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NARRATIVAS ORIGINÁRIAS

_____________
LÍNGUAS, ARTES E
COSMOLOGIAS INDÍGENAS

Volume 11, número 1 https://doi.org/10.30620/gz.v11n1


JAN-JUN/2023 ISSN 2318-7085
ISSN 2318-7085

Dossiê
Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas

Organização
Anny Carneiro Santos
Carla Lucilene Uhlmann
Elizabete Costa Suzart
Kárpio Márcio de Siqueira
Renata Lourenço dos Santos
Telma Cruz Costa

Fábrica de Letras
Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural (Pós-Crítica)
Departamento de Línguística, Literatura e Artes do Campus II da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Grau Zero Alagoinhas v. 11 n. 1 p. 1-260 jan./jun. 2023


ISSN 2318-7085

Dossiê
Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas

Organização
Anny Carneiro Santos
Carla Lucilene Uhlmann
Elizabete Costa Suzart
Kárpio Márcio de Siqueira
Renata Lourenço dos Santos
Telma Cruz Costa

Bases Indexadoras
© 2023 by Editora Fábrica de Letras
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus II
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Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural (Pós-Crítica)
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Elizabete Costa Suzart Crizeide Miranda Freire
Kárpio Márcio de Siqueira Edivonha Leite dos Santos
Renata Lourenço dos Santos Eider Ferreira
Telma Cruz Costa Gabriel Vidinha Corrêa
Luzineide Vieira de Souza
Equipe editorial: Marcelise Lima de Assis
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Preparação de texto: Wellington Neves Vieira
Antonio Cláudio da Silva Neto
Marcelise Lima de Assis Revisão de inglês:
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Projeto gráfico e Diagramação:
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Sítio de internet: http://revistas.uneb.br/index.php/grauzero
https://doi.org/10.30620/gz

Ficha Catalográfica

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, da Universidade
do Estado da Bahia, Alagoinhas: Fábrica de Letras, v. 11, n. 1, jan./jun. 2023.

Semestral
ISSN 2318-7085 online

1. Crítica cultural. 2. Cultura. 3. Literatura. 4. Modos de produção.

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Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural – Pós-Crítica


Coordenação: Prof. Dr. Osmar Moreira dos Santos
Vice-Coord.: Prof. Dr. Cosme Batista dos Santos

Laboratório de Edição Fábrica de Letras


Coordenação: Profa. Dra. Edil Silva Costa
Editor: Prof. Dr. Roberto H. Seidel
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Dossiê: Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas. Grau Zero: Revista de Crítica Cultural.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Alagoinhas, v. 11, n. 1. 2023. ISSN 2318-7085 on-line.

Conselho Editorial:
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Arlete Assumpção Monteiro (PUC-SP)
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Dulciene Anjos de Andrade e Silva (UNEB)
Edil Silva Costa (UNEB)
Frank Nilton Marcon (UFS)
Juciele Pereira Dias (UFF)
Lauro José Siqueira Baldini (UNICAMP)
Lucília Maria Sousa Romão (USP)
Marcelo Alario Ennes (UFS)
Maria de Fátima Berenice da Cruz
Marilda Rosa Galvão Checcucci Gonçalves da Silva (UFMA)
Marildo Nercolini (UFF) Mauren Pavão Przybylski (UNAM, MX)
Maurício Beck (UFF)
Patrícia Kátia da Costa Pina (UNEB)
Paulo César Souza Garcia (UNEB)
Sônia Maria dos Santos Marques (UNIOESTE)
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas
Anny Carneiro Santos, Carla Lucilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart,
11
Kárpio Márcio de Siqueira, Renata Lourenço dos Santos e Telma Cruz Costa

ARTIGOS

OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO: UMA CONVERSA


SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS 23
Cassia Beatriz Feleol Silva e Denize de Souza Carneiro

ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO E CULTURAL NO COLÉGIO


ESTADUAL INDÍGENA DE CORUMBAUZINHO, PRADO-BA 49
Maicon Rodrigues dos Santos

AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS


Laura Castro
73

INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE INDÍGENAS SURDOS:


UMA OUTRA PERSPECTIVA 97
Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes e Rita de Cássia Silva Sanglard

PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE ARTICULAÇÃO,


ORGANIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA LUTA PELOS DIREITOS ORIGINÁRIOS NO
CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR
115
Anyelle Gomes da Silva

AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA EDUCAÇÃO


ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM 135
Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA NOS


CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL
Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos, Shirley Vilhalva e
159
David Borges Limeira da Silva

PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS: UMA LINHA DE ESTUDOS


Pedro A. Corrêa de Brito
179

OS POVOS INDÍGENAS E A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:


CAMINHOS HISTÓRICOS QUE DEIXARAM MARCAS 203
Carla Lucilene Uhlmann e Mabli Nadjane Barbosa Barreto
RESENHAS

RESENHA DE LIVRO: O LUGAR DO SABER, DE MÁRCIA WAYNA KAMBEBA


Carla Lucilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart e Renata Lourenço dos Santos
219

ENTREVISTAS

CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre


Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada 231
Telma Cruz Costa

__________________________

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 253


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p11

APRESENTAÇÃO

A presente edição da Revista Grau Zero, organizada pelos estu-


dantes do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universi-
dade do Estado da Bahia, traz um dossiê temático com o propósito de re-
fletir acerca de dois grandes eixos interseccionados das cosmologias dos
povos originários. Primeiramente, entram na berlinda reflexões concer-
nentes as línguas, políticas, práticas pedagógicas e projetos educacionais
indígenas, nas mais diversas e plurais formas de relatos de experiências
interessados em refletir acerca do debate da Educação Escolar Indígena,
versando sobre questões relacionadas às pedagogias indígenas, aspectos
socioeducacionais, culturais, políticos e da própria Educação Escolar Indí-
gena, na interface dos povos e sua cosmovisão de mundo. Somando-se a
todo esse conjunto de saberes, o dossiê acolhe também textos que ver-
sam sobre as produções culturais indígenas, nas mais diversas formas de
modos de vida e suas expressões como a literatura, a música, os saberes e
as memórias, os deslocamentos e territórios.
Assim, o conjunto dessas reflexões constrói uma cena das lutas
políticas, estratégias de resistências e emergências dos movimentos in-
dígenas que ocuparam o cenário nacional no final do século passado ca-
racterizou-se como “o que podemos chamar de movimento indígena bra-
sileiro, ou seja, um esforço conjunto e articulado de lideranças, povos e
organizações indígenas objetivando uma agenda comum de luta, como
é a agenda pela terra, pela saúde, pela educação e por outros direitos”
(Baniwa, 2006, p.59). A garantia desses direitos, reconhecidos e assegura-
dos na Constituição de 1988 (Art. 231 e Art. 210), logrou, entre outros di-
reitos reclamados, a contextualização da educação escolar nos territórios
indígenas e políticas de formação específica, diferenciada, mais ampla de
professores indígenas locais.
A educação escolar indígena, pautada em uma perspectiva dos sa-
beres e tradições dos povos originários, despontou como princípio no for-

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Renata Lourenço dos Santos e Telma Cruz Costa

talecimento dos modos de vida, projetos futuros das comunidades e tradi-


ções que pautaram os projetos das escolas nas comunidades indígenas com
a autoria de lideranças comunitárias, comunidade, anciãos e professores
indígenas, os principais interessados em promover uma mudança efetiva
nas práticas e nas tradições de ensinar e aprender na cultura e com a cul-
tura das comunidades, sendo as línguas e as memórias as bases para essa
reconfiguração escolar firmada na premissa de que “o que a sociedade na-
cional chama de educação nós [povos tradicionais] chamamos tradição”
(Nhenety KX in Memória. Índios na visão dos índios (GERLIC, 2012)). Com
o acesso às tecnologias de informação e comunicação, este recurso apro-
ximou e permitiu que alguns povos pudessem registrar digitalmente suas
expressões, conhecimentos e representações de si mesmos e mostrar para
indígenas e não indígenas o mundo plural que os abarca, além do acesso a
outras formas e métodos de partilhas de saberes e modos de vida definidos
pelas comunidades. O xamã e líder político Davi Kopenawa, argumenta ter
escrito o livro “A Queda do Céu: palavra de um xamã yanomami” (2015) para
que os brancos possam enfim ouvir as vozes da floresta e, quem sabe, pen-
sar “com mais retidão a seu respeito?” De modo análogo, lideranças indíge-
nas, a exemplo de Ailton Krenak, Gersen Baniwa, Sônia Guajajara, cacique
Mário Juruna fazem ecoar, em lugares como a Câmara dos Deputados e
na Assembleia Constituinte (Brasília, 1987), a voz da ancestralidade como
tantas outras vozes que somam e reverberam o pensamento de Valdelice
Kaiowá que diz ser preciso “fazer o papel falar” em dias atuais e o ensina-
mento de Cacique Lázaro Kiriri “Queremos uma escola que não o índio se
torne médico sem deixar de ser índio”.
Assim, foi a partir desses movimentos que, homens e mulheres in-
dígenas, usando seus “arcos e flechas”, ressignificados em suas tradições
e ancestralidades, fizessem destes as suas novas “armas”. Eliane Potigua-
ra foi a primeira mulher indígena a publicar em 1989: A terra é a mãe do
índio, preparado e publicado pelo GRUMIN (Grupo Mulher – Educação
Indígena), coordenado pela autora. Assim como Kopenawa, Nhenety KX,
Potiguara e tantos outros intelectuais indígenas, escrevem na língua por-
tuguesa para chamar a atenção dos juruás ‘homens brancos’ (em Tupi-
Guarani), em todos os sentidos possíveis. O escritor Daniel Munduruku

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Apresentação
Narrativas originárias:
línguas, artes e cosmologias indígenas

lançou em 1996 o livro Histórias de índio, cujo título disparou o boom da


literatura indígena voltada para o público infanto-juvenil, escrita pelos pró-
prios indígenas. Diante da imensa pluralidade do universo das tradições e
modos de vida dos povos originários, reconhecer uma educação específi-
ca, intercultural, diferenciada, comunitária, bilíngue e ancorada na inser-
ção dos principais interessados em suas questões é um imperativo para se
pensar se “existe ainda a possibilidade da não-escola, como forma de não
submissão ao Estado para algum(s) povo(s) indígena(s), ou é uma fatalida-
de (um mal necessário, para todos) a escola?” (D’Angelis, 2012).
Sabemos que o livro [didático] é uma ferramenta do conheci-
mento [científico ocidental] e como bem destaca Krenak, há séculos que
os povos originários vêm articulando suas Ideias para adiar o fim do mun-
do, nas suas diversas cosmologias e cosmogonias. Ademais, esta é a Década
Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032), a qual marca um período
ímpar no movimento de fortalecimento das lutas e resistências das ditas
“línguas minoritárias/minorizadas”, em detrimento ao português, mantido
como língua majoritária pelo colonialismo linguístico no território nacional,
que, há séculos, oficializa a língua nacional do Brasil como monolíngue. É
preciso reorganizar o direito à políticas linguísticas dos povos originários,
fomentando, criando e implementando políticas educacionais e linguís-
ticas nas quais tanto as línguas quanto às práticas educacionais indígenas
construídas, definidas e aprimoradas pelos próprios indígenas tomem o seu
devido lugar e valor como um patrimônio cultural das populações originá-
rias e instrumento principal de fortalecimento dos projetos comunitários,
no território nacional. Lembrar que é a escola que se encontra em território
indígena, isto faz toda a diferença para se pensar em tradição oral, sabedo-
rias indígenas, formação continuada de professores, alfabetização em língua
indígena materna (L1), material didático através do qual seja incorporado,
principalmente, o universo do signo dentro da cosmologia indígena, pro-
duzidos por professores indígenas, fazendo uso do livro e toda sorte de ma-
terial como um canal para restabelecer outras formas de interlocução com
os juruás, reafirmando o que postula a Declaração Universal dos Direitos
Linguísticos (artigo 28º 1996): “Todas as comunidades linguísticas têm direi-
to a um ensino que permita aos seus membros adquirirem um conhecimen-

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to profundo do seu patrimônio cultural [...], assim como melhor conheci-


mento possível de qualquer outra cultura que desejem conhecer”.
Assim como a Educação Escolar Indígena, o processo de autoinclu-
são dos povos originários na política nacional durante os anos 70 e 80 do
século passado possibilitou uma maior circulação das produções culturais
dos povos originários, provocando uma ressignificação tanto na compre-
ensão e percepção dos modos de vida e prática culturais dos povos indí-
genas do Brasil quanto na sua complexa relação com os demais habitantes
deste vasto território. Com efeito, o alastramento das mais variadas formas
de produção cultural trouxe à baila uma infinidade de debates políticos
que demarcaram uma agenda para se repensar acerca do lugar e papel
histórico dos povos originários durante a transição entre o fim de duas dé-
cadas de ditadura militar e a (re)democratização do país, traduzindo-se em
um período marcado por ávidos esforços de conscientização e organização
social por meio de enfrentamentos coletivos das lideranças dos povos in-
dígenas com vistas à garantia dos direitos fundamentais à terra, à saúde,
à educação e preservação de suas tradições e costumes (Baniwa, 2006;
Krenak, 2015). Para Baniwa (2006, p.73), a década de 1980 “foi um período
extremamente rico, principalmente no que diz respeito às mobilizações in-
dígenas”, por meio de encontros e assembleias entre os povos, numa luta
que culminou em grandes conquistas na Constituição de 1988. Na esteira
desse amplo processo, tornam-se de maior alcance e mais efetiva as intera-
ções entre as aldeias e os não indígenas, promovendo o acesso de diversos
povos às tecnologias de comunicação, as quais permitiram o contato e co-
nhecimento das novas ferramentas tecnológicas, a aprendizagem do ma-
nuseio, da manipulação e do uso com vistas à dar formas às suas vivências,
seja por meio de textos, de sons, dos grafismos ou filmes.
A escuta e leitura do português brasileiro adensou a aproximação
dos povos das ferramentas externas, dos processos de produção e da rea-
lização indígena nas mais variadas expressões artísticas e culturais como a
literatura e o audiovisual, para ficarmos apenas em dois exemplos de pro-
duções (Baniwa, 2006). Nesse sentido, a literatura indígena vem se firman-
do por meio da produção de textos escritos, ilustrados e idealizados pelos
próprios indígenas, de dentro de suas vivências, sejam elas nos espaços

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Apresentação
Narrativas originárias:
línguas, artes e cosmologias indígenas

rurais ou urbanos, e sejam individualmente ou de autoria coletiva, em sua


maioria estimulados e iniciados como forma de registro das histórias orais
dos avós, avôs, anciões e conhecedores da história local onde vivem os au-
tores dessa literatura (JEKUPÉ, 2009; GRAÚNA, 2013; MUNDURUKU, 2021).
Os impressos indígenas começaram a ser publicados no Brasil no final dos
anos 1970. Eliane Potiguara, a primeira representante pública feminina,
expôs o poema “Identidade indígena” como uma maneira de conferir sua
trajetória e de sua família, em 1975. Já o impresso pioneiro desta literatura
foi em 1994 com a publicação do Todas as vezes que dissemos adeus de Kaká
Werá Jekupé. O livro de Kaká Werá foi uma inspiração para as próximas pu-
blicações e traz relatos do autor sobre as suas vivências entre os dois mun-
dos, o mundo da aldeia e o mundo branco. Por sua vez, as ferramentas de
registros de audiovisual permitem a captura e registro das memórias, cos-
tumes, rituais, mitologias e cosmologia dos povos, possibilitando a produ-
ção e circulação de livros, vídeos, documentários, podcasts entre outro[s],
com potencial de se tornarem material didático para as escolas. Logo, cada
vez mais, entrevistas e registros são realizados pelos professores indígenas
em suas comunidades, com as pessoas de referência das histórias e saberes
locais, que normalmente envolvem os anciões e anciãs das aldeias: quem
conhece as histórias e quem guarda a memória do povo.
Diante do exposto, com um dossiê intitulado Narrativas originárias
e educação escolar indígina: línguas, artes e cosmologias indígenas nas inter-
faces entre saberes, práticas escolares e modos de vida dos povos originários,
a Revista Grau Zero abriu mais esse espaço de troca de conhecimentos e
debate para contribuir com várias formas de leituras e/ou interpretações
pertinentes a questões das educações e culturais dos povos indígenas: so-
bre ações e políticas de fortalecimento da língua indígena; autoria e auto-
nomia de produção literária, formação de professores indígenas na Educa-
ção Intercultural, elaboração de currículos educativos próprios, processos
próprios de aprendizagem, dentre outros temas acolhidos nesse dossiê.
Oferecemos um espaço proposto para compreender mais sobre tradição,
memória, as culturas ancestrais e projetos comunitários de povo que cons-
tituem o Brasil com sua característica forte na multiplicidade de línguas e
riqueza pluricultural dos seus povos, abordando reflexões que perpassam

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pelas práticas formativas de professores indígenas e não indígenas, relatos


de experiências e de projetos pedagógicos e educacionais voltados para
essas questões que envolvam e/ou dialogam com os povos originários.
Aproveitamos este espaço para expressar nossa sincera e profunda grati-
dão a todas as pessoas que aceitaram este convite, os quais, aqui formam
um coletivo composto de autoras, autores, pesquisadoras e pesquisadores
indígenas e não indígenas advindos de mais diversos territórios.
Iniciamos o dossiê com o ensaio intitulado Os Munduruku, os Wai Wai
e o Português Acadêmico: Um Diálogo sobre Desafios, Superando Barreiras e Es-
tratégias Linguísticas Afirmativas, de autoria das pesquisadoras Cassia Beatriz
Feleol Silva e Denize de Souza Carneiro. O referido ensaio apresenta os re-
sultados de uma pesquisa que se debruçou sobre os obstáculos enfrentados
pelos estudantes pertencentes às comunidades Munduruku e Wai Wai na
Universidade Federal do Oeste do Pará, particularmente no sentido mape-
ar e compreender as estratégias adotadas pelos discentes para transcender
esses desafios e corresponder às exigências acadêmicas de competência lin-
guística. Os dados utilizados pelas pesquisadoras para embasar essa análise
foram coletados mediante entrevistas conduzidas junto a quatro estudantes
de cada grupo étnico em questão. Já a avaliação das respostas destes estu-
dantes revela que, apesar de serem proficientes em suas línguas maternas e
demonstrarem fluência no idioma português, são perceptíveis as dificulda-
des enfrentadas por eles ao interagir com a variante do português utilizada
no contexto acadêmico. De maneira conclusiva, a pesquisa assinala os meios
pelos quais os discentes e as discentes demonstram notável resiliência e in-
ventividade, adotando variadas estratégias a fim de perseverar no ambiente
universitário e oferecem sugestões visando aprimorar a comunicação entre
a instituição de ensino e essa parcela dessa categoria estudantil.
O ensino de língua e cultura indígena nas escolas é o foco do ar-
tigo Estratégias de fortalecimento linguístico e cultural no Colégio Estadual
Indígena de Corumbauzinho, Prado BA, do pesquisador Maicon Rodrigues
dos Santos. Nele, o autor procura identificar as estratégias elaboradas pelos
professores Pataxó da aldeia Corumbauzinho, com a finalidade de fortalecer
o ensino da cultura e da língua indígena. Essa pesquisa pauta-se em uma
abordagem qualitativa, cujos resultados apontam para o fato de que os

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Apresentação
Narrativas originárias:
línguas, artes e cosmologias indígenas

professores indígenas da aldeia Corumbauzinho esforçam-se para fortale-


cer a língua e a cultura indígena utilizando várias estratégias. A conclusão da
pesquisa sugere que o apoio da Secretaria de Educação do Estado da Bahia
é fundamental para o fortalecimento da língua e da cultura indígena por
meio de concursos públicos específicos para docentes nas áreas de cultura,
bem como a promoção no fomento de projetos de formações continuadas
para professores, com atuação nas áreas de língua e de cultura indígena.
O ensaio intitulado Cosmopoéticas de livras e escritas indígenas, escri-
to pela pesquisadora Laura Castro, parte da premissa de que a arte, o papel,
o desenho, o livro e a escrita, que historicamente foram instrumentos de
opressão em nossa história colonial, podem ser reavaliados como recursos
colaborativos na luta pelo território e pela própria resistência, sob a orienta-
ção de líderes e pensadores indígenas. O objetivo deste ensaio é examinar
essa perspectiva com base nas obras e canções de líderes de comunidades
indígenas, bem como nas criações de artistas indígenas contemporâneos,
promovendo uma intersecção de ideias entre essas expressões e as pers-
pectivas de pensadores indígenas e afro-diaspóricos. Isso visa a antecipar
a diversidade de mundos e alfabetos, que apontam para novas éticas e
políticas relacionadas ao livro e à escrita, colocando em diálogo obras, dis-
cursos e propostas poéticas de diversos pensadores e pensadoras como
Davi Kopenawa, Joseca Yanomami, Denilson Baniwa, Jaider Esbell, Daiara
Tukano, Gustavo Caboco, Lucilene Wapichana, Bernaldina José Pedro, Zabe-
lê Pataxó, Ane Kethleen Pataxó e Uýra Sodoma, a fim de refletir acerca das
cosmopoéticas envolvidas nas formas indígenas de escrita e livros.
O debate concernente à inclusão de alunos indígenas surdos nas
instituições de ensino primário, com ênfase no modelo de ensino bilín-
gue, assume um caráter distintivo e ponderável, é foco central do artigo
intitulado Interculturalidade e Identidade Cultural dos Indígenas Surdos: Uma
Perspectiva Alternativa, escrito pelo pesquisador Diones Clei Teodoro Lopes
e pelas pesquisadoras Maria Christine Berdusco Menezes e Rita de Cássia
Silva Sanglard. Nesse âmbito, os autores promovem uma análise crítica das
abordagens implementadas em diferentes regiões do Brasil com relação à
integração dos alunos indígenas surdos no sistema educacional, notada-
mente durante os anos iniciais e finais do ciclo do ensino fundamental. Este

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exame é conduzido sob o prisma de uma abordagem dialética, que incor-


pora uma revisão crítica e uma reflexão profunda. A investigação se pauta
na análise dos dados à luz da literatura especializada em língua de sinais,
cultura indígena surda e bilinguismo, amparada pelo arcabouço teórico do
método histórico-cultural de Vigotski. Os resultados do estudo evidenciam
a presença de signos compartilhados pelos estudantes surdos nas comuni-
dades indígenas, os quais são frutos de sua própria concepção linguística.
Em última instância, os autores concluem que se faz premente a necessida-
de de identificar os elementos culturais que conformam a identidade des-
ses discentes, bem como os contextos nos quais emergem os referidos sig-
nos linguísticos surdos inerentes à cultura, e, adicionalmente, a forma pela
qual tais signos se legitimam e interagem com a Língua Brasileira de Sinais.
No ensaio intitulado Protagonismo epistemológico indígena: modali-
dades de articulação, estrutura e legitimação na defesa dos direitos originários
durante o período da ditadura civil-militar, a pesquisadora Anyelle Gomes da
Silva empreende uma reflexão a respeito de como o período da ditadura ci-
vil-militar transcende sua importância histórica meramente como um epi-
sódio na trajetória do Brasil. Em vez disso, a autora argumenta que a violên-
cia infligida aos povos indígenas durante esse período persiste como uma
influência marcante na psicologia de numerosas identidades indígenas,
ainda que lamentavelmente permaneça amplamente desconhecida para
a maioria da população. Para a pesquisadora, o debate crítico contemporâ-
neo assumiu a responsabilidade de examinar as omissões e o silenciamen-
to enfrentados pelos povos indígenas durante um período profundamente
complexo e obscuro, ou seja, o regime militar. No entanto, a autora salienta
que, além de ampliar o entendimento sobre os desapossamentos, a apro-
priação de terras, a supressão cultural e o genocídio que eles sofreram, é
imprescindível analisar as estratégias adotadas pelos povos indígenas para
se organizar como uma comunidade unificada. Eles conseguiram articular
várias regiões e etnias, iniciando um movimento de alcance nacional que
evoluiu para um movimento pan-indígena. Esse movimento tinha como
propósito, em sua essência educativa, resgatar e reinterpretar a formação
da consciência dos povos indígenas, promovendo uma nova lógica de au-
tonomia e autodeterminação em seus modos de vida e existência.

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Apresentação
Narrativas originárias:
línguas, artes e cosmologias indígenas

Os efeitos de como a atuação do Movimento Indígena do Ama-


zonas vem impactando a implementação da Educação Escolar Indígena
(EEI) enquanto modalidade educacional é objeto de discussão do artigo,
Ação decolonial do movimento indígena em torno da educação escolar in-
dígena em Manaus-AM, escrito por Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene
Gomes da Cruz. O escopo da investigação reside na exploração das estra-
tégias empregadas por este movimento, notadamente sua abordagem
decolonial, em assegurar os direitos constitucionais dos povos indígenas,
com enfoque especial na região amazônica. O propósito fundamental do
estudo é realizar uma análise crítica da atuação do Movimento Indíge-
na, enfatizando o aspecto da decolonialidade, e examinar as conquistas
legais que culminaram na promulgação de legislações que garantem
uma educação escolar diferenciada para as comunidades indígenas. A
pesquisa adota uma metodologia qualitativa, que abrange pesquisa
bibliográfica, análise documental e pesquisa de campo. No último
estágio, as entrevistas semiestruturadas foram conduzidas por meio de
plataformas digitais, como o Google Meet e WhatsApp. Os resultados do
estudo apontam para avanços na implementação da EEI, embora sub-
sistam desafios significativos que requerem superação, a fim de efetivar
uma educação escolar específica e culturalmente relevante, em conformi-
dade com os preceitos legais pertinentes.
Com base em uma abordagem sociolinguística, que se concentra
na análise da interação entre contexto social, linguagem e sociedade, o
presente ensaio, intitulado Diversidade linguística e cultural na perspectiva
indígena nos campos institucional e educacional e elaborado pela pesquisa-
dora Soraia Santos, destaca a centralidade da linguagem e dos diversos co-
nhecimentos linguísticos como elementos fundamentais na configuração
da identidade, da ciência e da cultura. O artigo ressalta a função da lingua-
gem como um meio para estabelecer mecanismos de interação social que,
por sua vez, veiculam uma concepção de mundo. A riqueza da diversidade
linguística é destacada como um elemento enriquecedor na forma de per-
ceber e vivenciar o mundo. De acordo com a autora, a capacidade de com-
preender e utilizar várias línguas amplia a experiência, alterando as formas
de atribuir significados e de agir em relação à vida e ao mundo.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 11-22, 2023 | 19


Anny Carneiro Santos, Carla Lucilene Uhlmann,
Elizabete Costa Suzart, Kárpio Márcio de Siqueira,
Renata Lourenço dos Santos e Telma Cruz Costa

No ensaio intitulado Presenças Indígenas na Guerra de Canudos: Uma


Linha de Pesquisa, o pesquisador Pedro Andrade Corrêa de Brito parte do
pressuposto de que a presença de indivíduos indígenas em Belo Monte de
Canudos tem sido objeto de menção desde os eventos da Grande Guerra,
embora os registros históricos sejam fragmentados e careçam de detalhes
substanciais. O pesquisador assinala como esses documentos primários,
em sua maioria, são interpretados com base em relatos de testemunhas
do conflito que estavam alinhadas com a facção republicana, como corres-
pondentes de guerra e militares que participaram das operações militares
no campo de batalha. Não obstante, ao longo do último século, o tópico
relativo à presença indígena em Canudos e sua participação nos eventos
conselheiristas foi largamente negligenciado como um tema de pesqui-
sa específico. Algumas exceções mencionaram a participação dos índios
em episódios significativos da história de Canudos, mas de forma geral, o
tema foi ignorado. Somente no final do século XX é que começaram a sur-
gir estudos que se dedicaram explicitamente às experiências indígenas em
Belo Monte e na Guerra de Canudos, traçando assim uma nova vertente
de pesquisa. O artigo apresenta os principais trabalhos que surgiram nessa
vertente, excluindo as demais abordagens sobre Canudos que meramente
fazem menção aos indígenas. Ao mesmo tempo, o autor reflete sobre as
condições e as potencialidades que cercam a inclusão e a ausência de te-
mas indígenas na produção de conhecimento acerca de Canudos.
Encerrando a seção de artigos, o estudo conduzido pelas pesquisa-
doras Carla Lucilene Uhlmann e Mabli Nadjane Barbosa Barreto, intitulado
“Os Povos Indígenas e a Educação de Jovens e Adultos: Trajetórias Históricas
e suas Influências Duradouras,” investiga a interligação entre a chegada dos
jesuítas ao Brasil e o surgimento da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Esse
processo foi marcado por confrontos de natureza cultural, social e linguísti-
ca, e, após a constituição do Estado, ele passou a ser o principal responsável
pela formulação de diretrizes específicas para essa modalidade educacio-
nal. As autoras questionam as potenciais contribuições dos jesuítas para a
Educação de Jovens e Adultos (EJA), com uma atenção particular voltada
ao papel desempenhado por essa ordem religiosa na evolução histórica da
EJA, levando em consideração seus próprios métodos pedagógicos e sua

20 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


Apresentação
Narrativas originárias:
línguas, artes e cosmologias indígenas

transmissão de conhecimento. O ensaio destaca como a análise das fontes


documentais evidencia o contínuo impacto dos povos indígenas, que, mes-
mo coexistindo em uma sociedade brasileira caracterizada por uma mul-
tiplicidade de culturas, ainda contribuem com suas perspectivas culturais
e modos de conceber um mundo mais equitativo. Isso desafia a noção de
educação como um ato de caráter revolucionário e político.
A resenha deste dossiê foi proposta pelas pesquisadoras Carla Lu-
cilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart e Renata Lourenço dos Santos, que
nos apresentam o livro O Lugar do Saber, da escritora indígena Márcia Wayna
Kambeba, destacando o trabalho da autora como uma voz questionadora e
fundamental no contexto da literatura indígena contemporânea, particular-
mente tanto por sua formação acadêmica nas áreas de humanidades quan-
to pelo seu destacável ativismo na defesa dos direitos dos povos indígenas
e na valorização da sabedoria ancestral. Kambeba desponta como uma voz
singular no cenário da literatura brasileira, particularmente na abordagem
das questões indígenas e do conhecimento tradicional. Oriunda da comuni-
dade Kambeba, situada às margens do Rio Negro, no Amazonas, a escritora
pertence à etnia Omágua/Kambeba, com uma rica herança cultural e ances-
tral transmitida ao longo das gerações. Seu livro, O Lugar do Saber, publicado
em 2020 pela editora Casa Leiria, inscreve-se como uma obra que destaca a
autoridade indígena feminina na construção de narrativas e na promoção
de um diálogo intercultural profundo. Ao mesmo tempo em que a resenha
ressalta a importância de sua formação acadêmica de Márcia, com gradu-
ação em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas e um mestrado
em Geografia, desempenha um papel essencial na riqueza do conteúdo de
seu livro, pois parte das poesias apresentadas na obra tem origem em sua
dissertação de mestrado, unindo sua formação acadêmica com suas raízes
culturais, Márcia Wayna Kambeba não é apenas uma escritora e poetisa, mas
também uma incansável ativista na defesa dos direitos dos povos indígenas,
na promoção da educação contextualizada e na preservação do meio
ambiente. Sua obra literária se torna um veículo para transmitir a riqueza da
cultura e da história indígena, visto que a escritora abraça seu duplo papel
de líder social e pesquisadora, combinando a tradição oral indígena com um
profundo domínio dos saberes teóricos e científicos, propondo, por meio

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 11-22, 2023 | 21


Anny Carneiro Santos, Carla Lucilene Uhlmann,
Elizabete Costa Suzart, Kárpio Márcio de Siqueira,
Renata Lourenço dos Santos e Telma Cruz Costa

de sua escrita, uma reflexão crítica e sensata sobre questões que há muito
tempo negligenciam o pensamento indígena e a contribuição intelectual
dos povos indígenas na sociedade contemporânea.
O dossiê encerra com uma entrevista conduzida pela professora e
pesquisadora Telma Cruz Costa a ativista indígena e professora Rosilene
Tuxá, em um diálogo em que se discute suas memórias ancestrais, desta-
cando a importância dos caminhos percorridos em sua jornada, enfrentan-
do desafios e construindo relações significativas. Rosilene ressalta a resili-
ência e a luta de seu povo, os Tuxá, no nordeste da Bahia, evidenciando o
compromisso não apenas com sua comunidade, mas também com outros
povos indígenas. Rosilene também chama a atenção para a relevância da
retomada da terra do povo Tuxá em Rodelas/BA, destacando o fortaleci-
mento da ancestralidade e da cultura. Ao abordar sua trajetória profissional
e sua atuação no Ministério da Educação, ela destaca a importância das
políticas para a Educação Escolar Indígena, incluindo o acesso e perma-
nência de estudantes indígenas na universidade, fortalecimento de cursos
interculturais e formação continuada de professores. Avaliando o cenário
sociopolítico, ela destaca os desafios enfrentados nos últimos seis anos e
a necessidade contínua de lutar pela preservação dos direitos dos povos
originários. Finalmente, Rosilene compartilha suas expectativas para sua
atuação no MEC, enfatizando a construção de relações federativas e a im-
portância dos cursos interculturais para a consolidação de currículos espe-
cíficos nas escolas indígenas.
Entregamos esse dossiê feito por muitos corpos, vozes e mentes, e
desejamos uma leitura instigante e inspiradora.

Anny Carneiro Santos


Carla Lucilene Uhlmann
Elizabete Costa Suzart
Kárpio Márcio de Siqueira
Renata Lourenço dos Santos
Telma Cruz Costa
Organizadores

22 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p23

OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:


UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E AÇÕES
AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

Cassia Beatriz Feleol Silva1


Denize de Souza Carneiro2

Resumo: Apresentamos, neste trabalho, os resultados de uma pesquisa so-


bre os desafios relacionados ao português acadêmico que impactam a per-
manência de graduandos Munduruku e Wai Wai na Universidade Federal do
Oeste do Pará assim como as estratégias que usam/usaram para driblar os
problemas a fim de atenderem às práticas de letramento exigidas neste am-
biente. Os dados que serviram de base para descrição e reflexão sobre o tema
foram obtidos por meio de entrevistas junto a quatro estudantes de cada
povo. A análise do conteúdo de suas falas mostra que, além de falantes de
suas línguas maternas, têm fluência na língua portuguesa, mas manifestam
dificuldades para interagir na variedade português acadêmico. Apesar disso,
são resistentes, resilientes e ativos: adotam diversas alternativas para perma-
necer na universidade e apontam ações que a instituição poderia adotar para
melhorar sua interação comunicativa.
Palavras-chave: Português indígena. Português acadêmico. Ações afirmati-
vas linguísticas na universidade. Graduandos Munduruku e Wai Wai.

THE MUNDURUKU, THE WAI WAI AND ACADEMIC PORTUGUESE:


A CONVERSATION ABOUT HARDSHIPS, OVERCOMINGS AND LINGUISTIC
AFFIRMATIVE ACTIONS

Abstract: We present, in this paper, the results of a survey on the challenges


related to academic Portuguese that impact the permanence of Munduruku
and Wai Wai undergraduates at the Federal University of Western Pará, as well
as the strategies they use/used to overcome such problems in order to meet

1. Mestre em Linguística no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), da Universidade Fede-


ral do Oeste do Pará. Graduada em Letras Inglês/Português pela mesma universidade. Pesquisa-
dora do Grupo de Estudos Linguísticos do Oeste do Pará (GELOPA). E-mail: bfeleol@outlook.com.
2. Doutoranda em Linguística no Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL), da Universidade
de Brasília (UnB). Mestra em Linguística pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professo-
ra na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). E-mail: denizesc10@gmail.com.

[Recebido em: 10 abr. 2023 – Aceito em: 08 jul. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 23


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

the literacy practices required in the university environment. The data that
based the description and reflection on the subject was obtained through
interviews with four students from each group. The analysis of the content
of their speeches shows that, in addition to being speakers of their mother
tongues, they are fluent in Portuguese, but show difficulties when interacting
with academic Portuguese. Despite this, they are driven, resilient and active:
they adopt several alternatives to stay at the university and point out actions
that the institution could adopt to improve their communicative interaction.
Keywords: Portuguese indigenous. Academic Portuguese. Affirmative lin-
guistic agenda at the university. Munduruku and Wai Wai graduates.

Palavras iniciais

A presença de estudantes indígenas nas instituições de ensino


superior (públicas e privadas) era bastante restrita antes da Lei Federal n°
12.711/2012, visto que, até 1990, essa modalidade de ensino, para eles, não
fazia parte das agendas do governo. Tal presença foi crescendo, paulatina-
mente, devido à necessidade de formação de professores para as escolas
das aldeias e, também, em função das lutas dos movimentos indígenas,
com apoio de indigenistas.
Havia, em 2004, uma estimativa de cerca de 1.300 estudantes que
tiveram seu ingresso nas universidades, incentivados pelo Programa Uni-
versidade para Todos (ProUni) do governo federal (PALADINO, 2012). Esse
número aumentou para cerca de 8 mil em 2012 como consequência das
determinações do Plano Nacional de Educação e de outras diretrizes que
consolidaram os direitos indígenas. Dados do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostraram que o número
de estudantes indígenas ingressantes saltou de 10.219 para 80.652 entre
2010 e 2019. Como é perceptível, os maiores obstáculos não estão mais no
acesso dos indígenas às universidades, pois isso já acontece. O problema
atual é garantir que permaneçam estudando, considerando os inúmeros
desafios, como: dificuldades financeiras; diferenças socioculturais; embate
com novos conhecimentos; pouco domínio dos conhecimentos da cultu-
ra dominante; preconceito institucional; barreira linguística; ausência dos
conhecimentos tradicionais indígenas pela universidade; falta de acompa-

24 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

nhamento pedagógico (PALADINO, 2012), dificuldades no uso das ferra-


mentas digitais e tecnológicas, dentre outros.
A Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), assim como ou-
tras universidades, vem buscando desenvolver estratégias para a perma-
nência dos estudantes indígenas. Uma delas foi a criação da Formação Bá-
sica Indígena (FBI3), uma medida de ação afirmativa que objetiva contribuir
para a minimização dos problemas enfrentados pelos indígenas no âmbito
dos seus cursos de graduação. Trata-se de um projeto de formação inicial
cuja proposta é acolher os indígenas no espaço universitário e trabalhar
sua autonomia acadêmica por meio de atividades de ensino e extensão
(COLARES, CARNEIRO, 2021).
Essa medida tem gerado impactos positivos, porém, há muito a ser
feito, pois os desafios, mesmo que em graus variados, persistem, por exem-
plo, no aspecto linguístico. Constatamos isso em nossa convivência com
acadêmicos Wai Wai e Munduruku, que têm o português como segunda
língua. Alguns manifestaram certa inquietação e desconforto quanto ao
uso do dito “português acadêmico”, em razão de enunciações técnicas e
rebuscadas demais, dificultando a compreensão, inclusive, de estudantes
monolíngues em português. Esse contato e essa escuta aos estudantes in-
dígenas foi o que motivou a realização deste trabalho, cujas questões le-
vantadas foram as seguintes: Que problemas linguísticos mais afetam os
indígenas que têm o português como segunda língua na Ufopa? Que es-
tratégias adotaram/adotam para superar os desafios linguísticos na acade-
mia? Eles apontam alguma ação para mitigar os obstáculos que impactam
sua interação comunicativa na educação superior?
Pesquisar tal realidade faz-se relevante para documentar e dar vi-
sibilidade aos problemas e às experiências vivenciadas por esses acadêmi-
cos. Os resultados podem contribuir para se pensar em ações de Política e
de Planejamento linguístico em seu benefício na educação superior. Além
disso, pesquisas dessa natureza são importantes no que diz respeito à
produção de conhecimentos acerca das variedades “português indígena”

3. A FBI foi implantada em 2017, desde então vem sendo trabalhada como alternativa para dis-
cutir a construção de novos paradigmas de ensino, em diálogo com os povos indígenas e em
defesa dos seus direitos. Para mais informações, ver Colares e Carneiro (2021).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 25


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

e “português acadêmico”, uma abordagem relativamente nova nas discus-


sões sobre o ensino de Português. Assim sendo, este trabalho tem como
propósitos: descrever e refletir sobre as dificuldades linguísticas dos Mun-
duruku e dos Wai Wai no que diz respeito ao seu processo de inserção nas
práticas de letramento acadêmico; averiguar e descrever as estratégias que
criaram para lidar com as práticas de letramento exigidas na universidade;
documentar o que tais acadêmicos têm a dizer sobre ações afirmativas lin-
guísticas que tenham como objetivo minimizar problemas de comunica-
ção (em português) na universidade.
Esta pesquisa é de natureza qualitativa por a considerarmos uma
abordagem mais adequada para “investigar problemas que os procedi-
mentos estatísticos não podem alcançar ou representar, em virtude de
sua complexidade”, como: “aspectos psicológicos, opiniões, compor-
tamentos, atitudes de indivíduos ou de grupos” (RODRIGUES; LIMENA,
2006, p. 90). Os dados utilizados para a análise foram obtidos por meio
de entrevistas a partir de um questionário com questões para as quais
buscávamos respostas. Foram entrevistados 04 estudantes de cada povo
no primeiro semestre de 2021, via telefone4 e aplicativo de WhatsApp. A
descrição e a reflexão que aqui apresentamos foram realizadas com base
nas respostas dos acadêmicos (que são apresentadas em quadros), con-
siderando o conteúdo de suas falas e nossas percepções, nos momentos
de interação, durante as entrevistas.
A apresentação deste estudo está organizada, além das palavras
iniciais e finais, em quatro seções: na primeira, caracterizamos, brevemente,
os povos Munduruku e Wai Wai; na segunda, apresentamos algumas refle-
xões sobre os povos indígenas e sua relação com o português; na terceira,
discorremos sobre as dificuldades e as estratégias facilitadoras apontadas
pelos estudantes participantes desta pesquisa e, na quarta seção, expomos
as ações que poderiam ser adotadas pela universidade como ações de po-
lítica linguística, segundo esses indígenas.

4. Devido à impossibilidade de fazê-las presencialmente por conta da pandemia da Covid-19


ainda em curso no momento da pesquisa.

26 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

Os Munduruku e os Wai Wai

Os Munduruku

Munduruku significa “formigas vermelhas”, uma denominação


usada pelos Parintintin para se referir ao povo rival (ISA, 2017). Porém, sua
autodenominação, de acordo com Jair Boro Munduruku, é Wuyjuyüyü,
que significa “pessoa/gente”. Além dela, há também a autodenominação
Corariwat, que significa “o povo tauari” de acordo com o cacique Adriano
Saw, pelo fato de usarem cintos, tornozeleiras e braçadeiras confecciona-
das com entrecascas de árvores de tauari (ROCHA et al., 2021, p. 45). Ape-
sar dessas autodenominações, essa nação indígena, de língua5 e cultura
tupi, é conhecida pela sociedade envolvente como Munduruku.
Sua população é de mais de 13 mil pessoas, que estão distribuídas
a sudoeste do Estado do Pará, a leste do Amazonas e ao Norte do Mato
Grosso. No Pará, habitam aldeias ligadas aos municípios de Santarém
(Açaizal, Ipaupixuna, São Francisco da Cavada), Aveiro (Escrivão) e Belterra
(Bragança, Marituba e Takuara), Itaituba (Tis Munduruku, Sawré Muybu,
Sawré Apompu e Sawré Juybu), Trairão (Sawré Muybu), Jacareacanga (di-
versas aldeias situadas nas TIs Sai Cinza e Munduruku). Uma parte desse
território faz fronteira com o Estado do Mato Grosso (município de Juara),
região em que os Munduruku convivem com indígenas Apiaká e Kayabi.
No Amazonas, vivem na Terra Indígena Kwata-Laranjal, na região do rio
Madeira, com jurisdição do município de Borba, onde convivem com os
Sateré-Mawé. Os Munduruku participantes deste trabalho são originários
de aldeias situadas no Alto Tapajós/PA.

5. A língua Munduruku integra, juntamente com a língua Kuruaya (em processo de extinção), a
família linguística Munduruku, um dos ramos do tronco Tupi (RODRIGUES, 1986). Atualmente,
é falada apenas pelos Munduruku do Alto Tapajós e por poucas pessoas da região do Médio
Tapajós. Nas comunidades do baixo curso do rio Tapajós, embora haja algumas experiências de
retomada dessa língua, ela ainda não é falada como meio de comunicação. Na Terra Indígena
Kwatá-Laranjal (Amazonas), é falada somente por poucos idosos.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 27


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

Os Wai Wai

Wai Wai é um termo genérico, conhecido pela literatura etnológi-


ca para designar um coletivo de indígenas - Wai Wai, Hixkaryána, Xeréw,
Mawayana, Karapawyana, Tunayana, Parukuto e Katuéna -, habitantes de
uma região situada entre o Sul da Guiana, Leste de Roraima e Noroeste do
Estado do Pará, que se uniram em determinado momento histórico. Tal
união se intensificou no século XX, com a sua conversão ao cristianismo
a partir do trabalho de missionários da Unenvangelized Fields Mission/
UFM (CAIXETA DE QUEIROZ, 2015).
O etnômio Wai Wai significa, ao pé da letra, “farinha branca” ou
‘tapioca”. No entanto, as explicações para sua origem são complexas.
Uma delas afirma que foi criado pelos Wapixana para se referir aos Wai
Wai que tinham um tom de pele mais claro que o deles. Para além dessa
origem, essa designação mais expressa uma diversidade do que a iden-
tidade de um povo (JÁCOME; HARAYAMA, 2021), pois ela se refere a um
coletivo de povos de língua6 e cultura Karib. Em função disso, usa-se o
termo “povo” para fazer referência aos Wai Wai enquanto coletivo e “et-
nia” para os Wai Wai enquanto subgrupo, integrante deste agrupamento
maior. Esse coletivo soma uma população de aproximadamente 3.500
pessoas que vivem na Amazônia Setentrional, em três Terras Indígenas
(TI): T.I Nhamundá-Mapuera (2.293 pessoas), T.I Trombetas-Mapuera
(811 pessoas) e T.I Wai Wai (365 pessoas), sob a administração de vários
municípios do Amazonas, do Pará e de Roraima. Os estudantes partici-
pantes da pesquisa são originários de aldeias situadas nas TIs Nhamun-
dá-Mapuera e Trombetas-Mapuera.

6. A língua Wai Wai integra, juntamente com 21 línguas irmãs, a família linguística isolada Karib
(RODRIGUES, 1986). Essas línguas são faladas por cerca de 38 mil pessoas, situadas nos estados
do Amapá, Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Pará, sendo que o maior número de falantes se
encontra no Amazonas. Os membros desse coletivo, geralmente, são falantes de mais de uma
língua da família Karib - Wai Wai, Hixkaryana, Xerew, Katuéna, outras - no entanto, há predomi-
nância da língua Wai Wai, que funciona como língua geral no cotidiano das comunidades.

28 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

Povos indígenas e língua portuguesa

Maher (2006), linguista pioneira no ensino de português como se-


gunda língua para os indígenas do Acre, ao relatar uma de suas primeiras
experiências sobre o tema, conta que demorou a entender a fala de um
professor do povo Arara. Ao expor sua opinião sobre o ensino das línguas
indígena e portuguesa no currículo escolar, ele repetia com frequência a
seguinte frase: “o português é uma língua emprestada, mas não é”. Com
o tempo e com a experiência nesses cursos, a linguista entendeu que o
professor queria dizer que a língua portuguesa, falada no Brasil, já não é
exclusivamente “branca” (europeia), mas é indígena também, uma vez que
diversas etnias dela se apropriaram e incutiram nela suas marcas linguís-
ticas e culturais, revelando suas identidades. Por essa constatação, Maher
cunhou o termo “português indígena7”.
Embora a maioria dos povos indígenas comuniquem-se no seu
“português indígena”, nota-se cada vez mais interesse deles em adquirir
o português dos documentos oficiais (padrão). Essa aquisição, para eles,
não tem finalidade apenas comunicativa, mas se configura em uma estra-
tégia de luta, pois, constantemente, precisam interagir (oral/escrita) com
representantes do poder público municipal, estadual e federal a fim de
defenderem e reivindicarem direitos. Nesse sentido, o português, seja in-
dígena e/ou padrão/oficial, “configura-se numa língua instrumento, arma,
ferramenta” (GORETE NETO, 2013, p. 128). Tal aquisição, no entanto, apre-
senta desafios. Por exemplo, a diversidade de cosmologias não permite, ao
professor de língua portuguesa, usar os mesmos materiais e adotar os mes-
mos procedimentos ocidentais aplicados aos estrangeiros em processo de
aquisição do português. Novas estratégias devem ser construídas, porém é
necessário investimento para a construção de outras metodologias, consi-
derando a diversidade de povos, mas esse tema ainda é pouco discutido,
inclusive nas universidades.

7. Esse português é constituído das diversas variedades faladas (e escritas) pelos indígenas do
Brasil, com particularidades típicas desses povos, geralmente influenciadas por padrões fonéti-
co-fonológicos, morfossintáticos e discursivos de suas línguas. Pelo limite de espaço, neste texto,
não será possível apresentar exemplos.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 29


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

Maher (1994) entende que o ensino de português para indígenas


deve ser realizado na perspectiva pragmático-discursiva, não limitado aos
níveis de análise linguística separadamente. Mais do que o desenvolvimen-
to de uma competência estrutural, deve-se desenvolver uma competência
comunicativa na língua-alvo, ou seja, mais do que levar os indígenas a sa-
berem sobre a língua portuguesa, deve-se levá-los a saberem usá-la. Assim,
evita-se a supervalorização da metalinguagem, já que o objetivo primeiro
não é a gramática estrutural. Evita-se, também, um ensino descontextuali-
zado, como lista de palavras isoladas, já que “congelam” significados e não
permitem que o estudante desenvolva a capacidade de buscar apoio no
contexto de uso para inferir significados. A contextualização da linguagem
evita que esforços sejam desperdiçados com frases pragmaticamente es-
vaziadas. Essa autora, ecoando Paulo Freire, postula que não basta que o
aluno saiba ler “Eva viu a uva”, faz-se necessário que ele compreenda qual a
posição que Eva ocupa no contexto social, quem trabalha na produção da
uva e quem lucra com esse trabalho.
Esse enfoque pragmático é de suma importância, pois, na aquisi-
ção linguística, o que se adquire não é simplesmente uma língua com suas
regras especificamente intralinguísticas, mas todo um sistema de práticas
e valores, crenças e interesses a ele associados (WILSSON, 2015). Portan-
to, tal ensino deve proporcionar, aos indígenas, mostras variadas da língua
portuguesa em uso, de modo que eles, depreendendo o funcionamento
discursivo dela, aprendam a nela se comunicar (MAHER, 1994).
Na universidade, os estudantes (indígenas e não indígenas) costu-
mam relatar, em conversas informais, dificuldades com o chamado “portu-
guês acadêmico” - variedade da língua portuguesa usada na academia, a
qual tem um estilo mais formal e objetivo e privilegia certos gêneros (semi-
nário, resumo, resenha, ensaio, artigo e outros) -, principalmente na leitura/
compreensão de textos acadêmicos e na escrita de trabalhos de aprovei-
tamento. Em função disso, é oportuno considerar a noção de letramento
como prática social, conforme Street (2014), que postula um modelo ideo-
lógico de letramento.
No âmbito desse modelo, o autor entende que, para resolver pro-
blemáticas relacionadas à leitura e à escrita, os indivíduos necessitam

30 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

mais do que habilidades individuais (conforme o modelo autônomo8), é


necessário considerar os diferentes papéis sociais assumidos que levam
a situações de interações comunicativas específicas. Assim, Street (2014)
concebe letramentos como múltiplos, sujeitos a relações de poder, variável
de comunidade para comunidade e de acordo com suas condições socio-
culturais. Isso implica dizer que as pessoas praticam novos letramentos a
todo momento, a depender das suas necessidades comunicativas e inte-
racionais. Nesse caso, é possível considerar letramento religioso, familiar,
acadêmico e outros (GORETE NETO, 2013).

Os Munduruku, os Wai Wai e o português-acadêmico: dificuldades e


estratégias facilitadoras

Participaram desta pesquisa, 04 estudantes Munduruku e 04 Wai


Wai. Para nos referirmos a eles, usaremos o numeral seguido de M para os
membros do primeiro povo (1M, 2M, 3M e 4M) e o numeral seguido de W
para o segundo (1W, 2W, 3W e 4W), conforme o quadro 01.
Quadro 1: Os Munduruku e os Wai Wai participantes da pesquisa

Situação
Participantes Idade Sexo Línguas9 Curso/Instituto
Acadêmica

1M 38 M MK/PT Biologia/ICTA 8º período

2M 22 M MK/PT Eng. Florestal/ IBEF 6º período

3M 22 M MK/PT Ciências da Terra/IEG 2º período

4M 30 F MK/WW/PT Gestão Pública/ICS Formada

1W 29 M WW/PT Arqueologia/ICS Formado

2W 36 M WW/KW/PT Letras/ICED Formado

3W 29 M WW/HX/PT Interdisc. Saúde/ISCO 3º período

4W 28 F WW/KX/PT/ ING Letras/ICED 7º período

8. Nesse modelo “o letramento ocorre por meio da linguagem sem contexto, do discurso autôno-
mo e do pensamento analítico” (STREET, 1995, p. 154).
9. Lê-se: MK = língua Munduruku; PT = língua Portuguesa; WW = língua Wai Wai; HX = língua
Hixkaryana; KW = língua Katwena; ING = língua Inglesa.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 31


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

Todos os participantes ingressaram na Ufopa pelo Processo Sele-


tivo Especial Indígena. Trata-se de 6 homens e 2 mulheres, que apresen-
tamos a seguir:
Participantes Munduruku. 1M tem 38 anos, é da aldeia Kaburuá (Ja-
careacanga), é falante de Munduruku e Português. Atualmente, sua família
vive em Praia do Mangue (Itaituba). Em 2014, migrou para Santarém para
cursar Ciências Biológicas. 2M tem 22 anos, também é da aldeia Kaburuá. Na
adolescência, mudou-se para Jacareacanga para cursar o ensino básico. Em
2017, chegou em Santarém para cursar Engenharia Florestal no Instituto de
Biodiversidade e Florestas (IBEF). Antes de ingressar especificamente no cur-
so, passou pela Formação Básica Indígena (FBI). É bilíngue em Munduruku/
Português. 3M tem 22 anos, nasceu na aldeia São Lourenço (Alto Tapajós),
mas migrou para Jacareacanga na adolescência para continuar seus estu-
dos. Em 2019, iniciou o curso de Ciências da Terra, que vem cursando des-
de então com o intuito de dar suporte e apoio ao seu povo em um futuro
próximo. Também é bilíngue em Munduruku/Português. 4M tem 30 anos,
nasceu em Itaituba, mas sua família é originária da aldeia Waro Apompu. Em
2019, formou-se em Gestão Pública. Casou-se com uma pessoa do povo Wai
Wai e, com ele, teve três filhos, em função disso seu repertório linguístico é
composto pelas línguas Wai Wai, Munduruku e Portuguesa.
Participantes Wai Wai. 1W tem 29 anos, nasceu na aldeia Cassauá,
mas cresceu na aldeia Mapuera. Em 2014, mudou-se para Santarém para
cursar Arqueologia. Foi a primeira pessoa de sua família a entrar na univer-
sidade. Ele tomou essa decisão para ajudar seu povo, mas não foi uma ex-
periência fácil. No início, estranhou muito porque na universidade ninguém
falava sua língua materna, a Wai Wai (fala também Hixkaryana e Português).
Formou-se em 2020, mas não retornou para a sua comunidade, pois con-
seguiu um emprego na cidade e se prepara para ingressar no mestrado.
2W tem 36 anos, é da aldeia Mapuera. É trilíngue em Wai Wai, Katwena e
Português. Em 2013, migrou para Santarém para cursar Letras. Formou-se
em 2017 e, hoje, trabalha como professor na sua aldeia. 3W tem 29 anos,
também é de Mapuera e fala três línguas: Hixkaryana, Wai Wai e Português.
Mudou-se para a cidade de Oriximiná para fazer o Ensino Médio. Em 2018,
foi aprovada para cursar Bacharelado Interdisciplinar em Saúde. 4W tem 28

32 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

anos, nasceu na aldeia Mapuera. Fala quatro línguas: Wai Wai, Hixkaryana,
Português e Inglês. Migrou com a família para a cidade de Oriximiná. Em
2017, iniciou o curso de Letras.

Dificuldades relacionadas à fala em português

Para saber se os estudantes apresentavam dificuldades para se ex-


pressar oralmente em português, fizemos a seguinte indagação: “Em San-
tarém, você teve/tem dificuldade de falar em português? Se sim, onde foi/é
mais difícil?”. Observemos as respostas no quadro 2.

Quadro 2: Sobre a fala em português

Em Santarém, você teve/tem dificuldade de falar em português? Se sim, onde


Participante
foi/é mais difícil?

1M “Não. Fui alfabetizado em português.”

“Eu tenho um pouco de dificuldade de falar português na cidade. Só que que eu


tenho mais dificuldade na universidade, porque a gente precisa falar palavras cien-
2M
tíficas, palavras técnicas. A gente tem essa dificuldade pra explicar os assuntos, tipo,
quando for apresentar seminário.

3M “Eu me sinto mais à vontade [para falar] fora da UFOPA porque [na academia] fico
pensando no que as pessoas vão me dizer, caso eu fale alguma palavra errada.”

4M “Não, porque já falo bem português.”

“Eu não tinha dificuldade para conversar em português, por exemplo, na padaria,
1W
nas compras no comércio, mas na universidade eu tinha muita, principalmente, para
explicar o que os textos diziam.”

“Eu tinha dificuldade para falar na universidade. Para apresentar seminário e explicar
2W
texto.”

“Sim, às vezes, nas lojas e dentro da universidade, quando estou na reunião. Eu já


não tenho mais muita dificuldade de falar português hoje, como antes. Eu sou muito
3W tímido. Por isso, às vezes, tenho dificuldade de falar português por medo de errar
as palavras. Tenho medo que meus colegas de classe riam de mim, porque no ensino
médio já presenciei isso.”

4W “Eu tenho mais dificuldade de falar português na universidade.”

Dentre as respostas dadas pelos Munduruku, 1M e 4M, que cresce-


ram na cidade, disseram não ter dificuldade para falar em português. 2M e
3M, por sua vez, que cresceram em suas aldeias, dizem apresentar dificul-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 33


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

dades. Eles começaram a falar português apenas quando foram estudar na


cidade. Dizem que, agora, já falam bem, mas ainda é difícil se expressar na
universidade. 2M diz que o mais difícil é explicar os assuntos das disciplinas
e 3M diz que não se sente à vontade de falar nesse espaço, pois tem medo
de errar e ouvir comentários que poderiam deixá-lo triste. Quanto às res-
postas dadas pelos Wai Wai, todos disseram que sentem dificuldade para
falar em português. Essa dificuldade é maior, também, na universidade,
particularmente, para explicarem textos que não entenderam bem, para
apresentarem seminário e para falarem em reuniões. 3W sente o mesmo
temor de 3M, isto é, de sofrer preconceito e ser motivo de riso e chacota.
De fato, um dos desafios que os indígenas enfrentam na cidade é
o preconceito, oriundo de diversos estereótipos ainda enraizados no ima-
ginário de muitos brasileiros. Jucéli Tapajós, indígena Tapuia, no documen-
tário “Raízes do Preconceito” (CARNEIRO; CORRÊA, 2020) 10, afirma que a so-
ciedade não indígena sempre encontra um jeito de discriminá-los e afetar
a estima por si mesmos. No aspecto linguístico, tanto os falantes como os
não falantes de língua indígena são discriminados: os primeiros, porque
“falam o português errado” e, os segundos, “porque são índios falsos”.
Para Jucéli, não há escapatória para as críticas e discriminações, há sem-
pre motivos para “colocá-los para baixo”. No mesmo documentário, outros
indígenas alegam que sofrem preconceito ou já tiveram sua identidade
questionada11, na universidade e na cidade, por não corresponderem aos
estereótipos do imaginário social, tais como: traços físicos (pele morena,
olhos pequenos e esticadinhos; cabelos pretos e espetados, no caso dos
homens, ou pretos e lisos, no caso das mulheres); de índio sujo, mal ves-
tido e parado no tempo. Há quem se espante e os questione por usarem
maquiagem, terem cabelos cacheados, usarem tecnologia, joias e outros.

10. Sobre esse tema é oportuno sugerir também a fala de Crislaine Tapuia no Fórum Bilinguismo
Indígena no Brasil, organizado por Elizabete Suzart, da Universidade Estadual da Bahia (UNEB),
em junho de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7mg5HreeCfg&t=8s.
11. Há muitos equívocos que alimentam preconceitos e levam ao questionamento da identidade
indígena. Um deles é partir da noção de cultura como um fenômeno estático, desconsiderando
as mudanças socioculturais que ocorrem em todas as sociedades, principalmente, naquelas que
têm contato com povos diversos como os indígenas.

34 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

Dificuldades e estratégias facilitadoras relacionadas ao entendimento


em português

Para sabermos se apresentavam dificuldades para entender as


aulas na universidade e conhecermos as estratégias usadas para supe-
rarem essa situação, realizamos as seguintes questões: “Você tinha/tem
dificuldade para entender os professores nas aulas? Se sim, o que você
fazia/faz para compreender as explicações?”. As respostas podem ser
observadas no quadro 3.
Quadro 3: Sobre o entendimento durante as aulas

Dificuldade Estratégia facilitadora


Participante Você tinha/tem dificuldade para O que você fazia/faz para entender as
entender os professores nas aulas? explicações?

1M “Apesar do português rebuscado de


-
alguns, conseguia entender”.

“Sim, o mais difícil de entender é


“Às vezes, eu pergunto do professor ou
quando eles usam muitas palavras
2M pros colegas de aula (...). Eles me explicam,
científicas. Eu fico sem entender quando
às vezes eu entendo, às vezes não fica
eles explicam, porque a gente precisa
muito claro... aí eu jogo no google (...)”
traduzir essas palavras (...)”

“Sim, eles usam algumas palavras


“Costumo perguntar pessoalmente, após
e sinônimos que eu desconhecia ou
3M a aula, aos professores. Evito falar para
desconheço. Pela forma de como é
todos ouvirem. E quando a dúvida perma-
explicado também, ou seja, de um jeito
nece, pesquiso em sites e livros (...)”
bem formal.”

4M “Sim, pelas palavras técnicas.” “Eu fazia pesquisa na internet.”

Eu tinha porque explicavam com muitas


palavras técnicas e conceitos difíceis.
Também muito rápido, como se a gente “Eu era interessado em aprender, então
já soubesse muita coisa... A dificuldade eu ficava atrás dos professores. Pergun-
foi mais no início (...). Eu não tinha tava os assuntos, pedia para explicar
1W noção de como era... E como não tinha de jeito diferente. Analogias e exemplo
estudado muita coisa que cobravam na ajudavam. Também perguntava para meus
universidade, eu precisava que o estudo colegas: ‘O que o professor disse? O que
e as explicação fosse bem devagar para significa? Como se faz esse trabalho?’”.
conseguir aprender, mas não era.
Tudo era rápido e corrido e isso foi ruim.

2W “Sim, muita. Tinha palavra difícil e teoria “Pedia ajuda aos meus colega e me
também.” esforçava muito para entender.”

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 35


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

“Quando o professor fala uma palavra que


“Sim, às vezes não entendo quando o eu nunca tinha ouvido, vou lá no google
professor explica. Eles usam palavras pesquisar sobre o significado. Ou eu
3W
técnicas, por isso não entendo muito do pergunto pra minha colega Borari (...) ela
assunto. Tem muitos professores que me ajuda muito (...). Eu entendo quando
usam palavras técnicas.” ela me explica. Quando tô com dificuldade
de alguma coisa, eu pergunto pra ela.

“Sim, pelas palavras que usavam e


4W também [pelo] conteúdo difícil de “Geralmente, pergunto pra algum colega.”
entender.”

Com exceção de 1M, que tem domínio da língua portuguesa, todos


os indígenas disseram ter dificuldades para entender as aulas. As principais
razões apontadas são: o uso de palavras técnicas e desconhecidas relacio-
nadas às áreas de conhecimentos, os conteúdos complexos, a forma como
os professores explicam, que, segundo os alunos, é “rápido demais” e, por
fim, o fato de os professores acharem que todos já possuem conhecimen-
tos prévios para acompanhar as explicações. Quanto às estratégias para
superarem esses problemas, os estudantes, em sua maioria, perguntam
aos colegas, pesquisam na internet e, em alguns casos, ao professor. Vale
destacar a resposta de 3W, que conta com o constante auxílio de uma cole-
ga do povo Borari, que conheceu na Formação Básica Indígena. Esse fato é
relevante porque ficou evidente, em nossa conversa com ele, a importância
da FBI para que os indígenas construam laços de apoio que perduram no
decorrer da graduação.

Dificuldades e estratégias facilitadoras relacionadas à compreensão


de textos

Para conversarmos sobre o entendimento dos textos acadêmicos


e conhecermos as estratégias facilitadoras que adotaram/adotam, indaga-
mos: “Você tinha/tem dificuldade para compreender os textos que lia/lê na
graduação? Se sim, o que você fazia/faz para compreendê-los?”. As respos-
tas são apresentadas no quadro 4.

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Quadro 4: Sobre o entendimento de textos acadêmicos

Dificuldade Estratégia facilitadora


Participante Você tinha/tem dificuldade para enten- Se sim, o que você fazia/faz para
der os textos que lia/lê na graduação? tentar entender?

1M “Um pouco.” “Pesquisava na internet”.

“Sim, eu tenho dificuldade de ler os arti- “Eu costumo usar mais a internet,
gos de praticamente todas as disciplinas. porque, quando eu pergunto dos
O que complica mais é a dificuldade de colegas, eles demoram responder ou
2M
descobrir o assunto (...). Todo texto que a não explicam muito bem. É mais rápido
gente lê, aparecem palavras que eu não pesquisar na internet.”
conheço, palavras técnicas, aí fica muito
difícil de entender.”

“Sim, em alguns significados de palavras, “Para as palavras e artigos, pesquiso


em textos da área de exatas e em livros em sites e procuro sempre entender o
que estão em língua estrangeira. Tive objetivo geral e o específico do texto
3M que ler em inglês para as aulas de para fazer minha conclusão (...). Para
Sedimentologia. Fui colocando no site de o texto da aula de Sedimentologia,
tradutor on-line para traduzir as páginas, como não tive mais opção, perguntei
uma por uma.” diretamente para o professor (...).”

4M “Sim, da área de Estatística, matemática e “Eu assistia videoaulas no Youtube e


Probabilidade de Estatística.” pesquisava na internet.”

“Eu consigo ler português. Minha dificul- “Para entender, eu fazia um pouco de
dade era mais para entender [o] conteúdo. tudo. Perguntava pra meus colegas,
1W
Piorava quando os textos não eram de olhava na internet, perguntava para
linguagem boa e quando eram muito professores.”
grandes (...)”

“Sim, tive muitas dificuldades em todos, “Perguntava para os colegas e olhava


2W
mais ainda nos textos de outras línguas na internet.”
como, inglês e latim.”

“Sim, eu tenho dificuldade de entender os “Qualquer dúvida, eu pergunto direta-


textos que os professores passam. Como mente pros professores ou pras minhas
sou de Saúde Coletiva, então os textos colegas. Às vezes, os professores
que eles passam têm alguns termos demoram pra responder, então é mais
complicados. No caso, esse semestre, me fácil perguntar pras minhas colegas.
3W matriculei em nove disciplinas (...). Todas Aí, eu tiro dúvida sobre um texto ou
com bastante textos pra ler, com muitas página, pergunto: ‘olha tal página eu
palavras difíceis. Foi um semestre difícil tenho dificuldade, o que ele tá dizendo
e puxado.” lá?’ Aí minha colega Borari vai lá e
explica o que o autor tá querendo dizer.
Aí, já entendo.”

“Eu tenho dificuldade de modo geral, “Eu pesquiso na internet.”


4W mas tenho mais de entender os textos
de literatura, porque têm linguagem
complicada.”

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 37


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Denize de Souza Carneiro

De acordo com as respostas, em geral, os estudantes apresentam


dificuldades para entender os textos acadêmicos. Dizem que a razão prin-
cipal é o desconhecimento de palavras, mas, conversando com eles, enten-
demos que essa dificuldade não se restringe ao significado das palavras em
si, ocorre também pela não compreensão de conceitos teóricos específicos
e expressões idiomáticas do Português. Nunes et al. (2021, p. 127) também
constataram essas dificuldades na disciplina Laboratório de Textos, experi-
ência desenvolvida pelos cursos de Antropologia e Arqueologia da UFOPA.
Conforme suas palavras:

Em relação especificamente à leitura, a experiência da disciplina permitiu


perceber que havia dificuldade na compreensão de muitas palavras, expres-
sões e conceitos nos textos. De modo que, por vezes, a incompreensão de
duas, três, ou mesmo uma única palavra, central em um parágrafo, dificultava
a compreensão geral do argumento. (...) Algumas, como dito, eram conceitu-
ais; outras não eram propriamente conceitos, mas apareciam com frequência,
sendo características da linguagem acadêmica ou do jargão antropológico
e/ou arqueológico - como ‘contexto’, ‘análise’, ‘processo’, ‘inserção’, ‘construir/
desconstruir’, ‘ideia’, ‘noção’, ‘extinção’, ‘primitivo’, ‘conceito’, ‘teoria’, ‘explicação’,
‘argumento’, ‘empírico’, ‘abstrato’; outras, ainda, eram palavras mais comuns
da língua portuguesa. No caso de discentes bilíngues, uma fonte adicional
de dificuldades são as figuras de linguagem, de um modo geral, e palavras de
significado derivado - uma “construção teórica”, “desconstruir um argumento”
ou um “argumento bem amarrado”.

De fato, essa realidade foi relatada pelos estudantes na nossa pes-


quisa. 2M, por exemplo, disse que só consegue continuar a leitura se sou-
ber o significado das palavras, as quais passam por uma tradução na sua
cabeça. Já 1W diz que sua maior dificuldade era entender conceitos (teóri-
cos) e 4W diz ter mais dificuldades com a linguagem dos textos de literatu-
ra, com expressões idiomáticas/locuções (“um não sei que”, “para um bom
entendedor, meia palavra basta”) e metáforas comuns em textos literários.
Para compreender os textos, os estudantes, em sua maioria, usam, como
estratégia, as seguintes alternativas: pesquisam em sites de busca na in-
ternet; assistem videoaulas na plataforma de compartilhamento de vídeos
(YouTube), perguntam/pedem explicações aos colegas, aos professores e
usam o google tradutor para compreenderem, mesmo que parcialmente,
textos em língua estrangeira.

38 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


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Dificuldades e estratégias facilitadoras relacionadas à escrita de tra-


balhos acadêmicos

Para conhecer as dificuldades relacionadas à escrita de trabalhos


acadêmicos, assim como as estratégias usadas para driblá-las, indagamos:
“Você tinha/tem dificuldade para escrever os trabalhos acadêmicos?”. Se
sim, o que você fazia/faz para conseguir elaborá-los? As respostas são apre-
sentadas no quadro 5.

Quadro 5: Sobre a escrita de trabalhos acadêmicos

Participante Dificuldade Estratégia facilitadora

Você tinha/tem dificuldade para escre- Se sim, o que você fazia/faz para
ver os trabalhos acadêmicos? conseguir elaborar os trabalhos?

1M “Nos trabalhos nem tanto. Tive mais para


“Contei com a ajuda do orientador”.
escrever o TCC”.

“Eu pergunto pro professor ou pro


“Agora [já no 6o período], não é mais muito,
2M pessoal do grupo [de whatsapp], Eles
mas, às vezes, eu fico com dúvida.”
explicam como é pra fazer.”

“Tenho sim, principalmente, na parte que “Eu vou pro dicionário virtual procurar
3M
não pode repetir as mesmas palavras, em os sinônimos de palavra e fazer a troca
todos os parágrafos.” para que ela não se repita muito.”

4M “Eu assistia vídeos, pesquisava na


“Sim, eu tinha muita dificuldade.”
internet e pedia ajuda dos professores.”

“Entre falar, ler e escrever minha dificul-


“Eu pedia ajuda de colegas e professo-
dade maior era para escrever os trabalhos.
res para me ajudar com português, até
1W Eu acabava seguindo um pouco da minha
mesmo de professores que não eram
língua Wai Wai, que é de trás para frente
do meu curso.”
em relação ao português e aí ficava ruim.
Agora, já sei mais um pouco.”

“Pedia ajuda de colegas não indígenas,


2W
“Sim, tinha mesmo, muito.” que corrigiam para mim. Às vezes, até
pagava.”

“Só quando surge alguma dúvida de


“Eu consigo fazer os meus trabalhos aca-
interpretação pergunto, mas escrever,
3W dêmicos. Já manjo um pouquinho. Então,
eu mesmo escrevo.”
eu não peço a ninguém ajuda.”

“Tenho um pouco, principalmente em “Quando tô com dificuldades, peço


4W trabalhos de análise de poema, mas tento ajuda dos colegas e monitores que me
fazer mesmo assim.” auxilia para escrever.”

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 39


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Com exceção de 2M e 3W, todos os estudantes manifestaram ter


dificuldades para elaborar os trabalhos acadêmicos na modalidade escrita.
1M disse que sentiu mais dificuldade para escrever o TCC, mas que teve
ajuda do seu orientador. 3M diz que se preocupa em não repetir palavras,
pois já aprendeu que isso não é adequado no texto acadêmico, por isso,
pesquisa sinônimos em dicionários on-line. 4M também teve dificuldades
e buscou resolvê-las a partir de perguntas aos professores e de acesso a
materiais audiovisuais disponíveis na internet. 1W diz que dentre as moda-
lidades de fala, leitura e escrita, teve mais dificuldades para elaborar seus
trabalhos escritos. Segundo ele, interferências da estrutura sintática da sua
língua (Wai Wai) o atrapalhavam. Para conseguir elaborar seus trabalhos,
ele pedia auxílio de colegas e professores, que o ajudavam, corrigindo seus
textos em português. Tal interferência é o que Amado (2015) chama de con-
tato interlinguístico12, que ocorre quando a língua materna influencia na es-
crita do português e vice-versa. 4W diz que sua maior dificuldade consiste
na elaboração de trabalhos cuja proposta é a análise prévia de poemas. É
muito difícil para ela compreender a linguagem literária, repleta de figuras
de linguagem, por exemplo, a metáfora. Para tentar resolver esse desafio,
ela pergunta aos colegas o entendimento deles, o que a ajuda a compreen-
der um pouco. Além disso, busca auxílio de monitores.

Ações afirmativas linguísticas. O que dizem os acadêmicos Munduruku


e Wai Wai?

Nesta seção, apresentamos as possibilidades de ações afirmati-


vas , voltadas para as práticas de letramento acadêmico, que, de acordo
13

com os estudantes participantes deste trabalho, propiciariam sua inclusão

12. Esse contato ocorre quando falantes bilíngues (ou plurilíngues) interagem de maneira próxi-
ma e pode haver influências entre as línguas.
13. Ação afirmativa é definida no Estatuto da Igualdade Racial como “programas e medidas es-
peciais adotadas pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais
e para a promoção de oportunidades” (Lei n° 12.288/2010, Art. Io, inciso VI, p. 1). Ação afirmativa
linguística é uma demanda apresentada pelos acadêmicos indígenas que não têm o português
como primeira língua, com vistas à igualdade de oportunidades.

40 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
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nas atividades de ensino e no ambiente universitário. As ações apontadas


são apresentadas no quadro 06.
Quadro 6: Ações para melhorar a interação dos Munduruku e Wai Wai na universidade

O que você acha que a universidade poderia fazer para facilitar a comunicação
Participante
de vocês em português?

“Acho que continuar com a monitoria Ceanama. Na verdade, melhorar essa monitoria
e preparar mais monitores indígenas para ajudar os parentes. Também contratar
1M
tradutor falante da nossa língua e elaborar material didático com explicação mais
acessível das teorias mais complicadas e de livros que só existe em língua estrangei-
ra. Isso ia ajudar não só nós, mas outros também.”

“Eu acho que ia ajudar se tivesse professores indígenas na universidade (...). Eles iam
explicar o assunto na nossa língua também (...). Só que, na minha opinião, isso é difícil
2M
acontecer na universidade, porque os professores devem estudar primeiro pra dar
aulas. Eles precisam entender os assuntos primeiro. Então, é difícil encontrar pessoas
querendo fazer isso.”

“Acho que pode criar debates entre nós (...). Realizar testes para verificar nosso
entendimento sobre as disciplinas. Também, criar laboratório de linguagem e
3M comunicação para leitura de textos com os indígenas, mas todos os outros acadêmi-
cos [não indígenas] que precisasse também poderia frequentar, porque muitas difi-
culdades que nós enfrentamos, eles enfrentam também. Desse jeito, o conhecimento
fica sendo compartilhado com todos.”

“A universidade precisa estimular os alunos indígenas porque tudo é muito desa-


4M nimador. Precisa também fazer acompanhamento, por exemplo, os cursos poderiam
realizar reunião duas vezes por mês com os estudantes indígenas para saber as
dificuldades que eles estão tendo nas disciplinas e na universidade.”

“Acho que poderia ter monitores Wai Wai já formados na Ufopa para ajudar os
estudantes Wai Wai a entender a universidade e os trabalhos. Eu mesmo sou muito
procurado para orientar eles nos trabalhos. Como eu já passei por isso, explico tudo.
Faço isso de graça, mas poderia ter monitores fazendo isso. E o ideal é o Wai Wai
mesmo porque vai entender melhor. Acho que a Ufopa devia também contratar Wai
Wai já formado para trabalhar como tradutores e acompanhantes dos Wai Wai na
universidade. Poderia ser por instituto, por causa da área dos cursos. Essa pessoa ia
ajudar em várias coisas, por exemplo, em reunião com colegiado e outras reuniões
que precisa tomar decisão, pra explicar bem a discussão para os estudantes Wai
1W Wai. Também trabalhar como mediador entre professores e Wai Wai que tiverem
com mais dificuldades. Essa pessoa também poderia ser tradutor [simultâneo] em
casos de apresentação de seminário e defesa de TCC se fosse mais fácil pro Wai Wai
fazer a apresentação na nossa língua. Outra coisa também, acho que devia ter aulas
só para os indígenas nos casos que o conteúdo for mais complicado. Aí o tradutor
tinha que participar pra dizer a explicação em Wai Wai pra ajudar na compreensão.
Isso seria só algumas vezes pra colocar os Wai Wai no assunto. O curso precisa ficar
acompanhando e verificar o que é mais difícil e já se preparar... Porque é muito ruim
não entender nada. Desanima a gente.”

“Acho que os professores devia fazer uns encontros só com os alunos bilíngues para
2W
conversar com eles sobre os assuntos das aulas... Perguntar se estão entendendo, se
aproximar e explicar de jeito mais fácil.”

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 41


Cassia Beatriz Feleol Silva
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“(...) na Ufopa, já fazem alguma coisa para os estudantes indígenas. (...) Cada indígena
tem os seus monitores, tem o monitor de matemática, de química, de português.
Qualquer dúvida que os indígenas têm, eles procuram esses monitores. Como eu, ano
passado, eu tinha minha monitora e ela me ajudava muito. Quando eu tinha alguma
dificuldade, eu perguntava pra ela. Se eu fosse fazer algum trabalho, a gente se
encontrava na universidade... A primeira coisa que ela fazia era colocar eu pra ler o
texto. (...) E ela me perguntava se eu entendi alguma coisa. Aí eu falava a parte que
3W
eu tinha entendido e a parte que não entendi, então ela me falava o que significava,
o que o texto estava querendo dizer. Hoje, eu procuro ajuda dos monitores, na Saúde
Coletiva tem monitores. Eu não sei como tá sendo para os outros indígenas, mas se
eles estão com dificuldades de mexer no computador ou formatar trabalho ou como
fazer resenha, eles têm que procurar a coordenação do curso deles pra falar que
estão precisando de monitores. Como eu fiz a FBI14, aprendi (...) um pouco de cada
coisa. Sei mexer no computador, formatar trabalho no formato ABNT, fazer resenha,
citação... Eu tenho uma apostila (...) qualquer coisa eu olho lá.”

“Acho que aula de reforço específico para tratar sobre os textos das disciplinas ia
4W ajudar muito a melhorar nossa comunicação com os professores. Às vezes, parece
que não somos interessados, mas não é isso... Ficamos desanimados por não acompa-
nhar as discussões das aulas.”

As ações apontadas correspondem à monitoria, contratação de tra-


dutores, elaboração de material didático, contratação de professor univer-
sitário indígena, realização de acompanhamento pedagógico, criação de
laboratório de linguagem e ações que motivem os indígenas.
Monitoria. Essa ação foi apresentada por 1M, 1W e 3W. Eles consi-
deram que a existência de monitores indígenas bilíngues em Munduruku/
Português e Wai Wai/Português facilitaria a compreensão dos estudantes
indígenas que não têm o Português como primeira língua. Para 1M, há ne-
cessidade de melhorar a monitoria Ceanama15, preparando estudantes in-
dígenas para auxiliar seus parentes; já 1W entende que o ideal seria que os
“monitores” indígenas já fossem formados no ensino superior. Ele explicou
que o monitor-aluno ainda não adquiriu uma ideia geral da universidade,
além de que também precisa fazer suas atividades como aluno, o que é
difícil de conciliar. Inclusive, disse que faz esse papel de monitor já formado.

14. Quando esse aluno cursou a Formação Básica Indígena, participou de projetos de inclusão
digital e tecnológica, além de oficinas/cursos que estimulavam a autonomia acadêmica com
orientações práticas sobre a realização de trabalhos acadêmicos.
15. Essa palavra faz parte da língua Nheengatu e significa “meu/minha parente”, mas adquire
também o sentido de meu/minha amigo (a). É a designação de um programa de Monitoria Aca-
dêmica da UFOPA que tem a finalidade de auxiliar estudantes, público-alvo da Política de ação
afirmativa dessa universidade, como indígenas e quilombolas.

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UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

Mesmo não recebendo nenhum auxílio financeiro, orienta seus parentes


sobre como devem agir na universidade e como elaborar os trabalhos de
aproveitamento. 1M e 1W consideram que monitores bilíngues são funda-
mentais para auxiliarem em conteúdos complexos, nos quais os professo-
res não indígenas apresentam dificuldades para sanar dúvidas ou incluir
os estudantes na discussão. De fato, a monitoria é uma medida estratégica
para aproximar docente de discente e colaborar com a inclusão de alunos-
-monitorados, pois o aluno-monitor costuma ser mais acessível do que o
professor, além de que, em alguns casos, o monitorado tem mais liberdade
de compartilhar suas dificuldades com o monitor.
Tradutor indígena. Essa ação também foi apontada por 1M e 1W. Eles
consideram importante, além da disponibilização de monitores indígenas,
a contratação de indígenas para trabalharem como tradutores de línguas
indígenas/português e vice-versa. 1M não apresenta muitos detalhes, por
isso, perguntamos como seria esse trabalho, se seria para atuar como um
intérprete nos mesmos moldes da Língua Brasileira de Sinais (Libras). Ele
respondeu que não, pois é importante que os indígenas também dominem
português para aprenderem a se defender e a argumentar nessa língua.
Sua resposta foi em consonância com o detalhamento de 1W, que entende
a função dos tradutores indígenas como mediadores da relação entre indí-
genas- professores-universidade, com o propósito de incluir os estudantes
bilíngues nos assuntos das disciplinas e de outras situações comunicativas
no espaço universitário. 1W explica que essa contratação poderia ser por
instituto, de acordo com as áreas de conhecimento. Os tradutores auxi-
liariam em dificuldades específicas das atividades de ensino, em reuniões
e em diálogos entre os indígenas e a instituição, para explicar, em língua
indígena, o conteúdo das discussões ou decisões a serem tomadas. Tam-
bém poderiam trabalhar como tradutores simultâneos de seminários e de
defesas de TCCs, nos casos em que os estudantes se sentissem mais confor-
táveis em se comunicar na língua materna, considerando que, em situação
de vulnerabilidade e/ou nervosismo, o indivíduo tende a se expressar na
língua materna. Além disso, poderiam auxiliar na compreensão de ques-
tões burocráticas, muitas vezes empecilho para a participação indígena em
editais de bolsa de pesquisa, extensão e outros.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 43


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

Material didático em linguagem acessível. 1M considera pertinente


a elaboração de material didático sobre questões teóricas importantes
para as áreas de conhecimento, escrito em linguagem mais acessível, as-
sim como a elaboração de material que apresente, em português, con-
teúdos de textos escritos em língua estrangeira, pois, para o indígena
bilíngue, já é difícil acompanhar/participar de aulas com textos em portu-
guês, em outras línguas o desafio aumenta. Na verdade, textos em língua
estrangeira também são um entrave para estudantes não indígenas, con-
siderando que, no Brasil, quase não há incentivo para que os brasileiros
aprendam outras línguas.
Professor indígena na universidade. 2M entende que, para melhorar
a compreensão dos indígenas na universidade, o ideal seria que fossem
contratados professores indígenas, no entanto, na mesma colocação, é ex-
pressa a dificuldade para isso acontecer. De fato, a presença de docentes
indígenas na educação superior é quase inexistente. É necessário que as
instituições de ensino superior superem o modelo de conhecimento aca-
dêmico hegemônico e criem mecanismos para que seus quadros docentes
contemplem a diversidade de povos do país.
Acompanhamento, aulas e encontros apenas com estudantes indíge-
nas. 4M aponta como ação importante o acompanhamento acadêmico e
pedagógico dos estudantes indígenas para que se possa conhecer suas di-
ficuldades de aprendizagem e de outras ordens. 3M, 1W, 2W e 4W sugerem
a realização de encontros/aulas específicas, direcionadas aos indígenas,
com o intuito de sanar dúvidas de conteúdos mais complexos, aplicação
de testes para verificar seu entendimento e diálogo sobre a comunicação/
linguagem usada na academia.
Laboratório de linguagem. 3M sugere a criação de um laboratório16
de linguagem e comunicação para leitura e discussão de textos, o qual po-
deria atender os estudantes não indígenas também.
Estimular os estudantes. 4M, 1W e 4W relataram o quão desanima-
dor é “não entender nada” durante as aulas. A realidade é que, quando os
estudantes indígenas ingressam na universidade, veem-se imediatamente

16. Vale informar que há, na Ufopa, uma experiência parecida com essa sugestão, a qual pode ser
conhecida no texto de Nunes et al. (2021).

44 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

diante de novos conhecimentos, ritmos e formas de ensino, valores e mo-


dos de relação que divergem do ensino recebido por eles até então. De
acordo com Maher (1994, p. 73), o indígena

tende a ocupar, já de partida, um lugar desvantajoso na interação, não só


necessariamente, porque tem que se mover, linguisticamente falando, em
“terreno alheio”, mas também porque a desigualdade de poder entre ele e
seu interlocutor se manifestará na e através da linguagem, afetando o teor
da conversação (...).

Inegavelmente, a universidade tem a função catalisadora de esti-


mular a permanência dos estudantes indígenas. Contribuiria visibilizar, não
só para eles, mas para toda a comunidade acadêmica a importância da sua
representatividade nesse espaço. E, como tudo é mediado pela linguagem,
é fundamental propiciar sua interação comunicativa, para que o termo “in-
terculturalidade17” possa ser usado de forma coerente.

Palavras finais

Neste trabalho, procuramos documentar as dificuldades dos estu-


dantes indígenas Munduruku e Wai Wai para atender às práticas de letra-
mento exigidas na universidade, assim como as estratégias propostas para
atendê-las e as ações que apontam como alternativas para melhorar sua
interação comunicativa e inclusão no ambiente universitário.
Os dados que serviram de base para tal registro foram obtidos por
meio de entrevistas, realizadas por telefone. Aceitaram participar do tra-
balho 08 indígenas, sendo 4 de cada povo (Munduruku e Wai Wai). Os re-
sultados mostram que todos, além de falantes de suas línguas maternas,
têm fluência na língua portuguesa, mas manifestam dificuldades para se
expressarem na variedade português acadêmico. Oralmente, quase não
apresentam problemas para se comunicar no cotidiano da vida na cidade,
mas “travam” para se expressar no espaço universitário, pois consideram

17. Conforme perspectiva crítica cujo problema central não é a diversidade étnico cultural, mas
a diferença construída como padrão de poder colonial, propondo a descolonização social pela
construção de outros mundos, sem subjugação e subalternização de povos (WALSH, 2012).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 23-48, 2023 | 45


Cassia Beatriz Feleol Silva
Denize de Souza Carneiro

que (i) não dominam a linguagem técnica, formal - o que também dificulta
o entendimento das explicações -, (ii) não entendem18 bem os textos para
explicá-los ou (ii) temem sofrer preconceito linguístico. Quanto à escrita,
encontram dificuldades para elaborar os gêneros textuais tradicionalmente
solicitados como trabalho de aproveitamento ( resumo, resenha, fichamen-
to, artigo etc.), não pela elaboração em si mesma, mas porque ela depende
do entendimento das aulas e dos conteúdos dos textos trabalhados, o que,
em alguns casos, não ocorre e, em outros, ocorre apenas parcialmente.
Apesar de todos os desafios, são resilientes, resistentes, positivos e
buscam atender às práticas de letramento exigidas na universidade, ado-
tando todas as estratégias que estão ao seu alcance, como: pergunta aos
colegas, pergunta aos professores, auxílio de monitores, pesquisa na inter-
net, uso de aplicativos digitais, videoaulas e outros.
Quanto às estratégias que poderiam ser adotadas como ações afir-
mativas linguísticas a fim de melhorar sua interação comunicativa e inclu-
são, apontam: encontros ou oferta de componente curricular específico
para estudantes indígenas nos casos de conteúdos que eles considerarem
complexos; monitores indígenas; contratação de tradutores indígenas (já
formados); criação de laboratórios voltados para leitura e discussão de tex-
tos; elaboração de material didático com explicações teóricas em lingua-
gem acessível e clara; elaboração de material didático em português com
conteúdo de livros escritos em língua estrangeira e ações que estimulem a
permanência dos estudantes indígenas no ensino superior.
Para nós, esse trabalho foi uma experiência muito enriquecedora e
uma oportunidade ímpar de escuta. Foi especial ouvir e conhecer um pou-
co do universo dos Munduruku e dos Wai Wai, o que, certamente, contri-
buiu de forma significativa para nossa formação acadêmica e humana. Os
relatos e as conversas, para além do que foi apresentado aqui, deixaram o
sentimento de que os estudantes indígenas precisam de espaços de escu-
ta, de valorização e, de fato, de ações práticas que contemplem a diversida-
de de povos presentes na universidade, pois o que vemos ainda se limita à
visão monocultural e monolinguística.

18. Nota-se que o não entendimento não ocorre apenas pela ausência de conhecimentos linguís-
ticos em si, mas também pela ausência de outros saberes, seja da cultura ocidental e/ou teóricos.

46 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS MUNDURUKU, OS WAI WAI E O PORTUGUÊS ACADÊMICO:
UMA CONVERSA SOBRE DIFICULDADES, SUPERAÇÕES E
AÇÕES AFIRMATIVAS LINGUÍSTICAS

Finalizamos este trabalho com a expectativa de que as linhas aqui


apresentadas materializem, mesmo que parcialmente, o que vivem e pensam
os Munduruku e os Wai Wai, estudantes da Ufopa, e contribuam, de alguma
forma, para a realização de ações afirmativas linguísticas na universidade.

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Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p49

ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO E CULTURAL NO


COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

Maicon Rodrigues dos Santos1

Resumo: Atualmente, os professores indígenas estão ensinando a língua indí-


gena e a cultura nas escolas indígenas. Todavia, os pais consideram o ensino
da língua e da cultura um pouco fraco, principalmente na aldeia Corumbau-
zinho. Assim, o objetivo desse trabalho é identificar as estratégias elaboradas
pelos professores Pataxó da aldeia Corumbauzinho, com a finalidade de forta-
lecer o ensino da cultura e da língua indígena. Essa pesquisa utilizará a abor-
dagem qualitativa. Como resultado, observa-se que os professores indígenas
da aldeia Corumbauzinho esforçam-se para fortalecer a língua e a cultura in-
dígena utilizando várias estratégias. Conclui-se que a Secretaria de Educação
do Estado da Bahia pode ajudar a fortalecer a língua e a cultura indígena atra-
vés de concursos públicos específicos para professor de cultura, assim como
promovendo mais formações continuadas para professores que atuam com a
língua e com a cultura indígena.
Palavras-chave: Língua Indígena. Patxôhã. Professor de Cultura.

STRATEGIES FOR LINGUISTIC AND CULTURAL STRENGTHENING IN THE


INDIGENOUS STATE COLLEGE OF CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

Abstract: Currently, indigenous teachers are teaching indigenous language


and culture in indigenous schools. However, parents consider the teaching
of language and culture a little weak, especially in Corumbauzinho village.
Thus, the objective of this work is to identify the strategies developed by Pata-
xó teachers from Corumbauzinho village, with the purpose of strengthening
the teaching of indigenous culture and language. This research will use the
qualitative approach. As a result, it is observed that the indigenous teachers
of the Corumbauzinho village strive to strengthen the indigenous language
and culture using various strategies. It is concluded that the Department of
Education of the State of Bahia can help strengthen indigenous language and

1. Mestre em Ensino e Relações Étnico-Raciais pela UFSB. Especialista em Educação Escolar In-
dígena pela Faculdade Alfamérica. Graduado em Pedagogia pela Faculdade de Ensino Regional
Alternativa (FERA). Especializando em Gênero, Raça, Etnia e Sexualidade pela Universidade do
Estado da Bahia (UNEB). Endereço eletrônico: maiconrodriguesdossantos1992@gmail.com.

[Recebido em: 23 abr. 2023 – Aceito em: 10 set. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 49


Maicon Rodrigues dos Santos

culture through specific public tender for culture teachers, as well as promo-
ting more continuing education for teachers who work with indigenous lan-
guage and culture.
Keywords: Indigenous Language. Patxôhã. Culture Teacher.

Introdução

A educação escolar indígena nos últimos anos tem avançado bas-


tante, mas ainda precisa de muita melhoria para que ela se torne, efetiva-
mente, uma educação de qualidade. Infelizmente, existem muitas escolas
indígenas que não possuem prédios próprios, e as que possuem prédios
próprios, muitas vezes, são construídas pela própria comunidade (BANIWA,
2019). Muitas escolas não possuem água potável, energia elétrica e inter-
net. São necessárias políticas educacionais efetivas para a melhoria da qua-
lidade da educação ofertada para as escolas indígenas.
No que se refere aos aspectos linguísticos e culturais, observa-se
que as populações indígenas da região nordeste são as que mais sofreram
com o processo colonial. Foram os primeiros povos a terem contato com os
portugueses, tendo que ressignificar os seus modos de vida para permane-
cerem sobrevivendo. Segundo as autoras Porto e Bonin (2020),

A ação colonizadora do homem europeu no Brasil deixou marcas profun-


das de desrespeito às diversas etnias indígenas. Os índios foram expulsos
de suas terras, destituídos de sua nacionalidade, emudecidos em seus idio-
mas, explorados e expostos a métodos de trabalho escravo. Foram espo-
liados de seus direitos de expressão e de uso de suas tradições (PORTO;
BONIN, 2020, p. 103).

Devido ao processo cruel de colonização que os povos indígenas ti-


veram que passar e que fez com que muitos indígenas tivessem as suas cul-
turas e as suas línguas enfraquecidas, “[...] as escolas nas aldeias passaram a
ajudar no resgate, na revitalização e na reatualização das culturas indígenas
que haviam sido desvalorizadas ou mesmo abandonadas” (BANIWA, 2019,
p. 43). A escola indígena na atualidade serve como instrumento de valori-
zação das línguas e das culturas indígenas.

50 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

No caso da Bahia, as escolas indígenas dividem-se em municipais e


estaduais. Antes disso, a Funai era a responsável por ofertar a educação esco-
lar indígena para as comunidades. Porém, após o Decreto Presidencial 26 de
1991, a educação escolar indígena passou a ser de responsabilidade do Gover-
no Federal, que passou essa responsabilidade para os estados e municípios.
Sobre as escolas municipais da Bahia, nos casos mais específicos
de Porto Seguro, as escolas indígenas possuem um professor de cultura
específico para trabalhar com as escolas indígenas, como por exemplo, as
escolas municipais do Pé do Monte, Boca da Mata e Barra Velha. Já as es-
colas estaduais não possuem um professor de cultura específico. O que se
tem são as disciplinas Língua Indígena e Identidade e Cultura no ensino
fundamental e apenas Língua Indígena no ensino médio.
Há uma preocupação por parte dos professores do Colégio Esta-
dual Indígena de Corumbauzinho, mais especificamente os professores da
educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental, sobre a língua
e a cultura indígena. Estes, apesar de serem indígenas, sentem dificuldades
em trabalhar com os estudantes esses aspectos culturais. Para eles, é neces-
sário que haja um professor de cultura específico para trabalhar com essas
turmas. No caso dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio,
também não há um professor específico para trabalhar com a cultura indí-
gena. Há alguns professores que trabalham com a Língua Indígena e outros
com a Identidade e Cultura, mas não há um professor de cultura próprio.
Algumas situações similares às informadas acima, encontram-se na
Escola Municipal Indígena Feliciano Pio, uma escola indígena Terena, locali-
zada no município de Aquidauana. Nela, “[...] o ensino da língua materna não
está sendo bem-sucedido, professores indígenas da geração mais recente
têm dificuldades de ensinar a mesma, pois não falam fluentemente ou in-
felizmente não sabem falar” (JORDÃO, 2022, p. 20). Percebe-se que não só
os professores Pataxó da aldeia Corumbauzinho possuem dificuldades para
ensinar a língua indígena, mas outros povos, como os Terena, por exemplo.
A pesquisadora Jordão (2022) traz uma grande preocupação quanto
ao ensino da língua indígena pelo povo Terena. Segundo ela, o professor in-
dígena que não fala mais a sua língua tem dificuldades para ensinar o aluno
indígena que também não fala mais a sua língua. Em relação ao povo Pataxó,

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 51


Maicon Rodrigues dos Santos

No cotidiano, o povo Pataxó usa o português, que, hoje, é a sua primeira lín-
gua; entretanto, através do processo de retomada da língua originária, que
começou em 1998, os Pataxó se fortalecem e estão reaprendendo, novamente,
resultado de um movimento coletivo de mobilização pela valorização da sua
cultura e pela afirmação de sua identidade ‘pataxó’ (BOMFIM, 2017, p. 304).

A pesquisadora indígena Pataxó Anari Braz Bomfim nos traz que o


povo Pataxó está reaprendendo a sua língua, através da retomada linguísti-
ca. A língua indígena Pataxó, o Patxôhã, já está sendo ensinada nas escolas
indígenas Pataxó pelos professores de cultura. Entretanto, como abordado
antes, as escolas indígenas estaduais não possuem esse profissional de for-
ma regular. Existem as disciplinas de Língua Indígena e Identidade e Cul-
tura, mas não há uma vaga específica para o professor de cultura. Apesar
disso, os professores indígenas que trabalham com essas disciplinas estão
se esforçando para promoverem uma educação bilíngue e intercultural.
Após a criação do grupo Atxôhã (um grupo de pesquisadores in-
dígenas Pataxó, que pesquisam sobre a língua Patxôhã), houve avanços
muito significativos no processo de ensino da língua e da cultura indígena:
• A mobilização de jovens indígenas na valorização e divulgação do Patxohã
em diversos espaços;
• Ensino do Patxohã em todas as escolas, com a contração de professores
pataxó pelas secretarias de educação municipais e estadual;
• Pais estimulando os seus filhos para a aprendizagem do Patxohã;
• Publicação de materiais didáticos em Patxohã entre os Pataxó da Bahia
e Minas;
• Valorização do Patxohã nas atividades culturais e esportivas realizadas
nas comunidades;
• Estimular os pais a registrar seus filhos com nomes Patxohã;
• Criação de cantos;
• Identificação no Censo Escolar – INEP;
• Artigos e trabalhos acadêmicos escritos pelos próprios pesquisadores e pro-
fessores pataxó sobre o Patxohã, contribuindo para o seu reconhecimento,
divulgação e valorização;
• O Patxohã se tornou um canal de interação e união entre as aldeias do ex-
tremo sul da Bahia e as de Minas Gerais.
• O processo de retomada linguística tem sensibilizado outros povos a valori-
zarem suas línguas (BOMFIM, 2017, p. 324-325).

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ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

Observa-se nos tópicos escritos pela pesquisadora Anari que existe


a contratação de professores Pataxó. Isso é um fato, pois é recomendável
que as escolas indígenas contratem prioritariamente professores indíge-
nas. Todavia, nem todos os professores Pataxó possuem um conhecimento
aprofundado sobre a questão cultural e linguística. Dessa forma, os profes-
sores indígenas de Corumbauzinho reivindicam um professor de cultura,
considerando que este profissional está apto para exercer as atividades
culturais e linguísticas.
Os autores Oliveira e Costa (2021), ao tratarem sobre o ensino da
língua na escola indígena Kijẽtxawê Zabelê, localizada no município de
Prado-BA, terra indígena Comexatibá, afirmaram que a comunidade estava
considerando o ensino da língua muito fraco. Fator também que está acon-
tecendo na aldeia Corumbauzinho. Os pais sempre reivindicam a contrata-
ção do professor de cultura, para a educação infantil e para os anos iniciais
do ensino fundamental, pois, para eles, o aprendizado cultural e linguístico
dos estudantes está muito fraco. Baseados nisso, os educadores indígenas
pensaram estratégias para tentar melhorar o processo de ensino e aprendi-
zagem em relação às questões linguístico-culturais. Essas estratégias serão
analisadas nos capítulos seguintes.
A escola Laklãnõ do povo Xokleng, localizada em Santa Catarina,
possui profissionais específicos para orientar a cultura e a língua indígena
(PADILHA, 2020). Os caciques do povo Xokleng também conseguiram um
curso de formação para os professores indígenas sobre como lecionar a
língua Xokleng. Além de uma escola indígena ter pessoas específicas para
trabalhar com a língua e a cultura indígena, as formações iniciais e conti-
nuadas são muito importantes para estes profissionais se aperfeiçoarem.
Como os pais consideram o ensino do Patxôhã fraco no Colégio
Estadual Indígena de Corumbauzinho e constantemente reivindicam a
contratação de um professor de cultura, este trabalho tem como objetivo
identificar as estratégias elaboradas pelos professores Pataxó da aldeia Co-
rumbauzinho, com a finalidade de fortalecer o ensino da cultura e da língua
indígena, considerando que não há uma contratação específica para um
professor de cultura e que são os professores Pataxó que são encarregados
de trabalharem a questão cultural e linguística, mesmo sem terem
formações específicas na área linguística e intercultural, muitas vezes.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 53


Maicon Rodrigues dos Santos

Nos capítulos seguintes serão trazidos alguns pontos sobre o início


da educação escolar indígena no Brasil e na Bahia. Ademais, observar-se-
-á algumas falas que foram coletadas através de questionários de alguns
professores indígenas do Colégio Estadual Indígena de Corumbauzinho.
Por fim, serão informadas as estratégias que os professores Pataxó da al-
deia Corumbauzinho utilizam para poder fortalecer o processo de ensino e
aprendizagem dos estudantes do colégio Corumbauzinho.
Essa pesquisa utilizará a abordagem qualitativa. As técnicas empre-
gadas serão a pesquisa bibliográfica, a pesquisa de campo e a pesquisa docu-
mental. Como coletas de dados, serão utilizadas a observação participante2
e os questionários on-line. Como análise dos dados, serão discutidas as res-
postas dos questionários. Serão analisados também documentos escolares
como planos de ação e Projeto Político-Pedagógico. Finalmente, serão utili-
zados autores indígenas e não indígenas que dialogam com o tema.

Breve histórico da educação escolar indígena no Brasil e na Bahia

Atualmente, no Brasil, existem cerca de 305 povos indígenas, fa-


lando 274 línguas indígenas. Entretanto, no período em que o Brasil foi
“descoberto”, esse número era muito maior. Infelizmente, com a chegada
dos colonizadores europeus, muitos povos indígenas foram dizimados por
doenças trazidas pelos portugueses. Além do mais, muitos indígenas foram
escravizados e aqueles que não se submetessem à Coroa Portuguesa eram
mortos, através das “Guerras Justas” (BANIWA, 2019).
Sobre a questão educacional dessas populações, é importante fri-
sar que no período colonial, a educação ofertada para os povos indígenas
tinha como finalidade a catequização através dos padres Jesuítas (KNAPP,
2020). Durante esse processo de catequização, os padres aprendiam as lín-
guas dos indígenas e ensinavam eles sobre a fé católica, com o objetivo de
convertê-los ao Cristianismo. Isso fez com que as línguas e as culturas indí-

2. O autor deste trabalho também atua como diretor escolar no Colégio Estadual Indígena de
Corumbauzinho.

54 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

genas passassem a ser enfraquecidas. Nesse período ocorreu o aldeamento


de diversos povos indígenas.
Ainda no Brasil Colônia, no período denominado como Diretório
dos Índios, o Ministro de Portugal, Marquês de Pombal, determinou que os
Jesuítas fossem expulsos da Colônia e que os aldeamentos fossem extintos
e se transformassem em vilas. Sobre a educação dos indígenas, ela deveria
ser ministrada na língua portuguesa (SOUZA, 2021), haveria separação en-
tre meninos e meninas e, nesse período, foram dados sobrenomes portu-
gueses aos indígenas. Isso caracterizou ainda mais o enfraquecimento das
línguas indígenas e das culturas.
No período republicano, em 1910, foi criado o Serviço de Prote-
ção aos Índios e Trabalhadores Nacionais, alterado em 1918 para Serviço
de Proteção aos Índios (SPI). O foco da educação para os indígenas nesse
período era o de formar os indígenas para trabalhar como trabalhado-
res rurais e também fazerem segurança nas fronteiras do Brasil (KAYAPÓ,
2019). Foi o período em que o Instituto Linguístico de Verão (Summer
Institute of Linguistic) atuou entre vários povos, a serviço do Estado, para
fazer pesquisas sobre as línguas indígenas e, ao mesmo tempo, evange-
lizar estes povos.
Em 1967, depois de muitas denúncias contra o SPI, que estava per-
mitindo um verdadeiro genocídio sobre as populações indígenas (FEITOSA;
SOUZA, 2020), como o Fogo de 51, ocorrido na aldeia Pataxó Barra Velha,
por exemplo, foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que tinha
como finalidade proteger os povos indígenas, mas que acabou reproduzin-
do o que o SPI estava fazendo. A Funai, ao invés de ajudar os povos indíge-
nas a se manterem como tais, estava tentando integrá-los à Comunidade
Nacional, fazendo com que o processo educacional fortalecesse a língua
portuguesa em detrimento da língua indígena.
O Estatuto do Índio, ainda vigente, deixa claro como deveria ser o
processo de escolarização dos povos indígenas, que deveria preparar os
indígenas para serem integrados à sociedade brasileira. Esse Estatuto foi
criado durante o regime da Ditadura Militar (1964-1985), regime que ficou
conhecido por dizimar vários indígenas (CAVALCANTE, 2020) e lotear as
suas terras para fazendeiros.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 55


Maicon Rodrigues dos Santos

Em 1988, pela primeira vez na história, foram reconhecidos aos in-


dígenas o direito de permanecerem a viver como indígenas em suas terras
originárias e a utilizarem as suas línguas maternas e processos próprios
de aprendizagem, mediante a promulgação da Constituição Federal. Essa
Constituição foi considerada um marco histórico por ter os direitos dos po-
vos indígenas reconhecidos.
Em 1996, foi criada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nal (LDB) que traz algumas das finalidades da educação escolar indígena.
Dentre elas, estão a recuperação das memórias históricas, reafirmação das
identidades étnicas e valorização das suas línguas e ciências. Depois da
LDB, surgiram várias legislações que tratam da Educação Escolar Indígena,
como Planos, Diretrizes, Pareceres e Resoluções, além de Referenciais Cur-
riculares como é o caso do Referencial Curricular Nacional para as Escolas
Indígenas (RCNEI).

Estrutura e funcionamento do Colégio Estadual Indígena de


Corumbauzinho

O Colégio Estadual Indígena de Corumbauzinho passou a ter esse


nome a partir de 2014, quando passou a ofertar o ensino médio. Antes dis-
so, em 1992, ele pertencia à esfera municipal e se chamava Escola Munici-
pal Pedro Álvares Cabral. Em 2004, passou a pertencer à esfera estadual e
ficou conhecido como Escola Estadual Indígena de Corumbauzinho.
O colégio Corumbauzinho localiza-se na aldeia Corumbauzinho,
terra indígena Barra Velha, no município de Prado-BA. A aldeia Corumbau-
zinho fica próxima das aldeias Águas Belas e Craveiro, fazendo divisa tam-
bém com o Parque Nacional do Monte Pascoal (PNMP). Inicialmente, o colé-
gio Corumbauzinho possuía apenas os anos iniciais do ensino fundamental
e poucas salas de aula (feitas pela própria comunidade). Com o passar dos
anos, o colégio conseguiu ofertar os anos finais do ensino fundamental e
conseguiu duas salas de aulas construídas pela Secretaria de Educação da
Bahia, além de dois banheiros, uma cantina e uma secretaria. Depois a es-
cola passou a ofertar o ensino médio, utilizando salas improvisadas como a

56 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

Igreja Católica da comunidade. A partir de 2022, a comunidade indígena de


Corumbauzinho, juntamente com outros parceiros, fizeram mais três salas
de aulas e deixaram mais uma no ponto de cobertura. Essas salas já estão
sendo utilizadas. Além das etapas de ensino informadas, a unidade escolar
também oferta a creche de 3 anos e a educação infantil, composta pelas
turmas de 4 e 5 anos e a educação de jovens e adultos (EJA), dos eixos I ao V.
Atualmente, o colégio Corumbauzinho possui 165 alunos, 8 fun-
cionários de apoio, 15 professores, um diretor e uma vice-diretora. Possui
7 salas de aulas, uma cantina, uma secretaria, três banheiros e uma sala
que funciona como sala de informática e biblioteca. O colégio é de pe-
queno porte e funciona nos turnos matutino, vespertino e noturno. As
turmas de creche e de educação infantil funcionam com um professor
único. Nessas turmas são os próprios professores que trabalham a língua
e a cultura indígena. Os professores dessas turmas possuem muitas di-
ficuldades para trabalhar com essas disciplinas. Fator que os motivou a
considerarem um professor de cultura importante para atuar nessas tur-
mas, pois, dessa forma, eles trabalhariam com as demais disciplinas, en-
quanto o professor de cultura se dedicaria a atuar especificamente com a
língua e com a cultura indígena.
No que refere às turmas dos anos finais do ensino fundamental e do
ensino médio, há uma educadora que trabalha com todas as turmas com a
disciplina de Língua Indígena. Em relação à disciplina de Identidade e Cul-
tura, há cerca de três professores programados com a disciplina de Identi-
dade e Cultura, devido à distribuição de carga horária. É importante frisar
que nas contratações de professores indígenas não há contratações espe-
cíficas por disciplina, como ocorre nas escolas não indígenas, por exemplo,
professor de matemática, professor de física, etc. Os concursos e processos
seletivos não definem quais disciplinas o professor irá lecionar. Essa função
compete à própria unidade escolar escolher ou, às vezes, já vem pré-deter-
minadas pela SEC, devido haver vencimentos de contratos ou solicitação
de exoneração pelos professores. Sobre a Educação de Jovens e Adultos,
não há a disciplina de Língua Indígena.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 57


Maicon Rodrigues dos Santos

Ensino da Língua e da Cultura Indígena pelos professores Pataxó de


Corumbauzinho

As informações dos educadores do colégio Corumbauzinho foram


coletadas através de um questionário eletrônico, pelo Google Forms. É im-
portante frisar que devido alguns destes educadores optarem que os seus
nomes não fossem divulgados, eles serão representados pelas siglas P1, P2
e P3. A primeira pergunta do questionário foi a seguinte: Como você traba-
lha com a disciplina Língua Indígena na sala de aula? As respostas foram:

P1 - Leitura e interpretação de texto, diálogos e o lúdico.


P2 - Com as palavras, principais saudações, cores, números, partes do corpo.
Com a escrita na lousa e depois a pronúncia para os alunos aprender.
P3 - Trabalho conteúdos voltados para a língua indígena, músicas e danças
indígenas do povo Pataxó, jogos, etc.

Observa-se que os educadores citados trabalham com a língua


indígena na sala de aula. Algumas metodologias que estes profissionais
utilizam são a leitura, a interpretação textual, jogos e brincadeiras (lúdico),
palavras, saudações principais, cores, números, partes do corpo, pronúncia,
músicas e danças do povo Pataxó. Cada metodologia aplicada é adaptada
ao nível dos estudantes. Percebe-se uma vasta metodologia para se traba-
lhar a língua indígena.
A segunda questão foi a seguinte: Como você trabalha com a discipli-
na Identidade e Cultura na sala de aula? Eles responderam da seguinte forma:

P1 - Este ano não trabalho com a disciplina.


P2 - Busco sempre trazer os acontecimentos e os fatos desde o passado até o
futuro, seja qual for a cultura.
P3 - Trabalho mais é textos voltados para a valorização cultural do povo Pata-
xó, como por exemplo, narrativas indígenas, contos e causos do povo Pataxó,
pintura corporal, lendas e mitos indígenas.

Ao observar as afirmações dos educadores, conclui-se que um edu-


cador não atua com a disciplina Identidade e Cultura. Isso se dá devido a
distribuição da carga horária, que as vezes é necessário dividir uma mesma
disciplina para mais de um professor para que se complete a carga horária,
que geralmente é de 16 horas/aulas pela tarde e 20 horas/aulas pela manhã.

58 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

O professor P2 não trabalha apenas a cultura indígena, ele trabalha


também a cultura de outros povos, o que é muito importante, tratando-se
de uma educação escolar indígena intercultural. Além disso, ele não frisa a
questão histórica, trazendo situações apenas do passado, ele traz situações
do presente e do futuro. Isso é fundamental para o fortalecimento identitá-
rio, pois além de o estudante conhecer a sua história, ele também percebe
a sua realidade atual e começa a projetar o seu futuro.
O terceiro educador trabalha com contos, causos, narrativas, lendas e
mitos Pataxó, assim como textos sobre a valorização cultural do povo Pataxó
e pinturas corporais. Esses aspectos são muito essenciais para que os estu-
dantes conheçam a importância de se conhecer as diferenças entre os diver-
sos tipos de gêneros textuais que abrangem a cultura indígena, assim como
os significados das pinturas corporais. Além do mais, Silva (2019), salienta que

A língua indígena vem para as pessoas (1) no fazer cultural, (2) com o senti-
mento da força ancestral, e na (3) interação com a natureza. Essas três ideias
devem ser consideradas na organização de atividades de retomada cultural
da língua, em quaisquer contextos, inclusive na escola (SILVA, 2019, p. 6).

Em relação à participação de cursos ofertados pelas secretarias mu-


nicipais/estaduais de educação, dois professores disseram já ter participa-
do, e um não participou:

P1 - Sim, já participei do curso Atxôhã Pataxó. P2 – Sim. P3 – Não.

A pesquisadora indígena Bomfim (2017) salientou que o Atxôhã, de


fato, está promovendo formações de professores indígenas, em parceria
com as secretarias de educação. Todavia, ainda há professores que atuam
com a disciplina de Patxôhã e com Identidade e Cultura que ainda não fo-
ram contemplados.
Sobre as experiências dos professores que participaram das forma-
ções continuadas para o trabalho com a língua indígena e com a cultura,
eles responderam da seguinte maneira:

P1 - Foi maravilhoso, teve parentes Pataxó de várias aldeias e estados. O olhar


de cada um sobre o Patxôhã... algumas coisas eu já sabia, mas outras eu vim a
aprender. Foi uma experiência linda. P2 - Ainda estou participando.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 59


Maicon Rodrigues dos Santos

Percebe-se que a troca de experiência entre os educadores foi bas-


tante proveitosa. O compartilhamento de ideias entre os Pataxó de várias
aldeias e estados contribuiu para que as experiências linguísticas fossem
bastante ricas.
Por fim, foi indagado se há formações continuadas de forma sufi-
ciente. Eles disseram que: P1 - Se está promovendo é pouco. Penso eu que
deve ocorrer mais, pois são experiências diferentes, mesmo sendo do mesmo
povo, mas não sobrevivemos da mesma forma. Então essas formações têm
que ocorrer mais vezes. P2 – Sim. P3 – Não.
Através dessas respostas, observa-se que tem professores que
acham que as formações que estão ocorrendo são insuficientes; outros
acham que são poucas. Dessa forma, as secretarias de educação devem
promover formações continuadas, em parcerias com professores habilita-
dos na questão linguística, de forma que contemple todos os professores
que estão atuando com disciplinas específicas.

A importância do professor de cultura indígena

No questionário on-line, também foram feitas perguntas sobre o


professor de cultura. Umas das perguntas foi: Você acha que a escola deve
ter um professor de cultura para os anos iniciais do ensino fundamental?
Por que? As respostas foram:

P1 - Com certeza, assim como temos o professor específico só para língua estran-
geira, temos que ter um olhar maior só para o Patxôhã também.
P2 - Sim, porque pode trabalhar de forma igualitária de acordo com o desenvol-
vimento das turmas e não com conteúdo e assuntos de forma aleatória.
P3 - Na minha opinião, sim. Mesmo que todos nós somos professores indígenas,
mas ainda vejo a necessidade de ter um professor específico para estar traba-
lhando a cultura; porque, tendo um professor de cultura, o foco dele só será a
cultura, não vai ter outras disciplinas para acarretar tanto ele. Com isso, ele irá
conseguir se dedicar apenas para a cultura. E até porque, mesmo que somos to-
dos professores indígenas, mas há muitas coisas ainda que não temos prática e
nem habilidade de fazermos, como por exemplo, a pintura corporal. Nem todo
professor sabe fazer pintura indígena, não é porque eu sou uma professora in-
dígena, que eu devo saber fazer uma pintura indígena. Tudo vai pelo dom da
pessoa: há pessoas que tem muita habilidade de fazer pintura, outras não.

60 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

Os professores acham importante que a escola tenha um professor


de cultura específico, pois o professor de cultura poderá trabalhar de for-
ma mais contundente tanto a língua quanto a cultura indígena. Ademais,
ele poderá dar uma assistência melhor para cada turma individualmente,
assim como trabalhar aspectos da cultura indígena em que os professo-
res indígenas não possuem habilidades. As respostas dos professores tam-
bém dialogam com Silva (2022), que afirma que o professor de cultura está
“[...] legitimado em textos curriculares como personagem importante na
“revitalização” da cultura pataxó, podendo ser lido como o (a) profissional
responsável na escola pela reunião dos processos pedagógicos da cultura
(SILVA, 2022, p. 21).
No que se refere ao conceito de revitalização, Moraes (2021) entende a

[...] revitalização linguística como um processo com um conjunto de meto-


dologias e técnicas linguísticas que buscam ampliar o número de falantes
de uma língua, levando em consideração as especificidades de cada grupo.
Isso é muito importante porque valoriza as línguas que podem se extinguir,
amplia a diversidade linguística e valoriza saberes tradicionais (MORAES,
2021, p. 490-491).

Valorizar os saberes tradicionais e as línguas indígenas que podem


ser extintas ou que estão em processo de revitalização, assim como ampliar
o número de falantes de uma língua são processos em que os professores in-
dígenas estão fazendo, ou pelo menos tentando fazer, para que os estudan-
tes conheçam as suas línguas e tentem utilizá-las em situações cotidianas.
Sobre a importância do professor de cultura, os educadores dis-
seram que

P1 - O professor, ele é um líder sempre buscando alternativas para que o aluno se


envolva dentro da disciplina e aprenda mais sobre sua identidade.
P2 - Bom, o professor indígena é importante. Por você ser indígena, você deve
conhecer e trazer seus costumes, crenças e tradições para o ambiente escolar. É
fundamental para o desenvolvimento dos nossos alunos, culturalmente.
P3 - A importância do professor de cultura é para fortalecer mais a questão cul-
tural na escola, tendo em vista que não é o único responsável por isso, mas o
professor de cultura é como se fosse o principal incentivador da cultura, para que
todos nós possamos estar juntos com ele, ajudando no quer for preciso.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 61


Maicon Rodrigues dos Santos

Ou seja, todos estão em comum acordo que o professor de cultura


tem uma importância significativa no processo de fortalecimento identitá-
rio dos estudantes. Aliás, ele não é o único responsável pela questão cultural,
de forma que os demais professores, por serem indígenas também, preci-
sam trazer para o ambiente escolar os seus costumes, crenças e tradições.
A última pergunta sobre o professor de cultura foi a seguinte:
Você acha que o professor de cultura é o principal responsável por toda a
questão cultural da escola e somente ele deve tomar todas as iniciativas
culturais? Por que?

P1 - O professor de Patxôhã não é o principal responsável, não. Ele, assim como


as outras disciplinas, tem que trabalhar em conjunto com os colegas para poder
chegar a um objetivo, que é o aprendizado dos alunos.
P2 - Não, a cultura é ampla e todos os profissionais que trabalham na área da
educação escolar indígena têm que estar qualificados ou saber o básico sobre a
questão dos povos indígenas.
P3 - Não. Qualquer professor pode ser responsável pela questão cultural, mas
o professor de cultura é fundamental para ser como um auxílio para os outros
professores, para estar orientando os demais professores, que ainda têm dificul-
dades em algumas questões que envolvem a cultura.

Os professores concordam que o professor de cultura não deve ser


o principal responsável pela questão linguística e cultural da escola, po-
rém ele é fundamental para o avanço da educação bi/multilíngue e inter-
cultural. Na escola Laklãnõ do povo Xokleng, “Os alunos dos anos iniciais
do ensino fundamental (do 1º ao 5º ano) são atendidos pelos professores
regentes, com o apoio de um coordenador da língua” (PADILHA, 2020, p.
22-23). Esse caso é parecido com o dos professores do Corumbauzinho. A
diferença é que eles possuem um coordenador de língua, e os professores
do Corumbauzinho não possuem.
Dessa forma, a secretaria de educação da Bahia precisa dialogar
com as comunidades indígenas para saber como que as escolas indígenas
pensam a educação escolar indígena, pois há a necessidade de haver a con-
tratação de um professor de cultura indígena, de forma integral (40h) para
trabalhar com todas as turmas da unidade escolar, principalmente através
de um concurso público específico, considerando que os contratos tempo-
rários não garantem a efetividade do educador no cargo.

62 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
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Estratégias de fortalecimento linguístico e cultural

No início do ano de 2023, na Jornada Pedagógica, foi feito um plano


de ação pelos professores, direção e representantes do Colegiado Escolar,
onde algumas ações voltadas para o fortalecimento cultural foram regis-
tradas. Algumas dessas ações foram: executar os projetos estruturantes no
ano de 2023; formatura; restauração do Poço Fundo; Lual.
Além das ações acima, ficou definido algumas datas comemorati-
vas no calendário escolar: São Braz; aniversário da escola; Dia dos Povos
Indígenas; Gincana Cultural e Transformaê.
No Projeto Político-Pedagógico da Unidade Escolar, que está em
processo de revisão, tem também o projeto de intercâmbios estudantis
interculturais, que é um projeto que envolve escolas não indígenas e Uni-
versidades. A seguir, trataremos um pouco sobre as ações, as datas come-
morativas e sobre o projeto de intercâmbios.

Plano de ação

Segundo o site da Secretaria de Educação, os projetos estruturantes

[...] constituem uma categoria de ação composta por um conjunto de pro-


jetos que, além de implementarem políticas educacionais, buscam a rees-
truturação dos processos e gestão pedagógica, a diversificação e inovação
das práticas curriculares e, como consequência e foco principal, a melhoria
das aprendizagens3.

O Colégio Estadual Indígena de Corumbauzinho (CEIC) além de utili-


zar os projetos estruturantes para a melhoria da aprendizagem dos estudan-
tes, ele utiliza para o fortalecimento identitário e linguístico. Geralmente, há
uma divisão dos projetos (AVE, FACE, TAL) onde cada professor, ou grupo de
professores, fica responsável por executar determinado tipo de projeto.
O AVE (Artes Visuais Estudantis) geralmente o(a) professor(a) de ar-
tes fica responsável, de forma individual ou em grupo. Nesse projeto, muitas
artes são elaboradas. Muitas destas utilizando aspectos da cultura indígena

3. Disponível em http://escolas.educacao.ba.gov.br/projetos-estruturantes. Data de acesso: 19


de março de 2023.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 63


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Pataxó como cocares, maracás, pinturas indígenas, arcos e flechas, o Monte


Pascoal, dentre outros. É um projeto muito importante, pois além de estimu-
lar os estudantes a produzirem artes, fortalece a identidade dessa clientela.
O FACE (Festival Anual de Canção Estudantil) é um projeto que en-
volve produção musical. Os alunos do CEIC já foram por diversas vezes para
a etapa regional. As músicas geralmente tratavam sobre o respeito ao in-
dígena, vivência na aldeia e o dia a dia de uma adolescente. Apesar de os
estudantes não terem avançado para a etapa estadual, isso foi um grande
orgulho para a escola e para a comunidade indígena de Corumbauzinho,
por ter estudantes levando a cultura “para fora”.
Em relação ao TAL (Tempo de Artes Literárias), costuma-se os pro-
fessores de Língua Portuguesa ficarem responsáveis. Nesse projeto há uma
vasta produção literária, envolvendo poemas e narrativas. São diversos te-
mas como causos, histórias de vida e vivência escolar. Uma ex-estudante
foi aprovada para a etapa estadual por ter feito um poema sobre o Fogo
de 51. Infelizmente não houve possibilidade de ela viajar, por motivos de
logística. Outra vez, uma estudante, que atualmente é professora da unida-
de CEIC, além de recitar um poema na língua portuguesa, recitou também
na língua Patxôhã, valorizando assim a língua do povo Pataxó, a qual ela
também pertence.
Existem outros projetos estruturantes que ainda não foram trabalha-
dos de forma efetiva pela unidade escolar, mas que estão gradativamente
sendo incorporados pelos educadores e estudantes para serem trabalhados.
Esses projetos são o EPA, PROVE, FESTE, ENCANTE e DANCE. Resumidamen-
te, o EPA trata sobre patrimônios, o PROVE sobre produção de vídeos, o FES-
TE sobre teatros, o ENCANTE sobre corais e o DANCE sobre danças.
Sobre a formatura no CEIC, é importante frisar que ela já vem acon-
tecendo a bastante tempo. Inicialmente, aconteciam formaturas com as
turmas do 5º ano e do 9º ano. Com o advento do ensino médio, os estudan-
tes da 3ª série do ensino médio também passaram a fazer formatura. De
alguns anos para cá, apenas estudantes da 3ª série do ensino médio passa-
ram a fazer as formaturas de colação de grau. Algo que precisa ser revisto.
Nas formaturas, tudo é pensado de forma cultural. Desde as vesti-
mentas até a cerimônia. Primeiro, é feita a ornamentação, onde professo-

64 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

res(as) utilizam uma grande variedade de ornamentos para que o ambiente


fique bem cultural. Alguns desses ornamentos são malhas, TNTs, plantas,
flores e pinturas indígenas. Depois acontece a pintura dos estudantes e a
utilização dos trajes indígenas (cocares, tangas e colares). Durante o pe-
ríodo da cerimônia, os estudantes fazem homenagens para os pais, pro-
fessores, a Deus, e no final fazem o juramento (geralmente em Patxôhã)
sobre continuarem estudando. No final da cerimônia, a mesa (composta,
geralmente, pelo diretor da escola, cacique, pajé, representante dos profes-
sores, dos pais e outras autoridades) faz o seu pronunciamento e entrega
os certificados para os estudantes.
Em relação à restauração do Poço Fundo (Ikwará Kêé em Patxôhã),
esse espaço já existia antes, porém no início do ano 2020 ele foi restaurado.
Foi um momento muito rico, pois os estudantes do curso de letras da UNEB
puderam conhecer e participar de palestras e de rituais nesse espaço, jun-
tamente com o corpo docente e discente do CEIC. Com a pandemia da CO-
VID-19, esse espaço não foi mais utilizado. Dessa forma, no plano de ação
de 2023, a restauração desse local foi colocada em pauta, e os professores e
os estudantes já fizeram a limpeza desse ambiente.
No que se refere ao Lual, para o CEIC é uma inovação, pois até o
momento não houve um momento em que houvesse uma apresentação
cultural em dia de lua cheia. O Lual já ocorreu em outras aldeias como a
aldeia Barra Velha, mas na aldeia Corumbauzinho, mais especificamente no
colégio, está sendo a primeira vez. Já ocorreu sim, noites culturais, mas não
em dias de lua cheia. Esses luais acontecerão com estudantes do ensino
fundamental dois, do ensino médio e estudantes da educação de jovens
e adultos (EJA). Terá como finalidade ampliar a utilização da língua e da
cultura indígena, através dos awês e das contações de causos.
Além das ações citadas, existe uma outra ação que não foi adiciona-
da no plano de ação, mas que ficou acordada durante a Jornada Pedagógi-
ca, que foi a de utilizar todas as sextas-feiras pela manhã para se fazer um
momento cultural com as turmas do turno matutino, incluindo as turmas
de creche e educação infantil. Esse momento cultural será um momento
onde, de forma conjunta, será praticado o awê, oficinas de pinturas indí-
genas e confecção de artesanatos, contação de histórias, além de haver a

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 65


Maicon Rodrigues dos Santos

possibilidade de se convidar outras pessoas da comunidade para ajudarem


nesses momentos culturais, como por exemplo, o cacique, o pajé, funcioná-
rios da saúde, dentre outros.

Datas comemorativas

A festa de São Braz é uma festa tradicional dos moradores da aldeia


Corumbauzinho. Ela acontece todos os anos durante os dias 1, 2 e 3 de fe-
vereiro. Costuma-se nos primeiros dois dias haver uma grande festividade,
envolvendo carne assada e um sambinha, com direito a um forrózinho à
noite. No terceiro dia, há uma missa, seguida da entrega do ramo para os
festeiros, que se comprometeram em fazer as festividades do ano seguinte.
Essa data, apesar de não cair no calendário letivo da escola, é bastante im-
portante para a comunidade indígena de Corumbauzinho.
No que concerne ao aniversário da escola, é algo que ainda não foi
feito desde a sua criação em 1992. É importante que se comemore o ani-
versário da escola na aldeia, pois esta foi adquirida após muitas cobranças
das lideranças, inclusive a implementação dos anos finais do ensino funda-
mental e do ensino médio. Foi uma grande conquista para a comunidade
de Corumbauzinho, que precisa ser comemorada com uma grande festi-
vidade. Essa é uma forma de a comunidade se orgulhar cada vez mais das
suas lutas e do seu pertencimento étnico, porque a escola é um local que
fortalece a língua e a cultura indígena.
Sobre o Dia dos Povos Indígenas, antes denominado de Dia do “Ín-
dio”, o CEIC sempre tem comemorado essa data. Comemorado no sentido
de relembrar a resistência que os povos indígenas e, mais especificamente,
o povo Pataxó tem tido no decorrer dos séculos. Nesse dia, faz-se compe-
tições de jogos indígenas, envolvendo a comunidade, a unidade escolar,
escolas não indígenas e escolas indígenas. Durante os jogos são praticadas
as modalidades de arco e flecha, zarabatana, luta corporal, corrida de mara-
cá, corrida com toras, arremesso de takapê (lança), corrida rústica. Além dos
jogos, há exposição de comidas típicas, produções indígenas, artesanatos
e ervas medicinais, assim como o awê (dança tradicional do povo Pataxó).

66 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

Em relação à Gincana Cultural, esse ano a previsão é que ela acon-


teça em 21 de julho. Essa gincana é bastante rica, pois tem como finalidade
utilizar a cultura indígena e a cultura de outros povos em suas atividades.
Na gincana que aconteceu no ano de 2022, houve diversas apresentações
teatrais, abordando sobre o tema pluralidade cultural. Houve, também,
Soletrando na Língua Portuguesa, tradução e pronúncia de palavras em
Patxôhã, perguntas e respostas de Matemática, Torta na Cara, envolvendo
perguntas de conhecimentos gerais, atividades relâmpagos envolvendo
religião, além de diversos jogos e brincadeiras (nesse caso, mais voltadas
para os estudantes da educação infantil e do ensino fundamental 1).
No que se refere ao Transformaê,

É um movimento educativo-cultural, proposto pela Secretaria da Educação


do Estado às unidades escolares da Rede Estadual de Ensino, com o objetivo
de potencializar a produção científica, artística, literária, cultural e social da
unidade escolar com a participação do coletivo da comunidade local.4

O CEIC, em anos anteriores, trabalhou o Transformaê, utilizan-


do muitas questões culturais, artísticas e esportivas. No ano de 2018, por
exemplo, pela manhã, houve palestras de pessoas da comunidade e de
fora da comunidade, tratando sobre temas muito pertinentes à aldeia. Por
exemplo, houve falas do cacique Adailton Pereira Braz e do Pajé Mário Braz,
falando sobre a criação da aldeia; fala de Joel Braz (importante liderança do
povo Pataxó), falando sobre o processo de retomadas e a importância dos
Movimentos Indígenas; houve falas também do Aisan (Agente Indígena de
Saneamento), dialogando sobre o processo de saneamento básico da co-
munidade. No turno vespertino, houve diversas modalidades esportivas. Já
no período noturno, houve a exposição de produção artística e a apresen-
tação de um filme indígena.

4. Disponível em http://escolas.educacao.ba.gov.br/transformae. Data de acesso: 19 de março


de 2023.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 67


Maicon Rodrigues dos Santos

Intercâmbios Estudantis Interculturais

Inicialmente, o Colégio Estadual Indígena de Corumbauzinho


visitava as escolas não indígenas de forma aleatória, sem uma reflexão
aprofundada. A partir de 2019, essa instituição de ensino tem promovi-
do intercâmbios estudantis interculturais com a finalidade de romper
com preconceitos e estereótipos sobre as populações indígenas, além
de ajudar a cumprir e a fiscalizar a Lei 11.645/2008, que amplia a Lei
10.639/2003.
A Lei 11.645 de 2008 estabelece a obrigatoriedade do ensino da
temática indígena, africana e afro-brasileira nas escolas não indígenas do
Brasil. Através dos intercâmbios estudantis interculturais, que também já se
encontram no Projeto Político-Pedagógico desta unidade escolar, os estu-
dantes das escolas não indígenas aprendem muitas coisas sobre os povos
indígenas. A dinâmica desses intercâmbios se dá através da exposição de
artesanatos, ervas medicinais e comidas típicas; dramatizações e palestras
sobre a realidade indígena, tanto Pataxó quanto brasileira; jogos e brinca-
deiras indígenas, etc. Em contrapartida, as escolas não indígenas também
fazem apresentações diversas.
O Corumbauzinho já fez intercâmbios com escolas não indígenas,
municipais e estaduais. Também já fez intercâmbios com a Universidade
Federal do Sul da Bahia (UFSB) e com a Universidade do Estado da Bahia
(UNEB). Uma situação bastante inovadora foi um intercâmbio que o Co-
rumbauzinho fez com um Colégio Particular de Linhares, no Espírito Santo,
de forma on-line, chamado de Cristo Rei. Esse intercâmbio foi bastante ino-
vador e proveitoso, considerando que os estudantes e professores estavam
bastante avançados no conhecimento sobre a temática indígena.
Os intercâmbios estudantis interculturais acontecem durante
todo o ano letivo. Assim, o mês de abril é o período onde há mais de-
mandas de visitas às escolas não indígenas, assim como das escolas não
indígenas ao colégio Corumbauzinho, principalmente no dia dos Povos
Indígenas, 19 de abril.

68 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

Considerações Finais

Apesar de os professores de Corumbauzinho serem indígenas Pata-


xó, em sua grande maioria, muitos deles possuem dificuldades em traba-
lhar com a língua e com a cultura indígena, principalmente os professores
da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental. Percebe-se
que a falta de um professor de cultura dificulta o trabalho desses profissio-
nais da educação, que além de lecionarem diversas disciplinas, ainda preci-
sam se dedicar na questão linguística e cultural.
Como observado no texto, as escolas indígenas municipais de Por-
to Seguro possuem um professor de cultura específico para trabalhar com
as turmas. Na escola Xokleng possui o orientador de línguas e o professor
de língua, além de formações específicas sobre a língua. Em relação ao Co-
légio Estadual Indígena de Corumbauzinho, apesar de haver o esforço do
Atxôhã e do programa Saberes Indígenas na Escola, ainda há professores
que possuem dificuldades em trabalhar com a língua e com a cultura.
Mesmo com todas as dificuldades, os professores indígenas da
aldeia Corumbauzinho esforçam-se para ofertar uma educação escolar in-
dígena de qualidade. Todas as estratégias utilizadas são para fortalecer a
língua e a cultura dos estudantes do colégio. Atividades como os intercâm-
bios estudantis interculturais, as datas comemorativas e o plano de ação
são fundamentais para que o colégio de Corumbauzinho tenha um reforço
cultural. Além disso, os educadores, em suas aulas, promovem atividades
culturais à medida que eles conseguem, pois nem todos possuem um co-
nhecimento aprofundado sobre a língua e a cultura indígena. Dessa forma:

[...] o trabalho com a língua em situação de vitalidade, retomada, ou até


mesmo de reconstrução cultural, necessita de uma conjugação de saberes,
esforços e ideias, incluindo a articulação entre conhecimentos de diferentes
matrizes epistêmicas. Ou seja, todas as atividades criadas devem gerar
aprendizagens coletivas e integração possível entre escola e os demais
espaços educativos, partilhando experiências, sucesso, e muita motivação
(SILVA, 2019, p. 7).

A Secretaria de Educação do Estado da Bahia pode ajudar a fortale-


cer a língua e a cultura indígena através de concursos públicos específicos
para professor de cultura. Também pode ajudar promovendo mais forma-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 69


Maicon Rodrigues dos Santos

ções continuadas para professores que atuam com a língua e com a cultura
indígena, em parceria com as instituições/universidades e grupos de pes-
quisa da língua indígena, pois “[...] a formação do professor indígena tem
papel fundamental diante de uma mudança na prática da escola indígena
e da comunidade como um todo, diante da posição que ocupa na comuni-
dade” (BERNARDI; DELIZOICOV; CEICCO, 2020, p. 16).

Referências

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70 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO LINGUÍSTICO
E CULTURAL NO COLÉGIO ESTADUAL INDÍGENA DE
CORUMBAUZINHO, PRADO-BA

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Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 49-71, 2023 | 71


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p73

AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

Laura Castro1

Resumo: A arte, o papel e o desenho, o livro e a escrita, guardam seu lugar


algoz na nossa história colonial. No entanto, podemos pensar nas escritas e
livros de artistas, mestres e pensadores indígenas como aliados na luta pelo
território, na luta pela vida? Este artigo pretende cotejar esta reflexão a par-
tir de escritos e cantos de mestres e mestras dos povos originários, além de
escritos de artistas indígenas contemporâneos, confluindo modos de pensar
essas escritas com pensadores originários e afro-diaspóricos a fim de antever
mundos e alfabetos diversos, que apontam outras éticas e políticas para o
livro e para a escrita. O artigo percorre trabalhos, falas e proposições poéticas
de Davi Kopenawa, Joseca Yanomami, Denilson Baniwa, Jaider Esbell, Daiara
Tukano, Gustavo Caboco, Lucilene Wapichana, Bernaldina José Pedro, Zabelê
Pataxó, Ane Kethleen Pataxó e Uýra Sodoma para pensar as cosmopoéticas de
livros e escritas indígenas.
Palavras-chave: Povos indígenas. Livro. Poéticas indígenas. Arte indígena
contemporânea.

THE COSMOPOETICS OF INDIGENOUS BOOKS AND WRITINGS

Abstract: Art, paper and drawing, books and writing, keep their stigmatizing
place in our colonial history. However, can one think of the writings and books
of artists, masters, and indigenous thinkers as allies in the struggle for terri-
tory, in the struggle for life? This article intends to discuss this reflection based
on the writings and songs of native people’s masters, as well as on the writin-
gs of contemporary indigenous artists. It aims to converge ways of thinking
about these writings with native and Afro-diasporic thinkers in order to fore-
see different worlds and alphabets, which point to other ethics and policies
for books and writing. The article goes through the works, speeches, and poe-
tic propositions of Davi Kopenawa, Joseca Yanomami, Denilson Baniwa, Jaider
Esbell, Daiara Tukano, Gustavo Caboco, Lucilene Wapichana, Bernaldina José
Pedro, Zabelê Pataxó, Ane Kethleen Pataxó, and Uýra Sodoma to think about
the cosmopoetics of indigenous books and writing.
Keywords: Indigenous peoples. Book. Indigenous poetics. Contemporary in-
digenous art.

1. Professora no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC), Pro-
grama de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV) | Mestrado Profissional em Artes (ProfArtes),
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Endereço eletrônico: lauracastro@ufba.br.

[Recebido em: 10 mar. 2023 – Aceito em: 08 set. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 73-96, 2023 | 73


Laura Castro

“Peles de imagens tiradas de árvores mortas”

No livro A Queda do Céu, Davi Kopenawa lança uma crítica - que


perpassa todo extenso material - sobre a escrita alfabética e sua inscrição
no livro, sua relação com o severo esquecimento do “povo da mercadoria”.
Vocês, brancos, ficam debruçados, guiados por palavras “coladas em peles
de imagens tiradas de árvores mortas”, diz o xamã que a todo tempo nos
diz que a memória e as palavras de sabedoria de seu povo estão guardadas
no fundo de seu peito (KOPENAWA, ALBERT, 2015, p. 65). Não precisa des-
sas inscrições na pele morta.
Nesta publicação em parceria com o antropólogo francês Bruce Al-
bert, o xamã yanomami Davi Kopenawa, questiona, portanto, que os bran-
cos precisam dos desenhos de imagem inscritos em peles de papel, pala-
vras com as quais, por repetição e imitação, foi contada uma história que
viola o seu povo (Idem, p. 64). Em consonância, ouvimos na declaração da
pesquisadora, escritora e hoje deputada federal Célia Xakriabá, na 1ª Mar-
cha das Mulheres Indígenas, em Brasília, em 2019, quando pergunta onde
a caneta escreverá quando acabar todas as árvores e afirma: “nós, mulheres
indígenas, continuamos a aprender muito mais com a árvore viva do que
com o papel morto”2 .
As palavras desse xamã yanomami foram ofertadas e inscritas em
um livro em aliança com este pesquisador francês, fruto também de uma
amizade de quatro décadas. Palavras que, segundo Kopenawa, já se dividi-
ram e se espalharam, como uma flecha para tocar o coração dos brancos.
Um livro flecha para acordar os não indígenas, para que possam sonhar a
floresta. Fazer vigília por ela. Um livro fruto do sonho e das visões xamâni-
cas que ensinam e alertam sobre o futuro da floresta. A escola yanomami
é o sonho e o sonho é também ativado pela yãkoana, pelo pó desta árvore
mestra usada pelos xamãs em seus rituais; o sonho e as mirações são ativa-
dos, portanto, pela própria floresta.
Lançado em 2010 na França e em 2015 no Brasil, este livro tem
como propósito primeiro comunicar aos brancos que “se a floresta for com-

2. Célia Xakriabá, 2019, fala pública disponível em: https://bityli.com/ejZtQB.

74 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

pletamente devastada, nunca mais vai nascer outra” (Idem, ibidem). O livro
foi feito, por isso, dentre sua vasta vocação e ensinamentos, para dizer que
é preciso defender a floresta porque ela está sendo atacada sobretudo pelo
garimpo. E os xamãs seguem segurando o céu, que já caiu uma vez e está
cheio de buracos.
A própria existência e surgimento deste livro é fruto de décadas
de amizade, de trabalho etnográfico, de gravações, de conversas, de de-
senhos, de tradução, de transcrições. Como bem sugere Viveiros de Castro
(2015, p. 29) na apresentação - “O recado da mata” - estamos diante de um
trabalho de edição, cheio de desafios, perigos e paradoxos de “uma escrita
etnográfica pós-colonial”. O povo Yanomami, no entanto, de memória forte
e longa, não precisa de “peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa
mente”, pois as palavras dos antepassados estão gravadas e as palavras dos
xapiri - que na nossa língua poderíamos pensar como espíritos da floresta
- são antigas mas tornadas novas cada vez que eles descem e dançam para
os xamãs (KOPENAWA, ALBERT, 2015, p. 75).
Essa é uma das muitas pistas dadas por pensadores e artistas in-
dígenas para entender o livro como armadilha da colonialidade, como foi
a bíblia, primeiro livro a ser impresso por Gutenberg na tecnologia de ti-
pos móveis, gesto que redimensiona a relação com a escrita no Ocidente
(MCLUHAN, 1972). A bíblia é emblemática, neste sentido, se pensarmos no
primeiro contato da colonização europeia nas Américas e também seu ri-
tornelo missionário que continua a levar, até hoje, a doença, o genocídio e
a violência aos povos da floresta.
Ailton Krenak diz, em relação aos povos de tradição oral e sua tra-
vessia para o mundo da escrita, de como também, historicamente, a leitura
e a escrita chegam como instrumento da colonização dos jesuítas e talvez
a bíblia seja o primeiro livro impresso que funda essa relação de imposição
da cultura branca sobre os povos originários. Ou seja, a relação da catequi-
zação com o mundo da leitura e escrita: “enquanto os índios puderam resis-
tir, eles não aprenderam nem a ler, nem a escrever. Então seria interessante
a gente investigar se quando os índios estão lendo e escrevendo se eles já
se renderam ou se eles ainda estão resistindo” (KRENAK, 2016, s/p).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 73-96, 2023 | 75


Laura Castro

Nos últimos anos, o povo yanomami vem pedindo socorro de


maneira sistemática a partir de suas organizações e de parcerias como o
Instituto Socioambiental (ISA). A terra yanomami vem sendo invadida por
esses “comedores de terra”, como chama Kopenawa, responsáveis pelo
desmatamento da floresta e por espalhar a fumaça da doença, da “epi-
demia xawara” (KOPENAWA, ALBERT, 2015, p. 335). E isso se intensifica de
maneira radical no governo Bolsonaro, entre 2018 e 2022, com a chancela
do próprio Estado brasileiro. Filmes como “A última floresta”, de 2021, diri-
gido por Luiz Bolognesi, no qual Davi Kopenawa assina também o roteiro
e compõe o elenco, são táticas para ampliar o debate e publicizar a defesa
pela terra-floresta.
Em 2020, por exemplo, segundo dados do ISA, uma área equivalen-
te a 500 campos de futebol foi devastada, um aumento de 30% de desma-
tamento em relação ao ano anterior. Em plena pandemia, além de destruir
a floresta, contaminar os rios, principais fontes de subsistência do povo Ya-
nomami, os milhares de garimpeiros, fortemente organizados e armados,
espalharam doenças e terror na terra indígena. Ações como a videoarte “O
Sopro dos Xapiri – Xapiri pë në mari”, de 2020, realizada pelo Fórum de Li-
deranças Yanomami e Ye’kwana e Instituto Socioambiental, foi responsável
por uma mobilização nacional de “Fora Garimpo - “Fora Covid”, com 440
mil assinaturas de apoiadores nacionais e internacionais. No vídeo, o regis-
tro das palavras de Kopenawa, junto aos desenhos de Joseca Yanomami
que foram projetados com animação no Congresso Nacional em Brasília,
no filme conta também com os cantos de Ehuana Yaiara Yanomami, Levi
Malamahi Alaopeteri Yanomami, Tafarel Yanomami, captados por Marcos
Wesley de Oliveira na aldeia Watorikɨ e outros registros sonoros captados
por Gustavo Fioravante, em na TI Watorikɨ.

76 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

Imagem 1: Print da videoarte “O Sopro dos Xapiri – Xapiri pë në mari” , 2020

Fonte: Youtube do ISA https://www.youtube.com/watch?v=_b-Itr31QwY.

Essas palavras, maximizadas nesta casa constitucional do Estado


brasileiro que, naquele momento nada fazia para a expulsão do garimpo
em terras indígenas, redimensiona o pedido de socorro indígena com arte
e poesia. A “terra floresta” é uma entidade viva muito diferente da acepção
da terra como algo que pode ser explorado, vendido, comprado, invadido.
A terra-floresta - ipa urihi na língua yanomami - mais que o solo ou planeta,
mais do que paisagem ou mera fonte de recursos, é antes de tudo um ente
vivo, dotada de uma imagem-espírito, de um sopro vital e “animada por
uma complexa dinâmica de trocas e transformações entre seres humanos,
não humanos, visíveis e não-visíveis” (ALBERT, 2003, p. 46).
Em 2022, Joseca Yanomami faz sua primeira exposição individual
no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), com o título
“Nossa terra-floresta”, composta por 93 desenhos e a videoarte “O Sopro
dos Xapiri – Xapiri pë në mari”. Todos os desenhos são acompanhados de
títulos, falas e cantos na língua yanomami, sendo grande parte deles tradu-
zidos para o português na expografia da exposição, compondo uma espé-
cie de elo entre as narrativas das imagens e dos textos. Segundo o artista
Denilson Baniwa, no catálogo da exposição, a arte de Joseca atravessa as
cosmologias yanomami, mas também as cosmologias do contato com os

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 73-96, 2023 | 77


Laura Castro

brancos. A arte, então, sobretudo no domínio da imagem e da escrita são


uma espécie de contra-feitiço para domesticar o estrangeiro, como agente
de encantamento:

Quando Joseca transfere para o papel as consequências do contato e a ma-


neira como os Yanomami conseguiram domesticar o poder dos brancos, a
narrativa é subvertida, pois, mesmo que o branco tenha o poder de subju-
gar com seus bens as comunidades indígenas, quando domesticados, esses
bens podem ser essenciais na resistência à colonização e na manutenção da
cultura yanomami (...) Na coleção de desenhos que agora habitam o MASP,
que mostra a preocupação em domesticar o estrangeiro, Joseca bem poderia
ter traduzido em imagens suas perspectivas de contato. Porém, com asser-
tividade, compreendendo a falta de conhecimento dos brancos em relação
aos Yanomami, Joseca, como artista-pajé, disponibiliza outra tradução que,
conjuntamente à imagem, é essencial ao branco: a escrita. (...) Joseca não
entrega o poder totalmente aos brancos, ele deixa a barreira performática do
idioma agir sobre a relação artista-público (BANIWA, 2022, p. 44).

A arte, o papel e o desenho, o livro e a escrita, guardam seu lugar


algoz na nossa história colonial, sem dúvida. No entanto, diante dessas ima-
gens e palavras, podemos pensar nas escritas e livros de artistas, mestres e
pensadores indígenas como aliados na luta pelo território, na luta pela vida?
Este artigo pretende cotejar esta reflexão a partir de escritos e cantos de mes-
tres e mestras dos povos originários, além de escritos de artistas indígenas
contemporâneos, confluindo modos de pensar essas escritas com pensado-
res originários e afro-diaspóricos a fim de antever mundos e alfabetos diver-
sos, que apontam outras éticas e políticas para o livro e para a escrita.

“Fui eu mesmo que quis ir na capa daquele livro”

Jaider Esbell, artista macuxi, defende que “não há como falar em


arte indígena contemporânea sem falar dos indígenas, sem falar do direito
à terra e à vida” (ESBELL, 2018a, s/p). No texto “Makunaima, o meu avô em
mim!” remonta/fábula/rememora sobre quando seu avô Makunaima deci-
diu lançar-se na capa do livro. Ele sabia o que estava fazendo, nos diz Jaider.
Sendo ambos artistas da transformação, esta fabulação crítica que dá lugar
a um diálogo somente possível no sonho e no encantamento, é um gesto

78 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

de ampla escuta, como no livro de Kopenawa e Albert, como no trabalho


de Joseca Yanomami. Abaixo, uma citação de Makunaima, dentro do texto
de Esbell, em conversa com ele:

Meu filho eu me grudei na capa daquele livro. Dizem que fui raptado, que fui
lesado, roubado, injustiçado, que fui traído, enganado. Dizem que fui besta.
Não! Fui eu mesmo que quis ir na capa daquele livro. Fui eu que quis ir fazer
a nossa história. Vi ali todas as chances para nossa eternidade. Vi ali toda a
chance possível para que um dia vocês pudessem estar aqui junto com todos
(MAKUNAIMA Apud ESBELL, 2018b, p. 16).

Makuinaima aqui, para além de somente um livro, é um estado de


energia, que “se cria e recria a si mesmo como uma bananeira que não pre-
cisa de par” (ESBELL, 2018b, p. 14-15). Um artista da transformação que, li-
vre, pode se jogar na capa do livro de Mário de Andrade. Um século depois,
Jaider diz “estou aqui para resgatar meu avô, para levá-lo para casa para
cuidar dele” (Idem, ibidem).
Talvez mais conhecido por seu trabalho nas Artes Visuais, o artista
macuxi faz sua estreia no sistema das artes com a Literatura, com o lan-
çamento de Terreiro de Macunaima - mitos, lendas e estórias em vivências,
de 2012. Em diversos momentos da sua carreira, seu avô, como passa a
chamá-lo, figura em formulações teórico-crítico-poéticas, em suas obras e
escritos. Falecido em novembro de 2021, após ser um dos curadores da 34ª
Bienal de São Paulo daquele ano com a exposição Moquém-Surarí no MAM/
SP, nos deixou muitos textos sobre sua própria obra, sua trajetória de vida/
arte, sobre o movimento da arte indígena contemporânea, com o qual co-
-teoriza de maneira intensa.
Em 2019, Jaider publicou em seu blog uma série de textos sobre seu
avô. Um deles, “Passo a Passo Makunaima” explica as variações do nome de
seu avô: Makunaimî - Makunaíma - Makunaima, variações de línguas e de
travessias culturais por diversos livros e autores. Na capa do livro de Má-
rio de Andrade, Makunaíma é revelado “já híbrido”, no contexto da cidade,
“aportuguesado”. Aparece, portanto, como mito, folclore reforçado por tra-
balhos etnográficos europeus dos quais o modernista de 1922 era leitor
e por onde atravessaram sua pesquisa literária. Já Makunaimî, na língua
makuxi, diferente em grafia e em lugar, mora no topo do Monte Roraima

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 73-96, 2023 | 79


Laura Castro

e é ancestral de todos os povos que resistiram ao extermínio e vivem em


sua volta: povos Makuxi, Wapixana, Teurepang, Ingarikó, Patamona, Sapará
(ESBELL, 2019a, s/p). Já o terreiro de Makunaima (“Makunáima”, como nos
ensina a pronunciar) é vasto e é por onde planta, dança e performa sua
arte. Seguir lado a lado, passo a passo com seu avô “é um caminhar respei-
toso na memória viva e latente”, ele nos diz (Idem).
Neste movimento de eclodir o nome de Macunaima em três, a par-
tir das cosmo-escutas e cosmo-escritas de avô, Jaider Esbell afirma a im-
portância das línguas indígenas, no modo de grafar e também pronunciar
seu nome. Ele diz que são “três dimensões de teorias e realidades” (Idem).
Daiara Tukano, grande companheira do artista, em 2023 cura a exposição
Nhe’e Porã, no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, expondo uma
série de trabalhos, documentos, cantos e artes em dezenas de línguas in-
dígenas. Em um de seus textos curatoriais - “Língua, memória e transfor-
mação” - ela diz:

Nossas línguas são território, somos parte da caminhada de nossos avôs,


ocupando, demarcando e declarando, que esta terra tem muitos nomes. Esta
mátria de tantas matas tem muitas frutas. E as famílias de troncos indígenas
são árvores de tronco forte com raízes profundas que mesmo quando corta-
das são capazes de rebrotar (...) língua é memória, palavra tem poder, palavra
tem espírito. Com palavras desenhamos mundos, criamos alternativas para
reflorestar pensamentos (TUKANO, D., 2023, s/p).

Diferente de trabalhos como de Bruce Albert com o povo Yanomami,


a pulsação e a força das línguas indígenas foram também alijadas por traba-
lhos etnográficos e literários na tradução para o português, na tradução entre
mundos. Seguindo os caminhos violentos da colonialidade para com os an-
ciões, os territórios e suas línguas, o livro modernista de 1928, mesmo tendo
sido criado a partir das histórias contadas há mil anos em torno do Monte
Roraima, pelos pajés, pelos avós, como o pajé vovô Akuli passam também
pela mediação de antropólogos como o etnólogo alemão Theodor Koch-
-Grünberg, autor do livro a partir do qual Mário de Andrade compõe seu livro:

Estão lá vivendo desde que o mundo é mundo – os nativos, no pé do Monte


Roraima, o tronco da nossa grande árvore Wazak’à. Os brancos que chega-
ram nos navios chamaram os nativos de índios e isso tá aí até hoje. Para di-
ferenciar aos estrangeiros, nós nativos chamamos até hoje os estranhos de

80 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

brancos, sejam brancos ou pretos. Aqui por onde hoje é Roraima e região co-
meçavam a se ver as primeiras investidas dessas pessoas por nossas terras e,
antes do alemão, outros passaram também anotando coisas. Pesquisas vão e
vem e não se sabe ao certo quem anotou no papel pela primeira vez o nome
Makunaimî. O fato é que Akuli falou muito para o alemão e ele gostou muito
de ouvir e, como pode, anotou tudo (ESBELL, 2019b, s/p).

Um livro dentro de um livro, e de outro e outro. A voz de um livro


vivo, o pajé Akuli que dá os caminhos para o livro de um etnólogo, aquele
que escuta e que anota, posteriormente lido, traduzido e trans-criado em
um outro livro, na literatura de um dos escritores mais aclamados da Lite-
ratura Brasileira. Quase 100 anos depois, o livro de estreia de Jaider Esbell
retoma para si Makunaima e o lança novamente na capa. O terreiro de
Macunaíma foi um livro viabilizado pelo edital público da Bolsa de Cria-
ção Literária da Fundação Nacional das Artes (FUNARTE), em 2019. Jaider
conta como isso lhe deu dignidade para escrever o livro e conta como foi
uma experiência de autonomia e autoconfiança, uma vez que havia sido a
primeira investida em uma chamada pública no campo das Artes a partir
de Roraima (ESBELL, 2018c, p. 30).
Mais adiante, em um sebo em São Paulo, o artista faz uma per-
formance abordando o vendedor pedindo “quero os livros do meu avô”,
pois precisa deles para levar aos seus parentes de Roraima, precisa le-
vá-los consigo para a casa. Trafegando entre esses dois mundos, atua
como agente de transformação, assim como seu avó, que na capa deste
livro com esperteza e sagacidade se eterniza: Não, não fui enganado!
“Fui eu mesmo que quis ir na capa daquele livro” (MAKUNAIMA Apud
ESBELL, 2018b, p. 16). Jaider sabe muito bem, como aprendeu com seu
avô, as frestas e fissuras que pode provocar tanto na circulação deste
livro quanto na composição de outros livros, telas, escritos com os quais,
como Makunaima, “sabia de sua missão e foi”, “sabia da grandiosidade
do ato dessa representação de realidades ainda a vir a se extrapolar”
((ESBELL, 2018b, p. 17).
Ao longo da carreira de Jaider, Makunaima irá aparecer em muitas
telas, falas e temas de obras e reflexões do artista macuxi. A escrita tam-
bém irá acompanhar os trabalhos do artista menos no livro da forma como
concebemos e mais agregado ao seu trabalho visual. Destaque para a obra

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 73-96, 2023 | 81


Laura Castro

“Carta ao Velho Mundo” quando o artista se apropria de um livro de História


da Arte Ocidental, desenhando e escrevendo nas suas 400 páginas. Esta
obra produzida entre 2018 e 2019 foi exposta na França e também na 34ª
Bienal de São Paulo, em 2021. Na carta, redesenhando imagens, o artista
endereça sua escrita aos europeus, denunciando o gesto sanguinário da
colonização e do genocídio dos povos nativos das Américas. Na sobre-ins-
crição que performa neste livro, o ciclo de violência perfaz tanto os corpos
indígenas quanto as imagens da Arte Ocidental e também os apagamen-
tos forjados nos livros de história. Jaider inscreve, com este gesto, também
a Arte Indígena Contemporânea como modo de resistência pela escrita e
pelo objeto livro, desfeito, interferido e mutilado.
Imagem 2: Uma das páginas da “Carta ao Velho Mundo” (2018/2019)

Fonte: Site do artista www.jaideresbell.com.br.

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AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

“Ouço a voz da vó, a vó da voz”

As anciões e os anciãos de um povo são também suas bibliotecas


vivas. Pajé Agostinho Manduca, o Ika Muru nos lembra que antes do livro
de papel, há aquele livro que está vivo, na voz: “a história dos brancos tem
os livros desde o princípio da criação, dos planetas e da vida. A nossa, te-
mos só nas histórias que contamos. Não tem essa publicação ainda. (IKA
MURU, 2017, p. 7)”. Para pajé Agostinho, o livro está vivo na natureza assim
como na voz dos pajés, dos mais velhos e também na Samaúma, árvore tida
pelo povo Huni Kuin como biblioteca viva.
“Ouço a voz da vó, a vó da voz, / de outro tempo e bordo o mapa da
nossa fronteira wapichana”, escreve Gustavo Caboco em “Recado ao paren-
te: fortificar nossos elos”, trabalho que compôs o IMS CONVIDA, do Instituto
Moreira Salles, durante a pandemia em 2020 (CABOCO, 2020, s/p). Gustavo,
como Jaider Esbell, co-elabora em co-autoria trabalhos em regime de en-
cantamento, como o trabalho que desenvolve com a pedra do bendegó,
co-diretora com ele do trabalho videográfico que apresenta na 34ª Bienal
de São Paulo de 2021.
Trabalhos que exigem escutas, alianças e escritas cosmopoéticas
que, por sua vez, expõe um trajeto criativo permeado de relações multi-
dimensionais. Assim como é possível ouvir Makunaima remontar seu pulo
consciente e estratégico à capa do livro, Gustavo ouve seus mais velhos
recompondo fronteiras vivas e aproximações efetivas no bordado, quando
escuta objetos, faz livros, instalações, desenhos, cura exposições.
O fio é uma das materialidades mais recorrentes no trabalho deste
artista wapichana. A história de cada fio, desde a memória do algodão até
o fio das vozes dessas avós. O fio que desenha fronteiras e borda palavras e
imagens, põe em movimentos os fios que ligam aos parentes, ancestrais e
vovós. Esses fios estão muito presentes em seu trabalho instalativo e tam-
bém visual. Fios tecidos muitas vezes com parentes como sua mãe, Lucile-
ne Wapichana, Roseane Waphichana, Camila Kamé Kanhgág, Dival Xetá, Ri-
cardo Werá, Juliana Kerexu, entre outros. Há muitos trabalhos que Gustavo
assina com os parentes, em autoria coletiva. Sobre o fio, um dos trabalhos
em co-autoria com sua mãe diz:

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 73-96, 2023 | 83


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Imagem 3: Pororoca Waphichana, 2020

Fonte: Catálogo da Exposição Véxoa (2020)

“O fio tem memória


da pororoca wapixana
fiado por vovó.
Os deslocamentos Roraima-Paraná
Conectam povos
Artes-Artesanatos
Mãos-Mães.
Somos vivos
e estamos entre mundos
nas lutas das autonomias
da novas VÓZES”

O fio também desata um outro ponto importante da obra desse


artista, que são as fronteiras. Gustavo incorpora em sua pesquisa artística
o caminho de “retorno à terra” quando retoma a história de sua mãe. Ape-

84 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

nas aos 12 anos se deu seu primeiro contato com a Canauanim, aldeia de
sua mãe, raptada por uma missionária na infância e radicada longe de seus
parentes. Gustavo nasce deste desterro, no Paraná, e com sua obra esses
fios conectam Roraima e Paraná, lendo as palavras das “Mãos-Mães” de sua
história, afrontando o esquecimento e o apagamento operados pelo que
chama de “coma colonial”.
As instalações de Gustavo Caboco incorporam muitas escritas. Por
vezes, o artista traz ao museu ou à galeria uma espécie de parede escrita à
mão, compilando objetos e bandeiras bordadas, como se fosse inscreven-
do mapas de sua pesquisa poética, registro de encontros com os parentes
e de experimentos com a palavra, o vídeo, a imagem. Seus escritos são,
muitas vezes, expandidos co-criando com os espaços gráficos da página,
do ambiente, do tecido.
Seus livros são todos curados a partir da Picada Livros, seu selo
editorial, pelo qual lançou “Baaraz Ka’aupan” (2020) e “A pedra do Bende-
gó” (2021). O segundo livro, em colaboração com o Parquinho Gráfico3 e o
primeiro por seu acabamento artesanal da versão em serigrafia e em en-
cadernação de tecido com a Caderno Listrado, editora de livros de artista
de Curitiba, demonstram uma diálogo muito profícuo de sua obra com o
campo das Artes Gráficas e da Poesia Visual, assim como o corpo também é
fundamental para sua poética. Sobretudo este corpo em trânsito.
Tanto Jaider Esbell quanto Gustavo Caboco em seus escritos de ar-
tista, parentes de territórios vizinhos, fronteiriços no Monte Roraima cos-
turam, de diversas formas, modos diferentes de ouvir, honrar, cuidar e dar
lugar a essas vozes avós. Em 2020, por exemplo, juntam-se à Vovó Bernal-
dina, “filha fervorosa de Makunaimî” (ESBELL, 2019c, p. 7), na exposição “O
Renascimento de Makunaima na Arte Indígena Contemporânea”, no Museu
Paranaense e outras ativações em exposições por todo o país.
Vovó Beraldina, falecida em 2020 vítima da COVID-19, publicou em
2019 seu “Cantos e Encantos: Meriná Eremu”, reunindo seus cânticos na lín-
gua macuxi e na língua portuguesa, em uma publicação de pesquisa e edi-

3. O Parquinho Gráfico é um espaço de trabalho na Casa do Povo voltado para a experimentação


gráfica. Mantido por artistas, coletivos e designers, o Parquinho aproxima práticas de edição,
design, impressão e acabamento que buscam gerar autonomia e autossuficiência para projetos
e parcerias. Mais informações em: https://casadopovo.org.br/parquinho-grafico.

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Laura Castro

ção muito cuidadosas. Segundo o editor, Devair A. Fiorotti, a página com os


cantos foi trabalhada “buscando novos efeitos poéticos, dialogando com o
mundo de movimento da dança, da música” (FIOROTTI, 2019, p. 11). Ilustra-
do por Jaider, é ele quem apresenta Vovó Bernaldina no livro como alguém
que canta “para além do mundo que canta”, com “o amor na voz”, “canta no
mundo da luz para onde nos transporta” (ESBELL, 2019c, p. 7).
No livro os cantos também se colocam na rede complexa de autoria
e de tradução, essa feita por um coletivo afetivo em torno de Meriná, como
seu filho e parentes de diversas comunidades indígenas de Roraima, debru-
çado em seus seis diferentes tipos de canto, prenhe de força e significado
em uma sociedade complexa em que algumas traduções não são possíveis:

Os cantos presentes aqui não são de autoria de Meriná, mas são aqueles que
aprendeu durante a vida, sendo a força interpretativa e política na região das
serras. Pertencem a uma produção coletiva ou cantos que se tornaram de
uso coletivo dos povos circum-Roraima da já referida tríplice fronteira (Bra-
sil-Venezuela-Guiana). São cantados principalmente em língua macuxi, mas
também é possível ouvi-los em outras línguas e/ou em outros povos, como
o taurepang. Eles pertencem a esta memória coletiva (FIOROTTI, 2019, p. 9).

Os cantos que atravessam o tempo e são emanados pela força de


Vovó Beraldina nos apresentam uma consciência da força encantatória da
palavra cantadas, por exemplo, como os “Tukui”, cantos relacionados aos
pajés e às intervenções à natureza, em que muitas comunicações inter-es-
pécies são possíveis:

“uyeekînî ta’pî wîriisi ya


uyeekînî ta’pî wîriisi ya

meu passarinho falou a cunhatã

“waro’ma eremu

akanwaya uyanunkî waraapisaimî


akanwaya uyanunkî waraapisaimî
deixa eu ir na sua canoa gafanhoto?

( PEDRO, 2019, p. 28/60)”

86 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

Assim como cantos tramados em dias de festas, em dias de luta


para a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em momentos
de contato com os brancos e seu cristianismo. Palavras que sabem de sua
força, que vem de longe como “ palavras dos ossos dos ossos do irmão mais
velho”; uma voz que sabe o poder das palavras e recomenda “conte coisas
boas, fale palavras boas, fale areruia” (Idem, p. 83).
O fio das muitas mãos e mães de mulheres indígenas, de muitas vo-
zes avó, que teceram e tecem tantos caminhos de escritas não alfabéticas
com fios de diferentes materialidades da natureza, o algodão, o tucum e
tantas outras fibras naturais. Tantos as tecelagens, que, fio por fio, contam
narrativas, segredos de mil mundos de Abya Yala. Mil escritas também atra-
vessam os cosmo-grafismos presentes na arte de miçanga, fios e tramas
presentes nas culturas estéticas de povos originários das Américas, como
os povos Kayapó, Krahô, Karajá, Yanomami, Kalapalo, Tukano e tantos ou-
tros, assim como povos originários da África Ocidental, da Índia, da Sibéria
(LAGROU, 2016).
Os grafismos presentes nas pinturas corporais, cestarias, nas artes
de miçanga e arte têxtil podem ser entendidos também como escritas
dos povos indígenas. Como salienta a antropóloga Els Lagrou, estudiosa
especialmente do povo Huni Kuin, os desenhos gráficos presentes tanto
nos artefatos quanto nas pinturas corporais são não somente figurativos,
mas também representam as relações entre as diversas formas visíveis e
invisíveis inscritas na cosmovisão do povo Huni Kuin. Os grafismos não
são somente símbolos, mas a maioria dos desenhos marca a concepção
de escrita ao invocar figuras e coisas, mas também caminhos e percepções
para conceber realidades (LAGROU, 2009). Os grafismos estão ainda
localizados em um campo cósmico de relação e criação, acessados também
através do pensamento mágico e das plantas mestras.

Escreva na areia, meu caboquinho, o nome da aldeia

As avós, vozes abrigadas na voz de tantos artistas, escritores e mes-


tres indígenas. A voz como fio que borda mapas, fronteiras, territórios em
textualidades diversas. As avós que são tantas como a avó da mata. Outra

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vovó, Dona Zabelê, uma anciã importante para o Povo Pataxó, que sobrevi-
veu o Fogo de 1951, foi uma educadora viva:

A educação que tive primeiramente foi a educação cultural por Luciana Maria
Ferreira (Zabelê) ajudada pela sua filha. Esse conhecimento ocorreu em rodas
de causos contados por ela perante os sobrinhos e netos, principalmente. As
aulas eram de dia, o aprendizado incluía escrita de nomes e contagem dos
números. Posicionada no centro da roda, Zabelê entoando a chula a seguir,
dançava com um graveto na mão encenando estar escrevendo no chão. Mas,
ao invés de letras, traçava linhas e rabiscos aleatórios no chão. Pois, Zabelê
não sabia ler nem escrever: “Caboco de Pena, escreva na areia. Caboco de
Pena escreva na areia! Escreva meu Caboquinho o nome da aldeia. Escreva
meu Caboquinho o nome da aldeia”. Tinha vez que as letras do alfabeto e os
numerais desenhados no chão de areia se misturavam às delícias da gastro-
nomia Pataxó que minha avó Martinha (Dona Buru) chegava para a gente de-
gustar. (...) Peixe na patioba, beiju, farinha de coco e tapioca . . . A comida era a
recompensa para quem dançasse e escrevesse o nome correto na areia. Catar
sementes na mata, conchas na beira da praia, fazer colar, cortinas, abajour,
se transformava em oportunidades para a gente aprender a contar, escrever
os números, resolver operações mais simples. (...) Assim, entre 11 e 12 anos
(1986 – 1987) quando fui para a escola, já conhecia as letras do alfabeto, sabia
escrever meu nome, contar e escrever os números. Portanto, se o povo Pata-
xó se mantêm até hoje, tem sido graças aos mestres e às mestras da cultura
como Zabelê, minha avó Buru e outras pessoas anônimas espalhadas por aí,
dentro e fora das nossas aldeias” (OLIVEIRA, 2008).

Esse modo de performar a escrita que Cristiane Oliveira descreve,


neste texto valioso, do graveto grafando na areia é antes de mais nada um
gesto de se inscrever neste território, antes do alfabeto, antes da palavra es-
crita. Um gesto qual uma demarcação, em que se convoca, através do canto
de Dona Zabelê, o nome da aldeia, o caboquinho, o guerreirinho. Aprender
a escrever como demarcar mas como nutrir-se desse território mãe. Escre-
ver como quem desenha na areia um signo gráfico, escrever como quem
como degusta a delícia mais gostosa de sua avó como quem cata sementes
na mata e conchas na beira da praia.
Esta cena, contada pela professora e pesquisadora Pataxó, chama
dois outros textos importantes nesta reflexão, para um trançado de refe-
rências e confluências importantes para pensar o livro, a escrita, o ensino
formal e as comunidades tradicionais. O primeiro texto é do intelectual qui-
lombola Nêgo Bispo, chamado “Somos Terra”e publicado na revista PISEA-
GRAMA. Sobre a escola, a escrita e a sociedade branca colonialista, ele diz:

88 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

Minhas mais velhas e meus mais velhos me formaram pela oralidade, mas
eles mesmos me colocaram na escola para aprender, pela linguagem escrita,
a traduzir os contratos que fomos forçados a assumir. Fui para a escola da lin-
guagem escrita aos nove anos, mas, desde que comecei a falar, fui formado
também por mestras e mestres de ofício nas atividades da nossa comunida-
de. Quando fui para a escola no final da década de 1960, os contratos orais
estavam sendo quebrados na nossa comunidade para serem substituídos
por contratos escritos impostos pela sociedade branca colonialista. Estudei
até a oitava série, quando a comunidade avaliou que eu já poderia ser um
tradutor (SANTOS, 2018, s/p).

Esses vetores de forças entre a escola e o ensino formal, a lin-


guagem escrita e os contratos firmados a partir do lugar, da comuni-
dade e do território fazem lembrar dessas experiências de ensino con-
duzida pelas mestras pataxó, no relato de Cristiane. Mas fazem pensar
também neste lugar de mediação frente a esses contratos escritos im-
postos pela sociedade branca colonialista, como nos diz Nêgo Bispo.
Que escritas, que traduções e que livros interessam às comunidades
indígenas e quilombolas?
Confluindo, com nos ensina mestre Bispo (2018), Conceição Eva-
risto nos apresenta esta cena da escrita em que o corpo vivo, em movi-
mento, articulando os campos da escrita e da mágica, a partir da grafia-
-desenho de sua mãe e o nascimento de sua escrita:

Talvez o primeiro sinal gráfico, que me foi apresentado como escrita, tenha
vindo de um gesto antigo de minha mãe. Ancestral, quem sabe? Pois de
quem ela teria herdado aquele ensinamento, a não ser dos seus, os mais anti-
gos ainda? Ainda me lembro, o lápis era um graveto, quase sempre em forma
de uma forquilha, e o papel era a terra lamacenta, rente as suas pernas aber-
tas. Mãe se abaixava, mas antes cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia,
para prendê-la entre as coxas e o ventre. E de cócoras, com parte do corpo
quase alisando a umidade do chão, ela desenhava um grande sol, cheio de
infinitas pernas. Era um gesto solene, que acontecia sempre acompanhado
pelo olhar e pela postura cúmplice das filhas, eu e minhas irmãs, todas nós
ainda meninas. Era um ritual de uma escrita composta de múltiplos gestos,
em que todo corpo dela se movimentava e não só os dedos. E os nossos cor-
pos também, que se deslocavam no espaço acompanhando os passos de
mãe em direção à página-chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de
movimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol (EVARISTO, 2005, s/p).

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Laura Castro

Esse chamado do Sol nos diz sobre um gesto de encantamento da


escrita que pudesse materialmente repercutir da página-chão, do círculo-
-chão no tempo do vento que pudesse secar as roupas e render o sustento
e a sustância desta família negra em Minas Gerais que vivia de lavar a roupa
de famílias brancas. Conceição pergunta: “É preciso comprometer a vida
com a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida?”.
No livro Tecendo histórias do meu lugar, a escritora Ane Kethleen
Pataxó assume este dever de memória frente às histórias, narrativas, can-
tigas e saberes vivos de sua bisavó Zabelê e seu avô, o Cacique Zé Fragoso.
Entre cartas e biografias, cantigas e histórias, Ane retoma o nome “mulher
rendeira” dado por Zabelê e compreende, no seu gesto de escrita a missão
anunciada no nome dado pela bisavó:

Essa mulher que tece fios, formando desenhos, sou eu agora. Estou tecendo
a minha história a cada escolha que faço. A mulher rendeira também precisa
de paciência para continuar a tecer, também precisa de coragem para fazer
novos e diferentes desenhos, eu me vejo nesta mulher, desde o dia que deci-
di vir estudar, e ter coragem para enfrentar esse novo mundo tão preconcei-
tuoso e difícil de viver (PATAXÓ, A, 2022, p. 21).

Este livro, apresentado em co-autoria com a Aldeia Tibá, comunida-


de de Zabelê e Ane, se afirma sobretudo como um território. Como quem
escreve o nome da aldeia na areia, a autora realiza o sonho de sua avó de
ir para a universidade onde, a partir do projeto de extensão LIVRO-LUGAR
(IHAC/UFBA), publica este compilado de memórias. O livro como um “cor-
po-território” que se desterra do terreno baldio dos estereótipos e do ra-
cismo estrutural, refundando-se em narrativas ancestrais, reflorestando a
página com vozes anciãs, com vozes sementes de jovens como Ane Pataxó
(XAKRIABÁ, 2020).

90 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

“o que sempre esteve aqui e não é visto”

Imagem 4: Print a vídeperformance “Manaus, uma cidade na aldeia”

Fonte: IMS CONVIDA .https://www.youtube.com/watch?v=GxHTnxu4Oi0.

A performer Uýra Sodoma incorpora um ser que deambula pela


cidade de Manaus, na vídeo-performance “Manaus, uma cidade na aldeia”.
Seu corpo aparece desenhado com escamas ao modo de grafismos e uma
espécie de máscara de sementes cobrindo todo o rosto. Ela caminha pela
cidade de Manaus, sua arquitetura neoclássica e os casarões que guardam
e expõem as urnas de seus ancestrais originários. Uma de suas ações pela
cidade é ler um livro todo de folhas, livro que contrasta com a cidade, já es-
quecida de que foi floresta. Um corpo-em-performance que é estranhado tal
qual se estranha a “vovó mata”, com diz a narração que acompanha a cena.
“Mas tu é índio de verdade?”, a voz off de Uýra Sodoma reproduz a pergunta
e ostenta este livro da mata em contraposição àquele, de páginas brancas,
que ensina que ela e seus ancestrais originários ficaram no século XVI, que
estão extintos: “o que sempre esteve aqui e não é visto” (SODOMA, 2020, s/p).
O texto que acompanha a performance sinaliza a permanência dos
brotos dessa cidade que já foi floresta. Emerson Munduruku, artista que
encarna UÝRA, que se denomina como “árvore que anda”, artista trans in-
dígena, bióloga e educadora, expõe em seus trabalhos que é indígena em

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 73-96, 2023 | 91


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processo de retomada. É nesta zona que sua performance também transita


entre a cidade que encobriu a floresta e as águas do rio que voltam a encher.
Não importa se comemos macarrão ou usamos wi-fi, ela diz: “o que brota
de território indígena, é broto indígena” (Idem). O gesto de retomada apa-
rece na videografia também como a leitura do livro composto por folhas
de árvores. Se Manaus nasceu de costas para o rio, para a vovó, para o que
é de verdade, a cheia do rio traz consigo a possibilidade de lembrança e
de liberdade. Uýra fecha o vídeo dizendo: “Eu vou aprendendo a viver neste
encontro de mundos. Pra onde a gente for, a gente vai ser indígena” (Idem).
Esse livro de folhas, “aparição” junto com Uýra Sodoma nesta ví-
deo-performance, fecha esta constelação de livros e escritas indígenas
que este artigo reúne, apontando para a floresta como uma escrita que a
construção da cidade de Manaus, soterrou. Como na lição de Leda Maria
Martins (2003, p. 64), o domínio da escrita está muitas vezes “centrada no
alçamento da visão, impressa no campo ótico pela percepção da letra”, ou
seja, tudo que escapa à apreensão do olhar e da letra é ex-ótico, está fora
do campo de percepção, não é escrita, portanto. O livro de folhas nesta
produção indígena é mais vasto do que a letra morta; a folha escreve uma
realidade gráfica viva e de outras dimensões de significado. Onde se grafa
vocalidades, corpos, textualidades, ações cinéticas multiespécies, multi-
dimensionais, multinaturais.
Não significa dizer que quando estamos pensando nessas muitas
escritas dos mil povos originários habitantes desta terra hoje chamada de
Brasil não caibam as literaturas gravadas nos livros, tais quais eles são con-
cebidos na cultura impressa do Ocidente, em como concebemos os livros
e mais ainda como guardamos as histórias pela escrita. O alerta de Kope-
nawa é justamente a dependência que temos dessas peles de papel que
ditam, que derrubam árvores, e regulamentam a destruição da floresta, a
separação homem (sic) e natureza. Davi nos convoca a pensar uma ética
das palavras, enquanto Jaider nos convoca a re-ver como um ato político a
cena de quando Makunaima se jogou na capa de um livro. São muitas pos-
sibilidades, porém defendendo sempre a memória, nunca o esquecimento,
confrontando o mundo único como dado, reavivando as muitas sabedo-
rias, éticas, estéticas dos mundos indígenas.

92 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AS COSMOPOÉTICAS DE LIVROS E ESCRITAS INDÍGENAS

Seria tolo no movimento de olhar para essas escritas indígenas aqui


reunidas pela perspectiva da monocultura do olhar atrelar essas narrati-
vas apenas a uma noção única de escritas da natureza. Não. Reconhece-se
aqui toda a grandeza da produção literária de tantos autores fundamentais
como Eliane Potiguara, Graça Graúna, Kaká Werá, Daniel Munduruku, Olí-
vio Jekupé, Marcia Kambeba, Truduá Dorrico, entre muitas e muitos outros
autores e seus livros. O livro pode ser, sim, um aliado. E este livro pode tam-
bém ter uma acepção mais vasta que aquele escrito pelas tecnologias da
imprensa. Os artistas indígenas contemporâneos têm produzido escritas
em diversas materialidades, atravessadas por distintas éticas, por muitos
fios e matrizes, como na obra de Gustavo Caboco.
Isso nos permite esgarçar a experiência do livro transbordando-a
do papel, com uma noção de escrita também expandida às águas, às plan-
tas, às medicinas, às pedras, aos fios, aos grafismos indígenas, ao território,
a partir de perspectivas ameríndias. Escritas da natureza que se liberam da
palavra e criam livremente outras textualidades, nas suas multiplicidades
de corpos e naturezas. Escritas ainda invisíveis para muitos na Era do Antro-
poceno, habitantes de cidades que soterraram suas florestas.
Desse modo, penso ser importante também pensarmos como as
cosmopoéticas de livros e escritos indígenas podem ser vastas. A literatu-
ra nos mundos indígenas pode ultrapassar a escrita alfabética e performar
outras grafias em espaços diversos, na arquitetura, no tecido, na folha das
árvores. O passeio por essas tantas experiências de escritas de mestres,
avós, avôs e artistas indígenas nos ensinam a importância da ancestralida-
de, do encantamento, dos territórios, das línguas e da luta pela natureza e
por conseguinte pelas vidas e terras indígenas.
No tempo de escrita deste texto, em abril de 2023, o presidente Lula
assinou a demarcação de seis terras indígenas em diferentes regiões do
país, depois de 6 anos sem demarcações, fruto da intensa mobilização dos
povos indígenas do Brasil: TI Kariri-Xocó, em Alagoas, TI Rio dos Índios, no
Rio Grande do Sul, TI Tremembé da Barra do Mundaú, no Ceará, TI Uneiuxi,
no Amazonas e TI Avá-Canoeiro, em Goiás. Com uma caneta que trazia uma
pena de um pássaro e um trançado com um grafismo indígena, o presi-
dente do Brasil assina uma demarcação absolutamente necessária para a

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 73-96, 2023 | 93


Laura Castro

vida das escritas da natureza, das línguas, dos cantos e das narrativas dos
povos indígenas deste país, das milhares de cosmo-poéticas que nossos
povos produzem, ensinam e encantam. Uma escrita, um documento, uma
assinatura, portanto, que assegura, protege e garante a sobrevivência de
tantas outras escritas.
Imagem 5: Lula assinando demarcação no Assentamento Terra Livre (2023), ao lado da ministra
dos Povos Indígenas Sônia Guajajara

Fonte: Mídia Indígena Oficial | Fotografia de Mrê Krijõhere.

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94 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


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96 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p97

INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE INDÍGENAS SURDOS:


UMA OUTRA PERSPECTIVA

Diones Clei Teodoro Lopes1


Maria Christine Berdusco Menezes2
Rita de Cássia Silva Sanglard3

Resumo: Este artigo discute a inclusão de indígenas surdos nas escolas de


educação básica e o ensino bilíngue. Objetiva levantar e dar visibilidade às
práticas desenvolvidas em algumas regiões do Brasil referente à inclusão de
alunos indígenas surdos na educação formal, especificamente os anos iniciais
e finais do ensino fundamental. O método utilizado foi o dialético, que implica
revisão e reflexão crítica. Os dados foram analisados a partir das referências
libras, indígena surdo e bilinguismo, suplantadas no método Histórico Cultu-
ral de Vigotski (2007). Os resultados demonstram sinais compartilhados pelos
surdos nas aldeias, por eles criados e que fazem parte da sua própria língua.
Conclui-se que é necessário identificar os elementos culturais que constituem
sua identidade, bem como os contextos em que emergem os sinais linguísti-
cos surdos próprios à cultura, como se legitimam e entrelaçam com a Língua
de Sinais Brasileira.
Palavras-chave: Libras. Indígena. Bilinguismo. Cultura surda.

INTERCULTURALITY AND CULTURAL IDENTITY OF DEAF INDIGENOUS


PEOPLE: ANOTHER PERSPECTIVE

Abstract: This article discusses the inclusion of deaf indigenous people in ba-
sic education schools and bilingual education. It aims to raise and give visibili-
ty to the practices developed in some regions of Brazil regarding the inclusion
of deaf indigenous students in formal education, specifically the initial and

1. Mestrando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Esta-


dual de Maringá-PR (UEM). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1629-6216. Endereço eletrônico:
dctladv@gmail.com; dionesclei@unir.br.
2. Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em
Agroecologia. Doutorado em Educação (UEM). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3097-5242.
Endereço eletrônico: mcbmenezes@uem.br.
3. Mestranda em educação no Programa de Pós-Graduação em educação da Universidade Esta-
dual de Maringá-PR (UEM). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8744-5333. Endereço eletrônico:
rsilvasanglard@yahoo.com.br.

[Recebido em: 03 jul. 2023 – Aceito em: 15 ago. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 97-113, 2023 | 97


Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes
e Rita de Cássia Silva Sanglard

final years of elementary school. The method used was dialectic, which invol-
ves review and critical reflection. The data were analyzed from the references
Libras, Deaf Indigenous and bilingualism, superseded in Vigotski’s Historical
Cultural method (2007). The results demonstrate signs shared by deaf people
in the villages, created by them and which are part of their own language. It is
concluded that it is necessary to identify the cultural elements that constitute
its identity, as well as the contexts in which the deaf linguistic signs specific
to the culture emerge, how they legitimize and intertwine with the Brazilian
Sign Language.
Keywords: Libras. Indigenous. Bilingualism. Deaf culture.

Introdução

A inclusão de alunos indígenas surdos na sala de aula comum com-


provam os desafios enfrentados no processo de inclusão, pois, além da de-
ficiência, abrangem línguas diferentes. O processo de ensino bilíngue (Li-
bras L1 – Língua Portuguesa L2), natural na educação inclusiva de surdos,
transforma-se em ensino trilíngue (Libras, Língua Indígena e Língua Portu-
guesa). Além disso, soma-se nessa diversidade, a necessidade de conquista,
de resgate da autoestima, de conscientização de que todo ser humano é
capaz de aprender e de se desenvolver intelectualmente por meio da es-
timulação dos sentidos remanescentes e emprego de outros códigos que
não aqueles convencionais e convencionados no meio dito “normal”. Isso
torna o processo ensino aprendizagem, particularmente na Educação Es-
colar Indígena, desafiador. Com o intuito de dar visibilidade às práticas de
inclusão de indígenas surdos na escola de educação básica, realizamos um
estudo das experiências desenvolvidas em algumas regiões do nosso país,
publicadas em revistas especializadas, dissertações de mestrado e teses de
doutorado defendidas no período de 2008 a 2021.
Trabalhando na educação de surdos e atuando como Intérprete de
Libras nas escolas públicas, percebemos a dificuldade que os alunos surdos
têm de maneira efetiva em aprender e conviver no ambiente escolar regular,
pela realidade de serem usuários de uma língua diferente da língua usada
pela maioria e, também, devido às metodologias educacionais que não são
adaptadas e trabalhadas corretamente para atender às suas particularidades.

98 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE
INDÍGENAS SURDOS: UMA OUTRA PERSPECTIVA

Sabemos que a Educação para Surdos ao longo dos tempos vem


obtendo visibilidade no cenário Educacional do Brasil e do mundo. Os sur-
dos se sentem mais felizes e menos oprimidos. Podem estudar e acessar o
mercado de trabalho com mais seguridade. Por que a Lei nº 10.436 de 24
de abril de 2002 (BRASIL,2002) reconhece a língua de sinais como língua de
comunicação e expressão da comunidade surda e dá outras providências
para que seja acolhida e difundida. Após isso foi necessário criar o Decre-
to 5.626/05 que regulamentou o uso e difusão de Libras, tratando entre
outros temas, da obrigatoriedade de que a Língua Brasileira de Sinais seja
respeitada como primeira língua dos surdos e disponibilizada nas escolas.
Por conseguinte, o aluno surdo tem o direito de ser atendido pelo
sistema regular de ensino num ambiente favorável, no qual possa desen-
volver suas habilidades. Entretanto muito ainda precisa ser feito. É preciso,
por exemplo, entender que o surdo não é um sujeito limitado. Apenas teve
oportunidades limitadas. Esta população ainda nos tempos atuais sofre
discriminação por ser indígena e ter no caso a limitação da (surdez), sendo
uma realidade que tem como principal característica a invisibilidade.
A mudança na LDB, a partir da Lei 14.191/2021, inseriu o ensi-
no bilíngue para as pessoas surdas nas escolas, a fim de torná-lo uma mo-
dalidade independente, estabelecendo a Libras como primeira língua (L1)
e o português escrito como segunda Língua (L2), propicia a criação de am-
bientes linguísticos para as crianças surdas, no tempo de desenvolvimento
linguístico esperado e correlato ao das crianças ouvintes.
Sobre este desenvolvimento discutiremos a educação de Surdos
fundamentada na perspectiva de Lev Vigotski (2011) como alicerce teórico.
Esta escolha deve-se ao fato desse autor destacar em sua obra o papel da
linguagem e do processo histórico social no desenvolvimento do indiví-
duo. Sua questão central é a aquisição de conhecimentos pela interação do
sujeito com o meio.

Indígenas Surdos, Identidade Cultural e Interculturalidade

Cultura e identidades surdas, são termos frequentemente usados


para reafirmar a defesa da língua de sinais como língua natural dos surdos.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 97-113, 2023 | 99


Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes
e Rita de Cássia Silva Sanglard

Podemos caracterizar a cultura surda como a própria identidade do surdo


representada por meio de uma língua visual, a língua de sinais, em que as
percepções do mundo são marcadas pelas experiências visuais, segundo a
Dr.ª Janice Gonçalves Temoteo Marques (Unicamp, 2020). Um exemplo real
dessa cultura é a identificação que os surdos fazem das pessoas, através de
sinais específicos, como um batismo através de sinais.
Com respeito a Identidade Surda entendemos como o reconheci-
mento do indivíduo como pertencente à comunidade que ouve com as
mãos, usam a língua de sinais, apresentam características culturais e como
vivem nesse mundo, de supremacia ouvinte, como compreendem a surdez
e a si próprias, impactando posturas e comportamentos.
A alfabetização dos povos originários se deu na época do Brasil
Colônia, no século XVI, quando os jesuítas chegaram ao país, atendendo
ordens da coroa portuguesa e, principalmente, os interesses da Igreja Cató-
lica. Além da evangelização havia, também, o objetivo de iniciar o processo
de leitura e escrita para a instrução do Indígena e dos filhos dos colonos.
Contudo, o que queriam era a escolarização dos filhos dos colonos que fu-
turamente iriam continuar os estudos na Europa, enquanto que os indíge-
nas eram apenas catequizados para servirem posteriormente como mão-
-de-obra escrava, para auxiliar nas diversas tarefas que fossem necessárias.
Além da sua importante contribuição em nível de estudos e princí-
pios do desenvolvimento, da aprendizagem e sua visão de sujeito sócio his-
tórico pautado no materialismo dialético, é importante ressaltar que, para
Vigotski (2007), as formas culturais de comportamento podem ser apresen-
tar como um caminho exitoso para a educação da pessoa com deficiência.
Isso porquê, além da língua de sinais oficializada pela Lei 10.436, de
24 de abril de 2002, o Brasil possui também outras línguas de sinais que são
raramente registradas, como as línguas de sinais indígenas, como a língua
de sinais Kaapor, praticadas pelos indígenas da família Tupi-guarani. A sua
peculiaridade é uma linguagem padrão de sinais, distintas das línguas de
sinais conhecidas. Há também surdos existentes em diversas comunidades
indígenas do país, onde cada uma delas traz consigo características cultu-
rais e linguísticas variadas, o que faz com que haja o interesse em registrá-
-las, com suas especificidades culturais, étnicas e regionais.

100 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE
INDÍGENAS SURDOS: UMA OUTRA PERSPECTIVA

A escola indígena deve contar com um currículo adequado. Brito


(2004, p. 113) aponta que:

Deve estar voltado para a discussão da situação indígena, de acordo com a


função a ser assumida pela educação para o índio. Isto inclui também o uso
de elementos da cultura tradicional na escola, como os mitos, por exemplo.
As proposições convergem para a utilização destes relatos como elemento
motivador dentro da escola. [...] Os mitos podem ser utilizados para motivar
a aprendizagem escolar, embora a escola não deva substituir os espaços pró-
prios da tradição oral.

Desta maneira, a Lei nº 6.001 de 19 de dezembro de 1973, dispõe


sobre o estatuto do índio em seu artigo 6º, retratando bem esta questão
cultural indígena:

Art. 6º Serão respeitados os usos, costumes e tradições das comunidades


indígenas e seus efeitos, nas relações de família, na ordem de sucessão, no
regime de propriedade e nos atos ou negócios realizados entre índios, salvo
se optarem pela aplicação do direito comum. Parágrafo único. Aplicam-se as
normas de direito comum às relações entre índios não integrados e pessoas
estranhas à comunidade indígena, excetuados os que forem menos favorá-
veis a eles e ressalvado o disposto nesta Lei (BRASIL, 1973).

Observamos surdos das várias comunidades indígenas espalhadas


pelo Brasil bem como seu aprendizado da língua de sinais equiparado a for-
ma como acontece nas escolas regulares e dessa forma o intuito é compre-
ender como está sendo trabalhado o ensino bilíngue e a formação dos pro-
fessores para tal atuação. A insuficiência das pesquisas científicas sobre a
língua indígena, a dificuldade de observar os trabalhos efetivos dos poucos
linguistas do país e a dificuldade de aceitação dos próprios indígenas é um
problema que observamos e devemos considerar a curto e médio prazo.
Para Vitaliano e Manzini (2010, p. 53) a formação inicial do professor
deve contemplar a prática educativa, pois consideram que “sua ação se dá
no contexto escolar”, com algumas considerações acerca do trabalho pe-
dagógico do professor frente o processo de inclusão de alunos com NEE.
Consideramos, portanto, que investir na formação de professores,
tanto em formação inicial como formação continuada é a melhor forma de
sanar as deficiências relacionadas à educação de alunos surdos no ensino
regular, visto que quase todos os fatores que interferem para que o proces-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 97-113, 2023 | 101


Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes
e Rita de Cássia Silva Sanglard

so de inclusão seja efetivo estão ligados às atitudes e práticas cotidianas em


sala de aula, seja referente à didática do professor, às relações sociais deste
para com os alunos ou as relações que ele pode mediar entre os mesmos.
Conforme o Referencial Curricular Nacional para escolas indíge-
nas (1998, p. 119), chama-se “língua de instrução a língua utilizada na sala
de aula para introduzir conceitos, dar esclarecimentos e explicações [...]”.
O Decreto 5.626/2005 no § 1º denomina escolas ou classes de educação
bilíngue “aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portu-
guesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o
processo educativo” (BRASIL, 2005). Assim, precisamos estudar como será
direcionado de fato o uso da língua de sinais e das línguas escritas, se te-
mos amparo legal da Lei 10.436/2002 e do decreto 5.626/2005 da Libras
para que possamos garantir a diversidade linguística.
Contudo, mesmo com a garantia da legislação, isso não é assunto
pacífico nas escolas regulares e nas escolas indígenas. O atendimento ao in-
dígena surdo precisa também ser destacado, pois interfere numa questão
de respeitar o que diz o próprio plano de educação sobre a língua, cultura
e diversidade nas escolas e terras indígenas. A política linguística, com a
preocupação das várias línguas, propõe a criação de escolas bilíngues e de
legislações específicas para as questões referente às línguas, seja ela na mo-
dalidade oral, escrita ou de sinais.
A Educação trata a língua portuguesa como se fosse a única língua
do País, mesmo existindo várias publicações sobre as diversas línguas indí-
genas e uma legislação da língua de sinais. O Ministério da Educação (MEC),
órgão do governo federal que trata da política nacional de educação em
geral, entra em contradição quando informa investimentos e incentivos
para escolas bilíngues e ao mesmo tempo prioriza a língua portuguesa em
detrimento de uma segunda língua, no caso dos surdos a língua de sinais,
ocorrendo uma inversão, tendo em vista que a primeira língua, para os sur-
dos é a língua de sinais, gerando conflitos linguísticos e de alfabetização.
É necessário ser feito um estudo sobre política linguística e sua atuação
a respeito da língua que está presente em diferentes povos indígenas. É
justo e necessário que os órgãos governamentais se preocupem também
na administração linguística que evite o contínuo processo de extinção das

102 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE
INDÍGENAS SURDOS: UMA OUTRA PERSPECTIVA

línguas dentro das terras indígenas, defendendo a importância das discus-


sões para incluir na legislação também as existências de outras línguas de
sinais que circulam no país.
Conquanto, algumas questões precisam ser levantadas e discu-
tidas para que o processo de implementação da Libras nas escolas e na
Licenciatura tenham, maior êxito, entre as quais podemos elencar o modo
pelo qual tem-se dado o ensino da disciplina na formação dos futuros
profissionais que ministram a disciplina junto aos graduandos dos cursos de
pedagogia. Para isso é necessário avaliar o que não tem funcionado bem e
o que deve ser mantido em relação aos conteúdos e estratégias de ensino.
A educação inclusiva foi instituída para garantir o direito de todos à
educação, prevendo a igualdade de oportunidades, com a valorização das
diferenças humanas. Entendendo que toda pessoa tem direito a educação,
tem condições de aprender, que é única em seus modos e percepções, essa
lei veio para atender os anseios históricos, humanos, culturais e sociais.
A educação inclusiva não se refere apenas às pessoas surdas, mas
a toda e qualquer pessoa com limitações que as tornem diferentes. Os que
possuem limitações várias não devem ser vistos como deficientes, mas sim
como diferentes. Assim como todas as pessoas, diferentes entre si, com li-
mitações diversas, aparentes ou não. O que realça e determina essa segre-
gação são os limitadores aparentes, como cegueira, ausência de membros,
DI e a surdez, entre outros.
É necessário sensibilizar os professores e colaboradores a
trabalharem com crianças indígenas surdas e não surdas nas comunidades
e principalmente mudar a forma de ensinar, dando ênfase para a educação
bilíngue/trilíngue.
Para alcançar os objetivos, apresentamos por meio da revisão da
literatura, dissertações escritas no período de 2008 a 2021, buscamos pu-
blicações nos Periódicos da Capes, Google acadêmico, utilizando os descri-
tores: “indígenas surdos”, bilinguismo” e “Libras”. Entre os critérios apresen-
tados para a seleção dos materiais, além do indicador cronológico citado,
utilizamos estudos científicos que tivessem como referencial teórico a Teo-
ria Histórico Cultural, buscando compreender como alunos indígenas são
representados dentro do espaço escolar e na construção de conhecimen-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 97-113, 2023 | 103


Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes
e Rita de Cássia Silva Sanglard

tos indígenas a partir dos processos próprios, considerando a cultura, os


costumes a tradição e a visão do próprio povo indígena.
Em nossas buscas foram identificados sessenta e cinco resultados.
A partir da leitura atenta e sistemática do material encontrado foi realizada
uma seleção dos trabalhos que abordavam a temática do nosso estudo,
isto é, representações Histórico cultural e suas contribuições para o campo
da educação e os processos psicológicos de pessoas com deficiência, entre
eles, a surdez que é o foco principal da nossa pesquisa.
A seguir, apresentamos no quadro 1, os estudos encontrados e suas
devidas informações:
Quadro 1: revisão de literatura, estudos analisados

Ano Autores Título Objetivo Participantes


2008 GIROLETTI, “Cultura surda e O objetivo da pesquisa foi Foram 25 pessoas
Marisa Fátima Educação Escolar identificar os elementos entrevistadas sendo
Padilha Kaingang” culturais que constituem 20 professores da es-
a identidade dos surdos cola, 04 profissionais
Kaingang e analisar os ligados à direção e
contextos em que os sinais secretaria e o cacique
linguísticos surdos próprios da aldeia.
à cultura Kaingang se
legitimam e se entrelaçam
com a LSB.
2009 VILHALVA, “Mapeamento das Seu objetivo foi apresentar Foram entrevistadas
Shirley Línguas de Sinais um mapeamento da exis- 16 indígenas surdos
Emergentes: Um es- tência de indígenas surdos frequentes nas escolas
tudo sobre as comu- e da existência de Línguas de das etnias guarani/
nidades linguísticas de sinais emergentes nas Kaiowa/ Terena. Co-
indígenas de Mato comunidades indígenas do munidade indígena de
Grosso do Sul”. Mato Grosso do Sul. Dourados/ MS aldeia
Jaquapíru e Bororó.

2014 FERREIRA, “Educação Kaingang: “O estudo teve a finalidade Ele não cita a quan-
Bruno Processos próprios de evidenciar a importância tidade de crianças
de aprendizagem e do espaço escolar e os observadas, mas,
Educação Escolar”. espaços de construção de fala que foi realizada
conhecimentos indígenas no Setor Missão,
a partir de processos da Terra Indígena
próprios, considerando a Guarita, município de
cultura, os costumes, a Redentora – RS. Ele
tradição e a visão de mundo foi participante da
própria do povo Kaingang”. pesquisa juntamente
com as crianças da
aldeia.

104 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE
INDÍGENAS SURDOS: UMA OUTRA PERSPECTIVA

2018 SOARES, “Língua Terena O estudo teve como Participaram dessa


Priscilla Alyne de Sinais: Análise objetivo descobrir se os pesquisa 13 informan-
Sumaio descritiva inicial da sinais que os surdos Terena tes surdos (criança,
Língua de Sinais e alguns ouvintes estavam jovem, adulto, anciã na
usada pelos Terena utilizando eram sinais TI de Cachoeirinha/MS
da terra Indígena caseiros ou uma língua, e se
Cachoeirinha”. essa língua seria autônoma
ou uma variedade da Libras.
2021 MUSSATO, “O que é ser Índio O objetivo da pesquisa foi Participaram dessa
Michele Souza sendo Surdo? Um de analisar os modos de di- pesquisa 14 sujeitos
olhar transdisci- zer em que evocadas as re- surdos indígenas da
plinar.” presentações do índio surdo comunidade de Cacho-
sobre si, no eixo um (R1 a eirinha – Miranda/MS.
R4), a recorrência do termo
“ignorante”, cujo efeito de
sentido expressa um não
lugar para o sujeito, um
não lugar para a língua que
traz da mãe, um não lugar
para a memória discursiva
que o constituía, um não
lugar para a identidade que
acreditava ter.
Fonte: elaborado pelos autores.

O primeiro estudo, intitulado “Cultura Surda e Educação Escolar


Kaingang, dissertação de Marisa Fátima Padilha Giroletti (2008), tem como
objetivo entender o processo cultural de criação e uso de signos pertinen-
tes aos significados da cultura Kaingang, na interação dos surdos da comu-
nidade com a Língua Brasileira de Sinais, também conhecida como Libras
e utilizada como Língua oficial das comunidades surdas no Brasil urbano.
O diário de campo foi a principal ferramenta de registro, foram 25 pessoas
entrevistadas, sendo 20 professores da escola e 04 profissionais ligados à
direção e parte da secretaria e 01 líder da aldeia – o cacique.
Os resultados finais chegaram com alguns questionamentos conside-
rados naturais, porque se trata da Língua como identificação de uma popula-
ção que é minoria. Os sinais Kaingang registrados e apresentados trouxeram
a possibilidade de discutir e analisar a influência cultural, além de entrar em
contatos com sinais diferentes e outros que são entrelaçados com a LSB.
O segundo estudo, denominado “Mapeamento das Línguas de Si-
nais Emergentes: Um estudo sobre as comunidades linguísticas indígenas
de Mato Grosso do Sul” é uma dissertação de Shirley Vilhalva (2009), realiza-

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Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes
e Rita de Cássia Silva Sanglard

da nas aldeias das etnias guarani/ Kaiowa/ Terena, comunidades indígenas


de Dourados, estado de Mato Grosso do Sul.
O trabalho é desenvolvido em duas vertentes básicas – Linguísti-
ca e Educação. Essa análise observa diferentes ângulos da constituição da
aprendizagem do Indígena surdo na presença da Língua de Sinais compre-
endida como uma Língua espaço-visual.
Os resultados da pesquisa revelaram contribuições às políticas lin-
guísticas e à educação de indígenas surdos por mostrar as línguas de sinais
e os sinais emergentes, levantando hipóteses para estudos futuros.
A pesquisadora expõe que os sinais emergentes estão presentes no
contexto plurilíngue das comunidades indígenas do estado do Mato Gros-
so do Sul, onde são faladas línguas dos quatro maiores agrupamentos ge-
néticos da América do Sul, o tronco Tupi, o Tronco Macro-Jê, a família Aruak
e a família Karib, além de outras de menor expressão.
O terceiro estudo, denominado “Educação Kaingang: Processos
próprios de aprendizagem e Educação Escolar” é uma dissertação de Bruno
Ferreira (2014) evidenciando a importância do espaço escolar e os espaços
de construção de conhecimentos indígenas a partir de processos próprios,
considerando a cultura, os costumes, a tradição e a visão de mundo própria
do povo Kaingang. Essa pesquisa foi realizada no Setor de Missão, da Terra
Indígena Guarita, município de Redentora – RS.
O autor cita que o resultado de sua pesquisa demonstrou que, aos
poucos, as políticas públicas para os indígenas, na área da educação, vêm
sendo gradativamente implementadas. Isso acontece graças ao crescente
movimento indígena, atuando no sentido de garantir a educação como um
avanço em favor das lutas próprias, rumo à afirmação da identidade étnico-
-cultural de cada povo, na construção de seus projetos futuros.
O quarto estudo, nomeado “Língua Terena de Sinais: Análise des-
critiva inicial da Língua de Sinais usada pelos Terena da terra indígena Ca-
choeirinha” é uma dissertação de Priscila Alyne Sumaio Soares (2018). O
objetivo foi verificar se os sinais que os surdos Terena e alguns ouvintes
estavam utilizando eram sinais caseiros ou uma língua e se essa língua seria
autônoma ou variedade da Libras. Participaram dessa pesquisa 13 infor-
mantes surdos, foi observada a vivência em família, na escola e na aldeia.

106 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE
INDÍGENAS SURDOS: UMA OUTRA PERSPECTIVA

O quinto estudo, intitulado: “O que é ser índio sendo surdo? Um


olhar transdisciplinar” é uma dissertação de Michele Mussato Souza (2021).
O objetivo foi analisar as representações do indígena surdo sobre si mes-
mo, o uso do termo “ignorante”, em sentido negativo, a falta de um lugar
da língua materna, a ausência da memória discursiva que o constituía, e
da identidade que acreditava ter. Participaram desta pesquisa 14 pessoas
indígenas surdas da comunidade de Cachoeirinha – Miranda/ MS.
A pesquisa mostrou que a escola é parcial, através de formas de
poder, baseadas em um padrão dito “normal”, que pune os desvios, sem
considerar os menos favorecidos e sem diferenciá-los dos “normais”.
O revés linguístico está posto para a educação bilíngue e a pro-
dução de material didático nessa perspectiva. Não é possível trabalhar a
língua portuguesa e a Libras de forma separada. Como citado anteriormen-
te, as palavras termos e expressões não se traduzem fielmente da Língua
Portuguesa para a Libras e vice-versa. Faltam apreensão do sentido, faltam
termos e palavras específicas para se chegar a determinado sentido. Nas es-
colas indígenas bilíngues existe um encontro linguístico, social, cultural, a
interlocução da experiência humana representada pelos saberes vivos nas
comunidades: anciões, lideranças, religiosos, os quais significam ativamen-
te a construção dos materiais didáticos o embasamento para os conteúdos
nas salas de aula.
Outra questão de suma importância a ser levantada é que não bas-
ta aos professores o conhecimento pleno de falar e escrever fluentemente
a língua materna, tampouco acontece com os professores e a língua portu-
guesa. Bem como as metodologias aprendidas por si só, de forma isolada
não são suficientemente eficientes nas escolas indígenas bilíngues.
Ao reconhecer a escola indígena kaingang como um espaço mul-
ticultural, em desenvolvimento de significados importantes ao povo kain-
gang encanta ao mesmo tempo que desafia no que tange às possibilidades
de aprendizagem que o material didático a ser produzido traz em relação a
sua utilização em sala de aula, o qual impõe exigências que devemos consi-
derar na sua elaboração. “Como se desenvolvem os conceitos científicos na
mente de uma criança em processo de aprendizagem escolar?” (VIGOTSKI,
2009, p. 245). São muitos os caminhos para se chegar ao conhecimento,

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 97-113, 2023 | 107


Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes
e Rita de Cássia Silva Sanglard

contudo a escola assume o papel de destaque, o professor de mediador


dos conteúdos das disciplinas e dos saberes historicamente adquiridos
pela sua comunidade, amadurecendo esses conhecimentos, tratando essas
informações, permitindo ao estudante indígena bilíngue desenvolver os
conceitos científicos a partir da base formada pelos conceitos construídos
ao longo da infância, nas experiências e aprendizados cotidianos.
O meio habitado tem uma participação decisiva no processo de en-
sino aprendizagem. Na cultura kaingang ainda hoje, as pessoas mais velhas
se orientam pelo conhecimento cultural indígena, os anciãos da comuni-
dade são consultados pelos membros da comunidade e respeitados pelo
conhecimento que detém. A escola tem a possibilidade de incluir, aproxi-
mar, ou excluir esse conhecimento, o que seria uma perda cultural imensu-
rável. Com a interação social, a prática pedagógica planejada e dirigida, o
espaço escolar se torna um meio de mediação e compreensão do mundo
nas diversas áreas que se divide o conhecimento escolar e o conhecimento
escolar específico das escolas indígenas.
O debate cultural ou multicultural é intrínseco à educação esco-
lar indígena bilíngue. É um caminho teórico que possibilita melhorias de
aprendizagem para estas crianças, tanto no desenvolvimento de materiais
didáticos bilíngues indígenas, quanto na concepção metodológicas das au-
las diárias. O debate constante sobre o bilinguismo indígena e suas especi-
ficidades traz percepções das dificuldades dos mesmos ao estarem em con-
tato com a cultura não indígena e a língua portuguesa. O multiculturalismo
nas escolas indígenas nos remete a pensar na importância da elaboração
de um material didático específico e contextualizado dentro das próprias
escolas indígenas, inseridas nas comunidades indígenas, que por vezes são
da mesma etnia mas se diferem nas leis, nos costumes, nas tradições, na
situação sociolinguística e cultural, na organização.
Vigotski (2012) aponta que as pessoas que nascem surdas não
sofrem diretamente a experiência da perda, mas não tardam a ter a ex-
periência da deficiência. Na perspectiva vigotiskiana a estimulação pre-
coce é essencial para o desenvolvimento do sujeito, uma vez que quanto
mais cedo for estimulado à aprendizagem pode ocorrer com mais pleni-
tude e facilidade.

108 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE
INDÍGENAS SURDOS: UMA OUTRA PERSPECTIVA

As aulas baseadas exclusivamente em língua portuguesa e com


metodologias e matérias pensamos para as escolas regulares, têm alta pro-
babilidade de incompreensão por parte dos estudantes indígenas, “porque
concebida e planejada como reflexo das aspirações particulares de povo
indígena e com autonomia em relação a determinados aspectos que re-
gem o funcionamento e orientação da escola não-indígena.” (RCNEI). Um
professor não indígena não ministrará sua aula em língua materna, não é
detentor deste conhecimento, porém terá a possibilidade de construção
de maquetes, elaboração de cartazes, análise de quadrinhos e charges e a
utilização de alguns filmes, documentários e pequenos vídeos gravados do
youtube, baseado nos estudos culturais e aplicabilidade a disciplina que
estará ministrando. Quanto mais abstrato ou complexo o conteúdo, mais
difícil é para trabalhá-lo em sala aula com estudantes indígenas bilíngues,
o que não deixa de se aplicar também as escolas regulares.
Por exemplo, o Plano Nacional de Educação Especial (MEC/SEESP,
1994) propõe o “incentivo ao uso e à oficialização da Língua Brasileira de Si-
nais”. Entretanto, são vagas as recomendações para a escola comum e seus
professores, não ficam especificadas diretrizes no sentido de oportunizar a
construção de uma condição bilíngue do surdo ou de oferecer um ensino
que, em algum aspecto, seja desenvolvido por meio da Língua de Sinais.
A educação escolar indígena tem bases legais que dão o direito à
educação diferenciada, à valorização das Línguas e culturas locais, sendo
as mais relevantes: a) Constituição Federal de 1988: artigos: 210, 215, 231 e
232; b) Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: artigos: 26, 32, 78 e
79; c) Plano Nacional de Educação (Lei 10.172 - 9 de janeiro de 2001): Capí-
tulo sobre Educação Escolar Indígena; d) Parecer 14/99 - Conselho Nacio-
nal de Educação - 14 de setembro de 1999; e) Resolução 03/99 - Conselho
Nacional de Educação - 10 de novembro de 1999; f ) Decreto Presidencial
5.051, de 19 de abril de 2004, que promulga a Convenção 169 da OIT (POR-
TAL MEC, 2007).
A constituição de 1988 e o Conselho Nacional, em 1999, por meio
do Parecer 14 e da resolução 03, instituem a educação escolar indígena vi-
sando ao ensino Bilíngue em todo o País. Somente dois anos depois, o Pla-
no Nacional de Educação, através da Lei 10.172, estabelece a obrigatorie-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 97-113, 2023 | 109


Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes
e Rita de Cássia Silva Sanglard

dade da categoria “escola indígena”, a qual estabelece a especificidade de


uma educação Intercultural e Bilíngue. Há dificuldades para que as escolas
de fato contemplem uma Educação Intercultural e Bilíngue. A afirmação
procede nos depoimentos dos professores e nas queixas dos estudantes e
dos órgãos responsáveis pela coordenação dessas políticas. Procura-se um
jeito diferente de ensinar, mas não se contempla uma educação de qua-
lidade em ambas as línguas. Muitos estudantes estão chegando às séries
finais do Ensino Fundamental sem saber ler e escrever o Português e sem
dominar a língua da aldeia.
O professor é o mediador entre o conhecimento e os seus alunos,
é ele quem organiza e propicia espaços e situações de aprendizagem, em
que são articulados os recursos afetivos, emocionais, sociais e cognitivos de
cada educando aos conhecimentos prévios em cada área específica.

Considerações finais

No presente estudo buscamos identificar as representações his-


tórico-culturais dos sujeitos surdos e seus participantes. Para tanto, em-
pregamos uma revisão da literatura, por meio da qual foram coletados
e analisados dados atinentes ao nosso objetivo. Sob essa perspectiva, a
Teoria Histórico Cultural, utilizada como guia teórico de análise, nos pro-
porciona um instrumento de amplo potencial interpretativo, viabilizando
a elucidação de inúmeros sistemas de significação que são construídos e
compartilhados por determinados grupos. Como afirma José Filho (2006) o
surgimento da necessidade de se pesquisar já traz em si, a necessidade de
um diálogo com a realidade a qual se objetiva investigar e com o diferente,
uma comunicação dotada de crítica, que direciona a momentos criativos.
O intuito de conhecer fenômenos que o constituinte dessa realidade busca
de aproximação, diante de sua complexidade e dinamicidade dialética.
Compete-nos, no atual contexto, com respaldo legal e pela via da
Educação Escolar Indígena, reverter o quadro existente e oferecer uma
educação de qualidade ao indígena surdo, garantindo as línguas de sinais
que o mesmo precisa ter acesso para garantia de direito à comunicação.

110 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


INTERCULTURALIDADE E IDENTIDADE CULTURAL DE
INDÍGENAS SURDOS: UMA OUTRA PERSPECTIVA

O parecer 14/99 do Conselho Nacional de Educação rege que ao


regulamentar dispositivo constante na LDB e respondendo à consulta
encaminhada pelo MEC, o CNE acredita que contribui para o avanço em
direção à criação e ao desenvolvimento da categoria Escola Indígena
na recuperação das memórias históricas, étnicas, linguísticas, próprias
dessas comunidades, e ao mesmo tempo objetivando o acesso com êxito
a interculturalidade, ao bilinguismo e ao conhecimento universal com
qualidade social.
É necessário que ações concretas para o fortalecimento da
Educação Escolar Indígena sejam realizadas nos diferentes sistemas de en-
sino do país de maneira articulada, coordenada e com continuidade, de
forma que possam contribuir para a inversão do processo de degradação,
que põe em risco a sobrevivência das culturas indígenas, e, assim, promo-
ver o desenvolvimento autossustentável e de progresso permanente, sem
a perda da identidade étnica e da cidadania brasileira em sua plenitude.

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Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 97-113, 2023 | 111


Diones Clei Teodoro Lopes, Maria Christine Berdusco Menezes
e Rita de Cássia Silva Sanglard

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Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p115

PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE ARTICULAÇÃO,


ORGANIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA LUTA PELOS DIREITOS ORIGINÁRIOS
NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Anyelle Gomes da Silva1

Resumo: É inegável que o período da ditadura civil-militar representa muito


mais que uma lombada no percurso histórico brasileiro, pois a violência
cometida contra os povos indígenas é a marca que permanece na lógica de
diversas subjetividades originárias e, infelizmente, ainda largamente desco-
nhecida pela maior parte da população. O debate crítico contemporâneo
tem tomado para si a tarefa de refletir a respeito dos apagamentos e silen-
ciamentos vivenciados pelos povos originários em um momento extrema-
mente complexo e obscuro: o regime militar. Contudo, o objetivo aqui não é
aprofundar apontamentos sobre o esbulho, a usurpação de terras, a negação
das culturas ou o genocídio que os acometeu, mas apresentar um panorama
acerca de como os grupos indígenas começaram a se organizar, articulando
diversas regiões e etnias, iniciando uma mobilização de cunho nacional, tor-
nando-se um movimento pan-indígena, com um caráter educativo, por res-
gatar e ressignificar a formação da consciência dos povos indígenas, criando
uma nova lógica de autonomia e autodeterminação nos seus modos de ser
e de viver.
Palavras-chave: Ditadura civil-militar. Modos de Articulação. Movimento
Pan-indígena. Resistência.

INDIGENOUS EPISTEMOLOGICAL PROTAGONISM: WAYS OF ARTICULATION,


ORGANIZATION AND LEGITIMATION IN THE STRUGGLE FOR ORIGINAL
RIGHTS IN THE CONTEXT OF THE CIVIL-MILITARY DICTATORSHIP

Abstract: It is undeniable that the period of the civil-military dictatorship re-


presents much more than a speed bump in the Brazilian historical path, since
the violence committed against indigenous peoples is the mark that remains
in the logic of several original subjectivities, unfortunately unknown by most
of the population. Contemporary critical debate has been paramount in

1. Graduada em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia


(UNEB). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Universidade do Estado
da Bahia (Pós-Crítica/UNEB), linha de pesquisa Literatura, Produção Cultural e Modos de Vida.
Endereço eletrônico: anyelle.gomes@hotmail.com.br.

[Recebido em: 21 mai. 2023 – Aceito em: 21 jul. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 115-134, 2023 | 115


Anyelle Gomes da Silva

taking responsability in reflecting on the erasures and silencing experienced


by native peoples in an extremely complex and obscure moment: the mili-
tary regime. However, the objective here is not to deepen notes on dispos-
session, land grabbing, denial of cultures or the genocide that affected them,
but to present an overview of how indigenous groups began to organize
themselves, articulating different regions and ethnicities, initiating a national
mobilization, becoming a pan-indigenous movement, with an educational
character, for rescuing and re-signifying the formation of consciousness of in-
digenous peoples, creating a new logic of autonomy and self-determination
in their ways of being and living.
Keywords: Civil-military dictatorship. Articulation Modes. Pan-Indigenous
Movement. Resistance.

Introdução

Os problemas relacionados à violação dos direitos dos povos indí-


genas, embora antigos e frequentes, ainda são pouco discutidos. Pouco se
sabe sobre o extermínio que os acometeu ao longo dos séculos, sobretudo
quando nos vem à memória os 21 anos da ditadura civil-militar. Se sabe
ainda menos, como essas sociedades resistiram a tantas formas gratuitas
de violência, que abateu mais de 8.500 vidas indígenas, de acordo com o
relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Os anos 1964 a 1985, foram marcados pelo autoritarismo, repressão,
perseguição, ganância econômica e supressão de direitos humanos e funda-
mentais que atingiu de maneira violenta, covarde e cruel diversas etnias ori-
ginárias. Décadas em que os militares impuseram um forte esquema de con-
trole sobre estes povos e seus territórios, que culminou em uma catástrofe
populacional e epistêmica. Foi um período de combates desiguais, os quais
a ganância humana favoreceu somente o interesse de grupos econômicos,
em prol do desenvolvimento, civilização, progresso e políticas repressivas,
em detrimento dos seus territórios, culturas, tradições e ancestralidades.
Em meio a tantos esforços dos governos militares para exploração
dos territórios indígenas, quais foram as manobras e estratégias que os po-
vos originários utilizaram como modos de resistência, a fim de evitar o ani-
quilamento e extermínio dos seus povos? É baseado neste questionamento
que o artigo trará à tona os movimentos de articulações das lideranças indí-

116 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE
ARTICULAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA LUTA PELOS
DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

genas, que desenvolveram ações em prol da conservação dos seus territó-


rios e demarcação das suas terras, envolvendo não só o espaço físico, mas a
possibilidade de manterem vivazes as culturas, ontologias, epistemologias e
memórias. O levante indígena representou a presença de um novo ator polí-
tico/social no cenário nacional, passando de subalterno a militante das suas
próprias demandas, protegendo a si mesmo através dos posicionamentos,
frente às migalhas que o Estado ofereceu (e oferece) para a sobrevivência.

Articulação indígena: da tutela ao protagonismo

Estima-se que antes da invasão europeia viviam aqui no território


entre 4 a 10 milhões de habitantes nativos, divididos em mais de 1000 etnias
distintas, consideradas pelos usurpadores como “gente sem religião, sem jus-
tiça e sem Estado”, visão baseada na perspectiva evolucionista e colonialista
que desconsidera outros modos de vida para justificar a dominação, como se
os europeus fossem superiores. Apesar das especificidades que constituem
os povos originários, a visão colonialista homogeneizou as diversidades étni-
cas, linguísticas e culturais, colocando-os como passivos ou selvagens.
A construção de inferioridade não intimidou a luta pela sobrevi-
vência, pois desde os primórdios buscaram estratégias para se manterem
vivos. De forma habilidosa souberam se aliar aos portugueses ou a outros
povos indígenas quando lhes era conveniente. Portanto, eles também fo-
ram agentes de sua história, embora vencidos na maior parte das vezes de-
vido ao poder bélico dos invasores de suas terras. A respeito da resistência
indígena, a pesquisadora Maria Regina Celestino de Almeida destaca que

De personagens secundários apresentados como vítimas passivas de um


processo violento no qual não havia possibilidades de ação, os povos indí-
genas em diferentes tempos e espaços começaram a aparecer como agentes
sociais cujas ações também são consideradas importantes para explicar os
processos históricos por eles vividos. Essas novas interpretações permitem
outra compreensão sobre suas histórias e, de forma mais ampla sobre a His-
tória do Brasil (ALMEIDA, 2010, p. 9-10).

Dessa forma, todo o contexto de formação da sociedade brasi-


leira foi composto por violências gratuitas contra as populações originá-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 115-134, 2023 | 117


Anyelle Gomes da Silva

rias através dos inúmeros aparelhos de Estado, sancionados com o fim de


exterminar as distintas etnias indígenas aqui existentes. Entretanto, estas
populações resistiram e nunca deixaram de existir. A escritora Rosana Bond
(2005), em seu artigo, considera que o movimento indígena começou em
1578-1579, na região do Mato Grosso do Sul, se expandido pelo Paraná,
liderado pelo cacique Oberá, cujo nome em Guarani é Werá - que signi-
fica luminoso. “Os indígenas protagonizaram uma revolta extremamente
singular. Uma espécie de “greve” geral, através da qual recusaram-se a con-
tinuar trabalhando para os dominadores, passando a cantar e dançar inin-
terruptamente” (BOND, 2005), praticando a “dança ritual guarani”.
Outro movimento de resistência também realizado pelos Guarani,
nos séculos XVI e XVII, denominado pelo historiador Clovis Brighenti (2016)
de “desbatismo”, constituiu-se no rechaço à religião do colonizador, o cato-
licismo. Os nativos de Oberá realizavam rituais para se desfazer dos nomes
cristãos-europeus impostos e voltavam a usar os seus nomes indígenas, em
ação revolucionária. Segundo Brighenti:

Para os Guarani, o nome da pessoa representa seu caráter e sua função na


sociedade e, portanto, no momento em que os padres convenciam os Gua-
rani a adotarem o nome cristão pela prática do batismo, estariam destruindo
a essência do indivíduo. Ao batismo cristão foi atribuído todo o sofrimento e
toda a violência. Sendo assim, os líderes religiosos Guarani realizaram o “des-
batismo” caracterizado pela retirada no nome cristão imposto pelos padres.
Com entonações de cânticos e rezas, os líderes religiosos faziam uso de todo
o seu poder espiritual para voltar às antigas origens (BRIGHENTI, 2016).

São inúmeros os relatos e registros que comprovam as estratégias


de resistência adotadas pelos povos originários em prol da sobrevivência e
resgate das suas culturas. Todavia, essa luta ocorreu de maneira individual,
cada um por si só, em que cada etnia defrontava o inimigo de acordo com
seus interesses particulares, sem qualquer intervenção externa. Esse mo-
vimento étnico particular de luta ocorreu até 1970, quando o movimento
indígena passou a reagir contra o gritante assolamento institucional, que
reincidiu sobre estes povos de maneira nunca antes vivenciada.
O setor da Igreja Católica que não havia apoiado a ditadura e man-
tinha uma visão crítica nos temas sociais assumiu a tarefa de auxiliar as po-
pulações indígenas no processo de construção de autonomia e autodeter-

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PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE
ARTICULAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA LUTA PELOS
DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

minação. Esse apoio iniciou-se em 1969 com a criação da OPAN – Operação


Anchieta – no sul do país, uma organização de missionários jesuítas que
preparava voluntários para atuar entre os povos indígenas e que, embora
no início de suas atividades tivesse uma atuação bastante assistencialista
e colonialista, com o tempo foi optando por um trabalho de “promoção
integral” dos povos (Suess, 1989, p. 05). Essa organização cristã é marcada
por tentativas de integração e ocidentalização dos povos indígenas, carac-
terizadas pela missão “em massa” e práticas como os grandes batizados nas
aldeias e o internato das crianças indígenas.
A desaprovação de alguns bispos referente a atuação da OPAN, re-
sultou na criação do CIMI – Conselho Indigenista Missionário – no ano de
1972, cujo objetivo era canalizar os esforços pela causa indígena, priorizan-
do a defesa da terra e dos territórios como forma de defesa da sobrevivên-
cia física, cultural e ancestral, respeitando seus modos de vida e religiosi-
dade. Em sua tese de doutorado, a pesquisadora Maria Cecília dos Santos
Ribeiro Simões (2016) aponta que, no início de sua formação, o CIMI ainda
apresentava uma estrutura vertical e clerical, e sua preocupação com uma
prática pastoral comprometida era ainda incipiente. Com o tempo o órgão
foi assumindo uma identidade engajada e militante, se posicionando con-
trariamente à política do Estado e assumindo cada vez mais sua identidade
progressista, em consonância com outros movimentos e pastorais, como as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Outro fator importante que impulsionou a nova postura do tradi-
cionalismo da Igreja foi a Conferência Episcopal de Medellín, dando início a
corrente da Igreja denominada Teologia da Libertação – amparada pela Con-
ferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) –, responsável por interligar
diversos grupos sociais em um único denominador comum: o do excluído.
Neste contexto, o levante em favor da articulação e reivindicação
da vida indígena foi incansavelmente posto em prática. Em 1973, mais pre-
cisamente no dia 25 de dezembro, um grupo de seis bispos e mais outro
tanto de padres e freis lançaram um documento de denúncia denominado
Y-Juca-Pirama – O índio: aquele que deve morrer, Documento de Urgência
de Bispos e Missionários, justamente quando o regime militar se fazia mais
forte e agressivo durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici. O

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 115-134, 2023 | 119


Anyelle Gomes da Silva

documento denunciava os crimes que estavam sendo praticados no Brasil


pelo regime militar e pela Funai, praticados em nome do progresso e do
desenvolvimento do país e que os indígenas não podiam impedir ou atra-
palhar. Os posicionamentos presentes eram totalmente contrários a toda e
qualquer forma de usurpação:

Não aceitaremos ser instrumentos do sistema capitalista brasileiro. Nada fa-


remos em colaboração com aqueles que visam ‘atrair’, ‘pacificar’ e ‘acalmar’ os
índios para favorecerem o avanço dos latifundiários e dos exploradores de
minérios ou outras riquezas. Com eles, não aceitaremos um tipo de ‘integra-
ção’ que venha apenas transformá-los em mão de obra barata, avolumando
ainda mais as classes marginalizadas que, no funcionamento do sistema de
produção, enriquecem somente aos que já são ricos (Y-JUCA-PIRAMA, 1973).

A imensurável repercussão que teve esse documento foi um divisor


nos trabalhos que estavam sendo desenvolvidos pelo CIMI junto aos povos
indígenas. A mudança mais profunda ocorreu quando esse pequeno grupo
de católicos decidiu escutar os indígenas e apoiá-los em suas iniciativas de
se reunir em encontros, denominados por eles de assembleias. Se esse se-
tor da Igreja ainda não tinha sofrido grandes represálias do regime, a partir
de então houve um rompimento com o governo que logo tratou de colo-
car o Serviço Nacional de Informação (SNI) para espioná-los, investigando
e reprimindo as ações. O governo militar passou a pressionar os povos e
grupos indígenas a entregar informações sobre as reuniões que ocorriam
entre os líderes indígenas e o Cimi, como também passou a infiltrar milita-
res entre os religiosos que realizavam as missões nas aldeias. Valente expli-
ca que o idealizador destas estratégias foi o general Ismarth, que em carta
para o general Francisco Batista Torres de Melo, declarou estar “preocupado
com o recrudescimento da atuação da ala esquerdista da Igreja nas áreas
indígenas de Mato Grosso”, e que, por isso, haveria “uma infiltração de um
elemento da brigada na área da Missão Salesiana de São Marcos. Para não
despertar suspeitas”, sempre conforme o raciocínio exposto na carta, o es-
pião portaria “uma carteira funcional de servidor da Funai”. (VALENTE, 2017,
p. 255). Em resposta, Melo apoiou a ideia e disse que poderia pôr a espio-
nagem em prática. Porém o motim ditatorial não intimidou os militantes,
que responderam à repressão militar com a pujança para seguir firme no
propósito de defesa dos indígenas.

120 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE
ARTICULAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA LUTA PELOS
DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

A manobra da criação de assembleias desencadeou entre as comu-


nidades indígenas, verdadeiros processos de libertação e a criação de no-
vos instrumentos de luta. O convite ocorria de modo presencial ou através
de cartas, em que os líderes religiosos, integrantes do CIMI, convidavam
para as reuniões com as principais lideranças indígenas. Para a 1ª assem-
bleia foram convidados os líderes das etnias Xavante, Bororo e suas ramifi-
cações, ocorrendo no dia 17 de abril de 1974, em Diamantino (MT). A reu-
nião ocorreu ao ar livre, em contato direto com a natureza, sem mesas nem
cadeiras, sentados sobre a grama e em troncos. A primeira preocupação
dos dirigentes do Cimi foi encontrar uma dinâmica na qual os indígenas
se sentissem à vontade, não só para falarem livremente, mas também para
encontrarem eles mesmos as soluções para os seus problemas.
De acordo com Egydio Schwade (2021), a dinâmica das assembleias
consistia em três tempos: auto apresentação dos participantes; primeiras
informações sobre suas áreas, com relato dos principais problemas; e a
descoberta de soluções. A terceira parte era feita somente com a presença
de indígenas, sem a participação de nenhum “civilizado”, o que era tolera-
do nas duas primeiras partes. O impedimento na participação de pessoas
não indígenas no momento das decisões dava aos líderes a autonomia de
falarem por si e ocupar o seu lugar de fala sem influência estranha. Mas,
mesmo nas duas primeiras partes, os não indígenas que participavam se
mantinham calados.
A segunda assembleia transcorreu pouco mais de um ano da pri-
meira, na Missão Franciscana do Cururu (PA), junto à aldeia do povo Mun-
duruku. No intervalo entre uma assembleia e outra, sete encontros entre
os indigenistas do CIMI e lideranças indígenas deram origem aos ramais
regionais do órgão, intitulados Mato Grosso, Maranhão-Goiás, Sul, Norte
I, Norte II, Amazônia Ocidental e Mato Grosso do Sul. Em maio de 1975, se
encontraram representantes do Pará, Amapá, Tumucumaque, Mato Grosso
e Tocantins, reunindo, além das lideranças, mulheres, jovens e crianças –
em torno de 800 indígenas.
O terceiro encontro ocorreu em um intervalo de tempo bem menor,
em setembro de 1975, na aldeia Bororó do Boqueirão (MT). A articulação
dos povos indígenas começava a ganhar consistência e as lideranças es-

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tavam cada vez mais envolvidas com a luta política pelos seus espaços de
direito, como é notório na fala do líder Lourenço Txibae Ewororo, na aber-
tura da 3ª assembleia:

Estamos aqui para mais uma reunião. Como já sabemos, a 1ª foi feito em Dia-
mantino, outra foi feito em Cururu, lá no Pará. Estamos vendo que estas reu-
niões estão despertando bastante interesse por nossa parte, índios. Estamos
despertando também a Funai, que é órgão principal encarregado de nossos
problemas, de nossos interesses em geral. Estamos aparecendo. Por nossa
parte cada um deve apresentar os problemas que tem sua área. O que esta-
mos fazendo e devemos fazer? Para ver se nos sentimos mais unidos para re-
clamar e pedir à Funai para que no futuro temos uma condição de vida mais
melhor para os nossos filhos. Seria bom cada um apresentar os problemas,
o que devemos discutir para acharmos uma solução. Trabalhar tudo junto.
Cada um vai ter liberdade de falar, livre e espontâneo de dizer. Pode se sentir
em casa que ninguém vai reparar se alguém fala mal, fala bem, todos somos,
sentimos irmãos aqui juntos (EWORORO, 1975 apud SCHWADE, 2021).

Foi a partir desta assembleia que passaram a se destacar os líde-


res Ângelo Kretã, Mário Juruna e Marçal de Souza, representantes que se
tornaram referência política na luta pelos direitos dos seus povos. Eles,
juntamente com o CIMI, organizaram inúmeras reuniões que aconteciam
em espaços de tempo cada vez menores e abrangendo todo o território
nacional. A partir de 1978, com o debate em torno do projeto etnocida
da “emancipação do índio” do ministro Rangel Reis, vários pesquisado-
res, em especial juristas, antropólogos e militantes sociais, criaram orga-
nizações e associações em defesa desses povos, muitas delas contando
com a participação indígena. Assim surgiu a Comissão Pró-Índio (CPI), em
1978, a Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAI), em 1979, ambas
em diferentes cidades, e ainda o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), em
São Paulo, também em 1979. O Centro Ecumênico de Documentação e
Informação (CEDI), criado anos antes, também passou a ter importante
atuação na causa indígena.
Importante destacar que das assembleias saíram documentos ex-
tremamente relevantes, a respeito dos problemas que cada região viven-
ciava, sendo, ao final da produção, encaminhadas a Funai. O documento a
seguir é relacionado à VIII Assembleia de Chefes Indígenas, que ocorreu nas
Ruínas de São Miguel das Missões (RS), de 16 a 18 de abril de 1977.

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PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE
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DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Figura I: Documento final da VIII Assembleia Indígena

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DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Fonte: Boletim do Cimi, 1977.

Os documentos eram redigidos pelos próprios indígenas, porém


o Estado militar desqualificava o Movimento Indígena, dizendo em seu
discurso que os indígenas agiam em função de alguém, não possuindo
pensamento e capacidade de se articularem sem intervenção externa. Foi
a partir dessa alegação que em junho de 1980, os líderes indígenas criam
a União das Nações Indígenas (UNI), esta como maior expressão do Mo-
vimento, representando a legitimação da autonomia construída nos seis
anos de assembleias. A sua construção proporcionou possibilidades de
articulação, estabelecendo outras frentes, como a Aliança dos Povos da

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 115-134, 2023 | 125


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Floresta, que organizou uma atuação conjunta com os seringueiros no


sentido de construir alternativas econômicas à integração forçada que o
governo militar lhes tentava impor à economia de mercado. A partir da
Aliança e da UNI, se organizou o Centro de Pesquisa dos Povos da Floresta
e outras iniciativas, como a Coordenação de Associações e Povos Indígenas
do Brasil (Capoib), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazô-
nia Brasileira (Coiab), o Centro de Trabalho Indigenista de São Paulo (CTI) e
o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI), a Embaixada dos Povos da Floresta e
o Programa de Índio – um programa radiofônico que chegava a seiscentas
aldeias com o envio de fitas cassetes para diversas regiões amazônicas.
Nesse contexto de independência, diversas estratégias foram ado-
tadas pelas lideranças indígenas, sobretudo na condução das pautas po-
líticas. A busca por uma mobilização interétnica adentrou a vertente po-
lítico-partidária, trazendo à cena importantes figuras indígenas, como o
cacique Ângelo Kretã, um dos principais articuladores do Movimento pela
retomada de territórios no sul do Brasil na década de 1970, tendo sido o
primeiro vereador indígena eleito do país, em 1976. Muito ativo em busca
dos direitos de seu povo, morreu, misteriosamente, no ano de 1980 em um
acidente de carro na estrada a caminho da aldeia.
Marçal de Souza Tupã-Y, ainda que não tenha sido candidato, foi um
dos mais importantes líderes indígenas da época. Se engajou politicamente
na luta pela demarcação de terras na região de Dourados, denunciou a ex-
ploração ilegal de madeira, a escravização de seu povo e o tráfico de meninas
indígenas. Sua militância incessante atraiu a perseguição e as ameaças de fa-
zendeiros, latifundiários, madeireiros e até mesmo pela direção da Fundação
Nacional do Índio (Funai), que expulsou Marçal da região de Dourados nos
anos 1970. Em 25 de novembro de 1983, dois fazendeiros dispararam cinco
tiros à queima roupa que tirou a vida do líder indígena. Em outras palavras,
esses assassinatos salientam a realidade terrível e persistente, mesmo após o
fim da ditadura: indígenas, quando conscientes dos problemas que os envol-
ve, são ameaçados, violentados ou mortos de maneira trágica.
Outra liderança que foi de suma importância na luta pelos direitos
dos povos indígenas foi o xavante Mário Juruna, ele foi o primeiro deputa-
do federal indígena, sua trajetória evidencia a dificuldade de articulação de
um indígena em um modo de fazer política que não lhe é, a princípio, pró-
prio. Juruna morreu em 17 de julho de 2002, em decorrência de diabetes.

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PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE
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DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

Um fato singular que marcou o Movimento Indígena foi a denúncia


realizada por Marçal ao papa João Paulo II. A particularidade do encontro,
no contexto das assembleias indígenas, foi em caráter de denúncia. Não
foram apenas questionar a ação da Igreja do passado e presente, tampou-
co foram ao encontro para beijar a mão do pontífice, mas desejaram de-
nunciar as injustiças que estavam ocorrendo naquele contexto político do
Brasil. Em seguida, o discurso do líder indígena Marçal de Souza Tupã-Y ao
papa João Paulo II, em sua vinda ao Brasil no ano de 1980.

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Fonte: Boletim do Cimi, 1980.

Apesar das perdas e perseguições, o mover indígena de modo po-


lítico e articulado representou um marco na história dessas populações,
surgindo como

(...) uma resposta à lógica da destruição orquestrada pelo governo militar e


que respondia a uma exigência do modelo econômico vigente, que tinha
como base o desenvolvimento a todo custo. O enfretamento que foi propos-
to passava por um sonho de autonomia, de autossustentabilidade, de auto-
governo. E para que este sonho minimamente se conformasse, foi necessário

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PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE
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DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

o domínio dos instrumentais próprios do Ocidente, que foram trazidos, em


grande maioria, pela escola e pelas instituições religiosas – aparelhos ideo-
lógicos do Estado – cada vez mais presentes nas aldeias indígenas brasileiras
(MUNDURUKU, 2012, p. 195).

Diversos outros pesquisadores e antropólogos se somaram a esse


amplo movimento surgido em torno das ações contra a “emancipação” e
tiveram atuação expressiva na Assembleia Nacional Constituinte (1987-
1988), quando os direitos à terra e à reprodução física e cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições, foram garantidos. A veemência aderida
pelas lideranças indígenas de todo o país resultou na construção da pro-
posta das Emendas Populares relativas aos direitos indígenas, apresenta-
das na Assembleia Nacional Constituinte, através de audiências públicas,
dos acampamentos em Brasília, das sensibilizações dos deputados cons-
tituintes, até conquistarem a aprovação do “Capítulo dos Índios” que con-
templasse suas principais reivindicações.
O Capítulo reconhece os direitos originários dos povos indíge-
nas aos seus territórios e de viverem de acordo com as suas tradições,
ancestralidades e costumes, responsabilizando o Estado brasileiro pela
demarcação de suas terras. Além disso, é abolida a tutela, tornando visível
à sociedade brasileira nesse processo de participação no cenário cons-
tituinte, confirmando a existência dos povos indígenas que, contrarian-
do as intencionalidades do Estado, não desapareceram. O antropólogo
Gersen Baniwa sistematiza os seguintes direitos reconhecidos aos povos
indígenas pela Constituição:

1. Sujeitos individuais e coletivos de direito e de cidadania plural – capaci-


dade civil.
2. Reconhecimento e promoção das organizações sociais, costumes, línguas,
tradições e crenças (sistemas jurídicos, políticos, socioculturais, econômi-
cos, religiosos etc.).
3. Direitos originários e imprescritíveis sobre as terras indígenas tradicionais,
a serem regularizadas pelo Estado, em forma de posse permanente.
4. Usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos das terras
indígenas.
5. Uso das línguas maternas e dos processos próprios de produção, reprodu-
ção e transmissão de conhecimentos (processos próprios de aprendiza-
gem) (BANIWA, 2012, p. 215-216).

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A mudança de rumos da luta indígena atingiu também jornalistas


audazes que levaram ao público brasileiro a calamitosa situação dos povos
indígenas e a realização das Assembleias Indígenas. E na sociedade civil,
em especial nas universidades públicas, criaram-se mais de uma dezena de
entidades de apoio ao indígena. Foi este mutirão de forças que mudou o
quadro desesperador dos povos indígenas brasileiros condenados ao ex-
termínio. Animou a consciência desses povos, reafirmando a sua identidade
e, como consequência, fez crescer a solidariedade entre as etnias indígenas
e entre os segmentos oprimidos da sociedade nacional. O resultado foi a
transformação da realidade indígena nacional. Mudança que tornou a dé-
cada de 70, em plena ditadura civil- militar, o período mais esperançoso da
História Indígena dos últimos 500 anos. O sucesso das assembleias indíge-
nas e suas consequências positivas nas comunidades contagiaram as forças
vivas da nação brasileira.
O resultado da conexão entre os povos indígenas brasileiros é visí-
vel quando comparamos a estimativa da população ao longo da história do
Brasil, através dos dados apresentados no texto de Egydio Schwade (1978),
O movimento indígena no Brasil: da tutela ao protagonismo. Segundo dados
expostos no escrito, no ano de 1500 existiam nas terras brasileiras cerca
de 10.000.000 de indígenas; após pouco mais de 400 anos, mais precisa-
mente em 1922, a população foi contabilizada em cerca de 1.250.000 povos
nativos; se passado somente 18 anos, no ano de 1940, esse número caiu
750.000, sendo aferida em 500.000; em 1957, o antropólogo Darcy Ribeiro
estimou a população originária entre 68.100 a 99.700; após a organização
do movimento indígena o Cimi contabilizou, em 1978, um crescimento po-
pulacional, chegando a 220.000 e em 2010, através do censo realizado pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem aproximada-
mente 817.963 indígenas.
Diante desses dados, o sangue derramado pelos atores sociais
sobre os quais lanço a análise desta pesquisa, ao longo de cinco séculos,
começa a ser valorizado por meio dos esforços militantes, abrindo novos
horizontes e somando forças numa história de esperança. Os mártires
indígenas, sacrificados em defesa da sua terra e de sua autodeterminação,
continuam caindo, como nos séculos anteriores, mas a valorização desse

130 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE
ARTICULAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA LUTA PELOS
DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

sacrifício e a sua celebração ficou diferente. O abandono pela causa dessas


nações começa a ter repercussão internacional e efeitos na reconquista da
terra, na retomada da sua cultura, desembocando na (re)existência e resis-
tência dos modos de ser que sempre lhes foram próprios.
Expandindo o pensamento, acredito que a força de insistência pelo
resgate de um saber empírico, pode ser muito bem analisada pelo viés do
filósofo Pierre Clastres, a partir do seu texto A sociedade contra o Estado
(1974). A linha de raciocínio formulada pelo estudioso é pautada em uma
sociedade que o político é imanente ao social, que não há sociedade sem
política, contudo “o Estado não é o lugar do poder; a sociedade o é”. Para ele,
o Estado é a expressão concreta da concessão de um poder soberano a
alguém, assumindo o poder total sobre uma organização social, existindo
acima do bem e do mal. A centralização do poder eurocêntrico nas so-
ciedades ditas primitivas, classificando-as como sem Estado, sem escrita,
sem história e sem economia, teria produzido, segundo o autor, um dis-
curso da “falta”, fazendo tais sociedades aparecerem nas literaturas, como
constituídas por “gentes sem fé, sem lei, sem rei”, tal formulação legitimou
a hegemonia do ocidentalismo sobre as sociedades primitivas. A política
exercida pelo Estado brasileiro, sobretudo no período militar, foi autoritária
e excessiva, em que o poder coercitivo ocupou as culturas, subjetividades e
epistemologias indígenas, chefiando-as opressivamente, roubando toda e
qualquer forma de autonomia e poder decisivo desses povos.
Desse modo, o levante político e articulatório das lideranças indíge-
nas mobilizou as sociedades étnicas contra um Estado genocida, que exer-
ce o poder com o fim de controlar e apagar as coletividades possuidoras de
valores subjetivos, mas que, organizadamente, reagiram por meio de um
poder não-coercitivo de ação política; com seu modo de ser político; com
suas intencionalidades de organização eminentemente política, implican-
do na recusa da centralização do poder coercitivo, exercido por instituições
e aparelhos estatais que dividem dominantes e dominados. Sendo assim,
o movimento indígena pode ser chamado como “sociedade contra o Es-
tado” pois percorreu o caminho desenhado por Clastres, contrapondo-se
às relações de comando-obediência, assentando-se como independente,
considerando seus modos de viver como um aparelho interno contra o

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 115-134, 2023 | 131


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dispositivo de guerra que concentra o poder, unificando e restringindo as


organizações indígenas.
É possível pensar também a organização política do Movimento
Indígena como uma “luta desarmada dos subalternos”, tendo em vista a
discussão proposta pelo professor e pesquisador Dr. Osmar Moreira dos
Santos (2016), pois, em meio a tantas formas de opressão e apagamento
gratuitas, os povos originários utilizaram do conhecimento genuíno, trans-
formando, transcendendo e desmontando as justificativas ideológicas for-
muladas pelo regime militar, fazendo fecundar condições de pensamento
para garantia dos seus direitos. Trazendo à tona o conceito de rizoma apre-
sentado por Delleuze e Guattari, Santos mostra que o saber é construído
por meio de ramificações, fluxos e multiplicidades, não possuindo uma raiz
ou centro único. Assim, o levante indígena funcionou como um rizoma,
uma vez que enfrentou os simulacros, por meio dos signos sociais, culturais
e ancestrais nos espaços sociais possíveis de proliferação, desorganizando
e desmantelando as estratégias de subalternização do sistema capitalista/
fascista/militar, evidenciando suas formas de existência e multiplicidade.
A barbárie que acometeu estes povos não os enfraqueceu, uma vez
que em meio a tantos retrocessos, encontraram espaço para a esperança
e pensaram de maneira coletiva em problemas comuns que afetavam a
todas as comunidades. Para Brighenti, a aliança entre diversos líderes indí-
genas “marcou uma nova forma de pensar a política indigenista no Brasil,
podendo ser considerado um marco também da presença indígena na vida
política no país” (2015, p. 152). Pela primeira vez, existiu uma política indí-
gena fora da tutela do Estado, contrariando a Funai, para defender os seus
interesses, os seus territórios, tornando-se mais uma vez protagonistas de
sua história. Daniel Munduruku, analisa esta forma de organização indíge-
na da seguinte forma:

Organizar o movimento indígena num momento político complexo a partir


de uma compreensão limitada do sistema econômico e político da época,
servindo-se da parceria de entidades de defesa dos direitos humanos, foi um
passo importante para mostrar esta capacidade de renascer das cinzas num
país que já os tinha dado como incorporados ao sistema capitalista (MUN-
DURUKU, 2012, p. 42).

132 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PROTAGONISMO EPISTEMOLÓGICO INDÍGENA: MODOS DE
ARTICULAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E LEGITIMAÇÃO NA LUTA PELOS
DIREITOS ORIGINÁRIOS NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL-MILITAR

A resistência dos povos indígenas, que se faz presente desde os


tempos coloniais, ganhou força e aliados, consolidando a luta pelos seus di-
reitos e redescobrindo a capacidade de serem os sujeitos de seus destinos.
Mesmo devastados pelos interesses políticos e econômicos da ditadura ci-
vil-militar, romperam o silenciamento e concretizaram atitudes de defesa da
vida, tradição, ancestralidade e cultura que evitaram o fim dos seus povos.

Considerações finais

A trajetória dos povos indígenas no processo de formação da iden-


tidade nacional, foi repleta de tragédias, derrotas, violências físicas, psico-
lógicas e legais, mas também houveram as vitórias, pois pequenos grupos
humanos enfrentaram, com estoicismo, inteligência e união, uma força do-
minante mais poderosa, que pretendeu, com esforço calculado, subjugá-
-los e empobrecê-los sob a promessa de uma vida melhor (VALENTE, 2017,
p. 12). Nesse processo, os povos indígenas emergem, não como cifras, mas
como interlocutores sociais que seguem e/ou contestam a política estatal,
criando novas possibilidades, reivindicando seus direitos e mostrando ao
Estado que são capazes de se articular e driblar os mecanismos de poder
que lhe são impostos. Pouco a pouco, os indígenas sobreviventes recupe-
raram a vontade de ocuparem e permanecer em suas terras, valorizando as
suas culturas, contrapondo ao processo de civilização e ao genocídio a qual
estavam sendo acometidos.
O levante indígena de modo político e articulado, culminou na cria-
ção do Movimento Pan-indígena, dando forma e politizando o genocídio
contra os povos matriarcais do Brasil, em que se tornou possível ressignificar
e resgatar as formas de ser e viver, de acordo com suas subjetividades e co-
letividades, mostrando que podem ser sujeitos dos seus próprios destinos.

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Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p135

AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA EDUCAÇÃO


ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

Manoel Inácio de Oliveira1


Jocilene Gomes da Cruz2

Resumo: A atuação do Movimento Indígena do Amazonas vem surtindo efei-


to na implementação da Educação Escolar Indígena (EEI) enquanto modali-
dade educacional. Nesse contexto, a atuação desse Movimento destaca-se
pela ação decolonial na garantia de direitos constitucionais dos indígenas,
configurando-se como importantes no Amazonas. O objetivo deste trabalho
é refletir sobre a atuação desse Movimento, com a dimensão da decoloniali-
dade, e as conquistas legais que culminaram com a aprovação de legislações
que garantem uma educação escolar diferenciada. A metodologia se funda-
menta na abordagem qualitativa, mediante triangulação envolvendo pesqui-
sa bibliográfica, documental e pesquisa de campo. Na pesquisa de campo,
realizou-se um percurso constituído por entrevista semiestruturada via plata-
formas digitais, Google Meet e WhatsApp. O trabalho evidencia que a EEI vem
avançando, mas precisa superar desafios para que os indígenas tenham uma
EEI diferenciada e específica como regem as legislações.
Palavras-chave: Decolonialidade. Educação. Indígenas. Políticas públicas.

DECOLONIAL ACTION OF THE INDIGENOUS MOVEMENT AROUND


INDIGENOUS SCHOOL EDUCATION IN MANAUS-AM

Abstract: The work of the Indigenous Movement of Amazonas has had an


effect on the implementation of Indigenous School Education (ISE) as an edu-
cational modality. In this context, the performance of this Movement stands
out for its decolonial action in guaranteeing the constitutional rights of in-
digenous people, becoming important in the Amazon. The objective of this
work is to reflect on the performance of this Movement, with the dimension
of decoloniality, and the legal achievements that culminated in the approval
of legislation that guarantees a differentiated school education. The metho-

1. Mestre em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências


Humanas – PPGICH/UEA, Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Cultura Ama-
zônica-NEICAM/UEA, Manaus, Amazonas, Brasil. Endereço eletrônico: manoelfides@gmail.com.
2. Doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia (UFAM), Professora titular
da Escola Superior de Artes e Turismo-ESAT/UEA, Universidade do Estado do Amazonas – Ma-
naus, Amazonas, Brasil. Endereço eletrônico: jgcruz@uea.edu.br.

[Recebido em: 29 mai. 2023 – Aceito em: 15 set. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 135


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

dology is based on a qualitative approach, through triangulation involving


bibliographical and documentary research and field research. In the field re-
search, a route consisting of a semi-structured interview was carried out via
digital platforms, Google Meet and WhatsApp. The work shows that the ISE
has been advancing, but it needs to overcome challenges so that the indige-
nous people have a differentiated and specific ISE as the legislation governs.
Keywords: Decoloniality. Education. Indigenous peoples. Public policies.

Introdução

Ao longo de anos, a escolarização dos povos indígenas passou por


diferentes políticas educacionais, desde as instituídas pelas missões religio-
sas jesuíticas, passando pela política do Marquês de Pombal (com o Dire-
tório dos Índios), pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), pela Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) até chegar ao Ministério da Educação (MEC),
atual responsável pelas decisões do ensino formal no Brasil, com reconhe-
cimento legal na Constituição Federal de 1988 (CF-88).
O presente artigo é resultante de pesquisa de mestrado realizada
no período de 2020 a 2022 que refletiu sobre a atuação dos Movimentos
Indígenas enquanto ação decolonial dos povos indígenas, e as conquistas
legais como a aprovação de legislações que garantem uma educação esco-
lar diferenciada. No presente trabalho, tomou-se para a análise o Decreto
nº 1394/2011, que cria a categoria Escola Indígena e o cargo de professor
indígena. Ao analisar tal legislação, não se fez uma leitura com viés ou lin-
guagem técnica do Direito, mas uma reflexão tendo em vista alguns desa-
fios da Educação Escolar Indígena no município de Manaus/ AM, como a
formação de professores indígenas, estrutura fica dos Espaços de Estudos
da Língua Materna e Conhecimentos Tradicionais Indígenas (EELCTI).
O trabalho está divido em três tópicos relacionados, sendo que o
primeiro traz uma breve reflexão sobre a colonialidade e decolonialidade,
para que seja possível adentrar no segundo tópico cuja reflexão se baseia
na ação do Movimento Indígena relacionado com a perspectiva decolo-
nial, sendo esta intrínseca das reivindicações e lutas dos povos indígenas
por autonomia e reconhecimento de direitos. Por fim, no terceiro tópico,
aborda-se alguns dos principais desafios que a Educação Escolar Indígena
no município de Manaus/AM vem enfrentando.

136 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

Propõe-se como recorte para uma análise mais verticalizada sobre a


temática, contextualizar a luta dos Movimentos Indígenas pela EEI diferen-
ciada e específica no município de Manaus, evidenciando as contradições
presentes nas legislações municipais, problematizadas a partir da visão dos
professores indígenas e de assessores pedagógicos da Gerência de Educa-
ção Escolar Indígena-GEEI que participaram da mobilização e implementa-
ção da Educação Escolar Indígena no município de Manaus/AM. A escolha
metodológica se fundamenta na abordagem qualitativa, mediante uma
triangulação envolvendo pesquisa bibliográfica, documental e pesquisa de
campo. No que tange a pesquisa de campo, realizou-se um percurso cons-
tituído por entrevista semiestruturada com os sujeitos da pesquisa (Coor-
denação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), o Fórum de
Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (FOREEIA). A mediação
em campo se deu por meio virtual, quando utilizamos as plataformas digi-
tais, tais como WhatsApp e Google Meet, atentos a todos os cuidados para
manter o sigilo e a confidencialidade dos participantes.

Breves reflexões sobre a decolonialidade

Entender a noção de decolonialidade (pensamento/ação decolo-


nial) não é tarefa simples uma vez que a reflexão sobre o termo pode ser
considerada nova no meio acadêmico, tendo ainda muito a ser estudado
e discutido. Aderir a um pensamento e agir de forma decolonial torna-se
ainda mais desafiador, tendo em vista a vivência de séculos sob as bases
epistemológicas ocidental, cuja ideologia de um conhecimento, suposta-
mente verdadeiro, único, reverbera no imaginário das pessoas em virtude
do processo de colonização/escolarização.
A discussão sobre decolonialidade está intrinsecamente ligada à
discussão sobre colonialidade, teoria estudada e discutida principalmente
pelo grupo (Rede) Modernidade/Colonialidade (Rede M/C)3, cujo uma das
definições é que a colonialidade:

3. A Rede M/C foi criada em 1998 por um grupo de pensadores intelectuais latino-americanos,
a partir de vários encontros e seminários, após a desagregação do Grupo Latino-americano de
Estudos Subalternos (BALLESTRIN, 2013).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 137


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

[…] se refiere a un patrón de poder que emergió como resultado del colo-
nialismo moderno, pero que en vez de estar limitado a una relación formal
de poder entre dos pueblos o naciones, más bien se refiere a la forma como
el trabajo, el conocimiento, la autoridade y las relaciones intersubjetivas se
articulan entre sí, a través del mercado capitalista mundial y de la idea de
raza (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).

A partir da fala do autor, percebe-se que há uma espécie de hie-


rarquização social, cultural e política na lógica capitalista que reforça e
sustenta a colonialidade perpetuando um processo colonizador para
além do fim do período colonial, com novos mecanismos, pois apesar
de não haver soberania de uma nação sobre outra, há forte influência
de poder.
O autor explicita que a colonialidade está presente na atuali-
dade e que a respiramos cotidianamente, estando presente nos ideais
subjetivos de sucesso, nas relações pessoais e até “[…] en manuales de
aprendizaje, en el criterio para el buen trabajo académico […]” (MALDO-
NADO-TORRES, 2007, p. 131).
Trabalhada por Wallerstein e posteriormente (re)tomada por Aní-
bal Quijando, o conceito de colonialidade é ampliado quando a ela é cria-
da a ideia de colonialidade do poder, do saber e do ser.

La colonialidad […] se funda en la imposición de una clasificación racial/


étnica de la población del mundo como piedra angular de dicho patrón
de poder, y opera en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, ma-
teriales y subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala social. Se origina y
mundializa a partir de América. […] con América (Latina) el capitalismo se
hace mundial, eurocentrado y la colonialidad y la modernidad se instalan,
hasta hoy, como los ejes constitutivos de este específico patrón de poder
(QUIJANO, 2007, p. 93).

Nesse sentido, não se pode afirmar que a colonialidade inicia após


o fim do sistema colonial, mas presente desde o início da colonização na
América (Latina). A sua expressão na atualidade manifesta-se pela hie-
rarquização das relações pessoais, do trabalho, da subjetividade. A partir
desse entendimento, a decolonialidade (enquanto resistência) faz parte
desse acontecimento histórico colonizador. Ela está para além do que foi
a colonização/colonialidade (tido como acabado).

138 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

A decolonialidade pode ser considerada, segundo Walsh (2009),


como um projeto de luta contra a violência hegemônica da ciência moder-
na, das epistemologias eurocêntricas. Em suma, deixar de ser colonizado.
Ela é parte de um posicionamento contra qualquer forma de descrimina-
ção, poder abusivo, controle sociocultural e político. Em outras palavras:

la decolonialidad propone una postura ofensiva de intervención, transgre-


sión y construcción. Una ofensiva que posibilita, viabiliza y visibiliza, por un
lado, las concepciones, prácticas y modos de ser, estar, pensar y vivir de ca-
rácter decolonial actualmente existentes, haciendo que ellos abran procesos
de enseñanza, des-aprendizaje y reflexión, no como nuevos modelos para
ser reproducidos sino como bases para la deliberación, el cuestionamiento y
el enfrentamiento con nosotros mismos y con las concepciones, prácticas y
modos modernos, capitalistas, occidentales, y crecidamente alienantes –en-
tre otros– del vivir cotidiano. Concebida de esta manera, la decolonialidad
no es un nuevo paradigma (o “paradogma”), tampoco una nueva invención
teórico-ideológica sino una manera de nombrar un proyecto centenario con
su reciente re-in-surgir (WALSH, 2009, p. 234).

Entendido dessa forma, a decolonialidade não diz respeito apenas


a reflexões acadêmicas, mas de ações de (re)existência dos povos que fo-
ram colonizados, que passam a assumir o controle e o curso de sua pró-
pria existência. O próximo tópico traz uma abordagem concernente a ação
do Movimento Indígena (Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e
Entorno (Copime) e do Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do
Amazonas (Foreeia)) entendida enquanto ação decolonial em defesa da
Educação Escolar Indígena no município de Manaus/AM.

A ação do Movimento Indígena no município de Manaus/AM: uma


análise a partir da perspectiva decolonial

A noção de decolonialidade, conforme já ressaltado, remete ao sen-


tido de “intervenção”, “transgressão” e “construção” (WALSH, 2009), a partir
daqui destaca-se algumas ações presente no âmbito da Educação Escolar
Indígena no município de Manaus/AM, particularmente as empreendidas
por meio das organizações políticas indígenas formais, dentre elas as Orga-
nizações, Associações e Coordenações Indígenas juridicamente constituídas.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 139


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

A ação decolonial diz respeito a um tipo de ação que busca rom-


per com àquelas perpetradas na sociedade, cuja premissa é a dominação
de um conhecimento, supostamente superior aos demais. Portanto, a ação
decolonial produz um movimento de lugar de fala, ou seja, da evidenciação
dos diferentes e importantes sujeitos e saberes que foram silenciados pelas
ideologias da colonialidade.
Pode-se afirmar que a decolonialidade é parte integrante das lu-
tas dos povos indígenas desde sempre, não é algo novo. Está presente nas
tentativas de intervirem nas decisões políticas que lhes atingem, de reivin-
dicarem seus direitos constitucionais, de não serem subalternizados, etc.
Por esse prima, pode-se dizer que o Movimento Indígena tem suas ações
sustentadas pelas teorias decoloniais, ainda que sem as conhecerem.
Embora a Educação Escolar Indígena no município de Manaus já
tenha um caminho percorrido com avanços e conquistas, há desafios a se-
rem trabalhados tanto pelos povos indígenas quanto pelo poder público
municipal, pois esta modalidade educacional no sistema de ensino do mu-
nicípio, é considerada recente, um modelo em construção, adequando-se
às necessidades sociocultural e política das comunidades indígenas que
residem no município de Manaus.

[…] nós pleiteávamos um assento no Conselho Municipal de Educação. Des-


de 2014 nós temos como estratégia fazer parte desses espaços para […] levar
nossas principais demandas aqui de fora. E por incrível que pareça, o Conse-
lho Municipal de Educação não tinha representação indígena […]. É preciso
discutir a situação da Educação Escolar Indígena dos povos que vivem aqui
na cidade de Manaus. Nós encaminhamos documentos para o Conselho
Estadual de Educação Escolar Indígena […] para falar dessa temática. E aí
nosso pedido foi indeferido. Indeferido porque já se diziam que tinha muita
representação lá que poderiam falar pelos povos que vivem na cidade. Mas,
é uma coisa que nós brigamos muito, porque nenhuma organização que está
dentro do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena traz a pauta dos
povos que vivem na cidade (COPIME, 2021, p. 2).

Importante salientar que essa fala chama a atenção para a discus-


são da EEI na área urbana da cidade de Manaus, pois pelo fato de já haver
Escolas Indígenas nas comunidades indígenas (entorno da cidade), todas
as ações referente a esta modalidade educacional deixava de fora os indí-
genas que estudavam na cidade, refletindo uma mentalidade que conside-
ra os indígenas na cidade como um não-indígena.

140 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

A afirmação “É preciso discutir a situação da Educação Escolar Indí-


gena dos povos que vivem aqui na cidade de Manaus” (COPIME, 2021, p. 2)
demonstra duas situações que pode ser inserida nas discussões sobre a co-
lonialidade: a) a tentativa de apagamento identitário dos povos indígenas
que vivem na cidade (fora das comunidades/aldeias) enquanto negação
sistemática do “outro”; b) considerar os “outros” (indígenas) como inferio-
res/incapazes de tomar suas próprias decisões.
O trabalho realizado pela Copime, dentro da ótica de uma ação de-
colonial, segundo Silva (2019, p. 98) “[…] dar voz e visibilidade aos povos
indígenas que vivem no contexto urbano, no qual pode-se fazer um recorte
dos povos indígenas que vivem na cidade de Manaus e entorno”, corrobo-
rando com que Grosfoguel (2008) denomina de “lugar epistêmico” ao criti-
car a separação dos saberes e do lugar dos povos indígenas, contribuindo
para uma invisibilidade e desmerecimento dos conhecimentos tradicionais
e científicos dos povos. Para o autor:

Ao quebrar a ligação entre o sujeito da enunciação e o lugar epistêmico ét-


nico/racial/sexual/de gênero, a filosofia e as ciências ocidentais conseguem
gerar um mito sobre um conhecimento universal verdadeiro que encobre,
isto é, que oculta não só aquele que fala como também o lugar epistêmico
geopolítico e corpo-político das estruturas de poder/conhecimento colonial,
a partir do sujeito que se pronuncia (GROSFOGUEL, 2008, p. 119).

Nesse sentido, a Copime se coloca numa posição que reivindica


e defende os direitos de uma EEI na cidade, não somente por questões
de direitos, mas pela construção e valorização de epistemologias deco-
loniais e locais.
Santos (2012), ao analisar as reivindicações dos povos indígenas em
relação à Educação Escolar Indígena, afirma que os movimentos indígenas
normalmente são os que tomam a iniciativa em manifestar o interesse por
tal modalidade educacional. Em suas palavras, a autora assinala que:

[…] o cumprimento do direito à educação escolar indígena, que atenda aos


interesses e às necessidades coletivas das etnias, mesmo que não estejam
em suas respectivas terras tradicionais, requer, em muitos contextos, que os
movimentos indígenas reivindiquem e demonstrem interesse por essa esco-
la com programas, currículos e materiais didáticos específicos e diferencia-
dos para os indígenas (SANTOS, 2012, p. 71).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 141


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

A ação de reivindicação da Copime (enquanto Movimento Indíge-


na) demonstra uma atitude decolonial, pois os indígenas ao perceberem
que as ações políticas não fazem sentido para eles, assumem a postura de
reconstruir uma realidade que se adeque às necessidades e formas de ver o
mundo deles. Atitude também realizada pelo Fórum de Educação Escolar e
Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia).
Criado e constituído (em maioria) por indígenas, (professores, co-
ordenadores de Organizações Indígenas, lideranças, etc.) o Foreeia conta
com a participação de pessoas não-indígenas como apoiadores e colabora-
dores, desde professores, pesquisadores, indigenistas, simpatizantes, etc. A
atuação volta-se especificamente para a área da educação escolar indígena
no âmbito do estado do Amazonas, pois até então não havia nenhuma re-
presentatividade nesse campo. De acordo com a coordenadora do Foreeia,
após a criação do mesmo:

Começou a fazer um trabalho com os indígenas, junto com os municípios


através dos coordenadores municipais de educação escolar indígena, sem-
pre falando que a nossa luta vem a partir de uma luta indígena lá atrás. A co-
meça a conquistar as coordenações municipais de educação; a gente come-
ça a falar que tem que criar as coordenações municipais de educação escolar
indígena no âmbito mais governamental (FOREEIA, 2022, p. 2).

A necessidade de uma relação política com instâncias governamen-


tais (estadual, federal e municipal) torna-se evidente a partir da urgência
em criar essas organizações indígenas formais. Essa atitude demonstra uma
resiliência com que o Movimento Indígena possui frente à políticas anti-in-
digenistas. O que está por trás dessa consciência caracteriza-se como uma
“[…] necessidade de romper a barreira que ainda imperava e que mantinha
os povos indígenas numa situação de tutelados, incapazes de gerenciar seu
próprio destino” (MUNDURUKU, 2012, p. 57).
A participação política do Movimento Indígena manifesta-se como
uma tentativa de rompimento da colonialidade, que também ocorreu de
forma epistêmica, com a hierarquização do conhecimento dentro de uma
visão eurocentrada, universalizada. Dávalos (2005) afirma que essa partici-
pação causa um choque no interior do pensamento neoliberal, pois estima-
-se que dentro de uma concepção eurocêntrica do conhecimento não haja

142 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

espaço para o saber dos povos não europeus (neste caso, os povos indíge-
nas sobre o qual estamos refletindo). Neste sentido, Dávalos (2005, p. 19)
afirma que “si esta hipótesis es correcta […] los tiempos actuales se presen-
tan como cruciales y de sobrevivencia, es decir, como tiempos de guerra”.
Nesse processo de despertar para a situação que estão vivendo e
sobre as imposições do Estado, a Copime e o Foreeia (enquanto Movimento
Indígena) fortalecem uma consciência política nos indígenas, favorecendo
a articulação coletiva e suas reivindicações frente ao Estado. As ações des-
ses dois movimentos tem papel fundamental na implementação e revitali-
zação da Educação Escolar Indígena (EEI), ainda que a própria escolarização
dos professores indígenas seja em escolas e universidades não-indígenas.
A COPIME e o FOREEIA (Movimentos Indígenas) ao perceberem que
o mundo (colonizado) em que vivem já não faz mais sentido e, que se per-
cebem não pertencente a esta realidade, agem para encontrar (ou criar) a
realidade que se adeque à sua nova forma de ver e pensar o mundo. Nesse
sentido, considera-se essencial “el cambio de la actitud natural racista o in-
dividualista de la modernidad a la actitud des-colonial de cooperación en
la ruptura con el mundo de la muerte colonial es el momento más funda-
mental del giro des-colonial” (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 67).
Verifica-se que a ação decolonial empreendida pelos Movimentos
Indígenas COPIME e FOREEIA, relaciona-se com uma das características da
decolonialidade trabalhada por Maldonado-Torres (2008). O referido autor
destaca o reconhecimento da multiplicidade de formas coloniais de poder,
que marcou (e ainda marca) a vida de milhares de indivíduos, e que es-
ses projetos de morte ajudam a entender as formas modernas de poder
e como elas agem na sociedade, tendo a possibilidade para propor novas
alternativas de combate a esses projetos. O que está por trás dessa consci-
ência caracteriza-se como uma “[…] necessidade de romper a barreira que
ainda imperava e que mantinha os povos indígenas numa situação de tu-
telados, incapazes de gerenciar seu próprio destino” (MUNDURUKU, 2012,
p. 57). Nesta perspectiva, entende-se que a decolonialidade não pode ficar
apenas nas reflexões acadêmicas, pensando num universalismo epistêmi-
co, caso contrário, estar-se-ia criando uma nova colonialidade do saber,
pois o pensamento decolonial visa superar todo e qualquer universalismo
que se pretenda impor, incluindo o próprio pensamento decolonial.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 143


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

Reflexões sobre alguns desafios da Educação Escolar Indígena no mu-


nicípio de Manaus

Tratando-se de questões legais, documentos jurídicos, a partir


do ano de 2011, o município de Manaus estruturou algumas legislações
referentes à Educação Escolar Indígena, a saber: O Decreto Municipal nº.
1.394/2011; A Lei nº 1.893/2014; Lei nº 2000/2015 e a Lei nº 2.781/2021. São
documentos legais que amparam a implementação da modalidade da EEI
no município de Manaus, bem como dá possibilidades para a execução de
políticas públicas em vista de uma escolarização especializada e diferente
do modelo não indígena. No quadro 1, pode ser observadas as legislações
e suas disposições.
Quadro 1: legislações para a Educação Escolar Indígena em Manaus/AM (2011-2021)

Nº Legislação Definição

01 Decreto Municipal “Dispõe sobre a criação e o funcionamento de escolas indígenas e o


nº. 1.394, de 29 de reconhecimento da categoria de professores indígenas no Sistema de
setembro de 2011 ensino municipal no âmbito do município de Manaus”.

02 Lei nº 1.893, de 23 de “Altera a denominação das escolas municipais que específica e dá


julho de 2014 outras providências”.

03 Lei nº 2000, de 24 de “Aprova o Plano Municipal de Educação do município de Manaus e dá


junho de 2015 outras providências”.

04 Lei nº 2.781, de 16 de “Dispõe sobre a criação da categoria Escola Indígena Municipal, dos
setembro de 2021 cargos dos profissionais do magistério indígena, da regularização dos
espaços de estudos da língua materna e conhecimentos tradicionais
indígenas na rede municipal de ensino da Secretaria Municipal de Edu-
cação, no âmbito do município de Manaus, e dá outras providências”.
Fonte: dados da pesquisa (2021)

O referido quadro com as legislações foi elaborado pelo pesquisa-


dor a partir da pesquisa bibliográfica realizada na internet. As “definições”
estão citadas entre aspas devido serem copiadas conforme a redação de
cada legislação. Há, no município de Manaus quatro (04) Escolas Indígenas
Municipais (EIM) localizadas nas comunidades Terra Preta e São Tomé (no
Rio Negro) e nas comunidades Três Unidos e Nova Esperança (no Rio Cuiei-
ras) (OLIVEIRA; RIBEIRO, 2021). Essas EIM são classificadas como diferencia-
das, pelo fato de possuírem “[…] normas e ordenamento jurídico próprios
e diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngue […]” (MANAUS,

144 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

2011, Art. 1º, Parágrafo único). No entanto, nota-se o que parece ser uma
contradição quando no Art. 3º versa que as Escolas Indígenas devem “obe-
decer” aos princípios que estão dispostos no referido artigo para poderem
se organizar como Escola Indígena diferenciada.

Art. 3º Para sua organização, as escolas indígenas deverão obedecer aos se-
guintes princípios:
I - reconhecimento e respeito à diversidade étnica, cultural e linguísticas dos
povos e comunidades indígenas;
II - valorização dos conhecimentos e saberes tradicionais;
III - valorização e fortalecimento das culturas indígenas;
IV - diversidade de concepções de ensino e de aprendizagem;
V - gestão participativa. (MANAUS, 2011, Art. 3º).

Se as Escolas Indígenas possuem, de acordo com o citado Decreto,


autonomia jurídica para estabelecerem suas normas e ordenamento, sua es-
trutura e seu funcionamento, então por que o governo municipal determina
a obediência aos princípios contidos no artigo 3º? É (im)posto, nos Art. 4º e 5º
os objetivos das escolas indígenas e os elementos básicos para organizá-las.
No Art. 6º, novamente discorre sobre “Organização própria, autô-
noma, específica e diferenciada […]” (MANAUS, 2011, Art. 6º), no entanto,
tem-se uma “imposição” quanto aos cumprimentos das prerrogativas legais
para a implementação da Educação Escolar Indígena e a construção e fun-
cionamento de Escolas Indígenas no que tange aos objetivos:

I – o desenvolvimento de crianças, jovens e adultos, críticos e conscientes de


seu papel na vida de sua comunidade e de seu povo;
II – a formação de cidadãos para assumir seu papel de interação na sociedade
brasileira;
III – a consolidação de projetos societários dos povos e comunidades indíge-
nas; […]. (MANAUS, 2011, Art. 4º).

Por essas prerrogativas no Decreto percebemos que os povos indí-


genas possuem uma educação voltada para estes fins, bem como para (re)
afirmação identitária e comunitária. Neste sentido, a atuação do Movimen-
to Indígena tem presente que a consciência de responsabilidade para com
o povo e comunidade indígenas só poderá realizar-se por meio da escola se
esta for “[…] parte orgânica do plano ou projeto societário de vida de cada
povo” (LUCIANO, 2019, p. 64).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 145


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

Ainda conforme Luciano (2019) não há a necessidade de um distan-


ciamento entre os conhecimentos indígenas e os produzidos em escolas
não indígenas, pois há a necessidade de um diálogo entre ambos, o que
reverbera em uma forma mais humanizada e solidária de ver o mundo, ou
como o próprio autor fala “[…] a humanidade, na sua diversidade, poderia
ter uma visão mais binocular, mais completa e por isso mesma mais bela”
(LUCIANO, 2019, p. 65).
Nesse sentido, verificamos que a ação governamental não parece
ter a mesma visão de diálogo, pois o Decreto nº 1394/2011 estabelece a
autonomia para as escolas e comunidades indígenas, mas ao mesmo tem-
po lhes é imposto algumas determinações para a execução da educação
escolar nas escolas indígenas. Pelo caráter legal do documento em si, as
recomendações parecem ter fundamentos, entretanto se os povos indíge-
nas não participaram do processo de elaboração, então o poder público
municipal age com arbitrariedade para com a educação escolar indígena?
Talvez esse “dá e tira” de autonomia aos povos indígenas para gerirem as Es-
colas Indígenas e a Educação Escolar Indígena advenha em virtude de que:

Os sistemas de ensino dos municípios, dos estados e da União nunca foram


pensados para dar conta dessa diversidade, mas sim para pensar a nação, o
município, o estado. Daí cada vez mais todo mundo é convencido de que há
a necessidade de pensar uma organização de sistema próprio de educação
escolar indígena (LUCIANO, 2012, p. 147).

Pelo exposto percebe-se certa verticalização nas tomadas de de-


cisões para a EEI por meio referido Decreto n. 1394/2011, o que pode ser
entendida como uma estratégia governamental inserida dentro do discurso
da colonialidade do poder/saber, onde há forte compreensão de que os po-
vos indígenas sejam “incapazes” de se autogovernarem, ocasionando assim
estratégias de apropriação da autonomia e dos espaços educativos. Nesse
sentido, a participação social do Movimentos Indígenas traduz a soberania
dos povos indígenas face às necessidades de cada povo. O “despreparo” ou
o desconhecimento das reivindicações dos povos indígenas reverbera na
elaboração de políticas educacionais que não atendam às necessidades dos
povos indígenas e mostra a não clareza governamental quanto a identidade
de cada povo e a função das Escolas Indígenas em cada comunidade.

146 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

Outro ponto desafiador para a EEI é a questão de conceitos/defini-


ções sobre o que é Escola Indígena, Espaços culturais, etc, pois se não forem
bem esclarecidos podem ocasionar dificuldades para a operacionalização
da escolarização diferenciada/específica/bilíngue dos povos indígenas.
ainda no do Decreto nº 1394/2011 as Escolas Indígenas são classificadas
como “[…] espaços culturais e espaços educativos […]” (MANAUS, 2011,
Art. 8º). Santos (2012) ao falar sobre essas classificações explicita que:

Espaços culturais referem-se aos locais onde são realizadas atividades edu-
cacionais, como nas comunidades indígenas Tikuna, AMARN, Sateré Mawé.
Espaços educativos são as escolas municipais, localizadas em comunida-
des indígenas, onde os professores indígenas realizam suas atividades
(SANTOS, 2012, p. 94).

A respeito dessa definição cabe questionar, se nos “espaços cultu-


rais” ocorrem “atividades educacionais”, não seriam estes também “espaços
educativos”? O que fica claro, é que nos “espaços culturais” não ocorrem o
processo de escolarização. As duas categorias acima citadas, segundo Oli-
veira e Ribeiro (2021, p. 160) “[…] não especificam a função e as atribuições
desses espaços”.
No sentido de definição de Escolas Indígenas (EIs) são pertinentes
observações que afirmam que “a escola é todo o espaço físico da comu-
nidade. Ensina-se a pescar no rio, evidentemente. Ensina-se a plantar no
roçado. Para aprender, para ensinar, qualquer lugar é lugar, qualquer hora
é hora” (MAHER, 2006, p. 17 Apud OLIVEIRA; RIBEIRO, 2021, p. 160). Tal en-
sinamento e aprendizado, diz respeito ao processo de Educação Indígena,
não de Educação Escolar Indígena. Se o “ensinar a pescar” e o “ensinar a
plantar” estiver relacionado com alguma teorização ou reflexão geográfica,
biológica configura-se como Educação Escolar Indígena. No entanto, com
essa reflexão, o autor atribui à escola outro sentido além da que já está
estabelecido. Não se ensina apenas na escola.
Brandão (2007) também comunga dessa reflexão. Para ele “[…] a
escola não é o único lugar onde ela [educação] acontece e talvez nem
seja o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e a professora
profissional não é o seu único praticante” (BRANDÃO, 2007, p. 9). O autor
afirma ainda que:

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 147


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

A educação existe onde não há escola e por toda parte pode haver redes e
estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra onde
ainda não foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal e
centralizado. Porque a educação aprende com o homem a continuar o tra-
balho da vida. A vida que transporta de uma espécie para a outra, dentro da
história da natureza, e de uma geração a outra de viventes, dentro da história
da espécie, os princípios por meio dos quais a própria vida aprende e ensina
a sobreviver e a evoluir em cada tipo de ser (BRANDÃO, 2007, p. 13).

Ainda sobre a necessidade de melhores definições, na cidade de


Manaus, os “espaços culturais” são conhecidos também como Centros Mu-
nicipais de Educação Escolar Indígena (CMEEI), no entanto, a partir da Lei
n. 2781/2021 os mesmos são denominados de Espaços de Estudos da Lín-
gua Materna e Conhecimentos Tradicionais Indígenas – EELCTI. Nas Dire-
trizes Pedagógicas da Educação Escolar Indígena no município de Manaus
(DDPEEIM) esses espaços são “estruturas físicas com nomes na língua indí-
gena e com a função de atribuir sentidos de encontros de referência étnicas
[…] na estrutura institucional de ensino municipal” (MANAUS, 2017, p. 62).
Fica evidente que nos EELCTI não ocorrem uma educação escolar,
mas Educação Indígena com elementos escolares, como por exemplo, pla-
nos de aula, diários para presença, relatórios, planos pedagógicos. Essa forma
de organização é em virtude de haver um acompanhamento dos profissio-
nais da Gerência de Educação Escolar indígena (GEEI), conhecidos como As-
sessores Pedagógicos, ligados à Secretaria Municipal de Educação (SEMED).
A Educação Escolar Indígena específica, como exigem os movimen-
tos indígenas, tem que ser diferenciada desde o início da discussão para
implementação da modalidade até a prática pedagógica em sala de aula,
nas atividades escolares, nos currículos, na gestão e arquitetura da escola, e
para isso concordamos com Luciano (2013) ao falar da importância da atua-
ção dos Movimentos Indígenas e das comunidades para a realização desse
projeto diferenciado, pois os avanços acontecem em função do:

[…] novo papel das comunidades indígenas, fortalecidas com o crescente


protagonismo indígena na condução local da gestão e do processo pedagó-
gico das escolas. A grande maioria dos professores, gestores e técnicos que
trabalham nas escolas das aldeias são indígenas que podem fazer a diferença
no campo do fazer pedagógico e na gestão da escola indígena. […] O pro-
tagonismo dos professores indígenas ainda é limitado, o que pode significar

148 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

a necessidade de melhorar e ampliar os seus processos de formação inicial


e continuada. Os professores, os gestores e as lideranças indígenas precisam
assumir e realizar a transformação da escola indígena para atender os an-
seios e os projetos societários de seus povos. (LUCIANO, 2013, p. 4).

A reivindicação dos Movimentos Indígenas para se construir Esco-


las Indígenas deve passar pela discussão e consentimento das comunida-
des, inclusive sobre a arquitetura que as escolas deveriam ter, levando em
consideração a dimensão sociocultural de cada povo.
Outros desafios presentes na EEI específica também dizem res-
peito à contratação de professores indígenas para atuarem nas Escolas
Indígenas Municipais (de ensino básico), e até o ano de 2021 a necessária
regularização dos EELCTI. Em entrevista realizada em 2021 com a coor-
denadora da COPIME em exercício, a regularização desses “espaços” era
importante em vista de outro desafio:

Tinha um grande problema aqui em Manaus […] que era a questão do re-
conhecimento da categoria de professor indígena. Tem os centros culturais
onde acontece a revitalização das línguas, mas não tem o reconhecimento
dos professores dessa categoria, e a precariedade de como funcionam os
centros culturais (COPIME, 2021, p. 2).

Nesse relato da coordenadora em exercício da COPIME, pode-se


fazer algumas considerações, a saber: a) o reconhecimento da categoria
do professor indígena. No Decreto n. 1394/2011 há a afirmação sobre esse
reconhecimento, apenas no início do texto, no entanto, nada mais é dito
sobre tal condição. O que leva a inferir que o reconhecimento dos profes-
sores indígenas vai além de constar em documento legal, mas passa pela
contratação, pela formação, planos de carreiras etc. Portanto, são desafios
ainda em via de serem resolvidos; b) há uma distinção entre a categoria
de professores indígenas que atuam nas EIM e aqueles que atuam nos
EELCTI, haja vista que o tipo de educação é diferente em ambos espaços;
c) as condições de funcionamento dos EELCTI para o ensino tradicional
indígena, pois no que diz respeito à infraestrutura desses espaços “tem
centro que é na cozinha. Tem centro que é no quintal. Tem centro que
o professor fez uma puxada do lado [da casa dele] e é o centro cultural”
(COPIME, 2021, p. 2).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 149


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

O fator agravante é que sem estrutura adequada os EELCTI deixam


de receber materiais da GEEI/SEMED-Manaus. Em entrevista, a coordena-
dora (na época) da GEEI/SEMED-Manaus afirmou que:

A SEMED, ela paga professor, ela dar merenda, ela dar material, ela dá mobili-
ário, mas o espaço físico é por conta da comunidade. E muitos não entendem
isso. […] eu sempre falo: cadê a contrapartida da comunidade? A contrapar-
tida da comunidade é o espaço físico. Dos vinte e dois (22) centros, apenas
cinco (5) passaram para receber material. Porque não tem infraestrutura. E
a COPIME, graças a Deus, concordou com a gente. Só vai receber material
quem melhorar a sua estrutura física” (GEEI, 2021, p. 3).

Se há EELCTI com uma infraestrutura inadequada deve-se ao fato


da falta de apoio financeiro às comunidades indígenas, para construir uma
estrutura física com sala, banheiro, cozinha etc. para a educação indígena,
bem como para as reuniões e encontros da comunidade. Sem condições
alguma, acabam com a responsabilidade de elas próprias construírem os
centros. Como não tem recursos financeiros, são obrigadas a “improvisa-
rem” tais espaços.
Mesmo diante de dificuldades financeiras, nota-se que as comuni-
dades indígenas possuem uma resiliência que ultrapassa os limites impos-
tos a elas. Resistem aos problemas e se reconfiguram com as soluções en-
contradas, tornando as comunidades mais fortes e resistentes, uma vez que
“as crises e as dificuldades da vida podem extrair o melhor de nós quando
enfrentamos os desafios” (WALSH, 2005, p. 7 Apud SOUZA, 2021, p. 78).
A força do(s) movimento(s) indígena(s) contribuiu para continuar
a reivindicação por uma Educação Escolar Indígena realmente diferencia-
da, específica. A regularização dos EELCTI nas comunidades da cidade de
Manaus além de se apresentar como uma necessidade política dos povos
indígenas, também, é uma estratégia necessária para não deixar acabar
anos de trabalhos e luta, pois conforme afirma Luciano (2006, p. 84) “na
atualidade, a principal dificuldade dos povos indígenas é manter e garantir
os direitos já adquiridos, além de lutar por outros direitos que ainda preci-
sam ser conquistados para consolidar a perspectiva étnica de futuro […]”.
Mediante a luta por uma escolarização diferenciada, os povos in-
dígenas tiveram uma importante conquista que foi a aprovação da Lei nº.
2781/2021, mediante atuação da COPIME e do FOREEIA que estiveram pre-

150 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

sente nas discussões para a criação da referida lei, com vista contribuir com
a garantia e melhoria de da EEI, reforçando a força que o Movimento Indí-
gena no Amazonas possui.
A Lei traz a esperança de uma escolarização melhor, a possibilidade
de autonomia pedagógica nas EIM’s, pois nas palavras do professor indí-
gena da etnia Tikuna, “com a lei aprovada nós vamos manter nossa língua,
resgatar nossas danças e costumes, fazer aquilo que é melhor e que estava
faltando.” (SERRÃO, 2021, p. 2).

O Art. 3º da Seção II dos princípios discorre sobre:


I. liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar o saber, respeitando os mecanis-
mos de conhecimento e de socialização próprios dos diversos povos, etnias e
aldeias indígenas, proporcionando a humanização crescente e a construção
da cidadania;
II. garantia a uma educação específica e bilíngue, adequada às peculiarida-
des das diferentes etnias e grupos indígenas;
III. Garantia da efetivação dos direitos civis, sociais e políticos dos povos indí-
genas, assegurando-lhes suas especificidades;
IV. gestão democrática comunitária, fundada na atuação conjunta entre es-
cola e comunidade indígena, garantindo a autonomia das comunidades na
definição de seus processos pedagógicos e uma educação específica com
preservação dos valores tradicionais;
V. garantia do reconhecimento do valor do profissional de educação indíge-
na, asseguradas pelas condições dignas de trabalho e a progressão na carrei-
ra, compatíveis com sua tarefa de educador;
VI. garantia de ensino por meio de Professores de preferência Indígenas, da
mesma etnia que os alunos;
VII. garantia plena dos princípios da interculturalidade, bilinguismo, multi-
linguísmo, especificidade, diferenciação e comunitarismo, fundamentos da
educação escolar indígena. (MANAUS, 2021, Art. 3º).

Esses são os princípios que fundamentam as pedagogias próprias


da educação escolar indígena nas EIM. Diante disso, cabe questionar se
a forma como está sendo pensada e planejada a EIM terá compatibilida-
de com a estrutura organizacional e administrativa do ensino escolar do
Estado (MEC, SEDUC, SEMED)? Como a educação escolar indígena possui
princípios diferentes do ensino escolar nacional, existem duas ideologias
diferentes e divergentes, ao que parece. É possível haver esse diálogo? Até
que ponto a EIM terá autonomia e liberdade pedagógica? Tais questiona-
mentos serão discutidos posteriormente.

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Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

Considerações finais

O presente trabalho, inserido dentro da temática da Educação Es-


colar Indígena no município de Manaus/AM, utilizou como recorte de re-
flexão a ação do Movimento Indígena com uma perspectiva decolonial,
bem como abordou alguns dos principais desafios desta modalidade edu-
cacional tendo em vista o Decreto n.1394/2011 (conquista da luta do Mo-
vimento Indígena) que até o presente momento vem sendo o principal do-
cumento legislador para a efetivação e normatização de uma escolarização
diferenciada para os povos indígenas da capital amazonense.
Associar a ação do Movimento Indígena com a perspectiva da de-
colonialidade partiu da própria reflexão acerca do pensamento decolonial
que visa o reconhecimento da autonomia de outros povos não-eurocêntri-
cos, bem como seu saber e novas epistemologias. Nesse sentido, afirma-se,
neste trabalho, que a decolonialidade não se restringe apenas à reflexão
acadêmica, mas é parte intrínseca de uma ação que vise romper com um
discurso e prática colonial que ainda perdura nos dias atuais por meio de
mecanismos políticos, sociais, econômicos, etc.
Entendendo a multiplicidade atual das formas coloniais de poder, a
COPIME e o FOREEIA (enquanto Movimento Indígena) vem atuando, tam-
bém, em favor de uma escolarização diferenciada que contribua, na luta
dos povos indígenas, contra projetos de morte que prejudicam milhares de
vidas indígenas. A decolonialidade do Movimento Indígena é uma tentativa
de criar/possibilitar novas alternativas a uma realidade excludente e racista.
Conclui-se que se os povos indígenas não reivindicarem uma Edu-
cação Escolar Indígena diferenciada, o governo municipal não executa
ações para garantir seus direitos constitucionais. Os entes federados de-
veriam cumprir a legislação sem a necessidade dos movimentos indígenas
cobrarem, após anos de exploração e dizimação étnica, expropriação terri-
torial, desmatamento, dentre outros, os direitos constitucionais dos povos
indígenas deveriam ser prioridades dos governantes.
Esta autoconsciência política é que concorre diretamente para a
ação decolonial dos Movimentos Indígenas (Copime e Foreeia), voltadas
proficuamente para o encaminhamento de uma vasta pauta de reivindica-

152 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


AÇÃO DECOLONIAL DO MOVIMENTO INDÍGENA EM TORNO DA
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA EM MANAUS-AM

ção face ao Estado. O ritmo e a intensidade destas mobilizações parecem


estar consolidando as referidas formas associativas e os critérios político-
-organizativos sobre os quais se estruturam.
De acordo com Ferreira (2001), com o surgimento das organiza-
ções, a partir de 1970, os povos indígenas começaram a ganhar força,
passando a ter mais visibilidade. A ideia era criar uma política indige-
nista alternativa à do Estado brasileiro, mobilizando e conscientizando
os povos indígenas para a valorização dos conhecimentos tradicionais.
Nesse sentido, com o apoio de parceiros indigenistas, encontros e As-
sembleias foram realizadas pelos povos indígenas que trouxeram as
“questões” indígenas para o centro das discussões políticas, mobilizando
a sociedade civil organizada.
Tratando-se dos desafios da Educação Escolar Indígena, a forma-
ção de professores é, talvez, um dos mais complexos, principalmente pela
logística dos mesmos para poderem cursar o ensino superior, e também
pela própria valorização da categoria, haja vista que apesar de o Decreto nº
1394/2011 mencionar o reconhecimento categoria desses profissionais, no
bojo de seus artigos (no corpo do decreto) nada fala sobre tal.
Destaca-se, também que apesar do reconhecimento da autonomia
jurídica das comunidades indígenas para a estruturação e o funcionamen-
to das Escolas Indígenas, o referido Decreto 1394/201, faz um jogo de “dá e
tira” tal autonomia, impondo condicionamentos para que a Educação Esco-
lar Indígena possa funcionar nas comunidades; Mesmo sendo o documen-
to legal que norteia a implementação e efetivação da Educação Escolar
Indígena no município de Manaus, o mesmo não tem força de Lei.
Em 2021 aprovou-se a Lei municipal Nº 2781/2021, importante con-
quista (cuja Copime e Foreeia estiveram envolvidas) que agrega força na
reivindicação e efetivação de uma escolarização diferenciada e específica
de acordo com as especificidade de cada povo.
Nesse cenário, enquanto elemento importante para o fortaleci-
mento étnico dos povos indígenas, a Educação Escolar Indígena revela-se
como estratégia positiva para “[…] consolidar a perspectiva étnica de futu-
ro” (LUCIANO, 2006, p. 84), trazendo esperança de um futuro melhor e mais
humano para os povos indígenas.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 135-157, 2023 | 153


Manoel Inácio de Oliveira e Jocilene Gomes da Cruz

Transferindo essa “responsabilidade” para o movimento Indígena,


há uma articulação coletiva e organizada politicamente dos povos indíge-
nas com o objetivo de romper as barreiras que impedem a garantia de seus
direitos, principalmente de gestar sobre suas formas pedagógicas próprias,
tendo a Educação Escolar indígena como um instrumento, também, de
reconhecimento do lócus de enunciação do sujeito, ou como Grosfoguel
(2008) chama de “lugar epistêmico”.
Ressalta-se que a ação do Movimento Indígena, aqui tratado, é uma
ação decolonial na tentativa de romper com a colonialidade ou com ações
que perpetram um pensamento hierárquico do saber não-indígena em re-
lação aos saberes indígenas. Além disso, é importante salientar que, mesmo
diante dos avanços políticos, pedagógicos, econômicos, a Educação Escolar
Indígena enfrenta desafios da mesma natureza, ocasionadas pelo modelo
político e pela falta de políticas públicas adequadas à sua efetivação, sendo
necessário, assim, que o Movimento Indígena caminhe para buscar superar
a fragilidade no regime de colaboração com os entes federados.
É necessário acreditar nos povos indígenas, estimular e possibilitar
oportunidades para que possam assumir a responsabilidade da efetivação
da Educação Escolar Indígena, sem excluir a colaboração do Estado (fede-
ral, estadual e municipal).

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156 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


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Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p159

DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA NOS


CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

Saionara Figueira Santos1


David Kaique Rodrigues dos Santos2
Shirley Vilhalva3
David Borges Limeira da Silva4

Resumo: Este texto tem como base norteadora o estudo sociolinguístico


que estuda a linguística considerando o contexto social e a relação entre a
linguagem e a sociedade. Importante destacar que a linguagem e os diver-
sos conhecimentos linguísticos é também sinônimo de identidade, ciência
e cultura. Através da linguagem criamos mecanismos de interação social e
transmitimos uma visão de mundo e essa diversidade linguística enriquece a
maneira de ver o mundo. A cada língua diferente é mais uma maneira de ver,
conhecer e entender o mundo. Os estruturalistas são orientados para a or-
ganização de uma gramática descritiva e entendem a linguagem como uma
realidade social concebendo-a como um sistema de sinais (complexo) no qual
cada um está ligado a outros, quanto mais longe a estrutura dessa língua for,
mais difícil será explicar a maneira de conhecer o universo. Conhecer várias

1. Pós doutora pela Universidade de Buenos Aires, com pesquisas sobre Estudos de Gênero e
Estudos da Tradução (O Corpo da Mulher Tradutora e Intérprete de Línguas de Sinais). Doutora
em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Educa-
ção Ambiental pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Pedagoga pela Universidade
das Américas Tradutora/Intérprete de Língua de Sinais Brasileira.Atualmente, trabalha como
Professora da área de Tradução, no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC - Câmpus Palhoça
Bilíngue). Endereço eletrônico: saionara.figueiredo@ifsc.edu.br.
2. Indígena da etnia Pataxó, Mestrando em Relações Étnicas e Contemporaneidade pela Univer-
sidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Especialista em Libras: Docência e Intérprete pela
Faculdade Santo Agostinho (FACSA) e em Inclusão e Diversidade na Educação pela Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Licenciado em Letras - Libras pelo Centro Universitário
ETEP e em História pela Faculdade Santo Agostinho (FACSA). É proficiente em Tradução e In-
terpretação da Libras PROLIBRAS pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008). Endereço
eletrônico: kawhaufsb2017@gmail.com.
3. Pedagoga, Mestre em Linguística - UFSC e Doutoranda em Linguística Aplicada UNICAMP/
UFMS. Professora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS. Endereço eletrônico:
shirley.vilhalva@ufms.br.
4. Bacharel no curso Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal do Sul da Bahia
- UFSB. Coordenador do núcleo Central dos Estudantes indígenas da UFSB , campus Sosígenes
Costa - Porto Seguro - BA. Ativista dos direitos dos povos indígenas, cultura, identidade e das
Línguas Indígenas de Sinais - LIS. Endereço eletrônico: davidlibras6@gmail.com.

[Recebido em: 05 jun. 2023 – Aceito em: 15 set. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 159


Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

línguas nos permite ampliar os nossos olhares e ver e agir de forma diferente.
Um estudo trilhado através dos autores: WEINREICH (2006); SALOMÃO (2013);
MAHER, (2010).
Palavras-chave: Comunidade multilíngue. Multiculturalidade. Ensino-apren-
dizagem. Linguística. Indígenas.

LINGUISTIC AND CULTURAL DIVERSITY FROM THE INDIGENOUS


PERSPECTIVE IN INSTITUTIONAL AND EDUCATIONAL CONTEXTS

Abstract: This article is based on sociolinguistic study, which examines lin-


guistics considering the social context and the relationship between lan-
guage and society. It is important to highlight that language and diverse
linguistic knowledge are also synonymous with identity, science, and culture.
Through language, we create mechanisms of social interaction and transmit
a worldview, and this linguistic diversity enriches our way of perceiving the
world. Each different language represents another perspective to see, know,
and understand the world. Structuralists are guided towards the organization
of a descriptive grammar and perceive language as a social reality, concei-
ving it as a complex system of signs in which each one is interconnected with
others. The farther the structure of a language is, the more difficult it becomes
to explain the way of understanding the universe. Acquiring knowledge of
multiple languages allows us to broaden our perspectives and see and act in
different ways. This study is guided by the works of authors such as Weinreich
(2006), Salomão (2013), and Maher (2010).
Keywords: Multilingual community. Multicultural. Teaching-learning. Lin-
guistics. Indigenous.

Introduzindo a diversidade de línguas no campo disciplinar da linguís-


tica e seus pontos de contato

A linguística como disciplina científica trata do estudo de sistemas


linguísticos. Seu objeto de estudo é a linguagem de uma forma geral. Esta
disciplina é subdividida em outras categorias específicas que tratam dos
diversos campos de estudo linguísticos comumente referidos como “ramos
da linguística”. Um dos ramos da Linguística que nos interessa de uma for-
ma particular neste estudo é a Sociolinguística. Trata-se do estudo do siste-
ma linguístico considerando o contexto social, ou seja, estuda as relações
entre a linguagem e a sociedade. Portanto, os sociolinguistas se dedicam

160 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA
NOS CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

ao estudo da linguagem considerando que a manifestação linguística dos


indivíduos é condicionada por diversos fatores sociais. Entre os estudos
realizados, destacam-se aqueles que abordam o contato de línguas, que
têm tido lugar de destaque nas discussões desse campo disciplinar. Nes-
te sentido, para o campo das línguas indígenas, a Sociolinguística pode
contemplar e embasar mesmo as línguas menos conhecidas porém ainda
utilizadas dentro do convívio dos povos, como as línguas indígenas e, mais
especificamente, Línguas Indígenas de Sinais (SANTOS, 2023).
De acordo com as contribuições de Weinreich (2006), o contato
com a língua é uma situação em que “duas ou mais línguas são usadas alter-
nadamente pelas mesmas pessoas”. Indivíduos que usam idiomas são, por-
tanto, o ponto de contato (WEINREICH, 2006, p. 17). Nesse mesmo sentido,
encontra-se a definição de Salomão (2013), que considera que situações de
línguas em contato ocorrem quando é estabelecida por qualquer duas ou
mais línguas em qualquer situação. Segundo este autor, o contato linguís-
tico pode surgir em diversos contextos e situações, como os marcados pela
coabitação de comunidades bilíngues, nos contextos de ensino-aprendiza-
gem de línguas estrangeiras e em áreas fronteiriças.
O contexto em que nossa pesquisa está localizada é caracterizado
por essas três condições. Ou seja, o contexto indígena brasileiro é forte-
mente marcado pela presença de indivíduos bilíngues, como é o caso das
línguas portuguesas; nesse caso estamos referindo também às línguas in-
dígenas; no contexto do ensino-aprendizagem. Além da língua indígena,
podem aprender o português como língua materna, além de espanhol e/
ou inglês como oferta de língua estrangeira. Desta forma, o contexto de
pesquisa é, por si só, um espaço fronteiriço no qual as relações transfrontei-
riças abundam com um intenso contato linguístico-cultural entre as comu-
nidades indígenas (MAHER, 2010).
Nesses contextos, destaca-se a existência de comunidades multilín-
gues e multiculturais, situação irreversível nos dias atuais. Além disso, se-
gundo Silveira (2018), “a coexistência da sociedade e das línguas dá origem
a fenômenos que afetam todos os níveis linguísticos” enquanto algumas

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 161


Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

“línguas influenciam outras”(p. 178). Possenti (2013) apresenta uma série


de situações em que o contato com a linguagem é possível definir algumas
situações, mas ao mesmo tempo destaca a importância do caráter efêmero
em que se encontram, uma vez que assim como as línguas apresentam seu
dinamismo, as situações de contato também podem mudar com o tempo.
Alguns apontamentos necessários (POSSENTI, 2013) a essas definições:

• O arquipélago linguístico corresponde à situação em que várias línguas são


faladas por um número restrito de falantes e que não necessariamente têm
uma relação linguística geneticamente;
• Fronteiras mais ou menos estáveis entre as famílias linguísticas (elas são
estabelecidas no momento em que diferentes línguas coexistem em áreas
fronteiriças);
• A expansão colonial europeia do ponto de vista linguístico, possibilitou
o surgimento de novas comunidades linguísticas a partir do contato das
línguas europeias com as várias línguas dos nativos nos contextos de ocu-
pação colonial;
• Grupos individuais de falantes de línguas minoritárias isoladas pelas lín-
guas nacionais mais próximas correspondem às situações em que há pene-
tração de diferentes línguas e culturas em um espaço já linguisticamente e
culturalmente consolidado;
• Movimentos migratórios são, atualmente, talvez a situação mais recente
que tem impulsionado o contato linguístico e cultural em várias partes do
mundo. Impulsionados pela globalização, os movimentos migratórios têm
destacado a diversidade na qual se observa o surgimento de comunidades
multilíngues e multiculturais.

Entre os pontos apresentados acima, a situação de contato lin-


guístico que caracteriza nosso contexto de pesquisa é a produzida pela
expansão colonial europeia. O processo de colonização na América, e mais
especificamente na América do Sul, onde está localizado o Brasil, liderado
por Portugal e Espanha, marcou as línguas ali faladas atualmente, como é o
caso do português e do espanhol com suas nuances. Como afirma Barboza
(2014), não há dúvida de que a consolidação das línguas luso-espanholas
nas novas colônias na América, línguas atualmente consideradas hegemô-
nicas, significou a dizimação de diversos povos e línguas indígenas ou ao
declínio de alguns outros que gozavam de alto esplendor linguístico nos
tempos que antecedem a era moderna.

162 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA
NOS CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

Fenômenos linguísticos resultantes do contato com uma língua

As influências que algumas línguas exercem sobre outras, após o


contato linguístico, geram alguns fenômenos linguísticos. Os fenômenos
derivados do contato das línguas, organizados por Correia (2019), podem
estar relacionados ao contato dos sistemas, com o uso de diversas línguas
e com o contato de línguas, não sendo intenção, a realização de um estudo
detalhado dos tipos de fenômenos linguísticos resultantes do contato com
a linguagem. Por essa razão, dedicamo-nos a apresentar os mais comuns
nas manifestações linguísticas de indivíduos que vivem em uma realidade
marcada pela coabitação das línguas.
De acordo com as contribuições de Weinreich (2006), o contato
com a língua é uma situação em que “duas ou mais línguas são usadas alter-
nadamente pelas mesmas pessoas”. Indivíduos que usam idiomas são, por-
tanto, o ponto de contato (WEINREICH, 2006, p. 17). Nesse mesmo sentido,
encontra-se a definição de Salomão (2013), que considera que situações de
línguas em contato ocorrem quando é estabelecida por qualquer duas ou
mais línguas em qualquer situação. Segundo este autor, o contato linguís-
tico pode surgir em diversos contextos e situações, como os marcados pela
coabitação de comunidades bilíngues, nos contextos de ensino-aprendiza-
gem de línguas estrangeiras e em áreas fronteiriças.
O contexto em que nossa pesquisa está localizada é caracterizado
por essas três condições. Ou seja, o contexto indígena brasileiro é forte-
mente marcado pela presença de indivíduos bilíngues, como é o caso das
línguas portuguesas, nesse caso estamos referindo também a língua por-
tuguesa indígena, bem como das línguas indígenas; no contexto do ensi-
no-aprendizagem, além do português como língua materna, no caso do
espanhol e inglês a oferta é como línguas estrangeiras. Por fim, o contexto
de pesquisa é, por si só, um espaço fronteiriço no qual as relações trans-
fronteiriças abundam com um intenso contato linguístico-cultural entre as
comunidades indígenas (MAHER, 2010).
Nesses contextos, destaca-se a existência de comunidades multilín-
gues e multiculturais, situação irreversível nos dias atuais. Além disso, se-
gundo Silveira (2018), “a coexistência da sociedade e das línguas dá origem
a fenômenos que afetam todos os níveis linguísticos”. Possenti (2013) apre-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 163


Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

senta uma série de situações em que o contato com a linguagem é possível


definir algumas situações, mas ao mesmo tempo destaca a importância do
caráter efêmero em que se encontram, uma vez que assim como as línguas
apresentam seu dinamismo, as situações de contato também podem mu-
dar com o tempo. Segue estudo dessas definições:

• O arquipélago linguístico corresponde à situação em que várias línguas são


faladas por um número restrito de falantes e que não necessariamente têm
uma relação linguística geneticamente;
• Fronteiras mais ou menos estáveis entre as famílias linguísticas são es-
tabelecidas no momento em que diferentes línguas coexistem em áreas
fronteiriças;
• A expansão colonial europeia do ponto de vista linguístico, o movimento
da expansão colonial, possibilitou o surgimento de novas comunidades
linguísticas a partir do contato destas línguas com as várias línguas dos
nativos nos contextos de ocupação colonial;
• Grupos individuais de falantes de línguas minoritárias isoladas pelas lín-
guas nacionais mais próximas correspondem às situações em que há pene-
tração de diferentes línguas e culturas em um espaço já linguisticamente e
culturalmente consolidado;
• Movimentos migratórios são, atualmente, a situação mais recente que tem
impulsionado o contato linguístico e cultural em várias partes do mundo.
Impulsionados pela globalização, os movimentos migratórios têm desta-
cado a diversidade na qual se observa o surgimento de comunidades mul-
tilíngues e multiculturais.

Entre os pontos apresentados acima, a situação de contato lin-


guístico que caracteriza nosso contexto de pesquisa necessita ser destaca-
do. O processo de colonização na América, e mais especificamente na Amé-
rica do Sul, onde está localizado o Brasil, liderado por Portugal e Espanha,
marcou as línguas ali faladas atualmente. Como corrobora Barboza (2014)
com os fatos abordados acima, é importante repetir que a consolidação
das línguas luso-espanholas nas novas colônias na América significou a di-
zimação de diversos povos e línguas indígenas ou ao declínio de alguns ou-
tros que gozavam de alto esplendor linguístico nos tempos que antecedem
a era moderna.

164 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA
NOS CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

Fenômenos linguísticos resultantes do contato com a língua, inclusive,


com línguas indígenas

As influências que algumas línguas exercem sobre outras, após o


contato linguístico, geram alguns fenômenos linguísticos. Os fenômenos
derivados do contato das línguas, organizados por Correia (2019), podem
estar relacionados ao contato dos sistemas, com o uso de diversas línguas
e com o contato de línguas, não sendo intenção, a realização de um estudo
detalhado dos tipos de fenômenos linguísticos resultantes do contato com
a linguagem. Por essa razão, dedicamo-nos a apresentar os mais comuns
nas manifestações linguísticas de indivíduos que vivem em uma realidade
marcada pela coabitação das línguas.

a. Interferência/transferências de idiomas

A interferência é um dos fenômenos mais comuns cuja ocorrência


ocorre quando dois ou mais sistemas linguísticos estão em contato. O ter-
mo interferência foi usado por Weinreich (2006) para se referir aos desvios
sofridos pelos sistemas linguísticos que estão em contato. De fato, este
autor afirma que: “[Interferências são] instâncias de desvio das normas de
uma das línguas que ocorrem na fala de bilíngües como resultado de sua
familiaridade com mais de uma língua” (Weinreich, 1953, p. 1).
Para este autor, o termo interferência está subjacente à ideia de de-
formação da língua causada pelo contágio das estruturas dos sistemas que
estão em contato. Em Lewandowski (1982) o termo interferência é enten-
dido como o “fenômeno pelo qual há estruturas linguísticas já aprendidas
afetam perturbadoramente estruturas que são aprendidas pela primeira
vez” (LEWANDOWSKI, 1982, p. 191).
Da mesma forma, Swain (2006) em seu Dicionário de termos-chave
de DLE, usa o termo interferência para se referir aos erros cometidos na
segunda língua (doravante L2), supostamente originado pelo seu conta-
to com L1; é sinônimo de transferência negativa. Do ponto de vista deste
autor, as interferências são os resultados das estratégias empregadas por
indivíduos que se baseiam em seus conhecimentos linguísticos e gerais an-
teriores e tentam aproveitar-se para o aprendizado de L2.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 165


Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

No entanto, o termo interferência tem sido questionado na lite-


ratura. Portanto, atualmente muitos autores geralmente optam pela trans-
ferência de termo para se referir às situações em que uma língua começa a
apresentar estruturas de outra língua quando estão em contato.
A transferência de estruturas de uma língua para outra, ou seja,
da primeira língua ou língua materna (doravante L1 ou LM) para uma
L2, resulta em uma construção gramatical na maioria das vezes distinta.
Segundo Krashen (1977) “um resultado gramatical não significa que sejam
pouco frequentes ou não naturais’’ (KRASHEN, 1977, p. 255)”.

b. Alternância de código

Outro fenômeno linguístico resultante do contato das línguas é a


alternância de códigos. Também conhecido como troca de código, mis-
tura de idiomas ou comutação de código. A alternância de códigos é o
fenômeno linguístico de maior ocorrência na manifestação da linguagem
dos indivíduos bilíngues. Como aponta Naro (2008), esse fenômeno consis-
te na justaposição de frases ou fragmentos de frases de diferentes línguas
no discurso do mesmo orador.
Consiste, portanto, em uma mudança na ordem estrutural onde o
alto-falante alterna entre as línguas L1 e L2 que estão em uso. Na alternân-
cia de códigos, um alto domínio linguístico do indivíduo é essencial, uma
vez que manter a ordem dos elementos em ambas as línguas é um critério
fundamental a ser configurado na alternância dos códigos.
Deve-se notar que ao contrário do fenômeno de interferência, que
mencionamos acima, em que o resultado é uma construção gramatical,
na alternância de códigos uma construção que não está fora da gramática
de L1 ou L2, ainda assim pode haver coincidências gramaticais sem alterar
a ordem estrutural de ambas as línguas. Como ressalta Santos (2019), “a
mudança de código não ocorrerá nos contextos em que há uma ruptura
das regras sintáticas em cada língua e exige, de alguma forma, que o orador
tenha um alto grau de bilinguismo (SANTOS, 2019, p. 17)”.

166 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA
NOS CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

c. Empréstimos linguísticos

O dicionário define o empréstimo linguístico como a ação e efeito


associado ao termo linguístico (palavra de empréstimo linguístico). Estes
são definidos como o elemento, geralmente léxico, que uma língua tira de
outra. Entre as definições de empréstimo linguístico que abundam na lite-
ratura estão aquelas que se referem ao fenômeno como forma de expres-
são – inovação da fala e enriquecimento do inventário léxico – imitação,
transformação e adaptação que serão transportadas de uma língua para
outra, neste caso, de L2 a L1 (HOUAISS & VILLAR, 2001).
Silveira (2018) identifica através dos estudos de Haugen (1953),
uma classificação tipológica de palavras de empréstimo linguístico. Este
autor classifica-os em empréstimos puros e empréstimos híbridos ou mis-
tos. Sob a concepção de empréstimos puros, está por trás da ideia de incor-
porar elementos léxicos em L1 sem que esses elementos sejam submetidos
a qualquer modificação em sua estrutura. No que diz respeito aos emprés-
timos híbridos, é também uma incorporação de elementos léxicos em L1,
porém esses elementos passam por uma transformação ou adaptação em
sua estrutura. As palavras híbridas têm uma forma cuja característica se ma-
nifesta pela presença das línguas L2 e L1.
Outra classificação dos empréstimos linguísticos refere-se à tipo-
logia dos empréstimos consolidados e transitórios. Para Shana Poplack
(1993), citada por Possenti (2013), os empréstimos consolidados são aque-
les totalmente integrados e são difíceis de distinguir nas unidades patrimo-
niais, enquanto os transitórios como o próprio nome indicam, não estão
estabelecidos na L1, por isso estão no “processo de divulgação”.
Vale ressaltar que os empréstimos linguísticos são geralmente as-
sociados ao empréstimo de elementos léxicos. Nesse sentido, Swain (2006)
menciona que são substantivos que se prestam mais recorrentemente de
uma língua para outra. No entanto, eles também afirmam que isso pode
ocorrer com outros elementos da língua, embora com menos frequência.
A partir dessas contribuições, observa-se que os fenômenos
linguísticos descritos acima têm características bastante semelhantes. Na
verdade, não é fácil de entender, pois há uma linha muito estreita, pontos

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 167


Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

que os unem e também que os separam. Da mesma forma, no que diz


respeito à alternância e ao empréstimo linguístico, Swain (2006) afirma que
se o orador usa dois sistemas, estamos enfrentando uma alternância de lín-
guas e, se ele manuseia um único sistema, é um empréstimo línguístico.

d. A internalização de um sistema linguístico: a interlinguagem

Indivíduos que fazem uso de duas ou mais línguas buscam de-


senvolver estratégias para aprimorar o processo de aquisição ou aprendi-
zagem. Dessa forma, é bastante comum que aprendizes de um L2 ou LE
confiem em sua língua materna transferindo elementos do LM durante o
processo de aprendizagem da língua-alvo.
As primeiras contribuições sobre o fenômeno linguístico da inter-
linguagem iniciou com estudo de Selinker (1969), aderiu ao termo inter-
língua de Weinreich (1953). Na concepção fornecida por Nemser (1971) a
interlinguagem é caracterizada como um “sistema híbrido” formado pela
união de elementos de todas as línguas que estão em contato com o aluno.
Este novo sistema se afasta de uma e outra língua e serve como um eixo
organizador no processo de aprendizagem. Na mesma perspectiva está a
contribuição de Selinker (1972) para quem a interlinguagem é concebida
como um sistema aberto e dinâmico que é orientado para a formação de
um novo sistema linguístico.
Do ponto de vista deste autor, esse novo sistema não tem base es-
trutural nas linguagens com as quais o aluno tem contato, mas é um siste-
ma específico no processo de construção. Por outro lado, na perspectiva de
Naro (2008), a interlinguagem é caracterizada por um processo de sofisti-
cação do sistema linguístico que se baseia nas linguagens em contato do
indivíduo. Essas contribuições têm em comum o reconhecimento de que,
durante o processo de aquisição ou aprendizagem de idiomas, os indiví-
duos constroem um novo sistema linguístico apoiado por sua LM e outras
linguagens com as quais estão em contato.
Na concepção de Selinker (1972), a interlinguagem é justamen-
te esse sistema linguístico em construção que está entre uma língua e
outra(s). Este autor ressalta que a interlinguagem é um contínuo linguís-
tico cujo objetivo é estabelecer a relação entre dois extremos e caracte-

168 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA
NOS CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

riza-se por ser um sistema individual de cada aluno com adições que se
manifestam irregularmente e desequilibradas, mas, ao mesmo tempo,
de forma sistemática.

A Didática da Linguagem e Literatura no contexto das línguas indígenas

A DLL vem evoluindo desde seu nascimento. Essa evolução tem


sido uma função de sua própria natureza, seu modo de ser e propriedade.
Como disciplina científica e campo de ação, é concretizada no estudo de fe-
nômenos relacionados ao ensino-aprendizagem das línguas e é, ao mesmo
tempo, um campo de integração devido à influência mútua entre outras
disciplinas que são circunscritas a outros campos do conhecimento.
Nesse sentido, a língua está localizada no centro de um processo di-
nâmico e evolutivo para que sua (re) definição ou (re)elaboração seja cons-
tante. Para Maher (2010), a DLL encontra-se no espaço de interação entre
práticas pedagógicas e processos de aprendizagem de idiomas.
Para este autor, o objeto de estudo desta disciplina é entendido como:

O processo de ensino e aprendizagem de línguas, em que, como em qual-


quer processo de ensino, três fatores intervêm: o aluno, o professor e o con-
teúdo do ensino, que juntos constituem um sistema de atuação: o didático
– pode-se dizer um sistema de sistemas, no qual outros sistemas interrelacio-
nados de atividade estão envolvidos (MAHER, 2010, p. 51).

Por sua vez, Santos (2019) concebe o objeto de estudo da DLL como
os processos de ensino, aquisição e aprendizagem da língua e literatura,
bem como tudo relacionado ao desenvolvimento de competências, conhe-
cimentos, habilidades e estratégias linguísticas e/ou literárias implantadas
pelo aluno. O objeto do estudo em si evoluiu na medida em que a própria
disciplina se consolidou como ciência. Por isso, acreditamos que o objeto
de estudo é definido nos processos dinâmicos em que todas as ações rela-
cionadas ao ensino-aprendizagem das línguas são inseridas em um espaço
de interação complexa.
Evolução, complexidade, paradoxo e transversalidade são as cons-
tantes que Possenti (2013) usa para abordar as características dessa disci-
plina. Evoluir e adaptar implica mudanças em toda a dinâmica do processo.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 169


Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

Não se trata apenas de incorporar um problema a ser tratado pela discipli-


na, mas de se colocar na perspectiva do problema para resolvê-lo. Nesse
sentido, essa incorporação mudará todas as formas de ver e tratar proble-
mas porque, como evidencia Salomão (2013), percepções e mudança de
conhecimento, experiências, observações, referências teóricas e, conse-
quentemente, práticas são orientadas de forma diferente.
Da mesma forma, a DLL se caracteriza por sua complexidade na
medida em que consiste em diversos elementos para atender às diversas
ações que surgem no espaço de sala de aula. Sob esse conceito de comple-
xidade, Barbosa (2011) coleciona a ideia de multidimensionalidade, articu-
lação e inter-relação devido ao envolvimento dessa disciplina com outras
que estão localizadas em diferentes quadros.
Outra característica que este autor confere a essa disciplina é seu
funcionamento paradoxal ao definir esse caráter incongruente como “uma
verdade comumente observada”. A forma paradoxal de ser dessa discipli-
na está no fato de que seus conceitos-chave parecem contrários à lógica,
embora não seja assim. Como fala Salomão (2013), trata-se de associar “no
mesmo quadro conceitos complementares/simultâneos/antagônicos” tais
como: “teoria/prática, oral/escrita, compreensão/expressão”, entre outros.
Da mesma forma, essa disciplina tem uma característica transversal
devido à sua disponibilidade para fornecer conhecimento de outras discipli-
nas através de uma transversalidade externa. Serve e é servido através de
uma transversalidade “interna” que nas palavras de Barboza (2014) é sobre a
comunicação constante e interação entre a didática de cada língua particu-
lar, entre as quais há uma reciprocidade e igualdade de considerações. Pro-
porciona o conhecimento que vem de outros marcos epistemológicos e suas
disciplinas correspondentes, tais como: o quadro linguístico discursivo, com
contribuições da Linguística, pragmática e retórica; o arcabouço educacional
com contribuições da Pedagogia e Metodologia; o quadro sociocultural com
contribuições da Sociolinguística e sociologia e o quadro individual com con-
tribuições da Psicolinguística e Psicologia (também no contexto indígena).
É uma disciplina que surge com base na necessidade de resolver
os problemas que surgiram do espaço da sala de aula, olhando para ela de
diferentes perspectivas. A diversidade na sala de aula tem sido considerada

170 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA
NOS CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

um problema. Portanto, as discussões sobre a atenção à diversidade torna-


ram-se mais evidentes nas últimas décadas e, a partir de diversos campos
científicos, têm discutido a diversidade biológica, a diversidade funcional,
a diversidade sexual e a diversidade linguística cultural, indígena ou não.
A DLL tem cuidado de prestar atenção à diversidade buscando
compreender e dar respostas a esses problemas relacionados ao ensino-
-aprendizagem de línguas dentro ou fora das escolas, durante a formação
escolar e ao longo da vida. Ele tem buscado compreender a multiplicida-
de de fatores contextuais que influenciam a comunicação e, consequen-
temente, a aprendizagem da língua. Foca-se na atenção à diversidade
linguística cultural em direção a uma educação inclusiva para lidar com a
negação, exclusão e isolamento de línguas, culturas, pessoas ou grupos de
minorias nas escolas e em diversos contextos sociais.
A pesquisa do DLL tem contribuído muito à compreensão da
abordagem social da língua, bem como na compreensão da rede que sus-
tenta as relações que formam a tríade: línguas, culturas e sociedade. A sala
de aula como contexto comunicativo é, segundo Nascimento (2009), um
dos temas mais apreciados na pesquisa do campo das DLLs pelo interesse
no discurso do professor, no dos próprios alunos e nos processos de intera-
ção que se estabelecem entre eles.
Da mesma forma, no campo da DLL a diversidade é abordada
propondo a melhoria no ensino-aprendizagem das línguas que ajudam os
alunos a estabelecer relações entre as línguas que são oferecidas como lín-
gua estrangeira, segunda língua e língua materna. Trata-se de aperfeiçoar
as relações entre as linguagens utilizadas (e seu aprendizado) para cons-
truir uma verdadeira competência multilíngue.
Uma educação linguística orientada para o aprimoramento da
comunicação e interação entre os indivíduos – competência intercultural –
e a otimização das relações entre as linguagens – competência multilíngue
– é, do nosso ponto de vista, essencial para o sucesso da aprendizagem
linguística indígena ou não. É importante considerar o contexto e as
pessoas que o compõem, como agentes que aprimoram o conhecimen-
to que entram em ação na medida em que as relações se tornam efetivas,
bem como nos orientam para uma perspectiva de aproximação integrada
das línguas (MAHER, 2010).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 171


Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

A atenção à diversidade de línguas e culturas: Fundamentos da Educa-


ção Multilíngue e Multicultural para o aprendizado de outras línguas,
inclusive, línguas indígenas

A pesquisa no campo das ciências linguísticas tem sido focada,


especialmente, na compreensão de como os humanos adquirem línguas
e como elas evoluem. Esses estudos foram formulados sob as diferentes
concepções da linguagem: alguns foram orientados para uma perspectiva
formal e outros para uma perspectiva funcional.
Nesta seção apresentamos algumas concepções de linguagem,
métodos e abordagens usadas para ensinar línguas, bem como teorias da
aprendizagem linguística. Exploramos a forma como essas concepções,
métodos e teorias têm sido apresentados, buscando compreender como
o ensino-aprendizagem das línguas tem sido proposto seguindo uma or-
dem cronológica de eventos e como ela é atualmente colocada diante das
evidências da diversidade linguística-cultural e da atenção dada ao ensi-
no-aprendizagem das línguas levando em conta a perspectiva do multilin-
guismo, incluindo línguas indígenas (MAHER, 2010).

A linguagem na perspectiva do multilinguismo

O conceito de linguagem foi redefinido ao longo do tempo graças


aos avanços na pesquisa em disciplinas que têm tratado com o estudo da
linguagem. Se na primeira língua é concebida como uma expressão de
pensamento, mais tarde seu conceito está relacionado à funcionalidade e
ao uso social da linguagem, ou seja, a linguagem pode ser entendida como
um mecanismo de interação.
É verdade que em cada um desses universos metodológicos, a lin-
guagem é concebida de forma diferente e estamos cientes de que existem
outras visões da linguagem, algumas mais e outras menos conhecidas.
Buscaremos apresentar pelo menos três deles, ou seja: linguagem como
sistemas de estruturas, linguagem como visão do mundo e da linguagem
como mecanismo de interação.

172 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA
NOS CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

Na visão de Estevam (2009), é importante compreender essas vi-


sões de linguagem para que o curso do ensino-aprendizagem de línguas
seja melhor delineado, especialmente línguas estrangeiras e línguas indí-
genas, a partir da segunda metade do século passado. O teórico estrutu-
ralista Maher (2010) nos primeiros anos do século XX, propôs um estudo
descritivo das classes de palavras, orientados para a organização de uma
gramática descritiva, que compreende a linguagem como uma realidade
social concebendo-a como um sistema de sinais (complexo) no qual cada
um está ligado a outros. Segundo Ramos (2013), essa percepção significou
um avanço no ensino das línguas, pois permitiu compreender a relação de
semelhança entre as línguas no que respeita à sua organização estrutural.
Para o caso em questão, das línguas indígenas, essa concepção é
importante porque um ensino-aprendizagem das línguas na perspectiva
do multilinguismo, orientado para o desenvolvimento da competência mul-
tilíngue, entende que a aprendizagem é mais eficaz quanto maior a mobili-
zação do repertório linguístico e, para isso, o aprendiz faz uso de fonemas,
palavras, expressões comparando-as e relacionando-as. Inclusive, como
afirmado no Ramos (2013) e em Maher (2013), a capacidade de relacionar
línguas e culturas é uma importante habilidade intercultural para o desen-
volvimento da competência intercultural e da competência multilíngue.
A partir dessa concepção, a linguagem é mais do que um sistema
de estruturas. É concebida como uma organização simbólica e complexa
através da qual vemos o mundo. A partir dessa hipótese, o conhecimento
linguístico determina a maneira de ver o mundo e cada língua diferente
é mais uma maneira diferente de conceber e entender a realidade. Esses
autores baseiam suas hipóteses com base em estudos realizados em comu-
nidades indígenas, cujas línguas são estruturadas de forma muito diferente
de outras línguas mais conhecidas, como as línguas neolatina e anglo-saxã,
por exemplo. Os autores afirmam que é. Para eles representar com precisão
o pensamento dos nativos é um desafio, uma vez que quanto mais distante
a estrutura da língua deles for a nossa, mais difícil se torna explicar a forma
como eles concebem o universo”.
No que diz respeito à comunicação em outras línguas, conhecendo
outras línguas, Correia (2019) ressalta que estes proporcionam ao indivíduo

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 173


Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

uma visão muito mais aberta. De fato, concordamos completamente com


o pensamento deste autor e acreditamos que o conhecimento de várias
línguas não só nos permite ver o mundo de forma diferente, mas também
nos permite agir de forma diferente neste mundo.
Correia (2019), citando Fantini (1997), menciona que é necessária
uma competência integrada constituída pelo conhecimento na língua es-
trangeira e uma visão ampliada e transformada do mundo. Este autor com-
partilha a ideia de que em cada língua as visões do mundo são diferentes.
No entanto, acredita-se que quando o indivíduo faz uso de outras línguas e
constrói essa competência integrativa permitindo-lhe uma visão panóptica
isso será constituído de elementos compartilhados, ou seja, será composto
de características presentes que são comuns em todas as línguas ou, em
qualquer caso, em algumas delas.
É importante ressaltar que para dialogar sobre as Comunidades
Multilíngues, Multiculturais, Ensino-Aprendizagem, Linguística e Indíge-
na direcionamos o estudo para a concepção de linguagem que tornou-se
mais popular nos anos 70 do século XX, a partir da ideia de competência
comunicativa apresentada por Hymes (1971) e levando em conta os funda-
mentos das teorias socioculturais apresentadas por Vygotsky (1979).
A partir dessa concepção de linguagem, pensando nas línguas indí-
genas, assumimos que, além de aprender a utilizar um conjunto de regras
produzindo afirmações bem estruturadas, é necessário poder se adaptar
linguisticamente a um determinado grupo social. A linguagem dessa no-
ção, como ferramenta de interação, é orientada para uma perspectiva fun-
cional, levando em conta o contexto e as circunstâncias em que ocorrem
estas interações (SWAIN, 2006).
Essa visão comunicativa da linguagem é o que orienta o ensino-
-aprendizagem das línguas na perspectiva do multilinguismo. Uma pers-
pectiva que leva em conta o contexto em que o aluno se move, razão pela
qual grande importância e atenção são dadas à diversidade linguística e
cultural, ou seja, a diversidade é considerada como um recurso que favo-
rece as interações.

174 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


DIVERSIDADE LINGUÍSTICA E CULTURAL NA PERSPECTIVA INDÍGENA
NOS CAMPOS INSTITUCIONAL E EDUCACIONAL

Alguns apontamentos finais

Seguindo para as considerações finais de uma forma que podemos


dizer que em nossa opinião, é assim que a competição multilíngue para as
línguas indígenas é caracterizada; não é uma adição de vários repertórios
monolíngues, mas é um repertório mais diversificado no qual os elementos
estão relacionados. Conforme afirmado no Nascimento (2019), as compe-
tências linguísticas e culturais em relação a cada língua são modificadas
através do conhecimento da outra língua e contribuem para a criação de
consciência, habilidades e capacidades interculturais. Este estudo corrobo-
ra com muitos estudos que estão sendo embasados e articulados sobre as
línguas indígenas (e posteriormente sobre as línguas indígenas de sinais
para indígenas surdos), sendo necessário que as perspectivas aqui delimi-
tadas também sejam pensadas em contexto de novas pesquisas. Como já
ressaltamos neste estudo, sobre as línguas indígenas e as suas modalida-
des, estas não estão mais veiculadas apenas a aparatos orais. Existem lín-
guas indígenas que englobam línguas escritas e as línguas de sinais.

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Saionara Figueira Santos, David Kaique Rodrigues dos Santos,
Shirley Vilhalva e David Borges Limeira da Silva

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Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 159-177, 2023 | 177


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p179

PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS: UMA LINHA DE ESTUDOS

Pedro A. Corrêa de Brito1

Resumo: A Guerra de Canudos (1893-1897) é uma das questões brasileiras


mais estudadas no país e no exterior há mais de cem anos. Contudo, somente
a partir do final do século XX que a presença de povos indígenas na cidade
conselheirista passou a ser trabalhada na textualidade. Este artigo visa apre-
sentar a linha de estudos indígenas de Canudos a partir de seus principais
textos de referência, abordando suas potencialidades e condições de possibi-
lidade, cujo aspecto produtivo aponta para o registro e a ampliação da circu-
lação das epistemologias indígenas sobre o Belo Monte.
Palavras-chave: Antropologia. Epistemologia. Povos indígenas. Nordeste.
Guerra de Canudos.

INDIGENOUS PEOPLES IN THE CANUDOS WAR: A LINE OF STUDIES

Abstract: One of the most studied themes about Brazil in the past one hun-
dred years, the Canudos War (1983-1897) registered the Indigenous Peoples
presence at the rebel city of Belo Monte since its foundation. Nevertheless,
the subject had been largely excluded until the 90’s, when it reemerged as
a line of studies that changed the epistemological set traditionally used on
Canudos. This article aims to present the development of this line of studies
through its reference texts, seeking to approach its conditions of possibility
and potentialities, such as the increase of the indigenous epistemology circu-
lation in the scientific production field.
Keywords: Anthropology. Epistemology. Indigenous Peoples. Northeast of
Brazil. Canudos War

1. Bacharel em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio, Mestre em Ciências Sociais pela UERJ.
Elaborou a dissertação de mestrado, financiada pelo CNPq, intitulada Contra-cartografias de Ca-
nudos: por uma etnoepistemologia do conflito (2023), na qual analisa o desenvolvimento deste
campo de produção de conhecimento de 1874 a 2022, apresentando uma análise antropológica
baseada no levantamento bibliográfico em que lista os 646 principais textos produzidos sobre
o tema, estratificando o campo a partir de cinco ciclos textuais, suas principais linhagens episte-
mológicas e autores de referência. Endereço eletrônico: pedro_acb@hotmail.com.

[Recebido em: 07 jun. 2023 – Aceito em: 08 set. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 179


Pedro A. Corrêa de Brito

Introdução

A presença de indígenas em Belo Monte de Canudos é comentada


desde a época desta grande guerra, com diversos esparsos registros que
lhe fazem menção sem entrar em maiores detalhes. Tais registros primários,
contudo, são geralmente textualizados a partir de relatos de sujeitos envol-
vidos no conflito ao lado republicano, como correspondentes de guerra e
militares do exército que foram ao campo de batalha.
Ainda assim, no último século, este tema foi amplamente ignorado
como objeto de investigação específico, com as raras exceções que men-
cionam a presença de índios em episódios relevantes da trajetória conse-
lheirista cuja tematização têm por enfoque. Foi somente a partir do final do
século XX que surgem trabalhos que tratam especificamente das experi-
ências indígenas no Belo Monte e na Guerra de Canudos, apontando para
uma nova linha de estudos.
Nesse sentido, este artigo apresenta os principais trabalhos desta li-
nha, excluindo os demais textos sobre Canudos que apenas mencionam os
índios. Antes, para tanto, se discutirá o aspecto contextual e produtivo e em
que esta linha de estudos indígenas se insere. Oferecendo ainda uma discus-
são sobre as condições de possibilidade e potencialidades em torno das au-
sências e presenças indígenas na produção de conhecimento sobre Canudos.

A virada interpretativa

No contexto pós-conflito, marcado pela destruição do Belo Monte


e pelo genocídio perpetrado contra seus habitantes, surge o segundo ciclo
textual deste campo, iniciado a partir da publicação de Os Sertões (1902).
Daí de então, por quase meio século, Canudos fora abordado exclusiva-
mente através da versão dos vencedores e de seu cânone euclidiano. Con-
tudo, o ciclo textual euclidiano é interrompido pelo surgimento textual, na
impressa de massa, da perspectiva nativa dos sertanejos sobreviventes ao
genocídio. Em 1947 a revista mais lida do país, O Cruzeiro, publica como
matéria de capa o conjunto de fotorreportagens de Odorico Tavares e Pier-
re Verger intitulada Roteiro de Canudos.

180 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

Elaborada para o cinquentenário do fim da guerra, a matéria fora pro-


duzida um ano antes por Odorico e Verger, realizada a partir de um trabalho
de campo no Sertão de Canudos onde entrevistaram e fotografaram impor-
tantes personagens conselheiristas históricos, como Manuel Ciríaco, Honório
Villanova e o lendário Pedrão – sujeitos que viriam a estabelecer interlocução
com outros autores que irão em seguida a campo. O texto central do conjun-
to de fotorreportagens de Odorico Tavares e Pierre Verger, de subtítulo Os so-
breviventes, é todo voltado aos relatos de anciãos que sobreviveram a guerra,
e apresenta uma forte preocupação etnográfica, sobretudo no sentido de
registro da perspectiva nativa conselheirista, até então inédita.
Antes representados na textualidade por referentes que denega-
vam sua pertença e humanidade para legitimar o extermínio do qual foram
vítimas, os sertanejos conselheiristas são apresentados na revista O Cruzei-
ro como sujeitos cujo saber que registram é especificamente qualificado
pela dimensão da experiência, o saber da violência e seu testemunho (COR-
RÊA DE BRITO, 2023).
Uma de suas expressões mais notáveis, igualmente registrada pela
primeira ver nas fotorreportagens de Tavares e Verger, é aquilo que de-
nomino de interdito sertanejo. Em diversos momentos e falas, os interlo-
cutores entrevistados em 1947 afirmam diretamente e indiretamente que
Antonio Conselheiro e o Belo Monte eram assuntos perigosos e por isso,
velados. Temas cuja proibição ainda vigoraria e seria registrada até a dé-
cada de 1980 na região. Enquanto fato etnográfico, o interdito sertanejo é
uma expressão exemplar de antropologia da violência que se desdobra em
processos de longa duração cujo impacto é transgeracional (e como vere-
mos, pluriétnico) – sendo questão até hoje mencionada por interlocutores
mais velhos da região.
Questão notada por diversos outros estudiosos que entrevistaram
sobreviventes e seus descendentes após Odorico e Verger2, sendo algo no-
tório e amplamente comentado em nosso campo, o que venho chaman-
do de interdito sertanejo é, no entanto, pouco debatido ou teorizado na
textualidade sobre Canudos, sendo geralmente tido como algo dado. O

2. Como Audálio Dantas, José Calasans, Abelardo Montenegro, Renato Ferraz, etc.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 181


Pedro A. Corrêa de Brito

interdito sertanejo é uma modalidade de epistemicídio imposta sobre os


pontos de vista nativos. Dessa maneira, o epistemicídio evidencia, ao tentar
apagá-las, um complexo contínuo de violência e os impactos duradouros
do genocídio perpetrado contra os povos habitantes de Canudos. Ao
mesmo passo que a persistência das narrativas nativas, mostra o grau de
importância atribuído às experiências vivenciadas.
Por outro lado, a partir da divulgação da existência de sobreviven-
tes do Belo Monte, surge igualmente a linhagem etnográfica de Canudos,
com diversos autores que passam a realizar trabalhos de campo no Sertão,
tecendo vinculações de longa duração junto a interlocutores sertanejos e
seus descendentes. Nesse sentido, o principal engajamento efetivo que ca-
racteriza a linhagem etnográfica de Canudos se encontra na transmissão
do ponto de vista nativo, em uma relação de aliança e afinidade com a epis-
temologia conselheirista nativa.
Por sua vez, entendo que o surgimento textual da perspectiva nati-
va opera uma radical requalificação de sujeitos, objetos, métodos e agen-
das de investigação e pesquisa sobre Canudos, reorganizando este campo
de produção de conhecimento a partir de novas abordagens e linhagens
epistemológicas, como aquela etnográfica e aquela conselheirista, dentre
outras, que surgem após a publicação de Roteiro de Canudos (1947).
O advento textual da perspectiva sertaneja é aquilo que marca o
início de um processo de virada interpretativa sobre Canudos, impactando
toda a produção posterior. O surgimento de novos sujeitos epistemológi-
cos na textualidade, contudo, se dá de forma paulatina e desigual entre os
diversos segmentos, étnicos ou sociais, que compunham a complexa socie-
dade do Belo Monte. Processo que vem a se adensar no período seguinte a
virada interpretativa, o ciclo textual dos Centenários de Canudos.

A linha de estudos indígenas de Canudos

É preciso dizer que até a década de 1990 a bibliografía de Canudos


que apenas cita de passagem a presença de indígenas no Belo Monte, mes-
mo aquelas da linhagem etnográfica, geralmente se refere a esses segmen-
tos como caboclos, identificados a partir de sua toponímia, como caboclos

182 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

de Massacará, de Rodelas, de Mirandela, etc. Aparecendo ainda variações


toponímicas para se referir a uma mesma etnia; no caso dos índios de Mi-
randela, também referidos como caboclos de Ribeira do Pombal ou de Ban-
zaê. Dessa maneira, independente da literatura especializada, não usar ou
não saber os nomes destes povos guarda relação direta com o modo que o
estado e a sociedade (des)categorizou as etnicidades indígenas do Nordes-
te ao longo dos últimos 150 anos.
De índios a caboclos e de caboclos a índios, os povos originários do
sertão nordestino foram denominados como Kariri, ou povo calado, pelos
Tupi da costa, termo atualmente utilizado para designar sua vertente lin-
guística dentro do tronco Macro-Jê, tendo por principais línguas o Kipeá e
o Dzubukuá. Nesse sentido, Massacará se refere a localidade da etnia Kaim-
bé; enquanto Rodelas, aos Tuxá; e Mirandela, ou suas variantes, ao povo
Kiriri. Todas estas etnias localizavam-se na área de influência conselheirista3
e, em diferentes graus, participaram diretamente da Guerra de Canudos.
Nesse sentido, a literatura sobre a experiência destas etnias indígenas no
Belo Monte se inicia na década de 1990, período do ciclo textual dos Cen-
tenários de Canudos.
O caso dos Kiriri é emblemático por apresentar considerável regis-
tro acadêmico, burocrático e etnoepistemológico, além de apresentar forte
relação com Canudos. Desde o final de década de 1940, quando se instala
um Posto Indígena do SPI na cidade de Mirandela (BANDEIRA, 1972:11),
região do Sertão de Canudos, este grupo passa a ser grafado como Kiriri
ou Quiriri; povo originalmente falante de um dialeto extinto do Kipeá, o
Katembri (BRASILEIRO, 1996). A partir de então a literatura antropológica
passa a analisar o percurso de reorganização política deste povo, fazendo
uma transição de abordagem, da assimilação para a etnogênese. Em ter-
mos políticos, para esta etnia, este longo e complexo processo de reorgani-
zação culminará com o reconhecimento e homologação da Terra Indígena
Kiriri que ocorreu igualmente na década de 1990.
Os trabalhos da linha de estudos indígenas de Canudos apresen-
tam referência comum na etnografia monográfica de Maria de Lourdes
Bandeira, Os Kariri de Mirandela: um grupo indígena integrado. Publicado

3. Entre as bacias do rio Itapicuru e do São Francisco.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 183


Pedro A. Corrêa de Brito

pela Revista de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia em 1972,


a pesquisa de Maria de Lourdes consiste no primeiro trabalho de campo
com observação participante feita entre os Kiriris, realizada em 1967.
Em Os Kariri de Mirandela, Maria de Lourdes Bandeira inscreve a impor-
tância que esta etnia assinala a sua participação no Belo Monte e na guerra:

A festa [ritual do cururu] acabou com Canudos. Lá morreram os últimos pajés,


dois dos quais bastante famosos na época. O paim velho da nossa informante
era o mais afamado. Morava na Baixa da Cangalha e tinha perto de casa um
lugar separado onde “trabalhava”. Tôda quarta-feira havia brinquedo e “tra-
balho” neste lugar. Paim velho não fazia certos trabalhos com encantados
mortos sem jurema. Fumo e cachaça havia sempre. Não ensinou a ninguém os
segredos. Depois de Canudos não puderam mais fazer a festa porque ninguém
sabia como se haver e nem conhecia o segrêdo do preparo da jurema (BANDEI-
RA, 1972:83) [grifos meus].

A antropóloga registra um fato etnográfico central: a perda do prin-


cipal ritual kiriri de comunicação com seu sagrado, os encantados, como
decorrência de sua participação em Canudos. No entanto, Maria de Lourdes
não a relaciona diretamente com a perda da língua4, apesar do registro de re-
manescentes do dialeto Kipeá Kiriri ser um dos pontos altos de seu trabalho.
A textualidade antropológica sobre os povos indígenas do Nordes-
te brasileiro faz referência ainda a um texto raro, assinalado como o pri-
meiro trabalho específico sobre o tema5, Os Índios no sertão do Conselheiro:
tentativa de estudo etnohistórico (1973) de Elizabeth Nasser e Nássaro Nas-
ser. No entanto, o tema será abordado com maior profundidade somente a
partir da década de 1990, abrindo na textualidade algo que entendo com-
por uma linha de estudos indígenas de Canudos.
Em 1990, o jornal soteropolitano A Tarde publica o texto de Manuel-
son Carvalho, Índios em Canudos. O autor analisa indícios das presenças
indígenas no Belo Monte através da textualidade anterior, mencionando
a existência da rua dos caboclos na cidade do Belo Monte e documentos
primários da época da guerra.

4. Apesar de afirmar que “Os “trabalhos” mais “finos”, mais sérios, não podem ser feitos com a mes-
ma eficiência de antes porque os caboclos de hoje não sabem a língua dêles (...) e do uso da língua
na comunicação com os encantados” (BANDEIRA, 1972:76), a autora aqui não relaciona diretamen-
te o fato a morte dos pajés e demais falantes do dialeto Kipeá em Canudos durante o conflito.
5. VELDEN, 2003:70.

184 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

Três anos depois, o tema chega à academia através do pioneiro tra-


balho de Maria Lúcia Mascarenhas, o artigo Kaimbé, Kiriri e Kantaruré retor-
nam a Canudos. Publicado em 1993, o trabalho é baseado na observação
participante dos eventos de abertura dos centenários de Canudos realiza-
dos no Sertão, focando na participação destas três etnias indígena tanto à
época do Belo Monte como nos eventos dos centenários6.
A partir de sua entrada em campo, Maria Lúcia Mascarenhas de-
senvolveu a monografia de graduação intitulada Rio de sangue, ribanceira
de corpos, 1893/1897: Kiriri e Kaimbé em Canudos (1995). A autora trata, res-
pectivamente, das duas etnias cuja adesão ao movimento conselheirista se
dera de forma mais intensa e numerosa, apresentando relatos inéditos de
forte valor etnográfico.
A dimensão e o saber da violência experenciada pelos Kiriri e Kaim-
bé são expressos desde o título da monografia da autora, onde pode se no-
tar uma inversão da famosa parábola conselheirista, igualmente presente
nas narrativas indígenas7 que afirmavam que no Belo Monte havia rios de
leite e ribanceiras de cuscuz. Tanto parábola quanto sua inversão são igual-
mente registrados e tematizados na monografia da antropóloga. Mascare-
nhas publica em 1997, ano de encerramento dos eventos dos centenários,
dois trabalhos que apresentam desdobramentos de sua monografia.
O primeiro possui o mesmo título de seu trabalho monográfico e
foi publicado no número especial do Cadernos do CEAS sobre Canudos. O
segundo artigo foi lançado na principal publicação de referência do ciclo
textual dos centenários8, intitulado “Toda Nação em Canudos”1893-1897. Ín-

6. No trabalho de campo que realizei no Sertão durante os eventos dos 120 anos do fim da
Guerra de Canudos, em 2017, observei que tanto a academia, quanto os movimentos sociais
e interlocutores sertanejos locais guardam, da memória a acervos, registros da participação de
indígenas nas atividades dos centenários – na verdade, soube do trabalho de Lúcia Mascarenhas
precisamente por indicação de uma interlocutora do Movimento Popular e Histórico de Canu-
dos. Ao perguntar sobre a participação indígena nos eventos, mostraram-me diversas fotografias
do arquivo da casa-sede do MPHC; acompanhava a Celebração Popular pelos Mártires de Canu-
dos que este movimento social organiza desde a década de 1980, vinte e quatro anos depois
de Lúcia Mascarenhas fazer o mesmo. “Ela esteve aqui e acompanhou nossa celebração que nem
você. Queria falar com tudo quanto era índio! E tinha um montão, povo de tudo quanto é lado, que
também lutou pelo Belo Monte”.
7. Cf. NASSER; NASSER, 1973:16 apud VELDEN, 2003:65.
8. A Revista Canudos, editada pelo CEEC da Universidade Estadual da Bahia.

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Pedro A. Corrêa de Brito

dios em Canudos (Memória e tradição oral da participação dos Kiriri e Kaimbé


na guerra de Canudos) (1997).
Este último apresenta os pontos altos de seu trabalho etnográfico
junto aos Kiriri e Kaimbé, privilegiando em seu texto os conhecimentos e
narrativas destas etnias sobre o Belo Monte. Nas palavras da autora, “Foi o
“contar” dos velhos índios Kiriri que me abriu os olhos para o acontecido
em Canudos e a relevância desses eventos para a vida da região e para os
povos indígenas Kiriri e Kaimbé” (1997b:68). Nesse sentido, “Toda Nação
em Canudos”... reúne a tradição oral dos indígenas em torno de tópicos
nativos, discorridos a partir de recortes dos relatos colhidos em campo
entre os Kiriri e Kaimbé.
Os tópicos kiriri colhidos por Mascarenhas apresentam os nomes e
parentescos “dos que foram para Canudos” 9 (Dos Kiriri, os troncos velhos), as
áreas de localização onde se encontravam (Naquele tempo), e o contexto de
sua adesão ao Belo Monte (Antônio Conselheiro e a ida a Canudos).
Segundo os relatos colhidos por Mascarenhas, “Os mais velhos foram
[após a passagem de Conselheiro], por que pela “experiência dos sabidos”, no
saber indígena, o Senhor da Ascensão estava só na semelhança e convidou o
pessoal para ir onde estava o aperto da guerra”. Neste importantíssimo tre-
cho há o registro de uma questão central em torno da adesão kiriri massiva.
O deslocamento do Senhor da Ascensão, padroeiro que nomeia a secular
igreja que demarca o centro do Território Kiriri, da cidade de Mirandela para
o Belo Monte de Canudos; questão que será amplamente trabalhada por
outros autores desta linha.
O tópico seguinte, Tudo na santa alegria, relata a epistemologia ki-
riri sobre episódio do transporte do madeirame, indicando a relevância do
agenciamento indígena nas principais atividades cotidianas do Belo Monte
antes da guerra. Isto é, a construção da Igreja Nova organizada pelos con-
selheiristas, cuja madeira fora obtida através da intermediação dos Kiriri,

9. “Renildo; Vicente; Arnaldo, “Bom Caboclo”; Zé Pedro; Alpidio, tio de Zacarias; A mãe de Dona Mari-
quinha; Pedro Miguel, “Jagunço bom”, pai de seu Genesio e avô de Fiel; Zabezona, “cabocla valente”,
ajudou jagunço a sair de Canudos; Leodoro, foi baleado com 13 anos. É avô do cacique Lázaro, tia
de Seu Zé de Amélia; Joao Panta; Gualberto, pai de seu João do Sacão, Josefa, mãe de Dona Joana
de Seu Evaristo; Maria Gorda, foi baleada, Polinha, Chiquinha, Joao de Pedrinho, parente de Seu Ze
Fausto, Maria Francisca, parente de seu Ze Fausto; Zé Ferreira, Antonio Fogueteiro, “Jagunço bom”, foi
“mandão” em Canudos; José Mancin, “Jagunço brabo” e outros” (MASCARENHAS, 1997b:70).

186 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

pois “Os índios mais velhos ali presentes conheciam o Sinhozinho do Bendó.
E sabiam que naquela região tinha madeira que daria para a construção da
igreja. Antônio Fogueteiro, um dos cabeças de Canudos, (...) propôs a Antônio
Conselheiro ir ao Bendó” (MASCARENHAS, 1997b:71).
O episódio do transporte do madeirame, de ampla circulação em
campo, é registrado a partir de um observador participante do episódio,
“assim Caboclo Zé Pedro me contou”, que atesta que o peso da madeira des-
tinada a cumieira da construção havia diminuído após Conselheiro dar-lhe
“nove pancadas, três em cada ponta, três no meio” (IDEM), possibilitando
seu transporte antes impossível.
Nesse sentido, o transporte da madeira também é um dos fatores
da adesão ao movimento de Canudos de acordo com a epistemologia Kiriri:
“Quando colocaram [a madeira] no terreiro do Sinhozinho, foi uma “alegria
danada”, com vivas para o Bom Jesus Conselheiro”, no dia seguinte, “passa-
ram em Mirandela (...) eram os índios que levavam a madeira”, e no caminho
“levavam viola, pandeiro e onde dormiam faziam “aquela” festa. Amanhecen-
do o dia, viajavam. Os índios foram tudo. Foi contado o que ficou. Iam por que
queriam ir, não tinham promessa (...) era naquela Santa Alegria até chegarem
lá em Canudos” (MASCARENHAS, 1997b:71-72).
O Início dos combates, é tópico igualmente abordado enquanto acon-
tecimento significativo para a perspectiva Kiriri: visto que aponta sua partici-
pação no primeiro embate dos conselheiristas com as forças repressivas do
estado, assinalando que o primeiro sangue derramado na guerra fora de um
Kiriri: “Desta turma, só morreu um índio” (MASCARENHAS, 1997b:72;84).
A circulação da produção de víveres, assim como a pendularidade
relativa à produção de farinha entre Canudos e as aldeias, é abordada pe-
los Kiriri no tópico seguinte, Na terra do “rio de leite e barrancos de cuscuz”
(MASCARENHAS, 1997b:73). Enquanto no tópico As Orações, Mascarenhas
registra a memória das tradições da Horas em Canudos (correspondente
a divisão do dia) na experiência indígena dos Kiriri; que participavam das
orações e mantinham aquelas que lhes eram próprias (IDEM).
O tópico Os kiririzeiros eram “jagunços” trata sobre a tradição oral
desta etnia sobre sua participação guerreira em diferentes momentos do
conflito. Relata que até os sabidos – isto é, aqueles que falavam com os en-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 187


Pedro A. Corrêa de Brito

cantados – usavam sua ciência na luta: “Pedro Miguel, caboclo velho, virou
Jagunço. Era um “sabido”, se envultava” (IBIDEM). Este último transmitira o
saber da violência contando sua sobrevivência ao bombardeio da Igreja
Nova, lotada de gente, e as pessoas do Belo Monte que pereceram em meio
ao fogo decorrente da artilharia e dinamites do exército.
Contudo, o relato transmitido por Pedro Miguel igualmente demar-
ca Canudos como “uma festa...”, assinalando aquilo já registrado na textua-
lidade mais ampla do campo, o crescimento populacional do Belo Monte
durante o conflito:

Era de Canudos para a aldeia, da aldeia para Canudos, dizia, “lá tá bom”. Dizia
que era uma festa... era a alegria maior do mundo. Tinha também a caixa de
guerra.... tan, tan,. tan, quando caia um, outro pegava. No quinto ano, o últi-
mo “rebuliço” foi no meio da rua [cidade]. Ele no meio dos mortos e chega um
com um punhal furando para ver quem estava vivo, ele consegue escapar. À
noite, pega as armas, entra nos piquetes, os “buracos”, com as armas e ai era
só derrubando gente. Os soldados procuravam, mas não viam nada (MASCA-
RENHAS: 1997b:74).

Nesse sentido, o relato transmitido por Pedro Miguel demonstra


que o engajamento dos Kiriri nas forças conselheiristas se deu até o final da
guerra, confirmando a utilização de túneis como estratégia conselheirista
de resistência durante a Batalha do Belo Monte. É notável também que a
função dos toques da caixa de guerra parece apontada como atribuição
dos índios kiriri, papel importante tendo em vista a comunicação estratégi-
ca que o instrumento possui em batalha. Nesse sentido, o relato Kiriri assi-
nala que “os índios eram todos jagunços. Novos e velhos” (IDEM).
O tópico A Guerra apresenta a riqueza da epistemologia Kiriri sobre
o conflito. Questão mencionada igualmente em outros tópicos do artigo de
Mascarenhas, os Kiriri relatam que participaram dos piquetes, os lendários
grupos móveis de ação tática da vanguarda conselheirista, descrevendo na
textualidade de forma inédita sua formação e movimento de ataque: “Seu
João conta... “os piquetes eram quadradinhos, bem assim, base de doze pal-
mos. Para entrar, era como boca de forno, entrava assim, por baixo”” (IDEM).
O tópico é descrito em pormenores pelos Kiriri. Desde a formação
e o contexto político da III Expedição contra Canudos, comandada pelo fa-
moso coronel Moreira César que assinalam ser “acostumado a vender guerra

188 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

com a promessa de que com a vitória, o mesmo seria governo” (IDEM), até a
organização da contra-ofensiva conselheirista e o papel de protagonismo
que os Kiriri relatam.

Pajeú foi então ajudado pelos pajés Kiriri que através da sua sabedoria e da
“ciência” descobriram como Moreira César iria e aconselhou Pajeú a mandar
flecha e tiro para a caixa dos olho daquele (MASCARENHAS, 1997b:75).

Nesse sentido, a participação desta etnia é afirmada não só na eco-


nomia do Belo Monte e na composição da vanguarda das forças conselhei-
ristas, mas também na presença de saberes e na utilização de formas de
produção de conhecimento próprios ao povo Kiriri tanto na condução do
conflito quanto em sua transmissão e registro. Entendo que isso implica em
uma experiência de trocas interétnicas a nível epistemológico, sobretudo
por atravessar as diferentes cosmologias em jogo.
Os dois tópicos seguintes finalizam os registros da epistemologia
Kiriri sobre Canudos: Na perseguição depois da guerra, o “refrigério da água
encantada” e Conselheiro. Nestes tópicos finais, Mascarenhas apresenta o
contínuo de violência experienciado e narrado pelos Kiriri no pós-guerra,
assim como sua relação com a tomada de seu território: “morreu uma “in-
quantidade” de gente. Muitos Kiriri morreram lutando, outros se espalharam
pois quando voltaram a terra estava ocupada pelos brancos. “Os que voltaram
foi gente pouca e foi assim que nois começou a ficar sem terra”” (1997b:77) pois
“na estrada do Pau Ferro e Vargem tinha o Capitão, chamado Aleido, que ma-
tava os jagunços que vinham de cima. (...) Aproveitando a saída dos índios para
Canudos, as terras desocupadas, Joao Ivo dos Buracos tomou posse” (IDEM:76).
A segunda parte do artigo de Maria Lúcia registra a epistemologia
dos Kaimbé, etnia dos índios de Massacará, localizada a nor-noroeste de
Mirandela. Nesta parte, o primeiro tópico apresentado pelo artigo é intitu-
lado Kaimbé, “nasci no fogo, sei contar do princípio”, fala registrada nos rela-
tos do indígena ancião de 97 anos, seu Antônio, quem dá a genealogia dos
Kaimbé que foram para o Belo Monte10.

10. “O pai de João Sabino saiu no ’’cerco’’ da guerra com oito anos, foi criado no Massacará. Maria
falou da sua avó, Silvino de seus avós e pai. São eles, Maria de Jesus, Maria de Catarino e sua mãe,
Marculina Maria de Jesus; uma irmã de Marculina morreu lá, José de Filimina, Manoel Pereira
Dias, Mariano, Marcelo, Noberto, Jose Bernardino e a mulher, Andre, Carlito, ’’tocador de gait’’ e
outros” (MASCARENHAS, 1997:77).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 189


Pedro A. Corrêa de Brito

O tópico ainda registra a divisão de alimentos em Canudos de forma


próxima àquela relatada pelo Kiriri, assinalando também o local do território
histórico dos Kaimbé, a Fazenda Ilha, assim como o início do processo de
expulsão desta etnia pelo coronel Jose Americo, responsável por destruir
suas taperas alegando “que índio era tudo jagunço de Antonio Conselheiro.
Mas essa prova de que fulano ou sicrano era jagunço e foi pra Canudos brigar,
essa prova não saiu” (MASCARENHAS, 1997:77). O interlocutor aponta que o
índio que sabia ter lutado na guerra morava em Sergipe e servira ao lado das
forças do governo, mas que Maria de Catarino foi para o Belo Monte moça,
“numa dessas passagens do madeiro por Massacará. Morreu lá” (IDEM, 78).
No seguinte tópico, No princípio, Antonio Conselheiro, Mascarenhas
registra os relatos Kaimbé sobre o principal de Canudos, assinalando sua
passagem por Massacará e seu convite para participarem da construção da
Igreja Nova no Belo Monte:

Chegou no Massacará e “deu conhecimento ao povo”. Tinha plano de cons-


truir a Igreja em Canudos e junta o povo para tirar a madeira de Mirande-
la abaixo. As toras de pau eram pesadas, andavam devagar. Quando não
aguentavam o peso das toras de madeira, Conselheiro batia com a bengala e
elas ficavam leves e na fé iam prosseguindo (MASCARENHAS, 1997:79).

O acompanhamento do madeiro é o tópico seguinte, onde assina-


lam a presença Kaimbé no trabalho de construção da Igreja Nova de Ca-
nudos, além de registrar que as passagens do madeiro ocorreram diversas
vezes pela região, “fizeram esta caminhada não foi só uma vez não. Vinha
do Bendó, Baixão terrível, ao redor só tinha índio, Mirandela, Massacará, Ca-
nudos... muitas léguas. Iam e voltavam até construir a Igreja” (IDEM, 79-80).
Curiosamente, os Kaimbé registram que o local era domínio de certa Umbi-
lina, Sinhá de Bendó e o trabalho como “uma santa alegria” (IDEM), análogo
a festa da bandeira.
No tópico Corre a notícia do “rio de leite e uma serra de cuscuz”, os
Kaimbé relatam a abundância de alimentos e a distribuição de comida no
Belo Monte, afirmando que “em Canudos iam ter comida e salvação” (IDEM,
80). Enquanto no tópico A guerra começou... se vê a breve narrativização
sobre o conflito, atribuindo seu início ao fato de Conselheiro “construir uma
cidade como dele”, e a virada da guerra, inicialmente ganha pelos conselhei-

190 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

ristas, pela chegada da artilharia pesada nas forças do exército, a “peça” –


arma forte para vencer jagunço (1997:80); também chamada de matadeira.
Nos últimos tópicos, O Coronel José Américo e ...no fim da guerra, os
Kaimbé retornam a questão da expulsão de seus territórios em uma das
narrativas mais interessantes sobre o conflito, relatando batalhas e emba-
tes até a região de Tucano, fim do sertão e início do agreste, no extremo
sudoeste do Belo Monte. Relatam a aliança do coronel Américo com o go-
verno republicano, seu papel de interdição da passagem de Massacará para
Canudos, sua perseguição pelas forças conselheiristas e seu retorno com
“patente de comandante” para sair “catando o pessoal, culpado ou não. To-
cava fogo nas taperas. Para não morrer, os índios debandaram pelo mundo”
(MASCARENHAS, 1997:82).
Nas considerações finais, de apenas uma página, retorna a presença
textual direta de Maria Lúcia Mascarenhas, encerrando o trabalho a partir
do contraste entre os relatos colhidos com os Kiriri e Kaimbé:

Os depoimentos abordam modos completamente diferentes no relatar a


participação em Canudos. Os Kiriri, apesar de compreenderem o grau de
perda que tiveram como povo, contam com orgulho que o primeiro a morrer
foi um índio. Os índios tinham em Canudos sua rua e também suas rezas.
Os pajés usavam a ciência para a defesa de Canudos. Entre os Kaimbé, uns
assumem a ida para Canudos, outros não. Esta atitude é explicada por eles
mesmos quando atentam com detalhes para a ação de terror implementa
pelo Coronel José Américo antes e depois da guerra. A caminhada para pe-
gar a madeira era sublinhada como momentos fortes em que a comunidade
canudense mostrava o seu fervor e fé e, ao mesmo tempo, a cada dia, a eles
se juntavam mais pessoas (MASCARENHAS, 1997:83).

Desde então, os ricos registros Kiriri e Kaimbé recolhidos nos tra-


balhos de Mascarenhas se tornam as principais referências utilizadas pelas
publicações posteriores desta linha.
Ainda em 1997, ano máximo dos centenários de Canudos, o an-
tropólogo Edwin Reesink publica dois artigos sobre a presença Kaimbé
no Belo Monte: Índios e Canudos. A tradição oral entre os Kaimbé sobre
Canudos e os efeitos sociais resultantes da guerra, assim como A tomada
do coração da aldeia: participação dos índios de Massacará na Guerra de Ca-
nudos (1997). Os artigos de Edwin dialogam diretamente com os trabalhos

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 191


Pedro A. Corrêa de Brito

de Maria Lúcia Mascarenhas; no caso de A tomada do coração da aldeia..., o


artigo é publicado no mesmo número especial do Cadernos CEAS em que a
autora lança o mencionado texto Rio de sangue, ribanceira de corpos (1997).
No entanto, Edwin Reesink defendera em 1981 uma dissertação de
mestrado sobre o sertão. Trabalhando posteriormente em campo, passou
a acompanhar os movimentos indígenas da região e publica em 1988 o
artigo A questão do território dos Kiriri de Mirandela: um confronto de dados
e versões. Por sua vez, no ciclo textual dos centenários de Canudos, Edwin
Reesink igualmente vinha publicando uma série de outros artigos onde
analisa criticamente a textualidade tradicional e o debate então em curso
sobre o Belo Monte neste período.
A partir do artigo Até o dia do Juízo Final (1998), Reesink passa a tra-
tar de outras etnias indígenas além dos Kaimbé em Canudos, mencionan-
do os Tuxá e sobretudo os Kiriri. Em 1999, o antropólogo lança dois artigos
seminais em que reúne as últimas pesquisas sobre a presença de etnias
indígenas no Belo Monte; oferecendo, ao mesmo tempo, uma análise alter-
nativa e crítica sobre epistemologia de Canudos.
O artigo publicado em Boston, Till the end of Time: The Differen-
tial Attraction of the ‘Regime of Salvation” and the “Entheotopia’ of Canu-
dos (1999) consiste em um desdobramento do texto de Até o Dia do Juízo
(1998), apresentando novas leituras teóricas sobre a concepção de crença
conselheirista, sertaneja e indígena, baseando-se na perspectiva desta úl-
tima. Tendo em vista a presença de diferentes etnias em Canudos, Edwin
afirma a existência de diferentes modalidades de atração, ou fatores de
adesão, ao movimento conselheirista.
Edwin retoma a questão em A Salvação – as interpretações de Ca-
nudos a luz da participação indígena e da perspectiva conselheirista (1999).
O artigo endereça duas modalidades de adesão (ou adesões diferenciais,
nos termos de Reesink) ao movimento conselheirista e sua cidade: o regime
de salvação e a enteotopia (1999b:154) dirigidos a população sertaneja e a
população indígena de Canudos.
Em A Salvação... Edwin Reesink coloca a enteotopia como um mo-
delo de “sócius que territorializa o sagrado na terra, um ideal societário em
que toda a vida é englobada pela expressão permanente da religião”, sendo

192 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

aquilo que enceta a “construção da comunidade de Belo Monte como a ma-


terialização de uma ordem social justa e infundida do sagrado” (1999b:156).
O regime de salvação, por seu turno, “se orienta por um modelo
societário fundado numa concepção religiosa idealizadora, objetivando a
transformação da vida profana do cotidiano em uma prática social cons-
tante, em que o sagrado infunde todo o sócius” (IDEM). Dessa maneira, o
antropólogo discorda da acepção messiâno-milenarista da linhagem socio-
lógica paulista, pois os sertanejos não esperavam pelo advento do “milênio
em algum tempo previsível” (1999b:154); ainda que afirme acreditar que tal
malversação não inviabilize, per se, pensar os conceitos em outros termos.
Nesse sentido, Reesink entende Canudos enquanto um espaço em
que o “sagrado é a finalidade e a medida de toda a vida em sociedade: o
regime de salvação dirige toda a vida e a orienta inteiramente para o sa-
grado, valor final e absoluto da vida e da morte”, defendendo por isso que
“Canudos, antes de ser qualificado como messiânico ou como milenarista,
é um movimento da salvação da alma” (1999b:155). Dessa maneira, este
se apresenta como um movimento coletivo e não individual; o regime de
salvação é assinalado pelo autor como o grande fator de atração sobre as
populações heterogêneas que compunham o Belo Monte (1999a:09).
Assim, ainda que Reesink entenda que o “movimento de salvação
era aquilo que motivaria Conselheiro e seus adeptos” (1999b:154), o autor
igualmente afirma a complexidades e variedades de engajamento dos di-
versos grupos indígenas presentes no Belo Monte (1999b:148), como as
diferenças assinaladas desde Mascarenhas entre os relatos Kiriri e Kaimbé
quanto sua participação.
Nesse sentido, Edwin analisa os fatores diferenciados de adesão ao
movimento conselheirista a partir dos relatos colhidos entre as etnias Kiriri,
Kaimbé e Tuxá. Povos que assinalam e apresentam Canudos como um
acontecimento significativo que impactou de diferentes formas suas histórias,
visto que “os povos indígenas na região sentiram os seus efeitos de uma ma-
neira não uniforme; mas, cada um ao seu modo, se viram envolvidos em Ca-
nudos e na guerra movida conta a cidade da religião” (REESINK, 1999b:149).
Tal questão é crucial pois assinala a complexidade interétnica da
sociedade conselheirista, questão que desestabiliza as monologias de nos-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 193


Pedro A. Corrêa de Brito

so campo, além de demarcar outra questão de primeira importância, a et-


nicidade dos povos indígenas do Nordeste. Reesink trabalha tal questão
precisamente em torno do ritual da Toré, seja o ritual cururu dos Kiriri que
fora perdido na Guerra de Canudos, ou aquele que estes aprenderam pos-
teriormente com os Tuxá:

O Fenômeno do Toré no Nordeste indígena se enquadra dentro da perspec-


tiva de uma linha de continuidade religiosa e ritualística em que o ritual e a
religião persistem, estando no entanto em relativa mudança permanente na
modalidade de transformação gradual. Essa gradualidade articula persistência
com adequação frente às interações interétnicas, principalmente em relação
às tentativas hegemônicas de torná-los “menos índios” (REESINK, 1999:148).

Dessa maneira, Reesink retoma a questão da perda dos saberes in-


dígenas dos Kiriri durante a guerra, trabalhando a questão relacionando a
perda dos xamãs, da língua e do ritual a sua experiência no conflito. Questão
crucial tendo em vista que a língua nativa Kiriri atuava como veículo prefe-
rencial de comunicação com o sagrado, os encantados, através do ritual da
Toré (1999b:48). Segundo Reesink, “o Toré consiste em expressão ritual de
um sistema de crença em encantados, paralelo ao sistema de crença católico
devocional aos santos” expresso pelos nativos, cuja “tradição dos índios Kiriri
de Mirandela e Kaimbé de Massaracá indicam a presença de ambos sistemas
de crença em Canudos, sendo fato importantíssimo para compreensão da
atração que Conselheiro exercia sobre estas populações” (1999:148).
Reesink retoma os relatos Kiriri sobre a mudança do Senhor da As-
cenção de Mirandela para Canudos, afirmando que os encantados comu-
nicaram aos índios que o centro de seu mundo se deslocara de Mirandela
para a cidade de Belo Monte (REESINK, 1999:155). Pelo contraste entre os
relatos, Edwin afirma que há uma adesão diferenciada também entre os
grupos indígenas que participaram de Canudos, com significados pessoais
e grupais diferenciados para participantes como os Kiriri e os Kaimbé; o que
leva o antropólogo a se debruçar à compreensão interna da lógica cultural
específica dos Kiriri, sua participação e modalidade particular de inserção
em Canudos (REESINK, 1999:153-154)11.

11. Um dos diversos desdobramentos desta agenda de pesquisa é o artigo A maior alegria do
mundo (2012), onde Reesink retoma de forma mais detida a participação Kiriri em Canudos à luz
dos relatos atuais destes indígenas.

194 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

Os relatos e a adesão em massa dos Kiriri ao Belo Monte levam


Edwin Reesink a perceber que os Kiriri voltaram a totalidade de seu sis-
tema de crenças para decifrar o significado de Canudos, demonstrando
com isso a inexistência de uma percepção de oposição radical entre os
dois sistemas paralelos: o indígena e o sertanejo (REESINK, 1999:155).
Dessa maneira, Reesink defende que os povos indígenas mantém uma si-
multaneidade entre incorporação de elementos culturais impostos e con-
tinuidade das concepções e práticas indígenas comumente tidas como
estáticas, gerando assim novas modalidades socioculturais, ao mesmo
tempo em que garante a auto-percepção de tradição preservada por par-
te dos índios atuais (RESSINK, 1999:148).
Com isso, Ressink insere a narrativização indígena sobre sua própria
história em um processo antropológico amplo de disputa cujo território é a
memória, entendendo que “a reemerência de Canudos pode ser lida [após a
redemocratização de 1988] pelo contexto da verdadeira batalha de recons-
trução da memória nacional do Brasil” (1991:151). Com isso, pode se dizer
que Edwin aponta brilhantemente que Canudos serve tanto aos povos indí-
genas quanto aos não-indígenas como “um lugar fundamental nas estrutu-
ras de alteridade, ou seja, a localização imaginária de Canudos na concepção
da nação, que é simultaneamente externa e interna” (REESINK, 1991:153).
Precisamente aquilo a qual, sutilmente, Maria Lúcia Mascarenhas sugere des-
de o título de seu mencionado artigo Toda Nação em Canudos... (1997).
Em 2003, por seu turno, Felipe Vander Velden entra em cena com o
artigo Combates singulares, histórias singulares: sobre a participação indígena
no movimento de Canudos, decorrente de sua pesquisa12 de iniciação cientí-
fica realizada na graduação em Ciências Sociais da Unicampi. Acerca da au-
sência de estudos sobre a presença e participação indígena em Canudos13,
Velden reproduz uma das máximas de José Calasans, imputando ao fato

12. Segundo o autor, a pesquisa consistiu no levantamento de material documental e etnográ-


fico referentes à trajetória de Antonio Conselheiro e aos aldeamentos indígenas de Mirandela,
Ribeira do Pombal, Soure e Jeru (SE). “Buscava no cruzamento desses dois conjuntos de dados,
estabelecer prováveis pistas na procura pelos motivos que levaram os caminhos de índios e con-
selheiristas a se cruzarem e as “possíveis razões para esta saída” (2003:60-61).
13. Velden faz referência aos trabalhos anteriores de Bandeira (1972), Nasser e Nasser (1973),
Mascarenhas (1993, 1995) e Reesink (1997). No entanto, o autor não assinala em seu artigo os
demais trabalhos sobre a presença indígena em Canudos publicados por Edwin Reesink (1997a,
1998, 1999a, 1990b) – o que, decerto, renderia interessante debate.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 195


Pedro A. Corrêa de Brito

“ao peso da interpretação euclidiana do fenômeno” (Apud 2003:58). No en-


tanto, Felipe analisa brevemente a textualidade sobre Canudos após 1970
a partir do que define como as principais matrizes explicativas14 desta área.
Felipe Vander Velden afirma que “a renovação dos estudos canuden-
ses a partir desta data, ainda que tenham “redescoberto” a participação de
diferentes contingentes no movimento de Conselheiro - entre eles os gru-
pos indígenas -, continuaram a lançar sobre os mesmos um olhar enviesado”
(2003:59). Nesse sentido, o autor atribui as tendências monocausais e totali-
zantes das demais lentes teóricas utilizadas sobre Canudos como igualmente
responsáveis por obscurecer a presença indígena no Belo Monte (2003:60).
Dessa maneira, Felipe assinala buscar a especificidade da participação dos
grupos indígenas (IDEM). Para tanto, seu trabalho aborda as experiências in-
dígenas em Canudos a partir de um dos temas tradicionais da antropologia
americanista, o xamanismo e o profetismo; analisando os dados destas dife-
rentes etnias a partir da leitura de Tromboni sobre a existência de uma matriz
ritual comum, o complexo cultural da jurema (2003:61).
Nesse sentido, Felipe Vander Velden afirma que os grupos indíge-
nas que lutaram ao lado de Antonio Conselheiro produziram “uma ima-
gem, particular, diferente, própria a seus universos simbólicos” sobre ele,
própria a de um xamã, ou um profeta. Partindo de referentes como Pierre
Clasters e Cristina Pompa, Felipe apresenta estas duas categorias segundo
a etnologia das terras baixas latino-americanas. Procedendo da mesma ma-
neira em relação às categorias kiriri, como aquela do pajé, do conselheiro,
do entendido e do mestre-encantado, Felipe apresenta um jogo de apro-
ximações perspectivas que visa dimensionar Antonio Conselheiro nos es-
quemas simbólicos e rituais da cultura indígena do nordeste.
Isto é, o autor sugere “que Canudos transfigurou-se, para aquelas
populações, em um espaço ritual de grande importância, ao mesmo tempo
em que iniciava-se um crucial período ritual entre os grupos indígenas no

14. Matrizes que Velden assinala com “a marxista, religiosa e a que lança mão do par campesi-
nato/catolicismo rural ou rústico” (2003:59). Esta última, aquela que minha pesquisa identifica
como a linhagem sociológica de Canudos, cuja mater-família é Maria Isaura Pereira de Queiroz e
o ancestral totêmico, Weber. Àquilo que Velden chama de matrizes explicativas, preferi o con-
ceito de linhagens epistemológicas por realizar a pesquisa de dissertação buscando privilegiar
as relações entre os nativos (relativos ou efetivos) deste campo na produção de conhecimento,
isto é, seus autores.

196 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

sertão, o que foi indicado pela palavra profética do xamã/mestre-encanta-


do Antônio Conselheiro” (2003:64). Velden propõe, dessa maneira, Canudos
como espaço destinado a um grande momento ritual para a cultura indíge-
na da região: “aldeia/cabana sagrada em que o rito seria realizado: deixar a
aldeia em busca do centro do mundo mas também preservar a separação
simbólica entre o espaço ritual e o espaço mundano da aldeia” (2003:66).
Segundo o autor, o movimento de “buscar o centro do mundo sig-
nifica mais: evento novo, mudança de referente cosmológico (...) talvez
lida pelos índios como promessa de fartura, de saúde e de reforço da
comunidade” que, no entanto, “só poderia ser alcançado na intensidade
do ritual” onde “um espaço sagrado fora da aldeia devia e deve ser cons-
truído” (2003:65). Nesse mesmo sentido, Velden menciona os registros
tanto Kiriri quanto Kaimbé sobre seu papel na produção de farinha fora
do Belo Monte como exemplos “de recusa em realizar, num mesmo sítio,
atividades rituais e cotidianas” (2003:66).
Após a publicação de Velden, Edwin Reesink volta a cena com o lan-
çamento de trabalhos como A maior alegria do mundo: a participação dos
índios Kiriri em Belo Monte (Canudos) de 2012, e Saber os nomes: observações
sobre a degola e a violência contra Belo Monte (Canudos) lançado em 2013.
Entendo que os dois artigos, de belíssimos títulos, são complementares.
No primeiro, A maior alegria do mundo... (2012) Edwin se volta aos
relatos Kiriri que assinalam sua participação em Canudos destacando
os aspectos simbólicos positivos sobre o Belo Monte; em detrimento da
questão já abordada na textualidade anterior sobre a guerra como mo-
mento que demarca importantes perdas para esta etnia, como a perda de
sua língua, seus rituais e pajés (i.e, o cururu performado pelos entendidos
através do dialeto Katembri), questão trabalhada pelo artigo seguinte,
Saber os nomes... (2013).
Apesar de ainda não estar publicada, Edwin Reesink defendeu em
2017 a Tese de Professor Titular em Antropologia pela Universidade Federal
de Pernambuco intitulada As alpercatas do Conselheiro e a maior alegria do
mundo: Etnohistórias Kaimbé e Kiriri desde a conquista até o Bello Monte. A
tese, que atualmente encontra-se no prelo, reúne os mais de vinte anos de
Reesink em campo junto as principais etnias indígenas que estiveram no

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 197


Pedro A. Corrêa de Brito

Belo Monte, abordando seus relatos enquanto modalidades de etnohistó-


ria – isto é, enquanto processos de narrativização do passado.
Nesse sentido, acredito que a tese de Edwin Reesink virá consolidar
o ciclo de pesquisas que remonta a primeira publicação específica sobre o
tema, Os Índios no sertão do Conselheiro: tentativa de estudo etnohistórico
(1973) de Nasser e Nasser. Abrindo, por outra confluência de fatores, um
possível terceiro momento de textualização das epistemologias indígenas
em campo: de etnohistórias para etnoepistemologias.

Considerações finais

No campo de produção de conhecimento de Canudos, a linha


de estudos indígenas é um ramo, ou vertente, da linhagem etnográfica.
Devido a especificidades debatidas, a linhagem etnográfica surge como
aliada a linhagem epistemológica conselheirista, revelando a sobrevivên-
cia da perspectiva nativa sertaneja e, muitos anos depois, da perspectiva
nativa indígena e suas epistemologias.
Como visto nos relatos indígenas, o genocídio de Canudos e o in-
terdito sertanejo são igualmente extensivos as populações indígenas da
região, caminhando lado a lado com a política de denegação das etnici-
dades destes povos. O alcance pluriétnico do genocídio e seus reflexos
duradouros, como o epistemicídio, portanto, mostram a dimensão de Ca-
nudos como um fato social total que impacta de diferentes formas todos
os segmentos sociais e étnicos envolvidos no conflito, de ambos os lados,
assim como as formas pelas quais se elabora conhecimento sobre o tema,
sobre si e sobre a produção da diferença neste país.
O impacto de tais experiências se averiguam pela persistência
das narrativas nativas quanto aos acontecimentos do Belo Monte. Nar-
rativas que se antes interditas e transmitidas somente entre parentes
(o que mostra a importância das relações de parentesco tanto em Ca-
nudos quanto na produção e transmissão de conhecimento como um
todo), passaram a circular na textualidade, de forma lenta e desigual,
somente a partir de 1947.

198 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
UMA LINHA DE ESTUDOS

Há de se notar que a virada interpretativa de Canudos, iniciada em


1947, coincide com o período de instalação do posto do SPI na cidade de
Mirandela, assinalado como marco do processo de retomada do território
indígena Kiriri. De forma análoga, a demarcação da Terra Indígena Kiriri
ocorre no mesmo período que a temática de Canudos reemerge na socie-
dade brasileira, durante o ciclo dos Centenários de Canudos e seus eventos
ocorridos de 1993 a 1997, coincidindo com o auge de atividades de movi-
mentos sociais sertanejos que também discutiam e organizavam suas de-
mandas em torno da questão fundiária na mesma região do Sertão, como
o Movimento Popular e Histórico de Canudos (MPHC).
Os eventos dos Centenários de Canudos, sobretudo aqueles realiza-
dos no Sertão, promoveram uma inédita interlocução entre os sujeitos em
campo: pesquisadores, escritores, academia, movimentos sociais urbanos e
locais, políticos e religiosos, militares e sujeitos nativos, sertanejos e indíge-
nas. Dessa maneira, entendo que estas conjunções e a confluência destes
dois campos antropológicos e etnográficos se configuram como a principal
condição de possibilidade para o surgimento de uma linha de estudos que
tenha como principal agenda de pesquisa a investigação da presença e ex-
periência indígena em Canudos.
Por outro lado, por revelarem o Belo Monte como uma socieda-
de interétnica complexa, entendo que o surgimento textual dos saberes
indígenas sobre Canudos opera um importante e necessário processo
de abertura (inter)reflexiva neste campo, marcado pelo (re)surgimento
de “novos” sujeitos epistemológicos antes excluídos ou subalternizados
enquanto tais pelo etnocentrismo da textualidade: indígenas, negros,
mulheres e crianças do Belo Monte de Canudos. Isso implica em compre-
ender tais saberes enquanto epistemologias simétricas a àquelas produ-
zidas pelos meios institucionais autorizados, como a burocracia, o acervo,
a academia, que podem ser igualmente lidos enquanto formas etnoepis-
temológicas de produção e transmissão de conhecimento de dada socie-
dade urbana tida como moderna.
Por fim, creio que o terceiro momento desta linha de estudos po-
derá se caracterizar pela textualização das epistemologias indígenas sobre
Canudos a partir de pesquisadores Kiriri, Kaimbé e Tuxá. O interesse pelo

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 179-202, 2023 | 199


Pedro A. Corrêa de Brito

tema, assim como sua importância para assegurar os direitos dos Povos
Indígenas do Nordeste15, vem despertando inúmeras atividades das quais
este artigo, em si, é também singelo desdobramento.
Em 2022, fui convidado a participar da roda de conversa sobre
a presença indígena em Canudos, iniciativa discente da Pós-Graduação
em Crítica Cultural da UNEB, organizada pelos colegas Anny Santos e
Kárpio Siqueira. A roda de conversa contou ainda com convidados como
Pedro Lima Vasconcelos e Felipe Vander Velden. O destaque, contudo,
fora a grande participação de jovens Kiriri, Kaimbé e Tuxá na atividade.
Seus relatos e engajamento com o tema me levam a pensar na impor-
tância da implementação da política de cotas na universidade pública
brasileira e na possibilidade de vermos desde a academia a produção
científica indígena elaborada por esta promissora geração de pesqui-
sadores nativos – que, tais como seus ancestrais, seguem na luta pela
afirmação de sua existência.

Referências

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grado. Salvador: Estudos Baianos n.6, p. 190, 1972.

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CORRÊA DE BRITO, Pedro Andrade. [2023] Contra-cartografia de Canudos: por uma


etnoepistemologia do conflito. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) -Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro.

15. Vale ressaltar que a proposta de Marco Temporal das Terras Indígenas, atualmente em trânsito
no senado após ser aprovada pela câmara dos deputados, interfere diretamente nos direitos e
demandas Kiriri e Kaimbé, visto localizar seu recorte na promulgação da atual Constituição, dia
05 de outubro de 1988 – ou seja, exatos 91 anos após o marco temporal de outra desterrito-
rialização assinalada por estas etnias: a queda definitiva da cidade do Belo Monte de Canudos,
ocupada pelas forças da república em 05 de Outubro de 1897.

200 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


PRESENÇAS INDÍGENAS NA GUERRA DE CANUDOS:
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Pedro A. Corrêa de Brito

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202 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p203

OS POVOS INDÍGENAS E A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:


CAMINHOS HISTÓRICOS QUE DEIXARAM MARCAS

Carla Lucilene Uhlmann1


Mabli Nadjane Barbosa Barreto2

Resumo: As discussões e estudos trazidos neste artigo são levantamentos


preliminares de nossas pesquisas. Os povos indígenas, habitantes que já
estavam no território que hoje chamamos de Brasil, antes da chegada dos
colonizadores europeus, não conseguiram evitar a catequização e a acultu-
ração promovida nesse embate cultural, social e linguístico. Nesse sentido,
segundo os teóricos pesquisados, Alves (2020); Deleuze e Guattari (1980);
Oliveira e Carvalho (2005); Ribeiro (2021); Silva (2019); Souza (2018) e Krenak
(2012); dentre outros, constatamos a origem da Educação de Jovens e Adultos
(EJA). Os jesuítas que chegaram com os portugueses, a partir do século XVI,
começaram a promover essa “educação” de cunho católico, pacificador, para
as crianças e também os jovens indígenas. Foi uma das formas que os portu-
gueses encontraram para expandir o território além-mar. Diante das fontes
pesquisadas, pudemos constatar o quanto os povos indígenas ainda contri-
buem com suas culturas e modos de ser e pensar mundos mais justos, mesmo
convivendo com uma multiplicidade de culturas que é a sociedade brasileira.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos (EJA). Povos Indígenas. Jesu-
ítas. História.

INDIGENOUS PEOPLES AND ADULT EDUCATION:


HISTORICAL PATHWAYS THAT LEFT MARKS

Abstract: The discussions and studies presented in this article are preliminary
surveys of our research. Indigenous peoples, inhabitants who were already
in the territory we now call Brazil before the arrival of European colonizers,
were unable to prevent the catechization and acculturation promoted in this
cultural, social, and linguistic clash. In this sense, according to the researched
theorists, Alves (2020); Deleuze and Guattari (1980); Oliveira and Carvalho

1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Universidade do Estado da


Bahia (Pós-Crítica/UNEB). Endereço eletrônico: carlinhauhlmann25@gmail.com.
2. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Universidade do Estado da
Bahia (Pós-Crítica/UNEB), linha de pesquisa: Letramento, Identidades e Formação de Educadores.
Endereço eletrônico: barretomabli@gmail.com.

[Recebido em: 14 mai. 2023 – Aceito em: 11 set. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 203-218, 2023 | 203


Carla Lucilene Uhlmann e Mabli Nadjane Barbosa Barreto

(2005); Ribeiro (2021); Silva (2019); Souza (2018); and Krenak (2012), among
others, we observe the origin of Youth and Adult Education (YAE). The Jesuits
who arrived with the Portuguese in the 16th century began to promote this
Catholic-based “education” for indigenous children and young people. It was
one of the ways the Portuguese found to expand the overseas territory. Based
on the researched sources, we were able to ascertain how much indigenous
peoples still contribute with their cultures and ways of being and thinking
towards a fairer world, even while coexisting with a multiplicity of cultures
within Brazilian society.
Keywords: Youth and Adult Education (YAE). Indigenous Peoples. Jesuits.
History.

INTRODUÇÃO

O presente artigo busca abordar a origem da Educação de Jovens


e Adultos (EJA) com a chegada dos jesuítas no Brasil, visto que eles alfabe-
tizavam crianças e adultos indígenas. O foco deste estudo está na relação
entre a chegada dos jesuítas no Brasil demarcando a origem da EJA, bem
como a importância de reconhecer e valorizar os povos originários.
O objetivo deste estudo é demonstrar a relação entre os jesuítas e
povos originários com a Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como
as contribuições dos mesmos para a sociedade contemporânea. A partir
desse processo, que não deixou de ser um choque cultural, social e linguís-
tico, o Estado após sua constituição passa a ser responsável pela criação de
diretrizes especiais para essa modalidade de ensino.
Diante da história de exclusão e subalternização dos povos origi-
nários no contexto educacional, surge o seguinte questionamento: “Quais
foram as contribuições dos jesuítas na Educação de Jovens e Adultos (EJA)?
Essa pergunta problema visa investigar o papel desempenhado pelos jesu-
ítas na história da EJA, levando em conta os seus próprios processos educa-
tivos e de transmissão de conhecimentos.
Partimos da hipótese de que a Educação de Jovens e Adultos (EJA)
tem a sua origem com o letramento desenvolvido pelos jesuítas com as
crianças e adultos indígenas. Para tal propósito, adotamos uma abordagem
de pesquisa bibliográfica, que consiste na coleta e análise de informações
já publicadas sobre o tema de interesse. Para esse estudo buscamos nas

204 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS POVOS INDÍGENAS E A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
CAMINHOS HISTÓRICOS QUE DEIXARAM MARCAS

obras de Alves (2020); Deleuze e Guattari (1980); Oliveira e Carvalho (2005);


Ribeiro (2021); Silva (2009) e Souza (2018); dentre outros.
A metodologia de pesquisa bibliográfica é amplamente utilizada
quando se deseja embasar teoricamente um estudo e obter insights relevan-
tes a partir da revisão da literatura existente (MARCONI E LAKATOS, 2010). Se-
gundo Gil (2002), a pesquisa bibliográfica é caracterizada pela leitura, análise
e interpretação de material impresso, como livros, artigos científicos, teses,
dissertações e outros documentos relevantes para o tema de estudo.
Nesse sentido, foram realizadas buscas em bases de dados acadê-
micos. Por meio dessa metodologia, foi possível embasar teoricamente
o estudo, trazendo contribuições valiosas para a compreensão do papel
desempenhado pelos jesuítas na história da EJA. A pesquisa bibliográfica
permitiu a análise crítica da literatura existente e a síntese das informações
relevantes para a elaboração deste artigo. O presente trabalho foi dividido
em sete capítulos: Contextualização Histórica; O Reconhecimento da Diver-
sidade dos Povos Originários na Educação; Perspectivas Interculturais na
Educação de Jovens e Adultos; Desobediência Epistemológica; Abordagem
Rizomática na EJA; Valorização dos Saberes e Práticas dos Povos Originários
na EJA e Considerações Finais.

CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

A terra de Abya Yala3 já era habitada muito antes da chegada dos


portugueses, ávidos em descobrir e desbravar terras alheias, querendo
negociar especiais especiarias. Os seres humanos não deveriam ser nego-
ciados. Nós, os não indígenas, precisamos, ainda, aprender muito com os
povos originários.
O movimento de resistência dos povos indígenas do Brasil já co-
meçou desde o século XVI. Mas os estrangeiros que chegaram com as suas
naus estavam deslumbrados com as terras e as gentes que aqui habitavam;

3. ABYA YALA, na língua do povo Kuna, significa Terra madura, Terra Viva ou Terra em florescimen-
to e é sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra Nevada, no norte da Colômbia,
tendo habitado a região do Golfo de Urabá e das montanhas de Darien e vive atualmente na
costa caribenha do Panamá na Comarca de Kuna Yala (San Blas).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 203-218, 2023 | 205


Carla Lucilene Uhlmann e Mabli Nadjane Barbosa Barreto

o que mais queriam, como está expresso na Carta de Pero Vaz de Caminha,
era atrair as gentes para o seu rebanho à moda portuguesa: “Porém o me-
lhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente.
E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar”,
diz a Carta. A partir dessa percepção, os portugueses entenderam que
precisariam “educar” essas gentes, ou melhor, catequizar para salvá-las. É
importante ressaltar que os jesuítas lusitanos vieram como missionários,
com o intuito de difundir o cristianismo entre os povos indígenas.
Segundo Leite (1974), os jesuítas chegaram ao Brasil no ano de 1549,
junto com o governador-geral Tomé de Sousa, enviado pela coroa portu-
guesa para estabelecer uma administração colonial no país. A vinda dos
jesuítas estava diretamente ligada à política de colonização portuguesa,
que buscava consolidar o domínio territorial e religioso no novo território.
Ao chegarem ao Brasil, os jesuítas estabeleceram missões e aldeamentos,
onde procuraram converter os indígenas ao cristianismo, ensinando-lhes
os princípios da fé católica. Eles acreditavam que a evangelização dos indí-
genas era um dever moral e religioso, além de uma forma de assegurar o
domínio e a influência portuguesa na região.
Os jesuítas adotaram uma abordagem particularmente estratégi-
ca ao estabelecerem suas missões. Conforme Leite (1974), eles procuravam
aprender as línguas indígenas, adaptar-se à cultura local e estabelecer rela-
ções de confiança com as comunidades nativas. Além da evangelização, os
jesuítas também se dedicaram à educação dos indígenas, ensinando-lhes ofí-
cios, como a agricultura e a carpintaria, bem como os princípios da fé católica.
Por meio desse contexto, entende-se que os jesuítas buscavam
os indígenas por meio de um processo de aculturação, visando a trans-
formação cultural e a conversão religiosa dos nativos. Lima (1996, p. 56),
ressalta que “a imposição cultural era uma prática comum, com o objetivo
de substituir as crenças e costumes indígenas pela cultura europeia”. Se-
gundo Souza (1986), os jesuítas adotaram uma estratégia de catequese e
educação dos indígenas, mas também ressalta a imposição de valores e
normas europeias sobre os povos nativos. Estes autores argumentam que
essa imposição cultural levou a conflitos e resistências por parte dos indí-
genas, mas também resultou em transformações culturais profundas nas

206 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


OS POVOS INDÍGENAS E A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
CAMINHOS HISTÓRICOS QUE DEIXARAM MARCAS

comunidades indígenas como: a adoção de práticas religiosas católicas, o


aprendizado da língua portuguesa, a incorporação de elementos da cultu-
ra européia em suas próprias tradições e a reconfiguração das estruturas
sociais e políticas. Castro (2002), discute a relação entre os jesuítas e os in-
dígenas sobre a resistência e negociação, uma vez que os indígenas resisti-
ram, reinterpretaram e adaptaram as práticas e ensinamentos dos jesuítas
de acordo com suas próprias necessidades e perspectivas culturais.
É importante destacar que a abordagem e os objetivos da educação
promovida pelos jesuítas, e a educação da EJA, são fundamentalmente
diferentes. Porém, ao estudar os registros históricos da atuação dos jesuítas,
é possível identificar vestígios da preocupação deles em educar também os
adultos indígenas e não apenas as crianças. Esses vestígios nos permitem refle-
tir sobre a importância histórica da educação de adultos e como ela pode ter
influenciado, de certa forma, a concepção e o desenvolvimento da EJA atual.
Além desse processo histórico, foi a partir da Era Vargas, em meados
de 1930, que a educação para jovens e adultos começou a ser pensada no
cenário nacional. Com a publicação da Constituição Federal de 1934, mais
precisamente no artigo 150, o Governo criou o Plano Nacional de Educação.
Destacamos dois itens desse documento. Compete ao Estado: “a) ensino
primário integral gratuito e de frequência obrigatória extensivo aos adultos;
b) tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim de
o tornar mais acessível”. No decorrer dos anos e décadas seguintes, vemos
grandes e significativas mudanças nessa modalidade de ensino.
É imprescindível ressaltar que a nomenclatura da EJA (Educação
de Jovens e Adultos) surge com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) de 1996, mais especificamente no artigo 37. A LDB é a
legislação que estabelece as diretrizes e bases da educação brasileira, e
nesse contexto a EJA é reconhecida como uma modalidade de ensino des-
tinada aos jovens e adultos que não tiveram acesso ou não concluíram a
educação básica na idade regular.
Os jesuítas reconheceram a necessidade de educar os indígenas
adultos, e a EJA também enfatiza a importância da educação para jovens e
adultos; a promoção do letramento é uma parte fundamental da EJA, já o
trabalho de letramento indígena, pelos jesuítas, valoriza o acesso à escrita

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 203-218, 2023 | 207


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e à leitura; na educação jesuíta, houve a introdução da cultura europeia e


a imposição de valores religiosos; já a EJA valoriza a diversidade cultural e
os contextos culturais; a educação jesuíta para os indígenas foi um exem-
plo de acesso à educação em um contexto histórico específico. Da mesma
forma, a EJA busca promover a inclusão e garantir oportunidades educa-
cionais para aqueles que foram excluídos do sistema educacional formal.

O RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE DOS POVOS ORIGINÁRIOS NA


EDUCAÇÃO

Analisaremos o Parecer 14/99, do Conselho Nacional da Educação


(CNE), que está disponível on-line no portal do Ministério da Educação
(MEC), e que traz pontos relevantes para o nosso entendimento. Segundo
consta neste documento, várias questões indígenas estão asseguradas na
Constituição Federal de 1988. Salientamos o seguinte:

É preciso reconhecer que no Brasil, do século XVI até praticamente a metade


deste século, a oferta de programas de educação escolar às comunidades in-
dígenas esteve pautada pela catequização, pela civilização e pela integração
forçada dos índios à sociedade nacional. Dos missionários jesuítas aos positi-
vistas do Serviço de Proteção aos Índios, do ensino catequético ao bilíngue,
a tônica foi sempre negar a diferença, assimilar os índios, fazer que se trans-
formassem em algo diferente do que eram. Nesse processo, a instituição da
escola entre grupos indígenas serviu de instrumento de imposição de valo-
res alheios e negação de identidades e culturas diferenciadas. Testemunhos
históricos da educação indígena são encontrados desde os primórdios da
colonização do Brasil, destacando-se, a partir de 1549, a ação e os trabalhos
dos missionários jesuítas, trabalhos e atividades tanto missionários quanto
educacionais, que se estenderam até o ano de 1759 (MEC, 2001, p. 41).

O estado brasileiro reconhece o imbróglio causado para os povos in-


dígenas, desde o período colonial até meados do século XX, quando os pri-
meiros movimentos em apoio aos indígenas começaram a surgir, como foi o
caso do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, sob liderança do
marechal Cândido Rondon e, posteriormente, a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) que foi criada em 1967, com a extinção do SPI. Hoje, a FUNAI conta
com outra nomenclatura: Fundação Nacional dos Povos Indígenas.

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OS POVOS INDÍGENAS E A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
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A luta por direitos e territórios demarcados faz parte do cotidiano


dos povos indígenas. E isso se trata também de um ato político. O precur-
sor, aquele que usou sua flecha (era o gravador que utilizava para gravar
as falas dos brancos) para começar a marcar espaço foi o cacique Mário
Juruna (1943-2002), da etnia Xavante, região de Mato Grosso, foi o primeiro
deputado federal indígena eleito pelo Rio de Janeiro, em 1982, em pleno
regime ditatorial. Mas a caminhada do deputado Juruna na política já havia
começado em meados dos anos 1970.
E foi em 1987, na Assembleia Constituinte, que vários povos indí-
genas conseguiram se reunir em Brasília para reivindicar os seus direitos. A
cena icônica de Ailton Krenak4 pintando o rosto com tinta de jenipapo foi
mais do que um ato simbólico, foi de fato um grito, que emergiu da floresta
para atingir os homens brancos (os juruás). Atingir não para machucar, mas
para acordar e dizer que os povos indígenas já estavam nesta vastidão do
território brasileiro. Nesse encontro, os povos indígenas conseguiram al-
guns pontos que estão na Constituição, que veio a ser publicada em 1988.

Até 1988 a legislação era marcada por esse viés integracionista, mas a nova
Constituição inovou ao garantir às populações indígenas o direito tanto à ci-
dadania plena, liberando-as da tutela do Estado, quanto ao reconhecimento
de sua identidade diferenciada e de sua manutenção, incumbindo o Estado
de assegurar e proteger as manifestações culturais das sociedades indígenas.
A Constituição assegurou, ainda, o direito das sociedades indígenas a uma
educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngue, o que vem
sendo regulamentado por meio de vários textos legais (MEC, 2001, p. 42).

O texto traz uma concepção muito positiva e otimista para os povos


originários. Muito já se avançou até as duas décadas do século XXI, mas a
jornada ainda é longa. Qual é o papel da educação (escola) para os povos
indígenas? Sobre isso, Krenak tem um interessante posicionamento:

Ao pensar na relação entre educação e futuro me deparo com uma ambigui-


dade. Tenho percebido em conversas com educadores de diferentes culturas
– não só dos povos originários, mas que trabalham com outras abordagens
da infância – que, já no primeiro período da vida, todo aparato de recursos
pedagógicos é acionado para moldar a gente. Isso me faz pensar em antigas

4. Ailton Krenak: líder indígena, escritor e ativista brasileiro da etnia Krenak é reconhecido por sua
defesa dos direitos dos povos indígenas.

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práticas usadas por diferentes povos deste continente americano para cons-
tituir seus coletivos. São práticas ligadas à produção da pessoa – o que é mui-
to diferente de moldar alguém –, que entendem que todos nós temos uma
transcendência e, ao chegarmos ao mundo, já somos – e o ser é a essência de
tudo (KRENAK, 2022, p. 93-94).

A reflexão crítica sobre esse tema torna-se essencial para romper


com a invisibilidade e o silenciamento impostos a essas comunidades e
para promover uma educação que reconheça e valorize suas identidades,
conhecimentos e perspectivas. Até porque, segundo Collet, Paladino e Rus-
so (2014), o termo “índio” foi utilizado pelos colonizadores europeus, em
particular pelos portugueses e espanhóis, quando chegaram às Américas
no século XV. Acreditava-se que eles haviam alcançado as Índias (Ásia) na-
vegando para o oeste. Como resultado, as pessoas nativas encontradas nas
Américas foram erroneamente chamadas de “índios”. É importante desta-
car que o termo “índio” é considerado inadequado e impreciso atualmente,
pois generaliza e homogeneiza culturas, línguas e identidades extrema-
mente diversas dos povos originários. Muitos desses povos preferem ser
chamados pelo nome de suas etnias específicas, como indígenas, povos
originários, nativos ou pelos nomes de suas nações.
Entende-se que, a desconstrução do uso do termo “índio” faz parte
de um movimento mais amplo de resgate e valorização das identidades e
culturas dos povos indígenas, promovendo uma linguagem mais precisa
e respeitosa. É fundamental reconhecer a diversidade e autonomia dos
povos originários, respeitando suas preferências linguísticas e valorizan-
do sua autodenominação.
Ailton Krenak (2012) traz uma perspectiva única e importante so-
bre os povos indígenas, expressando a necessidade de respeitar e valorizar
suas culturas, conhecimentos e territórios. Ele enfatiza a importância de re-
conhecer os indígenas como sujeitos ativos na construção da sociedade, e
não apenas como objetos de estudo ou assistência, além disso ele faz uma
crítica ao paradigma ocidental.
O intelectual Krenak (2012) também aborda questões como a vio-
lência histórica e a marginalização dos povos indígenas, destacando a im-
portância de enfrentar o racismo, a discriminação e a perda de territórios
como formas de opressão que os indígenas enfrentam. Ele enfatiza a ne-

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OS POVOS INDÍGENAS E A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
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cessidade de fortalecer a luta pelos direitos indígenas e de reconhecer a


diversidade cultural e a pluralidade de modos de vida. Sua visão crítica e
sua defesa dos direitos indígenas têm inspirado muitas pessoas a repen-
sarem suas relações com a natureza e a valorizarem a diversidade cultural
como uma riqueza a ser preservada. “Os indígenas têm muito a ensinar so-
bre uma relação mais harmoniosa e sustentável com a natureza, baseada
em princípios de respeito, cuidado e reciprocidade” (KRENAK, 2012, p. 23).

PERSPECTIVAS INTERCULTURAIS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

A abordagem intercultural na Educação de Jovens e Adultos (EJA)


emerge como uma perspectiva pedagógica fundamental para promover
a valorização da diversidade cultural e o diálogo entre diferentes saberes
e culturas, reconhecendo que cada indivíduo traz consigo um conjunto
único de conhecimentos e experiências culturais, e que essa diversidade
é uma riqueza a ser explorada no processo educacional. Também é essen-
cial promover um ambiente de respeito mútuo entre os participantes do
processo educativo.
Na perspectiva intercultural, o respeito implica reconhecer e valori-
zar as diferentes culturas, tradições e identidades presentes na sociedade.
Isso significa criar um ambiente em que cada indivíduo seja respeitado em
sua singularidade e em suas experiências culturais, sem estigmatização ou
discriminação. Em outras palavras, o educador da EJA, ao criar um espaço
de convivência e respeito mútuo, compreende que a abordagem intercul-
tural na EJA proporciona oportunidades para que os participantes compar-
tilhem suas experiências, conhecimentos e perspectivas, rompendo com
visões estereotipadas e preconceituosas.
A Lei nº 11.645/2008 estabelece a obrigatoriedade da inclusão da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nos currículos esco-
lares. Essa lei busca promover o respeito e o reconhecimento das diferen-
tes culturas presentes na sociedade brasileira, especialmente das culturas
afro-brasileira e indígena. Ela determina que as escolas devem incluir con-
teúdos relacionados à história, às tradições, às manifestações culturais, aos
conhecimentos e às lutas dos povos indígenas.

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Ao citar essa lei, podemos destacar que ela representa um avanço


no reconhecimento dos direitos e da importância dos povos indígenas,
fornecendo um respaldo legal para a valorização de seus saberes e prá-
ticas no contexto educacional. Isso reforça a necessidade de promover
o diálogo intercultural na EJA e de assegurar que os povos originários
sejam representados e respeitados em todo o processo educativo.
Nesse sentido, a educação intercultural busca superar as visões
monoculturais e eurocêntricas que historicamente predominaram no
sistema educacional, valorizando as diferentes culturas presentes na so-
ciedade (KRENAK, 2012). Segundo o autor, esse diálogo intercultural é
fundamental para a construção de uma sociedade mais inclusiva e iguali-
tária, pois permite que as vozes e perspectivas de grupos historicamente
marginalizados sejam ouvidas e valorizadas. Apesar da existência da lei,
ainda são necessários muitos esforços para efetivar a sua aplicação na
prática educacional.
Nessa mesma linha de pensamento, Santos (2014), propõe uma
perspectiva intercultural que rompe com as hierarquias de conhecimento
e epistemologias dominantes, reconhecendo a validade e a importância
dos saberes tradicionais e locais. Essa abordagem busca superar a dico-
tomia entre conhecimento científico e conhecimento tradicional, promo-
vendo uma pluralidade epistemológica.
O educador Paulo Freire (1987) contribui, também, para a pers-
pectiva intercultural ao ressaltar a importância do diálogo e da valoriza-
ção dos saberes dos educandos. Ele propõe uma educação libertadora,
na qual os estudantes são vistos como sujeitos ativos na construção do
conhecimento, permitindo a expressão e a valorização de suas próprias
culturas e experiências.
Desse modo, a perspectiva intercultural visa promover o diálogo
e a valorização das diferentes culturas presentes na sociedade, buscando
superar visões monoculturais e eurocêntricas. Para isso, o Estado precisa
arcar com os seus deveres para com os povos originários que ao longo do
período histórico brasileiro foram subjugados.

212 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


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DESOBEDIÊNCIA EPISTEMOLÓGICA

No contexto da Educação de Jovens e Adultos (EJA), segundo


Santos (2014), a desobediência epistemológica valoriza os saberes e prá-
ticas dos povos originários. Ele questiona a visão eurocêntrica da edu-
cação, que historicamente marginalizou e desvalorizou os conhecimen-
tos tradicionais indígenas. Para o autor, ao incorporar a desobediência
epistemológica na EJA, os educadores podem abrir espaços para que os
estudantes compartilhem suas experiências, saberes e práticas culturais,
reconhecendo a validade e a importância desses conhecimentos. Isso
contribui para a construção de uma educação mais plural, que respeita
a diversidade de perspectivas e estimula a reflexão crítica sobre os siste-
mas de conhecimento.
Nesse sentido, compreende-se que, a desobediência epistemo-
lógica na EJA desafia as estruturas coloniais que moldaram a educação
tradicional, permitindo a construção de novas narrativas e a valorização
das vozes dos povos originários. Ela promove uma educação mais inclu-
siva, que respeita e reconhece a diversidade cultural e epistemológica
dos estudantes.
Por exemplo, em uma aula sobre História do Brasil, ao invés de
apresentar apenas a versão eurocêntrica da colonização, a desobediên-
cia epistemológica permitiria que os estudantes ouvissem as narrativas
dos povos originários sobre o processo de colonização, suas resistências
e suas visões de mundo. Os estudantes teriam a oportunidade de apren-
der com essas perspectivas diferentes e desafiar os discursos dominan-
tes que marginalizam e silenciam as vozes indígenas. A desobediência
epistemológica também pode se manifestar na escolha de materiais di-
dáticos e recursos pedagógicos que valorizem a diversidade cultural e as
contribuições dos povos originários. Isso inclui a utilização de literatura
indígena, materiais audiovisuais produzidos pelas próprias comunidades
e a participação de membros dessas comunidades como palestrantes e
facilitadores de atividades educativas.

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ABORDAGEM RIZOMÁTICA NA EJA

Diferente da lógica linear e fragmentada presente em muitos siste-


mas educacionais, a abordagem rizomática5 valoriza a transversalidade e
a interdisciplinaridade. Ela reconhece que os saberes estão interligados e
que as fronteiras disciplinares são permeáveis, permitindo a integração de
diferentes áreas do conhecimento.
Quando o educador adota uma abordagem pedagógica rizomáti-
ca, o conhecimento é concebido como algo que se ramifica e se espalha
de maneira não linear, sem uma estrutura hierárquica fixa. Essa concepção
rompe com a ideia de um conhecimento engessado e pré-determinado,
permitindo que os aprendizes explorem diferentes caminhos e conexões,
construindo seu próprio entendimento e significado.
Ao adotar esta visão, o educador reconhece que o conhecimento
não é uma entidade estática e imutável, mas sim uma rede complexa de
ideias, experiências e perspectivas. Ele facilita a criação de ambientes de
aprendizagem abertos, nos quais os aprendizes são incentivados a explo-
rar, questionar, colaborar e construir conhecimento de maneira ativa.
Neste tipo de abordagem, à luz de Deleuze e Guattari (1980)6, o edu-
cador reconhece a importância da diversidade e da multiplicidade de sabe-
res, valorizando a experiência e os conhecimentos prévios dos aprendizes. O
papel do educador é o de um facilitador, que estimula a autonomia e a curio-
sidade dos aprendizes, oferecendo recursos, provocando reflexões e promo-
vendo a construção coletiva de conhecimento. Ao invés de fornecer respos-
tas prontas, o educador incentiva a busca por diferentes pontos de vista.
Dessa forma, esta abordagem não linear na educação busca rom-
per com a ideia de um currículo fixo e padronizado, incentivando a flexi-
bilidade, a criatividade e a participação ativa dos aprendizes no processo
de construção do conhecimento. Ela promove uma visão mais dinâmica e

5. Rizoma é um termo originado da botânica, utilizado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guat-
tari, para descrever uma maneira de encarar o indivíduo, o conhecimento e as relações entre as
pessoas, ideias e espaços, a partir de uma perspectiva de fluxos e multiplicidades, que não possui
uma raiz ou centro.
6. Deleuze (1925-1995) e Guattari (1930-1992) são dois filósofos franceses que se conheceram e tra-
balharam juntos após os eventos de maio de 1968 e escreveram juntos a obra ”Mil Platôs” em 1980.

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aberta da aprendizagem, que valoriza a pluralidade de perspectivas e esti-


mula a capacidade dos aprendizes de se adaptarem e se reinventarem em
um mundo em constante transformação.
Diante do exposto, essa abordagem contribui para uma educação
mais inclusiva, que respeita a diversidade e promove a formação integral
dos estudantes. Quando o educador adota uma prática pedagógica rizo-
mática, a EJA abre espaço para a interação e o diálogo entre os conheci-
mentos formal e não formal, proporcionando uma aprendizagem significa-
tiva e contextualizada.

VALORIZAÇÃO DOS SABERES E PRÁTICAS DOS POVOS ORIGINÁRIOS


NA EJA

De acordo com estudos e pesquisas de Freire (2016), existem di-


versas ideias equivocadas sobre os povos originários no Brasil. Dentre
elas apontamos:

1. Homogeneidade cultural é um equívoco comum é considerar os povos


indígenas como um grupo homogêneo, compartilhando a mesma cultura,
crenças e língua. No entanto, a diversidade étnica e cultural entre os povos
indígenas é imensa. Existem mais de 300 etnias indígenas no Brasil, cada uma
com suas próprias tradições, línguas, formas de organização social, cosmovi-
sões e práticas culturais distintas. Portanto, é importante reconhecer e res-
peitar essa diversidade, evitando generalizações e estereótipos; 2. Atraso cul-
tural é um outro equívoco frequente é considerar as culturas indígenas como
atrasadas ou primitivas. Essa visão baseia-se em uma perspectiva eurocêntri-
ca que valoriza determinados aspectos da cultura ocidental como superiores.
No entanto, os povos indígenas têm suas próprias formas de conhecimento,
ciências, artes, literatura, música e religião. Suas culturas são ricas, sofistica-
das e adaptadas ao ambiente em que vivem há séculos. Valorizar e respeitar
essas culturas é essencial para promover a diversidade cultural e combater
estereótipos prejudiciais (FREIRE, 2016, p. 67-69).

Os povos indígenas produziram e produzem saberes, ciências, arte


refinada, literatura, poesia, música, religião. Suas culturas não são atrasadas
como durante muito tempo pensaram os colonizadores e como ainda pen-
sa muita gente ignorante. As línguas indígenas, por exemplo, foram consi-
deradas pelo colonizador, equivocadamente, como línguas “inferiores”, “po-

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bres”, “atrasadas”. Ora, os linguistas sustentam que qualquer língua é capaz


de expressar qualquer ideia, pensamento, sentimento e que, portanto, não
existe uma língua melhor que a outra, nem língua inferior ou mais pobre
que outra (FREIRE, 2016, p. 69).
Ademais, é impensável que, em pleno século XXI, seja preciso des-
mistificar que os indígenas nunca deixarão de ser indígenas por usarem
smartphone, notebook, calças jeans, ou frequentarem as universidades!
Muitas pessoas ainda ficam admiradas que não vêem mais indígenas
usando arco e flecha e cocar. É fundamental desconstruir essas ideias equi-
vocadas e promover uma visão mais ampla e respeitosa destes povos, re-
conhecendo sua diversidade cultural e linguística e valorizando suas con-
tribuições para a sociedade brasileira.

Considerações finais

O nosso país é diverso, cada cultura tem o seu verso, sua visão e en-
tendimento sobre a terra e modo de existir enquanto seres humanos. Mas
podemos nos questionar: por que aprender com as culturas indígenas?
O que elas podem nos ensinar? Nesse caminho, citamos Krenak para nos
alumiar: “eu não quero salvar os indígenas, eu quero salvar a humanidade”.
A liderança indígena Davi Kopenawa Yanomami também comenta sobre
os xamãs: “Por isso, até hoje, os xamãs continuam defendendo os seus e a
floresta. Mas também protegem os brancos, apesar de serem outra gente,
e todas as terras, até as mais imensas e distantes” (KOPENAWA & ALBERT,
p.86, 2022). Ou seja, dentro da multiplicidade cultural de cada um, há a hu-
manidade que nos conecta.
Esse pensamento indígena, de duas etnias distintas em nosso país,
por exemplo, nos faz refletir, de fato, o quanto temos de olhar para os povos
da floresta e ressignificar e decolonizar o nosso pensamento. As atitudes
que os colonizadores tiveram para com os povos que dominaram também
em outros territórios ainda persistem com ações de desprezo e ojeriza.
É com a educação que podemos mudar atitudes preconceituosas
que estão arraigadas desde a formação do Brasil. O Estado precisa atender
toda a população, oferecendo educação de qualidade em todos os espaços

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escolares e em todas as etapas do ensino. Nesse sentido, se toda a Educa-


ção Básica, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, chegasse para
todos, sem exceção, talvez a Educação de Jovens e Adultos nem precisaria
existir! Talvez esse tempo ainda chegue, mas muito precisa ser feito.
O embasamento teórico realizado para este artigo nos possibilitou
acreditar em um mundo menos desigual, com educação de qualidade. É
possível. Para que nossas crianças, jovens e adultos possam adentrar e per-
manecer no tempo adequado nos espaços escolares, é sensato pensarmos
no bem querer de toda humanidade. Enquanto ainda há guerras que des-
troem famílias inteiras e países, e tantas outras atrocidades que invadem as
páginas de jornal, mais uma vez precisamos olhar para os povos indígenas
com respeito. Eles resistiram e resistem há mais de 500 anos.
A abordagem que fizemos no decorrer do artigo, destacando pon-
tos sensíveis e pertinentes, contribui para a construção de uma sociedade
mais justa, inclusiva e igualitária, na qual os povos originários sejam pro-
tagonistas de sua própria história e tenham seus direitos e identidades
respeitados e assegurados pelo Estado. A EJA também repara lacunas pro-
movendo inclusão para aquelas pessoas que foram deixadas de lado. Pen-
sar a educação como ato revolucionário e político, assim como idealizou o
patrono da educação brasileira.

Referências

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218 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p219

RESENHA DE LIVRO: O LUGAR DO SABER, DE MÁRCIA WAYNA KAMBEBA

Carla Lucilene Uhlmann1


Elizabete Costa Suzart2
Renata Lourenço dos Santos3

KAMBEBA, Márcia Wayna. O lugar do saber. São Leopoldo: Casa Leiria, 2020.
Disponível em: https://olma.org.br/wp-content/uploads/2020/06/olugardo-
saber.pdf. Acesso em 22 mai. 2023.

1. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Universidade do Estado da


Bahia (Pós-Crítica/UNEB). Linha de pesquisa 1: Literatura, Produção Cultural e Modos de Vida.
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Felix. Especialista em Teoria e Prática na Formação do Leitor
pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (2019). Licenciada em Letras - Português e Li-
teraturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Atriz
pelo SENAC São Paulo - SP (2006). Atuou como coordenadora de divulgação na L&PM Editores
(2013-2019). Tem experiência na área de Artes com ênfase em Contação de Histórias e Teatro; e
no Mercado Editorial. Interessa-se em pesquisas nas seguintes áreas: literaturas de língua portu-
guesa, literatura indígena, literatura de autoria feminina, poéticas orais, performance, contação
de histórias, leitura, decolonialidade, representação, mercado editorial. Endereço eletrônico: car-
linhauhlmann25@gmail.com.
2. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Universidade do Estado da
Bahia (Pós-Crítica/UNEB). Linha de pesquisa 1: Literatura, Produção Cultural e Modos de Vida.
Orientador: Prof. Dr. Osmar Moreira dos Santos e coorientação da Profa. Dra. Denise Silva. Mestra
em Crítica Cultural pela UNEB (2020), graduada em Letras Lic. Plena com Hab. Port. Literaturas
e Lín. Inglesa, pela mesma universidade (1994). Tem experiência na área de hotelaria e turismo,
atuando no conceito de ecoturismo na região da Bahia. Dedica-se à pesquisa etnolinguística,
junto ao povo Kariri-Xocó de Alagoas. Faz parte do GT Línguas de Sinais Indígenas (DILI/UNES-
CO). Faz parte do Laboratório de Literaturas e Línguas Indígenas (LALLI/UnB), como aluna convi-
dada da Profa. Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, no Programa de Pós-graduação em Linguística.
É participante da Década Internacional das Línguas Indígenas (UNESCO), do Nordeste do Brasil.
Endereço eletrônico: bsuzart17@gmail.com.
3. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Universidade do Estado da
Bahia (Pós-Crítica/UNEB). Linha de pesquisa 1: Literatura, Produção Cultural e Modos de Vida.
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Felix. Mestra em Letras: Cultura, Educação e Linguagens pela
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, Campus Vitória da Conquista). Pós Gradua-
da em Artes Visuais: Cultura e Criação pelo SENAC. Graduada em Jornalismo pela Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, Campus Vitória da Conquista). Graduada em Letras (Cen-
tro Universitário Internacional- UNINTER). Além de lecionar, pesquisa e atua com comunicação
em comunidades tradicionais do Brasil, especialmente no nordeste. Comunidades ribeirinhas,
aldeias indígenas, territórios quilombolas. Foi produtora do Rádio Contos do São Francisco, que
registrou histórias da beira do Rios São Francisco. Idealizadora do Espalha Semente, portal que
reúne ações e atividades com indígenas, incluindo o Cine Kurumin, primeiro Festival de Cinema
Indígena do Brasil. Pesquisa a produção cultural indígena, com destaques para a literatura, o
audiovisual, o feminino e o nordeste. Endereço eletrônico: relou.santos@gmail.com.

[Recebido em: 10 out. 2023 – Aceito em: 30 out. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 219-230, 2023 | 219


Carla Lucilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart
e Renata Lourenço dos Santos

E O “INDÍGENA” SE PERGUNTA: SEM MATA, ÁGUA, TERRA,


PARA ONDE EU VOU? SE ATÉ MEU SOLO SAGRADO O
“PROGRESSO” TOMOU.
Márcia Wayna Kambeba

Quando se trata da escrita sobre povos indígenas e seu arcabouço


intelectual, a autora Márcia Kambeba ocupa seu espaço de forma questio-
nadora e direta. Para onde os indígenas vão, se o progresso tomou suas
terras? Essa força está presente em todo livro O lugar do saber, lançado por
Márcia Wayna Kambeba4 em 2020 pela editora Casa Leiria.

Autoria indígena feminina

Márcia Wayna Kambeba nasceu na comunidade Kambeba, locali-


zada na região do Rio Negro, no estado do Amazonas. Pertencente à etnia
Omágua/Kambeba, que vive por séculos de história e saberes transmitidos
de geração em geração, ela cresceu imersa na cultura de seu povo, apren-
dendo desde cedo os valores, as tradições e os conhecimentos ancestrais
que compõem a identidade Kambeba.
Com formação em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas,
seu mestrado em geografia, título defendido em 20125, foi uma das inspira-
ções para a primeira publicação6, contendo poemas da sua dissertação.
Sua própria vivência como mulher indígena, a tornou uma voz forte
e presente na defesa dos direitos dos povos indígenas, da educação con-
textualizada, da preservação ambiental e do fortalecimento das identida-
des culturais. Seus livros e publicações reúnem um vasto conteúdo sobre
cultura e história indígenas.

4. Indígena com nome civil, Márcia Vieira da Silva, pertence ao povo Omágua/Kambeba no Ama-
zonas, Alto Solimões. Nascida na Aldeia Belém do Solimões do povo Tikuna. É mestra em Geo-
grafia pela Universidade Federal do Amazonas, escritora, poeta, compositora, fotógrafa, ativista,
faz palestras sobre a importância da cultura dos povos indígenas.
5. SILVA, Márcia Vieira da. Reterritorialização e identidade do povo Omágua- Kambeba na aldeia
Tururucari- Uka. 2012. 175 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Universidade Federal do Ama-
zonas, Manaus, 2012. Disponível em: https://tede.ufam.edu.br/bitstream/tede/3978/2/Disserta%-
c3%a7%c3%a3o%20%20M%c3%a1rcia%20Vieira%20da%20Silva.pdf. Acesso em 25 mai. 2023.
6. Título da obra: Ay Kakyri Tama ‘Eu moro na cidade’.

220 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


RESENHA DE LIVRO:
O LUGAR DO SABER, DE MÁRCIA WAYNA KAMBEBA

Márcia Kambeba é uma escritora, poetisa e ativista reconhecida na-


cionalmente e internacionalmente. Seus escritos e discursos são marcados
pela busca de ressignificação dos estereótipos e preconceitos que envol-
vem a cultura indígena, bem como pela valorização da sabedoria ancestral
presente nas comunidades indígenas.
Com trabalho autoral literomusical, em sua escrita ela articula
música e poesia como proposta de instigar o pensar crítico-reflexivo para
questões que por séculos esvaziaram o lugar do pensamento indígena, do
intelectual que se reconhece na sua identidade étnica para fazer da caneta
e do papel as ferramentas das lutas no século XXI.
A autora mergulha de cabeça – como num banho diário no rio –,
nas suas ocupações de liderança e incansável pesquisadora, afinada ao seu
olhar de ave de rapina (é fotógrafa) para trazer um laborioso trabalho que
reúne a formação adquirida da tradição oral, adicionada ao alto domínio
dos saberes teóricos e científicos adquiridos, “Os temas tratados pela auto-
ra são variados, por isso atraem o leitor e não o deixam parado” (Aloir Pacini,
em prefácio, Kambeba, 2020, p. 11). Excerto do poema “Meu velho rio”:

Prossegue a nossa história,


Nosso ser precisa entender,
Que o rio nos ensina saberes
Que teimamos em desconhecer.
É no silêncio que o velho amigo,
Faz-se em encanto conhecer.

Prosa e verso

A obra está organizada com 41 textos em forma de poemas, ape-


nas dois estão em prosa, assumindo a abertura e encerramento de uma
conversa poética sobre assuntos tão centrais para os povos da floresta,
como propõe o livro. Sem findar na característica de uma antologia: o
sumário nos convida a saltar a ordem colocada, criando nossa própria
sequência de leitura, podemos nos desapartar de uma ordem sistemá-
tica. Pular de página não irá mudar a ordem de sentidos nos quais a
escritora nos instiga.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 219-230, 2023 | 221


Carla Lucilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart
e Renata Lourenço dos Santos

Podemos refletir sobre a organização do livro, de fato, como um


mergulho no rio, na prosa (das memórias, dos saberes, da introspecção, da
descoberta de nós mesmos enquanto sujeitos pertencentes a um coletivo
universal). Nas águas do rio mergulhamos e vivenciamos outras formas (po-
emas) de ser e estar no mundo. O enredo poético nos faz percorrer pela Mãe
Natureza, nos fazendo enxergar o quão bela ela é, na cultura e nos elemen-
tos característicos do povo Omágua, mas algumas pessoas insistem em des-
truir a natureza com o tal do “progresso” transgressor. Quando emergimos
das águas, saímos respirando novos ares, que é o fechamento das poesias
para pisarmos em terra firme (prosa): “Território, identidade, memória e cul-
tura dos povos da terra” (p. 62), que é o texto final da obra literária.
A narrativa é construída a partir de histórias que se tornam contos,
experienciados pela autora em várias fases da sua existência, dentro e fora
da aldeia, como é o caso do poema “Memórias de São Pedro do Olivença
= AM (cidade onde cresci)” (p. 44), que a escritora relembra como era sua
vida na comunidade. Ademais, no poema “Identidade” (p. 31), recorda com
muita dor, de uma vivência na cidade grande, onde precisou cortar o cabe-
lo para conseguir trabalho. Esses textos ganham tamanho e dimensão de
acordo com a interpretação que se faz, ou melhor, com a imersão nessas
memórias, com possibilidades de desdobramentos como uma conversa ao
“pé da orelha”, entre autora e leitor para persuadir, trocar ideias e gerar as
reflexões críticas para além das histórias narradas sobre indígenas.

MEMÓRIAS DE SÃO PAULO DE OLIVENÇA – AM (cidade onde cresci)

Nasci nas barrancas do Solimões,


Cresci vendo borboletas aos milhões,
Perto de casa uma goiabeira,
Que apanhava e vendia lá nas freiras.

Cupuaçu, Tucumã, Mapati,


Sinto falta de comer isso aqui,
Sentada nas barrancas vendo o tempo passar,
Pescando mandi para o tempo enrolar.
(...)

222 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


RESENHA DE LIVRO:
O LUGAR DO SABER, DE MÁRCIA WAYNA KAMBEBA

IDENTIDADE

Minha indianidade,
Meu caminho na cidade,
Meus cabelos longos,
Carregam minha identidade.

Identidade que represento


Com clareza na afirmação,
Com orgulho na minha alma,
Resisto à negação.
(...)

É nesse ativismo que a autora arrasta consigo, pelas suas memórias,


as águas do rio Solimões com seus sábios anciãos, carregando na sua grafia
outros povos, como se os estivesse convocando para o bom combate;
para estarem presentes como em grande roda, numa dança circular de
pensamentos. É desta forma que ela lança o título, como flecha de ponta
certeira, para marcar o lugar do pensamento indígena. Assim, ela traça
a sua territorialidade, espalhando signos, palavras e musicalidade nas
estrofes com domínio de conteúdo, ritmo e rima.
Já no prefácio da obra, Kambeba vem ocupar o lugar da autoria
indígena, a qual vinha sendo renegada (ou, pelo menos, não incentivada)
aos povos do território tradicional, os quais de forma brilhante apresentam
o gênero peculiar de escrita, carregado de cosmologia. Esta característica
marcante precisava ser atravessada por sinais de interpretação “para a nos-
sa compreensão muitas vezes limitada e preconceituosa”. Marcia Mayna Kam-
beba nos oferece nas 68 páginas a sua totalidade, corpo e alma, para o fazer
autoral pelas memórias, de menina e mulher que nasceu em Belém do Alto
Solimões, na Aldeia Tikuna. Levando em conta todas as formas de silencia-
mentos, em detrimento a diversos testemunhos, vivos, cujos tiveram à pro-
va a dessubjetivização por mais de 500 anos – ela apresenta a identidade
étnica, de pertença, na resistência pela existência dos saberes ancestrais,
no modo de vida e de produzir a cultura, tradição e espiritualidade para o
desmonte da ideologia antropocêntrica e lógica ocidental.
Assim como Kambeba é uma atuante escritora, podemos considerar
que o início do movimento literário indígena começou entre a década de
70 e 80, do século XX. Eliane Potiguara foi precursora. Em 1975 ela publicou

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 219-230, 2023 | 223


Carla Lucilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart
e Renata Lourenço dos Santos

o poema Identidade indígena. Já em 1980, outros indígenas também publi-


caram: Antes o mundo não existia – mitologia dos antigos Desana-Këhíripõrã,
de Umusï Pãrõ Kumu (Firmino Arantes Lana) e Tõrãmu Këhíri (Luiz Gomes
Lana). Pai e filho conseguem realizar este sonho. Após esse período, outros
indígenas começaram a ressignificar o arco e a flecha como elementos para
dialogar com os não indígenas, utilizando o livro impresso como meio de
levar e elevar o pensamento indígena para os grandes centros urbanos. A
liderança, de reconhecimento internacional, Davi Kopenawa Yanomami,
diz que quer flechar o coração dos homens brancos, com sua escrita, mas
não para machucá-los, e sim, para acordá-los. Ailton Krenak (2020), outro
pensador indígena com grande destaque dentro e fora do país, diz que não
quer salvar os indígenas, com suas palavras, mas quer salvar a humanidade.
E que humanidade é esta que pensamos ser?
A leitura do texto é esse convite que nos chega, como aquele ba-
nho indispensável, a qualquer hora como forma de entretenimento para
nos deliciar: “Ngiã ta aiyagü tatüwa?” ‘vamos tomar banho no rio?’ (Kambe-
ba, 2020. p. 12). A autora transporta consigo as suas memórias para refres-
car também as nossas e garantir o seu espaço de confidencialidade entre
autor e leitor (quem escreve e quem lê) para – quem sabe –, lermos essa
escrita nas suas entrelinhas? Kambeba traz essas memórias para transmitir
ao leitor (transporta suas memórias para um novo espaço, o livro, queren-
do compartilhar também a sua história, a sua narrativa com os leitores),
sutilmente, a sua formação étnica, levada com sua mãe-avó, Assunta, que
mesmo desterritorializada, morando na cidade, segue com os usos e cos-
tumes Tikuna. Assim, a tradição oral é relembrada: “No ato do preparo ela
ia me ensinando para que servia cada planta que utilizava e também a im-
portância das defumações numa aula que faria parte da constituição da
minha identidade agora na cidade, mas sem perder meus costumes e os
conhecimentos da aldeia” (p. 13-14).
De fato, a delonga de termos uma produção de autoria suigêneris,
narrada por indígena, mulher, além de grande intelectual – dentre tan-
tos outros indígenas escritores –, não desanimou ao público que sempre
apostou na certeza que os saberes dos nossos originários um dia viria à
tona, ainda que à conta-gotas, preencher o lado de cá, do nosso mundo

224 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


RESENHA DE LIVRO:
O LUGAR DO SABER, DE MÁRCIA WAYNA KAMBEBA

“branco” que urge por cores e formas diferenciadas de pintar e iluminar a


natureza e as ideias.
A construção dos versos reporta saberes incutidos na mitologia que
tudo transforma, dá sentido e explica; a água que corre da árvore não deixa
de ser um pedaço da essência de “uma “índia” linda e formosa”, trazendo os
odores de essências que em forma de perfumes exalam mundo à fora. Na
sua cosmovisão, o canto do Uirapurú, um “encantado da floresta” que entoa
cantos com “afinação fenomenal” para reverenciar Nhanderú e Nhandecy
e harmonizar os humanos, sob o olhar vigilante de Yacy” (p. 16), é a forma
mais doce de tratar o pensamento indígena. É de uma grandeza imensurá-
vel, a maneira de promover essa relação de equidade na humanização da
natureza e avidez providencial da floresta em ter por todos os lados, olhos
atentos de cuidado e delicadeza em ritualizar suas entidades. A autora em-
presta a voz para expor o próprio lamento da Mãe Terra como um prelúdio
para um futuro autossustentável, no cuidado mútuo (p. 17). A terra é redi-
mida por uma visão plena, originária e ela traz à tona que a transformação
é feita por “mentes reais”; “A maldade não vem da terra [...]” ela pertence a
“Nós. Seres racionais” (p. 18).
O ‘perspectivismo’7 consente ao seu caráter o grande feito de trans-
mitir os versos a seu modo indígena de ser. Cada linha escrita solta um grito
na voz dos não humanos. A cosmologia indígena é chamada para encantar
no mundo racional o que a ciência não explica. A autora mobiliza na sua
criativa escrita todos os elementos que ganham corpo e forma no seu texto
para juntos poderem construir discursos, prender a atenção do leitor na
questão/problema e trazer à superfície reflexões. Ela interpreta elementos
da sua pertença e cruza dados que evidenciam a relação indígena com a
natureza para a construção da autoidentidade étnica: “A pena representa
a liberdade, / Do ser, da identidade”; “Com suas penas e grafismos, / O in-
dígena mostra que é mestre e doutor.” (p. 22). Desta forma, ela expressa
seu sentimento de territorialidade, desde a resistência em manter-se uma

7. CASTRO. Eduardo Viveiros de. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A in-
constância da alma selvagem: e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
p. 347-349.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 219-230, 2023 | 225


Carla Lucilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart
e Renata Lourenço dos Santos

Kambeba/Omágua8, – carregado no próprio nome artístico; pisa em “Chão


Kambeba” (p. 25), articulando a força da resistência na cultura e língua si-
lenciadas para tomar posse nos espaços da sociedade nacional e institui-
ções de ensino, que também é território indígena.
Essa força e vigor, trabalhada também na estética do texto, funda-
menta a intenção de exibir na escrita o vocabulário articulado na língua (da
família Tupi-Guarani)9 para marcar esse território e lembrar a língua outrora
silenciada (séc. XVIII)10: “Minha língua em silêncio ficou”. A autora assume a
sua inscrição na língua viva. A obra explora o léxico indígena, contento a
metalinguagem que faz dos textos um manancial para o leitor explorar o
universo indígena, tanto no vocabulário quanto na cosmologia, a exemplo
de “Uyca Tyera” ‘Coração Forte’ que elucida a uma interpretação de que se
faz guerra por um outro ângulo, de resgate ancestral pela força do canto,
do ritual da “caiçuma”, articulando outros povos: “Nossos guerreiros viemos
buscar”. A luta é travada utilizando ferramentas do não indígena: “Minha
flecha é a palavra” e é nela que o devir da poeta e escritora mantém o seu
“coração forte” (p. 26).
Outras questões de grande repercussão e diretamente ligadas à
questão indígena, têm seu peso de grande relevância social, por afetarem
drasticamente a toda a população planetária; as mudanças climáticas é
uma das questões enfatizadas em forma de versos: “A inteligência huma-
na”, destruidora: “Não parou de atacar, /A queimada e derrubada, Afetaram

8. Os Cambebas (ou Kambeba) são um grupo indígena que habita o médio rio Solimões, no es-
tado brasileiro do Amazonas, mais precisamente nas Áreas Indígenas Barreira da Missão, Igarapé
Grande, Jaquiri e Kokama. Seriam os supostos omáguas que os cronistas do século XVI encontra-
ram na região (No Peru habitam terras próximas à capital, Lima). Sua principal característica era a
deformação craniana, tornando-a em um formato de cone. Disponível em: https://pt.wikiversity.
org/wiki/Wikinativa/Cambeba. Acesso 23 mai. 2023.
9. Mesmo não falando cotidianamente a língua materna, como ocorre entre os membros dessa
etnia no Peru, os Kambeba no Brasil ainda dominam um importante vocabulário, pertencente
à família Tupi-Guarani, em momentos formais de reuniões com os brancos, em alguns dias de
aulas na escola das aldeias alguns mais velhos e lideranças falem um significativo vocabulário
que eles identificam como Cambeba. (Conf. BONI & KAMBEBA, 1999.). Disponível em: https://pib.
socioambiental.org/pt/Povo:Kambeba. Acesso em 23 mai. 2023.
10. Os Cambeba do Alto Solimões foram incorporados aos Ticunas por ocasião da demarcação
das terras indígenas Ticuna, mas, hoje, estão iniciando um processo de afirmação étnica articula-
do pela OCAS com apoio dos Kambeba do médio Solimões. Disponível em: https://pib.socioam-
biental.org/pt/Povo:Kambeba. Acesso em 23 mai. 2023.

226 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


RESENHA DE LIVRO:
O LUGAR DO SABER, DE MÁRCIA WAYNA KAMBEBA

até o ar (...)”. A autora evidencia com análise crítica as mudanças climáticas e


exploração da natureza, afirmando que: “O clima foi alterado” (p. 27).
No ato de erguer “Bandeira da paz” (p. 30), Kambeba recorre às me-
mórias reais, dos tempos passados, dos ancestrais, que derramaram san-
gue, em detrimento da colonização: “Na cruz que nos tirou a paz. Surge a
indagação: “Genocídio Cultural? / Não permitiremos jamais” (p. 30). Há uma
contestação ao passado que não será mais repetido, pois a coletividade
já sabe o que não se quer mais. Ela se autodeclara indígena em contexto
urbano, sem, contudo, negar a sua origem (Ticuna/Kambeba), ainda que
tipologicamente com traços marcados para o indígena e totalmente imbu-
ídos no preconceito que, “vem feroz como jaguar” e afeta a vida indígena
em seus mínimos detalhes, trazendo nostalgia do território: “Para aldeia
quero voltar”; “Cantar na minha língua, Sem ser motivo de gozação.” (p. 32).
Há um chamado latente para um passeio que explora cosmologia,
geografia e fenômeno da natureza. Como pode ser observado no texto “Po-
roroca” (p. 33) em que a autora detalha o fenômeno da Pororoca, mostran-
do a grandiosa força que a natureza promove através desse encontro, rio e
mar, convocando as entidades das águas, Miricy e Yara para o domínio das
águas por encantamento.
Na “Resistência Indígena” ela usa sua voz para desabafar, por sua
ancestralidade, todo o mau praticado pelos colonizadores, “numa conver-
sa estranha” por não compreenderem o jogo político por trás do projeto
de invasão, exploração, dominação linguística e assimilação cultural; dizi-
mação de corpos, “em nome de um Cristo que nunca conheceram”. (p. 34).
Ficando assim registrado o repúdio ao eurocentrismo e suas promoções
desnecessária com a imposição: “Sou indígena tenho alma” (35) que pela
cultura e identidade se revela, “Contribuindo com a miscigenação”. A lín-
gua cantada é a identidade que fala: “Sou cultura, ancestralidade, / Sou sa-
bedoria, eu sou pessoa”. Este poema faz prelúdio ao que segue, “Ancestra-
lidade”. A autora convoca todos os povos e utiliza os signos cognatos dessa
identidade, “Essa geração que vem do Norte”, fazendo o leitor entender
com mais clareza o sentido de territorialidade. Para onde o indígena for,
levará consigo a ancestralidade: “Ela é a força da identidade, / Na aldeia ou
na cidade, / Nossa uka não se desfaz.»(p. 36). Nessa “Resistência Kokama”

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 219-230, 2023 | 227


Carla Lucilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart
e Renata Lourenço dos Santos

ela revela seu devir: “Pela igualdade, / Pela cultura na cidade, /Pela arte que
é milenar, /Unidos, Kokama, Kambeba, Tikuna / Vem! Mostra que és dono
desse lugar” (p. 37). A retomada vem com tudo: língua, cultura, arte, terri-
tório indígena (TI), educação diferenciada e continuada, mobilizada pelos
movimentos indígenas.
No ambiente “Amazônico Chão”, a autora faz um apanhado na etno-
grafia, no caboclo, ribeirinho do Solimões, que não aparece como o intru-
so, invasor, mas um ser da floresta que busca nela o abrigo e alimento; ela
toma da mata os elementos necessários para fixar seu lar: maçaranduba,
cedro, paxiúba, palha de urucari; apresenta o alimento recolhido da flora lo-
cal: banana com chá de canela, açúcar da cana e alimentos preparados tra-
dicionalmente na panela de barro. O trabalho de mutirão convoca a todas,
da mais nova às mais velhas que “Cantando tecem sua história” (p. 40-41).
A nostalgia do lugar de origem faz a autora demarcar os dois mun-
dos que traz a cena nas suas memórias para descrever as diferenças das
comidas e modo de vida da aldeia de origem em “Memórias de São Paulo
de Olivença-AM” (p. 44-45), mostrando a sua rotina, monotonia e tradição
das festas juninas. Em contraponto, Kambeba mostra o seu traço arteiro,
trazido no texto que segue, “A dança carrega cultura”; apresenta uma cons-
ciência de dança como arte, na cultura e na espiritualidade que segue ao
toque do tambor (africano) e danças tradicionais com enlace intercultural:
“Que do povo Negro veio / Entre tantas danças o frevo, samba, Capoeira,
pagode, maracatu, afoxé” (p. 46). A relação interétnica marca presença indí-
gena no carimbó e maculelê que contemplam no corpo as artes ancestrais.
A autora levará o leitor ao mercado “Ver-o-Peso”, em Belém do Pará,
propagando cultura, crença, saberes: “Ver-o-Peso de todos os cheiros, / De
todos os gostos, / Essa riqueza tem aqui” (p. 47). Partindo daí, segue o texto
que promove o “Verde Mundo” e nesse trocadilho de palavras, se discute
questões indígenas, ainda atuais, como a destituição territorial e desacul-
turação; a exploração da natureza mudou o verde da floresta: “Mexeu com
a cor do universo, / Até o clima se alterou.” (p. 48).

228 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


RESENHA DE LIVRO:
O LUGAR DO SABER, DE MÁRCIA WAYNA KAMBEBA

Conclusão

O lugar do saber, usado como material didático em ambiente es-


colar, é basilar para garantir direitos, como a lei nº 11.645/2008, torna
obrigatório o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira nos
estabelecimentos de ensino fundamental e médio. A obra é uma riqueza
que reúne sabedorias, canto, modo de vida e pensamento indígenas. Sua
estrutura permite que os textos/versos sejam trabalhados com as diversas
faixas etárias e, principalmente, com alunos dos Anos Finais (6º ao 9º) do
Ensino Fundamental e no Ensino Médio (1º ao 3º ano), dependendo apenas
dos passos necessários para a leitura, promovidos pelo professor. O gosto
pela leitura pode ser ainda mais sugestivo se houver a relação de interesse
que desperte o desejo de mais leitores em descobrir nas narrativas indíge-
nas um gênero que circula e atravessa o universo do não indígena.
Por séculos, a literatura cedeu ao indígena um lugar apenas de per-
sonagem, colocando-os sempre em último plano, do subjugado e renegado
de várias formas. Portanto, é chegada a hora e a vez de protagonizar com
as centenas de publicações que vêm surgindo e sendo, merecidamente,
apreciadas pelos leitores. Isto vem a constatar que o que limita, ainda, os
escritores indígenas é apenas a oportunidade e incentivo para a publicação.
Por outro lado, a materialidade virtual que o livro encontrou for-
mas de ganhar o mundo foi por intermédio da Case Leiria, e organizado
pelo Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes
de Almeida (OLMA), pertencente a Província dos Jesuítas do Brasil! Ora,
sabemos que desde o século XVI, com a vinda dos colonizadores euro-
peus para este território, os jesuítas foram responsáveis pela catequi-
zação dos povos indígenas. O embate travado entre as culturas causou
muitos danos e mortes que reverberam até hoje, infelizmente. De todo o
processo histórico dolorido, talvez essas organizações estejam tentando
reparar o mal que fizeram com esses povos. Mas é sempre oportuno en-
xergar além com olhos de lince.
Kambeba é mais uma que insere na sua escrita a desconstrução do
etnocídio, ressurgindo das sombras frescas da floresta para abrasar o espíri-
to e o coração dos que se deleitam a uma boa história, ao conto e à poesia,

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 219-230, 2023 | 229


Carla Lucilene Uhlmann, Elizabete Costa Suzart
e Renata Lourenço dos Santos

sem perder de vista todos os percalços encontrados ao longo do caminho


para, enfim, encontrar o seu lugar de escritora, artista, mestra, ativista e
tantos outros adjetivos que a constitui um ser na sua completude de dizer
muitas coisas em poucas palavras.

230 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1.p231

ENTREVISTA
CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

Telma Cruz Costa1


(PPGCC/UNEB)

Apresentação: Rosilene Tuxá possui Graduação em História pela


Universidade de Pernambuco - UPE (1996), Graduação em Licenciatura
Intercultural em Educação Escolar Indígena - Ciências Matemática e da
Natureza pela Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT (2006),
Especialização em História do Brasil pelo Centro de Ensino Superior do Vale
do São Francisco - CESVASF (2006), Mestrado em Educação e Contempora-
neidade pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB (2011), Doutoranda
em Antropologia Social pela Universidade de Brasília - UNB. Atualmente

1. Doutoranda em Crítica Cultural (PPGCC/UNEB). Endereço eletrônico: telmaccruz@gmail.com.

[Recebido em: 30 out. 2023 – Aceito em: 15 nov. 2023]

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 231


Telma Cruz Costa

é Professora do Magistério Superior, Dedicação Exclusiva da Universidade


Federal do Amapá, atua na Área de Ciências Humanas (História e Antropo-
logia) e Educação; Membro do Núcleo Docente Estruturante do Curso de
Licenciatura Intercultural Indígena; Desenvolve pesquisa com povos indí-
genas, atuando como pesquisadora indígena do OPARÁ: Centro de Pesqui-
sas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação da Universidade do
Estado da Bahia - UNEB e pesquisadora do Grupo de Estudos, Pesquisa e
Práticas em Educação Intercultural em Ciências da Natureza e Matemática
- GECIM da Universidade Federal do Amapá - UNIFAP.
Acesse o currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2825213550525038.

Telma: Quais memórias você tem das experiências ancestrais vividas na


sua comunidade?
Rosilene: Ao rememorar as experiências ancestrais, ao rememorar as minhas
memórias de vivência, me dou conta que o mais prazeroso e significativo
deste percurso são os caminhos percorridos que se entrelaçam. Percorrer,
perceber que é muito fortemente os caminhos dos lugares por onde andei,
revelam aquilo que há de mais fundamental na produção indígena de mu-
lher, antropóloga, gestora, enfim meus múltiplos eus, né? Da forma como
venho construindo: os desafios enfrentados, as dificuldades superadas, os
caminhos improváveis que foram construídos, as afinidades e diferenças, as
relações e os vínculos criados e cultivados. O lugar de referência!!! Minha al-
deia, minha terra! As paixões e desilusões, os desafios, as possibilidades de
estimular outras pessoas com ideias e oportunidades. Os encantos e desen-
cantos. As belezas encontradas nos cantos da vida. A fortaleza em acreditar,
superar, e entender que resistir é não se entregar ao fracasso, né? E lutar por
aquilo que acredito ser o melhor para mim e para o meu povo. Reflito sobre
isso quando penso nessa rememoração das minhas experiências ancestrais,
das minhas experiências enquanto criança, enquanto adolescente, no terri-
tório ilha, território terra firme, território novo. As minhas memórias ances-
trais, elas me remetem sempre às minhas proteções ancestrais, aos meus
mestres, aos meus guias, estes que estão sempre a caminhar comigo. Sempre

232 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

junto ao meu corpo, alma, mente e situações que vão para além do meu cor-
po, para além da minha fala, para além do meu fazer, das minhas atitudes,
mas com a certeza de que sou guiada, orientada e também protegida por
eles, meus mestres, meus guias. Estes, que por mais que as distâncias percor-
ridas no meu caminhar me levem para longe de minhas raízes, eles me tra-
zem de volta, pois nunca me senti só. Essas presenças estão para além das
distâncias, para além do meu querer, para além das territorialidades percorri-
das, elas estão vivas no meu ser me orientando e mostrando os caminhos
possíveis. Quantas vezes quis me inserir no particular, nos rituais, no particu-
lar Tuxá e quantas vezes me foi retirada porque esse ritual ele era somente
para os mais velhos, as pessoas mais velhas. As pessoas jovens não podiam
participar e com o contexto de barragem, os jovens foram convidados a par-
ticipar, convidados pela nossa ancestralidade, pelos nossos mestres, pelos
nossos guias. Então, rememorar as experiências ancestrais, é também reme-
morar esses momentos de querer me inserir em um contexto que não me era
permitido por ser muito jovem, e que hoje me é permitido. Então é dialogar
com essas experiências é dialogar com a minha ancestralidade com os meus
guias, com os meus mestres, com as vivências cotidianas, eles estão sempre
presentes. Parte da minha infância e adolescência se dá em meio a esse con-
texto, em que nosso povo atravessava um processo de diásporas de perdas e
de novas territorializações, novas formas de organização e reorganização so-
cial, novo reordenamento sócio cultural. Advindo dos processos de diáspora
por conta do contexto de barragem. Então, a minha infância, a minha adoles-
cência foi nesse meio, e no entanto, esse não foi o primeiro episódio de des-
territorialização do nosso povo, dessa quebra de vínculos, de perda e de des-
controle das territorialidades pessoais, coletivas, de perda, de acesso a
territórios econômicos, culturais, simbólicos ou de afastamento deles e de
novos processos de territorialização. Então, esse último, provocado por barra-
gem, foi um verdadeiro ecocídio do território ancestral, do nosso território.
Hoje restando apenas uma ponta desse território, o território ancestral D’zo-
robabé onde estão nossas ancestralidades, onde estão nossas forças. Assim,
é preciso entender os muitos caminhos que conduziram o meu povo, as nos-
sas relações do presente e nossas perspectivas de futuro. Eu costumo dizer
que na minha infância, a minha adolescência foi um pé na canoa e outro na

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 233


Telma Cruz Costa

terra, um território escolarizado, porque nós vivíamos no território ilha para


usufruir da nossa mãe terra, e do território escolarizado porque tínhamos que
frequentar a escola do outro lado do rio. Então, essa vivência era uma vivên-
cia de navegabilidade e, nessa navegabilidade, as nossas canoas, os meus
pais, meus tios, meus avós estavam sempre navegando remando com nosso
povo, nós todos crianças. E, nesse vai e vem, nessa relação com o rio com o
serrote, onde mora os nossos encantos, com os mitos das vivências com rio,
como diz a minha mãe “as visagens”. Eram muitas visagens porque nossos
pais, nossos avós e nós navegávamos a noite também, então nossas visagens
eram nossas proteções, eram nossos ancestrais. Então, nessa memorização, a
gente rememora as experiências ancestrais a partir dessa relação com o terri-
tório ilha, com o território água, com território serrote, com território aldeia.
O meu território de origem, ele é um passado, mas ele é um passado vivo, é
um passado feliz, parafraseando as palavras de um ancião da minha comuni-
dade: “éramos felizes e não sabíamos”. Nesse momento, é importante pensar
nessa questão de que “éramos felizes e não sabíamos”, porque éramos felizes
na relação com o nosso território. Isso é importante refletir. Quanta emoção,
quanta saudade, lembranças, riquezas, histórias e vidas foram interrompidas
no território submerso em nome do progresso. E quanto que isso é vivo nos
nossos jovens, nossos jovens que não viveram concretamente esse território,
vivem o território nas palavras e na saudade dos mais velhos, que contam as
suas vivências. Então, ouvir os jovens hoje, é ouvir como se esses jovens tives-
sem vivido naquele território ancestral, mas eles vivem hoje a partir da me-
mória, da contação de histórias e de como os mais velhos contam essa histó-
ria, com saudades, com lembranças, com riquezas, com histórias vivas de
vida. Então, essa vivência é uma vivência ancestral concreta, é a vivência da
emoção, a partir da emoção, a partir da saudade, a partir das lembranças
contadas. Lembranças dos que viveram, escuta dos que não viveram, mas
que lembram a partir da contação de história. Então, isso é muito forte! Viver
essa ancestralidade! Então, rememorar as minhas experiências ancestrais, é
rememorar também essa multiplicidade de eus que me incorporo, que carre-
go em mim. Isso me coloca em situações em que me posiciono em contexto
de coexistência simultânea de coisas antagônicas o tempo todo. Quantas
vezes eu me vejo com o corpo presente e alma distância em situações de

234 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

enfrentamento, tendo que concordar com o corpo e discordar com a alma.


Buscando sempre atender o que determina as minhas epistemologias e as
minhas referências de vida. Posso afirmar então que foi com a sabedoria da-
queles que estiveram e estão sempre à minha frente, a minha ancestralidade,
os meus guias me guiando com os meus múltiplos eus que conseguem fazer
com que estes múltiplos eus seja uma pessoa única, é uma só pessoa. Esse eu
que está nas diversas territorialidades e, principalmente, na territorialização
na educação. Penso que a nossa educação é uma educação territorializada, é
uma educação que nasce no chão do nosso território. Uma territorialidade
que perpassa por todo um saber ancestral, um saber cultural, um saber iden-
titário que reforça cada vez mais os sujeitos, o povo Tuxá, com essa força que
temos. E principalmente quando pensamos hoje no trabalho que estamos
desenvolvendo em relação à língua Dzubukuá, pensando esse Dzubukuá,
Tuxá contemporâneo, mas que ele é reavivado a partir de uma ancestralida-
de, a partir de um ritual. Nós então podemos afirmar que esse reavivar, essa
retomada de saberes ancestrais, da atualização cultural e identitária, mas
também dá saudade e das lembranças culturais. É o saber do coração e da
memória, isso acredito eu que conceitua bem, também os Dzubukuá, Tuxá
que vivemos hoje neste reavivado de um trabalho intercultural, escola comu-
nidade. Então, o que mais me traz na memória das experiências ancestrais é
a profundidade da relação com os lugares, os lugares que nós, nosso povo,
considera como lugares sagrados. Os lugares ficaram submersos, mas os lu-
gares também estão no nosso cotidiano contemporâneo. Então, essa profun-
didade da relação com os lugares, ela expressa em conceitos muito particu-
lar, do nosso particular, e sublinha, vamos dizer, dinâmicas e princípios
cosmológicos, que apontam para maneiras peculiares de estruturação da
nossa experiência. Esse argumento dialoga com os sentidos de continuidade
da vida Tuxá, veiculada nos movimentos etnopolíticos mais contemporâneos
de luta política, luta pela retomada do nosso território, um território que foi
nos tirado e explora a profundidade de noções de espaço e de pessoa, de um
povo que é muito forte na perspectiva de uma sabedoria própria, de uma
fortaleza própria que nunca deixou de, vamos dizer assim, nunca deixou se
abalar com tantos processos bruscos de desterritorialização, e reterritorializa-
ção. E que mesmo com toda retirada do nosso território ancestral, as nossas

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 235


Telma Cruz Costa

experiências ancestrais se tornam cada vez mais fortes, porque nós nunca
nos distanciamos dos nossos que estão presentes, sejam eles presentes em
corpo ou presente em alma. Então, pensar nas minhas experiências ances-
trais é refletir sobre elementos que configuram a territorialidade do meu
povo, como complexo de práticas ritual e alimentar, que se conectam numa
rede de relações com os lugares e suas simbologias, com pessoas e com e
seus significados e afetos e com os entes e seus apreços. Então, essa relação
revela, ela é revelada na intercessão sobrenatural, que hoje se conecta ao
território Dzorobabé, e tem essa presença tão forte e tão necessária para o
nosso povo nos dias atuais. Então, as vivências e experiências ancestrais que
mais marcaram a minha vida em comunidade foram situações em contexto
de ritual, de festivos e do particular. E principalmente o percurso que eu con-
sidero uma memória muito boa na minha vida pessoa, que foi o que os meus
pais sempre e meus irmãos, principalmente também, sempre viveram re-
mando por entre águas, as águas profundas, por entre as margens de Ilhas e
ilhotas, corredores de águas cortantes e terras, cachoeiras, pedregulhos mo-
dos próprios de circulação e de conhecimento, derivados da complexa rela-
ção cotidiana com rio, com as canoas, com os lugares, com a terra e com eles,
os encantos, que o nosso povo mais precisamente viveu na sua mais densa
forma de vida relacional e de modos de produção de lugares até a mudança
para atual aldeia Tuxá-Mãe nos finais dos anos 1980, quando o território Tuxá
virou lago, ou seja, ficou submerso nas águas do rio Opará, do nosso rio Opa-
rá, do nosso Rio São Francisco. Essas vivências, elas me rememoram muito,
principalmente, na nossa convivência com esse rio, não só nos processos de
navegabilidade, mas principalmente nos momentos de lazer, de banhos, de
convivência no rio, de troca alimentar. Então, isso é fundamental para forma-
ção do nosso corpo, corpo território que nós, povos indígenas, temos na nos-
sa concepção de território.

Telma: Como você descreve a luta do seu povo no nordeste da Bahia?


Rosilene: A luta do meu povo é uma luta que nós podemos caracterizar
como uma luta de resiliência, de experiência, de resistência, de fortaleza
mesmo. Eu acho que é um exemplo para os demais povos. O povo Tuxá não
lutou, e não luta somente pelo povo Tuxá, mas também por outros povos.

236 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

Existia um tempo em que os Tuxá tiveram uma luta de reconhecimento pe-


los outros parentes perante ao SPI (Serviço de Proteção aos Índios). Então,
nós temos hoje um reconhecimento por parte de outros povos no Nordes-
te, por esse reconhecimento, por essa identificação que os Tuxá encampa-
ram em defesa de outros povos indígenas. Então, é um fortalecimento em
um plano de sobrevivência, não somente do povo Tuxá, mas da sobrevi-
vência de outros povos também. Então é uma resiliência, e é uma experiên-
cia, um exemplo que serve de experiência para que sirva de inspiração para
outros povos, para outras lutas. É uma luta importante que o povo Tuxá
investiu depois da imersão do território, foi um investimento na escola, na
produção de ritual, e na produção de alimentos. Então essas são algumas
das estratégias utilizadas para continuar produzindo conhecimento e tro-
cas, relações com o meio, com pessoas, a partir de um contexto territorial,
sem muitas referências, mas com as referências de um território ancestral
que fica na memória e na contação de histórias. E espaços conquistados,
espaços novos a serem conquistados, uma realidade encontrada na atual
aldeia Tuxá-Mãe, e no território Dzorobabé. E isso em fase de adaptação,
de readaptação, e de novas relações com os sujeitos ao entorno. É uma
disputa territorial, uma luta que carrega toda uma força ancestral, e que
essa luta, ela tem uma fortaleza tão grande ancorada nessa ancestralidade,
que ela serve, ela é vista como uma questão que irradia para outros povos,
para que se fortaleçam também na nossa luta. Então a luta do nosso povo,
do povo Tuxá, é uma luta também de referência para os demais povos do
Nordeste da Bahia. É uma luta fundamental que inspira outras lutas, outras
referências. É uma referência para inspirar outras referências dos povos in-
dígenas da Bahia. Continuamos com a troca. Nós somos um povo que é um
povo que troca, que dá de si e troca experiências rituais, alimentares que
alimentam não somente o corpo, mas alimentam a alma também.

Telma: Você poderia relatar os aspectos relevantes no seu ponto de vista


para a retomada da terra do povo Tuxá, de Rodelas/BA?
Rosilene: A retomada da terra do meu povo ela com certeza tem muitos
aspectos relevantes para o fortalecimento do Povo, né? Essa retomada re-
trata, retoma, reaviva um território adormecido. Uma pontinha do territó-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 237


Telma Cruz Costa

rio Dzorubabé adormecido, onde foi um território de vivência cotidiana do


nosso Povo. Muito tempo atrás existia o povo das ilhas, o povo do rio e os
povos das matas, então a pontinha hoje que é o território de retomada
é onde concentrava o povo da mata, era ali que os Tuxá faziam fogueira
quando fazia uma caçada e a fogueira era o mesmo que “chamando os po-
vos do rio” para vir comer a caça e da mesma forma os povos do rio faziam
quando tinham um peixe para dividir, então nessa perspectiva a gente cos-
tuma dizer que nós somos povos de produção de alimento e de troca de
alimentos. Esse alimento que alimenta não somente o corpo, mas a alma
também! E os aspectos relevantes da retomada do Território é reavivado
dessa centralidade e retroalimenta o corpo e a alma a partir do território
ancestral, da Terra em retomada, do Território D’zorobabé, onde está a nos-
sa ancestralidade, portanto nós vamos para o D’zorobabé para nos ener-
gizar com a nossa centralidade. Esse é um aspecto relevante de fortaleci-
mento da ancestralidade, de fortalecimento da cultura e de fortalecimento
da língua Dzubukuá, esse é um dos aspectos. E um outro aspecto é a união
que traz o Território! Território traz uma unidade e a retomada no D’zoroba-
bé traz uma unidade do Povo, essa unidade que foi quebrada com diáspora
impulsionada pela barragem onde o povo se divide, mas o povo que fica
vai sempre buscando ter a sua unidade e os territórios D’zorobabé traz esse
aspecto relevante dessa unidade. Uma unidade que fortalece a cultura, for-
talece a identidade, fortalece o povo enquanto povo indígena. Então são
aspectos relevantes que fortalecem a cultura, fortalece a organização so-
cial, política e também econômica do Povo. A retomada, com certeza, traz
aspectos relevantes nessa perspectiva de consolidação de uma unidade de
um povo que sempre foi uma unidade e devido a diáspora do impacto da
barragem, sofreu essa divisão e que se reestrutura nessa unidade, a partir
de uma orientação ancestral, que é quando os jovens são chamados para
participar do “Particular” um ritual que era somente dos mais velhos e ele
passa a ser frequentado por jovens convidados pelos nossos ancestrais, pe-
los nossos entes, isso foi e é um aspecto muito relevante da retomada do
território D’zorobabé, com certeza! Antes da retomada nós vivíamos no Ter-
ritório novo buscando essa referência que ficou submersa, essa referência
foi encontrada na escola porque levávamos a comunidade para dentro da

238 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

escola. Levávamos não, levamos a comunidade para dentro da escola para


viver essa territorialidade. A partir do momento que a gente faz a retomada
do D’zorobabé, esse levante vai se dar no âmbito do Território e não dentro
do espaço de escola, entre quatro paredes. Agora no território, nas vivên-
cias cotidianas, então isso foi muito importante e é muito importante no
reavivar dessa vivência no território D’zorobabé.

Telma: De que maneira a Aldeia Mãe Tuxá contribuiu para a construção da


sua trajetória profissional?
Rosilene: A aldeia Mãe foi e é muito importante para minha trajetória pro-
fissional! Foi rememorando, revisitando, refletindo, lutando em prol do que
o nosso povo viveu e vive que eu fui construindo a minha trajetória profis-
sional. Antes de ir para o meu curso de graduação, na minha licenciatura
intercultural, eu não era inserida no movimento (Se referindo ao Movimen-
to Indígena da Bahia e Brasil), era muito jovem e meu mundo era minha
família na convivência com meus muitos irmãos e meus pais e meus avós e
meus primos, então eu não era uma pessoa que saía da aldeia, e assim não
era inserida no movimento. Quando eu fui para o meu curso de licenciatu-
ra intercultural, eu me vi imbricada em ter a obrigação de lutar pelo meu
Território, lutar pelo meu Povo, mas como assim? Em uma das primeiras
atividades do meu curso, dizia o seguinte: “descreva sobre o seu território”
e aí nessa descrição sobre o meu território eu me vi numa questão de me-
mória, porque naquele momento meu território já estava submerso, e aí
como eu ia descrever meu território? Fiquei a refletir sobre isso, fiquei per-
dida e de repente um estalo me apareceu e eu fui escrevendo sobre o meu
território e escrevendo o que estava na minha memória, o que estava nas
histórias contadas pelos meus pais, principalmente pela minha mãe, pelo
meu tio Bidu e fui escrevendo, foi aí que eu percebi que o meu território era
um território de memória, que o território atual não refletia sobre a minha
originalidade. A minha ancestralidade, a minha originalidade estava no ter-
ritório submerso. Até então a gente ainda não tinha feito a retomada terri-
tório D’zorobabé, então o que nós tínhamos era a nova aldeia construída
pela empresa CHESF que fugia de toda uma lógica de comunidade e com
o tempo nós fomos reconstruindo essa lógica de comunidade. Foi aí que

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 239


Telma Cruz Costa

eu me vi imbricada em pesquisar cada vez mais sobre o meu Povo, pesqui-


sar na expectativa de sistematização do conhecimento, porque a pesquisa
estava na minha memória, a pesquisa estava nas minhas vivências, estava
na minha mente e o que eu tinha que fazer era sistematizar esse conheci-
mento. Foi aí que eu escrevi sobre o impacto de barragem, pesquisei sobre
o impacto de barragem, isso foi me dando asas, né? “Eu costumo dizer que
eu sou pássaro”, pássaro porque (pausa para respiro fundo) eu gosto de
sair para além do meu conforto e buscar novos desafios e nessa busca de
novos desafios, eu pude reavivar todo o impacto de barragem sofrido pelo
meu povo. As perdas, os danos, a extinção da fauna, da flora e todo impacto
ambiental que sofremos e o quanto isso foi duro! Isso foi contribuindo com
a minha trajetória profissional, claro né? E aí veio a pesquisa sobre a escola
que se concebia na comunidade, que escola queremos? Que modelo de
escola é esse? Então nossa escola surge numa perspectiva intercultural, ela
surge em um contexto amparada no que orienta a legislação da Educação
Escolar Indígena que é uma escola própria, uma escola comunitária, uma
escola intercultural e aí eu fui escrever sobre essa escola, depois eu fui es-
crever sobre o trabalho dos profissionais da Educação na minha comunida-
de nesse processo de uma construção de um currículo intercultural, tudo
isso foi contribuindo mais na frente com a minha trajetória profissional.
Quando fui egressa da licenciatura intercultural, eu fui convidada a assumir
um cargo público no Estado da Bahia, estava terminando uma especializa-
ção no CESVASF que também me proporcionou um convite para atuar nes-
sa faculdade, então os dois convites que vieram para minha vida, minhas
primeiras experiências fora da minha comunidade, do meu município, foi
justamente pela minha sistematização de conhecimento a partir da gradu-
ação e pós-graduação e com certeza, o que eu trazia sobre sistematização
do conhecimento do meu povo contribuiu com a minha trajetória profis-
sional. Uma questão importante nesse processo é que meus pais sempre
nos apoiaram, nos incentivaram a buscar, a estudar, a frequentar a escola e
nós já tínhamos a experiência das nossas primeiras professoras que saíram,
que foram trabalhar na Funai, então assim, nós Povo Tuxá, já tínhamos uma
experiência com Educação Escolar e de saída do território a busca dessa
profissionalização e depois o retorno. A primeira diáspora do Povo Tuxá

240 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

acontece com a saída das professoras e o retorno delas para consolidação


de um modelo de educação intercultural e é nesse contexto que a minha
trajetória profissional se instala e com certeza a Aldeia Tuxá mãe contribui
muito com isso, porque esse contexto de educação formal já era uma coi-
sa constituída na nossa comunidade e esse compromisso que nós sempre
tivemos com o nosso povo e com a nossa comunidade vai impactar muito
fortemente na construção da minha trajetória profissional.

Telma: Diante do cenário sociopolítico, como você avalia o momento atual


para as lutas dos povos originários?
Rosilene: Nós vivemos os últimos seis anos em um contexto sociopolítico de
retrocesso muito grande nas políticas, não só na política educacional, mas na
política dos Povos Originários como um todo. A nossa legislação foi abalada,
foi ameaçada, a nossa lei maior, a Constituição, foi ameaçada mesmo. Então
assim, retomar o que se parou há 6 anos atrás está sendo um desafio mui-
to grande, porque foram seis anos, parece pouco, mas foi o suficiente para
desconstruir todo um cenário que estava se consolidando. Uma construção
já é morosa, mas uma desconstrução é muito rápida. Nós perdemos mui-
to nos últimos 6 anos e é desafiador hoje a luta dos povos indígenas, mes-
mo com contexto político favorável, as lutas são imensas, elas não cessam.
O tempo todo nós temos que lutar para que o nosso cenário sociopolítico
da Educação, da Política, da Saúde, da territorialidade seja ouvida, respeita-
da em nossos contextos territoriais. O fato de estar vivendo um momento
político que podemos dizer que é nosso, isso não faz as nossas lutas serem
menores. As nossas lutas são imensas, continuam sendo muito desafiadoras
e nós não podemos cruzar os nossos braços e dizer que nós estamos em
bons caminhos, a gente precisa lutar todos os dias para que de fato a gente
vá construindo um bloco a cada dia, de cada vez, a nossa construção se dá
em cada atitude nossa, em cada atuação que o movimento fala e faz para
que os nossos muros sejam construídos, então a gente coloca um bloco a
cada dia. A nossa luta é uma luta que não cessa, infelizmente é assim o nosso
país, mesmo nós estando amparados por uma legislação, nós precisamos o
tempo todo dizer que nós estamos aqui, que nós precisamos ser ouvidos
e atendidos para que de fato as nossas territorialidades sejam respeitadas.

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 241


Telma Cruz Costa

Telma: Considerando sua posição hoje no Ministério da Educação, quais


ações que estão planejadas e/ou implementadas para a Educação Escolar
Indígena?
Rosilene: Um primeiro ponto a ser considerado é a consolidação de políti-
cas que consideramos importante para a Educação Escolar Indígena, seja
ela na educação básica ou no ensino superior. Então, as políticas que nós
consideramos importantes de serem mantidas e fortalecidas foi a primeira
coisa que nós pensamos em consolidar, uma delas é a política de acesso e
permanência dos estudantes indígenas na universidade, hoje entendemos
que a universidade é fundamental para o processo de decolonização da
educação e dos contextos vividos pelos povos indígenas, essa é uma políti-
ca que o MEC tem hoje como prioridade para atender o acesso, a perma-
nência de estudantes indígenas na graduação e na pós-graduação, outra é
o fortalecimento da política de amparo e de apoio às licenciaturas intercul-
turais, as pedagogias interculturais e o cursos interculturais indígenas, nós
estamos dialogando com os reitores das instituições ensino superior para
que de fato tenham esses cursos interculturais institucionalizados em suas
instituições, e que realmente esses cursos possam ser institucionalizados e
que tenham garantido um quadro de profissionais para que possamos ga-
rantir a oferta de vestibulares específicos, de seleções específicas, com en-
trada em todos os anos. Isso que a gente quer, isso que a gente tem busca-
do! Uma outra ação importante é a ação de formação continuada de
professores, nós ainda temos um desafio muito grande que é a qualificação
de professores para dar a garantia da oferta da educação básica nos territó-
rios indígenas, principalmente nos anos finais do Ensino Fundamental e
Ensino Médio. Essas três ações são ações prioritárias que consideramos im-
portante para que a gente tenha lá na frente um quadro de profissionais
indígenas qualificados para garantir a oferta da Educação Básica. As ações
de pactuação com os entes federados são também de suma importância.
Nós sabemos que o Ministério da Educação é responsável pela Educação
Escolar Indígena, mas a sua execução se dá no âmbito dos estados e muni-
cípios, então é preciso fortalecer as relações com os entes federados e o
principal canal de financiamento da educação escolar no âmbito dos esta-
dos e município é via plano de ações articuladas, o PAR, que é o canal de

242 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

financiamento. A gente tem feito esse diálogo, a gente tem chamado os


secretários de Estado para essa conversa, para essa pactuação, porque a
gente entende que o grande desafio é fazer a execução lá na ponta. Para
além das atividades em andamento nós convocamos e republicanos a Co-
missão Nacional de Educação Escolar Indígena, portariada, porque enten-
demos que não dá para pensar política de educação escolar sem a partici-
pação dos povos indígenas. A comissão é uma comissão consultiva de
planejamento das políticas da Educação Escolar Indígena. Estamos tam-
bém lançando uma outra comissão que é a comissão que vai trabalhar com
os processos de alfabetização, nós estamos inserindo a nossa rede de Ação
Saberes Indígenas no comitê estratégico Nacional do compromisso Crian-
ça Alfabetizada, a nossa rede de Ação Saberes Indígenas ela vai estar den-
tro do compromisso criança alfabetizada da SEB no MEC, por que isso? Por-
que nós entendemos que a Ação Saberes Indígenas na Escola, que é uma
ação de formação de professores, formação continuada, tem sido hoje o
principal canal de processo de alfabetização, letramento, numeramento e
produção de material didático, especificamente material nas línguas indí-
genas. Consideramos que o processo da alfabetização das crianças indíge-
nas precisam passar por profissionais qualificados e tendo materiais nas
línguas indígenas, então a rede saberes indígenas tem sido esse canal, o
canal mais importante de formação de produção de conhecimento a partir
das realidades indígenas, das realidades in loco, com a participação desse
sujeitos atores e produtores do seu próprio conhecimento. Levar a Ação
Saberes Indígenas para dentro do comitê estratégico nacional do compro-
misso Criança Alfabetizada é garantir que essa produção de conhecimento
continue com a sua autonomia, como é a rede Ação Saberes Indígenas e
que o comitê estratégico Nacional do compromisso da Criança Alfabetiza-
da, possa ter esse olhar direcionado, específico, porque as pessoas que es-
tão e os profissionais que estão envolvidos com a formação continuada da
Ação Saberes Indígenas, eles conseguem hoje dá conta dessa especificida-
de, o que o programa PNLD - Programa Nacional do Livro Didático, não
conseguiu dar conta até então, né? Então é a gente trazer essa rede para
dentro desse compromisso para garantir as especificidades culturais e
identitárias e linguísticas dos povos indígenas no processo de alfabetiza-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 243


Telma Cruz Costa

ção, a gente está apostando que essa política vai ser muito bom para con-
solidação da sistematização do conhecimento e da produção de conheci-
mento no processo da alfabetização das crianças indígenas. Outra ação
importante e que por sinal o lançamento dela vai ser agora na próxima
quinta-feira (a data foi 21 de setembro de 2023) é o PARFOR Equidade. Que é
uma parceria da SECADI com a Capes que é um programa de formação de
professores para Primeira Licenciatura, Segunda Licenciatura e Pedagogia
Intercultural, mas que garante também toda especificidade de um projeto
de curso pensado com a população indígena e também com a participação
de notório saber, do sábio indígena que vai estar neste curso como profes-
sor-formado. A gente está apostando que esse edital PARFOR Equidade,
que vai ser lançado agora na próxima quinta-feira, será uma grande pro-
posta para expandir a formação de professores indígenas. A gente ainda
tem um gargalo, como disse, que é dar continuidade ao Fundamental anos
finais e Ensino Médio em muito territórios indígenas, porque a gente não
tem professor com formação, e agora a gente quer expandir isso não só
com as Licenciatura e Pedagogias Interculturais no âmbito das Universida-
des e Institutos Federais e Estaduais, mas também, em cursos específicos,
como o PARFOR. Pensando em planejamento, estratégia, política, gover-
nança da Educação Escolar Indígena, a gente entende que o modelo que é
posto nessa configuração dos entes Federados - municípios e estados e
Ministério da Educação, não conseguem dar conta das especificidades.
Para isso foi lançado um decreto presidencial dos Territórios Etnoeducacio-
nais - TEEs, mas avaliamos hoje que a política dos Territórios Etnoeducacio-
nais é ainda uma política muito importante para melhoria da consolidação
da Educação Escolar Indígena Específica e Diferenciada, no entanto, é pre-
ciso fazer uma melhor gestão dos TEEs, uma melhor governança dos TEEs
e nós estamos justamente pensando essa reestruturação, pensando não,
redesenhando já essa reestruturação dos territórios educacionais, mês que
vem a gente vai ter 16 (dezesseis) consultores já contratados para ir a cam-
po, para que a gente possa reativar os Territórios Etnoeducacionais, recons-
tituir as comissões e nós estamos construindo uma governança que possa
estar mais próxima desse territórios, estamos desenhando uma governan-
ça onde possamos ter estruturas de governança de extensão do MEC nos

244 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

Territórios Etnoeducacionais, então serão extensão do MEC que estarão nas


regiões dos Territórios Etnoeducacionais, para estar mais próxima dessa go-
vernança onde vai interligar Territórios Etnoeducacionais e Ministério da
Educação. Então nós vamos ter uma estrutura de coordenação nacional do
Ministério da Educação, com a participação social Interfederativa e consul-
tiva, quanto associações indígenas, indigenistas, ministérios, órgãos públi-
cos subnacionais, instituições de ensino superior. Essa estrutura vai dialo-
gar com o primeiro Plano de Educação Escolar Indígena, primeiro PNEEI,
que está estruturado por eixos, então a gente está acreditando, apostando
que esse sistema de governança vai dar um resultado melhor à Educação
Escolar Indígena. Nós pensamos em uma política melhor consolidada, está
se discutindo no âmbito nacional a criação do Sistema Nacional de Educa-
ção como um todo e nesse sistema nacional nós vamos estar ali como sub-
sistema do Sistema Nacional. O subsistema que é nomeado de Territórios
Etnoeducacionais, então os TEEs serão na política um subsistema do Siste-
ma Nacional de Educação, isso virando lei, nós vamos ter uma estrutura
garantida para que possamos criar as regionais do MEC nos Territórios Et-
noeducacionais, essa é a proposição dos próximos tempos que virão com a
consolidação do Sistema Nacional de Educação.

Telma: Qual sua expectativa para sua atuação na pasta do MEC?


Rosilene: As minhas expectativas, em relação a minha atuação no MEC
(pausa para reflexão)! Nós estamos construindo, reconstruindo na verda-
de, toda uma relação de entes federativos. Quando retoma essa relação se
cria expectativas muito positivas, nos encontros que nós já tivemos com
reitores das instituições de ensino superior, com secretários de Estado, com
a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, com as diversas secre-
tarias do MEC, tem nos dados, nos proporcionado um gás importante para
que possamos ter esperanças em dias melhores. A relação que nós estamos
construindo enquanto coordenação, que hoje deixa de ser Coordenação
de Educação Escolar Indígena vinculada a Diretoria da Educação do Cam-
po, que era Campo, Indígena e Ambiental para passar a ser Coordenação
Geral de Política Educacional vinculada diretamente ao gabinete da SECA-
DI. E nessa relação que estamos construindo com as diversas secretarias do

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 245


Telma Cruz Costa

MEC, como a CAPES, como a SESU, como a SEB, o próprio FNDE, essas rela-
ções estão nos mostrando muitos caminhos possíveis. Claro que as coisas
não se dão de forma tão simples para que possamos ver os resultados de
forma unânime, as coisas vão acontecendo aos poucos, a gente vai vendo
o resultados por regiões, por pontos, por política, mas eu considero impor-
tante essa relação que construímos e que estamos construindo com ou-
tras Secretarias do Ministério e com outros Ministérios, como o Ministério
dos Povos Indígenas, com outras relações para que a gente possa ter um
melhor atendimento à Educação Escolar Indígena. Pensar essa nova rou-
pagem na política educacional dos Povos Indígenas e colocando os Territó-
rios Etnoeducacionais como subsistema do Sistema Nacional e tendo todo
esse diálogo, essa abertura para os diálogos internos com o Ministério da
Educação, a gente consegue sim ter expectativas positivas para dias me-
lhores na Educação Escolar Indígena. Como eu disse, é claro que isso requer
toda um desafio a ser enfrentado, principalmente porque ela, a SECADI e o
MEC como todo, perdeu percentual muito significativo de recursos huma-
nos com a criação de novos ministérios, então nós temos poucos recursos
humanos, poucos profissionais no âmbito do Ministério, no âmbito da Co-
ordenação de Política da Educação Escolar Indígena para que possamos
chegar com mais celeridade nas instâncias governamentais locais. Esse é
um grande desafio, a gente tem uma equipe reduzida, mas é uma equipe
que tem trabalhado muito porque acredita nos resultados e estamos ven-
do os resultados positivos. A minha atuação no MEC, é claro que ela é um
desafio, né? mas ela não é uma coisa nova. Não é uma atuação nova, devido
já ter passado por essa experiência no âmbito do Estado quando fui ges-
tora de Educação Escolar Indígena no Estado da Bahia e também quando
fui gestora do curso de Licenciatura Intercultural na Universidade Federal
do Amapá, onde foi coordenadora de curso e professora, essa experiência
de gestão no âmbito do Estado e no âmbito da Universidade, com certeza,
proporcionaram um certo conforto para a minha atuação na pasta do MEC,
por já conhecer os caminhos das Pedras, vamos dizer assim. Por já entender
de gestão pública, por já entender que os caminhos precisam ser trilhados
e precisam ser buscados e essa vontade de fazer está em mim, né? então
vamos que vamos!

246 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

Telma: Como você resumiria o contexto da Educação Escolar Indígena no


Bahia e Brasil?
Rosilene: A Educação Escolar Indígena na Bahia tem se consolidado aos
pouquinhos, né? Eu digo consolidado, no sentido da consolidação de uma
Educação Específica e Diferenciada. A partir do momento que nós criamos
lá atrás as matrizes curriculares de referência da escola indígena, a gente
consegue dar essa cara de autonomia para que as escolas possam construir
currículos específicos. A Bahia é um Estado que tem proporcionado essa
construção e nós temos um quadro de profissionais indígenas muito quali-
ficado. É claro que isso não é de forma genérica, nós temos ainda também
uma precarização de profissionais que atuam nas escolas indígenas, mas
nós temos um número muito grande de profissionais qualificados e que
tem mostrado que essa escola diferenciada é possível e a gente vê muito
fortemente o resultado disso quando os estudantes dessas escolas saem
para prestar vestibular, concurso e seleção lá fora, na sociedade não indíge-
na, a gente vê esse resultado positivo. Então a Bahia, ela não está ruim nes-
se aspecto, mas nós temos ainda que melhorar muito em muitos aspectos,
não quer dizer que nossa educação na Bahia é sucesso, pelo contrário, nós
temos que avançar muito, temos que melhorar muito. A criação da Carreira
de Professor Indígena foi um avanço, com certeza! Nós saímos da precari-
zação de contratos temporários, mas nós entramos em uma outra precari-
zação porque entramos na carreira de subsídio, nós entramos numa preca-
rização de não reconhecimento da profissionalização indígena no que se
refere a plano, cargos e carreira. E que tem sido uma luta dos profissionais
da Educação Indígena na Bahia alterar a carreira, que aos poucos estamos
alterando, mas isso ainda é um desafio. Nós temos essa precarização na
valorização da carreira de profissionais da Educação Escolar Indígena na
Bahia, mas por outro lado a gente tem avançado nos processos de constru-
ção de currículos específicos, de produção do conhecimento, sistematiza-
ção do conhecimento. Como disse, os resultados das nossas crianças, dos
nossos jovens que saem da escola indígena para prestar vestibular, para
prestar concurso a gente vê isso muito positivo, e a gente vê também o
retorno desses para a comunidade. Os nossos profissionais da educação
que saem para se qualificar, eles têm esse feedback, eles retornam para

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 247


Telma Cruz Costa

comunidade e isso é muito positivo. É claro que temos que avançar em


muitos aspectos, principalmente, na produção de material didático espe-
cífico, na qualificação dos espaços escolares, na formação de professores
que ainda temos um défice, mas a Bahia tem sido pioneira em muitos as-
pectos importantes para a consolidação de uma Educação Escolar Indígena
Diferenciada e pensar esse currículo diferenciado, de pensar diretrizes es-
pecíficas de Educação Escolar Indígena para os povos indígenas da Bahia.
Em se tratando de Educação Escolar Indígena no Brasil nós podemos dizer,
que temos muitas experiências exitosas com a iniciativa de escolas e de
povos, que conseguem fazer uma escola de fato diferenciada, com resul-
tados positivos para o letramento, numeramento, currículo, alfabetização
das crianças, enfim, nós temos escolas com experiências muito exitosas,
mas nós temos também escolas com experiências desastrosas. Então esse
é o desafio, isso vem principalmente pelo descompromisso que os gestores
públicos têm para com a Educação Escolar Indígena. É claro que nós temos
diversos territórios com suas peculiaridades e suas dificuldades de acesso
e isso configura um desafio muito grande e por conta disso, muitos territó-
rios não conseguiram melhorar as redes físicas das estruturas das escolas,
não conseguem garantir a continuidade da oferta da Educação Básica, por-
que não tem formação de professores. A formação de professores ainda é
um desafio muito grande quando pensamos no contexto do Brasil. Nas
escolas, nos Estados, nas regiões que ainda não tem nos territórios indíge-
nas escolas de Ensino Fundamental Anos Finais e Ensino Médio é porque
não se teve e não se tem uma política célere de formação de professores e
para tanto, é preciso investir na formação de professores, é preciso investir
em cursos de licenciaturas interculturais, de pedagogias interculturais e de
outros cursos interculturais para que a gente possa avançar com a ofer-
ta do Ensino Médio e do Ensino Fundamental Anos Finais nos Territórios
Indígenas. É pensando nessas dificuldades que nós temos que estruturar
uma outra governança para o sistema de Educação Escolar Indígena. Por
que de fato a política de educação específica diferenciada precisa chegar,
nós precisamos dar oportunidade aos egressos dessas licenciaturas, das
pedagogias interculturais, para que possam estar nas respectivas escolas
em seus respectivos territórios. É preciso investir em concurso público

248 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

específico para professores indígenas, porque esses são inseridos em seus


contextos culturais e linguísticos, então é preciso ter concurso específico,
é preciso investir nas carreiras específicas, criar carreira específica dos pro-
fissionais de Educação Escolar Indígena para ter maior valorização, para ter
uma garantia de continuidade desses profissionais na escola. Há uma des-
continuidade muito grande, porque é um percentual de contratos tempo-
rário muito grande, só para se ter uma ideia nós temos 81% dos professores
indígenas com contratos temporários, isso dá uma descontinuidade muito
grande dos profissionais, isso provoca, também, uma desqualificação nos
processos de ensino e aprendizagem, de estratégia didáticas pedagógicas,
de processo de alfabetização das crianças, devido a essa descontinuidade
desses profissionais, o percentual de professores efetivos é muito pequeno,
apenas 18% dos nossos professores são efetivos, então isso não dá uma ga-
rantia de continuidade da educação escolar nas escolas. É preciso investir
na qualificação da política de Educação Escolar Indígena no Brasil, mas nós
temos experiências que servem de referências não só para outras escolas
do Brasil, mas para outras escolas de outros países, nós somos referência,
com todas as nossas precarizações, nós ainda somos referência em alguns
contextos da Educação Escolar Indígena.

Telma: Sabendo que sua trajetória perpassa pela formação da primeira


turma de Licenciatura Intercultural, como você avalia o papel dessas licen-
ciaturas hoje?
Rosilene: Os cursos de Licenciatura Intercultural e de Pedagogia Intercul-
tural são de fundamental importância para se pensar e para se construir,
para se consolidar os currículos interculturais das escolas indígenas. São
nesses cursos que se constrói um currículo específico e se tem um processo
de ensino-aprendizagem decolonial, que pensa um currículo intracultural
e intercultural de valorização identitária, de valorização cultural, de valori-
zação das territorialidades, dos contextos vividos pelos povos indígenas.
Os espaços de diálogo, de vivências, de experiências, sistematização do co-
nhecimento das línguas indígenas, do reavivar das línguas, das retomadas
das línguas, da rememoração das ancestralidades, das vivências culturais
identitárias, dos rituais. Esses cursos interculturais, tanto as licenciaturas

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 249


Telma Cruz Costa

quanto as pedagogias que são cursos específicos, são necessários para o


contexto das escolas indígenas para a construção de um currículo diferen-
ciado. Não dá para pensar em uma escola indígena e construir um currículo
específico sem profissionais que passaram por essa formação. É de funda-
mental importância, esses espaços que são espaços de fortalecimento de
toda uma cosmologia, toda uma epistemologia dos povos indígenas.

Telma: E os programas de Formação Continuada para professores indíge-


nas, como você os avalia?
Rosilene: Nós temos muitas experiências de formação continuada, nós
temos modelos distintos de formação continuada de professores e cada
um é cada um, né? mas como eu disse tem um que gosto muito, que é o
curso da Ação Saberes Indígenas na Escola, porque esse curso dá autono-
mia para o grupo pensar esse formato em conjunto, pensar esse projeto
de curso a partir das experiências vividas, a partir das experiências in loco,
a partir das necessidades in loco. Esse curso da Ação Saberes tem crescido
bastante e ganhando construções distintas, ora pensando no letramento,
ora pensando no numeramento, ora pensando na produção de material,
ora pensando na sistematização das línguas indígenas, na construção de
currículos e projetos pedagógicos específicos das escolas, dessa questão
do currículo diferenciado. Ele tem seguido formato muito particular de
cada realidade, isso é importante! É um dos cursos de formação continuada
que eu considero de suma importância. Para além desse, com certeza, nós
temos iniciativas de curso de formação continuada no âmbito das secreta-
rias municipais, das secretarias estaduais e instituições de ensino superior
que também tem formatos bem particulares, construído com a participa-
ção das pessoas indígenas, esses cursos de formação continuada e inicial,
também, que são pensados com a participação do sujeitos indígenas têm
uma peculiaridade que garante esse pensar de um currículo específico, es-
ses são os cursos que eu considero importantes. Agora, cursos de formação
continuada e também Inicial, que não são pensados, não são construídos
observando as realidades indígenas, são cursos que não vão ter um resulta-
do positivo para ter retorno para a comunidade. Com certeza será um curso
que vai ficar faltando alguma coisa, né? É claro que nem tudo é perdido, vai

250 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


CAMINHOS DA RESILIÊNCIA: Entrevista com Rosilene Tuxá sobre
Ancestralidade, Lutas Indígenas e Educação Escolar Diferenciada

ter um processo de formação, claro! Mas vai chegar no momento em que


vai faltar conteúdo para que de fato tenhamos bons resultados no chão
da escola. Bom, professora Telma, espero ter atendido as suas expectativas,
eu espero que tenha dado tempo! Mais uma vez eu peço desculpas pela
morosidade, de fato minha vida tá bem corrida e assim me coloco à dispo-
sição para que se tiver alguma questão a mais que queira fazer, me coloco
a disposição e prometo que eu vou responder de imediato assim que você
me mandar, beijo!

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 231-251, 2023 | 251


Volume 11, nº 1, 2023
https://doi.org/10.30620/gz.v11n1

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Anny Carneiro Santos é doutoranda em Crítica Cultural pela


UNEB – Campus II – Alagoinhas e Campus Avançados de Canudos, Mestre
em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social pela Fundação
Visconde de Cairu; Especialista em Educação e Consciência – ISEO e Estado
e Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais-UFBA; Graduada em Histó-
ria – UCSAL; Pesquisadora do OPARÁ (Centro de Pesquisa em Etnicidades,
Movimentos Sociais e Educação) – UNEB Campus VIII – na linha de pesqui-
sa: Etnologia, Educação, Educação Indígena e Interculturalidade; membro
do grupo de pesquisa GPLIN- Grupo de Pesquisa Letramentos, identidades
e narrativas – UNEB – Campus II ? Alagoinhas; Formadora da Ação Saberes
Indígenas na Escola – no Território Etnoeducacional Yby Yara UNEB/MEC –
formação continuada para professores da Educação Escolar Indígena. Tem
experiência na área na Gestão Pública de Educação, Consultoria Educacio-
nal, Educação Básica, Ensino Superior, Educação Escolar Indígena, Forma-
ção continuada de professores e gestores, Gestão de Políticas Educacionais.
Endereço eletrônico: santosanny_@outlook.com.

Anyelle Gomes da Silva é Professora graduada em Letras-Língua


Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia, Campus
II. Especializada em Linguagens e suas Tecnologias no Mundo do Trabalho
pela Universidade Federal do Piauí. Mestranda em crítica cultural pelo Pro-
grama Pós-crítica na Universidade do Estado da Bahia, cujo projeto é intitu-
lado “A LITERATURA DE AUTORIA INDÍGENA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: uma re-
alidade ou uma utopia?. Endereço eletrônico: anyelle.gomes@hotmail.com.

Carla Lucilene Uhlmann é mestranda no Programa de Pós-Gra-


duação em Crítica Cultural, Universidade do Estado da Bahia (Pós-Crítica/
UNEB). Linha de pesquisa 1: Literatura, Produção Cultural e Modos de Vida.
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Felix. Especialista em Teoria e Prática na For-
mação do Leitor pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (2019).

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 253-260, 2023 | 253


SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Licenciada em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Atriz pelo SENAC São
Paulo – SP (2006). Atuou como coordenadora de divulgação na L&PM Edi-
tores (2013-2019). Realizou projetos pedagógicos para a Solisluna Editora
na elaboração de material para o professor para os editais governamentais
do PNLD/MEC/FNDE (2021). Tem experiência na área de artes com ênfase
em contação de histórias, teatro e no mercado editorial. Interessa-se em
pesquisas nas seguintes áreas: literaturas de língua portuguesa, literatura
indígena, literatura de autoria feminina, poéticas orais, performance, con-
tação de histórias, leitura, decolonialidade, representação, mercado edito-
rial. Endereço eletrônico: carlinhauhlmann25@gmail.com.

Cassia Beatriz Feleol Silva é mestranda em Linguística no


Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), da Universidade Federal do
Oeste do Pará. Graduada em Letras Inglês/Português pela mesma universi-
dade. Pesquisadora do Grupo de Estudos Linguísticos do Oeste do Pará (GE-
LOPA). Endereço eletrônico: bfeleol@outlook.com. ORCID: http://orcid.org/
0000-0003-3488-971X. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7725172341091779.

David Borges Limeira da Silva é Bacharel no curso Interdisciplinar


em Humanidades pela Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB. Co-
ordenador do núcleo Central dos Estudantes indígenas da UFSB, campus
Sosígenes Costa – Porto Seguro – BA. Ativista dos direitos dos povos indí-
genas, cultura, identidade e das Línguas Indígenas de Sinais - LIS. Endereço
eletrônico: davidlibras6@gmail.com.

David Kaique Rodrigues dos Santos é Indígena da etnia Pataxó,


Mestrando em Relações Étnicas e Contemporaneidade pela Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Especialista em Libras: Docência
e Intérprete pela Faculdade Santo Agostinho (FACSA) e em Inclusão e Di-
versidade na Educação pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB). Licenciado em Letras – Libras pelo Centro Universitário ETEP e em
História pela Faculdade Santo Agostinho (FACSA). É proficiente em Tradu-
ção e Interpretação da Libras PROLIBRAS pela Universidade Federal de San-
ta Catarina (2008). Endereço eletrônico: kawhaufsb2017@gmail.com.

254 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Denize de Souza Carneiro é doutoranda em Linguística no


Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL), da Universidade de Brasília
(UnB). Mestra em Linguística pela Universidade Federal de Uberlândia
(UFU). Professora na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).
Pesquisadora do Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas da UnB
(LALLI/UnB). Áreas de atuação: descrição (língua Sateré-Mawé), sociolin-
guística qualitativa, revitalização e fortalecimento linguístico e cultural, en-
sino de línguas Indígenas e formação de professores indígenas. Endereço
eletrônico: denizesc10@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-
0980-8359. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0877607760576666.

Diones Clei Teodoro Lopes possui graduação em Pedagogia


(2008) pela Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR, campus
Rolim de Moura; Especialização em Educação Profissional na modalidade
Educação de Jovens e Adultos (Proeja) (2011), pelo Instituto Federal de
Educação de Ciência e Tecnologia de Rondônia – IFRO; Bacharelado em
Direito (2016) pela Fundação Universidade Federal de Rondônia – UNIR,
campus Cacoal; e, Mestrado (2023) pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Estadual de Maringá – UEM. Atualmente é Téc-
nico em Assuntos Educacionais – TAE da Fundação Universidade Federal
de Rondônia – UNIR, Campus Ji – Paraná e Advogado inscrito na OAB sob o
n. 8502-RO. Endereço eletrônico: dctladv@gmail.com.

Elizabete Costa Suzart é doutoranda no Programa em Crítica


Cultural (DLLARTES) pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB-CAMPUS
II – Alagoinhas-BA; com pesquisa na Linha 1: Literatura, Produção Cultural e
Modos de Vida. Mestra em Crítica Cultural pela Universidade do Estado da
Bahia (2020) e graduada em Letras Lic. Plena com Hab. Port. Literaturas e Lín.
Inglesa, pela Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA/
UNEB – 1994). Tem experiência na área de hotelaria e turismo, atuando no
conceito de ecoturismo na região da Bahia. Dedica-se à pesquisa etnolin-
guística, buscando realizar um estudo da língua falada na aldeia Kariri-Xocó
-AL, em processo de revitalização. Atualmente dedica-se às questões indí-
genas, principalmente, dando ênfase à cultura, língua e literatura indígenas

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 253-260, 2023 | 255


SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

e aos estudos de políticas indígena e indigenista, sob análise da Crítica Cul-


tural. Participa das atividades, de Práticas no LABORATÓRIO DE COMUNICA-
ÇÃO WEB RÁDIO E TV PÓS-CRÍTICA e Seminários Interlinhas I, II e III (2018-
2022), no Campus II (UNEB), criado para divulgar o conhecimento científico
e as práticas de pesquisas. Faz parte do Laboratório de Línguas e Literaturas
Indígenas (LALLI/UNB), integrando ao programa como aluna convidada da
Profa. Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, bem como aluna especial em Mor-
fologia no PPGL (junho a setembro 2022). É participante da Década Inter-
nacional das Línguas Indígenas (UNESCO) e parceira, indigenista, junto ao
povo indígena do Brasil. Endereço eletrônico: lisasuzart@hotmail.com.

Jocilene Gomes da Cruz é doutora em Ciências do Ambiente e


Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM, 2015), Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM, 2002),
graduada em Cências Sociais (Ufam, 1997). É professora adjunto da Uni-
versidade do Estado do Amazonas (UEA) e coordena o Grupo de Pesquisa
Neicam (Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Cultura Amazônia). Realiza
pesquisas no âmbito da Antropologia Social e Cultural, em duas linhas de
estudo: 1. diversidade cultural, patrimônio cultural e saberes tradicionais; 2.
gestão territorial e ambiental em territórios indígenas. É membro da Comis-
são para o Desenvolvimento da Política Institucional Indígena da Univer-
sidade do Estado do Amazonas. Endereço eletrônico: jgcruz@uea.edu.br.

Kárpio Márcio de Siqueira é coordenador do UBUNTU – Núcleo de


Estudos e Pesquisa Contextualizada Aplicada à Produção de Dispositivos
Didáticos, e líder do Grupo de Pesquisa CNPQ – UBUNTU – Educação
Contextualizada, Processos Teóricos, Metodológicos e Tecnológicos Apli-
cados à Produção de Dispositivos Didáticos, possui graduação em Letras
– Licenciatura Plena em Português e Inglês pela Faculdade de Formação de
Professores de Arcoverde (2002). Professor assistente da UNEB – Campus
VIII, tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas, atuando
principalmente nos seguintes temas: Literaturas de Língua Portuguesa, Li-
teratura Indígena, Textualidades e Literaturas no contexto Indígena, Litera-
tura Negra Brasileira, Metodologia do ensino da Línguas, Produção Textual,

256 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

TICs, Educação no Campo e Formação de professores, Produção de Material


Didático para escolas Indígenas. Tem um extenso trabalho na formação de
professores, gestores pedagógicos. Coordenou projetos de pesquisa em
ensino pelo PIBID/Diversidade da Licenciatura Intercultural em Educação
Escolar Indígena – LICEEI, coordenada ainda, projetos de pesquisa e ex-
tensão voltados para a produção de material didático no contexto da Lei
11.645/08 com alvo na história e cultura dos povos indígenas e negros. Pos-
sui ainda vasto conhecimento na área de ensino e metodologias de Língua
Inglesa e Literaturas. Endereço eletrônico: karpio_siqueira@yahoo.com.br.

Laura Castro é professora no Instituto de Humanidades, Artes e


Ciências Professor Milton Santos (IHAC), Programa de Pós-graduação em
Artes Visuais (PPGAV) | Mestrado Profissional em Artes (ProfArtes), Univer-
sidade Federal da Bahia (UFBA). Endereço eletrônico: lauracastro@ufba.br.

Mabli Nadjane Barbosa Barreto possui graduação em Bacharel


em Direito pelo Centro Universitário da Bahia (2009) e graduação em Li-
cenciatura Plena em Biologia pela Universidade do Estado da Bahia (1997).
Professora de Biologia e Ciências no Colégio Estadual Cleriston Andrade.
Tem experiência na área de Biologia Geral. Tem especialização na área de
História e Cultura Afrobrasileira, atualmente é mestranda pelo programa de
Pós-Graduação em Crítica Cultural (2022) pela Universidade do Estado da
Bahia (UNEB – Campus II). Pesquisadora da área de Educação de Jovens e
Adultos. Endereço eletrônico: barretomabli@gmail.com.

Maicon Rodrigues dos Santos possui graduação em Pedagogia


pela Faculdade de Ensino Regional Alternativa (2015). Especialista em Edu-
cação Escolar Indígena pela Faculdade Alfamérica (2018). Mestre em Ensi-
no e Relações Étnico-Raciais pela UFSB/CPF (2021). Atualmente, é professor
indígena do Colégio Estadual Indígena de Corumbauzinho, atuando como
diretor escolar. Também atuou como orientador no programa Saberes In-
dígenas na Escola (2021) e, também, foi um dos representantes do povo
Pataxó no Fórum de Educação Indígena da Bahia – Forumeiba (2017-2021).
Recentemente, foi homenageado com a Comenda de Honra dos 180 anos

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 253-260, 2023 | 257


SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

do Conselho Estadual de Educação da Bahia (2022). Em 2023, está cursando


especialização em Gênero, Raça, Etnia e Sexualidade pela UNEB. Endereço
eletrônico: maiconrodriguesdossantos1992@gmail.com.

Manoel Inácio de Oliveira é mestre em Ciências Humanas pelo


Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Uni-
versidade do Estado do Amazonas (PPGICH/UEA). Foi bolsista pela Funda-
ção de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM); Possui Licen-
ciatura em Filosofia pela Faculdade Católica de Rondônia-FCR; Pesquisador
do Núcleo de Estudos Interdisciplinares das Culturas Amazônica-NEICAM/
UEA. Pesquisador convidado do Laboratório de Análises Socioeconômi-
cas (LANSOC-UNISUAM) do Centro Universitário Augusto Motta/RJ. Ende-
reço eletrônico: manoelfides@gmail.com.

Maria Christine Berdusco Menezes é doutora em Educação, Pro-


fessora Adjunta no Departamento de Teoria e Prática da Educação da Uni-
versidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, Brasil. Docente no Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação (PPE) e do Mestrado Profissional em
Agroecologia (PROFAGROEC) da Universidade Estadual de Maringá. Líder
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais, Formação de
Professores, Ação Docente e Educação Escolar Indígena (GEPEFAEEI). En-
dereço eletrônicos: E-mail: mcbmenezes@uem.br. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-3097-5242.

Pedro Andrade Corrêa de Brito é mestre em Ciências Sociais


(UERJ), pesquisa nas áreas da antropologia do conhecimento. Elaborou
a dissertação Contra-Cartografia de Canudos: por uma etnoepistemologia
do conflito (2023) em que analisa o campo de produção sobre o tema, de
1874 a 2022, em torno de seus principais autores e linhagens epistemoló-
gicas. O trabalho parte da etnografia realizada no Sertão de Canudos nos
120 anos do fim da guerra e oferece ainda o levantamento bibliográfico
de mais de 600 textos de referência sobre o conflito. Endereço eletrônico:
pedro_acb@hotmail.com.

258 | Narrativas originárias: línguas, artes e cosmologias indígenas


SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Renata Lourenço dos Santos, além de lecionar, pesquisa e atua


com comunicação, especialmente em comunidades tradicionais no nordes-
te do Brasil: comunidades ribeirinhas, aldeias indígenas, territórios quilom-
bolas, foi produtora do projeto Rádio Contos do São Francisco, que registrou
histórias da beira do Rios São Francisco. Idealizadora do Espalha Semente,
portal que reúne ações e atividades com indígenas, incluindo o Cine Kuru-
min, primeiro Festival de Cinema Indígena do Brasil. Pesquisa a produção
cultural indígena, com alguns destaques: a literária, a audiovisual e a nordes-
tina. Enquanto pesquisadora, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação
em Crítica Cultural, na Universidade do Estado da Bahia (UNEB, Campus Ala-
goinhas). Mestra em Letras: Cultura, Educação e Linguagens pela Universi-
dade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, Campus Vitória da Conquista).
Pós-Graduada em Artes Visuais: Cultura e Criação pelo SENAC. Graduada em
Jornalismo pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB, Campus
Vitória da Conquista). Graduada em Letras (Centro Universitário Internacio-
nal – UNINTER). Endereço eletrônico: relou.santos@gmail.com.

Rita de Cássia Silva Sanglard é mestra em Educação pela Uni-


versidade Estadual de Maringá, Paraná, Brasil. Pesquisadora no Grupo de
Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais, Formação de Professores,
Ação Docente e Educação Escolar Indígena (GEPEFAEEI). Professora, Pico-
pedagoga, Pós-graduada em Tradução, interpretação e docência em Libras,
Licenciatura e Bacharelado em Letras Libras. Endereço eletrônico: rsilvasan-
glard@yahoo.com.br. ORCID: https: //orcid.org/0000-0001-8744-5333.

Saionara Figueiredo Santos é pós doutora pela Universidade de


Buenos Aires, com pesquisas sobre Estudos de Gênero e Estudos da Tradu-
ção (O Corpo da Mulher Tradutora e Intérprete de Línguas de Sinais). Dou-
tora em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Mestre em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Rio
Grande (FURG). Pedagoga pela Universidade das Américas Tradutora/Intér-
prete de Língua de Sinais Brasileira. Atualmente, trabalha como Professora
da área de Tradução, no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC – Cam-
pus Palhoça Bilíngue). Participa do NEPES – NÚCLEO DE ESTUDOS E PES-

Grau Zero – Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 1, p. 253-260, 2023 | 259


SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

QUISAS EM EDUCAÇÃO DE SURDOS. Tem focado seus projetos na área da


Educação Bilíngue para Surdos, Tecnologias de Informação e Comunicação
para surdos, Análise Crítica do Discurso, Estudos da Tradução/Interpretação
das Línguas de Sinais e Estudos de Gênero e Sexualidade. Participa do Nú-
cleo de Estudos Afrobrasileiros e Indigenistas do Instituto Federal. Ativista
pela causa indígena, pesquisa e atua com pesquisadores indígenas do IF
Baiano – Campus Teixeira de Freitas – com ênfase na Educação Bilíngue,
contextualizando a educação de povos indígenas surdos. Endereço eletrô-
nico: saionara.figueiredo@ifsc.edu.br.

Telma Cruz Costa é doutoranda do Programa de Pós-Graduação


em Crítica Cultural (Pós-Crítica/UNEB). Mestra em Educação e Contempo-
raneidade pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB (2010) . Graduada
em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (1990). Especialista em
Educação Básica de Jovens e Adultos (UNEB – 2000), Gestão Escolar (UNEB
– 2001) e Avaliação (UNEB – 2002). Docente da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB – Campus XXII – Euclides da Cunha. Pesquisadora do Centro
de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação – OPARÁ/
UNEB (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/6927550823596872). Formadora
do Programa Saberes Indígenas na Escola (MEC/SECADI/UNEB) e do Progra-
ma de Formação Inicial de Professores (PARFOR). Tem experiência na área de
Formação Docente com ênfase em Educação Escolar Indígena, Identidades
e diversidade Cultural, Currículo Intercultural, Prática pedagógica Educação
de Jovens e Adultos e Alfabetização e Letramento. Atua principalmente
com os seguintes componentes curriculares: Pesquisa e Prática Pedagógica;
Alfabetização e Letramento Intercultural, Fundamentos da Educação, Edu-
cação de Jovens e Adultos, Psicologia e Educação, Políticas Públicas Educa-
cionais e LIBRAS. Endereço eletrônico: telmaccruz@gmail.com.

Shirley Vilhalva é pedagoga, Mestre em Linguística – UFSC e Dou-


toranda em Linguística Aplicada UNICAMP/UFMS. Professora da Universi-
dade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS. Endereço eletrônico: shirley.
vilhalva@ufms.br.

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