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Essa informação fazia uma referência direta ao texto do médico polígrafo Nina
Rodrigues quando, no início do século XX, assistiu à partida do que chamou de “os
últimos africanos no Brasil”. Nina Rodrigues é considerado o precursor dos estudos afro-
brasileiros, pois dedicou-se a estudos a respeito da população negra de Salvador no que
tange aos seus costumes. O livro do médico foi publicado nos anos 1930 quando houve
uma renovação do interesse de pesquisadores localizados na Bahia por temas relativos à
cultura negra em que se destacava o candomblé. Nesse sentido houve publicação de
estudos de autores baianos como Manuel Querino, Édison Carneiro e Arthur Ramos e
estrangeiros como Ruth Landes, Roger Bastide e Melville Herkovitz.
Nos anos 1950, quando houve novo impulso na Bahia para a realização de estudos
afro-brasileiros, Nina Rodrigues foi a principal referência tomada. Aspirante a
antropólogo, Vivaldo da Costa Lima insistia que sua pesquisa com os candomblés baianos
e grupos étnicos na África ocidental visava “atualizar” a obra de Nina Rodrigues
(Correspondência de Costa Lima para Oliveira, 07/07/1962. CEAO). Ao ingressar no
CEAO disse estar interessado nos estudos afro-brasileiros cuja leitura vinha se dedicando
(Correspondência de Costa Lima para Silva, 11/1959. CEAO). Isso pode ser verificado
em sua primeira publicação, um roteiro entregue aos participantes do IV Colóquio de
Estudos Luso-Brasileiros, intitulado Uma festa para Xangô onde se apoiou em textos de
Carneiro, Bastide, Verger e Pierson para apresentar o terreiro do Opô Afonjá (COSTA
LIMA, 1959). Interessado na valorização de Nina Rodrigues, Vivaldo propôs entrega de
prêmio de pesquisa por ocasião do centenário de nascimento comemorado em 1962 e,
mais adiante, propôs a publicação de nova edição do livro por ocasião dos 20 anos da
UFBA, em 1966 (Correspondência de Oliveira para o reitor Miguel Calmon, 11/05/1966.
CEAO).
Yêda Pessoa de Castro reservava igualmente grande atenção à obra de Nina
Rodrigues uma vez que seu livro era o que mais apresentava informações acerca das
palavras africanas faladas na Bahia. Nina era uma referência sobretudo pelas informações
que havia conseguido reunir acerca dos grupos étnicos africanos que foram trazidos para
a Bahia durante o período escravista. Seu trabalho afirmava um pressuposto que os
pesquisadores do CEAO, como Costa Lima e Pessoa de Castro, não questionavam e
buscavam comprovar: a presença e superioridade tanto numérica quanto cultural dos
povos iorubás – aqui chamados nagôs – em Salvador. Com isso, fica clara toda a corrida
à África Ocidental, em especial à Nigéria e ao Daomé, dos pesquisadores do Centro de
Estudos (REIS, 2010).
Gilberto Freyre é citado, mas não com a mesma ênfase que o fazem com Nina
Rodrigues. Marisa Côrrea argumentou como a filiação ao médico etnógrafo não se fazia
pelo argumento teórico uma vez que essa produção estava amparada no critério da
existência de diferentes raças, não mais utilizado pelos pesquisadores em meados do
século XX. Contudo, mesmo reconhecendo que Freyre oferecia o embasamento teórico,
os pesquisadores do Centro de Estudos não davam ênfase a sua produção. Possivelmente
porque, àquele momento, Freyre representava uma escola pernambucana que rivalizava
com uma escola baiana, a qual o CEAO se filiava. Freyre ministrou uma aula para os
estudantes africanos bolsistas no CEAO que não recebeu qualquer destaque ou
comentário por parte dos integrantes do Centro.
Se essas duas obras eram referências para o grupo do CEAO, Pierre Verger foi
mais que um cicerone (LÜNHING, 1998-1999). Disponibilizou seu conhecimento acerca
das relações entre Brasil e África, indicou e discutiu pontos de pesquisa, acompanhou os
primeiros passos desses pesquisadores na África. O geógrafo Waldir Oliveira,
pesquisador e diretor do CEAO nos anos 1960, citou o acompanhamento prestado por
Verger a Vivaldo em seus primeiros dias na costa africana (Oliveira, 2009). Yêda Pessoa
de Castro registrou, no primeiro artigo resultante da experiência na África, que chegaram
à comunidade de retornados em Lagos acompanhados por Verger (PESSOA DE
CASTRO, 1965). O antropólogo Júlio Braga também se refere à sugestão e companhia
de Verger para seguir do Senegal para o Daomé (atual Benin), onde, pouco tempo depois,
tal como o pesquisador francês, fez sua iniciação religiosa (BRAGA, 2015).
As discussões, avanços e resultados dessas pesquisas puderam ser conhecidos
através das aulas ou cursos ministrados na UFBA, em palestras e, em especial, nas
publicações da Afro-Ásia. A revista do Centro surgiu em 1965 e foi editada por Waldir
Oliveira e Nelson de Araújo. Um projeto editorial era uma preocupação do Centro desde
sua fundação. Com Afro-Ásia puderam os pesquisadores do Centro expor os trabalhos
numa revista de “padrão internacional e pioneira em seu gênero na América Latina”
(PESSOA DE CASTRO, S/N).
O periódico, de frequência semestral, experimentou ininterrupta publicação entre
1965 e 1970, totalizando 11 números em 5 volumes. Sua estrutura inicial contava com
artigos acadêmicos, documentos, informações de atividades realizadas no Centro de
Estudos e notícias sobre livros e revistas. Era uma ampliação significativa do projeto
editorial uma vez que já publicava as duas últimas seções através do Boletim Bibliográfico
e Ásia e África, ambos datilografados e mimeografados. A apresentação do número
inaugural destacava que a revista era
fruto de esforços que há seis anos vem realizando o Centro de Estudos
Afro-Orientais da UFBA para alcançar um melhor conhecimento das
realidades africana e asiática, visará ela difundir no Brasil e nos países
da América Latina os resultados destes esforços (PESSOA DE
CASTRO, S/N).
Mas é do grupo originário de Ketu que trataremos aqui, grupo que fala
iorubá, localizado a oeste da região que seria mais tarde chamada de
Nigéria pelos colonizadores ingleses. Nessa zona estava a fronteira,
nem sempre tranquila, entre os jejes do Daomé e os nagôs de Egbado –
vizinhança mestiça que daria a denominação hibrida de nagô-vodunce,
conservada até hoje na Bahia, notadamente na casa do Alaqueto: nagô-
vodunce, os orixás nagôs e os voduns jejes (COSTA LIMA, 2010, p.
14).
Muito trabalho foi necessário para as conclusões a que chegou Costa Lima, em
1972, quando apresentou sua dissertação de mestrado a Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas na UFBA. O pesquisador não tinha grande paixão em publicar, o que dificulta
o acompanhamento do seu trabalho ao longo dos anos 1960. Do roteiro apresentado aos
coloquistas em 1959, o autor publicou Os Obás de Xangô na Afro-Ásia, (COSTA LIMA,
1966), e “O conceito de nação nos candomblés da Bahia” na mesma revista em 1976
(COSTA LIMA, 1976). A dissertação faz um histórico da pesquisa desenvolvida ao longo
da década.
Uma questão importante e sempre discutida era a metodologia a ser utilizada.
Desde a apresentação de seu plano de trabalho, em 1959, o pesquisador chamava atenção
para o “critério científico indispensável aos trabalhos dessa natureza”. Reflexões acerca
do rigor metodológico eram constantes em suas anotações. O levantamento realizado com
os terreiros não deveria parar em função de suas viagens ao continente africano ou a
Europa. Acompanhava rigorosamente, mediante informações remetidas por
correspondência, o trabalho em andamento.
Entre setembro de 1965 e janeiro de 1966, Vivaldo esteve em universidades
londrinas e fez uma rápida passagem por Paris no retorno. Sua correspondência ao Centro
recomendava a Waldir Oliveira que acompanhasse o andamento da pesquisa de campo,
realizada por Júlio Braga e Margarida Ferraz. “Elas [as pesquisas] não devem
absolutamente parar”(Correspondência de Costa Lima a Oliveira, 28/09/1965. CEAO).
Ao conhecer o universo de produção acadêmico europeu, Vivaldo da Costa Lima
surpreendeu-se com a constatação de que o seu questionário aplicado na pesquisa baiana
estava mais que adequado às exigências científicas.
[...] Parece piada. Mas devo reconhecer que eu não estava tão por fora,
e que aí no nosso Centro, pequeno e pobre (em relação às organizações
daqui) estamos de fato fazendo um trabalho atual, válido, importante, e
estritamente dentro do que há de mais ortodoxamente universitário
(Correspondência de Costa Lima a Oliveira, 06/11/65. CEAO).
REFERÊNCIAS
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Pierre Verger
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Fundação Pierre Verger
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Pierre Verger
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____. “Os obás de Xangô”. Afro-Ásia, n. 2-3, 1966.
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LÜHNING, Angela. “Pierre Fatumbi Verger e sua obra”. Afro-Ásia. 21-22 (1998-1999). p. 315-
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ARQUIVOS CONSULTADOS
Acervo do CEAO
Fundação Pierre Verger
ENTREVISTAS
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In. http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1655275-braga-sou-crianca-em-relacao-a-esse-
mundo-milenar
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