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BASTIDE, Roger; VERGER, Pierre.

Diálogo entre filhos de Xangô:


correspondência 1947-1974. Apresentação e notas de Françoise Morin,
tradução de Regina Salgado Campos. São Paulo; Salvador: Edusp;
Fundação Pierre Verger, 2017. [apresentação].

PESQUISADORES FRANCESES E AS
RELAÇÕES BRASIL-ÁFRICA
O livro traz 225 cartas trocadas entre os amigos Roger Bastide e Pierre Verger ao longo de quase 30 anos
de suas trajetórias como participantes e pesquisadores das culturas afro-brasileiras e africanas. As cartas
abordam questões importantes de seus ofícios e de seu empenho pelo reconhecimento do tema, caro a
ambos (Cf. website EDUSP).
“(...) a correspondência em apreço nos oferece uma janela
privilegiada para vislumbrar não apenas a história intelectual de dois
dos maiores pesquisadores dos estudos afro-brasileiros, como para
entender o processo de constituição dessa área de conhecimento em
meados do século XX. Como é sabido, o campo dos estudos sobre o
negro no Brasil, iniciado com Nina Rodrigues e continuado por
autores como Edison Carneiro e Arthur Ramos, logo se viu acrescido
da contribuição de uma série de pesquisadores estrangeiros. Se no
final dos anos de 1930 e início da década de 1940 foi o turno de
pesquisadores norte-americanos, como Lorenzo Turner, Franklin
Frazier, Ruth Landes e o casal Herskovits, a partir do final dessa
década e durante as duas seguintes, a influência dos pesquisadores
franceses, como Roger Bastide e Pierre Verger, foi marcante. O
campo dos estudos afro-brasileiros não se entende sem essa dupla
e tensa articulação entre o olhar nacional, com suas complexas
perspectivas regionalistas, e o olhar externo do estrangeiro. Os
estudos de Verger e Bastide vieram a consolidar a “tradição afro-
brasilianista”, que pensava a cultura afro-brasileira, em particular o
candomblé, como uma continuidade da África no Brasil, enfatizando
as origens e, às vezes, de forma pouco crítica, a pureza da tradição
africana (sobretudo iorubá), em detrimento da criatividade cultural e
do sincretismo americano. Essa abordagem seria exposta e
questionada, a partir dos anos 1980 (...)”.
Cf. PARÉS, Luís Nicolau. A correspondência entre Roger Bastide e Pierre Verger. Revista USP, SP, n. 120, jan. fev. mar. de 2019.
Roger Bastide era apaixonado pelo misticismo e teve a
sua obra voltada às áreas da literatura e sociologia
religiosa: Os problemas da vida mística (1931) e
Elementos da sociologia religiosa (1935).

“Uma preocupação comparatista aparece nessas duas


obras, o que permitiria ‘multiplicar as sondagens nos
meios mais diversos e nos países mais distantes’.
Aspirava também à possibilidade de realizar pesquisas
de campo, confirmando que ‘uma simpatia intuitiva’ não
devia faltar ao sociólogo para apreender fenômenos
místicos. Em 1938, Roger Bastide encontrou
circunstâncias favoráveis para pôr em prática no Brasil
esses princípios metodológicos”. Foi trabalhar na
Universidade de São Paulo, onde ficaria até 1954,
tendo posteriormente se iniciado no candomblé
Roger Bastide (1951). Entrou em contato com uma capital em
crescimento no Novo Mundo, rompendo com o seu
provincianismo interiorano e com a sua rigidez
acadêmica europeia.
Quando mudou-se para o Brasil, “(...) a prioridade de suas pesquisas
continuava no campo religioso e, em particular, na questão das
sobrevivências religiosas africanas entre descendentes dos escravos
negros. Inicialmente, tomou conhecimento dos inúmeros trabalhos de
antropólogos, médicos e psicanalistas brasileiros sobre o mundo dos
candomblés [Nina Rodrigues etc.]. (...) E, a partir das suas conclusões,
principalmente sobre o sincretismo entre os orixás dos negros da Bahia
e da igreja católica, formulou hipóteses de pesquisa que quis testar in
loco na sua primeira viagem ao Nordeste, entre 19 de janeiro e 28 de
fevereiro de 1944, quando passou uns quinze dias na Bahia e três
semanas no Recife. (...) Roger Bastide teve acesso a vários terreiros e
participou de diversos rituais, como o da oferenda de Iemanjá”.
Pierre Verger, filho caçula de uma família burguesa parisiense, desde cedo agia
contrariamente aos “valores conformistas”. Os membros masculinos de sua família
morreram muito cedo, restando-lhe a mãe, “‘a única pessoa que não desejava
chocar ao adotar um tipo de vida muito diferente daquele prescrito pelas normas
da família’. Mas esta morreu em 1932, ano de sua iniciação à fotografia por um
amigo, Pierre Boucher, e de sua descoberta do mundo.
‘Comecei a viajar’ escreveu ele em 50 anos de
fotografia, ‘não tanto pelo desejo de fazer pesquisas
etnográficas ou reportagens, mas por necessidade de
distanciar-me, de libertar-me e escapar do meio em
que tinha vivido até então, cujos preconceitos e
regras de conduta não me tornavam feliz’”. Viajou o
mundo trabalhando com fotorreportagens pela
Oceania, Ásia e América. Tornou-se fotógrafo do
museu etnográfico, onde passou a entrar em contato
com diversos antropólogos, incluindo Alfred Métraux,
com quem viria a se tornar amigo.

[A respeito dos três etnólogos franceses atuantes no Brasil, ver:


LÜHNING, Ângela. Verger, Bastide e Métraux: três trajetórias
entrelaçadas. Revista USP, São Paulo, n. 95, pp. 128-141, set-out-nov,
Pierre Verger 2012].
Verger partilhava do “sortilégio negro”, as noites quentes e exóticas em
Paris, o que teria gerado mais tarde o seu interesse pelas civilizações
antilhana, brasileira e africana.

Após viajar por países mediterrâneos, fez a sua primeira incursão na África
(Níger), de onde posteriormente foi para as Antilhas francesas e México,
voltando à França. Em 1937 volta à Ásia para cobrir o conflito sino-japonês
em Xangai, tendo visitado posteriormente algumas colônias francesas na
Oceania. Em 1939 foi para o México, Guatemala, e depois conheceu os
países andinos. O contexto da segunda guerra interrompeu essa estadia. Em
1940 foi incorporado ao serviço fotográfico do Governo Geral da África
Ocidental Francesa. Em 1941 e 1942 foi para a Argentina, Bolívia e Peru,
onde foi contratado pelo Museu Nacional de Lima para fotografar a realidade
dos povos andinos. Em 1946 resolve voltar a Paris atravessando a Bolívia e o
Brasil, quando chegou de trem a São Paulo. “Há quatorze percorria o mundo
com uma Rolleiflex pendurada no pescoço em busca da alteridade. Tinha se
tornado muito sensível à diversidade cultural, em particular das minorias
étnicas. Suas imagens demonstram uma grande curiosidade etnográfica e
ilustra os modos de vida dos povos visitados”.
O encontro entre Pierre Verger e Roger Bastide

Em 1946 eles se encontram em São Paulo. Entusiasmado com a


recente viagem realizada ao nordeste, Bastide recomenda ao
amigo fotógrafo que vá à Bahia. “‘Foi Roger Bastide que me
revelou a África no Brasil, ou mais exatamente, a influência da
África na região Nordeste do país’. A relação deles poderia ter
terminado ali. Mas ambos iriam manter, durante 27 anos, uma
comunicação intensa e uma colaboração sem ruptura que
assumiu diversas formas. Pierre Verger, o nômade, viajando entre
a África, o Brasil, as Caraíbas e a Europa, e Roger Bastide, forçado
a ser mais sedentário em razão de suas obrigações universitárias,
não cessaram de se ajudar mutuamente partilhando sua paixão
pelo mundo negro”.
Colaboração mútua
Bastide escrevia os textos das fotografias de Verger e vice-versa. Bastide
recomendou ao diretor do IFAN a concessão de uma bolsa para Verger visitar
a África. Quando isso ocorreu, Verger supria sua falta de conhecimentos
antropológicos com o seu amigo Bastide, sendo que essa troca sobre questões
conceituais e teóricas prosseguiu por muito tempo depois. Quando estiveram
juntos em Salvador, em 1953, participaram de um ritual no terreiro Axé Opô
Afonjá cuja experiência foi descrita no trabalho Contribuições ao estudo da
adivinhação em Salvador. “Durante os anos seguintes, Roger Bastide pediu-lhe
informações sobre Exu (divindade ioruba), os vevés do Haiti, as plantas ligadas
aos diversos orixás, as cerimônias fúnebres nagôs, pontos da história dos
candomblés, e sobre os doze ministros de Xangô. E Pierre Verger respondeu
todas as vezes com muita precisão. O ritmo desse intercâmbio acelerou-se em
1955, quando Roger Bastide escrevia a sua tese (...)”. Dessa contribuição, o
nome de Pierre Verger passa a ser conhecido na Sourbone. “Em troca, Roger
Bastide ocupou-se dos interesses e dos projetos de publicação de Pierre
Verger em São Paulo e em Paris (...)”, além de temas de pesquisa e datas de
congressos importantes para a temática estudada por ambos.
Colaboração mútua

“Pierre Verger, por sua vez, preparou-lhe [Roger Bastide] em 1958 sua
primeira pesquisa de campo na África. Mostrou-lhe a influência do Brasil
no Dahomé e na Nigéria e o apresentou a seus amigos e colegas: era
uma maneira de recompensar Bastide por tudo o que ele lhe havia feito
na sua chegada ao Brasil em 1946. (...) Seu colar de contas vermelhas e
brancas serviu-lhe de passaporte junto a seus correligionários
africanos”.

Bastide ajuda Verger em sua candidatura ao Centre National de la


Recherche Scientifique (CNRS), onde foi nomeado chargé de recherche
em 1o de outubro de 1962. Era seu orientador e Pierre Verger o inquiria
a respeito do seu programa de pesquisa (...). Roger Bastide aconselhou-o
(...) sobre o conteúdo de seu primeiro relatório de atividades e, durante
cinco anos, até 1967, Pierre Verger enviou uma cópia desse ‘castigo
anual’. Membro da sua banca de doutorado, defendida com sucesso em
1965, Roger Bastide continuou a apoia-lo em sua carreira no CNRS.
Iniciação e idiossincrasias dos irmãos de santo
A iniciação não correspondia às mesmas expectativas para cada um deles:

Para Bastide: tratava-se de “encantamento”, deixar-se penetrar por outra cultura


ao passo que rompia com seu cartesianismo e compreendia a filosofia e a
religiosidade de matriz africana.

Para Verger: tratou-se do seu próprio renascimento numa família tradicional


africana, depois de uma fase de supressão de uma identidade imposta.

Pierre Verger “considerava Roger Bastide como um ‘irmão em Ogodô’, isto é, em


Xangô. O orixá protetor comum aos dois havia escolhido Pierre Verger em 1948 e
Roger Bastide em 1951. (...) Ele fazia questão de lhe dar notícias regulares da ‘mãe
deles’, que Roger Bastide teve a alegria de rever durante a sua viagem, em 1962,
na Bahia, durante sua ‘lavagem de colar’, que ele devia repetir a cada dez anos.
Alguns anos mais tarde ela falecia e foi por Pierre Verger que lhe anunciou essa má
notícia. (...) Essa amizade perdurou até a morte de Roger Bastide, em 1974”.
Dois ícones venerados
“Tanto por suas pesquisas como por suas implicações morais, Roger Bastide e
Pierre Verger contribuíram para revalorizar os cultos afro-brasileiros. Nos anos de
1940 e 1950, ainda se estigmatizavam esses ritos que haviam sido, dez anos antes,
objeto de proibições e perseguições. Mostrar que o candomblé era fiel à África e
estimular o orgulho de seus adeptos era para esses dois pesquisadores uma espécie
de engajamento intelectual. Isso vai levá-los a supervalorizar o modelo iorubá do
candomblé. Para cada um, sua implicação correspondia motivações pessoais. Para
Bastide, era a busca apaixonada das experiências místicas (...) [que] legitimou sua
afirmação identitária (...) Mas, as estadas de Roger Bastide na Bahia foram muito
curtas e repetidas em sete anos, como ele mesmo reconhecia. Foi, portanto, muito
mais por seus trabalhos científicos que contribuiu para o reconhecimento e a
valorização do candomblé. Ao contrário, Pierre Verger escolheu morar na Bahia,
cujo clima de tolerância cultural ele apreciava muito. (...) Dois terreiros, o Engelho
Velho (Casa Branca) e o Ilê Axé Opô Afonjá serviram-lhe de família de acolhimento
e ele manteve vínculos muito estreitos com Dona Senhora, sua mãe espiritual, a
que consagrou sua cabeça a Xangô e que lhe entregou seu colar de contas vermelhas
e brancas, signo de sua filiação a esse orixá. Tendo aceitado ser seu mensageiro
para a África, Verger lhe trouxe diversos objetos portadores de força simbólica para
seu terreiro, até cartas autentificando sua filiação com os dignitários africanos. (...)”.
Retomada do contato com o continente africano
Porém, foi sua [Pierre Verger] iniciação ao Ifá na África que lhe conferiu muito
prestígio, pois marcava uma nova etapa na aquisição dos seus conhecimentos da
cultura ioruba. Em 28 de março de 1953, em Ketu, tinha se tornado Fatumbi,
querendo dizer que Ifá o havia novamente posto no mundo. Ele perdia sua
identidade anterior e se tornava membro da confraria dos babalaôs, ‘mestres do
segredo’, intermediários entre os homens e os orixás”.

“Em várias publicações Pierre Verger se esforçou para mostrar, com a ajuda de
fotos, a fidelidade africana dos cultos afro-brasileiros e, ao trabalhar com o tráfico
negreiro, colaborou para restabelecer vínculos entre o Golfo do Benin e a cidade
da Bahia”. [Cf. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a
Bahia de Todos-os-Santos, do século XVII ao XIX].

“Ao serem qualificados como ‘inventores da tradição ioruba’ nesses últimos anos,
Roger Bastide e Pierre Verger contribuíram para valorizar as culturas negras com
frequência desprezadas (...). Depois de sua morte, ambos se tornaram ícones
venerados nos meios afro-brasileiros. Seus trabalhos são reeditados e
amplamente utilizados pelos adeptos do candomblé”.
A obra audiovisual escolhida

Pierre Fatumbi Verger, mensageiro entre dois mundos


Gilberto Gil narra e apresenta a história do fotógrafo e
etnógrafo francês radicado no Brasil. O documentário inclui
a última entrevista de Verger, gravada um dia antes de seu
falecimento, em 1996, além de extenso material fotográfico
e depoimentos de amigos como Jorge Amado, Zélia Gattai,
Mãe Stella, Pai Agenor e o historiador Cid Teixeira.

Data de lançamento: 1998 (Brasil).


Diretor: Lula Buarque.
Produção: Pedro Buarque de Hollanda, Flora Gil, Leonardo
Monteiro de Barros.
Justificativa?
Reflexões

• Relações Brasil x África;

• Nagocentrismo & ideal de “pureza” africana;

• Diferentes sabedorias: academia x comunidades e


terreiros; pesquisa x ensino;

• “Pedagogia e epistemologia das encruzilhadas”;


(perspectiva recente: visite os trabalhos de Luiz Rufino, Luiz
Antônio Simas e Rodney William etc.).

Música: “Exu nas escolas” (Elza Soares).


Exu nas escolas Pois acredito que até o próprio Cristo era
Exu nas escolas Um pouco mais crítico em relação a tudo isso
Exu nas escolas E o que as crianças estão pensando?
Exu nas escolas Quais são os recados que as baleias têm para
Exu no recreio dar a nós
Não é Xou da Xuxa Seres humanos, antes que o mar vire uma
Exu brasileiro gosma?
Exu nas escolas Cuide bem do seu Tcheru
Exu nigeriano
Na aula de hoje veremos Exu
Exu nas escolas
Voando em tsuru
E a prova do ano
Entre a boca de quem assopra e o nariz de
É tomar de volta
A alcunha roubada quem recebe o tsunu
De um deus iorubano As escolas se transformaram em centros
Exu nas escolas
ecumênicos
Exu nas escolas Exu te ama e ele também está com fome
Exu nas escolas Porque as merendas foram desviadas
Estou vivendo como um mero mortal profissional novamente
Percebendo que às vezes não dá pra ser didático Num país laico
Tendo que quebrar o tabu e os costumes frágeis Temos a imagem de César na cédula e um
das crenças limitantes "Deus seja louvado"
Mesmo pisando firme em chão de giz As bancadas e os lacaios do Estado
De dentro pra fora da escola é fácil aderir a uma Se Jesus Cristo tivesse morrido nos dias de
ética e uma ótica hoje com ética
Presa em uma enciclopédia de ilusões bem Em toda casa, ao invés de uma cruz, teria uma
selecionadas cadeira elétrica
E contadas só por quem vence
Interpretação:

PINGO, Lisandra Cortes. Uma análise das múltiplas faces de


Exu por meio de canções brasileiras: contribuições para
reflexões sobre o ensino da cultura e da história africana e
afro-brasileira na escola. Orientação de Maria Cecília Cortez C.
de Souza. São Paulo, Dissertação de Mestrado, Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, 2018, pp. 138-142.

Disponível em:
https://
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-07112018-
135629/publico/LISANDRA_CORTES_PINGO_rev.pdf

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