Você está na página 1de 13

A ÁFRICA NAS PUBLICAÇÕES DO CENTRO DE ESTUDOS AFRO-

ORIENTAIS (ANOS 1960)

Luiza Nascimento dos Reis


Universidade Federal de Pernambuco
nrluizaprof@gmail.com

Gilberto Freyre e Pierre Verger foram os responsáveis por atualizar informações


acerca do grupo de ex-escravizados brasileiros que haviam retornado para a costa da
África ocidental e se estabelecido entre Porto Novo, no Daomé (atual Benin) e Lagos, na
Nigéria. Em Acontece que são baianos I e II (1951) e Casas brasileiras em Lagos (1951),
um assinando o artigo e o outro as fotografias, havia notícias que animaram os
pesquisadores interessados na cultura de matriz africana pujante em Salvador. A
manutenção de tradições brasileiras na África, verificada com os retornados, seria uma
evidência que justificaria a aproximação cultural preconizada pelo Centro de Estudos
Afro-Orientais (CEAO) fundado em Salvador na então Universidade da Bahia em 1959.
Este argumento foi mobilizado por uma de suas primeiras pesquisadoras, a linguista Yêda
Pessoa de Castro quando redigiu, nos anos 1980, um texto sobre a história do CEAO.

Seguindo sua vocação histórica natural, o CEAO, com o apoio do


Ministério das Relações Exteriores, começa pioneiramente a abrir os
caminhos para a política de aproximação cultural Brasil-África,
iniciada através da África Ocidental com a qual a Bahia manteve
relações comerciais até 1903, quando da última viagem no patacho
Aliança de africanos e seus descendentes para o porto de Lagos na
Nigéria. Nessa região da Baía do Benin, esses agudá fundaram
comunidades brasileiras ainda hoje ali existentes, as quais conservam
tradições brasileiras em língua, religião, culinária e usos, além da nossa
arquitetura colonial (PESSOA DE CASTRO, S/N).

Essa informação fazia uma referência direta ao texto do médico polígrafo Nina
Rodrigues quando, no início do século XX, assistiu à partida do que chamou de “os
últimos africanos no Brasil”. Nina Rodrigues é considerado o precursor dos estudos afro-
brasileiros, pois dedicou-se a estudos a respeito da população negra de Salvador no que
tange aos seus costumes. O livro do médico foi publicado nos anos 1930 quando houve
uma renovação do interesse de pesquisadores localizados na Bahia por temas relativos à
cultura negra em que se destacava o candomblé. Nesse sentido houve publicação de
estudos de autores baianos como Manuel Querino, Édison Carneiro e Arthur Ramos e
estrangeiros como Ruth Landes, Roger Bastide e Melville Herkovitz.
Nos anos 1950, quando houve novo impulso na Bahia para a realização de estudos
afro-brasileiros, Nina Rodrigues foi a principal referência tomada. Aspirante a
antropólogo, Vivaldo da Costa Lima insistia que sua pesquisa com os candomblés baianos
e grupos étnicos na África ocidental visava “atualizar” a obra de Nina Rodrigues
(Correspondência de Costa Lima para Oliveira, 07/07/1962. CEAO). Ao ingressar no
CEAO disse estar interessado nos estudos afro-brasileiros cuja leitura vinha se dedicando
(Correspondência de Costa Lima para Silva, 11/1959. CEAO). Isso pode ser verificado
em sua primeira publicação, um roteiro entregue aos participantes do IV Colóquio de
Estudos Luso-Brasileiros, intitulado Uma festa para Xangô onde se apoiou em textos de
Carneiro, Bastide, Verger e Pierson para apresentar o terreiro do Opô Afonjá (COSTA
LIMA, 1959). Interessado na valorização de Nina Rodrigues, Vivaldo propôs entrega de
prêmio de pesquisa por ocasião do centenário de nascimento comemorado em 1962 e,
mais adiante, propôs a publicação de nova edição do livro por ocasião dos 20 anos da
UFBA, em 1966 (Correspondência de Oliveira para o reitor Miguel Calmon, 11/05/1966.
CEAO).
Yêda Pessoa de Castro reservava igualmente grande atenção à obra de Nina
Rodrigues uma vez que seu livro era o que mais apresentava informações acerca das
palavras africanas faladas na Bahia. Nina era uma referência sobretudo pelas informações
que havia conseguido reunir acerca dos grupos étnicos africanos que foram trazidos para
a Bahia durante o período escravista. Seu trabalho afirmava um pressuposto que os
pesquisadores do CEAO, como Costa Lima e Pessoa de Castro, não questionavam e
buscavam comprovar: a presença e superioridade tanto numérica quanto cultural dos
povos iorubás – aqui chamados nagôs – em Salvador. Com isso, fica clara toda a corrida
à África Ocidental, em especial à Nigéria e ao Daomé, dos pesquisadores do Centro de
Estudos (REIS, 2010).
Gilberto Freyre é citado, mas não com a mesma ênfase que o fazem com Nina
Rodrigues. Marisa Côrrea argumentou como a filiação ao médico etnógrafo não se fazia
pelo argumento teórico uma vez que essa produção estava amparada no critério da
existência de diferentes raças, não mais utilizado pelos pesquisadores em meados do
século XX. Contudo, mesmo reconhecendo que Freyre oferecia o embasamento teórico,
os pesquisadores do Centro de Estudos não davam ênfase a sua produção. Possivelmente
porque, àquele momento, Freyre representava uma escola pernambucana que rivalizava
com uma escola baiana, a qual o CEAO se filiava. Freyre ministrou uma aula para os
estudantes africanos bolsistas no CEAO que não recebeu qualquer destaque ou
comentário por parte dos integrantes do Centro.
Se essas duas obras eram referências para o grupo do CEAO, Pierre Verger foi
mais que um cicerone (LÜNHING, 1998-1999). Disponibilizou seu conhecimento acerca
das relações entre Brasil e África, indicou e discutiu pontos de pesquisa, acompanhou os
primeiros passos desses pesquisadores na África. O geógrafo Waldir Oliveira,
pesquisador e diretor do CEAO nos anos 1960, citou o acompanhamento prestado por
Verger a Vivaldo em seus primeiros dias na costa africana (Oliveira, 2009). Yêda Pessoa
de Castro registrou, no primeiro artigo resultante da experiência na África, que chegaram
à comunidade de retornados em Lagos acompanhados por Verger (PESSOA DE
CASTRO, 1965). O antropólogo Júlio Braga também se refere à sugestão e companhia
de Verger para seguir do Senegal para o Daomé (atual Benin), onde, pouco tempo depois,
tal como o pesquisador francês, fez sua iniciação religiosa (BRAGA, 2015).
As discussões, avanços e resultados dessas pesquisas puderam ser conhecidos
através das aulas ou cursos ministrados na UFBA, em palestras e, em especial, nas
publicações da Afro-Ásia. A revista do Centro surgiu em 1965 e foi editada por Waldir
Oliveira e Nelson de Araújo. Um projeto editorial era uma preocupação do Centro desde
sua fundação. Com Afro-Ásia puderam os pesquisadores do Centro expor os trabalhos
numa revista de “padrão internacional e pioneira em seu gênero na América Latina”
(PESSOA DE CASTRO, S/N).
O periódico, de frequência semestral, experimentou ininterrupta publicação entre
1965 e 1970, totalizando 11 números em 5 volumes. Sua estrutura inicial contava com
artigos acadêmicos, documentos, informações de atividades realizadas no Centro de
Estudos e notícias sobre livros e revistas. Era uma ampliação significativa do projeto
editorial uma vez que já publicava as duas últimas seções através do Boletim Bibliográfico
e Ásia e África, ambos datilografados e mimeografados. A apresentação do número
inaugural destacava que a revista era
fruto de esforços que há seis anos vem realizando o Centro de Estudos
Afro-Orientais da UFBA para alcançar um melhor conhecimento das
realidades africana e asiática, visará ela difundir no Brasil e nos países
da América Latina os resultados destes esforços (PESSOA DE
CASTRO, S/N).

Queda de preconceitos em relação às nações “jovens e livres” bem como de


“nações rejuvenescidas”, orgulho das contribuições de tais povos, e importância desses
países num futuro próximo são pontos apresentados pela revista. Acabam por evidenciar
o contexto descolonial, a afirmação de novos países e a possibilidade de afirmação
política. Por outro lado, expõe o projeto intelectual que esses pesquisadores empreendiam
interessados em rever a importância da contribuição cultural dos povos negros na Bahia
num contexto ainda marcado por um consenso acerca do rompimento de ligações e
consequentemente distância com países e povos africanos e ausência de contribuições
significativas para a formação do povo brasileiro.
Este é o sentido dos esforços de Costa Lima, Pessoa de Castro e Braga no
continente africano: valorizar as comunidades de terreiro baianas a partir da compreensão
de que eram espaços de manutenção de modos da vida africana e suas práticas religiosas.
Longe de má-fé, invencionice ou curandeirismo, eram a evidência da civilização desses
povos, cujos sentidos e significados só poderiam ser compreendidos e comprovados
cientificamente à luz de pesquisa etnográfica no continente africano. Os terreiros
privilegiados nessa investida foram aqueles de longa tradição na cidade e de nação nagô-
queto, amparados não apenas pelo discurso de legitimidade e superioridade
compartilhado por essas casas como também decorrentes da tradição etnográfica que os
elegeu como lócus de pesquisa e os assegurava como praticantes de rituais africanos
(CASTILHO, 2008).
Os intelectuais interessados em comprovar que as práticas do candomblé
constituíam de fato uma religião os levaram a investigar quais as práticas que teriam
origem no continente africano. Essa perspectiva além de continuar a privilegiar grandes
e conhecidas casas, como o terreiro do Gantois e o Opô Afonjá, acabava por não atribuir
valor à candomblés que tinham outras matrizes ancestrais como os de origem congo-
angola, jeje ou de caboclo considerados de práticas menos rigorosas e, portanto, mais
propensos à prática da enganação, ou seja, não religiosa. O encanto que nutriam pela
cosmogonia iorubá não os fazia notar outras tradições religiosas que somente décadas
depois seriam alvos de pesquisas sistemáticas e de reconhecimento mais amplo da
sociedade. Como já salientado, os artigos publicados na Afro-Ásia reproduzem essa
perspectiva que ficou conhecida como nagocentrismo.
Yêda Pessoa de Castro rumou para o campo na Nigéria em busca de conhecer e
analisar a língua portuguesa falada pelos retornados. A metodologia aplicada seguiu o
trabalho anteriormente realizado no instituto de fonética e contou com a aplicação do
Questionário linguístico experimental (PESSOA DE CASTRO, 1965) acrescida de
entrevistas de caráter etnográfico. O objetivo da pesquisadora foi verificar o português
arcaico do Brasil falado no final do século XIX já que os retornados, por não terem
contatos com outros falantes da língua portuguesa, mantiveram as características daquele
período histórico. Tal qual a pesquisa na Bahia, ao identificar formas e expressões do
português arcaico, permitia diferenciá-los de expressões oriundas de outros grupos
étnicos, em especial, as expressões de origem africana.
Os três artigos publicados na Afro-Ásia na década de 1960 – Yêda Pessoa de
Castro é quem mais tem artigos na revista – permitem acompanhar o paulatino
aprofundamento da pesquisa. O primeiro intitulado Notícia de uma pesquisa em África
tem um caráter de texto prévio, com algumas informações sobre o campo e as informantes
selecionadas que se ligam a essa preocupação etnográfica do Centro. Os dados biográficos
apresentados por Pessoa de Castro das suas duas informantes, uma com mais de setenta
e a outra com mais de oitenta anos, visavam garantir a autenticidade das informações
prestadas. São reveladoras da euforia que marcava os pesquisadores por encontrar a
expressão viva do que argumentavam, a presença de “brasileiros” em Lagos. Também
evidencia o trabalho de campo no continente. A análise se detém em palavras e cantigas
de acalanto – as cantigas de ninar – apresentadas pelas senhoras Mariana de Câncio
(Ojelabi) e Romana da Conceição e a correspondência das mesmas com arcaísmos da
língua portuguesa através da literatura disponível e dos resultados obtidos com a pesquisa
anterior. Especula como uma palavra muito presente nas cantigas, Sun, que em iorubá
significa dormir, pode ser uma contribuição da língua africana a língua portuguesa falada
no Brasil (PESSOA DE CASTRO, 1965).
O segundo artigo A sobrevivência das línguas africanas no Brasil: sua influência
na linguagem popular da Bahia (PESSOA DE CASTRO, 1967), que foi apresentado no
II Congresso de Africanistas (Dacar, dezembro de 1967) aplica o argumento apresentado
anteriormente para o Brasil. Mais circunstanciado, a autora argumenta a respeito do
enriquecimento léxico da língua portuguesa no Brasil com a contribuição vocabular das
línguas africanas. Ao fazê-lo, curiosamente, reconhece a presença e contribuição de
palavras de diferentes línguas, não apenas o iorubá. O terceiro artigo, Etnônimos
africanos e formas ocorrentes no Brasil avança no estudo das línguas africanas, a
exemplo da ocorrência dos tons e da sílaba tônica, para compreender as alterações e
variações que os termos sofreram no Brasil e assim proceder “pela revisão ortográfica
dos etnônimos que se encontram em Africanos no Brasil (...)” (PESSOA DE CASTRO,
1968).
A revisão da obra de Nina Rodrigues é um ponto comum no trabalho desenvolvido
tanto por Yêda Pessoa de Castro quanto por Vivaldo da Costa Lima. As informações
registradas sobre os grupos étnicos africanos presentes no Brasil, seus costumes, seus
falares são ponto de referência, apoio e constante diálogo. Os estudos acerca do tráfico
de escravos africanos para o Brasil, em especial para a Bahia, forneciam dados em que se
amparavam para, explicitando o grande contingente de africanos oriundos da baía do
Benin no século XIX, explicar a predominância nos traços culturais baianos. Neste ponto,
destaca-se a contribuição de Pierre Verger que, investigando esse movimento no
Atlântico, concluiu pela existência de um ciclo comercial específico entre essas duas
partes do Atlântico (VERGER, 1966).
A pesquisa de Verger estava amparada em extensa documentação de arquivos
escritos bem como de pesquisa etnográfica com os povos contemporâneos. Daí seu
estímulo para que os pesquisadores do Centro, como Pessoa de Castro e Costa Lima,
aprofundassem o conhecimento acerca dos grupos e costumes africanos. Note-se que a
explicação através dos ciclos econômicos acabava por não abarcar as influências culturais
dos outros grupos étnicos, como os bantos, por preconizar que encerrado o tráfico com a
região Congo-Angola no século XVI, encerrou-se também a influência desses povos na
dinâmica da cultura baiana.
A proeminência nagô na Bahia é um argumento presente nos artigos.
Pode tratar-se de mera coincidência, mas não será um despropósito se
considerarmos o fato de ser o verso Su, su su corrente até hoje na Bahia,
lugar para onde foram importados a maioria dos escravos nagôs, como
ali são chamados os iorubás, durante os últimos séculos do tráfico, ao
lado de terem sido os mais cotados nos ‘mercados’ principalmente para
os trabalhos domésticos. A sua atuação foi tão marcante na formação
dos hábitos da família baiana que a saborosa cozinha tradicional da
Bahia é essencialmente a mesma encontrada na África, na antiga Costa
dos Escravos, sem falar-se no sincretismo religioso e na linguagem
popular da Bahia, rica de vocábulos de evidente procedência nagô
(PESSOA DE CASTRO, 1965).

Resultou que no século XIX a cidade de Salvador era exemplo típico


da coexistência de duas culturas diferentes: a portuguesa e a africana.
Intensifica-se o comércio de negros procedentes da Costa dos Escravos,
entre os quais parece ter havido uma predominância culturológica dos
Nagô, como são conhecidos os Iorubá da Nigéria Ocidental e do Baixo
Daomé no Brasil, por ter sido a língua iorubá, ao lado da portuguesa,
falada corretamente entre a população negra da cidade, que já naquela
época possuía um número consideravelmente grande de crioulos.
Corria, então, um dialeto crioulo ou semicrioulo do tipo nagô ou ioruba
(PESSOA DE CASTRO, 1967).

Essa argumentação era decorrente da vivência em candomblés de Salvador em


que havia a presença do iorubá tanto em expressões faladas cotidianamente como nas
cantigas rituais. A língua iorubá era muito visível nos candomblés razão pela qual a
insistência de sua supremacia frente a outras. O avançar da pesquisa, conforme se pode
verificar no texto de Pessoa de Castro publicado em 1968, já demonstra a expressiva
presença de palavras correntes na Bahia oriundas de outras línguas africanas a exemplo
do quimbundo. Para tanto, acreditava-se que essa influência banto seria mais significativa
em lugares como o estado de Minas Gerais – que havia recebido contingente de
escravizados bantos no século XVI – enquanto na Bahia “a língua do povo de santo”
vigoraria. Lembrando que para os pesquisadores do Centro de Estudos nos anos 1960,
povo de santo significava candomblé iorubá. O avanço da pesquisa de Yêda Pessoa de
Castro, que resultou na tese de doutorado defendida em 1976 na Universidade Nacional
do Zaire, a despeito do argumento inicialmente apresentado, concluiu que há grande
influência banto na língua portuguesa, não apenas no enriquecimento do vocabulário
como na alteração de formas (PESSOA DE CASTRO, 1976).
Os estudos que focavam a contribuição ou história dos povos congo-angola
receberam alguma atenção no CEAO perceptível através de textos na Afro-Ásia do
professor de literatura Fernando da Rocha Peres (1967 e 1968) e Marli Geralda Teixeira
(1967) do setor de estudos históricos do Centro. Os dois pesquisadores voltaram suas
análises para períodos históricos distantes. Peres analisou a obra do poeta Gregório de
Matos e sua relação com a guerra de Angola, e Teixeira apresentou pontos da história do
reino do Congo no século XVI. Ambos os textos subsidiaram cursos ministrados no
CEAO à época.
Abordar a história contemporânea de Angola era algo delicado, pois estava
diretamente relacionada com a política brasileira ambígua em relação à manutenção de
sua colonização. Waldir Oliveira, que publicou um texto na primeira edição da Afro-Ásia,
denominado Brancos e pretos em Angola e embora tenha tentado verificar a existência de
uma democracia social, concluiu que as disparidades sociais gritantes eram resultantes da
colonização (OLIVEIRA, 1965). O diretor do CEAO esteve em cidades angolanas a
convite do governo português em 1963 e como seu texto acabou por apresentar um
panorama desfavorável de sua situação, tornou-se uma persona non grata do governo
português de Oliveira Salazar (OLIVEIRA, 2009).
Vivaldo da Costa Lima dedicou-se ao estudo da história e organização de terreiros
em Salvador. Em paralelo, investigava os grupos étnicos africanos que, oriundos de países
da África ocidental, foram trazidos para a Bahia durante o regime escravista, ancestrais
dos descendentes africanos que constituíam os terreiros soteropolitanos. Desde seu
ingresso no CEAO, Costa Lima evidenciou o interesse pelos estudos sobre o candomblé
na Bahia. Sua proposta inicial constituía em desenvolver, num setor de etnologia, o estudo
das “sobrevivências religiosas africanas no Brasil” (Correspondência de Costa Lima para
Silva, 11/1959. CEAO). Já empreendia uma pesquisa independente que havia resultado
num guia para os participantes do IV colóquio. Com seu ingresso no Centro poderia,
conforme expôs a Agostinho da Silva, dispor de uma equipe. O objetivo da pesquisa que
empreendia era aprofundar a “história de uma casa de santo”, uma monografia em que
estudasse uma grande casa de candomblé na Bahia – “de suas origens míticas até os dias
de hoje, incluindo a análise de sua liturgia, folclore, vida social e situação econômica de
seus membros” (Correspondência de Costa Lima para Silva, 11/1959. CEAO).
Costa Lima organizou a primeira pesquisa realizada no Centro de Estudos.
Tratava-se da construção de pequenas monografias acerca de diferentes terreiros. Essa
pesquisa, conforme refletiu o autor, passou por duas fases. A primeira, a partir de 1959,
enfatizava a história de vida de líderes religiosos. A segunda fase, a partir de 1963, foi
ampliada a incluir dados socioeconômicos (COSTA LIMA, 2003). Diversos foram os
colaboradores para sua execução a citar Walter Barbosa, Júlio Braga e Regina de Souza
Castro (COSTA LIMA, 2003).
Se a intenção era compreender a dinâmica e funcionamento dos candomblés, a
pesquisa no continente africano, onde estariam os grupos étnicos que deram origem aos
rituais verificados na Bahia, foi mais que pertinente. Costa Lima passou cerca de três
anos, nas viagens realizadas, a pesquisar ao longo de diversos países da costa ocidental
africana grupos iorubás, jejes, seus rituais, linguística, deslocamento e história. Todo o
acúmulo da pesquisa no exterior visava subsidiar a análise acerca das nações de
candomblé, seu padrão e estrutura organizacional em Salvador.
Nessa investida em que vários grupos étnicos foram conhecidos e que várias casas
baianas foram entrevistadas, o terreiro Ilê Maroialaji, conhecido como terreiro da
Alaketo, concentrou atenção especial do estudioso. Tratava-se de um terreiro de tradição
nagô que afirmava uma descendência africana a partir de uma linhagem completamente
diferente dos terreiros mais conhecidos e estudados. Sua ancestralidade era remetida, não
para a antiga cidade de Oió, de onde foram trazidos muitos escravizados para Salvador.
Ligava-se o Alaketo ao antigo reino de Ketu, na fronteira entre a Nigéria e o Daomé.

Mas é do grupo originário de Ketu que trataremos aqui, grupo que fala
iorubá, localizado a oeste da região que seria mais tarde chamada de
Nigéria pelos colonizadores ingleses. Nessa zona estava a fronteira,
nem sempre tranquila, entre os jejes do Daomé e os nagôs de Egbado –
vizinhança mestiça que daria a denominação hibrida de nagô-vodunce,
conservada até hoje na Bahia, notadamente na casa do Alaqueto: nagô-
vodunce, os orixás nagôs e os voduns jejes (COSTA LIMA, 2010, p.
14).

Muito trabalho foi necessário para as conclusões a que chegou Costa Lima, em
1972, quando apresentou sua dissertação de mestrado a Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas na UFBA. O pesquisador não tinha grande paixão em publicar, o que dificulta
o acompanhamento do seu trabalho ao longo dos anos 1960. Do roteiro apresentado aos
coloquistas em 1959, o autor publicou Os Obás de Xangô na Afro-Ásia, (COSTA LIMA,
1966), e “O conceito de nação nos candomblés da Bahia” na mesma revista em 1976
(COSTA LIMA, 1976). A dissertação faz um histórico da pesquisa desenvolvida ao longo
da década.
Uma questão importante e sempre discutida era a metodologia a ser utilizada.
Desde a apresentação de seu plano de trabalho, em 1959, o pesquisador chamava atenção
para o “critério científico indispensável aos trabalhos dessa natureza”. Reflexões acerca
do rigor metodológico eram constantes em suas anotações. O levantamento realizado com
os terreiros não deveria parar em função de suas viagens ao continente africano ou a
Europa. Acompanhava rigorosamente, mediante informações remetidas por
correspondência, o trabalho em andamento.
Entre setembro de 1965 e janeiro de 1966, Vivaldo esteve em universidades
londrinas e fez uma rápida passagem por Paris no retorno. Sua correspondência ao Centro
recomendava a Waldir Oliveira que acompanhasse o andamento da pesquisa de campo,
realizada por Júlio Braga e Margarida Ferraz. “Elas [as pesquisas] não devem
absolutamente parar”(Correspondência de Costa Lima a Oliveira, 28/09/1965. CEAO).
Ao conhecer o universo de produção acadêmico europeu, Vivaldo da Costa Lima
surpreendeu-se com a constatação de que o seu questionário aplicado na pesquisa baiana
estava mais que adequado às exigências científicas.

[...] Parece piada. Mas devo reconhecer que eu não estava tão por fora,
e que aí no nosso Centro, pequeno e pobre (em relação às organizações
daqui) estamos de fato fazendo um trabalho atual, válido, importante, e
estritamente dentro do que há de mais ortodoxamente universitário
(Correspondência de Costa Lima a Oliveira, 06/11/65. CEAO).

Na explanação feita acerca da obtenção dos dados de pesquisa, na introdução da


dissertação, Costa Lima registra o trabalho realizado pela equipe do Centro, no setor de
estudos sociológicos e antropológicos, que “se iniciou com um levantamento censitário
dos candomblés situados na zona urbana de Salvador” (COSTA LIMA, 2003, p. 12). O
critério empregado pela equipe “foi o de considerar como um candomblé apenas o grupo
que apresentasse uma organização estrutural nitidamente reconhecível através do roteiro
do questionário-entrevista organizado para a coleta de dados” (COSTA LIMA, 2003, p.
13). Sobre o instrumento para coleta dos dados, o autor indica duas fases. Um primeiro
questionário foi elaborado em 1959 e “enfatizava a história de vida dos chefes dos
grupos”, reflexo da fase ainda inicial da pesquisa, resultando em informações sobre
líderes religiosos depois falecidos. Em 1962, houve uma reformulação nos questionários
estendidos “à infraestrutura econômica dos terreiros e aos aspectos etnolinguísticos e
simbólicos do ritual” (COSTA LIMA, 2003, p. 14).
Vivaldo destaca como a pesquisa foi desenvolvida simultaneamente a outra de
caráter etnolinguístico, também por sua equipe no CEAO (1967- 69). Essas duas
pesquisas desenvolvidas no Centro intitulavam-se “Associações religiosas afro-
brasileiras” e “Linguagem das associações religiosas afro-brasileiras” (COSTA LIMA,
2003, p. 41). Mesmo tratando-se de linguagem, essa pesquisa difere da desenvolvida no
mesmo período por Yêda Pessoa de Castro, que realizava um “levantamento léxico-
estatístico do vocabulário africano remanescente entre os adeptos dos cultos religiosos
afro-brasileiros”, no setor de estudos linguísticos (PESSOA DE CASTRO, 1967). O fato
é que as pesquisas de Costa Lima e Pessoa de Castro se complementavam e tanto um
como outro registram as novas informações que tomavam conhecimento a partir dos
cursos ministrados no CEAO nos quais se atualizavam (PESSOA DE CASTRO, 1967, P.
67).
Cursos ministrados no CEAO pelos seus pesquisadores foram iniciados a partir
de 1965. Até então havia diferentes cursos de línguas ministrados por diferentes
professores nem sempre com experiência ou formação para tal. O curso da língua iorubá,
ministrado por Ebenezer Lasebikan, fugia a esse perfil. O docente era linguista vindo de
Londres para a Bahia de modo a atender uma demanda específica muito importante para
o povo de santo, público interessado e próximo do Centro de Estudos. Esses cursos de
língua funcionaram até 1964 e foram cancelados no início de 1965 quando foram
programados os cursos teóricos do CEAO.
Se o rigor metodológico era uma preocupação para Vivaldo da Costa Lima, o rigor
teórico não se fazia menor. A condição de principiante em relação aos professores
consagrados da Faculdade fazia de Costa Lima insistente em adquirir as habilidades
necessárias, através do trabalho que realizava no CEAO para adentrar no grupo mais
estreito de professores da Universidade. No relato enviado de Londres, em 1965, “Estou
dando um duro danado botando a coisa em inglês e lendo como o diabo milhões de
teóricos de Antropologia Social. Quando eu voltar os porretas daí vão poder conversar
comigo na sua gíria” (Correspondência de Costa Lima a Oliveira, 21/09/1965. CEAO).
Os cursos teóricos que passaram a ser oferecidos eram a possibilidade de obter maior
reconhecimento dos pares. Enquanto realizava seu estágio nas universidades londrinas, o
pesquisador discutia com Waldir Oliveira quais as possibilidades para a manutenção do
CEAO, e os cursos apareciam como uma possibilidade de “transformar – ou ampliar – o
centro com cursos reconhecidos pela universidade” (Correspondência de Costa Lima a
Oliveira, 14-16/11/1965. CEAO).
Não se pode perder de vista que realizar pesquisa científica e ministrar aulas era
o que garantiria o reconhecimento como um professor universitário. Para Costa Lima –
um dos poucos sem experiência docente – oportunidades de apresentar seu trabalho
surgiram quando substituiu eventualmente Thales de Azevedo em 1966 e Carlos Ott em
1968. Sua estratégia, uma vez que não se considerava habilitado didaticamente, foi
utilizar os dados da pesquisa sobre os candomblés para “introduzir os alunos nas
formulações teóricas e nos conceitos básicos da antropologia sociocultural” (COSTA
LIMA, 2003, p.10). O bom aproveitamento da experiência levou os então discentes a
participar, através de pequenas equipes de pesquisa, com trabalhos práticos que
colaboraram com a pesquisa em curso.
Os resultados foram apresentados como A família de santo nos candomblés jejes-
nagos da Bahia: um estudo das relações intragrupais (COSTA LIMA, 2003). O autor
examina a expressão família de santo a partir da qual “estudando os grupos de candomblé
relaciona os planos religiosos e rituais de sua estrutura com o comportamento de seus
membros na estrutura social mais ampla, analisando ainda, com os dados disponíveis da
pesquisa de campo, os sistemas organizacionais das casas de santo e a estratificação mais
ou menos rígida, de suas hierarquias” (COSTA LIMA, 2003, p. 11-12).

REFERÊNCIAS
ACONTECE que são baianos I. O Cruzeiro, 11 de agosto de 1951, n. 43, p. 72-76. Fundação
Pierre Verger
ACONTECE que são baianos II. O Cruzeiro, 18 de agosto de 1951, n. 44, p. 62-4, 68, 90.
Fundação Pierre Verger
CASAS brasileiras na África. O Cruzeiro, 25 de agosto de 1951, n. 45, p. 102-4 e 106. Fundação
Pierre Verger
CASTILHO, Lisa. Entre a oralidade e escrita: etnografia nos candomblés da Bahia. Salvador:
EDUFBA, 2008.
COSTA LIMA, Vivaldo da. Uma festa para Xangô. Salvador: UFBA, UNESCO, 1959.
____. A família de santo nos candomblés jeje-nagôs da Bahia: um estudo de relações
intragrupais. 2 ed., rev. Salvador: Corrupio, 2003.
____. “Introdução”. In: REGIS, Olga Francisca. A comida de santo numa casa de queto na
Bahia. Salvador: Corrupio, 2010.
____. “Os obás de Xangô”. Afro-Ásia, n. 2-3, 1966.
____. “O conceito de nação nos candomblés da Bahia”. Afro-Ásia, n.12 , 1976, p. 65-89.
LÜHNING, Angela. “Pierre Fatumbi Verger e sua obra”. Afro-Ásia. 21-22 (1998-1999). p. 315-
353.
OLIVEIRA, Waldir Freitas. “Brancos e pretos em Angola”. Afro-Ásia, n. 1, 1965.
PERES, Fernando. “Negros e mulatos em Gregório de Matos”. Afro-Ásia, n 4-5, 1967;
PESSOA DE CASTRO, Yêda. A Experiência do CEAO. Datilografado. [s.l: s.n., s.d.].
___________________. “Notícia de uma pesquisa em África”, Afro-Ásia, n.1, 1965, p. 41-56.
___________________. “A sobrevivência das línguas africanas no Brasil: sua influência na
linguagem popular da Bahia”, Afro-Ásia, n.4-5, 1967, p. 25-34.
___________________. “Etnônimos africanos e formas ocorrentes no Brasil”, Afro-Ásia, 1968,
p. 65.
___________________. De l'intégration des apports a africains dans les parlers de Bahia au
Brésil. 2v. Tese (Doutorado), Universite Nationale du Zaire, Faculte des Lettres, 1976.
__________________. Falares africanos no Bahia (um vocabulário afro-brasileiro). Rio de
Janeiro: Topbooks, 2001.
REIS, Luiza Nascimento dos. O Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA: intercâmbio
acadêmico e cultural entre Brasil e África (1959-1964). Dissertação (Mestrado em Estudos
Étnicos e Africanos). Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2010.
_____. De improvisados a eméritos: trajetórias de intelectuais no Centro de Estudos Afro-
Orientais (1959-1994). Tese (Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos).
Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2015.
TEIXEIRA, Marli Geralda. “Notas sobre reino do Congo no século XVI”. Afro Ásia, n 4-5, 1967.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de
Todos os Santos dos séculos XVII ao XIX. São Paulo: Corrupio, 1987.
________, O fumo da Bahia e o tráfico dos escravos do gôlfo de Benim. Publicações do Centro
de Estudos Afro Orientais, UFBA: Salvador, 1966, n° 6, série Estudos.

ARQUIVOS CONSULTADOS
Acervo do CEAO
Fundação Pierre Verger

ENTREVISTAS
BRAGA, Julio Santana, “Sou criança em relação a esse mundo milenar”. Entrevista concedida a
Cleidiana Ramos. Em 06/04/2015.
In. http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1655275-braga-sou-crianca-em-relacao-a-esse-
mundo-milenar
OLIVEIRA, Waldir Freitas. Entrevista concedida a Luiza Reis, 2009.

Você também pode gostar