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Literatura e memória – O Sertão de Ulysses Lins de Albuquerque

Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros*

Pretendendo fazer uma reflexão sobre o tema, Ulysses Lins de Albuquerque se


me apresenta como um dos autores mais representativos dessa problemática, ao
desenvolver obra de poesia e prosa como um memorialista, alguém que procura,
através do registro de fatos pretéritos, a preservação ou o testemunho de uma região, de
um tempo, de um povo, em seus aspectos humanos, sociais e ecológicos.

Colocando-se como ressonância de vozes do passado e porta-voz dos que não


têm espaço para suas falas, o autor nos traz, literariamente, a existência e decomposição
de um mundo submetido ao processo de modernização que atingiu o campo brasileiro,
notadamente o sertão nordestino, desde inícios deste século.

Como teórico, estudioso da memória, Maurice Halbwachs, em Memória


Coletiva1, vai trabalhar o conceito de história, de memória histórica, afirmando que ela
vai-se fazer quando se tem apagado toda a participação emocional e experiência
concreta individual das pessoas, para se “reconstruir” um período, um momento. Essa é
sua concepção de História como memória coletiva.

Ulysses Lins não pretende fazer uma “reconstrução”, mas uma “reconstituição”
de época, baseando-se, em cada frase escrita, em cada verso, na importância da
experiência pessoal para se fazer História.

Por essa perspectiva, o autor pode ser identificado com a concepção de Henri
Bergson, no seu clássico Matéria e Memória – Ensaio sobre a Relação do Corpo com o
Espírito2, onde se desenvolve a idéia de que a memória se faz, principalmente de
lembranças, das imagens vividas.

Em seus trabalhos Ulysses Lins dirá que viu, ouviu, sentiu, conviveu, conheceu
ou ouviu falar de todo fenômeno que aborda. É portanto o típico escritor que faz a
história de seu mundo a partir das emoções humanas, suas e de seus personagens, que
pretende registrar em sua obra de memória.

Tendo nascido no alto sertão do Nordeste, minha paixão por Ulysses Lins de
Albuquerque também cresce por uma coincidência muito honrosa para mim. No seu

*
Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP); Professora do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UERJ.
1
Maurice HALBWACHS, A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice/ Revista dos Tribunais, 1990.
2
Henri BERGSON, Matéria e memória – Ensaio sobre a relação do Corpo com o Espírito. São Paulo,
Livraria Martins Fontes, 1990.
livro Três Ribeiras3, fala dos rios de sua infância: Pajeú, Moxotó e Ipanema. Saindo de
Pernambuco, esse último rio vai correndo para Alagoas, passando na cidade onde nasci,
Santana do Ipanema. Periódico, o rio, na minha memória de juventude, é ora um
espraiado arenoso ponteado de cacimbas de água salobra, leito atravessado por
caminhantes humanos e animais, ora uma fúria de água, anunciada aos gritos dos
moradores da ribeira: “Lá vem a cheia...!” Arrastando barro, animais, vegetação e
algumas vezes pessoas mortas, o rio invade todo o leito seco, levando casas e pontes,
atraindo a população deslumbrada, com assunto para muito tempo e esperança de
riqueza. Rio cheio, mesa farta, cantoria das lavadeiras, planos de negócios e trabalho da
plantação. Conhecia de leitura, alguém que nascera nas cabeceiras do rio que desaguava
no São Francisco, levando este, em sua correria para o mar, terra, a curiosidade, os
sonhos e desenganos do povo da “bêra do Panema”.

Para a dissertação de mestrado, estudei o catolicismo popular do Nordeste, e


Ulysses Lins de Albuquerque tinha o que dizer. Para o doutorado trabalhei a violência
do cangaço e ele tinha ainda mais a ensinar.

Um de meus projetos de pesquisa é conhecer a obra de intelectuais que nasceram


no sertão, porque não me preocupo apenas com a categoria sertão já elaborada por
diferentes autores, entre os quais Euclides da Cunha, Josué de Castro e todos os
analistas desses e da obra de Guimarães Rosa. Considero esses estudos importantes
construções teóricas de pessoas que não têm lá sua origem, não vivem o cotidiano da
região, mas fazem, a partir de sensibilidade de observação e de análise, uma elaboração
intelectual, modelos do que são o sertanejo e o sertão.

Quero analisar o termo “sertão” enquanto categoria construída por agentes


sociais concretos em suas formas de existência material, suas crenças e valores, em seus
discursos, através dos quais se vêem e representam como sertanejos.

O sertão, como é apresentado por Ulysses Lins, vai existir num espaço
geográfico que ele situa como “sertão de Pernambuco”. Quando os sertanejos afirmam
serem do sertão, isto, no Nordeste significa a existência de várias visões, diferentes
concepções, sendo porém muito importante a referência geográfica. Partindo-se do
litoral para o oeste, encontra-se em seguida às Costas Atlânticas a Zona da Mata, o
Agreste e o Sertão. O autor, de “Sertânia”4, nome que colocou na cidade onde nasceu e
da qual foi um grande representante no cenário político, sendo hoje seu principal
memorialista com suas incursões sociológicas, coloca-a como muito perto do agreste e
muito próxima do sertão, uma porta de passagem. Os rios citados, constituindo três
ribeiras, possibilitam a vida na região árida, tornando-a ao mesmo tempo um importante
território de produção agrícola e pecuária. Esse espaço geográfico é também o
personagem principal de sua obra, centrada no sertão pernambucano. Esta última faixa

3
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Três Ribeiras. Rio de Janeiro, José Olympio, 1971.
4
Ver, a esse respeito, Luitgarde O. Cavalcanti BARROS, A Terra da Mãe de Deus: Um Estudo do Movimento
Religioso de Juaseiro do Norte. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves/MINC/INL 1988; e Luitgarde O.
Cavalcanti BARROS, A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro,
FAPERJ/Mauad, 2000.
de terra a oeste, terminando nos sertões do Piauí, para o nordestino, constitui o universo
literário do autor.

Mas, se afirmando como sertanejo, não diz apenas que nasceu naquela região,
mas que nela tem vivência, o conhecimento do mundo a que pertence, e que pretende
trazer para o leitor, descrevendo tanto a natureza como os tipos humanos mais
representativos daquele universo. Para mostrar aquela sociedade, entendo que ele
trabalha com a manipulação de valores culturais centenariamente articulados nos
chamados códigos de honra sertaneja, como o apego à terra de seus ancestrais, o
profundo conhecimento de todas as particularidades daquela realidade e o estilo de vida
que faz com que afirme ser sertanejo. Aborda todos os viezes de uma realidade a partir
de sua experiência como sertanejo comum, principalmente ao tratar de fatos relativos à
infância e à juventude quando, segundo ele, não tomara conhecimento de outro mundo
para além de suas plagas. Reconhecer esta possibilidade é pôr em cheque teorias sobre
consciência de classe social, porque Ulysses Lins de Albuquerque descende dos grandes
troncos colonizadores do sertão pernambucano, tendo uma posição socialmente elevada,
o que o coloca na classe dominante, embora não tenha sido detentor de fortuna. O
homem pobre sertanejo também apresenta os mesmos sentimentos que permeiam a obra
do autor (em relação à terra e símbolos), exceto, é claro, à memória do poder e da
riqueza da família no passado.

Quando analiso discursos do sertanejo pobre e rico que possam apontar para a
possibilidade de uma identidade sertaneja, considerando-se a transitoriedade do social, a
situação de cada um no raconto que está fazendo, aparecem elementos recorrentes
comuns a todas as camadas sociais, que são exatamente o que o autor desenvolve em
sua obra, como “o que é ser sertanejo.” O homem pobre, paupérrimo, de classe média,
rico ou ex-rico, muitas vezes apenas em nível do discurso, das falas, todos eles utilizam
a idéia de sertão a partir dos códigos de honra que determinam ou permeiam a vida
social. Não é sertanejo quem não tiver verdadeira paixão pela terra de seu nascimento,
onde estão enterrados seus ancestrais e afirmar a importância de valores como coragem,
valentia e caráter.

Os escritores que se apresentam como sertanejos contam histórias de seu povo


e seu “torrão” aos “outros”, aos não sertanejos. Esses autores, como Ulysses Lins, têm
uma visão bastante particular, embora, como nesse último, se encontre freqüentemente
neles a influência de Euclides da Cunha em suas interpretações científicas da realidade.
Ulysses Lins articula o discurso sobre o sertão com seu “sertanegismo” sobre o
discurso. Escrevendo com muita emoção, se assume como um homem daquela região e
vai perceber o Brasil e o mundo por esta perspectiva aprioristicamente dada.

Em suas três maiores produções, Três Ribeiras; Um Sertanejo e o Sertão e


Moxotó Brabo5, faz um trabalho de análise dos tipos sertanejos na política, festas
folclóricas, os trabalhadores, os tipos regionais. Mas, onde ele investe no problema do

5
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op.cit., 1971; Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Um Sertanejo e o
Sertão. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957; e Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Moxotó Brabo. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1979.
“sertão nação”, vai ser em sua obra poética. No livro Exaltação à Poesia Sertaneja6,
discurso proferido em sua posse na Academia Pernambucana de Letras, se apresenta
como porta-voz dos poetas populares, dos anônimos menestréis e trovadores, cantadores
do sertão. Nesse discurso se lê:

“Dir-se-ia que, circunstâncias do meio-ambiente, - todo o belo-horrível daquele


cenário espetacular que empolga e deslumbra, senão perturba e aterroriza, - criam para
a alma sertaneja a fatalidade de inclinar-se às sensações do belo, sorvendo o vinho da
poesia que lhe transmite a resignação serena para enfrentar a amarga realidade da
vida.”7

Nas páginas seguintes descreve a flora sertaneja em tom poético: “O amarelo-


verde da canafístula em flor, - linda bandeira primaveril a evocar em nossos campos o
símbolo da nacionalidade”.8

No desdobramento do discurso destaco trechos que demonstram, ora a


presença de Euclides da Cunha, ora o particularismo da concepção de Ulysses Lins
falando de sua terra:

“A energia inquebrantável dos sertanejos... o comovente apego à gleba sagrada, a que


os prendem os estos do sangue, a voz do coração e o drama de todos os sacrifícios; o
amor à velha crença e à velha tradição; o respeito aos postulados de um código de
honra imposto pelos exemplos de uma ancestralidade rebelde e nobre, transmitindo-se
às gerações que hão de sustentar sempre o penacho do desassombro, da dignidade e da
altivez, a constituir o orgulho de uma raça que lançou no coração da pátria os alicerces
do Brasil-sangue, Brasil bem brasileiro, Brasil-sertão-orgulho do Brasil”.9

Na mesma página continua falando de um “povo de bravos e de santos”, e da


importância para o sertanejo, de “cumprir a palavra dada, ser leal, ser generoso, ser justo
e ser forte”.

Sobre a poesia sertaneja, afirma: “(...) poesia do belo, da emotividade, do


trabalho, do estoicismo, da bravura e da fé,” citando: “Aristóteles dizia que a poesia é
mais filosófica e seriamente verdadeira do que a história”.10

O acadêmico Oscar Brandão, que o saúda em nome da Academia, se expressa


na mesma linguagem, evocando o Maestro João Paulino que fala da “vocação musical
do sertanejo, criando em plena catinga uma escola de arte e de emoção, que ainda hoje
vive no improviso dos desafios”.11

6
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Exaltação à Poesia Sertaneja - Discursos Acadêmicos. Recife, Emp.
Jornal do Comércio S.A., 1938.
7
Ibid., p. 22.
8
Ibid., pp. 23-24.
9
Ibid., p. 24.
10
Ibid., p. 29.
11
Ibid., p. 22.
Para ilustrar as concepções já enunciadas sobre o sertanejo, o novo acadêmico
transcreve o “Desafio de Romano da Mãe d’Água e Inácio da Catingueira”, considerado
este o maior bardo da poética sertaneja:

“Catingueira, negro velho,


Onde é que foste encontrar
O dote de cantador
Sem ao demônio entregar
O mulambo de tu’alma
Para poderes cantar? “

“Foi Deus, foi Deus, ‘seu Romano’;


Para aplacar o furor
Dos homens que têm o dote
Contrário à lei do Senhor:
O demo me faz cativo
Mas Deus me fez cantador”.12

É integrante da categoria “ser sertanejo” o “ser poeta” ou “amar a poesia”, ter a


concepção do belo, sendo o sertão o autor, o gerenciador desta “estética sertaneja”
porque, segundo Ulysses Lins, o homem que nasce lá sofre suas secas, mas se
deslumbra no seu renascer. A cada chegada da chuva o sertanejo é um novo homem,
porque sua terra se deu a ele de maneira diferente. Se ela se nega um período, ele
suporta essa “passagem” porque sabe que ela se doará novamente.

Nessa perspectiva há uma frase muito interessante do autor, afirmando que o


sertão é mais feliz do que ele; porque quando o sertão atravessa uma grande tragédia,
uma grande seca, renasce; e ele, atingido pelos sofrimentos, não renasce daquela dor.

O elemento “fixação à terra”, presente em sua obra quando escreve sobre as


grandes fazendas onde foi criado com todas suas histórias, vai ser encontrado também
em poetas de extrema pobreza, como o já citado Inácio da Catingueira, cantando em
finais do século passado:
“Tenho pena de dexá
A serra da Catingueira
A fazenda Bela Vista
A maior desta ribeira
O riacho do Poção
As quebradas do Teixeira”.13

É um escravo cantando o mesmo mote encontrado no discurso do escritor de


alta camada social:
“... e tendo o prazer de contemplar as
paisagens que tanto me agradam aos
olhos cansados; enfim, de apreciar tudo

12
Ibid., pp. 33
13
Luiz Cristovão dos SANTOS, Brasil de Chapéu de Couro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1958, p.
143.
de sua natureza selvática mas dadivosa,
e que me fazem um seu eterno enamorado”.14

Outras constantes nos escritos de Ulysses Lins são o embevecimento com a


ecologia do sertão, a denúncia do esgarçamento da estrutura social através da corrosão
dos costumes, exaltação à honradez, à coragem e à valentia, a consciência de viver o fim
de uma era. Pensando sertão, o autor pensa organização social, poética, natureza, e o
nascer lá, não como uma construção literária, mas como a própria realidade guardada na
memória.

Algumas vezes os comentadores de sua obra não o vêem apenas como o poeta,
o intelectual, mas um retratista, imagem encontrada em Dreau Ernani:

“Como o estilo de um escritor que, dispondo-se a escrever a composição literária com


a rigorosa preocupação de torná-la tão ingênua, tão simples e tão veraz, à margem de
sua própria motivação, procurasse fixar, fielmente, toda a pureza, toda a naturalidade e
todo o realismo dos flagrantes históricos do quadro social, da paisagem ecológica e
dos mecanismos culturais que retrata, sem ornatos artificiais, sem alterações
aparatosas e sem coloridos de dissimulação capazes de comprometerem a
autenticidade do retrato”.15

Tratando da ecologia sertaneja o autor deixa transparecer uma primeira


ambigüidade de sua obra e de sua existência. Ele usa o termo civilização para se referir
ao processo de mobilização demográfica, econômica e social, a partir dos
deslocamentos de seus ancestrais portugueses que saem do sertão da Bahia e vão
implantando fazendas, ocupando o sertão do São Francisco e seus afluentes, em direção
aos sertões do Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e às atuais fronteiras
entre Sergipe e Alagoas, onde o “velho Chico” vai desaguar.

Todo o sertão nordestino é transformado em campos de pecuária e agricultura,


com a destruição dos indígenas das terras ocupadas. Ao mesmo tempo que trabalha esse
processo de substituição de culturas como civilização – assentamento de brancos,
deixando implícito que considera os índios como “incivilizados”, em algumas poesias
fala de um sertão “não civilizado”.

Outra tensão, detectável na harmonia de sua produção literária, vem de sua


situação social. Como homem público, administrador municipal, deputado federal
pertencente às altas esferas governamentais, rende-se à ideologia do progresso. No
poema “O Sertão do Futuro” proclama as vantagens que virão da chegada do trem de
ferro, das estradas de rodagem, luz elétrica e demais serviços oferecidos pela
modernidade tecnológica. Com o progresso o sertão se transformaria, avultaria em
importância:
“Sim. Será, na pujança da coragem,
- Guarda da Fé no templo da nação - ,

14
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Tudo se faz por encontro e casualidade. Recife, CEPE, 1972, p. 7.
15
Dreau HERNANI, “Apresentação”, in: Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op.cit., 1979. Enfatizo a
perspectiva da apresentação da literatura de Ulyssis Lins como “retrato da realidade”.
A sentinela indômita e selvagem,
Velando a pátria no setentrião.”16

No mesmo livro, Fogo e Cinza, escreve “Outrora o meu Sertão”, do qual


destaco os versos:
“Ah! O antigo sertão, nobre e abastado,
Que do governo nunca precisou,
Bravo sertão de porte avantajado
Que a violência à cerviz jamais curvou!”17

Sobre Sertânia, antiga Alagoa de Baixo, declama:

“Amo-te, assim de muitos ignorada


No deserto selvagem do sertão!
Virgem, no teu recanto enclausurada,
Não te profane a Civilização”.18

Pela fala do Coronel Quinca Ingá, o personagem com quem dialoga nas
crônicas publicadas no Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro, sob o título “Na Era de
Quinca Ingá”, o autor demonstra preocupações que não eram apenas do centenário
ancião, mas dele próprio. Em “A Sombra dos Jatobazeiros” expõe mais abertamente o
sofrimento com a agressão à ecologia sertaneja, perpetrada pelo progresso:

“Falou-me sobre a devastação das nossas catingas, para alimentar as máquinas da


Great Western, o que lhe parecia uma tragédia!
– Então, depois do fabricodo carvão – adiantava -, a derrubada do mato nos preparava
um deserto.” 19

A importância desse texto está exatamente na luta do autor contra a extinção da


catinga, com seus pássaros canoros – como a seriema, para ele “talvez que uma princesa
desterrada, viesse aos bosques, assim transfigurada”.20 Até as abelhas são exterminadas
pelos homens que arrancam fibras de caroá para vendê-las na usina, destruindo toda a
vegetação e os animais do entorno, enquanto outros fazem da caça aos passarinhos um
meio de vida.

O intelectual, político e administrador luta pela chegada do progresso,


enquanto o sertanejo sofre ao constatar os malefícios trazidos a sua terra pelas
mudanças dele advindas. Chora pela miséria em que o governo deixa o povo, aquela
região abandonada, mas quando este chega, seus projetos aceleram o processo de
destruição de seu mundo. Como reação irá cantar cada animal, cada planta e a beleza do
sertão, com uma poética medieval, lamentando que aquele universo se extinga.

16
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, Fogo e Cinza. Rio de Janeiro, José Olympio, 1951, p. 24.
17
Ibid., p. 19.
18
Ibid., p. 24.
19
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op.cit., 1957, pp. 259-260.
20
Ibid., p. 260.
Seu desafio maior, cujo entendimento procuro aprofundar, é como ele vai fazer
e lutar para melhorar tecnologicamente o sertão e preservar “aquele sertão.” Porque
quando acabam os códigos de honra, quando ele se refere a Lampião, dirá:

“Sertão sem cangaceiros desalmados


Da espécie de Corisco e de Lampião;
- Que os seus, eram românticos e honrados;
Casimiro... Quidute... Mansidão.
O sertão da inocência e da fartura,
O sertão da honradez e da lealdade
Cavalheiresco, aos lances de bravura,
Fidalgo ingênuo na hospitalidade”.21

Os três cangaceiros citados foram os mais valentes daquelas três ribeiras, mas
jamais estupraram ou mataram para roubar. Esta idéia de honradez, de quebrar mas não
vergar, não deixar sua terra, de respeito às tradições constituem, para ele, uma
“sertanidade”. Se essas regras são desrespeitadas os códigos perdem o poder
socializador, é a desagregação de antigos costumes de sociabilidade, conseqüentemente,
a perda de uma identidade sertaneja como seus antigos agentes haviam articulado
naqueles mais de duzentos anos de vida social.

Amalgamando-se à terra onde nasceu, o autor se confunde com a natureza, na


crítica literária de Francisco de Assis Barbosa, na apresentação de Um Sertanejo e o
Sertão:

“É ele o último baraúna, que se mantém firme, nos seus veneráveis noventa anos bem
vividos, com o pensamento sempre voltado para a terra amada, a sua Sertânia, a sua
Fazenda Conceição. Baraúna que dá sombra e alento, árvore e homem, uma coisa só, o
mesmo tronco rugosoe forte, a copa florida, altaneiro no meioda catinga, como o velho
Ulysses”.22

21
Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op.cit.,1951, p. 19.
22
Francisco de ASSIS BARBOSA, “Apresentação”, in: Ulysses LINS DE ALBUQUERQUE, op. cit., 1957.

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