Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ulysses Lins não pretende fazer uma “reconstrução”, mas uma “reconstituição”
de época, baseando-se, em cada frase escrita, em cada verso, na importância da
experiência pessoal para se fazer História.
Por essa perspectiva, o autor pode ser identificado com a concepção de Henri
Bergson, no seu clássico Matéria e Memória – Ensaio sobre a Relação do Corpo com o
Espírito2, onde se desenvolve a idéia de que a memória se faz, principalmente de
lembranças, das imagens vividas.
Em seus trabalhos Ulysses Lins dirá que viu, ouviu, sentiu, conviveu, conheceu
ou ouviu falar de todo fenômeno que aborda. É portanto o típico escritor que faz a
história de seu mundo a partir das emoções humanas, suas e de seus personagens, que
pretende registrar em sua obra de memória.
Tendo nascido no alto sertão do Nordeste, minha paixão por Ulysses Lins de
Albuquerque também cresce por uma coincidência muito honrosa para mim. No seu
*
Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP); Professora do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UERJ.
1
Maurice HALBWACHS, A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice/ Revista dos Tribunais, 1990.
2
Henri BERGSON, Matéria e memória – Ensaio sobre a relação do Corpo com o Espírito. São Paulo,
Livraria Martins Fontes, 1990.
livro Três Ribeiras3, fala dos rios de sua infância: Pajeú, Moxotó e Ipanema. Saindo de
Pernambuco, esse último rio vai correndo para Alagoas, passando na cidade onde nasci,
Santana do Ipanema. Periódico, o rio, na minha memória de juventude, é ora um
espraiado arenoso ponteado de cacimbas de água salobra, leito atravessado por
caminhantes humanos e animais, ora uma fúria de água, anunciada aos gritos dos
moradores da ribeira: “Lá vem a cheia...!” Arrastando barro, animais, vegetação e
algumas vezes pessoas mortas, o rio invade todo o leito seco, levando casas e pontes,
atraindo a população deslumbrada, com assunto para muito tempo e esperança de
riqueza. Rio cheio, mesa farta, cantoria das lavadeiras, planos de negócios e trabalho da
plantação. Conhecia de leitura, alguém que nascera nas cabeceiras do rio que desaguava
no São Francisco, levando este, em sua correria para o mar, terra, a curiosidade, os
sonhos e desenganos do povo da “bêra do Panema”.
O sertão, como é apresentado por Ulysses Lins, vai existir num espaço
geográfico que ele situa como “sertão de Pernambuco”. Quando os sertanejos afirmam
serem do sertão, isto, no Nordeste significa a existência de várias visões, diferentes
concepções, sendo porém muito importante a referência geográfica. Partindo-se do
litoral para o oeste, encontra-se em seguida às Costas Atlânticas a Zona da Mata, o
Agreste e o Sertão. O autor, de “Sertânia”4, nome que colocou na cidade onde nasceu e
da qual foi um grande representante no cenário político, sendo hoje seu principal
memorialista com suas incursões sociológicas, coloca-a como muito perto do agreste e
muito próxima do sertão, uma porta de passagem. Os rios citados, constituindo três
ribeiras, possibilitam a vida na região árida, tornando-a ao mesmo tempo um importante
território de produção agrícola e pecuária. Esse espaço geográfico é também o
personagem principal de sua obra, centrada no sertão pernambucano. Esta última faixa
3
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Três Ribeiras. Rio de Janeiro, José Olympio, 1971.
4
Ver, a esse respeito, Luitgarde O. Cavalcanti BARROS, A Terra da Mãe de Deus: Um Estudo do Movimento
Religioso de Juaseiro do Norte. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves/MINC/INL 1988; e Luitgarde O.
Cavalcanti BARROS, A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro,
FAPERJ/Mauad, 2000.
de terra a oeste, terminando nos sertões do Piauí, para o nordestino, constitui o universo
literário do autor.
Mas, se afirmando como sertanejo, não diz apenas que nasceu naquela região,
mas que nela tem vivência, o conhecimento do mundo a que pertence, e que pretende
trazer para o leitor, descrevendo tanto a natureza como os tipos humanos mais
representativos daquele universo. Para mostrar aquela sociedade, entendo que ele
trabalha com a manipulação de valores culturais centenariamente articulados nos
chamados códigos de honra sertaneja, como o apego à terra de seus ancestrais, o
profundo conhecimento de todas as particularidades daquela realidade e o estilo de vida
que faz com que afirme ser sertanejo. Aborda todos os viezes de uma realidade a partir
de sua experiência como sertanejo comum, principalmente ao tratar de fatos relativos à
infância e à juventude quando, segundo ele, não tomara conhecimento de outro mundo
para além de suas plagas. Reconhecer esta possibilidade é pôr em cheque teorias sobre
consciência de classe social, porque Ulysses Lins de Albuquerque descende dos grandes
troncos colonizadores do sertão pernambucano, tendo uma posição socialmente elevada,
o que o coloca na classe dominante, embora não tenha sido detentor de fortuna. O
homem pobre sertanejo também apresenta os mesmos sentimentos que permeiam a obra
do autor (em relação à terra e símbolos), exceto, é claro, à memória do poder e da
riqueza da família no passado.
Quando analiso discursos do sertanejo pobre e rico que possam apontar para a
possibilidade de uma identidade sertaneja, considerando-se a transitoriedade do social, a
situação de cada um no raconto que está fazendo, aparecem elementos recorrentes
comuns a todas as camadas sociais, que são exatamente o que o autor desenvolve em
sua obra, como “o que é ser sertanejo.” O homem pobre, paupérrimo, de classe média,
rico ou ex-rico, muitas vezes apenas em nível do discurso, das falas, todos eles utilizam
a idéia de sertão a partir dos códigos de honra que determinam ou permeiam a vida
social. Não é sertanejo quem não tiver verdadeira paixão pela terra de seu nascimento,
onde estão enterrados seus ancestrais e afirmar a importância de valores como coragem,
valentia e caráter.
5
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op.cit., 1971; Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Um Sertanejo e o
Sertão. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957; e Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Moxotó Brabo. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1979.
“sertão nação”, vai ser em sua obra poética. No livro Exaltação à Poesia Sertaneja6,
discurso proferido em sua posse na Academia Pernambucana de Letras, se apresenta
como porta-voz dos poetas populares, dos anônimos menestréis e trovadores, cantadores
do sertão. Nesse discurso se lê:
6
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Exaltação à Poesia Sertaneja - Discursos Acadêmicos. Recife, Emp.
Jornal do Comércio S.A., 1938.
7
Ibid., p. 22.
8
Ibid., pp. 23-24.
9
Ibid., p. 24.
10
Ibid., p. 29.
11
Ibid., p. 22.
Para ilustrar as concepções já enunciadas sobre o sertanejo, o novo acadêmico
transcreve o “Desafio de Romano da Mãe d’Água e Inácio da Catingueira”, considerado
este o maior bardo da poética sertaneja:
12
Ibid., pp. 33
13
Luiz Cristovão dos SANTOS, Brasil de Chapéu de Couro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1958, p.
143.
de sua natureza selvática mas dadivosa,
e que me fazem um seu eterno enamorado”.14
Algumas vezes os comentadores de sua obra não o vêem apenas como o poeta,
o intelectual, mas um retratista, imagem encontrada em Dreau Ernani:
14
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Tudo se faz por encontro e casualidade. Recife, CEPE, 1972, p. 7.
15
Dreau HERNANI, “Apresentação”, in: Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op.cit., 1979. Enfatizo a
perspectiva da apresentação da literatura de Ulyssis Lins como “retrato da realidade”.
A sentinela indômita e selvagem,
Velando a pátria no setentrião.”16
Pela fala do Coronel Quinca Ingá, o personagem com quem dialoga nas
crônicas publicadas no Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro, sob o título “Na Era de
Quinca Ingá”, o autor demonstra preocupações que não eram apenas do centenário
ancião, mas dele próprio. Em “A Sombra dos Jatobazeiros” expõe mais abertamente o
sofrimento com a agressão à ecologia sertaneja, perpetrada pelo progresso:
16
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Fogo e Cinza. Rio de Janeiro, José Olympio, 1951, p. 24.
17
Ibid., p. 19.
18
Ibid., p. 24.
19
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op.cit., 1957, pp. 259-260.
20
Ibid., p. 260.
Seu desafio maior, cujo entendimento procuro aprofundar, é como ele vai fazer
e lutar para melhorar tecnologicamente o sertão e preservar “aquele sertão.” Porque
quando acabam os códigos de honra, quando ele se refere a Lampião, dirá:
Os três cangaceiros citados foram os mais valentes daquelas três ribeiras, mas
jamais estupraram ou mataram para roubar. Esta idéia de honradez, de quebrar mas não
vergar, não deixar sua terra, de respeito às tradições constituem, para ele, uma
“sertanidade”. Se essas regras são desrespeitadas os códigos perdem o poder
socializador, é a desagregação de antigos costumes de sociabilidade, conseqüentemente,
a perda de uma identidade sertaneja como seus antigos agentes haviam articulado
naqueles mais de duzentos anos de vida social.
“É ele o último baraúna, que se mantém firme, nos seus veneráveis noventa anos bem
vividos, com o pensamento sempre voltado para a terra amada, a sua Sertânia, a sua
Fazenda Conceição. Baraúna que dá sombra e alento, árvore e homem, uma coisa só, o
mesmo tronco rugosoe forte, a copa florida, altaneiro no meioda catinga, como o velho
Ulysses”.22
21
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op.cit.,1951, p. 19.
22
Francisco de ASSIS BARBOSA, “Apresentação”, in: Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op. cit., 1957.