cangaço: “Virgulino Ferreira [Lampião], um mulato, almocreve, analfabeto. [Já Corisco era
esta] figura sinistra. Um branco degenerado” – Graciliano Ramos (1975, p. 132, 148).

A Presença Feminina no Cangaço

As mulheres num âmbito geral sempre ficaram à margem da historiografia. Segundo


Freitas (2005) a incorporação da mulher no cangaço a partir da década de 1930 e o seu papel
dentro dos bandos, são poucos explorados, quando comparado às análises sobre o modo de
vida e o comportamento dos homens, dentro dos mesmos. Refletir sobre a presença das
mulheres no cangaço se torna significativo para compreendermos o universo feminino em seu
interior. Nesse contexto, Freitas (2005) destaca o Código Civil Brasileiro de 1916, para
entendermos o lugar social das mulheres, uma vez que ele trazia a divisão de papéis entre os
sexos, circunscrevendo a mulher exclusivamente ao lar e aos afazeres domésticos.

De acordo com a autora, o código Civil de 1916 destituiu as mulheres dos direitos
políticos e civis, as mulheres não podiam vender os seus bens ou contrair empréstimos, para
desempenhar trabalho remunerado, as mulheres casadas deveriam obter autorização do marido
reconhecida em cartório, que poderia ser revogada a qualquer momento. Para Freitas (2005) o
ingresso das mulheres no cangaço coincide com a luta pela emancipação feminina em um
âmbito mais geral, já que o cangaço se configurava numa oportunidade das mulheres saírem
dos padrões convencionais estabelecidos pela sociedade, podendo conquistar outros espaços
além da esfera privada do lar, além disso, sugere que elas poderiam “escolher livremente”
seus parceiros sem a interferência dos acordos familiares. “Contudo, cabe ressaltar que a
incorporação feminina no cangaço nem sempre se pautava na espontaneidade; em alguns
casos a coerção e o medo foram os fios condutores. (FREITAS, 2005, p. 120).

Freitas (2005) menciona três formas de ingresso das mulheres no cangaço, a primeira
se refere ao ingresso voluntário, como no caso de Maria Bonita, houve também a inserção
como resultado de uma ação violenta e do rapto, baseada no uso da coerção e do terror, como
nos casos de Dadá e de Sila, mulheres que foram privadas abruptamente do convívio dos seus
familiares convivendo com o medo de retaliações, ou ainda o caso de mulheres casadas que se
sujeitaram a marginalidade do cangaço, visando proteção em virtude das perseguições das
volantes.
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Uma vez inseridas no cangaço, as mulheres foram estereotipadas, principalmente pelos


jornais da época “como bandoleiras, violentas e sanguinárias, sem considerar as circunstâncias
que as impulsionaram” (FREITAS, 2005, p. 117). A autora apresenta uma matéria do jornal O
Estado de S. Paulo do ano de 1933, onde as mulheres são descritas como
“verdadeiras megeras”, matéria essa onde percebemos o peso depreciativo da descrição:

(...) composto de 23 pessoas: “Lampeão”, 19 caibras e 3 mulheres – 3


verdadeiras megéras; todos fardados de brim kaki, bem montados,
armados de fuzil e rifle, trazendo farta munição. Conduziam também,
punhaes e revólveres á cinta. Roubaram dinheiro, fazendas, jóias,
moedas antigas de ouro e prata....” (O Estado de S. Paulo, 1933 apud
Freitas, 2005, p. 126).
Freitas (2005) também destaca a violência que as mulheres sofreram com os
cangaceiros e os abusos cometidos pela polícia; havia o rapto de meninas/moças e a
consequente violação de seus corpos, o espancamento praticado pelo companheiro ou pelas
volantes quando prisioneiras, a brevidade da vida e o imediatismo da morte, além da pena de
morte para a mulher que ousasse praticar o sexo livre, ou se recusasse à união a outro
cangaceiro quando da morte do companheiro.

Com isso, passamos a abordar a participação efetiva das mulheres no Movimento do


Cangaço. Começamos por Maria Gomes de Oliveira, que ficou conhecida após sua morte
como Maria Bonita. De acordo com Freitas (2005) Maria Bonita nasceu em 1911 na Bahia e
durante toda a sua vida a chamaram de Maria de Déa. Era filha de José Gomes de Oliveira e
Maria Joaquina Conceição de Oliveira, seu pai era proprietário da fazenda Malhada da
Caiçara, situada nas proximidades de Santa Brígida, no nordeste baiano, onde tinham uma
vida economicamente tranquila. Maria Bonita conviveu com doze irmãos, sendo sete
mulheres e cinco homens, e parentes próximos. Aos 16 anos se casou com o sapateiro José
Miguel da Silva, também conhecido como Neném, com quem vivia em constantes conflitos.

Segundo Câmara e Câmara (2015) Maria Bonita conheceu Lampião aos 19 anos
“Lampião continuou a visitá-la e cortejá-la durante um ano, até que ela se decidiu a deixar o
marido e segui-lo” (CÂMARA; CÂMARA, 2015, p. 63). Segundo os autores, Lampião lutou
contra seus próprios instintos quando decidiu incorporar Maria Bonita ao bando, sendo
desaconselhado até por Pe. Cícero. Ele também teria enfrentado o descontentamento de seus
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homens. Câmara e Câmara (2015) mencionam que Lampião nunca foi um sedutor, ao
contrário, era tido por muitos como um asceta, tímido, foi vencido pelo amor recalcado.

Segundo Freitas (2005) Maria Bonita foi a primeira mulher a ingressar no cangaço em
meados de 1930, provocando mudanças significativas em seu interior. A partir desse
momento mais de 30 mulheres participaram da vida dos bandos. Segundo a autora durante a
sua vida no bando, Maria Bonita sofreu vários abortos, uma única filha sobreviveu (Expedita
Ferreira Nunes) que foi criada pelo coiteiro Manoel Severo. A criança foi por eles visitada
algumas vezes e seguiu sendo criada por sua família adotiva depois da morte de seus genitores
e longe dos riscos constantes da morte certa na caatinga.
Maria Bonita morreu em 28 de julho de 1938, após um ataque surpresa de policiais ao
local de esconderijo do bando, na fazenda Angicos, no sertão de Sergipe. Ela foi baleada e não
resistiu. Freitas (2005) relaciona que de acordo com os padrões morais que vigoravam na
sociedade brasileira da época, Maria Bonita pode ser qualificada como adúltera e bandida por
sua conduta duplamente marginal. Primeiro, ao abandonar o marido com quem havia
contraído matrimônio, e depois por juntar-se a um fora da lei, sendo sem dúvida a figura mais
conhecida e divulgada dentre todas as mulheres que vivenciaram a experiência do cangaço.

Sérgia Ribeiro da Silva, era mulher do cangaceiro Corisco, homem de confiança de


Lampião. De acordo com Freitas (2005) Dadá como era conhecida, foi a primeira cangaceira a
atuar efetivamente ao lado de seu companheiro de vida e de luta. Nasceu em Belém de São
Francisco, Pernambuco, em 1915. Seus pais eram Vicente Ribeiro da Silva e Maria Santana
Ribeiro da Silva. Dadá foi raptada aos quinze anos de idade por Corisco entre os anos de
1930/1931. Ao contrário de Maria Bonita, Dadá sobreviveu ao cangaço e ao longo de sua vida
deu entrevistas relatando a sua experiência no bando e como companheira de Corisco.

Segundo Freitas (2005) em suas falas Dadá relata o pavor que tinha de Corisco no
começo: “Quando Corisco me procurava nas noites, parecia que eu ia morrer, não sabia o que
era de ser de mim.” (DADÁ apud FREITAS, 2005, p. 160). Mas, com o tempo, o sentimento
por ele foi se transformando: “Que horror quando aquele homem chegava. Naquela condição
eu fui pegando amor a ele acabou com meu amor por mais ninguém. Queria bem....” (DADÁ
apud FREITAS, 2005, p. 160). Dadá ressalta que no início não tiveram amor de namorados,
mas que este sentimento cresceu e se solidificou ao longo do convívio com Corisco.
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Freitas (2005) ao analisar as entrevistas de Dadá, descreve que a forma como Corisco
a tratava, com educação, paciência e assegurando-lhe proteção, levou a apegar-se tais
qualidades, e que depois da gravidez, sua relação com o companheiro tornou-se mais afetiva,
ao ter de entregar os filhos a coiteiros, ao todo, três filhos. Já a relação de Dadá com os outros
membros do Cangaço era fria, ela adotava uma postura rígida e, quando necessário, até ácida.
Essa foi a fórmula que encontrou para ser respeitada pelos bandoleiros. E depois que Corisco
perdeu firmeza nos braços (resultado de ferimento por projéteis de armas de fogo), passou a
lutar e a comandar tiroteios.

Dadá destacou-se no cangaço por ser uma mulher destemida e dedicada ao seu
companheiro. De acordo com Freitas (2005) após o cangaço, Dadá reconstruiu sua vida
casando-se com Alcides, com quem viveu trinta e cinco anos. Ela conseguiu cumprir a missão
de sepultar a cabeça de Corisco com o resto de seus ossos. Para tanto, travou uma luta com o
Museu Nina Rodrigues/Bahia, que insistia em ficar com a cabeça para realizar pesquisas. O
sepultamento da cabeça de Corisco ocorreu em 13 de fevereiro de 1969, no Cemitério de
Quintas do Lázaro em Salvador/BA, vinte e nove anos após a sua morte.

Ilda Ribeiro de Souza, conhecida como Sila, conforme Freitas (2005) nasceu em 26 de
outubro de 1924, na fazenda Recurso, localizada na cidade de Poço Redondo, Sergipe. Ficou
órfã precocemente, pois sua mãe faleceu quando tinha apenas seis anos e o seu pai aos treze
anos de idade, ficando sob os cuidados dos irmãos. Em fins do cangaço integrou o bando de
Zé-Sereno, outro homem de confiança de Lampião. Assim como Dadá, Sila sobreviveu ao
cangaço e registrou em três livros e em vídeo sua biografia e experiência no bando.

Segundo Freitas (2005) Sila foi raptada em meados de 1936, pelo cangaceiro Zé-
Sereno não tendo opção, pois se ela não o acompanhasse toda sua família sofreria retaliações,
permanecendo no cangaço até a morte de Lampião. Sila, juntamente com seu companheiro,
entregaram-se à polícia em 1940 na Bahia, sob garantia de anistia do Presidente da República,
Getúlio Vargas. No ano de 1946, Sila e o marido, se fixaram na cidade de São Paulo e
começaram ali uma nova vida. Ela ajudava no orçamento com suas costuras e todos os
trabalhos que apareciam, já que Zé-Sereno teve dificuldades para arrumar trabalho, vivendo
por muito tempo fazendo bicos, até arrumar emprego de vigia numa fábrica. Sila permaneceu
ao lado de Zé-Sereno até a sua morte em 1981.
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De acordo com Freitas (2005), tendo em vista que as mulheres do início do século XX
estavam submetidas às instituições e ao Código Civil, as cangaceiras representaram a
desordem e a falta de harmonia. Diante disso, no momento em que as mulheres se deslocam
de uma posição construída para complementar o masculino, para uma posição de produtoras
de significados, elas desestruturam todos esses padrões discursivos.

As manifestações culturais a partir da imagem do cangaço.

Segundo MARTINS (2014) as diversas representações midiáticas a partir de um


período histórico carregam uma determinada versão sobre os fatos, uma certa narrativa e
posição política. Desta forma, ao nos deparamos com uma representação histórica de um fato,
principalmente na área do cinema e outras diversas presenças midiáticas a disputa de
narrativas e de memórias que surgiram em torno da figura do Cangaço e de Lampião. Quando
uma produção midiática é lançada, outras tentam desmascará-la ou ao menos contar sua
versão dos fatos, isso é o que torna as guerras de memórias vivas, essa “violência das reações”
(VEYRAT-MASSON, 2008).

Estas diversas disputas e reações citadas por VEYRAT-MASSON (2008) estão


constantemente presentes no decorrer de todo o percurso cinematográfico brasileiro que
constituiu a imagem do Cangaço. Assim, a primeira produção datada que trouxe o Cangaço
como tema principal resultou em diversas críticas negativas sobre o tom apelativo. Lampião, a
Fera do Nordeste (1930) de Guilherme Gáudio é relatado como uma ficção com cenas
documentais a onde o filme relata o episódio da chacina do Rio do Peixe, na Bahia,
“mostrando um Lampião monstruoso e sanguinário que matava até criancinha, lançando ao ar
e aparando com seu punhal”. Entretanto, o filme não foi encontrado e não existem cópias. O
que se sabe sobre sua narrativa advém de críticas e publicações da revista CINEARTE na
época do lançamento do filme. Segundo VIEIRA (2007) diversas críticas indicavam o filme
como apelativo e segundo um comentário presente na revista “A interpretação pavorosa! Tudo
horrível! Como o filme Lampião é mais prejudicial à Bahia que o próprio bandoleiro”.

Já adiante no ano de 1936 surge Lampião, o Rei do Cangaço. A produção em formato


documentário de Benjamin Abrahão trouxe novas perspectivas antropológicas e históricas
acerca do bando de Lampião. O filme é o mais importante desse período e um dos mais
significativos para o gênero, sendo um documento chave e um registro histórico no cinema
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brasileiro. Tal razão da importância da produção também se dá pelo motivo de o próprio


Benjamin Abrahão ter realizado os primeiros registros cinematográficos em movimentos de
Lampião e o bando de cangaceiros, além do fato de realizarem encontros pessoalmente para
realizar a filmagem. Segundo ANDRADE (2007) o filme apresentava a “outra verdade” de
Lampião e seu bando: as imagens traziam os cangaceiros em estado de plena alegria e
despreocupação; difundiam seus valores culturais; construíram o estereótipo do mocinho em
Lampião; mostravam, ainda, cenas da polícia violentando civis. Resultado: as autoridades não
se animaram com o discurso daquele enunciado fílmico pois desta forma, rompia com a
formação discursiva dominante da época, significava um insulto à ordem pública, era um
afronto aos créditos da nacionalidade, um descaso com a república.

Essas realizações implicam em uma historicidade sobre o cangaço, os


cangaceiros e seu principal personagem, através de discursos
complementares, convergentes e divergentes, revelando o papel social
da mídia na constituição do imaginário social, um verdadeiro espaço
de disputas. “A cada construção, ou reconstrução, da imagem do
cangaceiro nasce um novo Rei do Cangaço discursivo, dotado de
traços de sentidos diversos” (ANDRADE, 2007, p. 78).

A partir da década de 1960 surgia no cinema brasileira uma adaptação do western


estadunidense para o gênero tipicamente brasileiro, a onde a temática acerca do nordeste e o
cangaço tomavam um diferente corpo sobre características e estruturas. Segundo VIEIRA
(2007) o pesquisador Salvyano Cavalcanti de Paiva relatava que o resultado da incorporação
do western estadunidense era o resultado do conjunto de elementos como a violência, os
cavalos, os grandes descampados e a falta de tradição cinematográfica no Brasil: mais nada
era preciso para transformar em filial do western norte-americano, o filme de cangaceiro.

O gênero NORDESTERN foi inaugurado pelo filme O Cangaceiro (1953) de Lima


Barreto, onde o filme narra a história de um bando de cangaceiros que semeia o terror pelo
sertão nordestino. Em seu comando está o temido Capitão Galdino Ferreira (Milton Ribeiro)
e sua companheira Maria Clódia (Vanja Orico). Eis presente uma nítida referência ao famoso
casal de cangaceiros Virgulino Ferreira e Maria Bonita. O filme foi vencedor do prêmio de
melhor filme de aventuras em Cannes em 1953, com menção especial para a música, O
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Cangaceiro, além de aumentar o prestígio do cinema brasileiro dentro do território nacional,


abriu-lhe as portas para o mercado internacional, sendo o filme brasileiro que deteve o
recorde de bilheteria no exterior durante muito tempo, distribuído em mais de 80 países.
Entretanto, quem mais lucrou com isso foi a Columbia Pictures, que detém os direitos de
distribuição fora do Brasil.

Seguindo essa linha de pensamento, o gênero cangaço adaptado para o


NORDESTERN também apresentava como traço definidor esse conflito elementar: as
polícias ou as volantes contra os cangaceiros; a cidade contra a caatinga; o coronelismo
contra a população humilde; a moça de família contra a mulher cangaceira; e contra tudo
isso, a fome e a seca. Estes elementos em disputas estavam sempre presente no cenário de
ação, onde alguns elementos incorporados pelo western pareciam desprendidos da realidade
cangaceira como a utilização de cavalos em vez da mula e do jegue e o excesso do elemento
“bang bang”. Entretanto, o gênero abriria portas para inúmeras produções que viriam a
seguir seguindo o mesmo traço definidor e construindo um novo imaginário a partir do
Cangaço, principalmente para o exterior.
Já na década de 1964 o cinema brasileiro passa por uma nova fase de reformulação e
pensamento que se preocupava com as críticas sociais e representações culturais mais fiéis,
segundo VIEIRA (2007) o movimento do cinema novo é inaugurado por Glauber Rocha, no
mesmo ano com o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol. O filme narra com seriedade
diversos aspectos sobre a vida e a cultura do sertanejo em meio a religiosidade, questões
sociais, desigualdades, o poder do latifundiário e da vida no cangaço. É a obra que amplia a
crítica social de Glauber em relação à exploração de sertanejos e à pobreza no sertão
nordestino.

Diversas produções a respeito da imagem do Cangaço e de Lampião foram


incorporadas na mídia brasileira, filmes, minisséries e até chanchadas, são inúmeras as
representações que se formaram em torno do imaginário do movimento histórico do Cangaço.
Entanto, já na década de 2000 dirigido por Guel Arraes surge a versão cinematográfica da
adaptação literária de O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, onde o diretor retrata o
personagem Severino de Aracaju, um cangaceiro que encontrou no crime uma forma de
sobrevivência, já que seus pais foram mortos pela Polícia.
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A presença do Cangaço na literatura de Cordel

A literatura de Cordel foi essencial para compreender certos aspectos do Cangaço,


assim como o cinema, foi responsável por partilhar a partir de sua estrutura literária e do uso
das xilografias diversas histórias de aventuras que também contribuíram para o imaginário do
movimento e da figura de Lampião. Segundo SCHEIDT (2012) Os cangaceiros são lembrados
na literatura tanto por suas “boas” ações, como é o caso de Antonio Silvino, o “cangaceiro
nobre”, quanto por sua crueldade, como Rio Preto, ou por ambas, como Lampião (Hobsbawm,
1976, p. 55).

Como testemunha viva da cena nordestina, a literatura de cordel não deixou de


dar ampla cobertura ao fenômeno do cangaço e, especialmente, narrando as
aventuras do maior de todos os cangaceiros: Lampião. Por incrível
coincidência, Lampião aterrorizou os sertões do Nordeste exatamente na
mesma época em que a literatura de cordel alcançou seu maior editorial, ou
seja, nas primeiras décadas do século XX. Certamente, esse fato contribuiu
para que a saga de Lampião fosse descrita pelos cordelistas ao som dos tiros
que escoavam dos combates. (VIEIRA, 2012. p. 146)

Para exemplificar esse caráter heróico e fantástico a partir da imagem de Lampião


pelos cordéis, temos como exemplo os cordéis de dois importantes cordelistas nordestinos: A
chegada de Lampião no céu (1959), de Rodolfo Coelho Cavalcante, e A chegada de Lampião
no inferno (2006), escrito por José Pacheco da Rocha, uma vez que tais cordéis aparecem de
forma paradigmática na relação de Lampião com o bem e com o mal. Esta figura heróica se
apresenta quase como a bravura e redenção presente em diferentes epopeias e contos gregos
como os 12 trabalhos exercidos por hércules e também tomam forma de uma aventura que não
está muito longe dos percursos feitos por Dante Alighieri em a A Divina Comédia.

Considerando que a maioria dessas obras de cordel, ainda quando se propõem


a descrever os atos violentos de Lampião, terminam contribuindo para a
afirmação de valores identificados com a figura do herói, tais como bravura,
destemor e uma certa expressão da coletividade ─ o que permite a Hobsbawn
identificá-lo como um bandido social ─, abre-se a possibilidade de pensarmos
a literatura de cordel em termos comparativos com obras clássicas do gênero
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épico, no qual é patente o anseio do narrador em afirmar as virtudes de um


herói (VIEIRA, 2012, p. 146 apud CARDOSO, 2010, p. 13)

A presença do Cangaço na música

Luiz Gonzaga difundiu a cultura nordestina e o regionalismo popular a partir do ritmo


do xaxado em diversas letras de suas músicas. Sob a inspiração da figura de Lampião e do
imaginário do Cangaço, compôs a música Lampião Falou.

O que possibilita à música de Gonzaga a atribuição de "nordestina", não é


apenas o ritmo, mas uma soma de elementos culturais e populares que
compõem esse personagem tão representativo da região, como a vestimenta
(uma "mistura de vaqueiro e cangaceiro"); o sotaque; o próprio timbre da voz;
as expressões locais que utiliza; e inclusive os instrumentos utilizados em suas
músicas, que proporcionam uma mistura de sons que "significam" o Nordeste
uma vez que resgatam a memória do imigrante e o remonta para um lugar no
passado, cristalizado. É isso que caracteriza a escuta do Nordeste.
(BANDEIRA, 2009. p. 16)

Segundo BANDEIRA (2009) a associação da música de Luiz Gonzaga ao imaginário


sobre cangaço é recorrente, abordando aspectos como masculinidade, sobrevivência e
mantendo o corpo discursivo do imaginário de um Lampião heroico, troca-se a referência de
uma vida de lutas, crimes, combates, mortes, perseguições e fugas, comumente associada aos
cangaceiros, por uma imagem de desprendimento, momentos de lazer e diversão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007.

BANDEIRA, Marília Alves de Lima. O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IMAGEM


DE LAMPIÃO ATRAVÉS DA MÚSICA. Universidade Federal Do Rio Grande Do Norte
Centro De Ciências Humanas, Letras E Artes. Departamento De História. Natal/Rn. 2009.
18

CÂMARA, Yls Rabelo; CÂMARA Yzy Maria Rabelo. Maria Bonita e Dadá: uma breve
releitura do cangaço por meio da presença determinante do elemento feminino. Revista
Entrelaces: ano IV, nº5, maio, 2005.

COSTA, A. P. R. Geografia do cangaço: concepções conceituais para pensar o banditismo


sertanejo. Revista do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, v. 41,
e174830, p. (1-12), 23 jul. 2021.

DOMINGUES, P. O “Corisco Preto”: cangaço, raça e banditismo no Nordeste brasileiro.


Revista de História, [S. l.], n. 176, p. 01-39, 2017. DOI:
10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.119973.

FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A presença feminina no cangaço: práticas e


representações (1930-1940). Dissertação de Mestrado, UNESP. Assis, 2005.

MARTINS,Allysson Viana. De Virgulino a Lampião: guerras de memórias nos filmes


sobre o cangaceiro mais famoso do Brasil. Revista Brasileira de História da Mídia (RBHM)
- v.3, n.2, jul./2014 - dez./2014.

SARMENTO, G. T. A. . Virgulino cartografado: relações de poder e territorializações do


cangaceiro Lampião (1920-1928) – Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal/RN, 2019.

SCHEIDT, Déborah. Cordel e bush ballads: representações da autoridade na poesia


popular do Brasil e da Austrália. XII Congresso Internacional da ABRALIC Centro,
Centros – Ética, Estética. UFPR – Curitiba, Brasil. 2011

VIEIRA, Marcelo Dídimo Souza. O Cangaço no cinema brasileiro. Tese (doutorado) -


Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Campinas, SP. 2007.

VIEIRA, Francisco Jacson Martins. A mitificação das figuras emblemáticas de Padre


Cíciero e Lampião através da literatura de cordel. 2012. 170f. – Dissertação (Mestrado) –
Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em Letras, Fortaleza (CE), 2012.
VILLELA, Jorge Luiz Mattar. A Organização Espacial do Cangaço sob a Chefia de
Virgulino Ferreira da Silva, Lampião (1922-1928 / 1928-1938). 1995 – Dissertação
(mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1995.

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