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Cintya Kelly Barroso Oliveira

Maria Bernardete Alves Feitosa


Maria de Lourdes Vicente da Silva
Sarah Maria Forte Diogo
O r g a n i z a d o r a s

Para
Outros
Modos
de Viver Diversidade, Cultura e
Literatura dos Povos do Campo,
Afrodescendentes e Indígenas
PARA OUTROS MODOS DE VIVER:
DIVERSIDADE, CULTURA E LITERATURA DOS POVOS DO CAMPO,
AFRODESCENDENTES E INDÍGENAS
© 2021 Copyright by Cintya Kelly Barroso Oliveira, Maria Bernardete Alves
Feitosa, Maria de Lourdes Vicente da Silva e Sarah Maria Forte Diogo
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Projeto Gráfico e Capa | Carlos Alberto Alexandre Dantas


Revisão | Os Autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Bibliotecária: Regina Célia Paiva da Silva – CRB 1051
P221 Para outros modos de viver: diversidade, cultura e
literatura dos povos do campo, afrodescentes e indí-
genas / organização Cintya Kelly Barroso Oliveira et. al.
– Fortaleza: Imprece, 2021.
228 p.il:
Incluem: imagens, fotos e tabelas.
ISBN E-BOOK: 978-65-87212-41-8
1. Educação e Cultura. 2. Cultura Popular. 3. Diversi-
dade. 4. Literatura. 5. Feitosa, Maria Bernardete Alves. 6.
Silva, Maria de Lourdes Vicente da. 7. Diogo, Sarah Maria
Forte. I. Título.
CDD. 370. 11
Cintya Kelly Barroso Oliveira
Maria Bernardete Alves Feitosa
Maria de Lourdes Vicente da Silva
Sarah Maria Forte Diogo
Organizadoras

Para Outros
Modos de Viver:
Diversidade, Cultura e Literatura dos Povos do
Campo, Afrodescendentes e Indígenas

Fortaleza | CE
2021
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO • 7
As organizadoras

PREFÁCIO • 9
Suene Honorato

I  Diversidade e Crítica
ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO
EVARISTO • 17
Carla Lorhaine da Silva
Sarah Maria Forte Diogo

LITERATURA E DECOLONIALIDADE: A RECUSA DO SILÊNCIO NOS


POEMAS DE JARID ARRAES  •  35
Cintya Kelly Barroso Oliveira

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS


SECAS • 62
Fábio José de Queiroz

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO


ACERCA DA REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE
SOLAINE CHIORO  •  81
Lorrany Mota de Almeida
Renata Moreira

II  Diversidade e Literatura


NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:
HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO  •  99
Maria Andreína dos Santos
E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY  •  115
Marilene Lopes Queiroz

KUARACIR KORÁ: CICLO SAGRADO DO SOL  •  132


Teresinha Pereira da Silva
Francisco Jardel dos Anjos da Silva

III  Diversidade e Escola


A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA NA ESCOLA
DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES  •  143
Alcides Alves de Sousa
João Antoniel da Silva Pinto

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA: PERSPECTIVAS E REFLEXÕES


NA ESCOLA QUILOMBOLA LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO  •  162
Francisco Alex de Oliveira Farias
João Batista da Silva

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E


DO MODO DE FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA-
CE • 176
Francisco Elisnaldo de Sousa 

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL: PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA


PARA UMA ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA-CE   •  193
Lorena da Silva Rodrigues
Marcela Magalhães de Paula

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO


CEARENSE: MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER
ANCESTRAL • 206
Patrícia Pereira de Matos

SOBRE OS AUTORES  •  223


7

APRESENTAÇÃO

E
ntregamos ao público o livro Para outros
modos de viver: Diversidade, Cultura e Li-
teratura dos povos do campo, afrodescen-
dentes e indígenas. Os trabalhos que o compõem são
escritos de professores e pesquisadores da educação
básica e do ensino superior, que dialogam suas práticas
intelectuais, profissionais e/ou de pertencimento com
a cultura camponesa, indígena, afrodescendente, assim
como com os sujeitos ­etnorreferenciados.
Os artigos de análise, as produções literárias e os
relatos de experiência estão voltados, sobretudo, à Cul-
tura e à Literatura. A obra está dividida em três seções,
a saber: Diversidade e Crítica; Diversidade e Literatu-
ra; Diversidade e Escola. Os trabalhos abrigam-se sob
essas três partes e conversam entre si no que diz res-
peito à assumpção da Diversidade enquanto elemento
norteador. Enfatizamos o termo Diversidade proposi-
talmente para reafirmar nosso posicionamento a favor
da necessidade de nos apropriarmos e colocarmos em
prática a percepção de que existimos num mundo bas-
tante heterogêneo. Toda essa Diversidade é substrato à
Crítica, à Literatura e à Escola, espaços de contestação
e de construção de outros modos de viver e conviver.

As organizadoras

APRESENTAÇÃO
9

PREFÁCIO

“Denúncias e anúncios”: textos para tempos e espaços


diversos
Quem faz a história da vida
com ela rompeu as entranhas do chão
Quem quer saber do que está escondido
procura no fundo dos olhos do povo
e dentro do seu coração
(Ednardo, em “Pastora do tempo”)

N
o relato de experiência “A arte de lavrar pa-
lavras”, presente nesta coletânea, Alcides
Alves da Silva e João Antoniel da Silva Pin-
to dizem que as místicas realizadas na escola Florestan
Fernandes traziam “algumas denúncias e anúncios”. A
mesma expressão foi usada numa reunião nacional de
preparação das JURAs (Jornadas Universitárias em de-
fesa da Reforma Agrária) de 2021, também para pensar
a mística. Tenho me apegado a essa expressão, pois ela
sintetiza algo de que precisamos: nosso tempo convo-
ca, juntas, a contundência da denúncia e a esperança
do anúncio. Denúncia sem anúncio talvez amplie feri-
das; anúncio sem denúncia talvez apague “a história da
vida”. Nossas lutas se inscrevem no duplo horizonte da
denúncia-anúncio, que evoca uma diversidade de tem-
pos (passado, presente, futuro), espaços (cidade, cam-
po, assentamento, terra indígena, quilombo) e línguas
(português, nheengatu, tupi, Libras). Nossas místicas
nos congraçam em torno da ressignificação da vida, na
sua potente multiplicidade.

PREFÁCIO
10

E o que a literatura tem a ver com denúncia e


anúncio? De acordo com o discurso hegemônico, o va-
lor estético das obras literárias se liga a critérios como
“universalidade” e “autonomia”. Segundo esses crité-
rios, as obras merecedoras de figurar no pedestal da li-
teratura seriam aquelas que falam da humanidade que
nos une e se retiram do horizonte histórico. Em As re-
gras da arte, Pierre Bourdieu mostrou como o conceito
de autonomia, ao invés de ser uma verdade atempo-
ral sobre as obras de arte, foi construído no século XIX
francês para atender a objetivos específicos, historica-
mente situados. Em Literatura contemporânea brasi-
leira: um território contestado, Regina Dalcastagné dis-
cute os resultados de um mapeamento dos romances
publicados por três grandes editoras no Brasil durante
15 anos; concluiu que há pouca diversidade nos perfis
tanto de autores quanto de personagens. A “universa-
lidade” tem rosto bem definido, como se pode supor.
Esses dois exemplos servem como alerta: precisamos
lembrar a historicidade de conceitos e práticas, para
não naturalizar modos uniformizadores de percepção
da vida e da arte.
O que pode um livro fechado, uma história que
não foi ouvida ou sequer contada? Livros fechados po-
deriam até servir como marcador de status social, na
época em que se comprava livro “de metro” para en-
feitar as estantes da sala. O que pode a literatura tem
a ver com o modo como decidimos nos relacionar com
ela. Quando a literatura é colocada em pedestal, pode
(re)produzir estereótipos, naturalizar opressões, lamber
botas colonizadoras. Pode servir à distinção de quem
queira subir nos pedestais em que a coloca, (re)inscre-
vendo hierarquias. Discurso de poder, que marca em

SUENE HONORATO
11

negativo um lugar de interdição. Mas pode também ser


antídoto. Pode humanizar e libertar, se decidimos lidar
com ela longe de pedestais e com olhos atentos. Dis-
curso poderoso, que abre horizontes para a multiplici-
dade de saberes, de experiências, de formas de vida e
de luta.
A literatura – seja lá que adjetivo se coloque de-
pois dessa palavra – é feita por pessoas, que se vincu-
lam de forma complexa (não determinada) com seu
tempo/espaço histórico-social. É uma “coisa” que se faz
terra-a-terra, à mão ou à máquina, no chão da escola ou
da fábrica, como outras “coisas”. Sua especificidade não
a torna superior. Ela pode libertar e humanizar, como
também podem a vida, a luta, a espiritualidade, a an-
cestralidade, a teoria, a prática, a oralidade, a pedago-
gia, os movimentos sociais e… e… e… tantas outras “coi-
sas” que fazemos para “saber do que está escondido”.
Patrícia Pereira de Matos, em “As narrativas afro-
literárias tecidas no cotidiano cearense”, conta que
experimentou tanto o “poder negativo” quanto o “po-
der positivo” da literatura. Ao valorizar a experiência
positiva sem apagar a negativa, se descobre escritora e
inventa formas de promover a fala, a escuta, a escrita.
Denúncia e anúncio. De maneira geral, e cada um com
sua particularidade, os textos reunidos nesta coletânea
priorizam a literatura como discurso poderoso contra
a “monocultura de ideias”, como diz Ailton Krenak. O
título e o subtítulo apontam a perspectiva plural que
orientou as organizadoras na composição deste livro.
Os textos reunidos na primeira parte, “Diversida-
de e Crítica”, propõem leituras que apostam no poten-
cial humanizador da literatura. Carla Lorhaine da Silva e

PREFÁCIO
12

Sarah Maria Forte Diogo analisam contos de ­Conceição


Evaristo, em que se denuncia a violência sofrida princi-
palmente por mulheres negras nas periferias dos cen-
tros urbanos; em alguns contos, destacam o aceno de
possibilidades de mudança e o tom poético das narra-
tivas, que humaniza as personagens. Cintya Kelly Barro-
so Oliveira lê a poesia de Jarid Arraes em diálogo com
a teoria decolonial, para ressaltar a “postura de enfren-
tamento” da poeta contra práticas discriminatórias (em
relação a gênero, classe e raça/etnia), e a afirmação de
um lugar literário que vozes insurgentes têm reivindi-
cado. Lorrany Mota de Almeida e Renata Moreira, ao
analisarem a obra de Solaine Chioro, mostram que re-
presentatividade não basta, é preciso romper com os
estereótipos. Fábio José de Queiroz destaca nos perso-
nagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, as possibi-
lidades de humanização em contraponto às condições
embrutecedoras em que vivem.
A segunda parte, “Diversidade e Literatura”, é
composta de recolha de narrativas orais e poemas. Ma-
ria Andreína dos Santos registra histórias de assombra-
ção contadas pelos Tremembé. A partir das narrativas,
vamos conhecendo passado e presente, lugares, modos
de ser e costumes do seu povo. Os poemas de Marilene
Lopes Queiroz falam sobre a identidade Pitaguary: essa
identidade é questionada quando se é indígena desal-
deado ou quando se prioriza a narrativa do colonizador;
por isso, é preciso afirmá-la, através da feira cultural, da
sabedoria passada de geração para geração, da presen-
ça da oralidade. Entre os poemas de Teka e Jardel Po-
tyguara, em tupi, nheengatu e português, encontramos
canções que falam do modo de ser, do cotidiano, dos
rituais Potyguara.

SUENE HONORATO
13

Na última parte, “Diversidade e Escola”, os textos


nos contam sobre ações de pesquisa e ensino. Alcides
Alves da Silva e João Antoniel da Silva Pinto falam do
projeto desenvolvido na escola do campo Florestan
Fernandes para valorizar e visibilizar as “expressões
literárias que historicamente foram produzidas e ma-
nifestadas no território camponês”, numa perspectiva
anticapitalista de produção do conhecimento e eman-
cipação dos sujeitos. Francisco Alex de Oliveira Farias e
João Batista da Silva tratam da experiência com ensino
de literatura para alunas e alunos surdos na escola qui-
lombola Luzia Maria da Conceição. Francisco Elisnaldo
de Sousa nos apresenta pesquisa sobre a diversidade
de modos de expressão entre os Tremembé, o Torém e
os diferentes objetivos com que é dançado na comuni-
dade. Lorena da Silva Rodrigues e Marcela Magalhães de
Paula analisam os resultados de uma disciplina eletiva
ministrada numa escola de Fortaleza, em que a leitura
de obras escritas por autores/as negros/as, segundo a
perspectiva da interseccionalidade, trouxe às/os envol-
vidas/os consciência de viverem situações de opressão,
passo necessário à “transformação objetiva da situação
opressora” – como dizem ao evocar Paulo Freire. Patrí-
cia Pereira de Matos fala sobre a necessidade de contar
as suas histórias, ouvir as de outras pessoas que tam-
bém foram silenciadas, e assim fazer da literatura uma
possibilidade para o despertar.
Este conjunto de textos, ao convocar olhares di-
versos em torno de “culturas e literaturas”, valoriza a
produção de saberes em diálogo. A pesquisa acadêmica
sobre a literatura de autoras e autores brasileiros (que
integram ou não o cânone), a literatura produzida em
escolas do campo ou territórios indígenas e os relatos

PREFÁCIO
14

de experiência a partir de projetos pessoais e coletivos


conversam entre si. Apresentam um universo de possi-
bilidades para lermos literatura com o compromisso de
repensar e construir um futuro igualitário para todas e
todos.

Suene Honorato1

1 Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), no curso de


Letras. Trabalha com poesia brasileira moderna e contemporâ-
nea e desenvolve pesquisa sobre representação do indígena nas
literaturas brasileiras (produzidas por autores/as indígenas e não
indígenas).

SUENE HONORATO
I
Diversidade
e Crítica
17

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE


CONCEIÇÃO EVARISTO

Carla Lorhaine da Silva


Sarah Maria Forte Diogo

Introdução

P
arte da literatura contemporânea brasileira
tem como projeto político-ideológico dar voz
àqueles que muitas vezes foram silenciados
por anos de exclusão contínua do centro, configurando-
-se como espaços marginais. Essas populações sofrem
diversas formas de violências e uma delas é o proces-
so de invisibilização, que se torna concreto na literatura,
por exemplo, quando não vemos narrativas que abor-
dem questões de raça e gênero a partir do olhar daquele
que, em geral, é visto de forma negativa e subalternizada.
Este artigo nasce da inquietação que os contos da escri-
tora Conceição Evaristo suscitaram durante o projeto de
iniciação científica intitulado “Configurações da violência
na literatura brasileira contemporânea”, desenvolvido du-
rante 2019, sob orientação da profa.Dra. Sarah Maria Forte
Diogo. Neste projeto, fomos instigados a ler Axilas e outras
histórias indecorosas, de Rubem Fonseca; Olhos d’água,
de Conceição Evaristo; e Gogmagog, de Patrícia Melo.
Enquanto pesquisadores em formação, seleciona-
mos a obra Olhos d’água, lido durante o projeto, pois
foi o que mais nos chamou a atenção pelo intenso atra-
vessamento de opressões que as personagens femininas
sofrem. Em Olhos d’água, observamos que as persona-
gens negras são focalizadas não somente como vítimas,

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


18

mas também como resistentes e capazes de sobreviver


às violências a que estão submetidas, desconstruindo
estereótipos impostos pelo corpo social.
Em um primeiro momento nos detemos em apre-
sentar a escritora, uma mulher negra, que em suas obras
dá voz às opressões e às violências sofridas por sujeitos
que são marginalizados. Contamos um pouco da traje-
tória de Conceição Evaristo, da sua escrevivência, termo
criado pela autora que significa escrever a sua vivência,
e apresentamos a obra trabalhada, Olhos D’água, que
traz em sua composição 15 contos que tratam de exclu-
são social. Escolhemos analisar os contos “Duzu-Que-
rença”, “Quantos filhos Natalina teve?” e “Zaíta esque-
ceu de guardar os brinquedos”.
Logo após, mostraremos sobre a violência e suas
diversas formas, expondo alguns aspectos relacionados à
violência de gênero, racial e urbana, bem como índices
mostrando o quanto a população marginalizada sofre nos
dias atuais. Apresentamos também a Lei Maria da Penha,
para mostrar os tipos de violência que as mulheres sofrem,
e que mesmo existindo punição para essas crueldades, a
violência ainda é muito presente no nosso cotidiano. 
Para finalizarmos, fizemos a análise do conto ob-
servando a violência que a personagem sofria, mostran-
do a realidade de muitas mulheres que vivem em situa-
ções precárias, sofrendo abusos e maus tratos, com isso
percebemos o quanto temos que lutar, para que um dia
essas opressões não mais ocorram. 

Conceição Evaristo – intelectual negra

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu no


dia 29 de novembro de 1946, em Belo Horizonte MG.

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


19

Em 1970 muda-se para o Rio de Janeiro onde se graduou


em Letras pela UFRJ.  É Mestre em Literatura Brasileira
pela PUC do Rio de Janeiro, com a dissertação Literatu-
ra Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996),
e Doutora em Literatura Comparada na Universidade
Federal Fluminense, com a tese Poemas malungos,
cânticos irmãos (2011), em que investiga as poesias dos
afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pe-
reira em confronto com a do angolano Agostinho Neto.
É autora de obras ficcionais – contos, poesias, romance
– e estudos acadêmicos, caracterizando-se como uma
escritora múltipla.
Evaristo teve acesso à literatura ainda quando
criança, não pelo contato direto com livros, mas com as
vozes de mulheres da sua família que lhe possibilitaram
alimentar um sonho de criança de um dia tornar-se es-
critora. Aos oito anos de idade, ela começa a trabalhar e
a partir daí tenta conciliar a vida de estudante enquan-
to empregada doméstica como as demais jovens negras
de sua época.
A inserção de Conceição Evaristo na literatura se
dá ainda na sua juventude através dos contos publica-
dos nos Cadernos Negros editados pelo grupo paulista
Quilombhoje com seu conto mais conhecido intitulado
“Vozes-Mulheres” lançado no vol. 13 dos mesmos cader-
nos. Cabe ressaltar que Evaristo já havia escrito poemas,
poesias e uma crônica, a qual lançou ainda em Belo Ho-
rizonte em 1970.
No livro Olhos D’água (2014), é possível perceber
as diversas críticas sociais que estão inseridas no decor-
rer dos 15 contos apresentados, mostrando a violência
urbana, racial e de gênero, assim também como a po-
breza presente nas histórias.

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


20

A autora procura reconstruir artisticamente a re-


alidade de mulheres, crianças e homens negros que vi-
vem em condições precárias e que enfrentam as difi-
culdades do dia a dia com força e resistência para lutar
contra a predeterminação que a sociedade injusta lhes
reservara, através de buscas incansáveis pela melhoria e
a não desistência do aconchego familiar priorizado em
meio a tantos conflitos. 
Enquanto intelectual negra, nascida e criada
na periferia brasileira, Conceição Evaristo questiona o
cânone brasileiro tradicional, marcadamente branco
e masculino. Sua presença na literatura brasileira con-
temporânea sinaliza com a emergência, cada vez mais
intensa, de diversas escritoras e escritores negros bra-
sileiros, que apresentam em suas obras um outro olhar
sobre a tessitura social e cultural do nosso país.

Violências

Entende-se por violência a necessidade de anular


o outro, o uso de força para causar danos psicológicos
ou físicos a outra pessoa e para conferir status superior
sobre alguém. A violência sempre esteve presente na
humanidade, por isso hoje se pode dizer que a violência
é um processo enraizado, que se tornou banal e natu-
ralizado. Embora isso aconteça, a sociedade não pode
aceitar como um aspecto irreversível. Ela pode se apre-
sentar de diversas formas, entre elas destacamos a vio-
lência de gênero, racial e urbana.
Mesmo com avanços e conquistas femininas, a so-
ciedade vive uma propagação de violência contra a mu-
lher, apesar de existir uma lei que defende a mulher de
abusos, agressões e diversos tipos de violências sofridas

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


21

diariamente. Segundo o Art. 7° da Lei n° 11.340/06 – Lei


Maria da Penha: 
São formas de violência doméstica e familiar
contra a mulher, entre outras: 
I – a violência física, entendida como qualquer
conduta que ofenda sua integridade ou saúde
corporal; II – a violência psicológica, entendi-
da como qualquer conduta que lhe cause dano
emocional e diminuição da autoestima ou que
lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvi-
mento ou que vise degradar ou controlar suas
ações, comportamentos, crenças e decisões, me-
diante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridi-
cularização, exploração e limitação do direito de
ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause pre-
juízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer
conduta que a constranja a presenciar, a manter
ou a participar de relação sexual não desejada,
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da
força; que a induza a comercializar ou a utilizar,
de qualquer modo, a sua sexualidade, que a im-
peça de usar qualquer método contraceptivo ou
que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto
ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule
o exercício de seus direitos sexuais e reproduti-
vos; IV – a violência patrimonial, entendida como
qualquer conduta que configure retenção, sub-
tração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas neces-
sidades; V – a violência moral, entendida como
qualquer conduta que configure calúnia, difama-

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


22

ção ou injúria (Art. 7º da Lei nº 11.340/06 – Lei


Maria da Penha, 2006, p. 2).
O estado construiu uma legislação que visa à ga-
rantia da segurança das mulheres, porém o machismo
que ainda predomina em nossa sociedade acaba por di-
ficultar a efetivação da lei. O feminicídio continua sendo
um dos crimes mais praticados, como mostram os da-
dos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)
de 2019, o crescimento de homicídios foi de 30,7% entre
2007- 2017 no Brasil, e esses números só aumentam.
A estudiosa Davis destaca que “Estupro, intimida-
ção sexual, espancamento, estupro conjugal, abuso se-
xual de crianças e incesto são algumas das formas de
violência sexual explícita sofrida por milhões de mulhe-
res.” (2017, p.41)
Partindo de um estudo histórico, Constância Lima
Duarte destaca que a luta da mulher contra a violência
física e simbólica sempre esteve na pauta da luta femi-
nista brasileira. Sua pesquisa aponta quatro momentos
históricos da luta das mulheres por seu espaço no Bra-
sil. No primeiro, destaca a produção pioneira de Nísia
Floresta sobre os direitos das mulheres. No segundo, a
partir de 1870, ressalta o surgimento de jornais e revistas
voltados para o público feminino. No terceiro, aborda a
mobilização da mulher pelo voto, no início do século
XX, e pelos direitos iguais para todos. No quarto, a partir
da década de 70, enfatiza a luta feminista pela liberda-
de do corpo da mulher, pelo controle da maternidade e
por sua independência financeira.
O racismo se configura como uma forma de vio-
lência contra o indivíduo negro, por causa dessa opres-
são diariamente pessoas são discriminadas, sofrem
tratamentos diferenciados, são alvos de segregação e

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


23

homicídio, simplesmente por sua cor de pele (ou raça).


Segundo Almeida:
Podemos dizer que o racismo é uma forma sis-
temática de discriminação que tem a raça como
fundamento, e que se manifesta por meio de prá-
ticas conscientes ou inconscientes que culminam
em desvantagens ou privilégios para indivíduos,
a depender do grupo racial ao qual pertençam
(2019, p. 22).

Segundo os dados do IPEA de 2019:


em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram
indivíduos negros (definidos aqui como a soma
de indivíduos pretos ou pardos, segundo a clas-
sificação do IBGE, utilizada também pelo SIM),
Sendo que a taxa de homicídios por 100 mil ne-
gros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não ne-
gros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0.
Ou seja, proporcionalmente às respectivas popu-
lações, para cada indivíduo não negro que sofreu
homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 ne-
gros foram mortos.

O racismo já está enraizado na nossa sociedade,


cotidianamente negros sofrem diversos tipos de violên-
cia, principalmente a letal, a exemplo de homicídios,
como podemos observar pelos dados do IPEA. Infeliz-
mente as práticas racistas são normalizadas, a exclusão
de pessoas negras em ambientes de trabalho e em ins-
tituições de ensino se torna cada vez mais comum. O
negro é colocado num lugar de subalternidade, muito
embora estejamos assistindo nos últimos anos mudan-
ças substanciais nesses quadros, pois a população negra
e seus intelectuais passam a questionar estruturas de
poder cristalizadas e aparentemente imutáveis.

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


24

A violência urbana é causada pela desigualdade


social, a qual se articula o capitalismo, responsável por
inúmeras opressões e é nesse cenário que surge o indi-
víduo marginalizado, que é visto como criminoso. Essa
violência não pode ser atribuída somente à pobreza, as
vítimas mais constantes são as classes dominadas. São
vítimas de sequestros, tráfico de drogas, balas perdidas,
linchamentos, estupros, abortos clandestinos, precon-
ceitos e discriminações.

Violências em Olhos d’água

A literatura brasileira contemporânea vem se pre-


ocupando cada vez mais com os problemas ligados à
representação de diversos grupos sociais e como forma
de dar voz aqueles que estão à margem da sociedade.
Com isso, podemos perceber que questões relaciona-
das à etnia, raça, sexualidade, entre outras, vem sendo
debatidos com frequência.
A literatura é uma das formas de problematizar
violências diversas e construir questões acerca do silen-
ciamento a que determinadas populações são submeti-
das. Os textos literários podem ser espaços de questio-
namento acerca do patriarcalismo, sexismo, machismo
e racismo, estruturas sociais rígidas, que ainda estão
presentes em nosso meio, e que são motivos dessas di-
versas formas de violência. É importante, portanto, que
essas discussões, presentes em obras de ficção, sejam
também objeto de estudo acadêmico.
Conceição Evaristo representa em suas obras epi-
sódios de violência racial, de gênero e urbana, retrata
o universo da subalternidade, povoado de mendigos,
moradores de comunidades carentes, muitos deles tra-

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


25

balhadores, mulheres e homens honestos, vítimas da


segregação social que recai sobre os desfavorecidos.
Olhos d’água reúne 15 contos que apresentam
cenas de grande impacto e sofrimento, envolvidas por
uma linguagem de tonalidade poética, em que há lugar
para a humanidade e para o sentimento. Para confirmar
esses aspectos encontrados na literatura de Evaristo, na
qual a violência atinge seres frágeis, podemos analisar
alguns contos como exemplo.

Duzu-querença
O conto Duzu-Querença mostra a vida de uma
mulher que desde cedo foi exposta ao sofrimento, dei-
xada em uma casa de família ainda quando criança,
com a esperança de que ali teria uma vida melhor e,
gradativamente, se inseria no universo da prostituição,
marcado pela violência e pela miséria. Observemos este
trecho:
Quando Duzu chegou pela primeira vez à cida-
de, ela era menina, bem pequena. [...] O pai de
Duzu tinha nos atos a marca da esperança. [...]
Na cidade havia senhoras que empregavam me-
ninas. Ela podia trabalhar e estudar. [...] Um dia
sua filha seria pessoa de muito saber. [...] Duzu
ficou na casa da tal senhora por muitos anos. Era
uma casa grande de muitos quartos. [...] Gostava
de ficar olhando para os rostos delas. Elas passa-
vam muitas coisas no rosto e na boca (EVARISTO,
2016, p. 32).
Era obrigada a fazer serviços domésticos, para que
assim pudesse ter uma moradia e o que comer “Ajudava
na lavagem e na passagem de roupa. Era ela também
que fazia a limpeza dos quartos” (Idem, p. 32). No início

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


26

da narrativa ela não tinha consciência da vida que leva-


va, pois tinha um olhar infantil sobre aquela situação,
não sabia o que se passava naquele local, até que um
dia ela se depara com um homem em cima de uma mu-
lher, o que atiça a sua curiosidade “Um dia Duzu esque-
ceu e foi entrando. A moça do quarto estava dormindo.
Em cima dela dormia um homem. Duzu ficou confusa
[…]” (Idem, p. 32-33). Duzu descobre, gradativamente, o
que se passa. Enredada numa teia de abusos, a perso-
nagem percebe que poderia ganhar dinheiro com seu
corpo, e segue na vida como prostituta: “Dona Esmeral-
dina arrumou um quarto para Duzu, que passou a rece-
ber homens também. Criou fregueses e fama.” (Idem, p.
34). Observemos que o narrador adota um estilo bas-
tante interessante: vai mostrando a situação e, por meio
de detalhes, apresenta o sistema de abusos e violência
a que Duzu fora exposta: Duzu inicia a narrativa já em
processo de perda, pois é deixada pela família numa
casa onde supostamente seria cuidada e teria melhores
condições, porém, notamos que a casa, na verdade, é
um bordel, o que configura uma violência, pois Duzu e
a família são enganadas. A segunda violência reside na
exploração do trabalho infantil. Duzu não pode estudar,
tem que trabalhar. A terceira violência consiste na expo-
sição da criança à relação sexual: Duzu não compreende
o que está vendo e o homem se aproveita da situação e
comete um crime. As demais violências vão se amonto-
ando sobre a personagem, como se o conto fosse uma
constante descida e uma degradação de uma vida que
poderia ter sido feliz.
Neste conto, podemos encontrar uma mulher que
vive em condições marginalizadas à sociedade, ela não
teve escolhas na vida, tudo lhe foi imposto. Duzu foi ví-

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


27

tima de abuso sexual “Teve um momento em que o ho-


mem chamou por ela. Vagarosamente ela foi se aproxi-
mando. Ele, em cima da mulher, com uma das mãos fazia
carinho no rosto e nos seios da menina.” (Idem, p. 33).
Ela lida com o abuso sexual desde cedo, tornan-
do-se exposta à crueldade da vida sub-humana, através
do rompimento dos seus sonhos de estudar que fora
prometido aos seus pais. A violência sofrida por Duzu
estabelece relação com a cotidiano de tantas mulheres
negras e pobres que sofrem dentro do seu lar, no traba-
lho, na sociedade em geral:
Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para
outras zonas. Acostumou-se aos gritos das mu-
lheres apanhando dos homens, ao sangue das
mulheres assassinadas. Acostumou-se às panca-
das dos cafetões, aos mandos e desmandos das
cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma
de vida. (Idem, p. 34).
Outrossim, é notório que a protagonista do conto
vive em condições subalternas, abandonada à própria
sorte, mendigando e se prostituindo para ter comida e
um lar. Como cita Diógenes e Cardoso “Duzu representa
a mulher subalterna que está em um espaço margina-
lizado, propício, sobretudo, à violência, à prostituição e
ao racismo.” (DIÓGENES; CARDOSO, 2018, p. 244). Po-
demos perceber essa afirmação no início do conto: 
Duzu lambeu os dedos gordurosos de comida,
aproveitando os últimos bagos de arroz que ti-
nham ficado presos debaixo de suas unhas su-
jas. Um homem passou e olhou para a mendiga,
com uma expressão de asco. Ela lhe devolveu um
olhar de zombaria. O homem apressou o passo,
temendo que ela se levantasse e viesse lhe atra-
palhar (EVARISTO, 2016, p. 31).

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


28

É possível estabelecer uma relação entre os nomes


Duzu e Querença, quando a voz narrativa faz menção
aos seus nomes usando um hífen, tornando uma pala-
vra única, assim como também associar ao fato de a avó
depositar esperança na neta, já que o nome Querença1
tem esse significado de querer algo ou alguém, ela tam-
bém vê a possibilidade de mudanças das condições de
vida que sua família vem sofrendo desde as gerações
anteriores, propondo a partir desta uma nova luta sem
desânimo e com mais força à medida em que se pode
ganhar visibilidade através da sua história e dos obstá-
culos enfrentados: “Estrela era para a menina Querença,
moradia nova, bendito ayê, onde ancestrais e vitais so-
nhos haveriam de florescer e acontecer” (Idem, p. 36).

Quantos filhos Natalina teve?

O conto “Quantos filhos Natalina teve?” problema-


tiza a maternidade compulsória como algo idealizado.
Para tanto, a narrativa examina a personagem Natalina
e as escolhas que ela fez para seus quatro filhos. Apre-
senta a história de uma mulher negra marcada desde
a infância pela falta de oportunidades, pelas violências,
pelo machismo, pelo racismo e como essas violências se
entrelaçam e a acompanham durante toda a vida.
Na primeira gravidez, ainda adolescente, deses-
perou-se ao saber da gestação indesejada, a primeira
solução pensada foi o aborto, que para sua mãe seria
justificado pela pobreza: “Na casa já havia tanta gente!
Ela, o marido e sete crianças. E agora teria o filho da fi-

1 Ação ou efeito de querer alguém ou alguma coisa. Dicionário


online de português. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/
querenca/>. Acesso em: 23 fev. 2020.

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


29

lha?” (Idem, p. 44). A personagem opta por fugir de casa


e, quando a criança nasceu, deixou-a com a enfermeira.
Na segunda gravidez, também indesejada, apesar
de ela tomar certas precauções, envergonhada, contou
ao homem que estava grávida, como ela também não
queria essa criança deixou-a com o pai, que não enten-
deu “a recusa de Natalina diante do que ele julgava ser
o modo de uma mulher feliz. Uma casa, um homem, um
filho...” (Idem, p. 46). Nesta segunda gestação Natalina
rompe com o comportamento sociocultural esperado,
recusando o casamento “Ela não queria ficar com nin-
guém. Não queria família alguma. Não queria filho. [...]
Ela gostava dele, mas não queria ficar morando com
ele.” (Idem, p. 46).
A terceira gravidez de Natalina foi diferente das
anteriores: ela serviu como barriga de aluguel para o
casal de patrões. Os sentimentos de vergonha e de dí-
vida aumentavam desde o dia que a ideia lhe fora suge-
rida até o dia do parto e da entrega da criança aos pais.
“Tudo passava lento, os nove meses de eternidade, os
enjoos. O estorvo que ela carregava na barriga faria fe-
liz o homem e a mulher que teriam um filho que sairia
dela. Tinha vergonha de si mesma e deles.” (Idem, p. 48).
Porém, esses sentimentos não estavam mais pre-
sentes com a protagonista durante sua quarta gravidez.
Natalina teve sua casa invadida por homens que procu-
ravam, por engano, seu suposto irmão – familiar que Na-
talina não sabia se tinha, uma vez que havia deixado a
cidade natal há muito tempo. Natalina é arrastada para
fora de seu espaço doméstico violentamente. Em um
dado momento do trajeto, a personagem é violentada.
Mesmo sendo vítima de uma violência brutal e anima-
lesca, após o ato, assassina o criminoso e, a partir disso,

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


30

sente aquele filho pertencente somente a ela: “Estava


Feliz. O filho estava pra arrebentar no mundo a qual-
quer hora. Estava ansiosa para olhar aquele filho e não
ver a marca de ninguém, talvez nem dela.” (Idem, p. 50).
Nota-se que em todas as gestações, as experiên-
cias vivenciadas pela personagem se dão através de vio-
lências, sejam explicitas ou implícitas. E é através da dor
que ela vê a possibilidade de renascer e recomeçar uma
nova vida, sem dívidas com ninguém, com a liberdade
que ela tanto desejava. Uma mulher que só assume o
papel de mãe quando é do seu desejo, quando se sente
completa, dona de si.

Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos

O conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinque-


dos” narra a história de duas meninas gêmeas que mo-
ram na favela com sua mãe e mais dois irmãos. A reali-
dade da pobreza, do envolvimento de um dos irmãos
com as drogas, os constantes tiroteios vão aparecendo
e se contrapõem com a inocência da menina, que é ab-
sorvida por uma figurinha, dessas que as crianças cole-
cionam. Ela colecionava figurinhas e agora possuía “(..) a
mais bonita, a que retratava uma garotinha carregando
uma braçada de flores. Um doce perfume parecia exalar
da figurinha ajudando a compor o minúsculo quadro.”
(Idem, p. 71).
Ao início da narrativa, Zaíta se dá conta de que
havia perdido sua figurinha preferida. E a narrativa se
dá pela busca da figurinha perdida, quando ela é sur-
preendida por um tiroteio na favela que a atinge “Mais
um tiroteio começava. [...] Em meio ao tiroteio a menina
ia. Balas, balas e balas desabrochavam como flores mal-

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


31

ditas, ervas daninhas suspensas no ar. Algumas fizeram


círculos no corpo da menina.”
O conto apresenta personagens negros que vi-
vem em ambiente de segregação que lhes foi imposto,
retratando a vida na favela e a violência presente nes-
se espaço: “Nos últimos tempos na favela, os tiroteios
aconteciam com frequência e a qualquer hora. Os com-
ponentes dos grupos rivais brigavam para garantir seus
espaços e freguesias.” (Idem, p. 76).
Também assinala a vida das crianças marcadas
pela pobreza: “Zaíta virou a caixa, e os brinquedos se
esparramaram, fazendo barulho. Bonecas incompletas,
chapinhas de garrafas, latinhas vazias, caixas e palitos de
fósforos usados.” (Idem, p. 72). O repertório de objetos
listados pode ser lido como metáfora de uma infância
machucada e em constante falta.

Considerações finais

Concluímos que a violência está presente no nos-


so cotidiano, e que há muito o que se lutar para que
haja o mínimo de igualdade social. Conceição Evaristo
busca problematizar essa realidade e dar voz a segmen-
tos sociais em geral esquecidos pela estado, mostrando
as violências sofridas, as interrupções das fases da vida,
os preconceitos, e como isso nos faz refletir o quanto
ainda precisa ser feito para desconstruir os estereótipos,
o machismo, o racismo e o patriarcalismo presentes na
sociedade.
Através dos contos aqui apresentados, percebe-
mos que as mulheres são as mais atingidas por essas
violências, sendo obrigadas a vivenciar sofrimentos di-
versos em espaços dominados pela violência.

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


32

Em “Duzu-Querença” é mostrado o abuso sexual


infantil. A personagem é submetida à prostituição, co-
nhece a violência física e psicológica, tornando-se uma
vítima das circunstâncias. Levou a vida na pobreza e na
miséria, terminando sua trajetória como mendiga. Den-
tre os contos, essa personagem foi a que mais sofreu vio-
lência. Porém, o final da narrativa acena com uma possi-
bilidade de mudança, com a presença da neta de Duzu.
Em “Quantos filhos Natalina teve?” a violência
está relacionada à maternidade, quatros gestações e so-
mente uma foi desejada, esse conto faz referência ao
aborto, à pressão psicológica para não ter o bebê e, por
fim, à violência do estupro, que faz com que a persona-
gem mate o homem que a violentou, rompendo dessa
forma um círculo vicioso em que ela consegue sair de
vítima para algoz, agindo em legítima defesa.
No conto “Zaíta esqueceu de guardar os brinque-
dos” podemos perceber a violência urbana, a pobreza,
o tráfico, a troca de tiros com os policiais e a finalização
com a morte da criança, que havia saído de casa apenas
para procurar uma figurinha perdida.
Nestes contos podemos perceber diversas formas
de violências e como essas opressões afetam a socieda-
de subalterna. Podemos analisar o quanto as mulheres,
principalmente as negras e pobres, sofrem no corpo e
na mente esses processos. Essas personagens nos fazem
refletir, contestar e problematizar estruturas e proces-
sos sociais enraizados no Brasil, logo, por meio da litera-
tura, podemos ampliar nossos horizontes de represen-
tação, compreendendo que o início de toda mudança
inicia com a percepção e crítica dos problemas.

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


33

Referências

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Pólen, 2019.
AZEVEDO, Natanael Duarte; MELO, Iran Ferreira de. A
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ção Evaristo: Uma análise de performances pós-identi-
tárias de gênero. Textura: Recife, 2017.
BARBOSA, Manoela dos Santos. Violência racial, vio-
lência de gênero na obra de Conceição Evaristo. Anais
Seminário Interlinhas. v. 2, n. 2 , p. 119-131, Fábrica de
Letras, 2014. Disponível em: https://revistas.uneb.br/in-
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DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. São Paulo:
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Textura – Revista de Educação e Letras, v. 20, n. 44, p.
240-255. Rio Grande do Norte, 2018. Disponível em:
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DUARTE, Constância Lima. Feminismo: uma história a ser
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contexto. Bazar do Tempo: Rio de Janeiro, 2003, p. 25-47.
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Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA:
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br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucio-
nal/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em:
03 ago. 2020.

ANÁLISE DA VIOLÊNCIA NA OBRA OLHOS D’ÁGUA, DE CONCEIÇÃO EVARISTO


34

IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça / Ins-


tituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília: Ipea,
2011.
PAIM, Luciane de Lima; UMBACH, Rosani Ketzer. Duzu-
-Querença, Salinda e Luamanda: Uma representação da
violência contra a mulher em Olhos D‘água, de Concei-
ção Evaristo. Rio Grande do Sul, 2017. Disponível em: ht-
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Acesso em: 28 jan. 2021.
SILVA, Maria do Desterro da Conceição. Violência-resis-
tência em “Duzu-Querença” e “Ana Davenga”, de Con-
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tras), Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2017.
TONDO, Marlei Castro. A violência contra as persona-
gens femininas nos contos de Olhos D’água da escrito-
ra afro-brasileira Conceição Evaristo. 2018. 98 f. Disser-
tação (Mestrado em Letras), Universidade Tecnológica
Federal do Paraná, Pato Branco, 2018.

CARLA LORHAINE DA SILVA • SARAH MARIA FORTE DIOGO


35

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES

Cintya Kelly Barroso Oliveira

“Você me mostrou que não estou condenada ao ­silêncio”1


(JARID ARRAES)

Linhas iniciais

E
ste trabalho se propõe a trazer uma análise
dos poemas da escritora cearense Jarid Arra-
es numa perspectiva que se alicerça nos es-
tudos pós-coloniais. Foram escolhidos versos da autora
para serem lidos sob uma abordagem insurgente, opos-
ta aos silenciamentos impostos pela hegemonia colo-
nial da cultura aos atores sociais subalternizados. Para
esse olhar analítico-teórico, utilizamos os estudos de
Quijano (2005, 2007), Walsh (2001); Delcastagné (2012).
Em seus poemas, Jarid Arraes opta por uma abor-
dagem política diante da escrita versificada e traz ques-
tões sobre racismo, machismo, saúde mental, abuso in-
fantil, misoginia, identidade racial, em resumo, trata de
feiuras humanas.
Antonio Candido, em um de seus escritos mais
visitados sobre literatura, afirma que não há equilíbrio
social sem literatura e a considera um direito e elemen-
to indispensável à humanização. Nas palavras do autor,
“ela não corrompe nem edifica, portanto; mas trazendo
livremente em si o que chamamos o bem e o que cha-
mamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque

1 Declaração de Jarid Arraes sobre a influência de Conceição Eva-


risto no seu processo de escrita.

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
36

faz viver” (CANDIDO, 1995, p. 176). Apesar de Candido


atribuir à literatura o poder humanizador, ela, por vezes,
é posta como um elemento que promove exclusões e
favorece desigualdades. A defesa de um cânone homo-
gêneo é uma condenação de apagamento artístico de
escritos que não se inserem na lista de obras conside-
radas clássicas, principalmente as produzidas e consu-
midas por leitores e autores marginais, periféricos, não
canônicos e, em muitos dos casos, contemporâneos. Ao
falar da literatura como direito humano, Candido toca
em questões que se referem à acessibilidade que envol-
ve os fruidores desse tipo de arte:
(...) a luta pelos direitos humanos abrange a luta
por um estado de coisas em que todos possam
ter acesso aos diferentes níveis de cultura. A dis-
tinção entre cultura popular e cultura erudita não
deve servir para justificar e manter uma separa-
ção iníqua, como se do ponto de vista cultural
a sociedade fosse dividida em esferas incomuni-
cáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis
de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o
respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte
e da literatura em todas as modalidades e em to-
dos os níveis é um direito inalienável (CANDIDO,
1995, p. 262-263).

Os escritos de Candido dialogam com aquilo que


Jarid Arraes, em entrevistas, declara sobre sua literatura,
esta como prática de liberdade e de questionamento
acerca do lugar que lhe foi estabelecido.
até agora só experimentei uma oportunidade em
que fui tratada de igual para igual fora dos es-
paços entre pessoas negras. Com o “Um buraco
com meu nome”, eu saio desse nicho. Há várias
poesias no livro que abordam o racismo, a iden-

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


37

tidade racial, mas eu faço isso a partir de outra


proposta. Talvez eu esteja tentando um lugar
fora do nicho. E tenho percebido que isso é mui-
to mais difícil. Eu estou tentando entender o ra-
cismo, tentando entender se isso será “literatura
afrobrasileira”, se isso será poesia como qualquer
outra poesia, o que será. Se é que vai ser, se é que
vou existir. Estou, de novo, tentando existir (AR-
RAES, 2018, grifos nossos).

O que se vê na citação é o posicionamento da au-


tora acerca da consciência do lugar silenciado que a sua
identidade humana e, em decorrência desta, a artística,
ocupam e foram condenadas pela visão dominante. Por
isso, Arraes, em sua arte, é política, milita por causas e
bandeiras de reafirmação identitárias insurgentes.
O trecho citado diz respeito ao livro de poemas Um
buraco com meu nome2, publicado em 2018 pelo selo
Ferina, do qual foi curadora. Os poemas analisados neste
2 “Em seu livro de estreia na poesia, a escritora e cordelista Jarid
Arraes dedica seus poemas àqueles que não encontram matilha.
Àqueles que procuram um buraco para chamar de seu – talvez
toca, talvez a cova íntima que nem sempre encontramos quan-
do precisamos de abrigo. Nas quatro partes do livro – Selvageria,
Fera, Corpo Aberto e Caverna – Jarid cava fundo, com unhas e
presas, em busca desse lugar. Revira lembranças de sua infância
no Cariri, cercada da intolerância e do machismo, mas também
cercada da poesia dos homens que inspiraram seu pai e seu avô,
ambos cordelistas, e a despertaram para o universo literário. O
que sempre faltou nessa época foi a voz de mulher, que ela se
encarregou de resgatar em seus dois primeiros livros, “As lendas
de Dandara” e “Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis”. Des-
cobrir-se mulher e depois negra intensificou essa busca, levando
Jarid a mergulhar na política de classe, de raça e de gênero em
seus cordéis que subvertem a tradição nordestina. Em “Um bura-
co com meu nome” – que também inaugura o selo literário Feri-
na, voltado à descoberta de autoras brasileiras – a política ganha
contornos líricos, mas continua presente em cada verso”. Rese-
nha de apresentação da obra disponível em: http://jaridarraes.
com/um-buraco-com-meu-nome/. Acesso em: 24 de jan. 2021.

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
38

texto fazem parte dessa obra, além de estarem disponi-


bilizados no site oficial da autora, de onde selecionamos
nosso corpus. O livro foi apresentado pela primeira vez
durante a Festa Literária Internacional de Paraty e a au-
tora foi também a responsável pelas ilustrações da obra.

Linhas de teoria

A relação entre a literatura, as outras artes e a di-


versidade étnica tem acontecido com maior visibilidade
em diferentes ambientes, inclusive nos acadêmicos. A
presença desses “novos” atores sociais no cenário que
produz cultura tem conquistado diversos espaços e
protagonizado importantes avanços, embora ainda tar-
dios, sob forma de resistência às invisibilidades sofridas
ao longo dos anos, portanto, nunca é demais tocar em
questões que podem levantar reflexões acerca disso.
Nesse cenário, está inserida a escritora contempo-
rânea Jarid Arraes, mulher, negra, feminista, nordestina,
escritora. A obra da autora tem sido reconhecida por tra-
tar de resistências a silenciamentos e por trazer temáti-
cas inseridas nesse contexto artístico. No seu percurso
de formação como escritora, Arraes teve consciência de
que podia escrever, de fato, apenas quando conheceu
Conceição Evaristo:
Descobri-la me deu a confirmação que eu podia
escrever, porque eu nunca tinha lido nada escrito
por uma mulher negra, por alguém que pareces-
se minimamente comigo. Quando li Cadernos
Negros, a literatura se abriu para mim e comecei
a publicar o que eu escrevia (ARRAES, 2019).

Entre os estudos de resistência epistemológica


que podem ser utilizados para teorizar sobre a literatura

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


39

na contemporaneidade destacam-se os pós-coloniais3.


A abordagem decolonial se contrapõe a uma visão co-
lonialista da arte, esta se configura como um projeto de
sociedade que visa o apagamento e o silenciamento das
expressões que não dialogam diretamente com o pro-
posto pelo grupo hegemônico. Sendo assim, pensar o
revés disso na literatura, ou seja, pensar a abordagem
centrada na decolonialidade constitui um movimento
de resistência teórico e prático, político e epistemoló-
gico, além disso, exige uma postura de enfrentamento
tanto de acadêmicos quanto de escritores, como possi-
bilidade de romper com práticas discriminatórias.
Para os teóricos dessa linha, o colonialismo se di-
ferencia da colonialidade, embora ambos sejam um pa-
drão de dominação e exploração:
O Colonialismo é, obviamente, mais antigo; no
entanto a colonialidade provou ser, nos últimos
500 anos, mais profunda e duradoura que o co-
lonialismo. Porém, sem dúvida, foi forjada dentro
deste, e mais ainda, sem ele não teria podido ser
imposta à inter-subjetividade de modo tão enrai-
zado e prolongado (QUIJANO, 2007, p. 93).
Maldonado-Torres (2007) também diferenciou os
dois conceitos da seguinte forma:
3 Comentando um pouco sobre os conceitos investigados pelos
estudos pós-coloniais, destacamos um grupo de estudiosos, for-
mado predominantemente por intelectuais da América Latina,
de caráter heterogêneo e transdisciplinar: “As figuras centrais
desse grupo são: o filósofo argentino Enrique Dussel, o sociólogo
peruano Aníbal Quijano, o semiólogo e teórico cultural argen-
tino-norte-americano Walter Mignolo, o sociólogo porto-rique-
nho Ramón Grosfoguel, a linguista norte-americana radicada
no Equador Catherine Walsh, o filósofo porto-riquenho Nelson
Maldonado Torres, o antropólogo colombiano Arturo Escobar,
entre outros” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010). Disponível em: ht�-
tps://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
46982010000100002. Acesso em: 18 de jan. 2021.

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
40

O colonialismo denota uma relação política e


econômica, na qual a soberania de um povo está
no poder de outro povo ou nação, o que constitui
a referida nação em um império. Diferente desta
idéia, a colonialidade se refere a um padrão de
poder que emergiu como resultado do colonia-
lismo moderno, mas em vez de estar limitado a
uma relação formal de poder entre dois povos ou
nações, se relaciona à forma como o trabalho, o
conhecimento, a autoridade e as relações inter-
subjetivas se articulam entre si através do merca-
do capitalista mundial e da idéia de raça. Assim,
apesar do colonialismo preceder a colonialidade,
a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela
se mantém viva em textos didáticos, nos crité-
rios para o bom trabalho acadêmico, na cultura,
no sentido comum, na auto-imagem dos povos,
nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros
aspectos de nossa experiência moderna. Neste
sentido, respiramos a colonialidade na moderni-
dade cotidianamente (MALDONADO-TORRES,
2007, p. 131).
Quijano (2005) vai propor o conceito de coloniali-
dade do poder, correspondente à estrutura de domina-
ção direcionada à América Latina, África e Ásia, que tive-
ram seus imaginários ocidentalizados.
Nesse sentido, o colonizador destrói o imaginá-
rio do outro invisibilizando-o e subalternizando-o, en-
quanto reafirma o próprio imaginário, naturalizando-o
e promovendo a subalternização do não-europeu. É a
própria negação e o esquecimento de tudo o que ao
subalternizado se refere, além de construir as subjetivi-
dades a seu bel-prazer.
Quijano (2005) fala também da colonialidade do
saber, entendida como a repressão de outras formas de
produção de conhecimento não-europeias, que negam

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


41

o legado intelectual e histórico de povos indígenas e


africanos, por exemplo. Essa afirmação da hegemonia
se traduz num racismo epistêmico, em negação a um
estatuto humano do Ser. Essa negação do outro, segun-
do Walsh (2006), violenta a liberdade e a história do in-
divíduo subalternizado de modo epistêmico. Para ela,
o colonialismo obriga o dominado a se perguntar em
realidade, quem eu sou? (FANON apud WALSH, 2005,
p. 22).
O conceito de interculturalidade traz para a dis-
cussão o diálogo entre as relações étnico-raciais e a
educação, que no Brasil e em muitos lugares tem orien-
tado novas posturas epistêmicas. Esse enfoque se de-
senha como uma possibilidade alternativa ao racismo
epistêmico e à colonialidade do Ser, do saber e do po-
der, conceitos há muito discutidos por Quijano (2007).
Para Walsh (2001), a interculturalidade significa:
Um processo dinâmico e permanente de rela-
ção, comunicação e aprendizagem entre culturas
em condições de respeito, legitimidade mútua,
simetria e igualdade. – Um intercâmbio que se
constrói entre pessoas, conhecimentos, saberes e
práticas culturalmente diferentes, buscando de-
senvolver um novo sentido entre elas na sua di-
ferença. – Um espaço de negociação e de tradu-
ção onde as desigualdades sociais, econômicas e
políticas, e as relações e os conflitos de poder da
sociedade não são mantidos ocultos e sim reco-
nhecidos e confrontados. – Uma tarefa social e
política que interpela ao conjunto da sociedade,
que parte de práticas e ações sociais concretas
e conscientes e tenta criar modos de responsa-
bilidade e solidariedade. – Uma meta a alcançar
(WALSH, 2001, p. 10-11).

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
42

O conceito de interculturalidade é centrado na


(re)construção do pensamento, entende que este pode
ser transformado, ou seja, torna explícita outra forma
de pensar, diferente da lógica eurocêntrica dominante.
O pensamento, nessa perspectiva, detém a consciência
de que as relações de poder não desaparecem, por isso
mesmo se desenha como alternativa, realizando cons-
tante questionamento e introduzindo outros modos
de pensar, para além do dominante, que se alicerçam
em posturas colonialistas. A interculturalidade se com-
porta como um novo espaço epistemológico, que inclui
os conhecimentos subalternizados e os ocidentais. No
caso da literatura, traz para o campo uma escrita à luz
das questões étnicas, raciais, sociais, de gênero, todas
formadoras da diversidade cultural. Para Dalcastagnè
(2012, p. 5), todo espaço é um jogo de forças e numa
narrativa não é diferente:
a literatura brasileira é um espaço em disputa.
Afinal, está em jogo a possibilidade de dizer so-
bre si e sobre o mundo. Hoje, cada vez mais, au-
tores e críticos se movimentam na cena literária
em busca de espaço – e de poder, o poder de fa-
lar com legitimidade ou de legitimar aquele que
fala. Daí os ruídos e o desconforto causados pela
presença de novas vozes, “não autorizadas”; pela
abertura de novas abordagens e enquadramen-
tos para se pensar a literatura; ou, ainda, pelo de-
bate da especificidade do literário, em relação a
outros modos de discurso, e das questões éticas
suscitadas por esta especificidade.

O poder de falar alcançado pelas novas autorias,


como o caso de Jarid Arraes, legitima aquele que fala
sem precisar de mediadores. A necessidade de se pen-
sar a literatura brasileira contemporânea também é

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


43

território em disputa e provoca tensões provenientes


de autores que não aceitam mais o silêncio como pa-
lavra. Urge a necessidade de se falar de um outro lu-
gar, que não aquele das representações já canonizadas
na tradição literária. Ao mesmo tempo, a literatura que
se contrapõe a isso se reafirma legítima a partir da voz
que cria a obra e do lugar de fala do qual faz parte. Fala
de si e sobre si. Sobre o lugar de fala desse escritor e o
julgamento que impõe a sua obra, vejamos Dalcastagné
(2012, p. 5):
é preciso decidir por dois caminho: podemos
desconsiderar o julgamento de valor estético so-
bre a obra e analisá-la a partir de sua especifi-
cidade, sem hierarquizá-la dentro de códigos ou
convenções dominantes, ou, ao contrário, usar as
convenções estéticas mais arraigadas no campo
literário para referendar essa obra dissonante,
mostrando que ela poderia, sim, fazer parte do
conjunto de produções culturais e artísticas con-
sagradas na sociedade, desde que olhada sem
preconceito.
Para a autora, são essas vozes que se encontram
às margens do campo literário, cuja legitimidade para
produzir literatura é questionada e considerada por ela
como território contestado, que tencionam com suas
presenças nosso julgamento do que é (ou deve ser) lite-
ratura. Esse é o posicionamento dos estudos pós-colo-
niais, ou seja, a defesa de uma perspectiva de descoloni-
zação da cultura e de descatequização da mente. Nesse
sentido, é o próprio indivíduo marginalizado, a partir
uma perspectiva autoral, autobiográfica, testemunhal,
que promove o ativismo artístico.
O século XX traz à tona e gradativamente con-
solida, no e pelo âmbito das ciências humanas

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
44

e sociais, assim como na esfera da linguística e


das artes e por elas, a categoria da diversidade,
da diferença, do pluralismo, da alteridade como
sua base fundante, estruturadora e definidora da
constituição e da relação entre teoria e prática,
do sujeito teórico e do/como sujeito político
(DANNER, et al., 2020, p. 62).

A produção do conhecimento assume, por meio


desses novos sujeitos políticos, uma dinâmica que vai
de sua condição de marginalização para a altivez de
suas vozes, partindo da sua singularidade identitária
e das experiências de subalternidade vividas por eles.
O trecho a seguir explica o modo como a colonização
promove a colonialidade da mente, tornando menor o
sujeito a ser colonizado, deslegitimando-o:
A colonização precisa, por conseguinte, para justi-
ficar-se como tarefa de humanização, de civiliza-
ção e de incremento moral, fundamentar a meno-
ridade do sujeito a ser colonizado, e isso significa:
precisa deslegitimá-lo em sua condição e silenciá-
-lo e invisibilizá-lo como voz pujante, como sujeito
ativo, como energia vital, diminuindo-o e reduzin-
do-o à animalidade, à selvageria ou à anormalida-
de, no mesmo momento em que o esconde dos
olhos do público, em que se o despersonaliza e o
despolitiza como sujeito que pode ser visto e agir
à luz do dia (DANNER, et al., 2020, p. 64).

Desse modo, o protagonismo da voz dos grupos


colocados à margem da sociedade e da literatura ca-
nônica é político, é uma literatura de compromisso,
pois ao passo que retrata o social, posiciona-se como
uma literatura engajada também em termos estéticos,
construindo uma linguagem artística advinda da classe
social que a representa. O subalterno não mais silencia-

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


45

do constrói sua voz, trazendo para as obras as questões


sociais, o ambiente periférico, e isso ocorre proveniente
de sua própria condição de escritor posto à margem da
elite literária, daí, em muitos casos, o que se vê nascer
e apontar no cenário literário é a subversão ao cânone.

Linhas insurgentes de Jarid Arraes


Jarid Arraes é escritora natural de Juazeiro do Nor-
te, na região do Cariri-CE. Sua obra é composta pelo
premiado Redemoinho em dia quente, As lendas de
Dandara, Um buraco com meu nome e Heroínas ne-
gras brasileiras em 15 cordéis. Além disso, a autora tem
mais de 70 títulos publicados em literatura de cordel,
possui participação em coletivos culturais, já colaborou
com diversos portais e revistas, atuou como jornalista
e escreveu matérias sobre feminismo, movimentos de
luta contra o racismo, direitos LGBT, entre outros.
Desde a infância, Arraes teve forte contato com a
literatura e cresceu fincada na cultura tradicional nor-
destina, porém, o acesso a obras de escritoras era pre-
cário, o que lhe inquietou a pesquisar e conhecer mu-
lheres, principalmente negras, que marcaram a história,
não só na literatura, mas nas mais diversas áreas do co-
nhecimento. O trecho a seguir, nas palavras da autora,
descreve o início de seus passos como escritora:
Comecei a escrever desde muito cedo, mas, claro,
para mim mesma. Só comecei a compartilhar as
coisas que eu escrevia quando conheci escritoras
que se pareciam comigo de alguma forma, escri-
toras que abriram a Literatura como possibilidade
e tiraram da escrita aquela camada de coisa im-
possível de tocar. A primeira delas foi Conceição
Evaristo. Descobrir Conceição e seus escritos foi

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
46

fundamental para entender a Literatura como


universo de criatividade e sem dono, que também
poderia ser coisa minha, porque também era coi-
sa de Conceição. Com ela, vieram muitas coisas.
Foi nos Cadernos Negros que conheci Concei-
ção Evaristo, depois Esmeralda Ribeiro e Miriam
Alves. Então passei a pesquisar outras autoras,
principalmente negras, que me provocaram um
pensamento cada vez mais coletivo e uma visão
sempre política a respeito da Literatura. Eu co-
mecei a escrever porque queria me expressar e
a expressão é uma das coisas mais políticas que
existem. Escrever pra mim, logo no começo, foi
principalmente um movimento de resgate, de
contar histórias que eu não conheci quando deve-
ria ter conhecido. Depois, foi um movimento polí-
tico de expressar questões coletivas que tanto nos
separam quanto nos unem. Hoje escrevo porque
vejo minha escrita como algo que não é apenas
sobre mim, é algo coletivo em vários sentidos e
significados. Escrevo para encorajar outras mulhe-
res, para que elas também escrevam e publiquem.
Escrevo porque tenho uma voz (ARRAES, 2018).
Arraes busca seus pares à medida que constrói sua
literatura e desde sempre encara o ofício de escrever
como ação política, para além da criativa. Na literatura,
ela busca sua identidade, seus parentes, ao mesmo tem-
po que mergulha como leitora nos escritos de autoras
silenciadas pela tradição. Sua voz se afirma na luta por
um lugar de expressão do subalterno desejoso de voz,
assim acontece em todos os seus livros. Sobre a obra
Um buraco com meu nome, a autora declara: “não é um
livro que eu escrevi para que a gente se sinta bem. Eu
quero que a gente olhe para essa feiura. Vamos olhar,
vamos sentir. Isso é sobre nós. E há um caminho para ser
caminhado” (ARRAES, 2018).

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


47

A literatura vai além do espaço de enunciação,


percorre os caminhos políticos de empoderamento,
luta, reconhecimento e resistência. “Para mulheres ne-
gras, o direito ao humano, ao existencial, ao corpo físico
que sente dor, ao ser que sente dor, é um passo impor-
tante. É um processo curativo e que não só cura a si, mas
que também abre espaço para que outras possam se
permitir” (ARRAES, 2018).
No poema “água de coco”4, a autora traz a descrição
do lugar relegado ao corpo preto: a morte, o descaso, a in-
diferença do mundo excludente que o nega humanidade.
água de coco

nunca fui a um funeral


o primeiro corpo que vi
era preto
usava bermuda vermelha
aberto como estrela
no asfalto

isso foi em copacabana


as pessoas com seus cachorros

era um corpo morto


e nada mais
queria dizer

aprendi
naquele dia
a morte é relativa
aos olhos
prada
de quem vê

4 Os poemas selecionados para esta análise foram retirados da pági-


na oficial de Jarid Arraes, portanto a referência está disponível em:
http://jaridarraes.com/category/poemas/. Acesso em: 28 fev. 2021.

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
48

Em “água de coco”, as nuances severas do racismo


são descritas quando a autora expõe a morte, que causa
impacto diferente nos que a observam, dependendo da
cor que o corpo morto carregue. Além disso, percebemos
a crítica à desigualdade social, simbolizada pela cena em
que o corpo morto e preto é notado por uma passante/
observadora igualmente preta, pobre e sensível a essa
realidade. O fato é que o impacto não surtiu o mesmo
efeito nas senhoras com seus cachorros, porque, para
esse tipo de observador, um corpo preto morto no asfal-
to é apenas mais um, não quer dizer nada, nada simbo-
liza, apenas mais uma morte trivial no asfalto cotidiano.
A consciência criativa de Arraes escolhe Copaca-
bana, no Rio de Janeiro, para versificar a cena, bairro no-
bre, tradicional, conhecido por abrigar, em sua maioria,
crianças e velhos. A cena do corpo morto não atrapalha
esse andar rotineiro em Copacabana, não impacta, não
choca. A autora ainda faz referência à elite social mora-
dora/frequentadora do bairro, quando traz o trocadilho
da grife de óculos Prada para se opor ao abismo entre a
riqueza e a miséria que separa as classes sociais. A mor-
te dos pretos é, mesmo, “relativa aos olhos de quem vê”.
(...) “porque realmente aconteceu aquilo comigo, de eu
estar no Rio e ver um garoto negro morto pela polícia”.5
No poema “nunc obdurat et tunc curat”, há um ver-
so da cantata Carmina Burana6 e foi dedicado a ­Beatriz
5 Vide nota de rodapé nº 4.
6 O nome “Carmina Burana” vem do latim e quer dizer “Canções
de Benediktbeuern”. Em 1847, nesta cidade alemã, o estudioso
de dialetos Johann Andreas Schmeller encontrou e publicou esse
manuscrito composto por 254 poemas e textos dos séculos XI,
XII e XIII. Foi o próprio Schmeller quem deu o nome de “Carmi-
na Burana”. Esses textos que compõem o manuscrito “Carmina
Burana” tratavam de poesias de caráter profano, escritas por di-
ferentes poetas, com culturas e ideologias diversas e, por isso,

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


49

Nascimento, historiadora, professora, intelectual, poeta


e ativista sergipana. Novamente, Arraes traz a temática
do racismo. O título do poema traduzido do latim signi-
fica “agora é difícil e então acalma” e
ele tem uma história de um momento difícil, em
que eu me perguntava porque eu era sempre a
única negra dos projetos de escrita de mulhe-
res, porque eu sempre tinha que escrever sobre
questões raciais enquanto as outras mulheres
podiam escrever sobre qualquer outra coisa, mas
eu tinha que escrever sobre racismo, porque eu
sempre era a única negra (ARRAES, 2018).

O lugar silenciado de Arraes é matéria-prima para


seus versos em “nunc obdurat et tunc curat”:

nunc obdurat et tunc curat

1439 lugares
e eu era a única negra

há espíritos fortes que falam


de racismo
enquanto assistem carmina burana

[eu quebro]

os seus estilos são bastante diversificados. Encontramos textos


picantes, satíricos, irreverentes, e podem falar sobre diversos te-
mas da vida, como amor, sexo, bebidas, prazeres, críticas ao clero,
entre outros. Essas peças eram escritas em latim medieval, alter-
nados com trechos em francês provençal, médio–alto-alemão e
até macarrônicas, numa mistura de latim vernáculo com alemão
ou francês. Em 1936, o compositor alemão Carl Orff pegou cerca
de 20 dos 254 poemas de Carmina Burana e os musicou de forma
totalmente nova, embora imitasse algumas características musi-
cais típicas do período medieval, como o canto gregoriano e os
intervalos de quinta justa. Disponível em: https://radios.ebc.com.
br/caderno-de-musica/2018/01/conheca-o-significado-de-car-
mina-burana-no-caderno-de-musica. Acesso em: 25 jan. de 2021.

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
50

o primeiro ato
é o roubo
quero escrever coisas outras
pássaros vaginas janelas o clima
as lentes o detergente
roubaram de mim
de você desse lápis
desse teclado
a escrita da poesia qualquer
enquanto o cérebro
escurta o circuito
a medicação tropeça
enquanto sou como todas
as outras poetas
fui roubada
quero sofrer como todos
os loucos
e das palavras que surtam
peneirar
a estética
mas se atente
ao movimento
dos furtos clássicos
históricos e afinados
entre todas essas que versam
um papel me foi restado
quantas negras eu questiono
o que escrevem
essas negras
o primeiro ato
é sempre um trato
assinei esse papel
de única e exceção
e agora minhas frases
são fronteiriças

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


51

e beatriz eu só queria
escrever sobre as paredes
os olhares e as cadeiras
os baralhos os abismos
1439 lugares
e eu era a única negra
eu deveria estar feliz
porque ocupei esse espaço
montei essa ocupação
solitária
de uma bandeira
parda
[eu quebrei
em mil pedaços]
eu deveria estar feliz
mas beatriz eu só queria
escolher uma poesia
beatriz eu só queria
como todas as poetas
as negras também
surtam
mas o primeiro
ato
é sempre uma
pergunta
onde estão as
negras
onde estão
as negras
[onde estão as negras]
Os versos iniciais do poema fazem referência à
cantata Carmina Burana e a voz do poema é a única ne-
gra no ambiente clássico, reconhecidamente canônico
e historicamente negado à poeta de identidade margi-
nalizada. Os versos reclamam o direito a uma escrita so-

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
52

bre o simples cotidiano. Em vez disso, é preciso escrever


sobre racismo, porque tal escrita deve e precisa ser uma
arte política, de demarcação de espaço, sempre em luta,
vigilante. A poesia lhe foi roubada e a ela o caminho que
restou é o não escolhido.
O poema é dedicado a Beatriz Nascimento, que
aparece nominada em alguns versos dando o tom de
conversa, de desabafo, como em: “eu deveria estar feliz/
porque ocupei esse espaço/montei essa ocupação/soli-
tária/ de uma bandeira/parda”. Arraes tem a consciência
da submissão a que foi imposta, devedora do colonialis-
mo da mente oriundo da estrutura racista, quando diz:
“se atente ao movimento dos furtos clássicos históricos
e afinados”.
No sexto fragmento, quando se dirige à Beatriz
(Nascimento), Arraes declara que, tanto para Beatriz
quanto para si, foi negada a possibilidade da escrita da
“poesia qualquer”, por isso um questionamento paira
sobre todo o poema: “em qual lugar estão as negras?”,
são ainda uma minoria preta de mulheres desejosas de
não mais calar. Em muitos versos do poema há a reinvin-
dicação pela fala de “uma poesia qualquer”: “quero es-
crever coisas outras”; “roubaram de mim/de você desse
lápis/desse teclado/a escrita da poesia qualquer”; “fui
roubada”; quero sofrer como todos/ os loucos”; “um pa-
pel me foi restado”; “beatriz eu só queria/escrever sobre
as paredes/os olhares e as cadeiras/os baralhos os abis-
mos”; “eu deveria estar feliz/mas beatriz eu só queria/
escolher uma poesia”.
O próximo poema escolhido para esta análise é
“cinto de couro”, que versa sobre a opressão sofrida pe-
las mulheres. São versos feministas, de crítica ao opres-
sor, e contam sobre a vítima subjugada em decorrência

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


53

da força machista do pai, um paternalismo que fere,


aprisiona, desrespeita, violenta física e psicologicamen-
te e persiste por gerações. As opressões às mulheres são
es­truturais. Tal qual no racismo, são históricas e estão
nas grandes instituições que afiançam autoridade: Esta-
do, família, religião.

cinto de couro

a silheta paterna assombra


os sonhos
na penumbra das metáforas
nas figuras de linguagem
na literalidade das surras
das pernas bêbadas
nas mães chorosas
roxas

a figura do pai marca a filha


que marca o filho que marca
a filha e depois a menina
numa cadeia de gritos
ameaças quartos como
masmorras
impedimentos
iniciados na figura do pênis
do cajado que o pai
sacudiu
ordenando

ah minha pequena menina


seus olhos estafados me dizem tanto
a rejeição do pai
o zelo do pai
o controle do pai
o medo o pavor a admiração
a necessidade de aprovação
o esforço contínuo de menina
pobre menina minha

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
54

eu me tornei também a continuação


da figura paterna
das oscilações
ora o coração cheio
ora o diminuto corpo rangendo
uma escalada de desconhecimento
seria amor seria ódio
a filha minha pequena garota
que teme todo o desejo ardente
de matá-lo
o pai

eu sei
minha menina
enxergo esse nó
mas não posso desatá-lo
sou também o fruto do pai
da mãe ao chão
da mãe que vestiu calças
foi porta afora
ser figurativa

que pena que não pudemos


escapar
mas tenho boas-novas
não agora mas um dia
o prenúncio os ecos
dos gritos graves
tudo isso virará escolha
em minhas garras

desenharei a linha divisória


nesse chão
daqui

daqui ele não passa

Na primeira estrofe, temos: “a silheta paterna as-


sombra/os sonhos/na penumbra das metáforas/nas
figuras de linguagem/na literariedade das surras/das
pernas bêbadas/nas mães chorosas/roxas”. Aqui, a meta-

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


55

linguagem trazida pela poeta mistura-se às palavras que


definem a autoridade do marido agressor, do patriarca-
lismo que açoita, por costume, o feminino. Às mulheres,
sejam elas esposas ou filhas, restam as m ­ asmorras.
Na segunda estrofe, percebe-se a continuação ge-
racional da violência sobre o feminino: o pai exerce o
poder sobre a filha e o irmão, que por sua vez continua
a repetição estruturante da violência. A agressão é sim-
bolizada pela cadeia de gritos, ameaças, impedimentos,
quartos feito masmorra, o cajado do pai, o pênis do pai,
indicando também o abuso sexual.
A estrofe seguinte enumera um misto de senti-
mentos próprios das vítimas de violência: o medo e pa-
vor que a menina sente pelo pai aparecem unidos e dis-
putando espaço junto à admiração e à necessidade de
aprovação, representando a culpa que açoita o abusado.
Na quarta estrofe, o eu lírico, que parece ser a mãe,
também surge como personagem: “eu me tornei tam-
bém a continuação/da figura paterna/das oscilações/
ora o coração cheio/ora o diminuto corpo rangendo”. A
consciência da submissão, que lhe é imposta como he-
rança geracional, surge em: “enxergo esse nó/mas não
posso desatá-lo/sou também o fruto do pai/da mãe ao
chão/da mãe/que vestiu calças/foi porta afora/ser figu-
rativa”. A figura do pai aparece em todo o poema, cons-
truindo uma cadeia de vítimas culpadas, com sentimen-
tos misturados ao desejo escondido de matá-lo.
Ao fim do poema, a tomada de consciência acer-
ca da violência sofrida, embora com a impossibilidade
de desatar o nó do machismo que se repete continu-
amente, anuncia boas-novas: todo o sofrimento “virará
escolha/em minhas garras/desenharei a linha divisória/
nesse chão/daqui ele não passa.”

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
56

O último poema escolhido para análise, neste tra-


balho, é “uma mulher pergunta”, que continua a tratar
sobre feminismo e crítica ao patriarcalismo:
uma mulher pergunta
há tardes e pequenos espaços
de tempo
em que uma mulher pergunta
de que adianta
se as mãos dos homens
dirigem o metrô e os ônibus
os carros blindados
as motos que serpenteiam
entre corredores breves
se as mãos
dos homens
assinam os papéis e carimbam
autorizam o prontuário
a entrada e a saída do corpo
o reconhecimento dos órgãos
doados
se as mãos dos homens
orquestram as violências
balas esporros olhares
e tocam seus instrumentos
fálicos curtos enrugados
colocados para o lado
se os homens e suas
mãos
discam os números
estabelecem os valores
fazem listas de nomes
de outros homens
e se as as mãos dos
homens
alcançam todas as coisas
que quebram ou selam
acordos

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


57

e apertam botões
que começam guerras
internas
por muitas e muitas
gerações
há um dia em que a mulher
pergunta a si mesma
pergunta para outra
mulher
e as perguntas pairam
flutuam
sobre a cabeça
as perguntas incomodam
e vazam como excremento
de aves de árvores de céu
nesse dia a mulher procura
a resposta
por que de que adianta
se há mãos que fazem dançar
as cordas
e os pequenos membros
do corpo vivem em sacolejo
o ventre morre em liminares
gestações que formam mãos
de homens
e a partir do ventre
as mãos nutridas pela mulher
saem na direção do mundo
de tudo que é externo
de tudo que é global
antropológico
fágico
e social
e a mulher nesse dia pergunta
para outra mulher
para o espelho
de que isso tudo
adianta

LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
58

O poema é um questionamento acerca da ocupa-


ção de espaços e profissões dominadas pelos homens.
Não há representatividade feminina nesses lugares, nas
tomadas de decisão, e cabe aos homens o ato de dirigir,
assinar papéis, realizar despachos e promover a violên-
cia. Ao homem, foi destinado o lugar das resoluções, do
condutor da ordem. Ele alcança todas as coisas, quebra
e sela acordos. À mulher, destinam-se os silenciamen-
tos, os papeis secundários. Paralelo a isso, o eu lírico traz
o outro contraponto: “de que adianta/se há mãos que
fazem dançar/as cordas/e os pequenos membros/do
corpo vivem em sacolejo/o ventre morre em liminares/
gestações que formam mãos/de homens/e a partir do
ventre/as mãos nutridas pela mulher/saem na direção
do mundo”. No fragmento, há a mulher em profundo
estado de questionamento: “de que tudo isso adianta”?
É o desânimo diante do apagamento que transforma a
mulher em parideira das continuações do patriarcado.
De que adianta? Ela pergunta.

Linhas a serem continuadas

Pensar o versificar de Jarid Arraes na perspecti-


va insurgente do decolonialismo é trazer para dialogar
com suas estrofes e versos uma teoria que se impõe aos
silenciamentos, do mesmo modo que ocorre com a po-
esia da escritora. Sendo assim, a obra de Arraes repre-
senta postura de enfrentamento, que se propõe a rom-
per com práticas discriminatórias e a reivindicar o poder
de falar alcançado pelas novas autorias literárias.
Ao escrever poemas como “água de coco”, “nunc
obdurat et tunc curat”, “cinto de couro”, “uma mulher
pergunta”, a escritora protagoniza a contestação da co-

CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


59

lonialidade do poder, do ser e do saber de que nos fala


Quijano (2007). Arraes se impõe à estrutura de domi-
nação que se apropriou historicamente dos imaginários
do outro, destruindo-o, invisibilizando-o, enquanto rea-
firma seu próprio imaginário.
À medida que a poetisa faz versos para falar da
insensibilidade humana diante da morte de negros ou
quando versifica a reivindicação da mulher negra ao di-
reito de escrever uma poesia qualquer, ou ainda quando
descreve com metáforas doloridas a violência do ma-
chismo sobre o feminino, ela exerce uma voz de autoria
insurgente e necessária. A literatura política e militante
de autoras como Jarid Arraes é o reparo histórico e ar-
tístico da voz que foi calada. Agora, sim, por meio dela,
“a literatura humaniza e faz viver.”

Referências
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LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
60

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Disponível em: https://incompleta.com.br/entrevista� -
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cedida a] Verônica Silva, Larissa França, Cinthia Martinia-
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CINTYA KELLY BARROSO OLIVEIRA


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LITERATURA E DECOLONIALIDADE:
A RECUSA DO SILÊNCIO NOS POEMAS DE JARID ARRAES
62

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS:


A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS

Fábio José de Queiroz

Introdução

E
mbora seja um lugar comum declarar, nunca
será demais insistir que, quanto mais genial
uma obra literária, mais ela tem a oferecer, no
que concerne às possibilidades de estudo. É o caso de
Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Em suas páginas, res-
salta-se a figura do camponês, plasmada em uma famí-
lia de retirantes. Suponho que o lugar do campesinato,
na obra mencionada, reveste-se de importância, e, ao
mesmo tempo, exige uma reconstituição mais direta.
Trata-se de tema já explorado pela crítica, mas, a meu
ver, de maneira insuficiente.
Neste artigo, em grandes linhas, pretendo levar a
cabo esse reequacionamento, examinando o lugar da
figura do camponês/camponesa em Vidas Secas, o úl-
timo dos quatros romances publicados pelo autor nos
anos 1930.
Reconstituir o mundo social do campesino implica
recobrá-lo na complexidade de sua prática, de seus mo-
vimentos e de sua linguagem. É precisamente isso que
faz Ramos num de seus trabalhos mais memoráveis. À
luz do livro designado, cogito analisar o mundo e o ima-
ginário do camponês do semiárido, tomando a criação
literária como ponto de apoio necessário a essa emprei-
tada, considerando sempre que o sentido de um texto
nunca se restringe aos limites dados pelo seu autor.

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


63

Aqui, história, análise social e literatura se cruzam


e são momentos distintos e complementares de uma só
unidade: o campesino sertanejo. Partindo desse pres-
suposto e tomando Vidas Secas a título de referência
fundamental, o desenvolvimento do artigo está dividi-
do em três partes: o real como substrato da expressão
literária, a estética social como estilo e a obra de Ramos
no papel de uma amostra do mundo campesino.
Concebido como um estudo do camponês do ser-
tão nordestino, com base em uma obra-chave do ne-
orrealismo brasileiro, este trabalho se apoia não só em
uma leitura imanente do livro de Graciliano de Ramos,
mas, também, em textos analíticos que, direta ou indi-
retamente, constituem tentativas de explorar aspectos
literários e sociais da narrativa-objeto ou aportam às
discussões que perpassam este artigo.
Estimulado por tais impulsos, imagino poder
acrescentar algo novo ao repertório de temáticas pas-
síveis de tão grande afinidade e, portanto, suscetíveis a
estudos comparativos: o estilo de Graciliano Ramos, a
obra Vidas Secas e a emblemática figura do camponês,
que, no livro em comento, deixa de ser figurante e se
torna amplamente protagonista.

O real como substrato da expressão literária em Vidas


Secas

Um texto literário sempre tem o pé na realidade,


mas ele não é um simples espelho do real, que, de fato,
é reconstituído de modo sempre particular. O autor des-
cobre no real o que, em última análise, mais esconde do
que revela, e o faz de maneira tão desconcertante que a
realidade é refeita e concebida sob um novo prisma. A

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


64

concepção pode ser da vida e da morte, do sonho e do


pesadelo, da liberdade e da cadeia, da chuva e do sol.
Em 1938, Graciliano Ramos lançava aquela que vi-
ria a ser uma das obras mais representativas do neor-
realismo modernista no Brasil: Vidas Secas. Nela, pela
primeira vez, a figura do camponês(a) iria aparecer de
modo inteiro e cristalino na consagrada escritura do
prosador alagoano. Se essa personagem nunca estivera
ausente na galeria de figuras humanas criadas pelo au-
tor, de feito, até então ela se apresentara como figuran-
te e não com o protagonismo manifesto em Fabiano e
Sinhá Vitória.
Em Vidas Secas, a história social, a cultura e a tes-
situra de sentimentos do campesinato do semiárido es-
tão ressaltadas de maneira fulgurante. Neste trabalho,
busco recuperar como uma família camponesa lida com
os embaraços, as projeções, os medos e as decepções
em uma vida que parece andar em círculo.
O vaqueiro Fabiano, Sinhá Vitória, os dois filhos
e a cachorra Baleia mostram que a obra literária flerta
com a realidade, sem, porém, simplesmente espelhá-
-la. Do contrário, seria impossível aquilatar e entender
uma personagem como Baleia, um capítulo como o de
Baleia. O mundo está cheio de Baleias, mas nenhuma
delas tem a criatividade de, na hora da morte, sonhar
com o céu cheio de preás. É o triunfo da ficção sobre a
realidade pura e simples e é isso que faz a magia da obra
artística.
O Grito, de Edward Munch, é a explosão da reali-
dade na arte e não o simples espelhamento da primeira
sobre a segunda. Baleia é a explosão da vida e não o
mero reproduzir da sua dor, que é o espelho quebra-
do do mundo. Nesse espelho quebrado, é possível ver o

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


65

mundo e não vê-lo ou, mais propriamente, vê-lo de ou-


tro modo, até porque ele não é ele; ele é outro. A litera-
tura é esse(a) outro(a), que cabe e não cabe no mundo.
É essa relação de caber e não caber que define a obra
de arte.
O real, em Vidas Secas, é o substrato da ficção,
mas a imaginação poderosa de Graciliano Ramos recria
o real, o que permite ao leitor o contato com um real vi-
gorosamente reinventado. A aspereza da vida social não
desaparece, mas é reelaborada pelo fascínio e enlevo,
característicos da obra literária.
A família camponesa, que funda o núcleo central
da narrativa, configura o campesinato do sertão, as suas
angústias e incertezas, mas Graciliano a representa, não
como um método de reprodução mecânica ou espelha-
mento do que existe verdadeiramente, mas pelo enge-
nho e pela inventividade que evidenciam e identificam
a obra de arte. Nessa perspectiva, as relações práticas
entre o sujeito e a realidade adquirem um grau de sen-
sibilidade peculiar que, em última análise, é determina-
da pelo ato fundador da imaginação e fecundidade de
feição literária.
Há obras literárias, nas quais o social e o ficcional
se distanciam de tal maneira, que parece lídimo admitir
a prevalência absoluta da fantasia. Não é o caso de Vi-
das Secas. No livro de Ramos, o leitor se depara com o
que, grosso modo, pode ser identificado à ficção social,
na qual – parafraseando Eagleton (1993) – a unidade en-
tre o prático e o estético, de um só golpe, vence a du-
alidade que, hipoteticamente, apartaria vivência e arte.
O ficcional, nesse sentido, não é uma dimensão isolada
da existência a ela contraposta, mas, ao contrário, é um
fio que liga as duas margens. Por esse ângulo, processa-

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


66

-se o diálogo entre a fantasia e o concreto tangível da


existência social. A ideia de uma contemplação desin-
teressada do mundo, à primeira vista, anula-se diante
da vivência comum e palpável que emana do mundo
gregário.
A respeito escreveu Lucas (1999, p. 108): “Gracilia-
no Ramos sabe como ninguém utilizar os mecanismos
da prosa para que o leitor veja, através da pura ficção,
as implicações do mundo comentado”. Esse é o espírito
que, segundo esse autor, define o regionalismo crítico,
uma vertente de ficção social que não apenas represen-
ta uma dimensão do movimento modernista no Brasil,
mas constitui um diferencial em relação ao regionalis-
mo que vingou da segunda metade do século XIX às
primeiras décadas do XX.
No modernismo brasileiro, a ficção social é uma
chancela da literatura produzida por romancistas que,
procedentes do Nordeste1, ganham projeção nacional,
a começar nos anos 1930, e, na focagem que marca os
trabalhos de Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins
do Rego, José Américo e Rachel de Queiroz, a dualida-
de, há pouco expressa, vê-se superada. Nas palavras de
Castello (1999): “Propõe-se uma nova maneira de pe-
netrar no caráter do sertanejo nordestino e de abordar
objetivamente, através da recriação literária, os diversos
problemas que envolviam homem e região” (p. 271-272).
Fabiano, Sinhá Vitória e o mundo camponês si-
tuados em Vidas Secas se inserem nesse panorama de
focagem específica e inconfundível, embora o roman-
1 De certo modo, permito-me o exercício de um anacronismo his-
tórico ao fazer uso da expressão Nordeste, uma vez que a mesma
só se tornaria designação efetiva de uma das macrorregiões do
Brasil anos depois da explosão literária dos autores da chamada
corrente regionalista do modernismo.

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


67

cista de Quebrangulo deva ser visto na qualidade de


“o outro lado dos chamados romancistas do Nordeste”
(CASTELLO, 1999, p. 298). O que o destaca, inicialmen-
te, é a genialidade que lhe propiciou unir o social e o
psicológico, o regional e o universal, em um nível não
alcançado por seus pares2.
Nesse raciocínio, tanto a realidade exterior quan-
to o universo interior das personagens é devassado
na escrita do criador de Fabiano. No caso do romance
em comento, o uso reiterativo do discurso indireto li-
vre permite ao leitor se apropriar do universo interior
das personagens e, por meio desse recurso, recuperar
a complexa alma sertaneja, na qual silêncio e secura se
articulam em um concerto mudo e mirrado, exausto e
escasso.

O estilo em Vidas Secas ou a estética do social

João Cabral de Melo Neto, no poema “A palo seco”,


já havia definido Graciliano e a sua linguagem como do-
tados de uma natureza terminantemente seca. Se esse
estilo já era ensaiado em Caetés, São Bernardo e An-
gústia, é no relato da vida camponesa dos retirantes, de
Fabiano, de Sinhá Vitória e dos dois filhos que a sobrie-
dade, o laconismo e a precisão se ligam de modo inape-
lável. A aridez do ambiente é da linguagem e vice-versa.
Aqui, abro um parêntese. A concepção geral de
uma região sofrida e de uma população dilacerada pe-
las circunstâncias mesológicas e sociais, frequentemen-
te, é parte do perfil do grupo de romancistas do Nor-
2 Evidentemente, há o elemento destacado do estilo de Graciliano
Ramos, que o distingue não apenas entre os seus contemporâne-
os, mas, igualmente, no âmbito da literatura brasileira. Intenciono
tratar disso mais adiante.

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


68

deste. Essa estética social3 como filosofia une autores,


em geral, diferentes, não só pelo objeto específico que
orienta o trabalho de cada um deles, mas, em particular,
pelo estilo próprio que os caracteriza.
Mais do que uma filosofia, o que separa Graciliano
Ramos de seus pares é a economia. É precisamente a
economia da linguagem que o define. No caso de Vidas
Secas, essa economia alcança a sua síntese superior. E
essa síntese é a gramática exata que configura o univer-
so social de Fabiano e de sua família.
Do tratamento objetivo da realidade social decor-
re a linguagem objetiva, seca e direta, que percorre toda
narrativa de Vidas Secas. Ao longo de todo texto, essa
escolha se revela consentânea, pertinente e certeira. O
leitor atento há de perceber que ela não está ali por aci-
dente, mas pelo fato de se mostrar oportuna e tempes-
tiva na reconstrução congruente do real. Nesse terreno,
a linguagem não é só a ferramenta inerente ao processo
de transfiguração artística da realidade, mas aquela ca-
paz de imprimir realismo ao texto ficcional.
Nos treze capítulos ou quadros que constituem a
obra em exame, a coerência da linguagem se assemelha
a um leito seco de rio, que não se modifica ao longo de
todo o seu trajeto. As falas enxutas, às vezes guturais, de
Fabiano, Sinhá Vitória e dos filhos, em seu sentido mais
preciso, são a expressão desse mundo social em que a
sequidão é norma. Não é simplesmente uma secura do
ambiente, mas da vida. E ao se tratar mais do que de
uma vida, a locução Vidas Secas se torna inevitável.

3 Essa estética, em seu sentido mais geral, encaixa-se aos propósi-


tos de uma inteligência participante, marca de grande parte de
autores dessa geração, perpassada pela preponderante polariza-
ção ideológica que distinguiu esse período da história.

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


69

Logo no começo da narrativa, a aridez dessas vidas


se mostra imperiosa no retrato sumário do estado de
espírito de Fabiano: “Tinha o coração grosso, queria res-
ponsabilizar alguém pela sua desgraça” (RAMOS, 1996,
p.10). Os caminhos cheios de espinhos e seixos não
estão apenas nas estradas semiáridas, mas, do mesmo
modo, no coração estrangulado.
Em sua engenhosidade, Ramos está menos preo-
cupado em descrever a seca como fenômeno natural do
que propriamente pintar e representar, em cada qua-
dro, o estio que devora a alma humana, que a dilace-
ra, que a reduz quase a uma manifestação grosseira do
sujeito antrópico. Não é uma situação de aleatoriedade
o fato de Fabiano se entender mais satisfatoriamente
com a cadela Baleia do que com os seus semelhantes.
Somente uma linguagem que não descarta o silêncio,
os sons guturais, os solilóquios e a sonoridade onoma-
topaica reúne as condições necessárias para restaurar
esse mundo determinado, as suas contradições e os
seus impasses.
Na sequência da situação há pouco recuperada,
Fabiano abranda o espírito em presença do padecimen-
to do filho mais velho e o narrador enuncia: “Sinhá Vi-
tória estirou o beiço indicando vagamente uma direção
e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto”
(RAMOS, 1996, p. 10). Mais adiante, completa: “Sinhá Vi-
tória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição
gutural e designou os juazeiros invisíveis” (RAMOS, 1996,
p. 10). As paisagens se repetem e a linguagem diminuta
e compacta tenta dar conta do cenário miserável em
que os juazeiros invisíveis representam resiliência, mo-
notonia e pontos de orientação. Ao longo da narrativa,
paisagens, humanos e bichos se misturam em sua elo-

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


70

quente secura e indelicadeza. A única língua fora da


boca é a da cadela Baleia. As demais correspondem ao
cenário em que a língua mergulha dentro de si mesma
e busca reconstituir todo um mundo mediante o cicio,
o rumorejo, o cochicho, o gemido, o monólogo, a inter-
jeição e os monossílabos.
A expressão “Ordinariamente a família falava pou-
co” (RAMOS, 1996, p.11) sugere a economia linguística que
a particulariza. Fabiano sonhava em ver os filhos domi-
nando a linguagem, que a vida social inóspita, pelo me-
nos parcialmente, lhes havia cancelado o direito de usu-
fruir. A esse respeito, Junior e Barros (2018, p. 18) declaram:
Em Vidas Secas, Fabiano, personagem proletária,
não consegue “apropriar-se” da linguagem. Ela
lhe foi alienada pela adversidade econômico-so-
cial. A perspectiva de Fabiano é lutar para que ela
seja restituída pelo menos a seus filhos. Dominar
a linguagem, para essa personagem, é uma forma
de capital simbólico e de poder social.

Junior e Barros (2018) entendem que a lingua-


gem é modelada pela “práxis social”. No caso, a reali-
dade social tolheu da família camponesa o amplo arco
de possibilidades ensejado pelo domínio desse capital
simbólico, mas por gretas e frestas, de algum modo, o
sertanejo(a) se apropria de pedaços da linguagem, de
seus rudimentos, e por meio de nacos e extratos de um
todo incompreensível, encontra recursos para expres-
sar a sua visão de mundo. É desses artifícios e engenhos
que se faz o linguajar sertanejo – com os seus sinais e
códigos – e que, em Vidas Secas, enuncia um sistema
vocabular expressamente econômico.
Dabrowska (2019, p. 06) ressalta que “Somos um
dicionário. As nossas línguas encontram-se entre capas

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


71

trêmulas”. Ocorre que o dicionário de Fabiano, Sinhá


Vitória e dos filhos, com efeito, é pouco, é ralo, e mais
trêmulo do que o comum. Por isso, a narrativa se repete,
anda em círculo, as paisagens são igualmente repetidas
e as palavras não só são acanhadas e ordinárias, mas rei-
teradas e, em alguns casos, parecem reproduzir os sons
existentes.
É a linguagem que recupera o sertão, a sua gente
e o estado de dilaceração de ambos. Há uma integração
por intermédio da linguagem não só entre a pessoa e o
meio, mas a incorporação de um pelo outro e vice-ver-
sa, em que toda representação se realiza sob o signo da
mais estonteante severidade e da mais arrepiante se-
quidão. Nesse universo, mais do que os diálogos são os
monólogos que aparentam arrastar o mundo e as pes-
soas de lugar algum para lugar nenhum. Mas, as estra-
das abertas e o caminhar sem fim parecem indicar mais
coisas do que a impossibilidade absoluta. O linguajar
sertanejo parece insuficiente, no sentido de racionalizar
esse objetivo, mas é o bastante para não obstrui-lo. Há
brechas nos determinismos.

Vidas Secas como uma amostra do mundo camponês no


Brasil
Há testemunhos escritos, inclusive uma troca de
cartas entre Graciliano e Márcio, um de seus filhos, de-
monstrando que o escritor pretendia trazer deliberada-
mente a figura do camponês para dentro de sua obra,
até então situada na concepção de personagens como o
tipo urbano Luis da Silva, em Angústia, e o proprietário
rural Paulo Honório, em São Bernardo4. Em Vidas Secas,
4 Essas informações estão em Alencar e Marques (2018).

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


72

o autor lança luz em uma família de retirantes e então


o camponês adquire o direito à representação. Na obra,
mais do que o meio e a estiagem, o determinante em
toda narrativa, provavelmente, é a análise reconstitutiva
da complexidade rústica de um grupo humano durante
uma jornada circular em que ele se vê perante um cir-
cuito fechado.
Não é que a seca provoca uma situação de infortú-
nio econômico, desigualdade social e opressão política.
Esses fatores existem e repõem-se todo o tempo, inde-
pendentemente se é período de estio ou se é momento
da aguardada época de afluência da chuva. Decorrem
daí as noções práticas das indelicadezas dos tempos.
O mundo exterior está organizado de tal modo
que as aspirações de Fabiano por um mundo mais justo,
no qual o patrão não lhe extorquisse na hora do acerto
de contas, e o desejo de Sinhá Vitória de ter uma cama
de couro e sucupira, de fato, perdem-se na cotidiani-
dade brutal e abusiva, em que as expectativas, desde
o primeiro momento, já se assemelham a ruínas. Não é
a seca, cujo alicerce jaz na natureza, que, efetivamente,
elucida o drama; este, em última análise, tem base so-
cial e não mesológica. É na estação chuvosa que o pa-
trão trapaceia no momento de acertar as contas com
Fabiano e nem a terra molhada é capaz de realizar o so-
nho de Sinhá Vitória de dormir em uma cama de lastro
de couro igual à de seu Tomás da bolandeira. O retor-
no da chuva produz em Fabiano a esperança de que a
“catinga ressuscitaria” e “chocalhos de badalos de ossos
animariam a solidão” (RAMOS, 1996, p. 15). A confiança,
aos poucos, desfaz-se. O que parecia plausível se revela
ilusão e fantasia. Logo, a família está outra vez nos cami-
nhos cheios de espinhos e seixos.

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


73

Nas condições de cotidianidade, o mundo cam-


ponês subsume diante do mundo do proprietário e as
expectativas e ânsias de Fabiano sobem e descem na
bolsa da vida:
Os desejos que pululam no fluxo mental da per-
sonagem chocam-se com a ordem do mundo ex-
terior, organizado segundo os mandamentos de
uma sociedade regida pela supremacia da pro-
priedade” (LUCAS, 1999, p. 109).
As circunstâncias da existência social do camponês
não são definidas naturalmente, mas por um regime de
propriedade que lhe oprime e expropria. E esse regime
de propriedade compõe a ordem do mundo exterior,
contra a qual a família de retirantes se choca a cada passo.
O capítulo As contas é uma ilustração inequívo-
ca do antagonismo que divide proprietários e não pro-
prietários no mundo da caatinga. O discurso de Fabiano
revela o conflito social em sua expressão mais comezi-
nha: “Com certeza havia um erro no papel do branco”
ou “Passar a vida inteira no toco, entregando o que era
dele de mão beijada” (RAMOS, 1996, p. 93). A questão
fundamental, no entanto, se traduz em uma pergunta:
“Estava direito aquilo?”
Essa é a pergunta-chave de toda contradição social
colada, no caso, ao problema da terra. É evidente que
o direito não é alheio a essa ordem do mundo exterior,
mas lhe confere sentido e legitimidade. Mas, certamente,
Fabiano traz a palavra direito em um sentido mais abran-
gente. A pergunta-chave deve ser: estava justo aquilo?
Já se vê – partindo do quadro que enseja a proble-
mática – que as indelicadezas pertencem mais à ordem
social do que propriamente ao meio ambiente, pois a
despeito do tempo, se é de chuva ou se é de estio, elas

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


74

se impõem e lastreiam a vida camponesa. Daí a pergun-


ta: estava justo aquilo?
Em diversos momentos, por meio do discurso indi-
reto livre, Fabiano e Sinhá Vitória trazem e apresentam
ao leitor a cartografia de um mundo diferente daquele
em que as contas certas que a mulher faz em casa não
fraqueja diante das contas erráticas no papel do branco.
Fabiano sabe que o patrão mente e trapaceia: “Não podia
dizer em voz alta que aquilo era furto, mas era. Tomavam-
-lhe o gado quase de graça e ainda inventavam juro. Que
juro! O que havia era safadeza” (RAMOS, 1996, p. 94).
Uma epifania de classe brota da mente embrute-
cida de Fabiano e a consciência elementar se manifesta
em uma palavra: “Ladroeira”. É assim que ele demarca o
seu posicionamento em relação a uma ordem de coisas
que não lhe parece justa. A desumanidade que sofre é
de tal modo monstruosa que Fabiano oscila entre o ser
gente e o ser bicho. O embrutecimento a que está sub-
metido está na base dessa oscilação.
No delineamento das personagens e da narrativa,
o autor ultrapassa o determinismo tacanho do naturalis-
mo e oferece um retrato humano, no qual o elemento da
contradição indica tanto os limites quanto as potenciali-
dades do ser. E esse ser, meio bicho e meio humano, em
seu mundo interior de teimosia organizada, bem como
em seus desejos e expectativas, transmite vivacidade
e virtualidade. Sinhá Vitória demonstra inteligência no
trabalho com os números e Fabiano faz uso de palavras
difíceis que escuta e, em sua inteligibilidade, confere a
cada uma delas um sentido próprio, condicionado pelos
refreamentos e restrições próprios ao seu mundo.
Fabiano atribui o princípio da civilidade à ins-
trução formal que não recebeu. Sente-se, então, um

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


75

“cabra”, e se entende, de modo mais razoável, com os


bichos; mas não descarta do horizonte o plano de forne-
cer aos filhos condições de um estudo formal em uma
escola. Sinhá Vitória resiste bravamente às condições
inóspitas de uma vida absolutamente adversa e aspira
a uma cama de couro, a um vestido e calçado novos. Os
projetos incompletos e trôpegos do casal de sertanejos
não diminuem a sua humanidade, mas, inversamente,
tornam-lhe mais certeira e inescusável. O determinismo
é mitigado por esse modesto apetite de escrever a pró-
pria história. Graciliano Ramos se mostra mais propenso
a um realismo crítico, que o distingue, objetivamente,
do ranheto realismo-naturalismo de fins do século XIX.
A criação de uma personagem como a cachorra
Baleia, magistralmente humanizada, a sonhar um céu
cheio de preás, é a evidência de que o escritor alagoa-
no acrescenta algo, qualitativamente às tendências de
inclinação realista. A sociabilização da cachorra é um
modo original e surpreendente de representar a huma-
nização das vidas secas. No mais, animalizar a criatura
humana e humanizar o bicho correspondem à realiza-
ção de genuíno escrutínio crítico a uma ordem em que
as coisas estão invertidas. Uma ordem de indelicadezas.
Por fim, nesse ambiente em que o humano e o
não-humano se confrontam, mediante o pacto que fir-
mam narrador e personagens, a dicção curta, seca e ob-
jetiva tenta dar conta desse misto de aflição e humani-
dade. É dessa fusão que se configura a personagem do
camponês em Graciliano Ramos.
No mundo agrário em que o camponês se move
há alusões ao abandono e à concentração da terra, ci-
clo agrário, exploração agrícola, produção, renda, cria-
ção, trocas, partilhas, conflitos econômicos, demografia

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


76

e vida social. Todos esses elementos aparecem em seus


ternos de sutileza. Ao se tratar do sertão, onde tradicio-
nalmente as práticas econômicas se confundiram com
as atividades criatórias, Fabiano é um vaqueiro, como
tantos que, ao longo do tempo histórico, ajudaram a im-
primir ritmo e rosto próprios aos sertões de pluviosidade
intermitente. Abreu (2006) classificou a essa área, ainda
em seu invólucro colonial, de “civilização do ­couro”.
Em Vidas Secas, esse mundo peculiar se mostra
em toda sua violenta carga dramática. Fabiano o trata
quase desdenhosamente: “Nada o prendia àquela ter-
ra dura, acharia um lugar menos seco para se enterrar”
(RAMOS, 1996, p. 117). O céu cor de sangue transitando
ao azul o fazia estremecer, mas ele se fortalecia na ideia
de que “O mundo é grande”. Nesse processo, há uma
zona de fuga no antes e no depois e, entre um e outro,
a estranheza de uma pausa, como se precisassem recu-
perar o fôlego para seguir em uma busca que é circular
e que é permanente.
Isso, contudo, não basta para explicar o mundo do
camponês do semiárido. Há o patrão que engana Fabia-
no e simboliza a exploração imersa nas relações econô-
micas cotidianas, conforme já observado, e há o Estado
que oprime os expropriados da terra. O poder político
tem um braço armado e o soldado amarelo é a manifes-
tação desse poderio no plano local. Adianta se livrar do
soldado amarelo? Desembaraçar-se dele é a antecâma-
ra da emergência de novos soldados amarelos. A opres-
são aparenta ter mil braços e ser indestrutível. Assim
medita Fabiano. Nesse afã reflexivo, a natureza diz que
é assim, a consciência parece dizer o oposto. O campo-
nês transita entre a natureza, à primeira vista imutável,
e a consciência que decorre de sua prática social. Dessa

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


77

contradição nasce a reflexividade que marca o capítulo


final de Vidas Secas.
A nova fuga enche Fabiano e Sinhá Vitória de es-
perança e o narrador assim descreve o novo horizon-
te que desponta: “Pouco a pouco uma vida nova, ainda
confusa, se foi esboçando” (RAMOS, 1996, p. 125). E mais
adiante, arremata: “E andavam para o sul, metidos na-
quele sonho” (RAMOS, 1996, p. 126). Fabiano vai ligando
os pontos: escola, educação dos filhos, cidade, civiliza-
ção. Trata-se de uma reflexão que marcou grande parte
do horizonte social do campesinato brasileiro, em par-
ticular, de mulheres e homens da região do semiárido.
Nesse movimento, a transferência da pobreza, de certa
maneira, carrega consigo uma expectativa otimista e,
nessa lógica, há um olhar que ultrapassa as fronteiras
da brutalidade e projeta a humanização dos retirantes.
Cândido (2000, p. 27) escreveu que “A obra depen-
de estritamente do artista e das condições sociais que
determinam a sua posição”. Quando publicou Vidas Se-
cas, Graciliano Ramos, não fazia muito tempo, havia saí-
do da prisão e aderira às posições comunistas. Sem abrir
mão da peculiaridade do fenômeno literário, ele ofere-
ce ao legente não só a figura do camponês socialmente
embrutecido, mas a indicação de que ele se instrui e se
humaniza. Nessa leitura do mundo, a práxis é o germe da
consciência e é essa que vai abrindo caminho, descorti-
nando possibilidades, balançando o futuro.

Considerações finais

Fabiano percebe que, em torno dele, há uma or-


dem e essa não existe para protegê-lo. É ela, aliás, que
explica a existência do proprietário que o lesa, do sol-

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


78

dado amarelo que o humilha e prende e das condições


sociais que o tiranizam e, consequentemente, se im-
põem, com todo o seu peso, contra a sua família. Mas,
o vaqueiro Fabiano reflete, anda e pensa que a vida dos
filhos será diferente da dele. Eles hão de aprender e a
escola os espera.
Em Vidas Secas, por meio de uma linguagem ás-
pera como a caatinga, o narrador expõe a secura de
existências miúdas e sofridas, mas, concomitantemente,
abre brechas às falas das personagens e, por essa via, as
retrata e humaniza.
Certamente, o camponês de Graciliano Ramos é
condicionado pelo olhar de uma época de índole mo-
dernista. Esse condicionamento marcou a literatura, a
pintura e a música no período em que o livro foi escrito
e mesmo nas décadas imediatas à sua publicação. Mas
nada disso elimina o processo de reconstituição dos
mecanismos de fundo que operam no sentido da es-
poliação inequívoca que sofre o camponês. Evidente-
mente, Graciliano não escreveu um programa político
ou uma obra de sociologia engajada. O seu livro é uma
ficção de caráter social. Nele, a realidade é o seu ponto
de partida, mas a transfiguração artística da realidade é
o seu foco.
Apoiado na dialética entre o real e o ficcional, o
mestre alagoano visualiza a família camponesa, que nau-
fraga nas indelicadezas dos tempos, sem nunca desistir
da vida. Assim, oferece ao leitor uma obra magistral-
mente literária e sutilmente engajada, na qual o campo-
nês é a figura central. Na narrativa, a representação da
figura camponesa é realizada por diversas mãos: as do
narrador central, as de Fabiano, as de Sinhá Vitória, as
do filho mais velho, as do filho mais novo e, por que não,

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


79

pelas patas de Baleia. A linguagem miúda é também lin-


guagem e reconstrói essas existências minúsculas.
Em tal processo, as inter-relações entre esses vá-
rios componentes demonstram que a vida camponesa
apresenta uma combinação imperfeita de dificuldades
e superações, recaídas e remoções. Assim, independen-
temente do tempo ser de estação chuvosa ou de estio
a ordem social tem imponência e nela as indelicadezas
dos tempos são as sombras que acompanham os cor-
pos camponeses.
Por fim, a narrativa de Vidas Secas revela que, no
semiárido, quando tudo em torno dele desaba, o cam-
ponês se levanta, toma a estrada, e conversa, e remói, e
reflete, e retarda a marcha, e, mais adiante, sob o teste-
munho silencioso dos juazeiros, prossegue, não como
se fosse o mais aquinhoado da terra, mas o que traz con-
sigo uma causa inegável que se chama sobrevivência.

Referências

ABREU, Capistrano. Capítulos de história colonial. Bra-


sília: Senado Federal, 2006.
ALENCAR, Adilma Secundo; MARQUES, Luciana Araújo.
80 anos de Vidas secas. Revista Cult, ano 21, n. 239, out.
2018.
CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. São Paulo:
Publifolha, 2000.
CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira – ori-
gens e unidade, volume II. São Paulo: EDUSP, 1999.
DABROWSKA, Krystyna. Somos um dicionário. Pernam-
buco, n. 166, dez. 2019.
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janei-
ro: Zahar, 1993.

AS INDELICADEZAS DOS TEMPOS: A FIGURA DO CAMPONÊS EM VIDAS SECAS


80

JUNIOR, Benjamim Abdala. Linguagem literária e vida


sociocultural. Revista Cult, ano 21, n. 239, out. 2018.
LUCAS, Fábio. Particularidades estilísticas de vidas se-
cas. In: SEGATTO, José Antônio; BALDAN, Ude (Orgs.).
Sociedade e política no Brasil. São Paulo: UNESP, 1999.
NETO, João Cabral de Melo Neto. Melhores poemas. São
Paulo: Global, 1977.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 71 ed. Rio, São Paulo:
Record, 1996.

FÁBIO JOSÉ DE QUEIROZ


81

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL:


UMA DISCUSSÃO ACERCA DA REPRESENTATIVIDADE A
PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO

Lorrany Mota de Almeida


Renata Moreira

De que viemos tratar

T
halita Rebouças, Paula Pimenta ou Bruna
Vieira são nomes de autoras que facilmente
encontramos nas estantes das livrarias, pu-
blicadas por editoras de grande porte, entrevistadas na
televisão e que costumam lotar auditórios de eventos li-
terários. O nicho delas é o de literatura juvenil, que vem
crescendo exponencialmente no mercado editorial. Já
autoras como Solaine Chioro, Olívia Pilar e Giulia Santa-
na, do mesmo nicho, não são tão conhecidas no meio,
embora conquistem o espaço literário com autopubli-
cações digitais.
Essas últimas três autoras fizeram parte do corpus
da pesquisa de iniciação científica intitulada Mapea-
mento de autoras negras na literatura juvenil brasilei-
ra, realizada no Centro Federal de Educação Tecnológi-
ca de Minas Gerais (CEFET-MG), com bolsa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq). Iniciada em agosto de 2019, com duração até
julho de 2020, teve por objetivo localizar autoras negras
que produzem literatura juvenil e descobrir quais edito-
ras trabalham com essas publicações.
Tal pesquisa nasceu no bojo das consequências
de uma campanha que ganhou força nas redes sociais.

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA


REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO
82

Essa campanha indagava: “Quantas autoras negras você


já leu?” – o que pode ser entendido como racialização
do movimento #readwomen. “Read Women” ou “Leia
Mulheres” teve início em 2014, quando a britânica Joa-
na Walsh provocou: “quantas mulheres você já leu?”. A
indagação causou uma movimentação entre leitores, no
sentido de evidenciar diversos apagamentos que mu-
lheres sofriam e ainda sofrem no mundo literário. Tal
movimentação impacta certamente o mercado edito-
rial, na medida em que gera demanda de leitura e em
parte, consequentemente, de compra de livros. Como
refletimos em outro trabalho:
O recorte de gênero, especificamente, tem, com
a quarta onda feminista, certa alavanca, que faz
as editoras atentarem para tal demanda do pú-
blico, fazendo nascer uma série de publicações
que colocam em evidência as questões do fe-
minino, mesmo interseccional – este, entretan-
to, em menor medida. Todavia, quando nos dis-
tanciamos do ensaio ou do romance adulto, tais
recortes parecem novamente se homogeneizar
(ALMEIDA; MOREIRA, 2020, p.18).

A racialização da questão complexifica o nível da


exclusão. Se mulheres são menos lidas e mesmo menos
publicadas, o que dizer, então, quando sobre o gênero
adicionamos o recorte de raça?
Transportamos tal indagação para o nicho juvenil.
Esse nicho, como se sabe, movimenta significativa fatia
de mercado e, embora não goze de tanta legitimação
como os romances ditos de alta literatura, é relevante na
medida em que, além de possível formador de público,
é também foco das atenções de parte do ramo editorial,
posto que costuma vender bem. Portanto, começamos

LORRANY MOTA DE ALMEIDA • RENATA MOREIRA


83

por nos questionar que autoras negras escritoras perfa-


ziam nossas memórias e ocupavam nossas estantes. Na
sequência, quais dessas autoras eram escritoras do nicho
juvenil, o qual líamos e com o qual trabalhávamos?
A memória silenciosa gritou em alarme. Não havia
escritoras negras em nossas listas de livros para jovens.
O incômodo gerado por esse lugar vazio fez-nos come-
çar a procurar nomes de mulheres que escreviam para o
nicho, pois a invisibilidade não deveria significar, neces-
sariamente, inexistência. O mapeamento começou por
meio de indagações a escritores e estudiosos de litera-
tura infantil e juvenil. Todavia, todas as listas, nomes e
catálogos para os quais nos reportavam só registravam
autoras negras de literatura infantil ou, no máximo, a
dita infantojuvenil.
Fez-se necessário estabelecer, então, um paradig-
ma acerca do que estávamos pensando como Literatu-
ra Juvenil. A classificação, a priori, parece simples, mas
ganha ares complexos quando a ela lançamos a dúvida
acerca do público-alvo. Grosso modo e sem tergiversar
acerca dos problemas do conceito, Literatura infantil
é literatura direcionada às crianças; portanto, literatu-
ra juvenil é aquela direcionada a jovens. Mas o que é
um jovem? Algumas balizas sociais parecem apontar
esse “entreato” entre a infância e vida adulta, alcunhan-
do sua primeira fase de adolescência e o que se segue
como juventude.
Nesse sentido, há limites demarcados por entida-
des e estatutos, como o ECA, que situa a adolescência a
partir dos 12 anos. Quando a adolescência termina, en-
tretanto? Até quando dura a juventude? Tais perguntas
não têm respostas fáceis. Em primeiro lugar, o termo
jovem passa a ser um atributo disputado. Em uma so-

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA


REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO
84

ciedade muito voltada às características que prefiguram


a juventude como momento ideal da vida, todos que-
rem ser jovens, estendendo cada vez mais, portanto, o
fim da juventude. Para além disso, quando enunciamos
“juventude”, fazemo-lo por uma necessidade de expres-
são. Na prática, não existe um jovem que performe o
modelo de juventude em sua completude, existindo, na
verdade, “não (...) somente uma juventude, mas juven-
tudes que se constituem em um conjunto diversificado”
(ABRAMOVAY; CASTRO, 2015, p.14). Ou seja, não há uma
juventude apenas e sim juventudes – recortadas pelo
gênero, raça, lugar, classe social, religião, entre outros
demarcadores, para além da própria individualidade.
Interessavam-nos, portanto, obras que se distan-
ciassem do infantil e do didático, posto que, para os
nichos infantil e juvenil, o caráter propedêutico fre-
quentemente se anuncia. Buscamos, por conseguin-
te, livros de caráter mais “mercadológico” ou menos
escolar, aqueles que figurariam entre as escolhas dos
leitores adolescentes e jovens, quando não mediados
por professores e bibliotecários – ainda que essa seja
apenas uma orientação metodológica. Na prática, livros
diversos podem chegar a públicos diferentes por meio
das mais diferentes formas. Os livros do nicho juvenil
não escolar geralmente apresentam protagonistas com
idades próximas de seus leitores e narram experiências
que podem oferecer identificação na medida em que
costumam abordar os ditos problemas típicos da ado-
lescência e juventude – ainda que, como apontamos
acima, a juventude real nem sempre passe pelos mes-
mos problemas e modelos que sua prefiguração.
Para realizar a pesquisa, definimos o recorte gené-
rico de romances e contos publicados entre 2014 a 2019.

LORRANY MOTA DE ALMEIDA • RENATA MOREIRA


85

E, como metodologia, analisamos catálogos de editoras


brasileiras, considerando, a princípio, livros que reme-
tessem à juventude em seus projetos gráficos e temá-
ticas, ou seja, a partir de seu endereçamento editorial.
Perfis literários nas redes sociais também nos auxilia-
ram com indicações de autoras.
Analisados 145 catálogos de casas editoriais, en-
contramos 20 autoras. Com as indicações de perfis li-
terários, encontramos mais 8 autoras, e finalizamos a
pesquisa com o total de 80 publicações de 28 escrito-
ras. Tais resultados nos indicam que o mercado edito-
rial ainda privilegia autoria branca, visto que as autoras
encontradas nos catálogos são de editoras de pequeno
porte, a maioria das obras está em formatos digitais e
são autopublicações. Os livros em grande parte estão
nos sites da Amazon e Wattpad, plataformas que facili-
tam as etapas do processo editorial (preparação, diagra-
mação, projeto gráfico), com programas e guias, possibi-
litando que as autoras executem o processo sozinhas.
Nossos resultados se aproximam daqueles encon-
trados por Regina Dalcastagnè em Literatura brasileira
contemporânea: um território contestado (2012). Dal-
castagnè analisa romances publicados de 1990 a 2004
e os dados obtidos delineiam o perfil do escritor brasi-
leiro: “Ele é homem, branco, aproximando-se da meia
idade, com diploma superior, morando no eixo Rio-São
Paulo.” (DALCASTAGNÈ, 2012, p.162). Vale dizer que tal
desenho relaciona-se ao gênero romance de três edito-
ras consideradas à época as maiores e mais represen-
tativas do meio. As conclusões, entretanto, podem ser
alargadas para pensar o meio editorial de forma mais
abrangente. Hoje, com o aumento de editoras indepen-
dentes, pode-se dizer que o cenário editorial tem len-

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA


REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO
86

tamente alterado esse perfil. A Se liga Editorial – uma


pequena editora fundada em 2018 –, por exemplo, pro-
mete em sua apresentação mais representatividade
“em todos os pilares: sexual, étnico, de gênero, pessoas
com deficiência e com vies feminista” (SE LIGA, 2018) e
afirma dar espaço para autores iniciantes. Algumas das
autoras encontradas foram publicadas por essa editora.
A maioria dos enredos das obras mais conhecidas
pesquisadas por Dalcastagnè apresentava em seu nú-
cleo personagens brancos, heterossexuais e cisgênero –
semelhantes ao perfil de seus autores. Se estendemos
tais considerações para o nicho juvenil, indagamo-nos:
em livros de autoras negras, o núcleo de personagens
seria mais diversificado? Neste artigo, pretendemos ini-
ciar a segunda fase de nossa investigação, com a análise
de uma das obras do corpus para inquirir se a autoria
negra e feminina na literatura juvenil pode apresentar
características diferentes no quesito representativi-
dade, não só pela diversidade das próprias escritoras
como também pela alteração do núcleo de protagonis-
tas, sendo estes variegados. Para isso, vamos analisar a
obra Reticências (2019), da escritora Solaine Chioro.

Um pouco sobre Solaine Chioro

Solaine Chioro é autora dos romances A rosa de


Isabela (2017), Reticências (2019), da coletânea Sonhos
que ganhei (2017) e também participa das coletâne-
as Formas Reais de Amar (2018), Cantigas no escuro
(2018), Confetes e serpentinas (2019) e Flores ao mar
(2019). Em 2020, teve um conto publicado na obra So-
bre amor e estrelas (e algumas lágrimas), pela editora
Rocco, seu primeiro livro impresso. Além de escritora,

LORRANY MOTA DE ALMEIDA • RENATA MOREIRA


87

Chioro é formada em Letras – Português/Latim pela


Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP),
atua como revisora, tradutora e leitora sensível.
A escolha dessa autora se justifica em alguns pon-
tos: além de fazer parte do corpus da pesquisa, Solaine
é ativa em suas redes sociais, especialmente a partir da
temática que aqui nos interessa, a representatividade.
No site oficial da escritora, há o texto intitulado “Sobre
diversidade na literatura” (2017), no qual a autora articu-
la a necessidade da presença da diferença nas narrativas
ficcionais e diz:
Parte do motivo de não vermos tanta represen-
tatividade nas coisas que consumimos é porque
não existe tanta diversidade nas pessoas que as
produzem, o que é muito importante que acon-
teça. É fácil pra pessoas que não fazem parte de
certo grupo ignorar o que se passa com outros
grupos e acabar contando apenas as histórias
que são mais próximas delas (ou contando de
uma visão distorcida a história de outros). Bem,
se a gente tiver mais diversidade nas produções
e criações, vamos acabar tendo um leque maior
e melhor de representatividade (CHIORO, 2017).
No decorrer do texto, a autora sugere que os leito-
res procurem por livros em que apareçam outros grupos
sociais; afirma que muitas vezes não serão encontrados
com facilidade e recomenda: “(...) mas dá uma caçada
(principalmente na internet e em autores independen-
tes) que você vai acabar achando alguma coisa ou outra”
(CHIORO, 2017), alertando-nos de que possivelmente a
diversidade está em plataformas digitais e que os auto-
res dessas obras não estão nas livrarias. Esse era o caso
de Solaine até 2019, em que todas as suas obras estavam
disponíveis apenas em plataformas digitais, no processo

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA


REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO
88

de autopublicação ou coparticipação (dividindo os cus-


tos com a agência literária).
Além do citado, a autora tem outros textos em di-
ferentes blogs, em que discute as representações negras
em séries, filmes, novelas e livros, apresentando como a
construção dos personagens se dá. Chioro participa do
podcast “Duas Limonadas”, junto à autora Olívia Pilar,
que tem como foco a representatividade na cultura Pop
e juvenil. Como forma de destacar narrativas negras,
desenvolveu, em 2018, o #BingoLitNegra: Um desafio
literário para o novembro negro. O bingo tem 25 cate-
gorias diferentes e a regra base é: as obras selecionadas
devem ser escritas e protagonizadas por pessoas negras.
É uma escritora que carrega em seu discurso a preocu-
pação com a diversidade narrativa.

Representatividade e o romance Reticências

Nas novelas, seriados, filmes e nos desenhos ani-


mados, a presença de pessoas negras foi por muito
tempo baseada nos estereótipos da pessoa escraviza-
da, da empregada doméstica, do malandro, de símbo-
los sexuais, do bandido, da barraqueira. Na literatura,
esse processo também acontece. Em Entre silêncios e
estereótipos: relações raciais na literatura brasileira
contemporânea (2008), Dalcastagnè apresenta os re-
sultados parciais de sua pesquisa sobre romances con-
temporâneos de 1990 a 2004, enfatizando o recorte ra-
cial, e nos informa de que a maioria dos personagens é
branca, sejam protagonistas e/ou narradores, enquanto
personagens negros são poucos e quase não ocupam
posições de destaque. São, geralmente, coadjuvantes
pobres, jovens, dependentes químicos e imersos no

LORRANY MOTA DE ALMEIDA • RENATA MOREIRA


89

mundo do crime. No mesmo artigo, Regina Dalcastagnè


analisa o conto “O negro”, de Dalton Trevisan (1968), e
afirma que a estereotipação do personagem na narra-
tiva pode funcionar como uma forma de aproximação
dos leitores:
O estereótipo é usado na narrativa não como crí-
tica, mas como recurso fácil de aproximação com
o leitor, que ela assume como compartilhando
dos mesmos preconceitos. Ou seja, a imagem co-
nhecida permite que o leitor se identifique, ao
mesmo tempo em que se reforça a si própria, na-
turalizando seu conteúdo. Daí sua recorrência, e
sua repercussão para além das páginas do livro
(2008, p. 98).

Narrativas como estas contribuem para a univer-


salização do sujeito branco, ocupando o protagonismo,
e para o que a autora Chimamanda Ngozi Adichie cha-
ma de “história única”. As repercussões constantes des-
ses estereótipos os legitimam. “É assim que se cria uma
história única: mostre o povo como uma coisa, uma coi-
sa só, sem parar, e é isso que esse povo se torna.” (ADI-
CHIE, 2019, p. 22).
De acordo com autora e pesquisadora Olívia Pi-
lar, em seu texto “Representação e representatividade:
entenda a diferença!” (2020), publicado no site Resis-
tência Afroliterária, representação seria a presença de
personagens negros, tanto na mídia quanto na litera-
tura, sem maiores descrições além da cor da sua pele.
Essa forma de simplificação pode gerar uma série de
problemas. De acordo com Pilar, “Representatividade
requer camadas a mais!”, ou seja, exige a exploração
da subjetividade dos personagens. Eles não devem ser
definidos apenas por sua sexualidade, raça ou gênero.

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA


REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO
90

São atravessados por uma série de outras característi-


cas, sentimentos e ações que constroem sua identidade.
Importante ressaltar também que representatividade
nem sempre está associada a aspectos positivos, permi-
tindo uma real identificação do público leitor com esses
personagens, bem como a complexificação narrativa na
medida em que tornam suas figuras mais “esféricas” –
para lembrar a tradicional classificação literária acerca
dos personagens planos e esféricos.
O romance Reticências, por exemplo, apresen-
ta personagens bem desenvolvidos nesses aspectos. O
livro foi publicado em 2019 pela agência Página 7, em
formato e-book, na plataforma da Amazon. O enredo
é composto por dois protagonistas, duas perspectivas:
uma de Joana (@vidaspretas) e outra de Davi (@cara-
daprefeitura), que se conheceram por meio de suas
redes sociais quando Davi entrou em contato com o
perfil profissional de Joana para contratá-la a fim de
realizar uma ilustração para a prefeitura onde traba-
lhava. Permaneceram conversando por seis meses sem
compartilhar informações pessoais que possibilitassem
o reconhecimento offline. Passam, inadvertidamente,
a trabalhar no mesmo lugar – a agência Eskina – sem
saber que estão lidando um com o outro. Não se dão
bem no primeiro contato, mas o romance entre eles se
mantém nas redes sociais.
A obra é uma história de amor um tanto clichê, po-
rém, diferentemente da maioria das outras obras desse
tipo, distancia-se do dito padrão branco. Já na capa, no-
tamos o rompimento com esse padrão. Os personagens
Joana e Davi são representados na ilustração de capa
como pessoas negras e gordas; Joana usa tranças (box
braids) e Davi tem um Black Power. O diferencial é justa-

LORRANY MOTA DE ALMEIDA • RENATA MOREIRA


91

mente a estética negra ganhando destaque na narrativa


e nos paratextos, o que permite identificação por parte
do público leitor não afeito a padronizações de diver-
sas ordens (de cor, peso, entre outros atributos da esté-
tica branca, tomada como referência na maior parte das
produções juvenis). No texto, Solaine destaca a relação
dos personagens com o cabelo: “Pelo menos conseguiu
ajeitar o cabelo antes de sair e seus fios crespos estavam
com bastante volume, bem do jeito que Davi gostava.”
(posição 831); “Partes de suas tranças finas e longas caía
pelos ombros, enquanto a outra porção estava organiza-
da num coque sobre a cabeça” (posição 132).
Ainda relacionado ao tema “cabelo”, o romance
trata uma situação recorrente vivenciada por Joana, ao
perguntarem se ela não tinha nojo de andar com o ca-
belo sujo, e por Davi, lembrando dos olhares dos profes-
sores da escola quando o assunto era piolho. A estética
negra, com ênfase no cabelo, é normalmente inferiori-
zada, colocando o cabelo negro como ruim, feio e sujo
– o que Chioro evoca em tom de crítica em sua narrati-
va. O cabelo natural e mesmo as tranças não compõem
apenas o “estilo” de alguém. Marcam, na verdade, uma
característica identitária, podendo ser usado como “cri-
tério” para se reconhecer como negro no Brasil. Em Cor-
po e cabelo como símbolos da identidade negra (2012),
Nilma Lino Gomes discute as concepções sobre cabelo
e corpos negros, usando como corpus salões étnicos de
Belo Horizonte, e nos diz que a mudança de cabelo de
uma pessoa negra pode ser uma tentativa de sair desse
lugar de inferioridade:

1 Por se tratar de uma obra disponível no Kindle, a paginação não


se encontra disponível. O gadget disponibiliza para visualização
a “posição” em que o leitor se encontra na obra.

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA


REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO
92

Estamos, portanto, em uma zona de tensão. É dela


que emerge um padrão de beleza corporal real e
um ideal. No Brasil, esse padrão ideal é branco,
mas o real é negro e mestiço. O tratamento dado
ao cabelo pode ser considerado uma das manei-
ras de expressar essa tensão. A consciência ou o
encobrimento desse conflito, vivido na estética
do corpo negro, marca a vida e a trajetória dos
sujeitos. Por isso, para o negro, a intervenção no
cabelo e no corpo é mais do que uma questão de
vaidade ou de tratamento estético. É identitária
(GOMES, 2012, p. 3).

Desta forma, a relação com o cabelo de Joana e


Davi evoca circunstâncias que perpassam suas vivên-
cias. Outras situações estão ligadas aos seus corpos gor-
dos que Chioro marca ao longo da história, quando, por
exemplo, Joana reclama das cadeiras do escritório que
não foram feitas para comportar corpos como o dela
(posição 178). Tanto o cabelo como o corpo são caracte-
rísticas físicas que compõem a identidade dos persona-
gens, mas não os definem.
Davi, por exemplo, é um rapaz quieto, um pouco
antissocial, faz terapia e sofre de ansiedade. Algumas das
crises de pânico do personagem são descritas, e con-
seguimos acompanhar seu fluxo de pensamentos. Davi
ainda não tem certeza sobre o que quer profissional-
mente, no entanto, isso não é tratado como uma gran-
de questão do personagem, ao contrário de Joana que
se sente sem propósito em seu trabalho na agência. Ela
gostaria de se dedicar a suas ilustrações, que também
funcionam como sua válvula de escape. Joana é mais
sociável, sabe se impor e tende a ser um pouco teimo-
sa. Ambos apresentam características de pessoas negras
reais, sofrem e se divertem com elas. Importa destacar

LORRANY MOTA DE ALMEIDA • RENATA MOREIRA


93

que os personagens ocupam lugares de pessoas qualifi-


cadas em uma agência de Publicidade e, para Joana, tal
colocação não é suficiente, não trazendo a sensação de
realização profissional – o que será um mote da narrati-
va, importante para a finalização do romance.
A violência policial e os efeitos delas em jovens
negros é outro tema presente na narrativa. No capítulo
4, Joana sofre pela morte de Ismael da Silva Toledo, uma
criança negra de 12 anos, baleada com 8 tiros enquanto
brincava na rua. Infelizmente, uma situação recorrente
– basta lembrarmos de Kauã Vítor Nunes Rozário, Kauê
Ribeiro, Ágatha Félix, João Pedro Matos Pinto e muitos
outros que não foram levados a público. A realidade do
extermínio negro, portanto, invade a narrativa. A autora
descreve: “Aquela história já tinha sido contada antes,
sempre com o mesmo final, sempre com sangue preto
sendo derramado e vidas negras sendo descartadas. A
sensação de frustração, impotência e cansaço às vezes
era mais forte que a vontade de lutar.” (posição 36). Jo-
ana e Davi sofrem com essa perda, mesmo que não seja
de um conhecido. Nessa passagem, é quando a negritu-
de dos personagens é evidenciada, mostrando como o
racismo os afeta em grande escala.
Para além de situações marcadas pelo racismo es-
trutural, a paquera entre os dois é leve. Existe cuidado
um com o outro antes mesmo de se conhecerem pes-
soalmente. Indicam filmes, playlists musicais e mantém
diálogos descontraídos, ou seja, a intimidade marcada
pelo afeto e pelo interesse intelectual – uma visão de
relacionamento diferente da costumeiramente apre-
sentada entre pessoas negras.
A personagem Manuela, melhor amiga de Joana, é
outro exemplo de personagem que não se limita a uma

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA


REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO
94

característica física. Manu é uma pessoa com deficiência


e, ao longo da história, vivencia momentos relacionados
à falta de acessibilidade a cadeirantes, como a confeita-
ria que não tem rampas, apenas três degraus na entrada.
No entanto, a personagem se destaca por seu apelido da
faculdade, “Piegas”, que ganhou depois de grafitar um
poema autoral na parede do corredor do Centro Acadê-
mico para sua namorada Sayuri. Piegas não é represen-
tativa por ser cadeirante, mas sim por, sendo PCD, expor
concomitantemente sua personalidade companheira,
romântica, brega, sensata e todas as outras caracterís-
ticas que a atravessam, tornando-se uma personagem
complexa, assim como Joana e Davi. Medos e alegrias
que envolvem jovens apaixonados, possibilitando um
novo olhar sobre a narrativa “clichê”.

À guisa de conclusão

Fala-se muito da importância da representativi-


dade. De como é relevante para pessoas cujas carac-
terísticas não são as mesmas daquelas de personagens
mainstream verem-se ocupando papéis na literatura,
televisão e cinema. O que não se costuma dizer é que
não basta apenas ver personagens com características
plurais, estimulando a diversidade, mas perceber que
esses personagens ocupam posições de relevância nas
narrativas, rompendo com os estereótipos a que foram
relegadas as personagens mulheres, negras, com defici-
ência, entre outros estratos explorados da população.
A obra de Solaine Chioro, Reticências, para além
de ser significativa no nicho juvenil por ser um roman-
ce escrito por uma jovem mulher negra, traz com sen-
sibilidade a questão da representatividade, conjugando

LORRANY MOTA DE ALMEIDA • RENATA MOREIRA


95

vários perfis de personagens de modo plural e esféri-


co. Nesse sentido, o enredo ganha em complexidade,
na medida em que seus actantes são perspectivados,
mostrando outra força da literatura juvenil escrita por
mulheres negras: retrabalhar os clichês românticos, lan-
çando-lhes a força da diferença.

Referências
ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M. G. Ser jovem no Brasil
hoje: políticas e perfis da juventude brasileira. Cadernos
Adenauer VXI. n.1, 2015.
ADICHIE, C. O perigo da história única. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2019.
ALMEIDA, L. M.; MOREIRA, P. R. M. Literatura juvenil
de mulheres negras – Brasil, Século XXI. Cuaderno 107:
Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y Comuni-
cación [Ensayos]. Buenos Aires: Universidad de Palermo,
año 23, n. 107, 2020.
CHIORO, S. Sobre diversidade na literatura. 2017. Dis-
ponível em: <https://solainechioro.com.br/sobre-diver-
sidade-na-literatura/> Acesso: 30 set. 2020.
CHIORO, S. Reticências. São Paulo: Agência Página 7,
2019.
DALCASTAGNÈ, R. Entre silêncios e estereótipos: re-
lações raciais na literatura brasileira contemporânea.
Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 31,
Brasília, jan-jun 2008, p. 87-110.
DALCASTAGNÈ, R. Literatura brasileira contemporânea:
um território contestado. Vinhedo: Horizonte, 2012.
GOMES, N. L. Corpo e cabelo como símbolos da identi-
dade negra. 2012. Disponível em: <http://titosena.faed.
udesc.br/Arquivos/Artigos_textos_sociologia/Negra.
pdf> Acesso: 20 out. 2020.

MULHERES NEGRAS NA LITERATURA JUVENIL: UMA DISCUSSÃO ACERCA DA


REPRESENTATIVIDADE A PARTIR DE RETICÊNCIAS, DE SOLAINE CHIORO
96

PILAR, O. Representação e representatividade: entenda


a diferença! In: Resistência Afroliterária. 2020. Disponí-
vel em: <https://afroliteraria.com.br/representacao-e-
-representatividade-entenda-a-diferenca/> Acesso: 30
set. 2020.

LORRANY MOTA DE ALMEIDA • RENATA MOREIRA


II
Diversidade
e Literatura
99

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE


ALMOFALA: HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO

Maria Andreína dos Santos

Encontro com um lobisomem

C
erta vez, um rapaz conhecido por Colôra
convidou um amigo para irem fazer uma
pescaria de traíras nas lagoas próximas da
Oleria (lagoa muito conhecida por nós Tremembé, que
fica entre as aldeias de Panan e Mangue Alto).
Para essa pescaria, eles usavam uma armadilha
chamada de aboias e colocavam nelas caçotes como is-
cas, durante à noite, e de manhã cedinho só iam despes-
car. Se combinaram e lá se foram os dois. Ao chegarem
numa certa altura do caminho, num baixio que tinha
um morro de areia fina e branca, mesmo distante ainda,
perceberam que vinha descendo na carreira um bicho
grande, preto e cabeludo. Nesse instante, Colôra falou
para seu amigo: – Sai do meio que lá vem um bicho cor-
rendo para se encontrar com nós! Nisso, os dois se afas-
taram mais que depressa para os lados do caminho e
nesse momento pressentiram só o vento do bicho, que
numa velocidade imensa já passava entre eles e ia em-
bora. Mesmo o tal bicho passando velozmente, Colôra
conseguiu reconhecer seu rosto, que era de um tio dele
conhecido por Antônio Pissirica, sobre quem as pessoas
comentavam que virava lobisomem. Apesar de ele sa-
ber que era seu próprio tio, Colôra se assombrou com
seu amigo, deixaram a pescaria pra lá, correram até em
casa e contaram que nas suas vidas nunca tinham visto
coisa tão feia e que isto só podia ser o tal do lobisomem.

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:


HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
100

Passados alguns dias, o dito tio andou na sua casa


e uma irmã de Colôra perguntou: – Tio Antônio, foi você
que andou assombrando os meninos em uma noite des-
sas quando eles iam pescar? Pra que você fez isso? O
mesmo, com um sorriso meio irônico, simplesmente dis-
se pra ela: – Ah, antigamente eu costumava me virar em
um porquinho … mas agora não me viro em mais nada.
Mesmo não confirmando que era ele transforma-
do em lobisomem, pelo jeito que falou, tiveram a certe-
za de que as pessoas tinham razão quando falavam que
ele virava lobisomem e de que, naquela noite, talvez fez
de propósito para assombrar os próprios sobrinhos.

O córrego misterioso

Dona Neném Beata conta que quando era crian-


ça e ainda morava na aldeia de Passagem Rasa, lembra
muito de que seus irmãos contavam sobre o mistério
de um córrego que existia ali naquela região. Segundo
o que ela relata, não tem lembrança de que esse córre-
go tenha ligação com outras regiões alagadas. Quando
amanhecia o dia, os moradores dali iam trabalhar e ao
chegar ou passar por ele, não tinha água nenhuma, ou
seja, estava completamente seco, mas quando eles re-
tornavam do trabalho e novamente passavam por ali, o
tal córrego se encontrava cheio de água. Era aí que seu
irmão e outros mais velhos diziam que esse fato aconte-
cia, porque ali morava uma grande cobra enterrada no
lamaçal e que, quando ela mijava, o córrego enchia de
água.
Dona Neném Beata diz que até hoje não se sabe
o real mistério daquele lugar para que isso acontecesse.
Só sabe dizer que os que contavam ou conheciam essa

MARIA ANDREÍNA DOS SANTOS


101

história acreditavam que a tal cobra só podia era ser um


encanto que vivia ali já há muitos anos e que por isso
esse lugar sempre foi muito respeitado pelos Tremem-
bé que ali moravam.

Encantos da lagoa da Camboa

A lagoa da Camboa é uma lagoa muito grande, mas


não é muito visível, devido se encontrar dentro de várias
propriedades de moradores dessa região do aldeamen-
to Tremembé e recebe esse nome porque se encontra
na localidade de Camboa. Suas margens são comple-
tamente rodeadas por uma vegetação conhecida por
tabuba e em algumas de suas partes têm manguezais,
talvez pelo fato de que essa lagoa se encontrar com as
águas do rio Aracatimirim e esse, por sua vez, tem liga-
ção com o mar.
Segundo os relatos dos mais velhos, a lagoa nunca
seca completamente, porque nela tem ou é morada de
encantados. Ela que aqui descrevo, desde que me en-
tendo por gente, não lembro de ouvir alguém dizer que
secou…
Apesar de suas margens possuírem vegetação de
difícil acesso, os moradores costumam pescar lá, por-
que ela é uma lagoa rica em diversidade de peixes. E até
mesmo, às vezes, as pessoas de localidades vizinhas vão
até lá simplesmente para tomar banho.
É exatamente nessas atividades que muitos mora-
dores contam que já viram fatos estranhos acontecerem
por lá, como por exemplo a aparição de uma mulher
muito bonita de cabelos longos e pretos. Ela costuma
está sentada em cima de uma pedra lavando os cabelos
com restos de sabão que alguma lavadeira deixa por lá

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:


HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
102

e, ao mesmo tempo, penteia-os usando os próprios de-


dos. Quando a mulher percebe que alguém se aproxi-
ma, simplesmente mergulha nas águas e some que nin-
guém mais a ver. Outras pessoas também já chegaram a
ver uma cobra muito grande com cabeça parecida com
a de um cachorro. Ou ainda, vê-se simplesmente uma
parte do corpo da cobra com cores muito bonitas, mas
rapidamente some nas águas e ninguém mais consegue
ver o seu tamanho real.
Todas as pessoas que já viram essas coisas estra-
nhas por lá se assombraram. Mesmo com todos esses
mistérios, ainda hoje pessoas costumam ir lá para pes-
car e tomar banho. É por conta desses acontecimentos
e visões que os moradores mais antigos afirmam que
ali tem uma mãe d’água e só pode ser ela que apare-
ce transformada em uma moça ou cobra gigante e
­misteriosa.

A tranquilidade de um lobisomem

Certa vez, um homem conta que foi convidado por


uma amiga para dormir na casa dela, a fim de lhe fazer
companhia devido esta morar com a mãe. Ele aceitou o
convite, mas se entreteu na casa de uns conhecidos e,
somente por volta de 11:40 da noite, resolveu ir dormir
na casa que havia prometido.
Ao entrar num beco já bem próximo da casa, ouviu
os latidos de vários cachorros juntos, como se tivessem
acuando algo ali por perto e assim seguiram no rumo da
dita casa que ele ia. Quando chegou, começou a chamar
por sua amiga e os cachorros continuavam latindo ao
redor da casa. Como sua amiga não abriu a porta, ele re-
solveu chamar na dos fundos, e assim fez. Ela continuou

MARIA ANDREÍNA DOS SANTOS


103

sem abrir a porta e ele voltou para a da frente novamen-


te e os cachorros continuaram na maior latideira.
Já na sua segunda tentativa pelo quintal, ao che-
gar no terreiro da cozinha, percebeu algo estranho, mas,
de imediato, pensou ser uma moita de capim açu, logo
lembrou que ali, antes, não existia moita nenhuma,
muito menos de capim açu. Foi aí que olhou direito e
se deparou com uma figura muito estranha. Relata que
era uma espécie de monstro completamente cabeludo,
mas ao olhar para a cabeça, viu que o rosto era de um
conhecido que morava ali por perto. O tal bicho estava
parado bem quieto, como se estivesse esperando al-
guém sair de dentro de casa. O bicho era tão cabeludo
que seu pelo chegava a reluzir no claro da lua. Quando
percebeu que aquilo era algo sobrenatural, tomou um
susto e o bicho também se assustou, afastou-se e pulou
a cerca seguindo devagar para o lado de uma casa vizi-
nha. Nesse momento, sua amiga abriu a porta e ele rapi-
damente entrou e contou o que acabara de ver. Ao falar,
completamente assustado, percebeu que as mulheres
não abriram a porta antes porque também tinham visto
aquela assombração rodeando a casa, fazendo um ba-
rulho de cansaço e deixando um cheiro horrível.
Esse fato ocorreu há pouco tempo aqui na aldeia
de Mangue Alto, no aldeamento Tremembé de Almofa-
la, e o tal homem que está virando lobisomem mora so-
zinho e é conhecido por todos os moradores da região.

A visagem da mangueira

Edineudo é um primo meu conhecido por Pedim.


Quando ele era rapaz ainda bem jovem, estava moran-
do e trabalhando na casa de um senhor conhecido por

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:


HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
104

Zé de Ouro, que ficava nas proximidades de Lameirão e


Curral do Peixe, aldeias daqui do aldeamento Tremem-
bé de Almofala.
Pedim conta que certa vez saiu de lá à tardinha de
moto e foi em Torrões, localidade próxima, mas, ao vol-
tar, já era noite e quando foi passar por uma parte que
fica num baixio do córrego do Panãn, também onde
tem uma antiga mangueira, avistou um homem em pé
sozinho, como se tivesse esperando alguém para pedir
carona. Como Pedim vinha rápido, assim que percebeu,
já havia passado do homem, achou que era alguém que
conhecia. No mesmo instante, parou e voltou para lhe
dá carona, mas quando chegou no local em que o ho-
mem estava, não viu nada e quando se virou achando
que tinha se enganado, olhou e o avistou bem na frente
dele. Pedim rapidamente fez a curva na moto e seguiu
para alcançar a criatura e, ao chegar no local onde o viu,
percebeu que o homem estava novamente ficando lá
atrás. Pedim voltou de novo para dar carona ao homem
e quando chegou lá, este já não estava mais.
Pedim conta que nessa brincadeira de vai e vem,
ele ainda foi e voltou pelo menos umas três vezes, pois
via o homem na frente dele e quando chegava no local
o mesmo havia ficado lá atrás. Somente na terceira ten-
tativa de dar carona foi que imaginou que aquilo só po-
dia era ser uma visagem e ainda lembrou já ter ouvido
falar que ali naquela mangueira algumas pessoas diziam
que apareciam coisas inexplicáveis, sobrenaturais.
Naquele momento, Pedim disse que se arrepiou
todo e acelerou essa moto rumo de casa e que ao chegar,
não teve coragem sequer de parar e bater na porta para
chamar seu primo, que também morava lá e trabalhava
com ele. Com toda velocidade que vinha, arrebentou a

MARIA ANDREÍNA DOS SANTOS


105

porta com a própria moto e entrou em casa assombra-


do. Com um bom tempo foi que teve coragem de falar o
que havia visto para seu primo e os dois tiveram certeza
de que aquele homem só podia mesmo era ser visagem.
Daquele dia em diante, Pedim nunca mais quis passar
por aquele caminho sozinho, muito menos à noite.

Os encantos ou mistérios do Lagamar

O Lagamar é um braço do rio Aracatimirim, princi-


pal rio que corta o aldeamento Tremembé de Almofala
e o divide em região da mata e região da praia. Acredi-
ta-se que esse rio, desde sua existência, é uma das prin-
cipais fontes de sobrevivência para os moradores locais,
devido sua grande diversidade de peixes e crustáceos.
Mas, além dessa riqueza material, existe também uma
grande riqueza imaterial, que são as histórias misterio-
sas e de assombração que os Tremembé mais velhos
contam sobre o lugar.
Uma das histórias que mais falam é sobre um fogo
que flutuava sobre as águas do Lagamar. Normalmente
esse fogo era visto à noite pelos pescadores e geralmen-
te saia de cima de uma croa (espécie de pequena ilha
que aparece quando a maré está baixa) como se fosse
uma tocha voando. Às vezes, chegava até os coqueirais
da aldeia Tapera, subia e voltava fazendo voltas pelo La-
gamar, até chegar novamente ao mesmo local de onde
tinha saído e, simplesmente, sumia.
Meu avô paterno, conhecido por Geraldo Trajano,
hoje está com 99 anos, mas conta que por diversas ve-
zes viu o tal fogo quando ia pescar, e na noite em que
ele via tal mistério, preferia logo voltar pra casa e de-
sistir da pescaria, porque a pessoa ficava olhando para

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:


HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
106

aquela tocha e acabava ficando com medo, se assom-


brava e não conseguia pescar. E isso talvez simplesmen-
te pelo fato de que ninguém nunca descobriu o segredo
daquele fogo. E assim acontecia com todos os outros
pescadores que também o viam.
Além desse misterioso fogo, existem também ou-
tros relatos sobre um defunto que passava pelo Laga-
mar. Por muitas vezes, os pescadores estavam pescando,
quando ouviam pessoas cantando hinos de sentinela,
mas, ao olharem para a direção das cantigas, só viam
uma rede com um defunto dentro, que atravessava o rio
de um lado para o outro. O mais assombroso é que a tal
rede com o defunto ficava alto nas águas, mas ninguém
estava segurando e levando aquele morto.
Todos os pescadores da pescaria naquela noite re-
tornaram pra casa assombrados por terem certeza de que
aquilo se tratava de mais uma das visagens do Lagamar.

A companhia de uma alma

Antigamente as pessoas não tinham facilidade de


transportes como se tem hoje para se deslocar de um
lugar para outro, por isso costumavam andar a pé e em
qualquer hora do dia ou da noite. Foi numa dessas an-
danças que um senhor conhecido por Zé Mundico, que
morava na Lagoa do Jardim, saiu à noite para outra loca-
lidade distante chamada Ribeira.
Numas alturas do caminho, num baixio de uma ou-
tra localidade chamada Carrapicha, de repente, quando
ele olhou para lado do caminho, avistou uma mulher
vestida com um vestido muito longo e todo branco. Na-
quele momento, ele pensou em falar com ela, mas logo
percebeu que sua voz não sairia, devido ao medo que já

MARIA ANDREÍNA DOS SANTOS


107

estava sentindo, por ter certeza de que aquela mulher


era uma alma de alguém que tinha morrido. Apesar do
medo que tomou de conta dele, conseguiu caminhar e
continuar sua viagem e, na mesma medida em que Zé
Mundico caminhava, a alma lhe acompanhava em silên-
cio. E assim, andaram por muito tempo juntos.
Até lá, por umas alturas do caminho, a estrada se
dividia e seguia para duas direções diferentes. Foi so-
mente aí que aquela mulher misteriosa seguiu na ou-
tra direção, separando-se de Zé Mundico. Nessa hora,
aquele senhor achava que se livraria do medo que sen-
tia, mas, pelo contrário do que pensou, acabou ficando
ainda mais assombrado, pelo fato de imaginar que ela
pudesse aparecer na sua frente a qualquer momento.
Depois de andar ainda por um bom tempo, conse-
guiu chegar em uma casa onde ele apenas teve coragem
de bater na porta e ali mesmo caiu, de tão assombrado
que estava. Quando a dona da casa abriu a porta, en-
controu Zé Mundico ali caído no chão sem conseguir
falar nada. Algum tempo depois, com aquele homem
tentando reanimá-lo, foi que aos poucos começou
a conversar e assim conseguiu contar o que lhe havia
acontecido, e demorou ainda um bom tempo ali naque-
la casa conversando para poder se encorajar, e assim foi
embora seguindo sua viagem. Mesmo depois de tudo
já ter se passado, Zé Mundico ainda ficou sentindo um
medo inexplicável por alguns dias, sempre que lembra-
va que, sem querer, andou na companhia de uma alma.

O cavalo com olhos de fogo

Alvino é um Tremembé nativo do aldeamento de


Almofala e quando era bem jovem morava com sua avó

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:


HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
108

Maria Expedita. Por não ter televisão em casa, costuma-


va sair à noite para assistir em algum vizinho próximo
de casa.
Certa noite, foi assistir um jogo na casa de um se-
nhor conhecido por João Nalha e ficou por lá entretido
até tarde da noite. Quando o jogo terminou, foi embora
sozinho, por volta das doze horas da noite. Ia caminhan-
do devagar e, lá pras umas alturas do caminho, conta
que de repente sentiu o chão tremer e sentiu tanto
medo que percebeu suas pernas ficarem pesadas.
Quando olhou para trás, lá vinha um cavaleiro
montado num cavalo que tinha os olhos parecidos com
duas tochas de fogo. O homem tinha um chapéu na ca-
beça, mas não dava para ver como era seu rosto. Alvi-
no conta que ao ver aquela cena não pensou em mais
nada, saiu disparado, na carreira. Ao chegar na escolinha
Maria Venância, que na época era de palha, junto dela
tinha uma pequena casinha onde ficava uma bomba de
puxar água. Na carreira que ele vinha, pulou e arreben-
tou a parede de palha e caiu lá dentro perto da bomba.
Nesse momento, ouviu o dito cavaleiro também chegar
e ficar rodeando a casa como se tivesse procurando por
ele. Alvino conta que ficou lá, bem parado, quietinho, só
ouvindo os golpões do cavalo, que chegava a bufar de
cansado. Assim, o tal cavaleiro rodeou, rodeou e, como
não o encontrou, seguiu viagem na direção da praia, que
ficava ali próximo.
Alvino ainda esperou ali escondido por um bom
tempo, até ter certeza de que aquele cavaleiro tinha ido
embora, e seguiu para sua casa apressadamente. Quan-
do chegou, chamou sua vó e lhe contou o que havia visto.
Os dois pegaram uma lamparina e devagar foram olhar o
rastro do cavalo que, de certo, havia passado por ali. Para

MARIA ANDREÍNA DOS SANTOS


109

maior surpresa dos dois, não havia rastro de nada, muito


menos de cavalo naquele caminho. Alvino e sua vó vol-
taram para casa com a certeza de que aquilo só podia
ser uma das visagens que passavam à noite por aquele
caminho e que muitas outras pessoas comentavam.

Um lobisomem desencantado

Essa é mais uma história vivida e contada por al-


guém da minha família sobre os mistérios de lobiso-
mem. Desde que eu era criança já ouvia minha mãe, D.
Teresa, contar para mim e meus irmãos sobre um primo
da minha vó materna que foi obrigado a lutar contra um
lobisomem. Esse rapaz se chamava Cláudio e vinha so-
zinho altas horas da noite da casa da namorada. Nesse
tempo, as pessoas costumavam andar a pé, não impor-
tava a distância nem a hora, e muitas vezes andavam
simplesmente com uma pequena faca e um lenço no
bolso.
Cláudio vinha caminhando tranquilamente, quan-
do de repente olhou para frente do caminho muito lon-
go e ao longe avistou um bicho estranho que vinha cor-
rendo ao seu encontro. Logo pensou em entrar no mato
e dar passagem para o bicho, mas infelizmente não deu
tempo. Quando pensou em se esconder, o bicho já es-
tava quase em cima dele saltando para atacar. Segundo
o que ele contava, era um bicho cabeludo, todo preto,
e seus olhos pareciam duas brasas bem acesas. Cláudio
logo teve certeza de que aquilo só podia ser um lobiso-
mem, pelo que já havia ouvido as pessoas falarem. Foi
aí que iniciou uma luta. O tal bicho só pulava e tenta-
va lhe atacar na cara e ele simplesmente se defendia.
Cláudio contava que aquele monstro era tão rápido que

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:


HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
110

não dava tempo nem de fugir pelo mato que tinha pe-
los lados do caminho. Assim, lutaram por um bom tem-
po até que Cláudio não conseguia mais nem pular, só
rodava de um lado para o outro, de tão cansado que
já estava tentando se defender daquela fera horrenda.
Nesse momento, o rapaz lembrou da sua faca e, mes-
mo em meio àquela luta, valeu-se de São Francisco e
conseguiu pegar a faca e enrolar o lenço nela. O bicho
novamente pulou para atacar e Cláudio simplesmente
esperou o animal direcionando a faca no rumo que o bi-
cho vinha. Nesse instante, contou que só sentiu o peso
do monstro espetado na sua faca. Naquele momento, o
lobisomem deu uma espécie de grito e caiu ao lado do
caminho, quase dentro do mato. O rapaz, mesmo muito
cansado, imediatamente dirigiu-se até lá para ver o que
realmente havia acontecido. Ao chegar onde o monstro
caiu, deparou-se com um homem em sua forma nor-
mal e não mais com um bicho. Para sua maior surpresa,
reconheceu que era seu vizinho. Nesse momento, o ho-
mem desvirado de lobisomem pediu que Cláudio não
lhe matasse. Mesmo com a raiva que estava sentindo,
Cláudio o respeitou, deixando-o lá caído, gemendo, e
foi embora.
Até então, Cláudio contou que nunca tinha sen-
tindo tanto medo, mas quando deixou o homem ali ca-
ído e seguiu para casa, sentiu um medo tão grande, que
não sabe como conseguiu chegar. Disse que só bateu
na porta de casa e não teve coragem de falar. Seus pais
abriram, botaram-no para dentro e, com muito tempo
foi que ele falou, contando-lhes o que tinha acontecido.
Com poucos dias, correu uma notícia de que seu
vizinho estava doente, com um ferimento próximo das
costelas. O mesmo contava pra quem ia lhe visitar que,

MARIA ANDREÍNA DOS SANTOS


111

ao pular de uma cerca, havia caído e se ferido na ponta


de uma estaca. Mas Cláudio sabia, assim como seus pais,
que aquela história não era verdadeira e, sim, que aque-
le era o vizinho que havia lutado com Cláudio e virado
em lobisomem, cujo ferimento era a dita furada de faca
que Cláudio lhe deu em defesa própria e que fez o vizi-
nho desencantar da forma de lobisomem.
Cláudio dizia que nunca revelou o nome daque-
le homem para ninguém e só contou essa história para
pessoas da sua família. Mas, com pouco tempo, o tal ho-
mem que foi ferido por ele naquela luta mudou- se dali
para outro lugar, não se sabe ao certo se foi por medo
ou por vergonha de que outras pessoas soubessem que
ele virava lobisomem. E o mais interessante é que de-
pois disso não se ouviu mais falar de lobisomem corren-
do nas noites e assombrando pessoas naquela região.

A teimosia de um rapaz

Aqui nas proximidades da aldeia de Mangue Alto


existe uma lagoa conhecida pelo nome de Lagoa Verde,
que é de difícil acesso devido a uma densa vegetação de
plantas conhecidas por tabuba. Além disso, essa lagoa
fica dentro de um cercado de propriedade privada. Se-
gundo os mais velhos conhecedores da região contam,
lá não é um lugar adequado para pescaria, apesar de
existir uma grande variedade de peixes grandes, porque
lá vive um encantado de grande poder, a Mãe d’água.
Certa vez, aconteceu que o filho rapaz de um gran-
de rezador teimou, pegou uma tarrafa e foi pescar nessa
lagoa. Não demorou muito, chegou em casa chorando,
muito assustado. Seu pai logo perguntou o que havia
lhe acontecido e ele disse que assim que abriu a tarrafa

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:


HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
112

para dar a primeira lança, surgiu de repente de dentro


das águas uma mulher e lhe tomou a tarrafa das mãos,
sumindo novamente ao mergulhar. Seu pai e mais ou-
tras pessoas que estavam ali ouvindo a história do ra-
paz rapidamente foram até a lagoa, no local que ele
disse que ia pescar. Chegando lá, exatamente no lugar
em que o rapaz disse que estava, olharam e viram que
a tarrafa estava ali dentro da água e largada como se
não tivesse acontecido nada do que o rapaz relatou. Na-
quele momento, eles se entreolharam e tiveram a cer-
teza de que aquele ocorrido foi mais uma das proezas
da Mãe d’água e também um aviso de que ela não quer
ninguém pescando ali.
Daquele dia em diante, o rapaz entendeu a men-
sagem e nunca mais foi na Lagoa Verde pescar, e muito
menos sozinho.

As artimanhas do Caipora

Dona Neném Biata, liderança de Mangue Alto,


conta que desde criança, já ouvia as histórias sobre os
poderes ou artimanhas do Caipora. Este, por sua vez,
conhecido pelos mais velhos como Encantado, ou seja,
o protetor de todos os seres que vivem nas matas. As
pessoas que já tiveram o privilégio de ver esse Encanta-
do contam que ele é um negrinho bem pequeno, que
costuma correr pela mata montado em algum animal,
vive na floresta e gosta muito de fumo.
O Caipora é muito respeitado pelos caçadores
pelo fato de que aqueles que já conheciam suas histó-
rias, ao saírem para caçar na mata, já levavam fumo e
colocavam num certo local da mata como oferecimen-
to àquele ser Encantado, pois, segundo eles, no dia em

MARIA ANDREÍNA DOS SANTOS


113

que faziam isso, o Caipora, feliz por receber tal agra-


do, permitia que os caçadores pegassem muitas caças,
como cutia, peba, veado, tejo, tatu, entre outros. Porém,
no dia em que fossem caçar e não levassem fumo para
agradá-lo, naquele dia, além de não conseguirem pegar
nenhuma caça, seus cachorros eram surrados pelo Cai-
pora, a ponto de não saírem de perto dos seus donos
para nada, e os próprios caçadores também acabavam
ficando assombrados, porque ouviam galhos e árvo-
res quebrando (na realidade, nada acontecia) ou ainda
ouviam as gargalhadas estrondosas do próprio Caipo-
ra. As tais risadas eram tão fortes que parecia que até a
floresta estremecia. Nesse dia em que tudo acontecia,
era melhor irem logo embora, porque não conseguiam
matar nenhuma caça, mesmo que ficassem tentando a
noite inteira.
Para aqueles que entendiam e acreditavam nos
poderes do Caipora, ou pai da mata, como também é
conhecido, se não tivessem fumo para oferecer-lhe ao ir
caçar, muitas vezes nem se atreviam a sair de casa, por-
que já sabiam o que poderia lhes acontecer.

O miado que assombrou João

Esse fato aconteceu com João Trajano, conheci-


do por Geu, um antigo morador tremembé da aldeia
Saquim. João saiu à tarde para resolver umas coisas na
localidade próxima chamada Barro Vermelho. Quando
lembrou de voltar para casa, já era quase noite. No ca-
minho, já de volta, quando passou por um córrego na
aldeia Panã, era mais ou menos 18h. Quando ele atraves-
sou o córrego, bem na beirada, tinha um pé de azeito-
neira, dali, de repente, saiu um gato assustado e soltou

NARRATIVAS DE RECOLHA DO POVO TREMEMBÉ DE ALMOFALA:


HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
114

um miado tão forte e tão apavorante que João, do sus-


to que levou, arrepiou-se todinho e suas pernas parece
que ficaram mais grossas e pesadas.
Mesmo com o pavor daquele susto, João teve que
se encorajar e seguir viagem para casa. Ao chegar, já na
entrada de Saquim, de repente, do nada, algo que ele
não viu assobiou tão fino e alto no seu ouvido que che-
gou a ficar mouco, surdo. Nesse instante, o medo au-
mentou ainda mais, mas logo avistou uma casa e ele não
pensou duas vezes. Foi lá e começou a chamar, bateu na
porta, mas não saiu ninguém. Resolveu seguir viagem
e logo chegou numa outra casa que também chamou,
chamou, e ninguém lhe respondeu. Ele, então, mesmo
se sentindo apavorado, teve que seguir sua viagem para
casa, onde conseguiu chegar dentro de poucos minutos.
Quando João chegou e sua mulher o viu, pergun-
tou o que estava acontecendo para ele chegar em casa
com aquele olhar estranho, com o rosto desfigurado. Foi
aí que ele lhe contou que estava assombrado devido os
acontecimentos que lhe ocorreram no caminho já de
volta para casa. Naquela noite, João não teve coragem
nem de tomar banho e nem de dormir sozinho. Para to-
mar banho, foi com sua mulher num córrego que passa-
va no quintal da casa, mas não teve coragem de seguir
nem a frente nem atrás dela, tinha que ser ao lado, e
depois dessa noite, ele ainda ficou sentindo um frio es-
tranho por pelo menos três dias.
A partir daquele dia, João prometeu para ele mes-
mo que nunca mais passaria por aquele córrego sozi-
nho e à noite, pois teve certeza de que aquele gato que
miou e depois assobiou ao ponto de lhe deixar surdo
era algum espírito ruim que o acompanhou e por isso
ele se assombrou.

MARIA ANDREÍNA DOS SANTOS


115

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY

Marilene Lopes Queiroz

Árvores mal-assombradas

É em Maracanaú
Na serra Pitaguary
Que se passam as histórias
Que passo a contar aqui.

Histórias de assombrar
Em plantas que são nativas
Envolvendo encantados
E também pessoas vivas.

Vou contar o que ouvi


Mas não vá ficar com medo
Finja que não acredita
Esse é o meu segredo.

O juazeiro tão verdinho,


Tão comum no Ceará
De noitinha espanta quem
Por ele tem que passar.

Minha irmã diz que já viu


Numa noite de luar
Um cão com olhos de fogo
Que era de assustar.

Ele apareceu do nada


Embaixo do juazeiro
E por pior que foi o susto
Esse foi só o primeiro.

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


116

Daquele dia em diante


Toda vez que lá passava
Via o tal do cachorrinho
E logo se arrepiava.

E o pé de oiticica
Que atrai assombração
Perto dele se vê coisas
Que não tem explicação.

Indo um dia para a escola


Tudo parecia certo:
Mato cobrindo o caminho,
Que era escuro e deserto.

Eram 4 ou 3 crianças
Entre 7 e 10 de idade
Passando na oiticica
Na maior ingenuidade.

De repente, atrás da árvore


Algo estranho apareceu
Tentaram olhar direito
Mas a coisa se escondeu.

Era muito pequenina


Segundo foi relatado.
Parecia um anãozinho
Mas o rosto era azulado.

Com arrepiados de medo


Só pensavam em correr
Elas gritavam chorando
Sem ninguém pra socorrer.

A coisa que assombrava


Parecia não cansar
Sempre perto das crianças
Sem precisar se esforçar.

MARILENE LOPES QUEIROZ


117

Mas em um piscar de olhos


A coisa surgiu na frente
E elas viram que não era
Nem animal e nem gente.

Elas voltaram pra casa


E contaram o ocorrido
Deixando o povo dali
Com medo do acontecido.

Com uns pedaços de pau


Todos foram procurar
Mas nem marcas na areia
Davam para enxergar.

Desistiram ao ver que foi


Bem no pé da oiticica
Pois o que acontece nela
Não se prova e nem se explica.

Por muito tempo evitaram


Passar naquele lugar
Quem não tinha outro jeito
Era certo se assombrar.

E o pé de marizeira
Outra planta assombrada
Havia só uma delas
Na redondeza citada.

Mas era muito famosa


E temida até de dia
Ninguém em sã consciência
Passava sem companhia.

Quem teimava passar só


Passava sempre correndo
Sem olhar pra marizeira
E de medo, quase morrendo.

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


118

Os relatos davam conta


Que uma mulher de branco
Embaixo da marizeira
Chorava sobre o barranco.

Mas quem tentava ajudar


Se assustava com o que via
Bem na frente da pessoa
Ela desaparecia.

Outra coisa bem comum


Era ver a marizeira
Em chamas de cima a baixo
Parecendo uma fogueira.

Alguns passos mais a frente


Se olhasse para trás
Viria que aquele fogo
Já não existia mais.

E também se ouvia vozes


Mas nada se entendia
E apesar da falação
Alma viva não se via.

Já no pé de mulungu
O povo via a caipora
É a última historinha
Que eu contarei agora.

Quem não mente me contou


Que quem caçava sabia
Que no pé de mulungu
A caipora aparecia.

E que todo caçador,


Pra ela levava fumo
Deixava no mulungu
E seguiam o seu rumo.

MARILENE LOPES QUEIROZ


119

Quem fazia desse jeito


Caçava o que queria
E em paz pra sua casa
Com certeza voltaria.

Mas um grupo de amigos


Que queria se mostrar
Resolveu que a caipora
Iria desafiar.

O primeiro entrou na mata


Sem levar fumo nenhum
Passou dias na caçada
E não pegou nem um anum.

Ele andou dias em círculos


Ficou desorientado
Voltava pro mulungu
Ficava todo assombrado.

Só depois de muitos dias


Conseguiu sair de lá.
Como se perdeu ali,
Não tinha como explicar.

Para não perder a aposta


O segundo foi também
Tirou algo do seu bolso
Pensou algo e disse amém!

E do pé de mulungu
Ele não pode escapar
Por mais que o evitasse
Foi lá que foi acampar.

Sentiu muitas cipoadas


E dormir foi impossível
Só passou aquela noite
Naquele lugar horrível.

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


120

Viu caipora lhe batendo


Zangada a lhe dizer:
“Vá embora, vá embora
Não tem caça pra você “...

O terceiro desistiu
Ao ouvir esses relatos
Sabia que argumentos
Não havia contra os fatos.

A aposta foi desfeita


Sem qualquer objeção
Já estavam convencidos
Tinha mesmo assombração.

Não sei se o mulungu


Continua a assustar
Mas se quiser descobrir
Digo como chegar lá.

Índio desaldeado é índio também


Não importa onde eu more
sei da minha identidade,
já que sou Pitaguary
eu mereço igualdade.

Eu sei que antigamente


só índio vivia aqui
e tudo que se avistava
era dos Pitaguary.

A terra era imensa


e não tinha divisão
ela era bem cercada
com elos de união.

MARILENE LOPES QUEIROZ


121

Quando chegou o não índio


trazendo arame farpado
fez um novo sofredor:
“o índio desaldeado”.

O índio reconhecido
tem na lei os seus direitos,
mas antes de desfrutá-los
luta contra os preconceitos.

Muita gente se dedica


a barrar a vida alheia,
humilham os nossos índios
que não têm casa na aldeia.

Muitos são desaldeados,


não há muitas opções
tem terra pra fazer casa
mas faltam as condições.

O índio desaldeado
já é hoje a maioria
mas nunca deixa de ser
um membro da etnia.

Feira cultural dos Pitaguary


Foi em nome da cultura
que pensamos em criar
uma feira diferente
e a todos convidar.

Convidamos artesãos,
filhos da comunidade,
chamamos os cidadãos
de toda e qualquer idade.

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


122

Para os Pitaguary,
é um dia especial,
índio e não-índio aqui
numa feira cultural.

Veio para fortalecer


a nossa identidade
e mostrar para você
nossa criatividade.

Não morreu nossa cultura


apenas adormeceu,
resistimos à mistura
e a tudo o que aconteceu.

Conhecemos nossa história


de luta e sobrevivência
pra conquistar a vitória
é preciso experiência.

Esta feira é importante


mostra que sobrevivemos
seguiremos adiante
nesta luta venceremos…

A alma do roçado
Esta é uma história
de Socorro e Zezim
uma história verdadeira
que aconteceu assim:

Socorro trabalhadora
tendo em mãos seu bornal
foi apanhar o feijão
no meio do milharal…

MARILENE LOPES QUEIROZ


123

Ela estava sozinha,


o sol já se escondendo,
tratou de se apressar
pois já estava escurecendo…

De repente um estalo
surgiu no meio do nada,
ela, muito corajosa,
só ficou arrepiada…

Pensou em deixar pra lá


e o estalo insistiu,
ela olhou pra todo lado,
mas nenhum ser vivo viu…

E o barulho ficou
cada vez mais esquisito,
de repente ela soltou
um enorme e agudo grito…

Seu marido assustado


rapidinho apareceu,
querendo logo saber
o que foi que aconteceu…
Zezim achou muita graça
do medo de sua mulher
e mais que depressa disse:
– Vou te dizer o que é…

E falou que o estalo


não era nada demais
era apenas uma alma
comendo uns aruás…

Ele só estava brincando


mas ela acreditou,
e saiu de lá correndo
nem por ele esperou…

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


124

Zezim não acreditava


naquilo que ele via,
quando tentava explicar,
mais depressa ela corria…

Socorro ia gritando:
– Aqui não volto por nada
você que fique aí
com sua alma penada…

Zezim sabia a verdade,


não teve como explicar
Socorro correu depressa
nem deu para alcançar…

E ainda no caminho
naquele grande sufoco
pensou ela: “Pode ser
macaco quebrando coco…”

Mas isso nada mudava


o medo só aumentou.
“Só quero chegar em casa.”
Em sua oração falou…

Quando ela chegou em casa


esperou pelo marido,
que queria desfazer
o tal do mal entendido…

Perguntou se era macaco


ele lhe disse que não.
Disse ela: – Então é alma,
é coisa de assombração…

Ele estava arrependido,


não foi sua intenção,
assustar a sua esposa,
abalar seu coração…

MARILENE LOPES QUEIROZ


125

Ele tentou lhe dizer,


ela não quis escutar,
já sabia que era alma
se alimentando por lá…

O assunto esfriou
e ela voltou ao roçado,
pois queria descobrir
o que tinha lhe assustado…
Estando no mesmo lugar,
novamente aconteceu,
como estava curiosa
nem um pouco estremeceu…

Ao descobrir deu risada


não se zangou com o marido.
Não guardou nenhuma magoa
do seu esposo querido…

Soube que ele sabia


ao lembrar da aflição:
ele querendo explicar
que não era assombração.

Zezim por brincadeira,


não podia imaginar
que aquela leve prosa
poderia lhe assombrar…

Ela ainda achando graça


teve um pensamento sério:
“Como pode algo tão simples
se tornar grande mistério?!”

Coitada da maniçoba,
inocente em seu lugar,
foi confundida com alma
comedora de aruá...

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


126

Os sinais de um bom inverno


Só temos inverno bom,
quando sinais aparecem
todos ficam esperando,
não surgindo entristecem.

Cientistas anunciam
sempre secas para a gente,
nada disso é importante
para quem em Deus é crente.

Se o pau d’arco alegre flora


enfeitando a nossa serra,
sabemos que tem inverno
pra molhar a nossa terra.

A pobre da marizeira,
com fama de assombrosa,
anuncia o inverno
ficando toda chorosa.

E a formiga de roça,
rival do agricultor,
trabalhando enfileirada
é inverno, sim, senhor¹

surgem os redemoinhos,
não se sabe se é saci.
só se tem uma certeza:
vem inverno por aí.

Carão canta aliviado.


(Não se trata de sermão)
Estou falando de um pássaro
morador da região.

MARILENE LOPES QUEIROZ


127

As rãs fazem barulho


cururus fazem também
este é o feito deles
dizerem que inverno tem.

Dizem até que o sol


se põe diferentemente
dando aos índios esperanças
de chuva futuramente.

Carnaúba carregada,
frutinhas para todo lado,
é sinal de inverno bom
e agricultor animado.

Se o olho da carnaúba
crescer mais que o normal
quem planta logo se alegra
pois vê que é um bom sinal.

O frambu é uma planta


que se pode confiar
se ele tiver florido
inverno bom chegará.

Quando nasce mais meninas


que meninos no lugar,
é sinal que vem a chuva
o índio pode esperar.

Momento muito esperado


é o primeiro trovão,
quando vem do lado leste
dá-se tchau para o verão.

O índio não acredita


na previsão da TV
ele espera os sinais
que surgem pra ele crer.

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


128

O povo Pitaguary
acredita nos sinais
esses foram alguns deles,
mas existem muito mais…

Histórias do Ceará
Muitos anos de história
tem o nosso Ceará.
Muitas coisas ocultadas
que ninguém pode falar.

O pouco que sei dizer


não sei nem se acredito.
Criou-se contos românticos
e um passado bem bonito.

Contaram umas histórias


de conquista e descoberta,
eles queriam dizer
que fizeram a coisa certa.

Hoje todo mundo sabe


que “branco” foi invasor.
Há ganância do dinheiro
se tornou um opressor.

O índio e o negro eram


mão-de-obra dos barões,
e em reconhecimento
lhes puseram os grilhões.

Nenhum homem tem direito


de ser dono de alguém.
Quem inventou essa lei
não podia ser do bem.

MARILENE LOPES QUEIROZ


129

O usurpador de terra,
Não estando satisfeito
tentou acabar com os índios
para o crime ser perfeito.

Foi forjado um herói


corajosos e sereno,
o tal do guerreiro branco
“Martins Soares Moreno”.

Dizem até que foi ele


quem fundou o Ceará.
(Só fico imaginando
o que faltou inventar…)

Um tempo depois criaram


decreto pra intimidar
dizendo: “Não tem mais índio
no Estado do Ceará…”

Muita gente acreditou


na conversa espalhada,
mas a memória dos povos
não pode ser apagada.

E com o passar dos anos,


voltamos com mais vontade
de dizer que somos índios
temos nossa identidade.

Hoje nos cobram cultura,


cobram também o Tupy,
não sabem que a gente luta
e lutou pra estar aqui.

O Pitaguary se orgulha
de fazer o que tem feito
divulga sua cultura
e combate o preconceito.

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


130

O índio do Ceará
luta em agradecimento
a todos que resistiram,
enfrentando o sofrimento.

Aliada nesta luta


é a escola Chuí,
fortalece a cultura
do Povo Pitaguary.

Minha filha Thays


A Thays é uma menina
esperta até demais,
tem todo o meu amor,
quer sempre um pouco mais.

Ela acorda à meia-noite


diz: Papai bot’eu na cama
ela sabe o que quer
ele faz porque a ama.

De dia ela promete:


– Vou dormir no meu lugar.
Promessa dela não vale,
é acordar e quebrar.

Quer caneta e papel


e muita atenção da gente,
fazendo uma pergunta
quer resposta coerente.

A Thays jamais aceita


um “não sei” ou “porque sim”
ela sempre quer saber
tudo do começo ao fim.

MARILENE LOPES QUEIROZ


131

Se não souber responder


desconversar é pior,
ela fica chateada
e quer que conte melhor.

Me orgulho muito dela,


(pra falar bem a verdade)
a vontade de aprender
é uma grande qualidade.

Queria ser uma mãe


tão boa quanto a minha
se tenho algum problema
ela logo adivinha.

Não sabia que um filho


mexia tanto com a gente,
é um amor cuidadoso,
filho é mais que uma semente.

A Thays só tem três anos


e já é a minha vida.
Só peço a Deus o melhor
pra minha filha querida.

Como posso amar tanto


um ser tão pequenininho?!
Mesmo zangada eu quero
lhe dar beijo e carinho.

Mas o pai dela também


sente o mesmo que eu.
Diz ele que ela é
Um presente que Deus deu.

Por aqui eu vou ficando


para cuidar da Thays
vou fazer tudo pra ela
ser muito, muito feliz.

E ASSIM CONTAM LÁ NOS PITAGUARY


132

KUARACIR KORÁ: CICLO SAGRADO DO SOL

Teresinha Pereira da Silva


Francisco Jardel dos Anjos da Silva

PARTE I
(Teresinha Pereira da Silva – Teka Potyguara)

I  Abanhe’enga oré katu


Ore katu, sene karu
Oreru nhamandu, tupã
Ybacoby tupanaroca
Ore katu byty assu aba
Taba karu mokoia ypy
Moroussuba auasuba cori.

Ore katu, sene karu


Oreru nhamandu, tupã
Ybacoby tupanaroca
Ore katu byty assu aba
Taba karu mokoia ypy
Moroussuba auasuba cori.

II  Língua dos índios nós somos Bons


Nós índios numa comida boa
Nossos pais são o sol e o trovão
Céu vermelho casa de Deus
Nós índios na terra grande e boa
[Primeira, segunda comida na aldeia
Amar os outros amar amanhã

TERESINHA PEREIRA DA SILVA • FRANCISCO JARDEL DOS ANJOS DA SILVA


133

Nós índios numa comida boa


Nossos pais são o sol e o trovão
Céu vermelho casa de Deus
Nós índios na terra grande e boa
[Primeira, segunda comida na aldeia
Amar os outros amar amanhã

III  Aba pé
Aba pé, aba supé
Momopé ambi asy
Tupã sy kunhã kuné música Tupy antigo
Kuruymi kaá awacy

Yby yandé nheenga eré


Wira wassu ybytyra     música em Nheengatu
Potyguara aba sé

IV  Índio caminhando


A terra já é nossa
a língua também é
gavião do pé do morro
potygura índio eu.

V Katuara
Katuara aba esé, momopé eré pitá
Ne’enga abanhenga, yby aba ka’á
Ka’atinga katemá, ybyassu katu aba
Katinga tabatinga, ore katu aba

Aquiraz ali tem água


Arakati é tempo bom
Iguatu com água boa

KUARACIR KORÁ: CICLO SAGRADO DO SOL


134

Nossa terra é katemá.


Aba katemá, aba katema, aba katema
Abanheenga momopé.

VI Morubixaba
Morubixaba eté, kunhã porang
Aba Nhé enga kurumim,
Aba katemá, aba katemá,
Aba katema Aba nhe enga Tupã sí. Tupy antigo
Aba katemá, aba katemá,
Aba katema Aba nhe enga kurumim

VII Cacique
Muitos caciques, mulheres bonitas, falando
Línguas indígenas, e kurumim.
Indígenas na região da mata
Deus na região da mata

VIII  Mitum tupã ibakawá


Mitum tupã, Mitum tupã,
Mitum tupã ibakawá
Oré aba, Oré aba,
Oré aba, taba porã
Oré aba, Oré aba,
Oré aba, taba porã
Sibicobé, sibicobé, sibicobé
Oré katu, Oré aba, Oré aba,
Oré aba, taba porã
Oré katu, Oré aba, Oré aba,
Oré aba, taba porá

TERESINHA PEREIRA DA SILVA • FRANCISCO JARDEL DOS ANJOS DA SILVA


135

IV  Deus na vida da gente


Deus na vida da gente
De nós indígenas, na aldeia boa.
Mãe de Deus Nós somos bons
Aldeia bonita.

X  Kuaracy korá
Kuaracy corá, tupancy jacairá,
abáté Abaeté,kamiranga tupancy – Bis
Icaraí yacy tupancy,Mantiqueira
Acopiara aiuaba ybyassu – Bis

Kuaracy corá, tupancy jacairá,


abáté Abaeté,kamiranga tupancy – Bis
Icaraí yacy tupancy,Mantiqueira
Acopiara aiuaba ybyassu – Bis

XI  Círculo sagrado do sol


Círculo sagrado do sol
O vento chegou na
Mata vermelha, na serra que chora,
Lugar de beber água
filhos da terra pessoa boa,
Mãe de Deus nossa mãe.

XII Potygatapuia
eu sou tapuia,
sou gavião,
sou tabajara ,
sou potiguara
eu sou potygatapuia – Bis

KUARACIR KORÁ: CICLO SAGRADO DO SOL


136

Sou liderança
sou caçador,
sou rezador
sou professor
eu sou índio lutador – Bis

Sou potiguara,
sou do sertão,
sou caceteiro ,
sou valentão,
comedor de camarão – Bis

Onde tem mocó,


tem rixinó,
tem também preá
e tamanduá misturado com gambá – Bis

PARTE II
(Francisco Jardel dos Anjos da Silva – Jardel
Potyguara)

I Araruna
Nheengari araruna ka’a
Sesá nheengar bis
Umbari araruna eré sabiá

Hêi auê, Hêi awá


Nheengari araruna bis
Eré kaatemá

II  Arara Azul


Cantou uma arara zul
Na mata ouvi cantar
Não era arara zul era bis
A dona sabiá.

TERESINHA PEREIRA DA SILVA • FRANCISCO JARDEL DOS ANJOS DA SILVA


137

Hêi auê, Hêi awá


demarca a nossa terra bis
terra indígena kaatemá

III  Jací ô Paranã


Jací ô Paranã, Jací ô Paranã
Ara kunhã itanahê

Ahê, Ahê, Paranã


Itanahê Paraná
Ara kunhã itanahê

Paranaê Hê Hê Hê
Paranaê Hê Hê Hê
Ara kunhã itanahê

Ahê, Ahê, Paranã


Itanahê Paraná
Ara kunhã itanahê

IV  A lua e o mar

Um dia a mulher viu


A lua e o mar, e a pedra
O rio estava agitando molhou a
Pedra, o rio estava muito

V  Kunhã potygara
Yepe ara sesá indé
Mira potyguara kunhã sé
Auasu inde iandé Hêê
Yepe apigawa Né awa
Xé puranga té Resika iké

KUARACIR KORÁ: CICLO SAGRADO DO SOL


138

Hê aHê aHê Hêê


Hêê a Hê

VI  Mulher potyguara


Um dia eu vi você
Do povo potyguara

Minha companheira
Amo Você, Nós

Um indígena teu indígena


Estou bem cheguei aki.

VII  Purasi kutara mairamu


Yané kuema ahê, ahê, ahê – Bis
Yasu yayaumbué purasi kutara
Mairamu.
Puranga ahê, ahê, ahê – Bis
Yasu yayaumbué purasi kutara
Mairamu.

Yané karuka ahê, ahê, ahê – Bis


Yasu yayaumbué purasi kutara
Mairamu.
Puranga ahê, ahê, ahê – Bis
Yasu yayaumbué purasi kutara
Mairamu.

Yané pituna ahê, ahê, ahê – Bis


Yasu yayaumbué purasi kutara
Mairamu.
Puranga ahê, ahê, ahê – Bis
Yasu yayaumbué purasi kutara
Mairamu.

TERESINHA PEREIRA DA SILVA • FRANCISCO JARDEL DOS ANJOS DA SILVA


139

VIII  Dança maneiro o pau


Bom dia, boa tarde, boa noite
Vamos aprender a dançar maneiro pau
Povo caceteiro

IX Igara
Ara igara iasi He hêê
Iatanauê He hêê
A ara igara de ibirakutá
Ara igara iasi He hêê
Iatanauê He hêê
A ara iagara de ibirakutá

X  A Canoa
Um dia a canoa
viu a lua de lua
dia de canoa
a canoa feita da arvore

XI Caipora
Deitado na rendawa quando eu vi
Alguém me chamar era um caboquinho
Que veio me avisar, proteja a natureza
que o kariwa vai atacar

Caipora, caipora, por favor me deixe passar


eu venho lá do pé da serra com a força do maracá,
quando de longe eu vi o balanço deu no mar

KUARACIR KORÁ: CICLO SAGRADO DO SOL


140

Caipora, caipora, por favor me deixe passar


eu venho lá do pé da serra com a força do maracá,
quando de longe eu vi o balanço deu no mar

(Glossário)
Kariwa: homem branco, fazendeiro, posseiro.
Caipora: ser da natureza, que protege a mata
Rendawa: Aldeia, comunidade
Caboquinho: ser encantado das matas

TERESINHA PEREIRA DA SILVA • FRANCISCO JARDEL DOS ANJOS DA SILVA


III
Diversidade
e Escola
143

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS:


O ENSINO DE LITERATURA NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO
DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES

Alcides Alves de Sousa


João Antoniel da Silva Pinto

Introdução 

E
ste artigo é uma sistematização de experiên-
cias práticas vivenciadas no chão da Escola de
Ensino Médio do Campo Florestan Fernan-
des, no Assentamento Santana, em Monsenhor Tabosa/
CE. Este trabalho discorre sobre o ensino de literatu-
ra sob uma perspectiva crítica e emancipadora, fazen-
do interface com a ideologia política e pedagógica da
escola ocupada pelo Movimento dos Sem Terra – MST,
que tem sua essência fincada na crítica à sociedade ca-
pitalista e à escola a serviço do capital, vislumbrando
a construção emancipada, tendo a escola como lócus
de contribuição para construção de conhecimentos que
colaborem nessa direção.
A literatura se coloca nesse contexto como uma
importante ferramenta pedagógica de formar crianças e
jovens leitores e leitoras e semear o gosto pelos livros e
pelo estudo nas Escolas do Campo, colaborando, assim,
com a formação do sujeito e o fortalecimento da cultu-
ra camponesa.
O artigo explicita a forma de trabalho, na esco-
la, com a literatura produzida ao longo do tempo pelo
povo, nesse território de resistência, seus costumes e
suas artes. Essa literatura é considerada no processo

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
144

de ensino formal, mas também evidencia as metodo-


logias utilizadas pelos educadores e educadoras na
contextualização da literatura clássica com o contexto
social, político e cultural do povo camponês. Ela ainda
evidencia as formas de experiências literárias como prá-
ticas pedagógicas escolares (e como ferramentas para
a aprendizagem) no território camponês, ao se consti-
tuir em identidade de um povo e em resistência por sua
afirmação na sociedade, à medida em que se contrapõe
às ideias clássicas da literatura (elitista, burguesa, euro-
cêntrica, branca). 
Dessa forma, na contracorrente, contra hegemo-
niza-se à medida que se produz Literatura Popular,
mas não uma qualquer; nem à toa! Uma Literatura fun-
damentada no registro das vivências históricas dos/as
camponeses/as, mas também a partir do acúmulo teóri-
co das práticas literárias desse povo, ao considerar suas
realidades, especificidades, como sujeitos que constro-
em suas próprias literaturas, aprendem com as demais e
em certa medida, ressignificam suas existências.
Esse ponto evidencia, ao nosso ver, aspectos perti-
nentes que corroboram com a política de educação do
campo e reafirmam a importância de um currículo orga-
nizado a partir da realidade e que fortaleça a formação
humana, definindo, assim, a pedagogia em movimento.
Nessa perspectiva, destacamos o Projeto Político
Pedagógico da Escola Florestan Fernandes, que afirma:
A organização curricular de uma escola em mo-
vimento precisa em seu processo pedagógico e
educativo identificar e escolher alguns aspectos
a serem trabalhados na formação humana dos
sujeitos: organização, criticidade, curiosidade,
esperança, as contradições da realidade, proble-

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


145

matização, alegria, a construção e a provisorieda-


de do conhecimento, avaliação emancipatória,
solidariedade, prazer, indignação, compromisso,
gestão coletiva (ESCOLA DE ENSINO MÉDIO
FLORESTAN FERNANDES, 2019, p. 50).

Sob esse prisma, a Escola do Campo Florestan Fer-


nandes trabalha a partir do sistema de complexos de
estudos, que se constitui na forma de ser do trabalho
pedagógico da escola e que organiza os eixos dos pla-
nos de estudo contemplando uma parte comum e ou-
tra diversificada, de modo que os complexos atuam na
formação social e crítica dos estudantes, na percepção
do mundo e de seus acontecimentos, com suas diversas
influências e intenções. Nesse sentido, Leite e Sapelli
(2027, p. 61) escrevem que:
O esboço que representa o conjunto dos ele-
mentos do Plano de Estudo apresenta uma parte
comum e outra diversificada. A parte comum é
composta da concepção e objetivos da educa-
ção, do meio educativo, das matrizes formativas/
pedagógica, do trabalho como método geral e
dos tempos educativos. A parte diversificada são
os Complexos de Estudos, unidades curriculares
multifacetadas que têm uma prática social em-
butida em sua definição e que são palco, portan-
to, de exercitação teórico-prática, pois trata-se
de uma experiência educativa.
A Pedagogia do MST é uma forma de organizar o
trabalho pedagógico ou seja, “bebe-se” na forma organi-
zativa e formativa do MST, adaptando-a ao pedagógico e
fazendo junção com o currículo e sendo o mais didático
possível, para que o conhecimento seja absorvido pelos
estudantes. Para facilitar essa aproximação político-me-
todológica entre a Pedagogia do MST e as questões da

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
146

realidade, foi construído o inventário da realidade, que


norteia o processo de contextualização dos conteúdos
curriculares com a realidade. O inventário da realidade
é “[...] uma ferramenta para levantamento e registro or-
ganizado de aspectos materiais ou imateriais de uma
determinada realidade (CALDART, 2017, p. 163).
No caso específico da experiência pedagógica da
Escola Florestan Fernandes, todo o processo é mediado
pelo inventário, que viabiliza o diálogo entre conheci-
mento científico e realidade, conforme o PPP da Escola:

FORMAS PAR- FONTES EDUCA-


TICIPATIVAS DE TIVAS DO MEIO FORMAS DE LUTAS SOCIAIS E
(NATURAIS,-
GESTÃO E OR- TRABALHO CONTRADIÇÃO
CULTURAIS E
GANIZAÇÃO SOCIAIS)
Organizações Fontes Naturais Formas de Or- Acesso e Qualida-
Comunitárias 22. Açudes, lago- ganização de da Educação
8. Cooperativa de as, rios, riachos e 50. Trabalho 69. Transporte
Produção Agro- barragens; cooperado; escolar precários;
pecuária Águia 23. Serras, ser- 51. Mutirões; 70. Remanejamen-
do Assentamento rotes; to dos funcioná-
Santana Ltda; 52. Assalariados;
24. Cisternas.; rios concursados;
9. Associações; 53. Diaristas;
25. Cacimbões; 71. Descumpri-
10. Grupo de 54. Voluntários; mentos do PCC
Jovem; 26. Adutora; 55. Troca de do Município;
Organizações 27. Poços profun- dias de trabalho 72. Funcionários que
Sociais dos; entre famílias; trabalham na escola
11. Movimentos Fontes Culturais Sistemas Produ- e os filhos estudam
Socais; 28. Ponto de tivos em outra escola;
12. Brigada Dom Cultura: Banda 56. Agricultura Problemas Culturais
Fragoso; de lata, grupo de de sequeiro; 73. Dominação
teatro, reisado, 57. Pecuária cultural (músicas, ali-
13. Diversidade festa da colheita
religiosa; extensiva de mentação, vestimen-
e festas juninas; animais de tas e linguagem);
Organizações 29. Casas Digitais; grande porte
Sociais 74. Perda de práti-
30. Casas de (bovinocultura) cas culturais tradi-
14. Associação de sementes; e médio porte cionais: Rodas de
Pais e Mestres; (ovino, caprino- conversas, foguei-
31. Museu (Comu- cultura);
15. Coletivo de nidade de Tourão ras de (São João,
Educação; tem um dos 58. Apicultura; Santo Antônio,
16. Núcleos de Bases; maiores museus 59. Criação suí- São Pedro), brin-
da região); nos e aves (com cadeiras de rodas
17. Conselho (Cirandas, cai no
Escolar; pouca expressi-
vidade); poço, anel), qua-
18. Grêmio Estu- drilhas, cantorias,
dantil; reisados;
(Continua)

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


147
(Continuação)

FORMAS PAR- FONTES EDUCA-


TICIPATIVAS DE TIVAS DO MEIO LUTAS SOCIAIS
FORMAS DE
(NATURAIS,- E CONTRADI-
GESTÃO E OR- TRABALHO
CULTURAIS E ÇÃO
GANIZAÇÃO SOCIAIS)
19. Colegiado de 32. Festas religio- Agroecologia e Problemas Am-
gestão; sas padroeiro(a): Semiárido bientais
20. Coletivo de Assentamento 60. Experiências 75. Queimadas;
educadores; Santana, Barga- agroecológica na
do, Tira-Teima, 76. Lixo;
21. Coletivo de comunidade de
Agrobel, Santana Tourão e Viração; 77. Desmatamento;
funcionários. dos Dimingos e
61. Experiências 78. Secas perió-
Barreiros; dicas;
de convivência
33. Terço dos com o Semiárido 79. Erosão do
homens; (Educação do solo;
34. Danças indí- Campo); 80. Uso Inade-
genas (Toré); 62. Quintais pro- quado da água;
35. Contação de dutivos; 81. Uso de agrotó-
histórias e rodas 63. Plantio xicos.
de conversas; de hortaliças Ameaça à Segu-
36. Vaquejada; comestíveis e rança e Sobera-
37. Escolas do medicinais (pre- nia Alimentar
Campo; dominantemente
para o consumo 82. Consumo de
38. Sede da coo- familiar); alimentos indus-
perativa; trializados;
Outras Fontes de
39. Lanchonete Renda 83. Agricultura
(sem funciona- convencional
mento); 64. Servidores (capitalista);
públicos (munici-
40. Escola Indígi- pais e estadual); 84. Perda das
na Alto da Catin- sementes e raças
gueira; 65. Trabalhadores crioulas;
autônomos;
41. Posto de Saú- Comercialização
de; 66. Beneficiários
de Programas 85. Concorrência
Infraestrutura Sociais (Bolsa-Fa- do comércio
42. Parque de mília); individual com o
vaquejada; comércio coleti-
67. Perca-Safra, vo nos assenta-
43. Estábulos; Salário Materni-
44. Apiários; mentos;
dade);
45. Currais; 86. Comercializa-
46. Galpões; 68. Beneficiários ção e escoamen-
47. Armazém de do INSS (aposen- to da produção
produção; tadorias). por atravessa-
48. Centro de dores;
abestacimento Êxodo Rural
(Bodega)
49. Casa do mel. 87. De famílias e
Jovens.
Fonte: Escola de Ensino Médio Florestan Fernandes (2019, p. 55-56).

É evidente que esse processo de descolonização


do saber é bem exigente, pois o processo formativo dos

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
148

educadores(as) tende a afirmar que o currículo é algo


posto e deve ser seguido na integra, portanto saberes
mediados por teorias “bem creditadas.” Contudo, é pre-
ciso reforçar a ideia de que muitas teorias bem credita-
das, com o tempo, podem ser “derrubadas”, tendo em
vista novas descobertas ou opiniões. A exemplo, tem-se
a teoria da evolução de Charles Darwin ou a de Lamarck,
que “superaram”, para uma considerável fatia da popu-
lação, a teoria da criação. 
Assim, teoria é o agrupamento de pensamentos,
cujo limiar é de difícil conceituação. Segundo Culler
(1999), “teoria, nos estudos literários, não é uma explica-
ção sobre a natureza da literatura ou sobre os métodos
para seus estudos (...). É um conjunto de reflexão e es-
crita, cujos limites são excessivamente difíceis de defi-
nir” (CULLER, 1999, p. 12-13). Um dos campos que mais
faz uso da teoria é a literatura, pois, com isso, vem expli-
car como distinguir um texto literário do não literário,
aplicar conceitos sobre literatura. Vale um enlace aqui:
sempre houve literatura, mesmo sem ser assim conheci-
da, e vale saber que, segundo Samuel (2005, p. 7), “a arte
literária não se pode identificar. Reúne uma coleção de
ciências que alguns tratam por ‘Teoria da Literatura’, ou-
tros de ‘Teoria Literária’”. Todavia é instigador saber que
àquela época “não havia Literatura”; o termo ainda não
se havia sido teorizado (CULLER, 1999, p. 28).
E na existência da literatura, retomando a existên-
cia histórica, é que evidenciam-se as várias práticas lite-
rárias dos povos camponeses – a literatura popular (o
cordel, cantorias, etc.), que amplamente era produzida
e reproduzida por pessoas sem escolarização, mas dota-
das de talento. Devido à realidade sociogeoeconômica
desses artistas populares, as teorias clássicas não consi-
deravam esse fazer literário como Literatura.

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


149

Diante disso, o trabalho político e pedagógico da


Escola do Campo Florestan Fernandes é mediado pela
valorização e visibilização das expressões literárias, que
historicamente foram produzidas e manifestadas no
território camponês.
A partir do elucidado, destacamos algumas das
expressões literárias desenvolvidas na experiência pe-
dagógica da Escola Florestan Fernandes:

A literatura de cordel – é muito presente nas can-


torias, nos reisados, e essa prática literária é presente
no chão da escola nos momentos coletivos de místicas,
nos encontros das juventudes e na sala de aula. Abaixo,
podemos ver um trecho de um poema do poeta Elias
Alves, do Assentamento Monte Alegre – Tamboril, reci-
tado pelos estudantes da Escola do Campo Florestan
Fernandes, na culminância da Porção da Realidade. O
poema diz:

Tudo para acontecer


Precisa de um ponto de partida,
Olhe para si mesmo
E veja como estar a sua vida.
Preste bem atenção
Até a sua alimentação
Não deve ser qualquer comida.

Todos nós temos que ter


Uma educação alimentar
Dê exemplo a um filho,
A quem estiver no seu lar.
Uma coisa importante
E mais que interessante
Chama-se agricultura familiar.

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
150

O povo camponês
É gente de fibra e valor,
Muitos podem até não ver
A luta de quem nunca se cansou.
Veja só minha gente
Na chuva e sol quente
A força de um trabalhador.

O teatro – é outra prática que ganha dimensões


consideráveis no processo educativo, pois é um me-
canismo pedagógico importantíssimo para a compre-
ensão de alguns conteúdos e dimensões da realidade,
portanto o Teatro do Oprimido é a forma de expressão
mais popular quando trabalhamos a Porção da Realida-
de, sendo esta a articuladora dos conteúdos curriculares
que fazem o vínculo com a realidade. Compreende-se
por porção da realidade “um pedaço, uma parte” da re-
alidade que está presente no inventário da realidade.
A mística – Outro momento que a escola tem como
expressão de literatura é a mística. Para o MST, a mística é: 
(...) a capacidade de se comover diante do mis-
tério presente em todas as coisas. Não é pensar
as coisas, mas sentir as coisas tão profundamen-
te que percebemos o mistério fascinante que
as habita. O que importa é sentir sua atuação e
celebrar a presença desta realidade essencial.
[...] mística é a alma de um povo. A mística é a
alma do sujeito coletivo, a identidade que se re-
vela como uma paixão, que nos ajuda a “sacudir
a poeira e dar a volta por cima”. [...] mística é o
momento de reafirmar o compromisso com os
ideias de uma concepção, de difundi-la social-
mente (...) (PELOSO, 2012, p. 89-90).
As místicas são momentos de socialização de lite-
ratura, acontecem quinzenalmente e os estudantes pro-

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


151

tagonizam o momento expondo uma diversidade de


expressões literárias, geralmente (não é regra) começa
com uma música ambiente (que por vezes é um som de
suspense). Posteriormente, ocorre a recitação de uma
poesia dos materiais sistematizados pelo MST, entram
alguns símbolos (de acordo o tema abordado), fazem
algumas denúncias e anúncios, em seguida, ouve-se
uma música ou recitação de poema e conclui-se com
a entoação do Hino do MST. Ao final desse momento, o
ambiente fica com uma diversidade de simbologias das
mais diversas linguagens sobre um tema previamente
definido pelo coletivo das turmas. Dessa forma, o uso
estético da linguagem escrita e corporal, nesse processo
organizativo, se mostra por meio da revelação da litera-
tura no território camponês, desvelando e conhecendo
a realidade e transformando-a através da arte literária. 
A dança – Outra expressão literária presente na
dinâmica da escola é a dança, quando se tem um grupo
de dança composto por estudantes da Escola Flores-
tan Fernandes e do assentamento, que tem o ápice de
suas apresentações no carnaval da Escola. Anualmente
são feitas apresentações levantando temas emergentes
na sociedade atual, sendo recorrente nos últimos anos
a denúncia ao assédio sexual às mulheres; combate a
LGBTQIA+fobia, racismo e fascismo. Então, os discentes
constroem suas paródias, fantasias e o desfile, tornando
o momento bem dinâmico e de socialização de conhe-
cimento crítico, também.
A Música – é bastante utilizada nos diversos mo-
mentos, desde a acolhida dos estudantes, no início de
cada semestre, até nas místicas, nas aulas, nos encon-
tros de educadores (as), assim como na unidade pro-
dutiva rádio escola. A escola compreende que a mú-

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
152

sica é instrumento formativo de consciência, portanto


precisa ser analisada desde o ritmo, a letra e contexto
de produção musical: para quê, para quem, finalidade,
apropriação cultural. Procuram-se fazer análises de va-
riados ritmos, na busca pela valorização das culturas e
análise das letras, porque estas são preponderantes na
formação da consciência. 
Mediante o exposto, (re)afirmamos que a luta
educa e a pedagogia do MST, que norteia a nossa práxis
política e pedagógica, é “fermento” no processo educa-
tivo, que se torna mais dinâmico e com uma diversida-
de de espaços pedagógicos, rompendo com a ideia de
que somente a sala de aula é lugar de conhecimento
e afirmando que a Luta educa e nela a literatura está
presente. A arte literária também está presente na ocu-
pação de espaços públicos, como forma de reivindicar
políticas públicas para os territórios de reforma agrária.
Estes são também espaços de Luta e reivindicação de li-
terário, quando estão presentes as músicas da caminha-
da do povo, as místicas, as citações de poemas, as rodas
de conversas sobre temas como feminismo, LGBTQIA+,
agroecologia, dentre outros. Todos eles são espaços
formativos numa perspectiva emancipadora, portanto,
quando os estudantes participam desses movimentos,
estão se educando também através da literatura.

DA LITERATURA CLÁSSICA À LITERATURA DA CLASSE


(TRABALHADORA)

A busca pela contextualização dos conhecimentos


com a realidade é um movimento constante no ensino
de literatura na Escola de Ensino Médio do Campo Flo-
restan Fernandes. Para tanto, diversas metodologias são

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


153

utilizadas para dar conta dessa necessidade. Uma das


metodologias utilizadas no trabalho pedagógico parte
da realização de projetos de intervenção literária. A ex-
periência que destacamos neste trabalho foi feita a par-
tir de projetos, considerando o Ceará Científico, que é
uma organização da Secretaria da Educação do Estado.
Diante dessa realidade, a área das Linguagens e Códigos
escreveu o projeto intitulado “A produção literária sen-
tipensante de Rachel de Queiroz”, que ganha a cada ano
uma forma mais qualificada e, portanto, uma forma de
dinamizar o processo educativo e subsidiar na contex-
tualização dos conteúdos curriculares com a realidade.
Esse projeto no ano de 2019 obteve sucesso na
etapa escolar e foi apresentado na etapa regional da
CREDE 13, Crateús. O projeto versa na seguinte estrutura:

Justificativa do projeto

Diante da dificuldade encontrada no ambiente es-


colar para estimular os estudantes a criarem a necessi-
dade cotidiana pela leitura e escrita, emergiu a ideia de
trabalhar com esse projeto, composto por várias etapas
e diversas metodologias na busca pela apropriação do
conhecimento dos estudantes. 
O título do projeto traz um conceito presente na
sociologia latino-americana, encontrado em F ­ als-Borda
(2008) sobre o sentipensante, que de acordo com o au-
tor: “[...] nós acreditamos, na realidade, que atuamos com
o coração, mas também empregamos a cabeça. E quan-
do combinamos as duas coisas, assim somos sentipen-
santes”. Diante desse conceito, acredita-se que Rachel
de Queiroz produziu uma literatura vasta, sempre con-
siderando a realidade do povo do Nordeste, valorizando

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
154

em suas obras a simbologia desse povo, que tanto sofreu


e sofre com a ausência de políticas públicas, sobretudo
nos tempos de seca, mas que é marcado também pela
resistência e enfrentamento às adversidades do tempo.
Sendo uma literatura regionalista, expressa si-
multaneamente aspectos do cotidiano, considerando
a proposta política e pedagógica da Escola de Ensino
Médio do Campo Florestan Fernandes, que tem o pro-
cesso educativo imbricado na realidade dos trabalha-
dores(as), respaldado e sistematizado pela realidade
dos estudantes através do inventário da realidade, este,
documento norteador para o trabalho com as porções
da realidade. Intencionalmente, este projeto é também
um elemento potencializador do trabalho com as por-
ções da realidade e vice-versa, quando está sendo tra-
balhada, no ano letivo de 2019, agricultura familiar, água
e cultura popular camponesa.
Ainda nesse ensejo, com o intuito de despertar e
descobrir as potencialidades artísticas dos estudantes,
realizou-se uma série de desenhos, de caricaturas da
autora estudada. Os estudantes desenharam Rachel em
diversas etapas de sua vida e produção literária, e na
apresentação da produção artística que fizeram expu-
seram a situação histórica que retratavam e os contex-
tos influenciadores em sua produção literária.
Outro movimento extremamente importante foi a
produção de poesias autorais dos estudantes da Escola
do Campo Florestan Fernandes. Através desse projeto,
descobriu-se poetas e poetisas que, a partir de então,
abrilhantaram os momentos festivos e comemorativos
da escola com suas poesias, como: culminância das Por-
ções da Realidade, místicas, eventos promovidos pela
escola etc. 

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


155

Portanto, o trabalho com a literatura sentipensan-


te da Rachel de Queiroz não é algo apartado da realida-
de social e pedagógica dos estudantes, mas um “tempe-
ro” a mais para qualificar e dinamizar os processos de
trabalho com os descritores, com as porções da realida-
de, da disciplina de arte, literatura e língua portuguesa.
Assim sendo, o foco deve ser o estimulo à leitura, escri-
ta, oralidade, desenhos, dança e com isso a apropriação
do conhecimento historicamente acumulado pela hu-
manidade nessa linha literária.

Objetivo Geral

Ajudar os estudantes a elevar o nível de conheci-


mento sobre a literatura da autora cearense Rachel de
Queiroz, fazendo interface com a musicalidade de Luiz
Gonzaga.

Específicos

• Aprofundar os conhecimentos sobre o cenário


político e econômico do Campo no século XX, conside-
rando os enfoques fenomenológicos presentes na obra
O Quinze, de Rachel de Queiroz, bem como analisar o
conhecimento epistemológico produzido sobre a temá-
tica da seca no Nordeste;
• Aguçar o hábito pela leitura e escrita dos estudan-
tes, a partir das abordagens escritas de Rachel de Quei-
roz, com foco n’O Quinze e Memorial de Maria Moura;
• Elucidar o conhecimento produzido pela Rachel
de Queiroz, fazendo o comparativo com a atualidade,
considerando que a região Nordeste passou por um pe-
ríodo de seca recentemente;

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
156

Metodologia

A busca pelo conhecimento perpassa diversas


etapas, dentre elas, a metodologia se faz de suma im-
portância, porque é o espaço de explicitar o caminho a
percorrer para obtenção dos objetivos e, por conseguin-
te, a apropriação do saber. Por considerar este projeto
de grande relevância para o aprofundamento do conhe-
cimento dos discentes, a primeira etapa será a apresen-
tação para os estudantes, pais e mães e comunidade es-
colar, pois considera-se que ambos serão fundamentais
para o êxito do projeto.
A segunda etapa é composta pela realização de 02
(dois) Chás Literários, que serão espaços lúdicos e dinâ-
micos para ajudar na apropriação do conhecimento ine-
rente à autora Rachel de Queiroz e suas obras. O I Chá
Literário terá como ponto central a apresentação da
biografia da Rachel de Queiroz, para que os estudantes
tenham o primeiro contato com a autora, sua história de
vida e dedicação à escrita e publicização dos textos es-
critos, visando aguçar a curiosidade dos alunos(as) para
a leitura das obras. 
O II Chá Literário consistirá em assistir ao filme
Memorial de Maria Moura, sendo uma forma de trazer
presente a discussão sobre imenso painel sem retoque
de relações sociais, culturais, morais e afetivas entre per-
sonagens sábias e comovidamente delineadas. Rachel
de Queiroz adotou um estilo narrativo em que muitas
sequências se encontram montadas à maneira de uma
telenovela, tanto é que a obra foi adaptada para a tele-
visão em uma minissérie. 
Posteriormente, será disponibilizado o livro O
Quinze para a leitura, considerando que a leitura é algo

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


157

fundante na vida do estudante, tem-se a intencionali-


dade de trabalhar essa etapa de forma dialética, con-
siderando o pensamento de Paulo Freire na obra A im-
portância do ato de ler (1988), quando afirma que: “A
leitura do mundo precede a leitura da palavra”, ou seja,
fazer o movimento de estabelecer relação do conhe-
cimento popular, no sentido amplo como nos ensina
Lukács, e  o conhecimento científico, no sentido estrito,
para favorecer a compreensão dos estudantes da rea-
lidade do povo nordestino na década de 15. A culmi-
nância será feita com a socialização dos resumos produ-
zidos pelos estudantes e impressões críticas, mediadas
pelos educadores(as) de língua portuguesa, momento
de aprofundamento teórico por parte dos estudantes. 
Diante de todas essas atividades, acredita-se que
os educados (as) já estarão com um acúmulo significa-
tivo de conhecimento sobre a autora e preparados para
fazerem algumas produções. A fim de aguçar ainda mais
as potencialidades artísticas e culturais, serão feitas pro-
duções de desenhos retratando algumas cenas das duas
obras estudadas, construção de uma maquete da casa
da autora e pintura em tecido das principais obras de
Rachel de Queiroz. 
Fazendo interface com a musicalidade de Luiz
Gonzaga, será reconstituído o grupo de dança da escola
a partir da música “A triste partida”, que em sua letra
retrata – assim como a obra O Quinze – a realidade dos
retirantes por conta da problemática da seca. Em rela-
ção à música de Luiz Gonzaga, será feito num primeiro
momento a apresentação da letra da música e poste-
riormente a coreografia contendo a simbologia do que
é dito, assim como o trabalho com a interpretação da
letra, considerando alguns descritores do SPAECE de

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
158

língua portuguesa, como o descritor 5 – que pede para


trabalhar a competência dos estudantes ao interpre-
tar texto com o auxílio de material gráfico diverso – ; o
descritor 11 –  Estabelecer relação causa/consequência
entre partes e elementos do texto; o descritor 20 –  Re-
conhecer diferentes formas de tratar uma informação
na comparação de textos que tratam do mesmo tema
em função das condições em que ele foi produzido e
daquelas em que será recebido.

Resultados esperados

Espera-se que os estudantes da unidade de ensi-


no se apropriem desse conhecimento e criem o hábito
da leitura e escrita a partir de uma ótica crítica do que
está escrito, fazendo o vínculo com a realidade. 
Outro resultado esperado é que os estudantes
despertem o interesse pela produção artística na produ-
ção de desenhos, na dança e na arte de ler e interpretar.

Métodos avaliativos

Para verificar se os objetivos estão sendo exitosos,


cada atividade desenvolvida terá um método avaliativo.
No caso dos chás literários, será avaliada a participação,
assiduidade e anotações feitas no caderno pelos estu-
dantes, já a leitura do livro será avaliada através de uma
ficha de leitura e produção de um resumo comentan-
do o entendimento sobre as partes que cada estudante
considerou mais emblemática na obra e a socialização
em sala de aula será avaliada por meio de um ­seminário.
Serão avaliadas ainda as produções e exposições
de desenhos nas galerias da escola e nos ambientes

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


159

educativos, para apreciação dos demais estudantes,


funcionários e comunidade escolar. Será realizado ain-
da na culminância das porções da realidade a coreo-
grafia da dança, como forma de valorizar e resgatar as
expressões da cultura popular camponesa, assim como
no show de talentos, que acontecerá num momento co-
letivo, no assentamento.
Após todo o desenvolvimento desse projeto, ava-
liou-se que os objetivos foram alcançados com êxito, con-
tatando uma apropriação por parte dos discentes sobre
os conhecimentos basilares relacionados à autora e algu-
mas de suas obras, fazendo leituras críticas sobre as mes-
mas, mediante rodas de conversas e registros no caderno.

Considerações Finais 

A realização desses trabalhos de descobertas, pro-


dução e sistematização da literatura no território cam-
ponês possibilitou grande ascensão intelectual, tendo
em vista os estudos intensos (e tensos, algumas vezes)
realizados, outrora muito compensatórios. Causa-nos
grande motivo de felicidade, pois é o despertar para as
potencialidades artísticas e literárias dos estudantes à
medida que ressignificam a literatura local.
Foi todo um processo de aprendizagem que, ao
se fazer uma análise cronológica do percurso traçado,
vê-se quanta aprendizagem foi explorada e quanta ain-
da tem-se que explorar. Conheceram a si mesmos de
forma melhor, compreendendo suas subjetividades
através da literatura e dos fazeres artísticos, a partir das
práticas escolares vivenciadas. Perceber os estudantes
enxergando seu próprio crescimento significa bastante
para a prática pedagógica.

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
160

Essas experiências vivenciadas são a afirmação de


que os/as jovens camponeses/as podem, sim, ocupar o
latifúndio do saber, e o estão fazendo. A cada experi-
ência, aprendizagens e significações, estiveram na ob-
servação dos/as estudantes que o conhecimento não é
isolado. Isso foi possível devido às várias disciplinas que
contribuíram no desenvolvimento do trabalho, como
História, Geografia, Português, Redação, Artes, Educação
Física e as Línguas Estrangeiras.
Dessa forma, o povo camponês vai ocupando seu es-
paço de direito, que historicamente foi negado pelas elites
aristocráticas e burguesas. Reconhecem-se como sujeitos
agentes da construção do conhecimento para transfor-
mação social, para reparação de direitos negados e para a
construção de uma literatura popular e camponesa. 
Então, diante de todo o feito estudado e produ-
zido, sente-se a necessidade de continuar a afirmar a
construção e sistematização dos conhecimentos dos
povos camponeses, pois este trabalho impulsiona a ne-
cessidade de conhecer outros saberes e de explorar as
potencialidades artísticas dos/as assentados/as, contra-
-hegemonizando os padrões dos cânones literários e se
fazendo resistir às literaturas elitizadas e burguesas, ao
apresentar uma literatura com sua própria identidade.

Referências 

CALDART, R.S. (Org.) Caminhos para a transformação da


escola: reflexões desde práticas da licenciatura em edu-
cação do campo. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
CALDART, R. S. (Org.) Caminhos para transformação da
escola: trabalho, agroecologia nas escolas do campo.
São Paulo: Expressão Popular, 2017.

ALCIDES ALVES DE SOUSA • JOÃO ANTONIEL DA SILVA PINTO


161

CULLER, J. Teoria da Literatura: Uma Introdução. Trad.:


Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca, 1999.
ESCOLA DE ENSINO MÉDIO FLORESTAN FERNAN-
DES. Projeto Político Pedagógico. Monsenhor Tabosa /
CE, 2019.
FALS-BORDA, O. Una sociología sentipensante para
América Latina (antología). Bogotá, Colombia: Siglo del
Hombre, 2008.
PELOSO, R. Trabalho de base: seleção de roteiros or-
ganizados pelo Cepis. Ranulfo Peloso (Org.). São Paulo:
Expressão Popular, 2012.
SAMUEL, R. Novo Manual de Literatura. 13ª ed., Petrópo-
lis: Vozes, 2005.

A ARTE DE LAVRAR PALAVRAS: O ENSINO DE LITERATURA


NA ESCOLA DE ENSINO MÉDIO DO CAMPO FLORESTAN FERNANDES
162

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA:


PERSPECTIVAS E REFLEXÕES NA ESCOLA QUILOMBOLA
LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO

Francisco Alex de Oliveira Farias


João Batista da Silva

Introdução

A

educação é um direito universal e como tal,
deve ser garantido pelo Estado para todos. A
Declaração Universal dos Direitos Humanos
traz em seu artigo XXVI a obrigatoriedade da educação
primária e gratuita. Apesar desse tratado ter sido pro-
posto e promulgado há mais setenta anos, em muitos
países, ainda existe um imenso caminho para a efetiva-
ção desse direito, especialmente na área de educação
especial, que mesmo com alguns avanços, ainda não
consegue atender a todos.
A educação constitui elemento fundamental para
a efetivação do processo de inclusão social, podendo
contribuir para a formação de um cidadão ativo e enga-
jado nas lutas por seus direitos. Pode-se ponderar que o
conhecimento favorece o surgimento de uma socieda-
de mais justa e inclusiva, na qual as pessoas aceitem as
diferenças em seus mais variados aspectos.
A Literatura é um instrumento importante, que
pode ser utilizado em práticas educativas, sendo capaz
de abrir mentes e envolvê-las ao ponto de adquirirem
conhecimentos com potencial inovador e transfor-
mador da sociedade. Nesse sentido, o professor dessa
área precisa se amparar na ideia de preparar seus dis-

FRANCISCO ALEX DE OLIVEIRA FARIAS • JOÃO BATISTA DA SILVA


163

centes para ler e entender a sociedade em suas muitas


­contradições.
O presente trabalho traça reflexões acerca do papel
da Literatura no processo de inclusão educacional. O ce-
nário que desperta essas reflexões é a Escola Luzia Maria
da Conceição, localizada na comunidade remanescente
de quilombo de Três Irmãos, município de Croatá, região
noroeste do estado do Ceará. Este artigo preocupa-se
em evidenciar a relevância da Literatura para o desenvol-
vimento intelectual e social do educando, destacando a
importância da leitura de obras literárias que possibili-
tem discussões sobre inclusão e o respeito ao diferente.

Reflexões sobre o papel da Literatura no processo de


inclusão

A motivação para a leitura em um país onde ainda


existem analfabetos e analfabetos funcionais, como o
Brasil, se torna fator de extrema importância quando o
assunto é inclusão educacional. Tanto no âmbito aca-
dêmico quanto nos demais ambientes educacionais do
país, há uma inquietação quanto ao papel dos estudos
literários como agentes construtores de uma sociedade
mais humana e justa.
Segundo Chiaretto (2015), a Literatura pode con-
tribuir na inserção do fascinante mundo do conheci-
mento, pode constituir um caminho a ser seguido para
o estreitamento e união entre as diversas culturas, rea-
firmando os valores democráticos em meio ao mundo
globalizado e competitivo, palco de abismos econômi-
cos e educacionais.
No âmbito educacional, a inclusão é uma propos-
ta fundamental para o desenvolvimento de uma socie-

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA: PERSPECTIVAS E REFLEXÕES NA ESCOLA


QUILOMBOLA LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO
164

dade mais igualitária, na qual todos possam ter acesso


aos direitos fundamentais. Nesse contexto, o professor
se torna peça chave para a efetivação desse processo,
na medida em que media o ensino e aprendizagem de
alunos, para os quais necessita esclarecer os males da
discriminação, do preconceito e da intolerância.
De acordo com Aranha (2005), nos últimos anos,
houve um intenso movimento de parcelas da sociedade
de alguns países, direcionado a mudanças pela inclusão
de pessoas com deficiência nos sistemas educacionais
e acesso a direitos sociais. O conceito de inclusão, por-
tanto, surgiu na década de 1980, impulsionando mani-
festações que clamavam por mudanças de paradigmas
na área da educação, destacando a qualidade no ensino
e a igualdade de oportunidades.
Portanto, esses movimentos e mudanças ocorridas
nas últimas décadas, foram de fundamental importân-
cia para os rumos que a educação brasileira tomou, os
quais influenciaram a esfera social e educacional. Diante
disso, falar sobre inclusão gera reflexões que levam tan-
to ao campo educacional quanto ao social. A Literatura,
com seu caráter potencializador do conhecimento de
mundo, viabiliza a união entre essas reflexões, visto que
possibilita ao aluno adentrar em mundos diferentes e
despertar para a existência daquele que a humanidade
considera diferente.
O contexto brasileiro revela diversas contradições
sociais. Um dos conflitos de grande relevância consti-
tui aqueles de caráter agrário, onde disputas por terras
ainda excluem uma parte da população e inviabiliza a
igualdade de direitos. Segundo Águas (2012), nesse ce-
nário, existem grupos que lutam pelo reconhecimento
de seus direitos sobre parcelas desse território, as co-

FRANCISCO ALEX DE OLIVEIRA FARIAS • JOÃO BATISTA DA SILVA


165

munidades quilombolas. Estas, carregam em si, além


de resquícios de um passado escravagista, a luta diária
pelo seu espaço fundiário. Tal questão passa pelas esfe-
ras ideológicas, jurídicas, políticas e sociais. Conforme
Gomes (2008),
Em uma sociedade multirracial e pluricultural,
como é o caso do Brasil, não podemos mais con-
tinuar pensando a cidadania e a democracia sem
considerar a diversidade e o tratamento desigual
historicamente imposto aos diferentes grupos
sociais e étnico-raciais (GOMES, 2008, p.70).

Conceber o território quilombola como espaço


patrimonial, que educa e forma cidadãos para a vida,
deve ser uma das prioridades das políticas educacionais
a serem implementadas no país. Essas escolas educam
grupos de pessoas que possuem uma história de resis-
tência e grande necessidade de reconhecimento para
agir na sociedade e permanecerem no campo da luta
pelos direitos sociais.

Metodologia
De acordo com Podranov (2013), metodologia
consiste em um processo que examina, descreve e ava-
lia métodos e técnicas adotadas para investigar deter-
minado objeto de estudo. Através dela, procedimentos
são adotados com a intenção de reunir informações a
respeito de um assunto e produzir conhecimento.
Assim, a presente pesquisa é de natureza qualita-
tiva, pois analisa a relevância da literatura e do processo
educacional para a inclusão social. Significados e visões
de mundo são analisados em uma perspectiva diver-
sificada. A metodologia que orienta este estudo é de

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA: PERSPECTIVAS E REFLEXÕES NA ESCOLA


QUILOMBOLA LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO
166

cunho bibliográfico, pois se fundamenta em bibliogra-


fia de obras e autores que estudaram sobre o assunto e
também em arquivos disponíveis na Escola Quilombola
Luzia Maria da Conceição, como o projeto político pe-
dagógico, dados do censo escolar e outros materiais.
Conforme Gil (2008), a pesquisa dialética “fornece
as bases para uma interpretação dinâmica e totalizan-
te da realidade, uma vez que estabelece que os fatos
sociais não podem ser entendidos quando considera-
dos isoladamente, abstraídos de suas influências políti-
cas, econômicas culturais etc.” Este artigo, baseia-se em
análise da realidade das escolas quilombolas e a impor-
tância da Literatura para inclusão social, utilizando-se,
para tanto, de estudos que partem da realidade de uma
comunidade, em particular, a comunidade quilombola
de Três Irmãos.

Escola Quilombola Luzia Maria da Conceição: um olhar


sobre a comunidade e a escola

A escola quilombola Luzia Maria da Conceição foi


criada para atender as necessidades educacionais dos
remanescentes da comunidade quilombola de Três Ir-
mãos e está localizada a vinte três quilômetros da sede
do município de Croatá. É a primeira escola estadual de
ensino médio do Ceará a atender os povos quilombolas.
A construção dessa escola representa a força e a luta
desse povo, que sempre teve a educação como uma das
suas mais altas bandeiras.
O povo dessa comunidade entende que, por meio
da educação, pode almejar uma vida mais digna, na
qual seus direitos sejam garantidos e seus filhos pos-
sam sonhar com um futuro mais justo e igualitário, livre

FRANCISCO ALEX DE OLIVEIRA FARIAS • JOÃO BATISTA DA SILVA


167

de preconceitos de qualquer natureza. Nesse sentido,


entende-se a educação em uma perspectiva freireana,
libertadora, em que os sujeitos se assumem como trans-
formadores da sua própria realidade. De acordo com
Freire (2014),
Respeitar a leitura de mundo do educando sig-
nifica tomá-la como ponto de partida para a
compreensão do papel da curiosidade, de modo
geral, e da humana, de modo especial, como um
dos impulsos fundantes da produção do conhe-
cimento. É preciso que, ao respeitar a leitura de
mundo do educando para ir mais além dela, o
educador deixe claro que a curiosidade funda-
mental à inteligibilidade do mundo é histórica e
se dá na história, se aperfeiçoa, muda qualitativa-
mente, se faz metodicamente rigorosa. E a curio-
sidade assim metodicamente rigorizada faz acha-
dos cada vez mais exatos (FREIRE, 2014, p.120).

Dessa forma, a comunidade, compreendendo a


relevância da educação como parte do processo de re-
conhecimento e construção de sua identidade, buscou
junto às autoridades competentes a edificação de uma
escola. Os objetivos eram muito além da construção
de um prédio escolar, baseavam-se na implementação
de um projeto educativo que respeitasse a sua cultura,
suas crenças, tradições e seu modo de viver.
O sonho da escola quilombola nasce junto às lutas
pela regularização de seu território, ainda nos primeiros
anos do século XXI. À princípio, os próprios morado-
res do quilombo construíram um salão de bambu, que
apesar de ser uma improvisação, recebia as crianças e
jovens quilombolas, dando, dessa forma, um passo fun-
damental para a concretização das aspirações há tem-
pos vislumbradas.

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA: PERSPECTIVAS E REFLEXÕES NA ESCOLA


QUILOMBOLA LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO
168

Após muita luta junto ao poder público, no ano de


2012, foi construído um prédio em alvenaria, que possuía
apenas duas salas de aula, uma cozinha e dois banheiros,
mas possuía um imensurável significado para todos os
moradores da comunidade quilombola de Três Irmãos.
A escola é considerada a primeira do Estado a tra-
tar de forma pedagógica o estudo das tradições
afro-brasileiras e sua construção é um retrato de
luta da comunidade em manter viva suas tradi-
ções. Erguida em alvenaria, a escola substituiu o
salão de terra batida cercada de bambus onde as
crianças de Três Irmãos estudavam. Com o tem-
po, as famílias perceberam que o espaço não era
o mais adequado para seus filhos e decidiram de-
mandar ao Governo do Estado a construção de
uma escola (ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO
SOCIAL DO INCRA, 2015).
A escola teve seu ato de criação publicado no Diário
Oficial do Estado do Ceará em quatro de novembro de
2015, através do decreto nº 31.811, recebendo desde en-
tão alunos das três séries do ensino médio, educação in-
fantil e primeiras séries do ensino fundamental. Em 2016,
foi realizada a colação de grau da primeira turma de Edu-
cação de Jovens e Adultos na escola, por meio da qual
se formaram vinte estudantes. A conclusão dessa turma
significou a concretização de um sonho, representando
muito além das conquistas individuais dos formandos,
sendo um marco simbólico para todos que lutaram para
que a comunidade pudesse ter acesso à educação.
Um fato de grande relevância nesse contexto é o
trabalho de inclusão realizado na escola, que já em sua
primeira turma de ensino médio, formada entre os anos
de 2015 e 2017, possibilitou que duas alunas surdas pu-
dessem concluir essa etapa educacional. Dessa forma,

FRANCISCO ALEX DE OLIVEIRA FARIAS • JOÃO BATISTA DA SILVA


169

a instituição tem acolhido alunos com necessidades


educacionais específicas, principalmente alunos surdos,
desde o princípio de seu funcionamento.

Figura 1 – Registro de uma aula de acompanhamento ao


aluno surdo

Fonte: Arquivo pessoal.

No ano de 2020, a escola atendeu dois alunos sur-


dos e um aluno com deficiência intelectual, que teve na
literatura um importante instrumento de socialização,
inserção e acessibilidade. A prática da leitura possibili-
ta a crianças e adolescentes com deficiência o contato
com diferentes culturas, oportunizando a aprendizagem
e o acesso a novos conhecimentos e visões de mundo.

Literatura na sala de aula: realidade da Escola Quilombola


Luzia Maria da Conceição

A Literatura possibilita uma leitura do mundo sob
diversas perspectivas, oferecendo ao leitor uma multi-

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA: PERSPECTIVAS E REFLEXÕES NA ESCOLA


QUILOMBOLA LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO
170

plicidade de olhares que irão influenciar a forma como


se vê o mundo e, consequentemente as escolhas. O
poder da Literatura como mecanismo motivador da in-
clusão social está na capacidade de abrir mentes para
diversas realidades, ajudando a construir seres críticos e
leitores de mundo.
A Escola Quilombola Luzia Maria da Conceição
possui em suas raízes intensas lutas por direitos e inclu-
são social. Os discursos voltados para as lutas e direitos
sociais estão presentes na comunidade e fazem parte
da construção e identidade da escola. A partir desses
pressupostos, as aulas de Literatura para as turmas de
ensino médio buscam sempre estar direcionadas a es-
sas discussões.

Figura 2 – Registro de aula de literatura ao ar livre

Fonte: Arquivo pessoal.

A Literatura promove a elaboração de significados


e interpretações da realidade, constituindo, assim, uma
forma privilegiada da Linguagem, através do seu poten-

FRANCISCO ALEX DE OLIVEIRA FARIAS • JOÃO BATISTA DA SILVA


17 1

cial no processo educativo e no desenvolvimento da


sensibilidade estética. De acordo com Candido (1995),
Entendo aqui por humanização o processo que
confirma no homem aqueles traços que reputa-
mos essenciais, como o exercício da reflexão, a
aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacida-
de de penetrar nos problemas da vida o senso da
beleza, a percepção da complexidade do mun-
do e dos seres, o cultivo do humor. A literatura
desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos
e abertos para a natureza, a sociedade, o seme-
lhante (CANDIDO, 1995, p. 249).

O exercício da reflexão, como sugere o autor, con-


verte-se em instrumento de poder, o qual possui estrei-
ta ligação com a clareza das reivindicações por direitos
sociais e pelos espaços de poder. Além de promover a
criticidade, a Literatura desperta ainda o indivíduo para
a complexidade do mundo e dos outros seres.
As experiências vivenciadas pelos alunos e profes-
sores na Escola Quilombola Luzia Maria da Conceição
demonstram a dimensão da importância da Literatura
como recurso de inclusão, tanto social quanto educa-
cional. O ano de 2016 marcou o início de atividades de
grande importância para a inclusão educacional de alu-
nas surdas da referida escola, as quais passaram a ter o
apoio de um profissional intérprete da Língua Brasileira
de Sinais.

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA: PERSPECTIVAS E REFLEXÕES NA ESCOLA


QUILOMBOLA LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO
172

Figura 3 – Registro aula a uma das turmas com duas alunas


surdas

Fonte: Arquivo pessoal.

As alunas não eram iniciadas na alfabetização de


Libras e passaram a conhecer e aprender a língua por
meio da Literatura surda, trabalhada pelo professor
intérprete. Para tanto, recursos como imagens e estra-
tégias de ensino específicas para alunos surdos foram
adotadas.
Segundo Karnopp (2008), a Literatura surda pode
ser definida como a produção literária de textos escri-
tos em sinais, dando ênfase à linguagem visual. Esse viés
literário concebe a comunidade surda como um grupo
cultural e linguístico diferente. A partir dessas ativida-
des, as alunas tiveram um grande evolução quanto à
interpretação de textos, escrita e participação nas au-
las de Literatura, amplamente articuladas com projetos
voltados para o incentivo à leitura.
Observa-se, portanto, que a Escola Quilombola
Luzia Maria da Conceição é palco de experiência educa-
cionais e sociais de profundo significado. Nesse contex-

FRANCISCO ALEX DE OLIVEIRA FARIAS • JOÃO BATISTA DA SILVA


173

to, a Literatura apresenta-se como instrumento essen-


cial de inclusão social e educacional, que se preocupa
com a construção de um ambiente saudável de conhe-
cimento, cenário de educação e formação para alunos
críticos e sujeitos sociais ativos.

Considerações Finais

O presente trabalho ressalta a importância da uti-
lização de instrumentos educacionais para a implemen-
tação da inclusão social e educacional, dando ênfase
à Literatura como ferramenta norteadora para educa-
dores cada vez mais comprometidos com essa causa.
Nesse sentido, a leitura pode funcionar como mediado-
ra entre os diversos saberes, sendo um elo importante
para a inclusão.
O cenário de estudo para esta pesquisa, a Esco-
la Quilombola Luzia Maria da Conceição, demonstra o
quanto a Literatura é determinante para incluir os alu-
nos no processo educativo, estes com necessidades
educacionais ou não. Esse recurso, como instrumento
de inclusão social, possibilita a realização de diversas
atividades que trabalham a sensibilidade do aluno, tor-
nando-o crítico e curioso em relação ao mundo. Como
instrumento de inclusão educacional, cria estratégias
pedagógicas que viabilizam o ensino e a aprendizagem
de alunos com dificuldades educacionais.
Espera-se com este estudo incentivar produções
acadêmicas e pesquisas que estejam preocupadas em
trabalhar a Literatura como uma área do conhecimento,
repleta de possibilidades quanto aos processos de in-
clusão social e educacional.

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA: PERSPECTIVAS E REFLEXÕES NA ESCOLA


QUILOMBOLA LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO
174

Referências

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FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessá-
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GOMES, N. A questão racial na escola: desafios colocados
pela implementação da Lei 10.639/03. In: CANDAU, V. M.
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culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis: Vozes, 2008.
INCRA – INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO
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KARNOPP, L. Literatura Surda. Universidade Federal de
Santa Catarina Licenciatura em Letras-Libras na Moda-

FRANCISCO ALEX DE OLIVEIRA FARIAS • JOÃO BATISTA DA SILVA


175

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Texto-Base.pdf. Acesso em: 15 set. 2020.
PRODANOV, C. C; FEREITAS, E. C. Metodologia do tra-
balho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do
trabalho acadêmico. 2. ed. – Novo Hamburgo: Feevale,
2013.
UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação para To-
dos: plano de ação para satisfazer as necessidades bási-
cas de aprendizagem. Jomtiem/Tailândia, 1990.

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E LITERATURA: PERSPECTIVAS E REFLEXÕES NA ESCOLA


QUILOMBOLA LUZIA MARIA DA CONCEIÇÃO
176

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE


TORÉM E DO MODO DE FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ
DE ALMOFALA-CE

Francisco Elisnaldo de Sousa 

Introdução

E
ste texto tem por objetivo mostrar a relação
existente entre linguagem e sociedade a par-
tir do Torém (Ritual Sagrado), na comunidade
de Varjota do Aldeamento Tremembé de Almofala-CE.
Para tanto, nos baseamos, principalmente, nos estudos
sobre o fenômeno da variação linguística de Alkimim
(2005), Monteiro (2000) e Tarallo (1997), bem como nos
trabalhos de Seraine (1955) sobre a cultura Tremembé.
Percebemos que muitas palavras que são expressas
na comunidade Tremembé, por meio do ritual Torém, se
configuram em um leva-e-traz. Ou seja, um processo de
ida e volta das forças e poderes que os Tremembé têm,
remetendo a um campo circular de forças entre os indi-
víduos, bem como a um linguajar próprio da comunida-
de indígena Tremembé de Almofala. Representa ainda a
língua indígena resistente desse povo e o modo como o
Torém está ligado ao campo circular do cotidiano des-
ses índios. Ocorre também com o intuito de demonstrar
a ligação entre os Tremembé e a natureza, numa pers-
pectiva de linguagem e representatividade em forma de
manifesto de escrita e variedades dessa língua.
O aspecto linguístico específico da comunidade
Tremembé do Aldeamento de Almofala se caracteriza por
diversos fatores, sendo manifestado em diversas formas,

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


177

inclusive no modo de falar e de cantar as músicas do ri-


tual. Essas manifestações expressas pelos falantes apare-
cem mais notadamente nas músicas do Torém, demons-
trando fortemente uma relação entre língua e sociedade.
Outro fator demarcante da peculiaridade dessa
comunidade é a maneira como os indivíduos usam o
próprio corpo para expressar e transmitir a mensagem,
pois esta, na maioria das vezes, se faz entendida apenas
por quem faz parte do contexto. Isso ocorre porque a
pessoa que está falando usa muito o corpo para men-
cionar algo em sua fala. Esse uso corporal se faz comum
no que diz respeito ao indígena ficar apontando pala-
vras, frases e/ou expressões dentro de seu discurso para
completar o enunciado. Para ilustrar tal informação,
usamos como exemplo o fato da pessoa ser questiona-
da sobre qualquer assunto e, em vez de responder que
não sabe, como de costume, ela simplesmente gesticula
levantando os ombros simultaneamente e soltando os
mesmos igualmente e rapidamente, dando a entender
que não sabe sobre o que foi perguntado. Outra ma-
neira de ilustrar essa forma própria de expressão ocorre
quando, no cotidiano, a expressão ‘hum’– sendo a letra
(agá-h) é pronunciada como se fosse a letra erre. Isso
ocorre no momento em que um indivíduo faz uma per-
gunta e o outro responde imediatamente com essa ex-
pressão, configurando uma resposta afirmativa, um sim
diante da pergunta feita. E se a resposta for negativa,
ou seja, um ‘não’, o indivíduo costuma apenas balançar
a cabeça de um lado para o outro, da direita para a es-
querda ou vice-versa. Ou seja, esses gestos e tipos de
sons ou termos são muito específicos desse povo, de-
monstrando uma forma própria de comunicação, seja
pela expressão oral seja pela exposição corporal.

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E DO MODO DE


FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA - CE
178

O povo Tremembé se distingue por esse e por


outros fatores diante dos outros povos indígenas e das
outras sociedades. Ele vive à zona costeira da região no-
roeste do estado do Ceará, sendo dividido em dezesse-
te comunidades, que ficam subdivididas entre zona da
mata e zona da praia, distribuídos dentro de três muni-
cípios, Itarema, Itapipoca e Acaraú.
A comunidade Tremembé vive hoje reivindicando
seus direitos, conforme é comum a todos os outros po-
vos indígenas e, além disso, luta por suas terras, as quais
foram invadidas pelos posseiros. Os índios sobrevivem
da pesca, da agricultura familiar (plantio da mandioca,
feijão, milho, gergelim) e das rendas de vendas de cocos
e produtos artesanais feitos por alguns indivíduos e dos
poucos ganhos financeiros que surgem na comunida-
de, além dos recursos dos programas sociais do Gover-
no Federal. O fator econômico é um dos aspectos que
favorecem a migração dos indígenas para os centros
urbanos, implicando na perda da língua própria e incor-
porando outros dialetos de sociedades não indígenas,
permitindo, assim, a não manifestação de suas próprias
atividades culturais e, consequentemente, o distancian-
do da sua identidade original.
Contudo, não é fácil para as comunidades indíge-
nas manterem viva toda uma cultura original dos an-
tepassados e, principalmente, quando se fala de uma
língua, uma vez que há uma predominância da língua
portuguesa sendo imposta nas comunidades. Mais di-
fícil ainda é manter as características que especificam
essa comunidade, ou seja, as variantes linguísticas, pois
há todo um progresso chegando a todos os lugares e,
com ele, toda uma influência para os indivíduos. Dessa
forma, a tendência é a adesão das pessoas, de forma in-
consciente e às vezes conscientemente, a essas formas

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


179

de falar das outras culturas. E como as camadas subal-


ternizadas tendem a seguir as práticas e dialetos das ca-
madas dominantes, a tendência é que esses indivíduos
percam suas variantes e passem a falar as de outros, pois
quem fala dialetos de menor prestígio se sente inferior
a quem fala os de maior prestígio, o das pessoas que
moram em centros urbanos, ou seja, quem mora em
centros rurais e/ou indígena se sente menor em relação
a quem mora nas metrópoles. Isso ocorre por causa das
discriminações por parte de quem mora nos centros ur-
banos, por isso a necessidade de se fazer uma análise
sociolinguística sobre as variantes dessa comunidade.
Porém, há de se ressaltar a importância dessas
peculiaridades para a riqueza cultural do município, do
estado e do país. Essas formas específicas de expres-
sões, sejam elas indígenas ou de qualquer outra comu-
nidade, os modos próprios de falar, que são a variação
linguística, contribuem para a diversidade da nação e
denotam uma riqueza significativa para o estado. Pode-
mos afirmar ainda que esses dialetos diferenciados ou
jeitos próprios da expressão oral de cada comunidade
não denotam inferioridade quando comparados a ou-
tras populações, pelo contrário, apontam o tamanho da
riqueza cultural do Ceará, do Brasil. Isso significa que
uma comunidade não é melhor do que outra porque
tem um determinado modo de falar ou mais proximi-
dade com a língua padrão. Isso não implica em tal fato,
pois esse fenômeno explica o jeito de ser de cada povo.
Do contrário, quando se pensa que uma comunidade é
melhor do que outra pelo fator fala, podemos chamar
isso de ‘Preconceito Linguístico’ (BAGNO, 2007).
A análise que originou este trabalho aconteceu
por meio de observações, visitando os diversos lugares

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E DO MODO DE


FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA - CE
180

em que as variedades linguísticas do povo Tremembé se


manifestam. Analisamos situações em que os vocábulos
pronunciados pelos falantes da comunidade Tremem-
bé representavam um contexto, mas, postos em outras
situações de uso linguístico, tinham seus significados as-
similados de forma diferente. Dessa forma, temos, por
exemplo, o caso da expressão “te toca?”, que quer dizer
“compreende?”, “entendeu?” Porém, em outra situação,
a mesma expressão, quando usada com uma entonação
mais acentuada, ou seja, mais puxada, significa “te liga!”,
“presta atenção!”, indicando um alerta para o próximo.
Houve casos em que, por exemplo, uma determi-
nada expressão só era usada em um contexto, como já
foi dito. Citamos: “navura, navura, vainxê!”, que signifi-
cam encher o vaso de mocororó1. Essa expressão só apa-
rece no momento do Torém. É importante salientar que,
no convívio cotidiano, a expressão “navura, navura vain-
xê” é trocada por outras do tipo: “bota o mocororó no
copo”, ou, “enche o copo aí!” Esses dados foram colhi-
dos observando atentamente as situações com as quais
nos deparamos. A análise foi feita, especificamente, em
relação ao uso das palavras do ritual sagrado, em suas li-
gações com o convívio cotidiano dos falantes investiga-
dos, por meio de conversas com jovens e lideranças do
1 O mocororó é uma bebida típica do povo Tremembé, usada no
cotidiano como vitamina e, quando fermentada, ingerida nas di-
versões locais para embriaguez. A mesma é feita do caju azedo,
o qual é colhido quando está bem maduro e espremido à mão.
Depois de feito, é coado e posto para fermentação em cabaças
e, depois de alguns dias, está pronto para beber. Seu uso é mais
propício nas noitadas do Torém, porém, ele também é utilizado
em roda de conversas das lideranças e jovens para ajudar a pas-
sar o tempo. Vale lembrar que essa bebida antes da fermentação
é chamada de suco ou vinho e tida como mocororó depois da
fermentação, para que todos os presentes na dança do Torém
possam beber e simboliza um intervalo no ritual.

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


181

local, bem como com base em fontes escritas já existen-


tes na comunidade. Os vocábulos analisados, em parte,
são oriundos da língua primária do povo ­Tremembé.

Entre a música e a prática social do Torém

Entre as diversas manifestações apresentadas


pelo povo Tremembé, existe uma bastante expressiva,
o Torém. Essa dança se configura como prática de for-
ma circular, uma pessoa atrás da outra seguindo passos
ritmados pelas belas e sonoras vozes dos torenzeiros e
pelo ritmo do maracá. Tal dança se manifesta em diver-
sos momentos e cada um tenta demonstrar e represen-
tar contextos diferentes, que pode ser um momento
de celebração, de busca de união, de exposição ou de
representação de conquista. Esses momentos represen-
tam, de certa forma, as vivências desse povo em todos os
contextos de sua história, sendo estes identificados pela
forma e pela intensidade da dança, além da presença
expressiva ou não das pessoas na prática do ­Torém.
É importante ressaltar que a cada momento, ou
seja, a cada contexto, a dança do Torém distingue um
momento do outro, não pelo tempo, mas pelo objeti-
vo que a comunidade almeja com a prática, como por
exemplo, há momentos em que se reúne todo o alde-
amento para se discutir problemas, buscar soluções e
tentar uma aproximação entre as aldeias. Nesse contex-
to, dança-se o Torém numa tentativa de unir as pessoas
para alcançar metas definidas pelo povo.
Há momentos também em que se pratica essa
dança com intuito de celebrar a colheita do caju ou um
santo padroeiro e, nesse contexto, o ritual tem a função
de coroar algo com aquilo que é próprio dessa comuni-

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E DO MODO DE


FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA - CE
182

dade: o Torém. Enfim, para cada momento diferente se


dança o mesmo ritual, porém com intensidade e obje-
tivo próprio.
Dessa forma e pelo fato de essa dança ser prati-
cada desde os primórdios e ainda por representar uma
auto identificação dos dançantes com a luta, e diante
das outras sociedades, o Torém se torna um elemento
identificador do povo Tremembé.
Por essas inter-relações entre os nativos e a dança,
por essa prática ser única só desse povo, o Torém, tido
como ritual sagrado, se constitui um elemento demar-
cador de fronteiras, pautado pela confrontação do que
é moderno no mundo de hoje e pela própria resistência
da dança em si, ao representar animais e pássaros, re-
passando, assim, a vivência dos antepassados.
Assim, pela ausência de uma língua própria falada
expressivamente no cotidiano dos Tremembé, ausência
essa que foi provocada pelos históricos de massacres
pelo homem branco, é que o Torém se pauta essencial-
mente na luta desses índios contra a sociedade de má
fé, uma vez que na dança mostra-se com o canto e os
passos, traços do que é ser índio e, por isso, essa dança
se torna fundamental no processo de manutenção da
cultura para as futuras gerações, garantindo, assim, um
futuro menos árduo e uma terra garantida como direito
inerente a essa nação.
Portanto, o Torém, além de ser um elemento im-
portante na luta dos Tremembé na busca de seus obje-
tivos, é uma brincadeira que diverte e unifica os índios
dentro do campo da luta política e, principalmente,
dentro do campo da língua, uma vez que no âmbito da
prática da dança, a linguagem e a língua são extrema-
mente próprias, únicas e diferenciadas.

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


183

Utilizamos as letras das músicas do Torém, uma


vez que essas serviram como ponto de apoio para ve-
rificação do que era específico de um contexto e o que
era de uso geral do convívio das pessoas nas diversas si-
tuações do dia a dia. Nessa escuta, podemos identificar
também quais vocábulos são usados no cotidiano e nas
situações específicas dessa comunidade e quais são ad-
quiridos em outras comunidades e trazidos para dentro
de seus convívios.

Navura, navura vainchê!


Ô navura, navura vainchê!
Ô navura, navura vainchê!
Ô dipidir maniverana, de verana boinguêê!!!
Navura, navura vainchê!
Ô navura, navura vainchêê!!!
Navura, navura vainchê!
Ô navura, navura vainchê!
Ô dipidi maniverana, de verana boinguê
Navura, navura vainchêêê!
Ô navura, navura vainchêê!
Vamu prus cuiambá wariguêê!!
Vamu prus cuiambá wariguêêê!!!
Tem a suamussará, tem boinguê!
Vamu prus cuiambá ariguêêêêê!

Esta música é cantada no ritual sagrado, o Torém,


quando se está dançando e precisa fazer uma parada
para beber o mocororó e depois reiniciar com outras
músicas que tenham outros ritmos, daí canta-se ela, fa-
zendo um convite para os participantes pararem e reve-
renciarem a bebida sagrada antes de bebê-la.

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E DO MODO DE


FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA - CE
184

As variedades linguísticas e o Torém: nossa língua nos


cantos e nas aparições linguísticas do Aldeamento
Tremembé de Almofala – região da praia e região da mata

Neste trabalho, consideramos as diferentes formas


de fala presentes na comunidade Tremembé-CE como
variantes linguísticas. Mais especificamente, pretende-
mos mostrar algumas dessas variantes a partir das mú-
sicas que integram o ritual sagrado nomeado “Torém”.
O Torém é a dança tradicional e, ao mesmo tem-
po, o ritual sagrado da comunidade Tremembé do
Aldeamento de Almofala, em Itarema-Ceará. É tradi-
cional por ser praticado entre esses nativos desde os
primórdios e sagrado por se configurar num momento
de busca de força aos encantados e ainda por ser um
espaço de união entre os índios e as forças da natureza.
O Torém é dançado de forma circular, uma pessoa atrás
da outra, sendo estas ritmadas pelas músicas e melo-
dias do som do “maracá2” e das próprias vozes dos pu-
xadores, que ficam no centro da roda e das vozes dos
dançarinos presentes.
No ato da dança, os participantes em seus passos
representam as andanças dos animais em suas vivências
e em relação aos cantos, tentam imitar as vozes dos pás-
saros do ambiente local. O contato desses nativos com
2 O maracá é um instrumento típico dos povos indígenas e, en-
tre os Tremembé, usado na prática do Torém. O maracá é feito
de coco, cabaça ou de coité. Para se construir esse instrumento,
basta raspar um dos recipientes citados, colocar dentro deles se-
mentes, pedrinhas ou chumbo, colocar para secar e depois enfiar
um pedaço de pau ao meio e ele estará pronto. O instrumento
é utilizado para ajudar no ritmo e na melodia das músicas do
Torém, representando algo natural para a prática da dança. Vale
lembrar que, em alguns povos, o referido instrumento é chama-
do de maraca, sem a entonação da última sílaba.

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


185

a natureza é bem íntimo, por isso a tentativa de repro-


dução dos cantos e dos passos na prática da dança. Para
ilustrar essas afirmações, vejamos:

Guaxuré

‘Ai ô prepê ce guaxurééé


Guaxurédju xâ birindó
Ai ô prepê cê guaxuréé
Guaxurédju xâ birindó!!
Guaxurédju xâ birindó!
Ai ô prepê ce guaxurééé
Guaxurédju xâ birindó
Ai ô prepê ce guaxuré
Guaxurédju xâ birindó!!
Guaxurédju xâ birindó!!

Sobre esse canto, vejamos a fala de uma liderança


local, Pajé Maroca:
É o Guaxinim. Deve ser o andar dele, ele num fala,
num canta... Aquele movimento é caqueando
com as mãos. Aí ele pega o rabo, bota no bura-
co pra Maria Farinha, que é a própria isca, pra ela
se entreter. Aí quando ela agarra o rabo, ele tira
devagarzinho, torcendo o corpo, pra ela não se
soltar. Ele bota o rabo de banda dele, porque ela
vem com ele (o rabo), ela é comida.

Essa música, apresentada numa rodada do Torém.


Além de mostrar o animal capturando sua presa, no caso
a Maria Farinha3, remete à vivência dos animais no habi-
tat natural, assim, dois personagens imitam dentro da
roda dos puxadores dois guaxinins disputando espaço

3 Crustáceo típico do mangue, do qual os Tremembé sempre se


alimentaram, assim como do Guaxinim.

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E DO MODO DE


FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA - CE
186

e comida dentro do manguezal. E é nessa perspectiva


que a linguagem circula dentro da comunidade, vindo
do espaço animal, passando para o Torém e chegando
ao cotidiano comunitário, mostrando, assim, uma rela-
ção ímpar entre Torém, língua e sociedade.

Ô Jandê

“Ô jandê recôguirá
Guraripi napurana
Ai ô manguê
Ô jandê recôguirá
Guraripi napurana
Ai ô manguê
Ai ô manguirá
Ô manguirá
Ai ô manguirá
Ô manguirá
Ô manguirá
Ô manguirá
Ô manguirá
Ô manguiráá.4

Nessa música, há uma tentativa de imitação do


canto da jandaia, pássaro local que era muito comum
dentro do ladeamento. Isso mostra a proximidade entre
os pássaros e os índios, implicando numa relação bas-
tante estreita entre língua, sociedade e Torém. As pa-
lavras nascem e circulam nas diversas esferas da comu-
nidade e, apesar de elas terem significados diferentes
de acordo com os contextos, mesmo assim, essa relação
tem uma fundamentação bastante específica.
4 “Uma jandaia tava num pé de pau. Aí um índio viu e dixe pro
outro: – Tu qué vê Cuma eu canto ingual aquele passarim!? Aí o
outro dixe: -Eu duvido, pois canta quê eu quero vê. Aí ele cantou
a mesma cantiga da Jandaia.” (Fala de uma liderança local).

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


187

Do mesmo modo, há de se ressaltar que dentre


as próprias comunidades do Aldeamento Tremembé de
Almofala há variações na fala, pois nas duas regiões, a
da praia e a região da mata, falam-se linguajares dife-
rentes. É o caso do termo “Te disconcho!”, que remete
a um espanto, uma reação ao que o outro disse ou fez,
ou quando algo não dá certo como se havia planejado.
Isso ocorre na região da mata e, mais especificamente,
na comunidade de Varjota. Outros casos que demons-
tram essa particularidade são expressões como “Arria
mã!” e “Eu txi dji!”. Na primeira, significa uma alerta ao
próximo, apressando para fazer logo o que se tem para
fazer e, na segunda, significa também um espanto, uma
surpresa devido a algo não esperado. Isso ocorre apenas
do lado da mata.
Já do lado da praia é comum se ouvir: “Ah coita-
do!”, ou “óia!”, que significam que a pessoa não fez como
se esperava ou não disse o que os demais queriam ouvir,
isso serve para os dois casos. É bom lembrar que o ter-
mo “coitado” também é pronunciado na região da mata,
porém com menos frequência. Já o “óia” é mais pronun-
ciado no lado da mata, todavia com mais entonação:
“óóóia!”. Esse termo é falado quando a outra pessoa de-
mora a entender a explicação que está se propagando.
Outra expressão bem comum na comunidade é
“humrum!”, que significa que está ignorando a fala de
alguém, que aquele enunciado não tem fundamento, é
descabido para a conversa em prática. Já na comunida-
de vizinha, Tapera, é muito comum o termo “aparai!”, in-
dicando para quem vai passando que pare de caminhar
ou quando um veículo está em movimento e as pessoas
também usam essa expressão para pedir que parem o
transporte.

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E DO MODO DE


FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA - CE
188

Vejamos mais um canto de Torém a seguir, a fim


de perceber como se dá a linguagem nessas expressões
culturais:

Pegaropê

“ Pegaropê, pegaropê
Vei xegaca da merunga
Da merunga sarecê
Xegaca da merunga
Da merunga sarecê.
Pegaroê, pegaropê
Pegaropê, pegaropê
Vei xegaca da merunga
Da merunga sarecê
Xegaca da merunga
Da merunga sarecê
Pegaropê, pegaropê
Pegaropê, pegaropê
Vei xegaca da merunga
Da merunga sarecê
Xegaca da merunga
Da merunga sarecê
Pegaropê, pegaropê...”5

Nesse contexto, mostra-se, por meio da música,


uma vivência cotidiana e com ela uma prática da dança,
o Torém, por meio do qual se imita a atividade de pesca
artesanal. Percebe-se que há um linguajar próprio dentro
da pesca, que passa para a música, chega na roda do To-
rém e se espalha na comunidade e, assim, se volta para as
práticas novamente. A partir desse ritual sagrado, pode-

5 “É a Garôpa. O pescador vai pescar, bota o anzol, a Garoupa ga-


ropéia, vai puraculá, vem pra cá, como agente no torém. É o jeito
do bicho. O pexe que pegaro foi só Garôpa.” (Fala de um puxador
de Torém).

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


189

mos perceber a relação existente entre língua e socieda-


de, na medida que o mesmo contribui para a realização
do trabalho coletivo na comunidade T ­ remembé.
Paralelo a essas aparições linguísticas nos cantos
de Torém, retomamos igualmente e mais uma vez a re-
lação indissociável entre a maneira de falar dos falantes
da comunidade Tremembé e a forma como o cotidiano
é vivido nessa comunidade, basta verificar os vocábulos
“canhugá”– que significa caju – e “madurecê”, que quer
dizer maduro. Ao unirmos essas palavras, temos a ex-
pressão “caju maduro”, uma prévia da relação das pes-
soas para com a fruta e, assim, da língua em sociedade.
Ou ainda, a expressão “eu te – disconcho”, que introduz
uma reação de espanto à resposta ou atitude do outro.
Ou a expressão “gua” (sem a caracterização do dígrafo),
que equivale à reação de espanto, que pode ser do mes-
mo sentido do “vixe” falado na Bahia. Todas essas ex-
pressões são variantes da referida comunidade, ou seja,
de certa forma, elas e outras nos dizem um modo espe-
cífico de falar e assim nos mostram o cotidiano oral das
pessoas pertencentes a esse povo e, consequentemen-
te, indicam a relação entre língua e sociedade. Com esse
linguajar bem natural construído ao longo da vida nas
experiências do cotidiano, os viventes dessa comunida-
de têm variantes em suas falas que os diferenciam das
outras comunidades e que, na maioria dos vocábulos e
das expressões, são específicas desse povo.
Para ilustrar esse argumento, vejamos o que diz
Seraine (1955, p. 86): “E as únicas sobrevivências linguís-
ticas que acusam se encontram nos textos poéticos mu-
sicais do seu folguedo, graças aos quais, sobretudo o To-
rém, ainda não escapou de todas as lides etnográficas.”
Vejamos a música a seguir:

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E DO MODO DE


FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA - CE
190

... Água de manima


Ô manima açerecê
Ô jáimevê (bis)
Ô jáimevê êê.

O canto acima é o fragmento de um relato sobre


um índio que tinha uma filha que morreu e em cima de
sua cova nasceu um pé de maniva. Da água da maniva
fizeram o “cauim”6. Essas formas próprias de falar, que
residem no cotidiano e nas músicas do Torém, assim
como os seus significados, são referenciais que consti-
tuem a cultura, a naturalidade e a especificidade como
povo diferente dos demais.
É importante lembrar que as relações das músicas
que permeiam o ritual Torém demonstram uma afinida-
de ímpar dos nativos com a natureza, por isso o lingua-
jar utilizado no momento da prática do ritual e nos ou-
tros momentos é específico, como por exemplo: “vamu
prus cuiambá, uariguê! (bis) Tem a soia moçará, tem
boinguê (bis)”, momento no qual são convocados todos
os participantes da dança a beberem da bebida sagra-
da, que é o Mocororó. “Ou ainda: ‘‘Vamu, vamu minha
gente que uma noite não é nada”, momento em que se
chama a atenção de todos para lutarem forte pelas con-
quistas almejadas, daí essas palavras serem utilizadas
no cotidiano das pessoas da comunidade naturalmente,
demonstrando uma relação de língua e sociedade de
forma indiscutível.
6 O cauim é uma bebida feita do pau da maniva. Essa era feita a
partir da prática de se pisar a maniva com bastante intensidade
e repetição até dela sair o líquido para os integrantes da comu-
nidade beberem. Essa prática era feita para simbolizar uma ho-
menagem a índia falecida, demonstrar que o sangue da menina,
representado pelo cauim ficaria entre os indivíduos e representa
a continuação da luta a partir da perda da jovem.

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


191

O campo circular, assim como no Torém, reina no-


vamente, pois as palavras das músicas vêm para dentro
da comunidade e vice-versa, puxando os sentimentos
de força, união e energia positiva. E todo esse proces-
so vem acontecendo por meio de variantes específicas
e extremamente íntimas a essa comunidade. O Torém
sempre foi um elemento demarcador de fronteiras dos
Tremembé, pois essa comunidade vem resistindo a tudo
e a todos graças às forças que tira do Torém, expressan-
do no seu linguajar, nos seus manifestos e na sua forma
de ser e viver, uma identidade diferente da reivindicada
por outras aldeias cearenses. Além de tudo isso, o Torém
reforça a manutenção das variantes no uso da fala dos
indivíduos, uma vez que por meio dos cantos e das mú-
sicas se refaz, mesmo que vagamente, uma caminhada
da vivência dos antepassados, buscando sua forma de
viver, relacionar-se e falar com o mundo que os rodeia e
assim traz à tona um linguajar nato do passado e, con-
sequentemente, uma prática nas palavras e expressões
dos antigos, passando para o cotidiano um vocabulário
próprio e enriquecendo o que é específico.

Considerações Finais

As variantes linguísticas da comunidade, junto a ou-


tros elementos como a dança, as músicas, o jeito de ser,
dentre outros, são importantes na relação entre língua e
sociedade por ajudarem na construção do que é ser Tre-
membé, uma vez que a imagem que ainda reside no imagi-
nário das pessoas é de que ser diferente é anormal, ou seja,
não se pode ser diferente, e ainda, falar de modo específico
é errado, por isso é inferior a quem fala a língua padrão.
Essa imagem foi repassada junto ao ­entendimento
de que não havia mais índios ou só era índio aquele que

LINGUAGEM E SOCIEDADE A PARTIR DOS CANTOS DE TORÉM E DO MODO DE


FALAR DO ALDEAMENTO TREMEMBÉ DE ALMOFALA - CE
192

tinha cabelos pretos lisos, olhos repuxados, e ainda,


aquele que andasse nu e não acompanhasse nada do
progresso. Esse imaginário errôneo faz referência aos
nativos da região amazônica e esquece de mencionar
todo um processo de massacre por parte das colônias
estrangeiras, resultando, assim, em uma mistura e no
surgimento de índios com outros estereótipos, que se
confrontam com o modo de ser do povo dessa comu-
nidade, tornando-a específica, por isso as variantes lin-
guísticas são essenciais nesse contexto.
No caso dos Tremembé, as variedades linguísti-
cas são cruciais para essa comunidade, pois ajudam na
construção do que é ser um falante dessa etnia, ou seja,
representam a forma de se expressar de modo diferente
e denunciam que há uma comunidade diferenciada, ao
mesmo tempo que reforçam o modo de ser Tremembé
e, portanto, expressam o diálogo entre língua e socieda-
de como campos extremamente ligados.

Referências

ALKIMIM, Tânia. Sociolinguística. In: MUSSALIM, & BEN-


TES, A. C. Introdução à linguística: domínios e fronteiras.
5ª. ed. São Paulo. Cortez, 2005. p. 16-19.
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como
se faz. Edições Loyola: São Paulo. 2007.
MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. Pe-
trópolis: Vozes, 2000.
SERAINE, Florival. Ceará Terra da luz, Terra dos Índios:
Índios do Brasil. Brasília: Editora Universidade de Brasí-
lia, 1986.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 5ª ed.
São Paulo: Editora Ática, 1997.

FRANCISCO ELISNALDO DE SOUSA 


193

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL:


PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA PARA UMA ESCOLA EM
TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA-CE

Lorena da Silva Rodrigues


Marcela Magalhães de Paula

Introdução

A
lei 10.639/03 torna obrigatório o ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira nos ensi-
nos fundamental e médio nas escolas bra-
sileiras, orientando que estabelecimentos de ensinos
públicos e particulares incluam, em seus programas,
temas como “História da África e dos Africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o ne-
gro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica
e política pertinentes à História do Brasil”. A legislação
norteia, ainda, que, a literatura seja uma das disciplinas
que dê um especial destaque a essa proposta curricular.
Além dessa regulamentação, a Base Nacional Co-
mum Curricular, doravante BNCC, ao contextualizar as
habilidades do campo artístico-literário a serem desen-
volvidas pelos estudantes do ensino médio ao longo de
sua escolarização, afirma:
No Ensino Médio, devem ser introduzidas para
fruição e conhecimento, ao lado da literatura
africana, afro-brasileira1, indígena e da literatura
contemporânea, obras da tradição literária brasi-
leira e de língua portuguesa, de um modo mais
1 Grifo nosso.

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL: PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA PARA


UMA ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA - CE
194

sistematizado, em que sejam aprofundadas as


relações com os períodos históricos, artísticos e
culturais (BRASIL, 2017, p. 523).

Dentro dessa perspectiva, este relato de experiên-


cia tem por objetivo apresentar uma proposta de dis-
ciplina eletiva, desenvolvida no segundo semestre de
2019 na EEMTI2 Professora Telina Barbosa da Costa em
Fortaleza-CE. A proposta de ensino focou no estudo de
literatura afro-brasileira, em que os textos refletiam as
questões de raça e de classe social. Além da teoria lite-
rária, nossa prática pedagógica centrou-se na pedagogia
transgressora de hooks (2017), bem como numa com-
preensão interseccional do sistema de opressões exis-
tentes (AKOTIRENE, 2019; RIBEIRO, 2019).
A disciplina teve como objetivo principal, confor-
me proposto pela BNCC, levar o aluno a analisar e in-
terpretar a literatura brasileira de autoria negra, a partir
da relação entre o texto literário e seu contexto de pro-
dução e de recepção, situando-o no contexto histórico,
social e político, através da leitura, da escuta, da análise
e da produção de obras literários. Assim, esperávamos
que o estudante percebesse valores sociais e humanos
que emanam dos textos em diferentes momentos da
história brasileira num exercício de criticidade.
Este relato de experiência está dividido em três
partes, além desta introdução. Na próxima seção, apre-
sentaremos nosso marco teórico. Em seguida, detalha-
remos a experiência vivida por nós desde o planeja-
mento da disciplina à prática em sala de aula. Por fim,
refletiremos sobre descobertas que essa vivência nos
­proporcionou.

2 Escola de Ensino Médio em Tempo Integral.

LORENA DA SILVA RODRIGUES – MARCELA MAGALHÃES DE PAULA


195

Marco teórico (ou sobre a necessidade de descolonizar a


educação brasileira)

Apesar de a lei 10.639 estar em vigor há dezessete


anos, na prática, o que impera nas aulas de literatura
são autores pertencentes ao cânone, formado, em sua
quase totalidade, por homens brancos oriundos da eli-
te brasileira. Dentro desse panorama, a escola brasileira,
assim como toda a sociedade, deve pautar suas ações
para a luta em prol da equidade racial. Ribeiro (2019,
p.09) nos exorta: “o primeiro ponto a entender é que
falar sobre o racismo no Brasil é, sobretudo, fazer um
debate estrutural”.
Desse modo, coadunando com a autora entende-
mos que urge a introdução, no currículo escolar, de au-
tores que reflitam a identidade racial brasileira. Além do
debate racial, compreendemos que no contexto brasi-
leiro, bem como de todo o Sul global, o entrelaçamento
entre os conceitos de classe social e gênero, uma vez que
o sistema de opressão existente impõe os padrões literá-
rios e acadêmicos de uma classe dominante branca, mas-
culina, heterossexual e com relevante poder aquisitivo.
Com base nisso, a experiência narrada neste relato
se assume interseccional e faz eco às palavras de Akoti-
rene (2019, p.19-20), as quais dizem:
Do meu ponto de vista, é imperativo ao ativismo,
incluindo o teórico, conceber a existência de uma
matriz colonial moderna cujas relações de poder
são imbricadas em múltiplas estruturas dinâmicas,
sendo todas merecedoras de atenção política.
Combinadas, requererão dos grupos vitimizados:
1. instrumentalidade conceitual de raça, classe,
nação e gênero;

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL: PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA PARA


UMA ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA - CE
196

2. sensibilidade interpretativa dos efeitos identi-


tários;
3. atenção global para a matriz colonial moder-
na, evitando desvio analítico para apenas um
eixo de opressão.

Esse entendimento sobre interseccionalidade foi


predominante na escolha dos autores que compuse-
ram a ementa da nossa disciplina, a saber Lima Barreto,
Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. Tais au-
tores, apesar de separados temporalmente, narram em
seus textos as opressões sofridas por afro-descenden-
tes brasileiros ao longo da história nacional. Os sujeitos
discursivos desses autores ilustram plenamente o que
Akotirene (2019) projeta ao afirmar que cruzar o Atlân-
tico nem sempre encerra a travessia dos sujeitos negros.
Dito isso, trazemos para a discussão o conceito de
literatura afro-brasileira em que nos ancoramos:
Poderíamos definir literatura afro-brasileira
como a produção literária de afrodescendentes
que se assumem ideologicamente como tal, utili-
zando um sujeito de enunciação próprio. Portan-
to, ela se distinguiria, de imediato, da produção
literária de autores brancos a respeito do negro,
seja enquanto objeto, seja enquanto tema ou
personagem estereotipado (folclore, exotismo,
regionalismo) (LOBO, 2007, p. 315 apud DUAR-
TE, 2011).

Destacamos nesta definição a identidade ideo-


lógica de um enunciador negro. Duarte (2011) elenca,
ainda, como elementos distintivos de uma literatura
afro-brasileira a temática afro-brasileira; a autoria afro-
descendente, explícita ou não; o ponto de vista ou lu-
gar de enunciação assumido, político e culturalmente,

LORENA DA SILVA RODRIGUES – MARCELA MAGALHÃES DE PAULA


197

afrodescendente e a linguagem, que deve trazer marcas


linguística de uma afrobrasilidade, quer pelo tom, pelo
ritmo, pela sintaxe ou pelo sentido.
Essa perspectiva nos foi cara na escolha das obras
para leitura análise e interpretação em sala de aula. Os
livros estudados foram Memórias do Escrivão Isaías Ca-
minha3, de Lima Barreto; Quarto de despejo, de Caroli-
na Maria de Jesus e Olhos d’água, de Conceição Evaris-
to. Conforme dito anteriormente, além do objetivo de
fruição, nossa proposta de disciplina objetivava aguçar
a criticidade dos estudantes e levá-los a refletir sobre
a sociedade e a cultura brasileira, a partir de práticas e
valores ainda arraigados em nossa sociedade.
Nossas escolhas teóricas se fundamentam, ainda,
em bell hooks (2017) que nos leva a compreender a
educação como um caminho de ruptura com o sistema
de dominação existente e como meio de descoloniza-
ção dos saberes. Nas palavras da autora, há a necessida-
de uma revolução de valores no sistema educacional, a
qual vem sendo combatida pela cultura dominante que
prove os vícios da mentira e da negação. Clamando pelo
enfrentamento dessa realidade, ela nos incentiva:
Certas pessoas acham que todos que apoiam a
diversidade cultural querem substituir uma dita-
dura do conhecimento por outra, trocar um bloco
de pensamento por outro. Talvez seja essa a per-
cepção mais errônea da diversidade cultural. (…)
Em todas as revoluções culturais há períodos de
caos e confusão, épocas em que graves enganos
são cometidos. Se tivermos medo de nos enganar,
de errar, se estivermos a nos avaliar constante-
3 A escolha dos livros levou em consideração tanto o acervo da
escola como a disponibilidade do texto no formato em pdf para
ser compartilhado com os estudantes.

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL: PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA PARA


UMA ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA - CE
198

mente, nunca transformaremos a academia num


lugar culturalmente diverso, onde tanto os acadê-
micos quanto aquilo que eles estudam abarquem
todas as dimensões dessa diferença. (p.49)

Aceitado o desafio proposto por hooks (2017), na


seção a seguir, apresentaremos a metodologia e as práti-
cas do processo de ensino-aprendizagem que surgiram
a partir de tais escolhas teóricas desde o planejamento
inicial, culminando com as ações em sala de aula.

Disciplina Literatura, raça e classe social: locus, sujeitos


e aplicação

No sistema de ensino da rede estadual cearense,


existem as Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral
(EEMTI) cujo Projeto Político Pedagógico propõe um
currículo diversificado como elemento de ressignifica-
ção da educação integral. Esta entendida como a for-
mação do indivíduo nas diferentes dimensões de sua
vida e não deve ser confundida com o termo ‘tempo in-
tegral’, uma mera ampliação do tempo que o estudante
passa na escola. Dentro dos princípios norteadores das
EEMTI, o currículo deve ser organizado em quatro di-
mensões pedagógicas:
1) a pesquisa como princípio pedagógico; 2) o
trabalho como princípio educativo; 3) a desmas-
sificação do ensino; 4) itinerários formativos di-
versificados. Para tanto será incorporada à Base
Comum uma Parte Diversificada composta por
algumas estratégias que viabilizam a incorpora-
ção dessas dimensões na organização curricular:
o Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais
– NTPPS; o Projeto Professor Diretor de Turma –
PPDT e os Tempos eletivos. (CEARÁ, 2017)

LORENA DA SILVA RODRIGUES – MARCELA MAGALHÃES DE PAULA


199

Destacamos aqui os tempos eletivos, os quais são


ofertados em forma de disciplinas eletivas com carga
horária semanal de 2h/aula. Tais atividades não são de
matrícula obrigatória e o estudante tem a oportunida-
de de escolher quais matérias quer cursar ao longo da
sua vida escolar. As disciplinas eletivas são organizadas
em eixos temáticos, a saber: Aprofundamento de Con-
teúdos da Base Comum; Artes e Cultura; Comunicação,
Usos de Mídias, Cultura Digital e Tecnológica; Educação
Ambiental e Sustentabilidade; Educação Científica; Edu-
cação em Direitos Humanos; Esporte Lazer e Promoção
da Saúde; Mundo do Trabalho e Formação Profissional e
Clubes estudantis. (CEARÁ, 2018)
Ainda que haja sugestões de um catálogo de eleti-
vas direcionadas a cada um desses eixos, fica a cargo do
professor a seleção dos conteúdos e a organização do
material a ser utilizado no planejamento e na execução
dessas atividades eletivas. Desse modo, a nossa eletiva
ainda que, em sua ementa, se identificasse voltada ao
eixo de “Aprofundamento de Conteúdos da Base Co-
mum” por ser essencialmente uma disciplina de litera-
tura brasileira, propunha um diálogo interdisciplinar e
transdisciplinar com o eixo de “Artes e Cultura” e com o
de “Educação em Direitos Humanos”.
A escola onde aplicamos nossa proposta, confor-
me dito anteriormente, foi a EEMTI Professora Telina
Barbosa da Costa localizada no bairro Messejana, na ci-
dade de Fortaleza – CE. O bairro é o centro de organiza-
ção de outros bairros satélites da Secretaria Regional VI,
por esse motivo a escola recebe alunos de vários bairros
da periferia da capital cearense situados nessa região.
Segundo o Censo escolar de 2018, o número de matrí-
culas no ensino médio era de 606 alunos.

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL: PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA PARA


UMA ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA - CE
200

Nossa disciplina, se destinou aos alunos da segun-


da série do ensino médio, pois, por ter sido ofertada no
segundo semestre e não ter objetivo específico voltan-
do explicitamente ao Exame Nacional do Ensino Médio,
poderia “desviar o foco” dos estudantes de terceiro ano,
segundo as orientações pedagógicas da escola. A turma
foi composta por 25 alunos.
As aulas não eram centradas no modelo de “educa-
ção bancária” tão combatida na obra freiriana. Enquan-
to professora, além de introduzir contexto de produção
da obra, a biografia do autor e destacar características
linguísticas, ficava por conta da turma a leitura, a discus-
são e a análise do texto. Desse modo, ao abordarmos
temas relacionados às questões interseccionais, os estu-
dantes fizeram várias associações com acontecimentos
da atualidade, a partir de narrativa de vida, suas, de co-
nhecidos e de casos de grande repercussão nacional. O
compartilhamento da responsabilidade entre estudan-
tes e professores na construção do conhecimento se an-
cora na ideia freiriana de que “ninguém se conscientiza
separadamente dos demais. A consciência se constitui
como consciência do mundo”. (FREIRE, 19874)
Como as disciplinas não geram uma nota da qual
dependa a aprovação/reprovação dos alunos, a avalia-
ção da disciplina foi feita a partir de uma autoavaliação
em que os estudantes destacavam, nos textos estuda-
dos, conteúdos apreendidos durante o contato com a
obra e a relevância dessa aprendizagem para a sua for-
mação humana e cidadã. No quadro abaixo, destaca-
mos os trechos e temas elencados mais recorrentes nas
três obras.

4 Versão para e-reader Kindle. Não possui paginação.

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201

Quadro 1 – temas relacionados às obras estudadas


Temas apon-
Trecho destacado tados pelos
alunos
Tive fome e dirigi-me ao pequeno balcão onde • Identidade
havia café e bolos. Encontravam-se lá muitos pas- racial;
sageiros. Servi-me e dei uma pequena nota para • Racismo;
pagar. Como se demorassem em trazer-me o tro- • Violência.
co reclamei: “Oh! fez o caixeiro indignado e em
tom desabrido. Que pressa tem você?! Aqui não se
rouba, fique sabendo?” Ao mesmo tempo ao meu
lado, um rapazola alourado, reclamava o dele,
que lhe foi prazenteiramente entregue. O contras-
te feriu-me, e com os olhares que os presentes me
lançaram, mais cresceu a minha indignação. Cur-
ti durante segundos, uma raiva muda, e por pou-
co ela não rebentou em pranto. Trôpego e tonto,
embarquei e tentei decifrar a razão da diferença
dos dois tratamentos. Não atinei; em vão passei
em revista a minha roupa e a minha pessoa... Os
meus dezenove anos eram sadios e poupados, e o
meu corpo regularmente talhado. Tinha os ombros
largos e os membros ágeis e elásticos. As minhas
mãos fidalgas com dedos afilados e esguios, eram
herança de minha mãe, que as tinha tão valente-
mente bonitas que se mantiveram assim, apesar do
trabalho manual a que a sua condição a obrigava.
Mesmo de rosto, se bem que os meus traços não
fossem extraordinariamente regulares, eu não era
hediondo nem repugnante. Tinha-o perfeitamente
oval, e a tez de cor pronunciadamente azeitonada.
(BARRETO, 1909,p.06)
13 de Maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia • Diferença
simpatico para mim. É o dia da Abolição. Dia que de classe
comemoramos a libertação dos escravos. social;
...Nas prisões os negros eram os bodes expiatorios. • Encarcera-
Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos mento em
trata com desprezo. Que Deus ilumine os brancos massa;
para que os pretos sejam feliz. • Diferença
Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A racial;
chuva está forte. Mesmo assim, mandei os meninos • Fome;
para a escola. Estou escrevendo até passar a chu- • Violência.
va, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros.
Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e lin-
guiça. (…)
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra
a escravatura atual – a fome! (JESUS, 1960, p.27)

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL: PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA PARA


UMA ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA - CE
202

Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela • Violência;


boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia ar- • Maternida-
rebentado e as frutas rolavam pelo chão. Será que de;
os meninos iriam gostar de melão? • Racismo;
Tudo foi tão rápido, tão breve, Maria tinha sauda- •A não exis-
des de seu ex-homem. Por que estavam fazendo tência de um
isto com ela? O homem havia segredado um abra- final feliz.
ço, um beijo, um carinho no filho. Ela precisava
chegar em casa para transmitir o recado. Estavam
todos armados com facas a laser que cortam até a
vida. Quando o ônibus esvaziou, quando chegou a
polícia, o corpo da mulher estava todo dilacerado,
todo pisoteado.
Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia
mandado um abraço, um beijo, um carinho. (EVA-
RISTO, 2018, p. 44)
Fonte: elaborado pelas autoras.

Chamou-nos a atenção, em primeiro plano, o co-


nhecimento prévio, por parte de alguns estudantes, de
conceitos que não perpassam o currículo escolar, como
o encarceramento em massa, por exemplo, e o empo-
deramento feminino por parte das alunas. Na nossa in-
terpretação, tal conhecimento fez com que uma parte
dos alunos optassem por nossa disciplina eletiva para
aprofundamento do tema. Para os alunos, acostumados
com aulas de historiografia literária, que pouco explo-
ram o texto literário, houve a surpresa no que se refere
a todas as possibilidades que uma obra literária pode
proporcionar com assuntos relacionados a outras áre-
as do conhecimento e não apenas as relacionadas às
linguagens. Um outro ponto que merece destaque é a
percepção de várias formas de violência, além da física,
causadas ao sujeito negro pelo racismo arraigado na es-
trutura social brasileira.
Dentro das práticas, destacamos o momento mais
forte e marcante vivido pela turma na leitura do conto
Maria, de Conceição Evaristo, o qual gerou várias rea-

LORENA DA SILVA RODRIGUES – MARCELA MAGALHÃES DE PAULA


203

ções dos alunos com o desfecho da narrativa, tais como


lágrimas e gritos de protesto. A recepção do texto fez
com que os sujeitos presentes naquele momento em
sala de aula se reconhecessem como personagem ou
como um dos seus filhos que cresceria órfão. Interpreta-
mos que essa comoção é um reflexo da consciência de
que eles vivem alguma dessas opressões, ou até mesmo
todas elas. Evocamos então Freire (1987), o qual acredi-
ta que a transformação objetiva da situação opressora
parte da consciência da opressão, que não desaparece-
rá por si só, mas na luta pela modificação das estruturas.

Algumas considerações

Ribeiro (2019), em seu Pequeno Manual Antirra-


cista, aponta três passos que se fizeram presentes nas
ações narradas neste relato, são eles: a) perceba o racis-
mo internalizado em você; b) apoie políticas educacio-
nais afirmativas e c) leia autores negros.
No que se refere à primeira proposta, confirme
argumentamos o racismo é um problema estrutural
brasileiro. Dessa forma, as pessoas não negras têm de
tomar uma posição antirracista e aliar-se às pessoas
negras, partindo do reconhecimento de seus privilé-
gios. “Não se trata de se sentir culpado por ser branco: a
questão é de se responsabilizar. Diferente da culpa, que
leva à inércia, a responsabilidade leva à ação”. (RIBEI-
RO, 2019, p.36)
Sobre as políticas educacional afirmativas, vimos
uma disciplina que traz a história e a cultura de afro-bra-
sileiros pela literatura, amparada pela lei 10.639, leva os
jovens em formação refletirem sobre práticas racistas vi-
sando a sua desconstrução. Ao propor esse segundo pas-

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL: PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA PARA


UMA ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA - CE
204

so, a autora lembra que trazer a história negra para o cen-


tro da aprendizagem não apenas valoriza o sujeito negro,
mas beneficia toda a sociedade, rompendo com as visões
hierarquizadas da branquitude sobre a cultura dos povos
afrodescendentes e diminuindo as d ­ esigualdades.
Por fim, conforme apontado pelos teóricos apre-
sentados ao longo deste texto, a leitura de autores ne-
gros é de extrema importância para a descolonização
dos saberes acadêmicos, dominados pela visão euro-
cêntrica. O epistemicídio dos saberes negros é mais uma
forma de violência simbólica. Sabendo dessa urgência
de trazer intelectuais negras para o centro da discussão,
terminamos este relato avaliando positivamente a nos-
sa proposta de disciplina eletiva, uma vez que, através
dela, ecoaram as vozes do discurso literário de sujeitos
oprimidos historicamente nas Letras brasileiras.

Referências

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Sueli Carneiro – Pólen, 2019.
BARRETO, Afonso Henrique de Lima. Memórias do es-
crivão Isaías Caminha. Disponível em: http://objdigital.
bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/icaminha.pdf.
Acesso em: 27 nov. 2020.
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Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece
as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá ou-
tras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 2003.
BRASIL. MEC. Base Nacional Comum Curricular: Educa-
ção Infantil e Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEB,
2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.

LORENA DA SILVA RODRIGUES – MARCELA MAGALHÃES DE PAULA


205

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CEARÁ. Secretaria da Educação. Projeto político peda-
gógico: ensino médio em tempo integral na rede esta-
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DUARTE, Eduardo de Assis. In: DUARTE, E. A. e FON-
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ca. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.  Disponível em:
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rico-conceituais/148-eduardo-de-assis-duarte-por-um-
-conceito-de-literatura-afro-brasileira. Acesso em: 3 nov.
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EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. 2ª ed. Rio de Janei-
ro: Pallas Míni, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1987. Versão para e-reader Kindle.
HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como
prática de liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São
Paulo: Martins Fontes, 2017.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de
uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São
Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LITERATURA, RAÇA E CLASSE SOCIAL: PROPOSTA DE DISCIPLINA ELETIVA PARA


UMA ESCOLA EM TEMPO INTEGRAL EM FORTALEZA - CE
206

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO


CEARENSE: MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER
ANCESTRAL

Patrícia Pereira de Matos

“Eu vou te contar uma história agora atenção, que começa


aqui no meio da palma da minha mão. Bem no meio tem
uma linha, ligada ao coração, que sabia dessa história antes
mesmo da canção. Dá tua mão, dá tua mão, dá tua mão, dá
tua mão “.
(Cantiga tradicional para introduzir a história)

Escritora, ser ou não ser?! Eis a questão

S
e me dissessem anteriormente que eu seria
escritora, eu não acreditaria. Sempre gostei
de ouvir histórias. Filha da professora do pri-
mário, Francisca Pereira, era comum ler e ouvir histórias,
a “Coleção o Disquinho”, na interpretação de Silvio San-
tos, anos 80. Minha mãe sempre comprava coleções de
livros. Hoje, aos 45 anos de idade, lembro de cor dessas
histórias, que geralmente envolviam cantos:
Eu tenho cá meu bigodes, e deles eu cuido bem,
não me importo com os fios do rabo de nin-
guém”, “fiando, fiando não para de fiar, trabalho
fiando na roca de fiar, a velha costureira trabalha
sossegada, a noite inteira na roca encantada, “Cai,
cai, zás trás, cai direito meu rapaz, salve ele que
chegou e que não se esborrachou, vivo! Vivo!”
(DA GAMA, 1960).

Lembro-me, certa vez, de que cortei o livro de


contos clássicos da Branca de Neve, fiquei de castigo

PATRÍCIA PEREIRA DE MATOS


207

devido a isso, mas eu pensava que aquela personagem


me representava. Eu queria ser ela, porém tinha um pro-
blema: meus cabelos e meu nariz não eram iguais ao
dela. Minha pele até lembrava um pouco, mas outros
traços me diferenciavam. Principalmente o cabelo, forte
traço negróide. Para me aproximar da personagem que
sempre admirei, alisei o cabelo assim que pude, na in-
fância ainda.
“Pesquisas indicam que é no período até os 8 anos
de idade que as crianças adquirem autoestima, identi-
dade cultural, independência e capacidade para lidar
com o mundo a sua volta” (TUTTLE; PAQUETTE, 1993,
p.19). É fundamental refletir sobre quais autoestimas es-
tamos valorizando e quais estão sendo negadas e nega-
tivizadas. É recorrente nas formações de professores, ao
apresentarmos a seguinte imagem, nos deparamos com
uma lista de histórias europeias.

Figura 1

Fonte: Acervo pessoal.

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO CEARENSE:


MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER ANCESTRAL
208

A imagem acima mostra um livro de histórias que


monta um castelo, os professores e as professoras ao se-
rem interpelados sobre quais memórias lhes vêm, logo
falam de princesas e de príncipes dos contos clássicos
e passam a listá-los: Cinderela, Branca de Neve, e uma
infinidade de outros. Ao perguntarmos sobre rainhas
negras ou indígenas, eles sempre citam o filme da Dis-
ney, a Princesa e o Sapo (2009), contudo não lembram
o nome da personagem e não conseguem refletir sobre
a possibilidade de que, na história inicial, o príncipe era
sapo e ao beijar a princesa, torna-se humano. Na referi-
da história, o príncipe, ao beijar a princesa, que é negra,
transforma todos em sapos.

Rompendo os grilhões das narrativas

“Você não sabe o quanto eu caminhei pra che-


gar até aqui, percorri milhas e milhas, eu nem cochilei,
os mais belos montes escalei, nas noites de frio chorei”.
Eu passei a vida em brancas nuvens, literalmente, pois
só vivi na literatura personagens como Soldadinho de
Chumbo e a Bailarina, Branca de Neve e os Sete anões,
Cinderela, Peter Pan, A Bela Adormecida. Não há pro-
blemas com essas narrativas, exceto devido ao fato de
que só tínhamos acesso a elas, durante todo o imaginá-
rio de gerações. Como disse anteriormente, foram três
­décadas.
Sobre a negação, silenciamento e diabolização de
negros, negras, assim como indígenas, ciganos e qui-
lombolas na literatura, poderíamos escrever várias te-
ses, como já existem de fato. Este artigo tem a intenção
de contrapor o racismo, trazendo o belo, o poder, a luta
e as afronarrativas para o cotidiano de tantas crianças,

PATRÍCIA PEREIRA DE MATOS


209

mulheres, homens, idosos que, injusta e ideologicamen-


te, não foram exaltados para serem referências. Escrever
sobre isso é ocupar espaços no imaginário brasileiro.
Lima (2020) nos diz que até pouco tempo “os acer-
vos eram unilaterais, com o ponto de vista europeu”, e
que “um dos desafios de meninos e meninas é não es-
tar num só lugar e sim no planeta”, explicitando assim
a importância da multiculturalidade, da diversidade de
povos, ampliando os saberes e fortalecendo as identi-
dades que constituem o povo brasileiro.
Posso dizer que o processo de percepção da au-
sência de mim mesma nas narrativas foi a partir de
minha iniciação no terreiro. Esse espaço, considerado
micro África brasileira, possibilitou a eclosão em mim
de muitas questões, o que atualmente conceituamos
como decolonialismo. Fui rompendo com as estruturas
de negação e silenciamentos, iniciando pesquisas e in-
vestigações a partir da igualdade racial.
Partimos dessa premissa para pensar em como
construir e fortalecer a beleza, a estética e a sofistica-
ção das narrativas negras e indígenas, já que “as lentes
dos modelos legitimados fizeram questão de não per-
cebê-las. Se tais poéticas permaneceram nos subterrâ-
neos ou silenciadas, era de se esperar que o público não
estivesse esteticamente disponível para aprendê-las”
(PEREIRA, 2014, p.146). Romper com a colonialidade é
trazer para a pauta do dia nossas oralidades e nossas
escrevivências e assim revolucionar o mundo a partir de
nossa potência literária, de nossa forma de ver, de viver
e de fazer o mundo.
As experiências como mulher de ancestralidade
negra, professora, coordenadora pedagógica, formado-
ra de professores e assessora pedagógica da Coorde-

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO CEARENSE:


MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER ANCESTRAL
210

nadoria Especial de Promoção da Igualdade Racial no


município de Fortaleza me possibilitaram compreender
e romper com as estruturas do silenciamento e da ne-
gação de mim e de tantas crianças em suas narrativas. O
primeiro passo foi compreender, o segundo me agrupar,
o terceiro estudar.

De mediadora de leitura à escritora

A partir do momento que adentrei ao espaço/de-


bate de igualdade racial, passei a perceber as histórias
como condutoras de identidade, ampliando e diversifi-
cando um repertório de narrativas, incluindo e excluin-
do sempre, buscando a valorização das estéticas e da
filosofia negra e indígena, catalogando títulos que valo-
rizassem a multiculturalidade dos povos tradicionais, o
que se amplia a partir da Lei 10.639/2003. Como nos diz
Conceição Evaristo (2014):
(...) a obrigatoriedade da temática História e cul-
tura afro-brasileira nos ensino fundamental e
médio, oficial e particular abre, sem dúvida al-
guma, um espaço de visibilidade para aspectos
pouco difundidos das culturas africanas e afro-
-brasileiras. É preciso forjar o reconhecimento de
que as culturas africanas, aqui aportadas, são for-
madoras da nacionalidade brasileira, e não meras
contribuições (EVARISTO, 2014, p. 113).

Observar, ouvir, sentir as afronarrativas de minha


família, de minha cidade, meu estado, meu país funda-
menta-se nos marcadores das africanidades, que “re-
velam-se propiciadores de autorreconhecimento da
ancestralidade africana” (FARIAS; PETIT, 2015, p. 140),
conceitos que denotam as matrizes africanas em cada

PATRÍCIA PEREIRA DE MATOS


211

indivíduo e suas coletividades. A partir disso, nascem as


escritas.
Acredito que é sine qua non falar em que momen-
to eclodiu minha escrita, um divisor de águas: a viagem
ao Benin (País da África Ocidental), no ano de 2012. Em
um mês, escrevi duas obras literárias e passei a compor,
assim como escrever poemas. Para mim, esse proces-
so de fruição confirma a importância de vivenciarmos
nossa essência ancestral, e assim nascem Adjokè e as
Palavras que Atravessaram o Mar e Na Agotimé: uma
rainha africana no Brasil. Na sequência, veio a obra O
Baú Ancestral História de Bisavó.
A experiência de escrever é potente, mas não po-
demos esquecer do poder da palavra, por isso quero ra-
tificar a importância da tradição oral, “o caráter sagrado
da fala, que é de origem divina, e as forças ocultas nelas
depositadas. Dessa forma, a fala é um dom de Deus. A
fala é a força vital, porque gera movimento, vida e ação”
(PETIT, 2015, p. 113), que por meio do canto e da memó-
ria faz com que as histórias permaneçam vivas em mim
e no mundo que dialogo.
Percebo como fundamental ressaltar o quanto
as histórias e suas personagens influenciam crianças,
jovens e adultos em suas percepções de si, do outro e
do mundo. Como nos diz Heloisa Pires Lima (2020), “a
literatura é um cantinho para elaborar sentimentos”,
aprendizagens múltiplas, sem precisar didatizar a nar-
rativa, visto que os saberes já estão pulsando em cada
palavra bem dita de forma bendita.

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO CEARENSE:


MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER ANCESTRAL
212

Figura 2

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 3

Fonte: Acervo pessoal.

PATRÍCIA PEREIRA DE MATOS


213

Nas figuras 2 e 3, podemos perceber a interação do


público com a contação de histórias, na praça do Pas-
seio Público e na Bienal Internacional do Livro do Ceará
e o desejo das pessoas por afronarrativas, a curiosidade
para saber mais, conhecer as palavras que atravessaram
o mar e que estão aqui no Ceará.
Adjokè é uma das saias do projeto “As saias que
contam”, das alunas da escola municipal de Maracanaú
Construindo o Saber. Também foi disciplina eletiva na
escola de tempo integral José Júlio da Ponte, intitulada
“Adjokè, uma história na Terra da luz”. Adjokè também
foi uma das histórias pesquisadas por Mirian Abondân-
cia em sua dissertação, cujo título é “Contar, cantar e
compartilhar no Programa Viva a Palavra: Cartografia de
Letramentos não Escolares na Comunidade Garibaldi”.

Figura 4

Fonte: Acervo pessoal.

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO CEARENSE:


MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER ANCESTRAL
214

Figura 5

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 6

Fonte: Acervo pessoal.

Nas figuras acima, experienciamos o Baú Ances-


tral: Histórias de Bisavó, acordando as afromemórias da

PATRÍCIA PEREIRA DE MATOS


215

infância, nos reconectando com nossas tataravós, bisa-


vós e avós, com suas narrativas que atravessam gerações
e mantém as tradições culturais vivas.
Na realidade africana tudo é conhecimento, todo
espaço é um lugar de aprendizagem, a fala ocupa
lugar de importância e não é usada apenas como
uso comunicativo, mas também como forma de
preservar e manter os saberes ancestrais. Esses
saberes sempre são guardados com os mais ve-
lhos, que transmitem para a comunidade (SÁVIA
REGIS, 2017, p. 29).

É interessante a vivência a partir do baú ancestral,


que suscita tantas memórias afetivas que estão guarda-
das, silenciadas e que pulsam africanidades e indigenei-
dades no cotidiano do Ceará, tecidas em nossas histó-
rias com o fio condutor da musicalidade, da culinária,
das rezas e chás de nossos antepassados. Saberes, faze-
res, artesanias, mestrias. Tesouros vivos em nós.

Figura 7

Fonte: Acervo pessoal.

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO CEARENSE:


MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER ANCESTRAL
216

Figura 8

Fonte: Acervo pessoal.

A figura 7 explicita o “Curso de Formação em Afro-


memórias dos Quilombos” para professores no muni-
cípio de Pacajus. A figura 8 mostra contação de história
realizada para crianças, pais e avós na praça da 4º etapa
do Conjunto Ceará. Esta última foi bem interessante,
pois quando mães e avós viram o baú, ficaram muito re-
ceosas do que pudesse haver dentro dele e as crianças
correram para saber quais tesouros estavam contidos
ali. Entre cantos e bailados, abrimos o baú de histórias
depois de ouvirmos narrativas das pessoas, fizemos ci-
randas e cantamos na praça. A vivência dessa obra lite-
rária também possibilita a produção coletiva e/ou in-
dividual dos participantes, como podemos ver a seguir:

PATRÍCIA PEREIRA DE MATOS


217

Memórias Ancestrais

(Ozaías Rodrigues/Anderson Meneses/Tirolês/


Julio Jamayka)

D Joguei a colcha no rio


Em Bm
Só pra tirar o sabão
F#m
Ô menino não se preocupe
AD
Colcha não sente frio, o rio não leva não
Capoeira vem do batuque
Em Bm
Contaram meus avós
F#m Lá naquela casa de taipa
AD
Onde viviam apenas nós
Refrão: Sou barro, sou canto, sou pranto que fere
Em Bm Que bate tambor, memórias na pele
D
Eu brincava ao redor da cacimba
Em Bm F#m
Vendo minha vó trabalhar
ADE
fazendo a canjica para todos nós merendar
Numa casa de Farinha
Em Bm
Ou dentro de um Alguidar
F#m A D
Fabricando Tapioca ou fazendo mugunzá
Repete Refrão
D
Mostrando a cultura da raça
Em Bm
Batuque vem do terreiro
F#m
Não é uma coisa que passa

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO CEARENSE:


MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER ANCESTRAL
218

D
Pois dura o ano inteiro
Alivio as minhas dores
Em Bm F#m
Com o som dos meus tambores nas memórias
ancestrais
D
O coco e o milho estão tão presentes
Em Bm
Quanto o Padre Cícero em nossas mentes
Repete Refrão 4x
Após a contação de histórias e toda a vivência es-
tabelecida com músicas, brincadeiras, memórias
e análises afroancestrais, os participantes produ-
zem poemas, cantos e narrativas, revelando a po-
tência essencial da reconexão.

Figura 9

Fonte: Acervo pessoal.

PATRÍCIA PEREIRA DE MATOS


219

Figura 10

Fonte: Acervo pessoal.

Figura 11

Fonte: Acervo pessoal.

Nas figuras acima, encontramos as capas das obras


literárias citadas ao longo deste artigo, escritas por mim.
São afronarrativas que têm como personagens princi-

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO CEARENSE:


MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER ANCESTRAL
220

pais mulheres negras em papeis decisivos de suas nar-


rativas, mas não atuam sozinhas e, sim, sempre em diá-
logos com outros povos, a fim de fortalecer a si, ao outro
e às coletividades.

(In)Conclusões

Percebemos ao longo deste artigo o poder das


narrativas, tanto positivamente quanto negativamente.
O que buscamos é o positivo, a valorização, a resiliência,
a essência de cada individualidade que se faz na cole-
tividade. Buscamos o empoderamento de crianças, jo-
vens, adultos e idosos, homens e mulheres que, além de
conhecer histórias silenciadas, possam também contar
suas histórias e de suas antepassadas com orgulho.
Buscamos compreender como as estruturas racis-
tas foram construídas na sociedade brasileira e assim
organizar estratégias para rompê-las e empoderar nosso
povo, reacendendo nossos saberes, que são fundamen-
tais para o bem-viver em nossa mãe terra, mantendo e
produzindo conhecimento.
Urge uma nova abordagem para a historiografia
brasileira, histórias essas que já pulsam na alma do povo,
contudo estão “deitadas em berço esplêndido”. Aqui,
faço referência à Cacique Pequena, do Povo Jenipapo
Kanindé (Aquiraz-Ceará), ao dizer que, “quando iniciou
a luta junto ao seu povo, viu que precisava acordá-lo do
sono profundo que foram forçados” (Depoimento oral).
Precisamos acordar, não apenas a nós mesmas,
mas também o nosso povo. A literatura é uma dessas
­possibilidades.

PATRÍCIA PEREIRA DE MATOS


221

Referências
DA GAMA, Garrido, Lazão. A estrada. Cidade Negra, 1998.
Coleção o Disquinho, 1960. Disponível em: https://ca� -
tracalivre.com.br/criatividade/nostalgia-historias-da-
-colecao-disquinho-estao-disponiveis-no-youtube/.
Acesso em: 11 jan. 2021.
DUARTE, Eduardo de Assis Duarte. (Org.) Conceição
Evaristo. Literatura e afrodescendência no Brasil: anto-
logia crítica. 4 v. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
DUARTE, Eduardo de Assis Duarte. (Org.) Edmilson Pe-
reira de Pereira. Literatura e afrodescendência no Bra-
sil: antologia crítica 4 v, Horizonte: Editora UFMG, 2014.
FARIAS, Kellynia; PETIT, Sandra. In: Pretagogia e Perten-
cimento Afro e os Marcadores das Africanidades: Cone-
xões entre corpos e árvores afroancestrais. Memórias de
Baobá II (Org.) Adilbênia Freire Machado, Maria Kellynia
Farias e Sandra Haydèe Petit. Fortaleza: Imprece, 2015.
LIMA, Heloisa Pires. Empoderando meninas através
da leitura, 2020. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=Ry3rreqIW6c. Acesso em: 11 jan. 2021.
PETIT, Sandra Haydée. Pretagogia, Pertencimento,
corpo-dança afroancestral e tradição oral africana
na formação de professoras e professores: contribui-
ções do legado africano para a implementação da Lei
10.639/2003. Fortaleza: EdUECE, 2015.
TUTTLE, Cheryl Gerson; PAQUETTE Penny. Invente jo-
gos para brincar com seus filhos. Tradução por Barbara
Lambert. São Paulo: Loyola, 1993.
RÉGIS, Sávia Augusta Oliveira. “Pretagogizando a con-
tação de histórias africanas e afro-brasileiras: cami-
nhos pedagógicos, possibilidades e contribuições para
a construção do pertencimento afro, 2017. Disponível
em: http://www.repositorio.ufc.br/hande/riufc/32098.
Acesso em: 23 jan. 2021.

AS NARRATIVAS AFROLITERÁRIAS TECIDAS NO COTIDIANO CEARENSE:


MEMÓRIAS, IDENTIDADE, LUTA E PODER ANCESTRAL
223

SOBRE OS AUTORES

Alcides Alves de Sousa — Possui licenciatura em Letras/Lite-


ratura (Faculdade Vale do Jaguaribe); Graduando em Pedago-
gia (Faculdade Maciço do Baturité – FMB); Professor da rede
estadual de ensino do Ceará e educador de Literatura da Es-
cola de Ensino Médio Florestan Fernandes (EEEMFF).
E-mail: alcidesche@yahoo.com.br

Carla Lorhaine da Silva — Graduanda do curso de Letras na


Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos.
E-mail: carla.lorhaine@aluno.uece.br

Cintya Kelly Barroso Oliveira — Doutora em Educação Brasi-


leira (UFC); Mestre em Letras (UFC); Especialista n’ O Ensino
de Literatura (UECE); Graduada em Letras (UFC), Professora
da rede estadual de ensino do Ceará e atuou em políticas pú-
blicas relacionadas à Educação Escolar Indígena e Educação
do Campo.
E-mail: ckletras@gmail.com

Fábio José Cavalcanti de Queiroz — Possui graduação em His-


tória (URCA), mestrado e doutorado em Sociologia (UFC) e
pós-doutorado em Educação (FACED-UFC). É professor asso-
ciado do Departamento de História da Universidade Regional
do Cariri (URCA).
E-mail: fabioqueirozurca@gmail.com

Francisco Alex de Oliveira Farias — Possui licenciatura em Física


(Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA); Especialista em
Ciências Física, Química e Biologia (Faculdade Internacional do
DELTA); Especialista em Gestão, Coordenação, Planejamento e
Avaliação Escolar (Instituto Superior de Teologia Aplicada – INTA);
Mestre em Ensino de Física (Universidade Estadual do Ceará –
UECE). É professor da rede estadual de ensino do Ceará, atual-
mente diretor da Escola Quilombola Luzia Maria da Conceição.
Email: alex.farias37@gmail.com

SOBRE OS AUTORES
224

Francisco Elisnaldo de Sousa — Indígena da etnia Tremem-


bé. Possui graduação em Letras (UECE) e Magistério Indígena
Tremembé Superior – MITS (UFC), especialização em Ges-
tão Escolar e Coordenação Pedagógica (Faculdade KURIOS)
e graduação em Língua Portuguesa e Literatura pela mesma
instituição. É professor efetivo da rede municipal de Itarema
e atua como professor da Escola Indígena Tremembé José Ca-
bral de Sousa.
E-mail: elisnaldo@gmail.com

Francisco Jardel dos Anjos da Silva (Jardel Potyguara) — Indí-


gena da etnia Potyguara, graduando em pedagogia (Faculda-
de Estácio de Sá – Pólo Tauá). É professor de Informática e Lín-
gua Indígena na Escola Indígena Povo Caceteiro e atua como
coordenador do Grupo Cultural Maneiro Pau Povo C ­ aceteiro.
E-mail: jardelpotiguara@gmail.com

João Antoniel da Silva Pinto — Possui graduação em Letras


(Faculdade Vale do Jaguaribe), Pós-graduado em Linguística e
Língua Portuguesa (Faculdade Maciço do Baturité – FMB), em
Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica pela mesma insti-
tuição e em Psicopedagogia Clínica e Institucional (Faculdade
Católica Nossa Senhora das Vitórias). Professor da rede esta-
dual de ensino do Ceará e educador de Literatura da Escola
de Ensino Médio Florestan Fernandes (EEEMFF).
E-mail: antonyelsilva1992@gmail.com

João Batista da Silva — Possui graduação em Pedagogia (FA-


CIBRA) e em Letras Português/ Inglês (FAFIBE). É especialista
em Tradução e Interpretação (FAEFI); em Gramática e Pro-
dução Textual em Língua Portuguesa (FAEFI); em Educação
Especial e Inclusiva (FIP); Libras: Tradução e Interpretação
(FAEFI); em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela FACI-
BRA (2017); em Libras (Faculdade ALFAMÉRICA). Atualmente
é mestrando em Letras (UNISC), professor do ensino superior
e da Escola Quilombola. Luzia Maria da Conceição.
E- mail: intrepretejoao@gmail.com

SOBRE OS AUTORES
225

Lorena da Silva Rodrigues — Doutora e mestra em Linguística


pela Universidade Federal do Ceará, por onde também cur-
sou licenciatura em Letras Português e suas respectivas litera-
turas (2007). Professora da rede estadual de ensino do Ceará.
Atua na área de Sociolinguística e, atualmente, está vinculada
ao projeto O Português Falado nos Países de Língua Oficial
Portuguesa (PALOP) e Timor-Leste.
E-mail: rodrilorena@gmail.com

Lorrany Mota de Almeida — Graduanda em Letras – Tecnolo-


gias de Edição e co-organizadora do projeto “Saúde Mental,
gênero, racismo e o ambiente acadêmico” no CEFET-MG.
E-mail: lorranymda@gmail.com

Marcela Magalhães de Paula — Doutora em Estudos Ibéricos


(Literatura Comparada Pós-Colonial) pela Universidade de
Bolonha e Universidade de Milão, na Itália. Graduada em Le-
tras pela Universidade Estadual do Ceará e com mestrado em
Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará. Cur-
sou também mestrado em Direitos Humanos e Gerência de
Conflitos na Scuola Superiore di Studi Avanzati Sant´Anna di
Pisa – Itália. Professora de português e cultura brasileira pelo
CCBI – Embaixada do Brasil em Roma.
E-mail: boana83@gmail.com

Maria Andreína dos Santos — Indígena da etnia Tremembé e


atuante no Movimento Indígena do seu povo, possui Magis-
tério Indígena Tremembé Superior (UFC), é especialista em
Psicopedagogia (Centro Universitário INTA – UNINTA) e pro-
fessora indígena na Escola Indígena Tremembé Mangue Alto
e atuou no Conselho Indígena Tremembé de Almofala (CITA).
E-mail: andreinatremembe@gmail.com

Maria Bernardete Alves Feitosa — Indígena Pitaguary. Mestre


em Planejamento e Políticas Públicas (UECE), graduada em
Letras (UFC), especialista em Língua Portuguesa e Literatura
Brasileira (UECE) e em Gestão da Avaliação Pública (Univer-
sidade Federal de Juiz de Fora – UFJF), professora indígena
e coordenadora escolar Indígena da Escola Indígena Itá-Ara.
E-mail: bernardetealvesfeitosa09@gmail.com

SOBRE OS AUTORES
226

Maria de Lourdes Vicente da Silva — Doutoranda em Edu-


cação Brasileira (UFC), mestre em Desenvolvimento e Meio
Ambiente (UFC), graduada em Licenciatura Plena em Peda-
gogia (UFPA), membro do Setor de Educação e Gênero do
MST e professora do Instituto Federal do Ceará – Campus
Crateús. Tem experiência na área de Educação, com ênfase
em Educação do Campo, questão agrária, gênero, feminismo
e ­ambiente.
E-mail: lourdesuece@gmail.com

Marilene Lopes Queiroz — Indígena Pitaguary. Cursou o Ma-


gistério Indígena Tapeba, Pitaguary, Jenipapo Kanindé (2004).
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do
Acaraú (2010). Professora da rede municipal de Maracanaú,
lotada na Escola Municipal José Mário Barbosa.
E-mail: marilenepitaguary@gmail.com

Patrícia Pereira de Matos — Mulher de axé, licenciada em


Pedagogia (UVA), é especialista em Metodologia do Ensino
Fundamental e Médio (UVA), habilitada em Língua Portuguesa
pela mesma instituição, é membro do Núcleo das Africanida-
des Cearenses (NACE/UFC), mestranda em Educação (UFC),
é supervisora escolar na Prefeitura Municipal de Fortaleza e
exerce a o cargo de assessora pedagógica da Coordenadoria
Especial de Promoção da Igualdade Racial (COPPIR). É conhe-
cida como Patrícia Adjokè, nome que recebeu quando esteve
no Benin, país da África Ocidental, e que lhe dá muito prazer.
E-mail: patriciamatos_ce@hotmail.com

Renata Moreira — Possui doutorado em Estudos Literários


pela UFMG. É docente do POSLING (Linha 4 – Edição, Lingua-
gem e Tecnologia); do Bacharelado em Letras – Tecnologias
da Edição e do ensino médio do CEFET-MG. Pesquisadora do
grupo Mulheres na Edição (CEFET-MG).
E-mail: natamoreira@gmail.com

Sarah Maria Forte Diogo — Doutora em Estudos Literários


(UFMG), mestre em Literatura Brasileira (UFC), professora de

SOBRE OS AUTORES
227

literaturas em língua portuguesa do curso de Letras da Facul-


dade de Filosofia Dom Aureliano Matos (FAFIDAM) – Universi-
dade Estadual do Ceará (UECE) e coordenadora do Grupo de
Estudos em Literatura Afro-Brasileira pela mesma Instituição.
E-mail: sarah.forte@uece.br

Terezinha Pereira da Silva (Teka Potyguara) — Indígena Poty-


guara. Possui graduação em Pedagogia (Universidade Vale do
Acaraú – UVA), graduação em Antropologia (Universidade Po-
litécnica Salesiana – UPS), em Quito, Equador e graduada em
licenciatura Intercultural indígena (UFC) Universidade Federal
do Ceará. Domina o Tupi Guarani. Possui Pós-Graduação em
Educação Escolar Indígena (Universidade Estadual do Mato
Grosso – UNEMAT), em Espanhol, Língua e Literatura (Univer-
sidade Vale do Acaraú – UVA) e em Gestão Escolar, com ênfase
em Pedagogia pela mesma instituição. Atualmente é diretora
da escola indígena estadual Povo Caceteiro. É agricultora com
incentivo de plantação sem agrotóxicos, consócio do algodão,
e perto de receber o selo da agricultura familiar.
E-mail: tekapotyguara@hotmail.com.

SOBRE OS AUTORES
Cintya Kelly Barroso Oliveira Maria de Lourdes Vicente da Silva
Doutora em Edu- Doutoranda em
cação Brasileira Educação Bra-
(UFC), mestre sileira (UFC),
em Letras (UFC), mestre em De-
especialista n’O senvolvimento e
Ensino de Litera- Meio Ambiente
tura (UECE), gra- (UFC), graduada
duada em Letras em Licenciatura
(UFC), professora da rede pública de Plena em Pedagogia (UFPA), mem-
ensino do estado do Ceará e atuou bro do Setor de Educação e Gêne-
em políticas públicas relacionadas à ro do MST e professora do Instituto
Educação Escolar Indígena e Educa- Federal do Ceará – Campus Crateús.
ção do Campo. Tem experiência na área de Educa-
ção, com ênfase em Educação do
Maria Bernardete Alves Feitosa Campo, questão agrária, gênero, fe-
Indígena Pita- minismo e ambiente.
guary, mestre em
Planejamento e Sarah Maria Forte Diogo
Políticas Públi- Doutora em Es-
cas (UECE), gra- tudos Literários
duada em Letras (UFMG), mestre
(UFC), especia- em Literatura
lista em Língua Brasileira (UFC),
Portuguesa e Literatura Brasileira professora de
(UECE) e em Gestão da Avaliação literaturas em
Pública (Universidade Federal de língua portugue-
Juiz de Fora – UFJF), professora indí- sa do curso de Letras da Faculdade
gena e coordenadora escolar Indíge- de Filosofia Dom Aureliano Matos
na da Escola Indígena ­Itá-Ara. (FAFIDAM) – Universidade Esta­dual
do Ceará (UECE) e coordenado-
ra do Grupo de Estudos em Lite-
ratura Afro-Brasileira pela mesma
­Instituição.
E
ste conjunto de textos, ao convocar olhares di-
versos em torno de “culturas e literaturas”, va-
loriza a produção de saberes em diálogo. A
pesquisa acadêmica sobre a literatura de autoras e
autores brasileiros (que integram ou não o cânone),
a literatura produzida em escolas do campo ou ter-
ritórios indígenas e os relatos de experiência a par-
tir de projetos pessoais e coletivos conversam entre
si. Apresentam um universo de possibilidades para
lermos literatura com o compromisso de repensar e
construir um futuro igualitário para todas e todos.
Suene Honorato

O
s artigos de análise, as produções literárias
e os relatos de experiência estão voltados,
sobretudo, à Cultura e à Literatura. A obra
está dividida em três seções, a saber: Diversidade e
Crítica; Diversidade e Literatura; Diversidade e Esco-
la. Os trabalhos abrigam-se sob essas três partes e
conversam entre si no que diz respeito à assumpção
da Diversidade enquanto elemento norteador. Enfa-
tizamos o termo Diversidade propositalmente para
reafirmar nosso posicionamento a favor da necessi-
dade de nos apropriarmos, e colocarmos em prática,
a percepção de que existimos num mundo bastante
heterogêneo. Toda essa Diversidade é substrato à Crí-
tica, à Literatura e à Escola, espaços de contestação e
de construção de outros modos de viver e conviver.

As organizadoras

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